6 - Com e Contra - Carl Schmitt - Chantal Mouffe
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Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 1(2):87-108,Jul/dez. 1994
Apresentao
Menelick de Carvalho Netto(1)
Chantal Mouffe, especialista em Filosofia Poltica, diretora de programa no Collge
International de Philosophie em Paris, onde desenvolve o projeto de pesquisa "Cidadania e
Democracia Moderna". Publicou, em co-autoria com Ernesto Laclau, Hegemony and Socialist
Strategy. Towards a Radical Democratic Politics (Londres: Verso, 1985), e coordenou o volume
coletivo Dimensions of Radical Democracy. Pluralism, Citizenship, Community (Londres: Verso,
1992).
Atualmente tem como tema de trabalho a especificidade da democracia moderna enquanto
articulao do liberalismo com a democracia, visando elucidao dos pressupostos filosficos do
pluralismo e elaborao de uma perspectiva de dmocratie plurielle. O texto de Chantal Mouffe,
cuja traduo ora se pblica, uma preciosa e instigante introduo a uma teorizao da democracia
representativa ou mesmo semidireta adequada ao marco conceituai do paradigma do Estado
Democrtico de Direito. Para tanto a autora recupera, atravs de Cari Schmitt, o tratamento que
expoentes clssicos da teoria constitucional, como Emmanuel Sieyes e Benjamin Constant,
reservaram ao tema, retomado, por sua vez, na Frana, por tericos da estatura de Lon Duguit,
Andr Hauriou, Carr de Malberg e Paul Bastide, entre outros; e, na Alemanha, por autores como o
prprio Schmitt e Kari Loewenstein no mbito da Teoria da Constituio. Se a prpria reconstruo
do conceito de democracia a que procede Schmitt, com base nas categorias oriundas dos debates
entre Girondinos e Jacobinos no curso da Revoluo Francesa - para torn-lo, tal como em
Koellreutter(2), compatvel com os regimes totalitrios de massas que emergem nas primeiras
dcadas do sculo XX e condenar a social-democracia -, j por si fascinante, o interesse cresce
ainda mais quando a autora comprova a fertilidade e a profundidade da sempre sofisticada reflexo
de Schmitt, ainda que recuperada como teoria a ser hoje enfrentada, refutada e superada.
tambm extremamente pertinente a indagao crtica acerca da pr-modemidade das
teorias polticas totalitrias, ou seja, da relao entre o absolutismo teolgico e o absolutismo
poltico moderno, proposta por Hans Blumenberg, que afirma a no-modernidade da tese de
Schmitt, segundo a qual todos os conceitos significativos da moderna teoria do Estado seriam
conceitos teolgicos secularizados, e assim questiona diretamente, portanto, a sua politische
Teologie. Quanto a Habermas, a nosso ver, no entanto, nada mais equivocado do que considerar seu
projeto como oposto a um projeto democrtico moderno e pluralista. O pluralismo social e poltico
acreditam que a posterior adeso do autor ao Partido Nacional Socialista nos permitiria
ignor-las do prova de grande superficialidade. Enfrentar um adversrio to rigoroso e
perspicaz faz com que nossa reflexo avance, j que as questes que levanta so de
primeira ordem e importncia.
Uma das teses centrais de Schmitt a de que a articulao entre a democracia e o
liberalismo, efetuada no sculo XIX, deu lugar a um regime invivel, j que caracterizado
pela unio de dois princpios polticos absolutamente heterogneos. Com efeito, a
democracia parlamentar faz coexistir o princpio da identidade, prprio da forma
democrtica de governo, com o princpio da representao, que, por sua vez, especfico
da monarquia.
Schmitt declara que, contrariamente s idias acolhidas, o princpio do
parlamentarismo, enquanto preeminncia do Legislativo sobre o Executivo, no pertence
ao universo do pensamento da democracia, mas ao do liberalismo. O que equivale a dizer
que a democracia representativa no foi instituda por razes prticas de dimenses que
teriam tomado impossvel o exerccio da democracia direta. Em Parlamentarismo e
Democracia, Schmitt sustenta que foi por motivos de convenincia prtica que pessoas de
confiana foram encarregadas de decidir ao invs e no lugar do povo; igualmente, tal
concepo poderia ter justificado um cesarismo antiparlamentarista(7). Ento o ratio do
sistema parlamentar no reside no mbito do principio democrtico da identidade, mas no
do liberalismo, no qual se busca apreender a coerncia enquanto sistema metafsico
global.
Segundo Schmitt, o princpio liberal fundamental, em torno do qual se ordena tudo
o mais, o de que a verdade pode ser encontrada a partir do livre embate das opinies.
Sob tal perspectiva, no h verdade definitiva, que redefinida em termos "de uma
simples funo em uma eterna concorrncia de opinies" (p. 45). A razo de ser do
parlamentarismo reside, portanto, no fato de que ele consiste em um processo de
confrontao de opinies, donde pode surgir a vontade poltica. O que, portanto, seria
essencial no Parlamento a "troca pblica de argumentos e contra-argumentos, os
debates pblicos, e o fato de se parlamentar: portanto, ele no conduz de forma alguma a
se pensar diretamente na democracia" (p. 42). Aps afirmar que o aspecto representativo
no provm da lgica democrtica, mas da metafsica liberal, Schmitt a seguir o
apresenta como um elemento constitutivo no democrtico da democracia parlamentar.
