Aula 1 - Jacques Derrida
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Aula 1 - Jacques Derrida
Aula 1
Estes são trechos de um obituário publicado pelo jornal The New York Times,
logo após o falecimento de Derrida, em 2004. Se resolvi começar por ele um curso de
introdução à experiência intelectual de Jacques Derrida, é, primeiro, para lembrar a
vocês como toda verdadeira instauração filosófica é medida pelo desconforto e pela
violência que ela é capaz de causar. Pois esse simpático obituário sintetiza, de maneira
violenta e polêmica, todo o desconforto que nossa época sentiu diante do filósofo
1
KANDELL, Jonathan, In: New York Times, 10/10/2004
francês. Ele diz, de maneira intelectualmente mais ingênua e tosca, o que boa parte do
meio acadêmico ainda pensa a respeito de Jacques Derrida. Filósofo que teria inventado
um “método de análise” que não é um, pois não passaria de uma estratégia relativista
visando quebrar a ordem das razões de um texto, ignorar contextos de produção,
fazendo assim todo e qualquer texto dizer aquilo que ele decididamente não disse.
Regime de leitura que esconde, na verdade, uma operação mistificadora que se serviria
de um estilo “empolado e desconcertante” apenas como estratégia diversionista de um
“niilismo” estilizado. Regime responsável por um nivelamento perigoso da diferença
genérica entre filosofia e literatura, entre reflexão conceitual e metáfora poética. Jürgen
Habermas, por exemplo, dirá que o programa de Derrida não seria mais do que a
tentativa de “estetização da linguagem, que é resgatada através da dupla negação do
sentido próprio do discurso normal e poético” 2. O que significa dizer que Derrida seria
incapaz de compreender a diferença de sentido entre um texto filosófico em suas
expectativas descritivas de verdade e validade e um texto literário em suas exigências de
expressão estética.
Por fim, last but not least, Derrida teria cometido o pecado maior de ignorar o
regime de clareza geométrica própria à natureza argumentativa da escrita conceitual.
Como se para falar sobre alguns objetos fosse necessário torcer a estilística filosófica
até que ela fique no limite do reconhecível, até que ela adquira a monstruosidade destas
frases de três páginas e notas cancerígenas que parecem querer tomar de assalto o texto
principal. Este pecado de atentado contra a clareza chegará a ser chamado por alguns de
“terrorismo”. Lembremos, a este respeito, do que diz o filósofo norte-americano John
Searle:
“Com Derrida, como ele é tão obscuro, você dificilmente pode interpretá-lo mal.
Cada vez que você diz: “Ele disse tal e tal”. Ele sempre diz: “Você não entendeu
nada”. Mas se você tenta imaginar a interpretação correta, não será tão fácil.
Uma vez disse isto a Foucault, que era ainda mais hostil a Derrida do que eu, e
ele disse que Derrida praticava o método do ‘obscurantismo terrorista’. Como
estávamos falando em francês, perguntei: “O que você quer exatamente dizer
com isto?”. Ele disse: “Derrida escreve de maneira tão obscura que você não
pode definir sobre o que ele está falando, esta é a parte obscurantista; e quando
você o critica, ele sempre pode dizer: ‘Você não entendeu nada, você é um
idiota’. Esta é a parte terrorista3.
Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar que este tipo de argumento
(“seu uso da linguagem é tal, ele é tão distante do senso comum, que não se sabe do que
ele está falando”) não é exatamente novo. Se vocês quiserem, poderíamos fazer aqui
uma pequena “genealogia do obscurantismo terrorista” em filosofia. Começaríamos, por
exemplo, com Hegel, o mesmo Hegel que não temerá em dizer, por exemplo:
2
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa: Dom Quixote, p. 194
3
SEARLE, John; Realities principle : na interview with John Searle, In:
http://www.reason.com/news/show/27599.html
matéria. É por isto que ele é particular à matemática e devemos deixá-lo à
matemática4.
