Estilhaca
Estilhaca
Estilhaca
2018
Shatter Me
Copyright © 2011 by Tahereh Mafi
All rights reserved
M161e
Mafi, Tahereh
Estilhaça-me / Tahereh Mafi ; tradução de Mauricio Tamboni. –– São
Paulo : Universo dos Livros, 2018.
352 p. (Estilhaça-me ; 1)
ISBN: 978-85-503-0301-7
Título original: Shatter me
Toc-toc.
Companheiro de Cela fica em pé.
É hora do banho.
Três
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
O terror abre violentamente minhas pálpebras.
Meu corpo está ensopado de suor frio, meu cérebro nadando em
uma onda inesquecível de dor. Meus olhos giram em círculos negros
que se dissolvem na escuridão. Não tenho ideia de quanto tempo
dormi. Não tenho ideia se assustei meu companheiro de cela com
meus sonhos. Às vezes, grito muito alto.
Adam está me encarando.
Respiro com dificuldade, mas consigo me levantar. Puxo as cober-
tas para mais perto do corpo apenas para me dar conta de que roubei
a única fonte de calor dele. Nem sequer me ocorreu que ele talvez
sinta tanto frio quanto eu. Estou parada, tremendo, mas o corpo dele
é inabalável na noite, sua silhueta tem uma estrutura suntuosa contra
o fundo escuro. Não sei o que dizer. Não há nada a dizer.
– Os gritos nunca param neste lugar, não é?
Os gritos estão só começando.
– Não – balbucio quase sem voz. Um leve rubor se espalha pelo
meu rosto e fico feliz por estar escuro demais para ele perceber.
Deve ter ouvido meus gritos.
Às vezes, eu queria nunca precisar dormir. Às vezes, penso que
se me mantiver muito, muito quieta, se não me movimentar nem
um pouquinho, as coisas vão mudar. Acho que, se eu me congelar,
serei capaz de congelar a dor. Às vezes, passo horas sem me mexer.
Não me mexo nem um centímetro.
Ainda que o tempo pare, nada de errado pode acontecer.
– Você está bem? – A voz de Adam parece preocupada. Estudo os
punhos fechados nas laterais de seu corpo, o franzir pesado da testa,
a tensão no maxilar. Essa pessoa que roubou minha cama e meu tra-
vesseiro ontem é a mesma que dormiu no chão na noite passada. Tão
cheio de si e indiferente poucas horas atrás; tão cuidadoso e tranquilo
agora. Assusta saber que esse lugar pode tê-lo corrompido tão rapida-
mente. E me pergunto o que ele ouviu enquanto eu dormia.
Queria poder salvá-lo do horror.
Alguma coisa se estilhaça; um grito atormentado ecoa ao longe.
Essas celas são enterradas em concreto grosso, paredes mais espes-
sas do que o chão e o teto evitam que os barulhos escapem para
muito longe. Se eu consigo ouvir a agonia, ela deve ser incomen-
surável. Todas as noites há barulhos que não ouço mais. Todas as
noites me pergunto se serei a próxima.
– Você não é louca. – Meu olhar se ergue violentamente. Sua
cabeça está inclinada, seus olhos permanecem atentos e claros,
mesmo com o manto que nos envolve. Ele respira fundo. E con-
tinua: – Pensei que todos aqui fossem loucos. Pensei que tivessem
me trancado com uma lunática.
Inspiro uma forte lufada de oxigênio.
– Curioso. Eu também.
1
2
3 segundos se passam.
Adam abre um sorriso tão enorme, tão bem-humorado, tão
inesperadamente sincero que é como se o estrondo de um trovão
atravessasse meu corpo. Alguma coisa ferroa meus olhos e quebra
meus joelhos. Não vejo um sorriso há 265 dias.
Adam está de pé.
Ofereço-lhe seu cobertor.
Ele aceita somente para envolver melhor meu corpo e alguma
coisa de repente se aperta em meu peito. Meus pulmões estão fora
de lugar e grudados e acabei de decidir não me movimentar por
uma eternidade quando ele diz:
– Qual é o problema?
Meus pais pararam de tocar em mim quando comecei a engati-
nhar. Os professores me forçavam a fazer todas as atividades sozinha
para que eu não ferisse as outras crianças. Nunca tive um amigo.
Nunca conheci o conforto de um abraço materno. Nunca senti o
carinho de um beijo paterno. Eu não sou louca.
– Nada.
5 segundos mais.
– Posso me sentar ao seu lado?
Seria maravilhoso.
– Não.
Estou outra vez olhando para a parede.
Ele cerra e em seguida relaxa o maxilar. Desliza a mão pelos
cabelos e percebo, pela primeira vez, que está sem camisa. Essa
cela é tão escura que só consigo ver as curvas e contornos de
sua silhueta; a luz da lua só consegue entrar por uma peque-
na janela, mas observo enquanto os músculos de seus braços
se tensionam a cada movimento e, de repente, estou pegando
fogo. Chamas tocam minha pele e há uma explosão de calor se
arrastando pelo meu estômago. Cada centímetro de seu corpo
é cheio de força, toda a superfície de alguma maneira consegue
ser iluminada por essa pouca luz. Em 17 anos, nunca vi nin-
guém como ele. Em 17 anos, nunca conversei com um menino
da minha idade. Porque eu sou um monstro.
Fecho os olhos até eles parecerem costurados.
Ouço o ranger de sua cama, o gemido das molas quando ele se
senta. Descosturo meus olhos e estudo o chão.
– Você deve estar morrendo de frio.
– Não. – Um forte suspiro. – Na verdade, estou com muito calor.
Levanto-me tão bruscamente que as cobertas caem no chão.
– Está doente? – Meus olhos deslizam por seu rosto em busca
de algum sinal de febre, mas não me atrevo a me aproximar nem
um centímetro a mais. – Está com tontura? Dor nas articulações?
Tento me lembrar dos meus sintomas. Meu próprio corpo
me prendeu à cama por 1 semana. Não podia fazer nada além
de rastejar pelo chão e cair de cara na comida. Não sei como
sobrevivi.
– Qual é o seu nome?
Ele já fez essa pergunta 3 vezes.
– Você deve estar doente. – É tudo o que consigo dizer.
– Não estou doente. Só estou com calor. Não costumo dormir
de roupas.
Sinto um nó no estômago. Uma humilhação inexplicável quei-
ma a superfície da minha pele. Não sei para onde olhar.
Uma respiração profunda.
– Eu fui um idiota ontem. Tratei-a como lixo e sinto muito por
isso. Não devia ter agido daquele jeito.
Atrevo-me a olhá-lo nos olhos.
Seus olhos são do tom perfeito de cobalto, azuis como um
hematoma nascendo, claros e profundos e decididos. O maxilar
parece rígido, cercado por traços entalhados em uma expressão
cuidadosa. Passou a noite toda pensando nisso.
– Tudo bem.
– Então, por que não me diz o seu nome? – Ele inclina o corpo
para a frente e eu congelo.
E descongelo.
E derreto.
– Juliette – sussurro. – Meu nome é Juliette.
Seus lábios se suavizam em um sorriso que baqueia até a
minha espinha. Ele repete meu nome como se visse graça na
palavra. Como se a palavra o entretivesse. Como se fosse um
deleite.
Em 17 anos, ninguém nunca falou meu nome assim.
Cinco
Faz 2 semanas.
2 semanas da mesma rotina, 2 semanas de nada além de rotina.
2 semanas com o companheiro de cela que quase chegou a me
tocar que não me toca. Adam está se adaptando ao sistema. Nunca
reclama, nunca oferece informações demais voluntariamente, con-
tinua fazendo perguntas demais.
É gentil comigo.