Com efeito, ele que torna impossvel a identidade entre governantes e governados, que
para Schmitt o que define a democracia. Da a sua concluso de que existe uma
contradio, localizada no cerne do regime liberal democrtico, uma vez que o liberalismo
nega a democracia e a democracia nega o liberalismo.
Detenhamo-nos um instante sobre essa concluso. O que a torna possvel a
identificao, a que procede Schmitt, da democracia como soberania popular com o
princpio da identidade entre governantes e governados. Ele afirma que a democracia
consiste na identidade da lei com a vontade popular, e por essa razo que ele a
considera passvel de ser compatvel com o regime autoritrio. Escreve ele, de fato, "que
o bolchevismo e o fascismo so certamente antiliberais, como toda ditadura, mas no
necessariamente antidemocrticos" (p. 115).
E isso por que, para ele, o liberalismo tende a impedir, precisamente, a realizao
completa dessa lgica da identidade e da a contradio que localiza entre a lgica do
liberalismo e a da democracia. necessrio ressaltar, por outro lado, a importncia da
conexo que ele estabelece entre o princpio do governo representativo parlamentar e o
universo intelectual do liberalismo.
Os liberais, diz Schmitt, pretenderam fundar a legitimidade do sistema parlamentar
sobre o papel crucial da discusso pblica, que apresentam como o meio de se alcanar
a verdade graas dialtica das opinies. Tal concepo pde gozar de certa aparncia
de credibilidade no sculo XIX, mas o advento da moderna democracia de massas
definitivamente revelou o carter ilusrio dos pretensos fundamentos intelectuais da
democracia parlamentar.
A ordem liberal parlamentar, com efeito, exigiria que se confiasse esfera privada
toda uma srie de questes disruptivas concernentes moral, religio e economia.
Essa era a condio para que o Parlamento pudesse se apresentar como o lugar no qual
os indivduos, colocados distncia dos interesses conflitantes que os opem, discutem
de maneira imparcial e alcanam um consenso racional. Desse modo, realizada a
homogeneidade que, ao ver de Schmitt, requerida para o funcionamento de qualquer
democracia. Mas o desenvolvimento da democracia de massas conduziu ao
aparecimento do "Estado Total", que ser forado a intervir em domnios cada vez mais
numerosos, em razo do impulso democrtico pela extenso dos direitos. O fenmeno da
"neutralizao", caracterstico da fase precedente, dar lugar a um movimento inverso e
crescente de "politizao" ds relaes sociais. Para o Parlamento, as consequncias da
instaurao desse "Estado Total" sero incalculveis. No apenas ele v a sua influncia
diminuir, j que muitas das decises, e as mais importantes, so tomadas agora por
outras vias, como ele tambm se transforma na arena onde se defrontam os interesses
essas
questes,
perspectiva
proposta
como um inimigo que coloca em questo nossa identidade. Uma vez abandonada a iluso
racionalista de uma frmula atravs da qual os diferentes fins do homem poderiam ser
harmonizados, trata-se de se conscientizar da radical impossibilidade de uma sociedade
na qual o antagonismo tenha sido eliminado.
QUAL PLURALISMO?
At aqui, Schmitt serviu-nos de "guia" para demonstrar que em tomo do
pluralismo que se localiza a especificidade da democracia moderna. No entanto, desse
modo, ele nos previne dos perigos de um certo tipo de pluralismo. Em sua discusso
sobre as teorias pluralistas anglo-saxnicas, ele nos revela que as teses desenvolvidas
por autores como Harold Laski ou G. D. Cole so profundamente antipolticas. A ideia
central dessa forma de pluralismo a de que cada indivduo participa de numerosas
comunidades e associaes, das quais nenhuma pode ter prioridade sobre as outras.
Consequentemente, o Estado apresentado como uma associao cuja natureza
idntica das associaes religiosas ou dos agrupamentos profissionais, e os indivduos
so concebidos sem qualquer obrigao prioritria para com a associao poltica.
Schmitt acredita que essa uma viso tpica do individualismo liberal, que sempre atribui
um papel determinante ao indivduo na resoluo dos conflitos.
Ele considera que "prefigurar, maneira pluralista, a associao poltica ao lado
de uma associao religiosa, cultural ou econmica ou de qualquer outra natureza, e
faz-la entrar em concorrncia com elas, no possvel, j que a natureza do pltico no
foi levada em considerao(20) Essa reflexo, que nos parece crucial, implica que, na
abordagem da questo do pluralismo de uma maneira poltica, torna-se necessrio
reconher seus limites. Com efeito, princpios antagnicos de legitimidade no podem
coexistir no seio de uma mesma associao poltica, pois aceitar que o pluralismo exista
nesse nvel conduz fatal e automaticamente a se tomar incongruente e disparatada a
realidade poltica do Estado, o que no implica que o pluralismo no possa existir em
outros domnios como o religioso, o cultural, bem como no nvel dos partidos.
Um tal pluralismo, no entanto, requer a obrigao de fidelidade a uma certa ideia
de comunidade poltica que cristalize as instituies e os princpios que so prprios do
modo de existncia coletiva pressuposto pela democracia moderna como nova forma
poltica de sociedade. , portanto, um erro representar o pluralismo da democracia
moderna como sendo um pluralismo total, cuja nica restrio a ser considerada seria a
de resultar acorde com um conjunto de procedimentos considerados neutros. Uma tal
concepo, bastante vinculada iluso liberal da "neutralidade do Estado", esquece que