Pensando nisto, Adorno chegou a sintetizar bem a vertigem que se sente diante da
linguagem hegeliana, com suas “frases de três páginas”: “Hegel é sem dúvida o único
dentre os grandes filósofos que, em alguns momentos, não sabemos e não podemos
decidir sobre o que ele fala exatamente, o único a respeito de quem a própria
possibilidade de tal decisão não é assegurada”5.
Mas poderíamos aqui lembrar também de Heidegger, que ouviu do Círculo
positivista lógico de Viena o mesmo tipo de acusação que Searle endereçava a Derrida:
“suas proposições eram simplesmente desprovidas de sentido”. Quando ele diz: “o nada
nadifica”, “o espaço espaça” ele não quer dizer nada. “Terrorista” porque, em suas
mãos, o solo seguro das certezas da linguagem ordinária se dissolve. Mas, não seria esta
a obrigação de toda verdadeira filosofia? Nos retirar o solo seguro das certezas da
linguagem ordinária. Como dirá alguém para quem estas questões de estilo e escrita
eram da maior importância: “A filosofia do senso comum [e vocês compreenderão mais
a frente porque devemos falar do senso comum e de suas exigências de clareza como
uma “filosofia’] quer que pensemos como pensamos. A questão da filosofia é outra: -
por que pensamento assim? – Mais precisamente: - por que já não podemos pensar
exatamente assim?”6.
Esta é talvez uma boa questão inicial para abordar a experiência intelectual de
Jacques Derrida: a natureza da discursividade própria à filosofia, do regime de escrita
que realmente lhe convém, não seria uma questão filosófica da mais alta grandeza? Se
colocarmos a questão “Como os filósofos escrevem?” talvez ficaremos impressionados
com a profunda dispersão estilística que faz com que cada experiência filosófica
fundamental venha necessariamente acompanhada de uma instauração discursiva
singular. Como se cada experiência filosófica fundamental sempre repetisse a
proposição: “Não é mais possível escrever como até agora se escreveu”. Montaigne e os
Ensaios, Descartes e a perspectiva experimental da primeira pessoa nas Meditações,
Hegel e a escrita de experiências que vão dissolvendo as certezas gramaticais
elementares da consciência na Fenomenologia, Nietzsche e o perspectivismo herdado
dos moralistas franceses. Todos eles dizem, à sua maneira: “Não é mais possível
escrever como até agora se escreveu”. É necessário passar a uma instauração discursiva.
A primeira condição para ler Derrida talvez seja então partir desta proposição e, assim,
colocar a questão: “Por que, para Derrida, não é mais possível escrever como até agora
se escreveu?”.
Margens
Eis proposições bastante claras para um autor com fama de obscuro. O que diz
afinal Derrida? Primeiro, que a própria discursividade filosófica, seu estilo, seu modo de
expor e definir problemas, sua textualidade não é construída através de uma gramática
neutra e desinflacionada do ponto de vista metafísico. Enquanto discurso, a filosofia é
uma episteme e depende de uma episteme. O termo, tal como Derrida o utiliza, vem de
Michel Foucault, em especial de seu livro As palavras e as coisas. Ele indica a idéia de
que os múltiplos discursos que se entrelaçam em uma dada época histórica estão todos
submetidos a uma mesma matriz comum de racionalidade, a uma mesma episteme. Ou
seja, episteme deve ser aqui entendida como conjunto de regras e sistemas que
organizam o campo de experiências possíveis e de possibilidades de saberes. A partir
disto, Foucault procurava demonstrar como os saberes positivos de uma época
configuram-se a partir da definição de regimes gerais de ordenamento com suas relações
de diferença e de identidade. Isto lhe permitia dizer que: “a filosofia não é nem
historicamente nem logicamente fundadora de conhecimento, mas existem condições e
regras de formação do saber aos quais o discurso filosófico encontra-se submetido a
cada época, como toda forma de discurso com pretensões racionais”. Pois haveria uma
espécie de “inconsciente do saber que tem suas próprias formas e regras específicas”8.