Sento-me próximo à janela e observo a chuva e as folhas e a
neve caindo. Elas se alternam dançando no vento, realizando mo-
vimentos coreografados para as massas que de nada suspeitam.
Os soldados marcham marcham marcham na chuva, amassando as
folhas e a neve caída sob seus passos. Suas mãos estão envolvidas
por luvas que envolvem armas capazes de enfiar uma bala em um
milhão de possibilidades. Não se incomodam em serem incomo-
dados pela beleza que cai do céu. Não entendem a liberdade que
existe em poder sentir o universo em suas peles. Não estão nem aí.
Eu queria poder encher a boca de gotas de chuva e os bolsos de
flocos de neve. Queria poder traçar as veias de uma folha caída e
sentir o vento beliscar meu nariz.
Em vez disso, junto os dedos para ignorar o desespero e busco
o pássaro que só vi em meus sonhos. No passado, os pássaros voa-
vam, é o que dizem as histórias. Antes de a camada de ozônio se
deteriorar, antes de os poluentes promoverem mutações e transfor-
marem as criaturas em algo horrível diferente. Dizem que o tempo
nem sempre foi tão imprevisível. Dizem que existiam pássaros que
voavam como aviões pelos céus.
Parece estranho que um animal tão pequeno possa realizar algo
tão complexo quanto um engenheiro humano é capaz, mas a pos-
sibilidade é sedutora demais para ser ignorada. Sonho com o mes-
mo pássaro voando pelo mesmo céu há exatos 10 anos. Branco,
com riscas douradas no topo da cabeça, como uma coroa.
É o único sonho que me dá paz.
– O que está escrevendo?
Aperto os olhos para a silhueta suntuosa, o sorriso fácil em seu
rosto. Não sei como ele consegue sorrir em meio a isso tudo. E
me pergunto se consegue manter essa forma, essa curva especial
da boca que é capaz de transformar vidas. E me pergunto como se
sentirá daqui a 1 mês e esse pensamento me faz tremer.
Não quero que ele termine como eu.
Vazio.
– Ei… – Ele puxa o cobertor da minha cama e se agacha
ao meu lado, rapidamente envolvendo meus ombros esguios com o
tecido fino. – Está tudo bem?
Tento sorrir. Decido evitar sua pergunta.
– Obrigada pelo cobertor.
Ele se senta ao meu lado e apoia o corpo na parede. Seus om-
bros estão próximos demais próximos demais nunca próximos o
bastante. O calor de seu corpo faz mais por mim do que um cober-
tor jamais será capaz de fazer. Alguma coisa em minhas articula-
ções dói com um desejo agudo, uma necessidade desesperada que
jamais fui capaz de atender. Meus ossos imploram por algo que
não posso permitir.
Toque em mim.
Ele olha para o pequeno caderno em minha mão, para a caneta
quebrada em meus dedos. Fecho o caderno e enrolo-o. Guardo-o
dentro de uma rachadura na parede. Estudo a caneta em minha
mão. Sei que ele está me encarando.
– Está escrevendo um livro?
– Não.
Não, não estou escrevendo um livro.
– Talvez devesse.
Viro-me para olhá-lo nos olhos e imediatamente me arrepen-
do. Há menos de 10 centímetros nos separando e não consigo me
mexer porque meu corpo está paralisado. Cada músculo cada
movimento se comprime, cada vértebra em minha coluna se trans-
forma em um bloco de gelo. Estou segurando a respiração e meus
olhos estão arregalados, fixos, presos na intensidade do olhar dele.
Não consigo desviá-los. Não sei como recuar.
Ah.
Meu.
Deus.
Os olhos dele.
Tenho mentido para mim mesma, decidida a negar o impossível.
Eu o conheço eu o conheço eu o conheço eu o conheço.
O menino que não se lembra de mim eu conhecia.
– Eles vão destruir a língua inglesa – afirma com uma voz cui-
dadosa, baixa.
Luto para recuperar o fôlego.
– Eles querem recriar tudo – continua. – Querem redesenhar
tudo. Querem destruir qualquer coisa que possa ter sido o motivo
de nossos problemas. Acham que precisam de uma língua nova,
universal. – Adam baixa a voz. Baixa o olhar. – Querem destruir
tudo. Todas as línguas da história.
– Não.
Volto a respirar. Minha visão fica turva.
– É verdade.
– Não.
Disso eu não sabia.
Ele ergue o olhar.
– É bom que você esteja escrevendo as coisas. Um dia, o que
está fazendo será considerado ilegal.
Começo a tremer. Meu corpo de repente se pega enfrentando
um turbilhão de emoções; meu cérebro, atormentado pelo mundo
que estou perdendo e pesaroso pelo menino que não se lembra de
mim. A caneta cai no chão e me vejo agarrando o cobertor com
tanta força que temo rasgá-lo. O frio corta minha pele; o terror
entope minhas veias. Nunca pensei que a situação ficaria tão ruim
assim. Nunca pensei que o Restabelecimento levaria as coisas tão
longe. Estão incinerando a cultura, a beleza da diversidade. Os
novos cidadãos do nosso mundo serão reduzidos a nada além de
números, facilmente intercambiáveis, facilmente removíveis, facil-
mente aniquilados por desobediência.
Perdemos nosso lado humano.
Envolvo os ombros com o cobertor até me encasular em tremo-
res que não param de aterrorizar meu corpo. Fico horrorizada com
minha falta de autocontrole. Não consigo me forçar a ficar parada.
Sua mão de repente está nas minhas costas.
O calor de seu corpo queima minha pele, atravessa as camadas
de tecido, e eu inspiro tão rápido que meus pulmões entram em
colapso. Sou levada por correntes opostas de confusão, tão desespe-
rada tão desesperada tão desesperada por estar perto tão desesperada
por estar distante. Não sei como me afastar dele. Não quero me
afastar dele.
Não quero que tenha medo de mim.
– Ei. – Sua voz é tão suave tão suave tão suave. Seus braços são mais
fortes do que todos os meus ossos. Ele puxa meu corpo coberto para
perto de seu peito e eu me estilhaço. Dois três quatro cinquenta mil
estilhaços de sentimentos golpeiam meu coração, derretem em gotas
de mel quente que abrandam as cicatrizes em minha alma. O cober-
tor é a única barreira entre nós, e ele me puxa mais para perto, mais
apertado, mais forte, até eu ouvir os batimentos ecoando profunda-
mente em seu peito e seu braço de aço envolvendo meu corpo cortar
todos os laços da tensão em meus membros. Seu calor derrete de
dentro para fora os pingentes de gelo que me sustentam, e eu des-
congelo descongelo descongelo, meus olhos fechando e abrindo
muito rápido até se fecharem de vez, até lágrimas silenciosas desce-
rem por meu rosto e eu concluir que a única coisa que quero é parar
no tempo enquanto seu corpo abraça o meu.
– Está tudo bem – ele sussurra. – Você vai ficar bem.
A verdade é uma amante ciumenta e violenta que nunca dorme,
isso é o que não digo a ele. Nunca vou ficar bem.
Preciso de cada filamento partido do meu ser para conseguir me
afastar dele. Faço isso porque tenho que fazer. Porque é para o bem
dele. Alguém está enfiando garfos em minhas costas enquanto me
distancio. O cobertor enrosca em meu pé e quase caio antes de
Adam estender outra vez a mão na minha direção.
– Juliette…
– Você nã-não pode tocar em mim. – Minha respiração está
rasa e é difícil engolir, minhas mãos tremem tanto que sou obriga-
da a fechá-las. – Você não pode tocar em mim. Não pode.
Meus olhos estão fixados na porta.
Ele fica de pé.
– Por que não?