O que diz então Derrida? Ele diz querer fazer filosofia no limite do discurso
filosófico, colocando-se à margem do que funda a episteme da qual a filosofia como
discurso é tributária. Mas aqui uma pergunta deve ser imediatamente posta? Haveria
afinal uma episteme, uma matriz comum do logos a respeito da qual a filosofia como
discurso seria tributária? Notemos quão estranha é esta pergunta. Pois trata-se de dizer
que haveria algo de fundamental, um certo projeto a unificar vários momentos da
filosofia (e vemos como, afinal, Derrida lê filósofos tão diferentes como Platão, Husserl,
Hegel, Heidegger mostrando a mesma dificuldade em escapar de um projeto que muitas
vezes está prestes a se quebrar, que acaba por abrir outros possíveis, mas que, graças a
uma astúcia de múltiplas faces, retoma a palavra final). Qual é este projeto que Derrida
nomeia (e ainda não sabemos nada sobre esse nome, o que ele pode bem significar, qual
a estrutura de parentesco que ele sustenta com outros modelos de crítica) de “metafísica
da presença”? Que regime de discursividade é este fundado em um conjunto de
pressupostos, de exclusões e de tensões cujo nome correto, ao menos segundo Derrida,
seria “metafísica da presença”? Quais são seus verdadeiros pressupostos, ou ainda, o
que deve acontecer à história da filosofia para que ela possa aparecer como a história da
hegemonia de uma metafísica da presença? Tais questões serão respondidas no decorrer
deste curso.
Mas, por enquanto, lembremos como essas perguntas chamam outras com as
quais também teremos que nos confrontar constantemente. Pois o que pode significar
fazer a crítica desta discursividade, desta metafísica que se confundiria com a própria
instauração da filosofia como lugar que pensa as expectativas de validade presentes na
multiplicidade dos saberes e práticas ou, se quisermos, que se confundiria com o que
normalmente entendemos por “razão”? “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar
não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda
tratar da filosofia? Esse lugar não terá sido sempre, previamente, ocupado pela
7
DERRIDA, Jacques; Positions, Paris : Seuil, 1972, pp. 14-15
8
FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
filosofia?”. Até porque: “A exterioridade, a alteridade, são conceitos que, por si só,
nunca surpreenderam o discurso filosófico” 9. Proposição decisiva, pois, desde ao menos
a História da Loucura, de Foucault, uma problemática não cessava de se inscrever no
interior do debate filosófico francês : se quisermos fazer uma crítica da razão,
mostrando todos estes pontos nos quais ela configura seu Outro (a loucura, o irracional,
a infância, etc.), de nada adianta deixar o Outro falar, pois ele falará mimetizando nossa
língua. Não é possível deixar a loucura falar, dirá o próprio Derrida em ‘Cogito e
história da loucura”, porque o reconhecimento de sua alteridade é modo de sua inscrição
no interior da minha gramática. E não há gramática neutra do ponto de vista de suas
implicações metafísicas. Como dirá Nietzsche, em uma colocação da maior importância
para nossa compreensão do que estava realmente em jogo neste momento do
pensamento filosófico francês: “Temo não nos desvencilharmos de Deus enquanto
continuarmos a acreditar na gramática”10.
Se vocês me permitem, diria temer não compreendermos Derrida enquanto não
meditarmos de maneira demorada esta frase. Pois voltemos um pouco atrás e
recoloquemos mais uma vez a questão: “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar
não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda
tratar da filosofia?”. Alguns dariam de ombros para tal questão e diriam: “Claro, o lugar
não-filosófico a partir do qual se pode tratar da filosofia (e, talvez também, tratar a
filosofia, no sentido clínico de alguém que trata de doenças e ilusões) é a linguagem pré-
filosófica do senso comum com suas certezas imediatas. O senso comum sadio nos
fornece uma linguagem desinflacionada do ponto de vista metafísico, linguagem
presente no mundo cotidiano da vida, linguagem que todos nós aceitaríamos sem
reservas.