– Simplesmente não pode – sussurro para as paredes.
– Não estou entendendo… Por que você não conversa comi-
go? Fica o dia todo sentada no canto, escrevendo no seu caderno
e olhando para tudo, menos para o meu rosto. Você tem tanto a
dizer para uma folha de papel, mas estou bem aqui e você nem re-
conhece a minha presença. Juliette, por favor… – Ele tenta segurar
o meu braço, mas eu me afasto. – Por que você pelo menos não
olha para mim? Eu não vou machucar você…
Você não se lembra de mim. Não se lembra que estudamos na
mesma escola durante 7 anos.
Você não se lembra de mim.
– Você não me conhece. – Minha voz sai tranquila, monótona.
Meus membros estão dormentes, amputados. – Dividimos um es-
paço por duas semanas e você pensa que me conhece, mas não sabe
nada a meu respeito. Talvez eu seja louca.
– Não, você não é – rebate por entre seus dentes apertados.
– Você sabe que não é.
– Então talvez você seja – digo cuidadosamente, lentamente.
– Porque um de nós é.
– Não é verdade.
– Conte por que está aqui, Adam. O que está fazendo em um
hospício se o seu lugar não é aqui?
– Venho te fazendo a mesma pergunta desde que cheguei aqui.
– Talvez você faça perguntas demais.
Ouço sua respiração cortante. Sua risada amargurada.
– Somos praticamente as únicas pessoas vivas neste lugar e você
quer me isolar também?
Fecho os olhos e me concentro na respiração.
– Pode conversar comigo. Só não me toque.
7 segundos de silêncio interrompem a conversa.
– Talvez eu queira tocar em você.
15 000 sentimentos de descrença perfuram meu coração. Sou
tentada pelo descuido, ardendo ardendo ardendo, eternamente de-
sesperada pelo que jamais poderei ter. Viro-me de costas para ele,
mas não consigo segurar as mentiras que saem dos meus lábios.
– Talvez eu não queira que você me toque.
Ele bufa.
– Eu causo tanta repulsa assim em você?
Dou meia-volta, pega tão desprevenida por suas palavras que
me esqueço de tudo. Adam está me encarando, seu rosto impassí-
vel, mandíbula tensa, mãos na cintura. Seus olhos são 2 baldes de
água da chuva: profundos, viçosos, límpidos.
Doloridos.
– Você não sabe do que está falando. – Não consigo respirar.
– Você é incapaz de responder uma pergunta simples, não é?
Ele balança a cabeça e se vira para a parede.
Meu rosto é uma máscara neutra, meus braços e pernas estão
preenchidos com gesso. Não sinto nada. Estou totalmente vazia
e jamais conseguirei me mexer. Encaro uma pequena rachadura
perto do meu tênis. Vou encará-la para sempre.
Os cobertores caem no chão. O mundo sai de foco, meus ou-
vidos enviam cada barulho para outra dimensão. Meus olhos se
fecham, meus pensamentos estão à deriva, minhas memórias chu-
tam meu coração.
Eu o conheço.
-
-
Começo a correr.
Por que você não se mata de uma vez? Alguém certa vez me per-
guntou na escola.
Acho que era uma dessas perguntas que têm como objetivo ser
cruel, mas foi a primeira vez que contemplei a possibilidade. Fi-
quei sem saber o que dizer. Talvez eu fosse louca por considerar a
ideia, mas sempre tive a esperança de que, se fosse uma menina
boa o bastante – se fizesse tudo certo, se dissesse as coisas certas
ou simplesmente não dissesse nada –, talvez meus pais mudassem
de ideia. Pensei que pudessem finalmente me ouvir quando eu ten-
tasse conversar. Pensei que pudessem me dar uma chance. Pensei
que pudessem finalmente me amar.
Sempre tive essa esperança ridícula.
– Bom dia.
Meus olhos se abrem assustados. Nunca tive sono pesado.
Warner está me encarando, sentado ao pé de sua própria cama,
usando um terno asseado e coturnos perfeitamente polidos. Tudo
nele é meticuloso. Imaculado. Seu hálito é frio e fresco no ar vivo
da manhã. Posso senti-lo em meu rosto.
Preciso de um momento para me dar conta de que meu corpo
está envolvido com os mesmos lençóis sobre os quais o próprio
Warner já dormiu. Meu rosto de repente pega fogo e começo a
tatear para me libertar. Quase caio da cama.
Finjo não perceber a presença dele.
– Dormiu bem? – pergunta.
Ergo o rosto. Seus olhos têm um tom estranho de verde: lumi-
noso, claro como cristal, perfurante do jeito mais assustador.
Seus cabelos são pesados, do mais rico tom de dourado; o corpo
é esbelto e despretensioso, mas sua pegada é firme sem precisar de
muito esforço para isso. Percebo pela primeira vez que está usando
um anel de jade no dedo mindinho da mão esquerda.
Warner me pega encarando-o e se levanta. Coloca as luvas e leva
as mãos atrás do corpo.
– Chegou a hora de voltar ao seu quarto.
Pisco os olhos. Faço que sim com a cabeça. Levanto-me e quase
caio no chão. Recupero o equilíbrio ao lado da cama e tento con-
trolar a vertigem. Ouço Warner suspirar.
– Você não comeu o que deixei para você ontem à noite.
Seguro o copo de água com mãos trêmulas e me forço a comer
um pouco do pão. Meu corpo está tão acostumado à fome que já
nem sei mais reconhecê-la.
Quando recupero o equilíbrio, Warner me leva pela porta.
Ainda estou segurando um pedaço de queijo.
Quase o deixo cair quando saio do quarto.
Há mais soldados aqui do que no meu andar. Todos equipados
com pelo menos 4 tipos diferentes de armas, algumas penduradas
no pescoço, outras presas ao cinto. Todos deixam escapar um olhar
de terror ao verem meu rosto. Um olhar de terror que aparece e
some de seus traços tão rapidamente que quase deixo de notar, mas
é claro o bastante: todos seguram suas armas com um pouco mais
de força enquanto eu passo.
Warner parece satisfeito.
– O medo deles vai funcionar a seu favor – sussurra ao meu
ouvido.
Minha humanidade está se partindo em um milhão de pedaços
sobre os tapetes desse chão.
– Eu nunca quis que eles tivessem medo de mim.
– Mas deveria. – Ele para. Seus olhos me chamam de idiota.
– Se não tiverem medo, vão caçar você.
– As pessoas caçam coisas que temem o tempo todo.
– Pelo menos agora eles sabem o que terão de enfrentar.
Ele volta a andar pelo corredor, mas meus pés estão costurados
ao chão. Perceber isso é como sentir água fria escorrendo por mi-
nhas costas.
– Você me fez fazer aquilo… o que eu fiz… com Jenkins… de
propósito?
Warner já está 3 passos à frente, mas consigo perceber o sorriso
em seu rosto.
– Tudo que eu faço é de propósito.
– Você queria me usar para criar um espetáculo?
Meu coração pulsa forte em meus punhos, pulsa em meus dedos.
– Eu estava tentando proteger você.
– Dos seus próprios soldados? – Agora tenho que correr para
alcançá-lo. Meu corpo arde de indignação. – A custo da vida de
um homem…
– Entre.
Warner chega ao elevador e segura as portas abertas para mim.
Eu o acompanho.
Ele aperta os botões certos.
As portas se fecham.
Viro-me para falar.
Ele me encurrala.
Vejo-me outra vez em um canto desse receptáculo de vidro e de
repente estou nervosa. Suas mãos seguram meus braços e seus lábios
chegam perigosamente perto do meu rosto. Seu olhar está fixo no
meu, olhos brilhando; perigo. Ele pronuncia uma única palavra:
– Sim.
Preciso de um instante para encontrar minha voz.
– Sim o quê?
– Sim, dos meus próprios soldados. Sim, ao custo da vida de
um homem. – Ele tensiona o maxilar. Fala por entre os dentes. –
Você entende muito pouco do meu mundo, Juliette.
– Estou tentando entender…
– Não, não está – esbraveja. Seus cílios são como fios de ouro
separados, em chamas. Quase sinto vontade de tocá-los. – Você não
entende que pode perder a força e o controle a qualquer momento,
mesmo quando acha que está mais preparada. Não é fácil conquistar
essas duas coisas, mas é ainda mais difícil mantê-las – declara. Tento
falar, mas ele me interrompe: – Acha que não sei quantos dos meus
soldados me odeiam? Pensa que não sei que eles querem ver a minha
derrocada? Acha que não tem outros que adorariam ter a posição
pela qual trabalho tanto…?
– Não fique se gabando…
Ele chega ainda mais perto e minhas palavras caem no chão.
Não consigo respirar. A tensão em todo o seu corpo é tão intensa
que se torna quase palpável e acho que meus músculos começaram
a congelar.
– Você é ingênua – ele me diz com uma voz dura, grave, um
sussurro contra minha pele. – Não percebe que é uma ameaça a
todos nesse prédio. Eles têm todos os motivos para feri-la. Não
percebe que estou tentando ajudá-la…
– Ajudar me ferindo! – explodo. – E ferindo outras pessoas.
Sua risada é fria, furiosa. Ele se afasta, de repente, enojado.
O elevador se abre, mas ele não sai. Posso ver minha porta daqui.
– Volte para o seu quarto. Tome um banho. Troque as roupas.
Há vestidos no armário.
– Eu não gosto de vestidos.
– Acho que você também não gosta de ver aquilo ali – fala,
inclinando a cabeça. Acompanho seu olhar e encontro uma som-
bra enorme perto da minha porta. Viro-me na direção de Warner
em busca de uma explicação, mas ele não oferece nenhum escla-
recimento. De repente parece sereno, o rosto despido de qualquer
emoção. Segura minha mão, aperta meus dedos e, enfim, fala: –
Volto para buscá-la daqui a exatamente uma hora.
E fecha a porta do elevador antes que eu sequer tenha chance de
protestar. Começo a me perguntar se seria coincidência o fato
de a pessoa que menos tem medo de me tocar ser um monstro.
Dou um passo para a frente e me atrevo a olhar mais de perto o
soldado na penumbra.
Adam.
Ah, Adam.
Adam, que sabe exatamente do que sou capaz.
Meu coração é um balão de água explodindo no peito. Meus
pulmões balançam na caixa torácica. Sinto como se todos os pu-
nhos do mundo decidissem socar meu estômago. Não deveria me
importar tanto, mas me importo.
Agora ele vai me odiar para sempre. Não vai nem olhar para mim.
Espero que ele abra minha porta, mas ele não se mexe.
– Adam? – arrisco. – Preciso da sua chave.
Vejo-o engolir em seco, sua respiração rasa, e, no mesmo ins-
tante, sinto que alguma coisa está errada. Aproximo-me mais e
um movimento breve e duro de sua cabeça me diz para parar. Não
posso tocar nas pessoas não posso me aproximar das pessoas eu
sou um monstro. Adam não me quer perto dele. É claro que não.
Nunca devo esquecer qual é o meu lugar.
Ele abre minha porta com imensa dificuldade e percebo que al-
guém o feriu em algum lugar que não consigo ver. As palavras de War-
ner ressurgem em minha mente e percebo que seu adeus era um aviso.
Um aviso que destrói todas as terminações nervosas do meu corpo.
Adam vai ser punido pelos meus erros. Pela minha desobediência.
Quero enterrar minhas lágrimas em um balde de arrependimento.
Passo pela porta e olho uma última vez para Adam, incapaz de
sentir qualquer triunfo por sua dor. Apesar de tudo o que ele fez, não
sei se consigo odiá-lo. Não a ele. Não o menino que eu conhecia.
– O vestido roxo – ele diz com uma voz falha e um pouco
sussurrada, como se respirar doesse. Tenho que segurar as mãos
para evitar que elas tentem alcançá-lo. – Use o vestido roxo. – Ele
tosse. – Juliette.
Ninguém se mexe.
O rosto de Fletcher parece tomado por um horror permanente
enquanto ele desmorona no chão. Fico tão impressionada com a
impossibilidade de tudo isso que não consigo decidir se estou ou
não sonhando, não consigo saber se estou ou não morrendo, não
consigo definir se desmaiar é ou não uma boa ideia.
Os braços e as pernas de Fletcher se dobram em ângulos estra-
nhos no chão de concreto frio. Poças de sangue se formam à sua
volta, mas todos continuam sem se mexer. Ninguém diz uma pala-
vra sequer. Ninguém entrega um único olhar de medo.
Continuo tocando meus lábios para saber se meus gritos es-
caparam.
Warner guarda a arma de volta no bolso da jaqueta.
– Setor 45, estão dispensados.
Todos os soldados fazem uma reverência se apoiando sobre
um joelho.
Warner guarda novamente o aparelho metálico que usou para
amplificar sua voz e tem que me puxar para que eu saia do lu-
gar onde estou colada no chão. Tropeço em meus próprios pés,
meus membros fracos doem até os ossos. Sinto náusea, sinto-me
delirante, incapaz de me manter de pé. Tento falar, mas as palavras
grudam em minha língua. De repente estou suando e de repente
estou congelando e de repente estou tão enjoada que vejo manchas
embaçando minha visão.
Warner tenta me fazer passar pela porta.
– Você precisa mesmo comer mais – aconselha.
Estou de olhos arregalados, boca escancarada, sentindo buracos
em todo canto, buracos perfurados no terreno da minha pele.
Meu coração deve estar sangrando para fora do peito.
Baixo o olhar e não consigo entender por que não há sangue no
meu vestido, por que essa dor no coração parece tão real.
– Você o matou – consigo sussurrar. – Você acabou de matá-lo…
– Você é muito astuta.
– Por que o matou por que foi matá-lo como pôde fazer uma
coisa dessas…
– Fique de olhos abertos, Juliette. Agora não é hora de dormir.
Puxo sua camisa. Paro-o antes de entrar. Uma lufada de vento
estapeia meu rosto e de repente assumo o controle dos meus senti-
dos. Empurro-o com força, batendo suas costas na porta.
– Você me dá nojo. – Encaro seus olhos gelados. – Você me
dá nojo…
Ele me gira no ar e me segura contra a porta em que acabei de
prendê-lo. Segura meu rosto com as mãos enluvadas e sustenta meu
olhar. As mesmas mãos que acabou de usar para matar um homem.
Estou presa.
Petrificada.
Ligeiramente aterrorizada.
Seu polegar roça minha bochecha.
– A vida é um lugar sombrio – sussurra. – Às vezes você tem
que aprender a atirar primeiro.
Warner me acompanha até meu quarto.
– É melhor você dormir – aconselha. É a primeira vez que fala
comigo desde que deixamos o pátio na cobertura do prédio. –
Mandarei trazerem algo para você comer no quarto, mas, fora isso,
tomarei as providências para que não seja incomodada.
– Onde está Adam? Está bem? Está inteiro? Você vai feri-lo?
Warner estremece antes de recuperar a compostura.
– Por que se importa?
Eu me importo com Adam Kent desde que estava na terceira série.
– Não era para ele estar me observando? Ele não está aqui. Isso
significa que você também vai matá-lo?
Eu me sinto uma idiota. E me sinto corajosa justamente porque
me sinto idiota. Minhas palavras não usam paraquedas ao voarem
para fora da boca.