Este é talvez um dos pontos fundamentais que aproximam o que
convencionamos chamar de crítica pós-estruturalista da razão (e insistiria neste
aspecto, há uma crítica da razão que aproxima autores como Derrida, Deleuze e
Foucault, mesmo que ela seja conjugada de maneira diferente, a partir de referências
filosóficas distintas e com resultados não homogêneos). Pois todos eles dirão,
juntamente com Nietzsche, que nossa linguagem pré-filosófica naturaliza categorias
filosóficas como unidade, substância, duração, causa, realidade, ser e, principalmente,
sujeito (e veremos, em outras aulas, de onde vem esta centralidade do conceito de
“sujeito”) devido simplesmente à sua gramática. Deleuze compreendeu isto de maneira
exemplar ao falar da relação entre filosofia e “imagem do pensamento”. Neste contexto,
“imagem” significa o que determina o regime de visibilidade do pensamento, aquilo que
o pensamento é capaz de ver, de dispor e determinar, um pouco como determinamos e
diferenciamos coisas no espaço. Esta condição de visibilidade do pensar está ligada aos
pressupostos implícitos que colocam o pensamento em uma boa direção “natural”. Isto
significa elevar as relações entre linguagem filosófica e linguagem pré-filosófica à
condição de problema filosófico maior. Pois é a linguagem pré-filosófica, esta
linguagem “ordinária” própria ao senso comum, que forneceria ao pensar filosófico seu
conjunto tácito de pressuposições não problematizadas. Neste sentido, a crítica à
imagem do pensar é, no fundo, avaliação crítica das relações entre filosofia e senso
comum. Isto fica claro em afirmações como:
No fundo, Deleuze quer insistir que o bom senso e o senso comum são imagens
ortodoxas do pensamento e, neste sentido, carregadas de implicações metafísicas e
morais. É exatamente devido a perspectivas como estas que Derrida insistirá não ser
mais possível escrever como até então se escreveu:
Mas que tipo de escrita é esta ou, ao menos, que tipo de escrita ela quer ser?
Voltemos a esta explicação fundamental: “‘Desconstruir’ a filosofia seria pensar a
genealogia estruturada de seus conceitos da maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao
mesmo tempo desde um certo exterior inqualificável para ela, inominável, determinar o
que essa história pôde dissimular ou proibir, fazendo-se história exatamente através
dessa repressão, de uma certa forma, interessada”. Desconstruir a gramática que suporta
a filosofia como discurso equivaleria a operar uma certa genealogia. O termo
nietzscheano indicava este modo de se perguntar sobre a gênese do que estamos
dispostos a contar como incondicional e universalmente válido. Qual a gênese do que
aparece como pressuposto para nossa forma de pensar? Gênese que nos leva a uma
história dissimulada, reprimida que não é outra que a história da razão e de nossos
modos de racionalização.
No entanto, podemos dizer (e este dizer é apenas inicial, ele será corrigido, mas
devemos partir dele) que a desconstrução é uma genealogia. Uma forma muito peculiar
de genealogia. Sua peculiaridade vem da compreensão que tem Jacques Derrida a
respeito do que é um texto filosófico.
Estrutura do curso
“a unidade de tudo o que se deixa visar atualmente através dos conceitos mais
diversos da ciência e da escritura é, a princípio, mais ou menos secretamente
mas sempre, determinada por uma época histórico-metafísica a respeito da qual
entrevemos seu término. (...) O futuro só pode ser antecipado na forma do perigo
absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e só
pode anunciar-se, apresentar-se, sob a forma da monstruosidade. Para este
mundo por vir e para aquilo que, nele, teria feito tremer os valores do signo, da
palavra e da escritura, para aquilo que aqui conduz nosso futuro anterior, não há
ainda epígrafe” 17.