– Eu só mato pessoas se realmente for necessário.
– Que generoso…
– Mais do que a maioria.
Dou uma risada triste, dividindo-a apenas comigo mesma.
– Pode tirar o resto do dia para descansar. Nosso trabalho de
verdade começa amanhã. Adam vai levá-la até mim. – Ele olha
fixamente em meus olhos. Engole um sorriso. – Até lá, tente não
matar ninguém.
– Você e eu… – digo, fúria correndo em minhas veias. – Você
e eu não somos iguais…
– Para ser sincero, não acredito nisso.
– Acha que pode comparar minha… minha doença… com a
sua insanidade?
– Doença? – Ele corre para a frente, repentinamente exaltado,
e eu me esforço para transparecer coragem. – Você acha que tem
uma doença? – berra. – O que você tem é um dom! Uma capacida-
de extraordinária que não se esforça para entender! Seu potencial…
– Eu não tenho potencial nenhum!
– Está errada! – Ele me lança um olhar penetrante. Não tenho
outra forma de descrever. Posso quase dizer que, nesse momento,
ele me odeia. Ele me odeia porque eu mesma me odeio.
– Bem, você é o assassino – afirmo. – Então deve estar certo.
Seu sorriso é coberto por dinamite.
– Vá dormir.
– Vá para o inferno!
Ele move o queixo. Vai até a porta.
– Estou trabalhando para isso.
Dezenove
A escuridão me sufoca.
Meus sonhos são sangrentos e ensanguentados e o sangue
sangra por toda a minha mente e não consigo mais dormir.
Os únicos sonhos que me traziam paz agora ficaram no passado e
não sei como recuperá-los. Não sei como encontrar o pássaro bran-
co. Não sei se vai chegar a voar. Só sei que agora, quando fecho os
olhos, não vejo nada além de devastação. Fletcher é fuzilado várias
e várias e várias vezes e Jenkins está morrendo em meus braços e
Warner está atirando na cabeça de Adam e o vento canta do lado
de fora da minha janela mas é estridente e desafinado e não tenho
coragem de lhe dizer para parar.
Estou congelando em minhas roupas.
A cama macia contra minhas costas parece repleta de nuvens
partidas e neve recém-caída; é macia demais, confortável demais.
Lembra demais como foi dormir no quarto de Warner e não con-
sigo suportar esse pensamento. Percebo-me amedrontada demais
para me cobrir.
Não consigo não me perguntar se Adam está bem, se vai voltar,
se Warner vai continuar a feri-lo toda vez que eu desobedecer suas
ordens. Realmente, eu não deveria me importar tanto.
A mensagem deixada por Adam em meu caderno pode ser ape-
nas parte do plano de Warner para me deixar louca.
Arrasto-me pelo chão e abro meu punho em busca do pedaço
de papel amassado que venho segurando há 2 dias. É a única espe-
rança que me resta e nem sei se é real.
Estou ficando sem opções.
– O que você está fazendo aqui?
Engulo um grito e cambaleio para a frente, para o lado, quase
trombando com Adam, que está deitado no chão, perto de mim.
Não o tinha visto.
– Juliette?
Ele não se mexe um centímetro sequer. Seu olhar está fixo em
mim: calmo, imperturbado; 2 baldes de água fluvial à meia-noite.
Sinto vontade de chorar dentro de seus olhos.
Não sei por que exatamente lhe conto a verdade.
– Eu não estava conseguindo dormir na cama.
Ele não me pergunta o porquê. Fica de pé e tosse e resmunga
e me lembro que foi ferido. E me pergunto que tipo de dor está
sentindo. Não faço perguntas enquanto ele puxa um travesseiro e
o cobertor da minha cama. Ajeita o travesseiro no chão.
– Deite-se – é tudo o que me diz. Baixinho, é como me diz.
O dia todo todos os dias para todo o sempre é quando quero
que me diga isso.
São só 2 palavras e não sei por que estou enrubescendo. Deito-
-me, apesar de as sirenes tocarem em meu sangue, e descanso a
cabeça no travesseiro. Ele ajeita o cobertor sobre meu corpo. Dei-
xo-o fazer isso. Observo seus braços se curvando e flexionando na
penumbra da noite, a luz da lua espreitando pela janela, ilumi-
nando sua silhueta. Ele se deita no chão, deixando apenas alguns
centímetros de espaço entre nós. Adam não precisa de cobertor.
Não usa travesseiro. Continua dormindo sem camisa e descobri
que não sei respirar. Percebi que provavelmente nunca vou soltar a
respiração na presença dele.
– Não precisa mais gritar – ele sussurra.
Todo o ar escapa dos meus pulmões.
Curvo os dedos em volta da possibilidade de ter Adam entre
meus dedos e durmo mais pesado do que jamais dormi na vida.
Como se me quisesse.
– Vou tirá-la daqui – ele diz, e sua boca se mexe contra meus ca-
belos e suas mãos deslizam por meus braços e estou soltando a cabeça
para trás e ele me olha nos olhos e eu devo estar sonhando.
– Por que… por que você… eu não…
Estou negando com a cabeça e tremendo porque isso não pode
estar acontecendo e tento me livrar das lágrimas coladas em meu
rosto. Não pode ser real.
Seus olhos se suavizam, seu sorriso perturba minhas articula-
ções e quem me dera conhecer o sabor de seus lábios. Queria ter
coragem de tocá-lo.
– Tenho que ir – diz. – Você precisa estar arrumada e lá embaixo
às oito horas.
Estou me afogando em seus olhos e não sei o que dizer.
Ele tira a camisa e não sei para onde olhar.
Encontro meu reflexo no vidro do box e fecho os olhos com
força e pisco quando alguma coisa chega perto demais. Seus dedos
estão a um instante do meu rosto e estou pingando queimando
derretendo de ansiedade.
– Não precisa desviar o rosto – diz. E diz com um sorrisinho do
tamanho de Júpiter.
Analiso seus traços, o sorriso desajeitado que quero saborear, a
cor em seus olhos, aquela que eu usaria para pintar um milhão de
imagens. Acompanho a linha de seu maxilar até o pescoço para
espreitar a clavícula; memorizo as colinas e os vales esculpidos em
seus braços, a perfeição de seu torso. O pássaro em seu peito.
O pássaro em seu peito.
Uma tatuagem.
Um pássaro branco, com riscas douradas no topo da cabeça,
como uma coroa. Está voando.
– Adam – tento falar com ele. – Adam… – tento me expressar.
– Adam… – tento dizer tantas vezes e fracasso.
Tento encontrar seus olhos só para me dar conta de que ele está
me observando enquanto o estudo. As partes de seu rosto estão
repuxadas, formando linhas de emoção tão profundas que me per-
gunto qual deve ser minha aparência a seus olhos. Passa 2 dedos
pelo meu queixo, ergue meu rosto só o suficiente e sou um fio
elétrico na água.
– Vou descobrir um jeito de falar com você – diz, e suas mãos
estão me arruinando e meu rosto está encostado em seu peito
e o mundo de repente se torna mais iluminado, maior, bonito.
O mundo de repente significa alguma coisa para mim, a possibi-
lidade de ter um lado humano significa alguma coisa para mim,
todo o universo para de repente e gira na outra direção e eu sou
o pássaro.
Eu sou o pássaro e estou voando.
Vinte
– Juliette.
Seguro a respiração e desejo que minhas mãos não estejam tre-
mendo. Queria não ter olhos.
– Juliette – ele repete, dessa vez com uma voz mais leve, e meu
corpo é um liquidificador e sou feita de polpa.
Meus ossos ardem ardem ardem pelo calor dele.
Não vou me virar.
– Você sempre soube quem eu era – sussurro.
Ele não diz nada, e de repente estou desesperada por ver seus
olhos. De repente preciso ver seus olhos. Apesar de tudo, viro-me
para encará-lo, só para descobrir que está olhando para suas mãos.
– Eu sinto muito – é tudo o que diz.
Apoio o corpo na parede e fecho os olhos bem apertados. Era
tudo uma encenação. Roubar minha cama. Perguntar meu nome.
Perguntar sobre minha família. Ele estava fazendo uma encenação
para Warner. Para os guardas. Para quem estivesse assistindo. Nem
sei mais no que acreditar.
Preciso falar. Preciso me expressar. Preciso abrir minhas feridas
e sangrar para ele.
– É verdade – digo. – Sobre o menininho. – Minha voz sai
muito mais trêmula do que eu pensei que sairia. – Eu fiz aquilo.
Ele passa um bom tempo em silêncio.
– Eu nunca entendi antes. Logo que ouvi. Só agora me dei con-
ta do que deve ter acontecido.
– O quê?
Eu nunca imaginei que fosse capaz de piscar tanto os olhos.
– Nunca fez sentido para mim – afirma, e cada palavra é um
chute em meu estômago. Ergue o olhar e parece agonizar mais do
que jamais desejei que agonizasse. – Quando eu fiquei sabendo.
Todos nós ficamos sabendo. Toda a escola…
– Foi um acidente – arfo, já sem conseguir me controlar. –
Ele… e-ele… caiu… e eu estava tentando ajudá-lo… e eu só… eu
não… eu pensei que…
– Eu sei.
– O quê? – Arquejo tão alto que devo ter engolido o quarto
todo em uma única lufada.
– Eu acredito em você – ele me diz.
– Como… Por quê?
Meus olhos engolem as lágrimas, minhas mãos parecem instá-
veis, meu coração se vê tomado por uma esperança nervosa.
Ele mordisca o lábio inferior. Desvia o olhar. Vai para perto
da parede. Abre e fecha a boca várias vezes antes de as palavras
saírem apressadas:
– Porque eu conhecia você, Juliette… Eu… Meu Deus… Eu
só… – Ele cobre a boca com uma das mãos, baixa os dedos até o
pescoço. Massageia a testa, fecha os olhos, sela os lábios. Abre-os
um bocadinho. – Aquele era o dia em que eu ia conversar com
você. – Um sorriso estranho. Uma risada esquisita. Corre os dedos
pelos cabelos. Olha para o teto. Vira-se de costas para mim. – Eu
finalmente ia conversar com você. Eu finalmente ia falar com você
e aí… – Sacode a cabeça, com força, e tenta esboçar outra risada
dolorosa. – Meu Deus, você não se lembra de mim.
Centenas de milhares de segundos passam e eu não consigo
parar de morrer.
Quero rir e chorar e gritar e correr e não consigo escolher o que
fazer primeiro.
Então confesso:
– É claro que me lembro de você. – Minha voz é um sussurro
estrangulado. Fecho os olhos com força. Eu me lembro de você
todos os dias para sempre em cada momento fracassado da minha
vida. – Você era o único que me via como um ser humano.
Ele nunca conversou comigo. Nunca me disse uma única pala-
vra, mas era o único que se atrevia a se sentar perto da minha cerca.
Era o único que se levantava por mim, a única pessoa que brigava
por mim, o único que socava a cara de alguém que jogasse uma
pedra em mim. Eu nem sabia como agradecer.
Adam foi a coisa mais próxima de um amigo que eu já tive.
Abro os olhos e ele está parado bem à minha frente. Meu
coração é um campo de lírios florindo sob um painel de vidro,
ganhando vida como o cair das gotas de chuva. Seu maxilar es-
tava tão apertado quanto seus olhos tão apertados quanto seus
punhos tão apertados quanto a tensão em seus braços.
– Você sempre soube? – 3 palavras sussurradas e ele abre minha
represa, destrava meus lábios e rouba outra vez meu coração.
Mal consigo sentir as lágrimas descendo por meu rosto.
– Adam. – Tento rir e meus lábios se transformam em um
soluço sufocado. – Eu reconheceria seus olhos em qualquer lugar
do mundo.
E é isso.
Dessa vez, não existe autocontrole.
Dessa vez, estou em seus braços e contra a parede e tremendo
em todos os lugares e ele é tão delicado, tão cuidadoso, tocando-
-me como se eu fosse feita de porcelana e eu quero me estilhaçar.
Está correndo as mãos por meu corpo correndo os olhos por
meu rosto correndo em círculos com seu coração e eu estou cor-
rendo maratonas em minha mente.
Tudo está pegando fogo. Minhas bochechas minhas mãos a
base do estômago e estou me afogando em ondas de emoção e em
um temporal de chuva fresca e só sinto a força de sua silhueta con-
tra mim e eu nunca nunca nunca quero esquecer esse momento.
Quero gravá-lo em minha pele e salvá-lo para sempre.
Adam segura minhas mãos e pressiona as palmas em seu rosto
e sei que nunca conheci a beleza do sentimento humano antes
disso. Sei que ainda estou chorando quando fecho os olhos.
Sussurro seu nome.
E ele está respirando com mais dificuldade do que eu e de repente
seus lábios estão em meu pescoço e eu estou arfando e morrendo
e segurando seus braços e ele me toca me toca me toca e eu sou tro-
vão e relâmpago e me pergunto quando é que vou acordar.
Uma, duas, cem vezes seus lábios provam minha nuca e me
pergunto se é possível morrer de euforia. Ele me olha nos olhos
somente para segurar meu rosto e estou enrubescendo de prazer e
dor e impossibilidade.
– Há tanto tempo quero beijá-la. – Sua voz sai rouca, irregular,
profunda em meu ouvido.
Estou congelada de ansiedade e tão preocupada porque ele vai
me beijar, tão preocupada porque não vai me beijar. Olho para
seus lábios e não sei quão próximos estamos até nos separarmos.
3 chiados eletrônicos reverberam pelo quarto e Adam olha para
mim como se por um momento não conseguisse entender onde
está. Pisca os olhos. E corre na direção de um interfone, onde aper-
ta os botões que devem ser apertados. Percebo que ainda está res-
pirando com dificuldade.
Meu interior todo treme.
– Nome e número – a voz no interfone pergunta.
– Kent, Adam. 45B-86659.
Uma pausa se instala.
– Soldado, está ciente de que as câmeras em seu quarto fo-
ram desativadas?
– Sim, senhor. Recebi ordens diretas para desligar os aparelhos.
– Quem emitiu essa ordem?
– Warner, senhor.
Um longo silêncio.
– Verificaremos em busca de confirmação. Interferências
não autorizadas em aparelhos de segurança podem resultar em
uma expulsão imediata e desonrosa, soldado. Espero que esteja
ciente disso.
– Sim, senhor.
A linha fica silenciosa.
Adam solta o corpo contra a parede, o peito arquejando. Não
sei ao certo, mas poderia jurar que seus lábios se repuxaram no
mais discreto dos sorrisos. Fecha os olhos e solta o ar.
Não sei o que fazer com o alívio retumbante em minhas mãos.
– Venha cá – diz, ainda de olhos fechados.
Vou na ponta dos pés e ele me puxa em seus braços. Sente o
cheiro dos meus cabelos e beija a lateral da minha cabeça e nunca
em minha vida senti algo tão incrível. Não sou nem mais humana.
Sou muito mais do que isso. O Sol e a Lua se fundiram e a Terra
está de cabeça para baixo. Sinto que posso ser exatamente quem eu
quiser em seus braços.
Ele me faz esquecer os horrores de que sou capaz.
– Juliette – sussurra no meu ouvido. – Precisamos dar o fora
deste lugar.
Vinte e três
3 semanas.
Vinte e quatro
2 semanas se passam.
2 semanas de vestidos e banhos e comida que quero jogar do
outro lado do quarto. 2 semanas de Warner sorrindo e tocando
minha cintura, rindo e roçando na base da minha coluna, certo de
que estou em minha melhor aparência ao seu lado. Acha que sou
seu troféu. Sua arma secreta.
Tenho de lutar contra a vontade de estourar seus dedos no
concreto.
Porém, ofereço-lhe 2 semanas de cooperação porque em 1 se-
mana estarei longe daqui.
Assim espero.
Porém, acima de qualquer outra coisa, descobri que não odeio
Warner tanto quanto pensei que odiava.
Sinto pena dele.
Ele encontra um estranho consolo em minha companhia; pensa
que posso me identificar com ele e suas ideias absurdas, sua criação
cruel, seu pai ausente e, ao mesmo tempo, exigente.
Contudo, jamais fala de sua mãe.
Adam diz que ninguém sabe nada sobre a mãe de Warner – que
nunca se falou dela e ninguém tem ideia de quem seja. Diz que só
se sabe que Warner é a consequência de uma criação implacável
e um desejo frio e calculista pelo poder. Ele odeia crianças felizes e
pais felizes e suas vidas felizes.
Acho que Warner pensa que eu entendo. Que eu o entendo.
E eu entendo. E não entendo.
Porque não somos iguais.
Eu quero ser melhor.
E nada aconteceu.
Vinte e oito
Estou queimando.
A fricção da corda em minhas pernas se transforma em uma mas-
sa de fogo tão dolorosa que me surpreendo por não soltar fumaça.
Engulo a dor porque não me resta outra escolha. A massa histéri-
ca no prédio perfura meus sentidos, faz chover raiva à nossa volta.
Adam grita lá embaixo, diz para eu pular, promete que vai me segu-
rar. Sinto vergonha demais para admitir que tenho medo da queda.
Nunca tive a chance de tomar uma decisão sozinha.
Soldados já invadem o que antes era meu quarto, gritando,
confusos, provavelmente em choque ao se depararem com Warner
em uma posição tão vulnerável. Realmente, foi fácil demais domi-
ná-lo. E isso me preocupa.
E me faz pensar que fizemos algo errado.
Alguns soldados passam a cabeça pela janela estilhaçada e estou
frenética demais para descer pela corda, mas eles já estão se mo-
vimentando para soltá-la da âncora. Preparo-me para a sensação
nauseante da queda livre só para me dar conta de que não estão
tentando me derrubar. Estão tentando me puxar de volta.
Warner deve estar lhes dizendo o que fazer.
Olho para Adam abaixo de mim e finalmente cedo a seus cha-
mados. Fecho os olhos bem apertados e me solto.
E caio bem em seus braços abertos.
Nós dois vamos para o chão, mas o ar é extraído de nossos pul-
mões por um breve instante. Adam segura minha mão e imediata-
mente saímos correndo.
Não há nada além de uma área vazia e estéril se estendendo à
nossa frente. Asfalto rachado, calçadas irregulares, estradas de ter-
ra, árvores sem folhas, plantas morrendo, uma cidade amarelada
abandonada aos sabores do clima, afogando-se nas folhas mortas
amassadas por nossos pés. Os complexos que abrigam civis são
baixos e parecem escorados, agrupados sem nenhuma ordem es-
pecífica. Adam busca garantir que passemos o mais longe possível
deles. Os alto-falantes já trabalham contra nós. O som de uma voz
feminina jovem e delicada abafa as sirenes.
“O toque de recolher agora está funcionando. Todos devem retor-
nar imediatamente às suas casas. Há rebeldes à solta. Estão armados
e preparados para atirar. O toque de recolher agora está funcionando.
Todos devem retornar imediatamente às suas casas. Há rebeldes à sol-
ta. Estão armados e preparados para atirar. O toque de recolher agora
está funcionando. Todos devem retornar imediatamente às suas casas.
Há rebeldes à solta. Estão armados e preparados…”
Meus flancos sentem cãibras; minha pele, tensão. A garganta
seca e se desespera por água. Nem sei quanto corremos. Só sei que
ouço o som de coturnos batendo nas calçadas, o derrapar de pneus
que saem de seus abrigos, a lamúria dos alarmes.
Olho para trás e vejo pessoas gritando e correndo em busca de
abrigo, desviando dos soldados que invadem suas casas, batendo
nas portas para ver se encontramos refúgios em algum lugar. Adam
me puxa para longe da civilização e segue na direção das ruas
desertas há décadas: lojas e restaurantes velhos, ruas laterais es-
treitas e parquinhos abandonados. A terra sofrida de nossas vidas
passadas foi levada ao limite. É um território proibido. Tudo está
fechado. Tudo quebrado, enferrujado, sem vida. Ninguém tem
permissão para andar por aqui. Nem mesmo os soldados.
E estamos correndo por essas ruas, tentando permanecer longe
da vista.
O sol desliza pelo céu e tropeça no limite da terra. Logo será
noite e não tenho ideia de onde estamos. Nunca esperei que tanta
coisa acontecesse tão rápido e nunca esperei que tudo acontecesse
no mesmo dia. Mas tenho de alimentar a esperança de que vou so-
breviver, embora não tenha a menor ideia de aonde estamos indo.
Nunca me ocorreu perguntar a Adam aonde ele poderia ir.
Estamos avançando em um milhão de direções. Virando abrup-
tamente, seguindo por alguns metros só para depois correr em um
caminho oposto. Se eu tivesse de apostar, diria que Adam está ten-
tando confundir e/ou distrair nossos perseguidores o máximo pos-
sível. Não posso fazer nada além de tentar manter o ritmo.
E fracasso.
Adam é um soldado treinado. É treinado exatamente para situa-
ções desse tipo. Sabe fugir, sabe permanecer imperceptível, sabe se
movimentar em silêncio em qualquer espaço. Eu, por outro lado,
sou uma garota fraca, que não sabe o que é exercício há muito
tempo. Meus pulmões queimam com o esforço de inalar oxigênio,
chiam com o esforço para liberar dióxido de carbono.
De repente me pego arfando tão desesperadamente que Adam é
forçado a me puxar para uma rua lateral. Está respirando um pou-
co mais dificultosamente do que de costume, mas eu só consigo
afundar na fraqueza de meu corpo vacilante.
Ele segura meu rosto e tenta fazer meus olhos focarem.
– Quero que respire como eu estou respirando, está bem?
Chio um pouco mais.
– Concentre-se, Juliette. – Seus olhos são muito determinados.
Infinitamente pacientes. Ele parece tão destemido, e eu invejo sua
compostura. – Acalme o coração – pede. – Respire como eu estou
respirando.
Ele inspira rapidamente por 3 vezes, segura o ar por alguns se-
gundos e solta demoradamente. Tento imitá-lo. Não sou muito
bem-sucedida nessa missão.
– Está bem. Quero que continue respirando assim…
Ele para. Olha para cima e para a rua abandonada por uma
fração de segundo. Agora sei que temos de seguir nosso caminho.
Tiros estilhaçam a atmosfera. Nunca me dei conta de como soam
altos ou de quanto aquele barulho fratura cada osso em meu corpo.
Um medo gelado se espalha por meu sangue e imediatamente sei
que não estão tentando me matar. Estão tentando matar Adam.
De repente percebo estar asfixiando com um tipo novo de an-
siedade. Não posso deixar esses homens ferirem-no.
Não por mim.
Mas Adam não tem tempo para que eu recupere o fôlego e a
sanidade. Ele me ergue em seus braços e corre em diagonal por
outra ruela.
E nós estamos correndo.
E eu estou respirando.
E ele grita:
– Abrace o meu pescoço!
E eu solto a mão que apertava sua camiseta e sou tão idiota a
ponto de sentir timidez enquanto o abraço. Ele me ajeita encosta-
da em seu corpo para que fique mais alta, mais perto de seu peito.
E me leva como se eu pesasse quase nada.
Fecho os olhos e pressiono a bochecha em seu pescoço.
Os tiros vêm de algum ponto atrás de nós, mas não sei dizer,
com base no som, se estão muito longe ou na direção errada. Pa-
rece que, por agora, conseguimos deixá-los para trás. Seus carros
não conseguem nos encontrar porque Adam evitou todas as ruas
principais. Parece ter seu próprio mapa da cidade. Parece saber
exatamente o que está fazendo – como se tivesse passado muito
tempo planejando isso.
Depois de inspirar 594 vezes, Adam me solta em pé diante de
uma cerca de alambrado. Percebo que está lutando para absorver
oxigênio, mas não arfa como eu arfo. Sabe regular a respiração.
Sabe estabilizar seu pulso, acalmar o coração, manter o controle
dos órgãos. Sabe sobreviver. Espero que também me ensine.
– Juliette – chama depois de um momento sem ar. – Você con-
segue pular essa cerca?
Estou tão ansiosa por deixar de ser um estorvo que quase con-
sigo correr e saltar por sobre a barreira de metal. Mas acabo me
provando descuidada. E apressada demais. Rasgo meu vestido e,
no processo, acabo arranhando as pernas. Tremo com a dor excru-
ciante e, no tempo que preciso para abrir outra vez os olhos, Adam
já está ao meu lado.
Vê minha perna e suspira. Quase dá risada. Pergunto a mim mes-
ma como deve estar minha aparência, maltrapilha e bagunçada nesse
vestido esfarrapado. A essa altura, a fenda que Warner criou alcança
meu quadril. Devo parecer um animal selvagem enlouquecido.
Adam parece não se importar.
Ele também diminuiu o ritmo. Agora estamos andando rápido,
mas sem avançar desesperados pelas ruas. Percebo que devemos es-
tar próximos de algo que se assemelhe a um porto seguro, mas não
sei se agora é a hora certa para fazer perguntas ou se devo deixá-las
para mais tarde. Adam responde meus pensamentos silenciosos.
– Eles não vão conseguir me rastrear aqui – explica, e então me
dou conta de que todos os soldados devem ter algum aparelho de
rastreamento em seus corpos. E me pergunto por que nunca ins-
talaram um em mim.
Escapar não deveria ser tão fácil assim.
– Nossos rastreadores não são tangíveis – elucida.
Viramos à esquerda em outra ruela. O sol já se afunda no ho-
rizonte. Pego-me indagando em silêncio sobre onde estaríamos.
Quão distantes dos assentamentos do Restabelecimento devemos
estar para não haver ninguém aqui.
– É um sérum especial que injetam em nossa corrente san-
guínea – Adam prossegue. – E foi criado para funcionar com os
processos naturais dos nossos corpos. Avisaria, por exemplo, se eu
morresse. É uma excelente maneira de manter um registro dos sol-
dados mortos em combate.
Olha para mim de canto de olho. E abre um sorriso torto que
quero beijar.
– Como você fez para confundir o rastreador?
Seu sorriso se torna maior. Ele acena à nossa volta com uma mão.
– Essa área na qual estamos? Ela foi usada como uma usina de
energia nuclear. Um dia, tudo aqui explodiu.
Meus olhos ficam arregalados a ponto de engolirem meu rosto.
– Quando foi que isso aconteceu?
– Faz uns cinco anos. Eles limparam e esconderam tudo com muita
rapidez. Esconderam da imprensa, das pessoas. Na verdade, ninguém
sabe o que realmente aconteceu aqui. Mesmo assim, só a radiação já é
suficiente para matar. – Faz uma pausa. – Aliás, já matou.
Ele para de andar e prossegue.
– Já passei por essa área um milhão de vezes e nunca fui afetado.
Warner costumava me mandar aqui para coletar amostras da terra.
Queria estudar os efeitos. – Passa a mão pelos cabelos. – Acho que
queria manipular a toxidade, transformá-la em algum tipo de ve-
neno. Na primeira vez em que vim aqui, ele pensou que eu tivesse
morrido. O rastreador fica ligado a todo o nosso sistema e um aler-
ta dispara sempre que um soldado é perdido. Ele sabia que estava
correndo risco ao me mandar para cá, então não acho que tenha
ficado muito surpreso ao ouvir que eu tinha morrido. Na verdade,
ficou mais surpreso quando me viu voltar. – Dá de ombros, como
se sua morte fosse um detalhe insignificante. – Há alguma coisa
nos compostos químicos daqui que neutraliza a composição mole-
cular do sistema de rastreamento. Então, basicamente, a essa altura
todos pensam que eu morri.
– Mas Warner não vai suspeitar que você poderia estar aqui?
– Talvez. – Ele aperta os olhos para o pôr do sol. Nossas som-
bras são longas e estáticas. – Ou que tomei um tiro. De um jeito
ou de outro, as hipóteses dele nos fazem ganhar tempo.
Adam segura minha mão e sorri para mim antes de alguma
coisa atingir minha consciência.
– E quanto a mim? – pergunto. – Essa radiação não pode me
matar? – Espero não soar tão nervosa quanto me sinto. Nunca quis
tanto estar viva. Não quero perder tudo tão rápido.
– Ah… não. – Ele balança a cabeça. – Desculpa, eu me esqueci
de explicar… Um dos motivos pelos quais Warner queria que eu
levasse as amostras de terra? É porque você também é imune. Ele
a estava estudando. Disse que descobriu essa informação nos seus
registros do hospital. Que você tinha sido examinada…
– Mas ninguém nunca…
– …provavelmente sem você saber e, apesar de os exames da-
rem positivo para radiação, biologicamente você estava intacta.
Não havia nada de inerentemente errado com você.
Nada de inerentemente errado com você.
A observação é tão descaradamente falsa que começo a rir. Ten-
to reprimir minha incredulidade.
– Não há nada de errado comigo? Você está de brincadeira, não é?
Adam me encara por tanto tempo que começo a enrubescer.
Ergue meu queixo para que eu o olhe nos olhos. Olhos azuis que
me perfuram. Sua voz é profunda, estável.
– Acho que nunca a ouvi dando risada.
Ele está tão excruciantemente certo que nem sei como respon-
der, a não ser com a verdade. Meu sorriso é uma linha reta.
– A risada surge com a vida. – Dou de ombros, tentando pare-
cer indiferente. – Eu nunca estive viva antes.
Seus olhos não perderam o foco. Ele me segura onde estou com
uma força enorme que vem de seu interior. Posso quase sentir seu
coração batendo contra minha pele. Posso quase sentir seus lábios
expirando contra meus pulmões. Posso quase sentir seu gosto em
minha língua.
Adam respira dificultosamente e me puxa para perto. Beija o
topo da minha cabeça.
– Vamos para casa – sussurra.
Vinte e nove
Para casa.
Casa.
O que Adam quer dizer com isso?
Abro a boca para indagá-lo e seu sorriso desajeitado é a única
resposta que recebo. Sinto-me constrangida e animada e ansiosa.
Meu estômago está cheio de batidas alimentadas pela sincronia do
meu coração. Estou praticamente pulsando com nervos elétricos.
Cada passo é um passo que nos leva para mais longe do hos-
pício, de Warner, da futilidade da existência que sempre conheci.
Cada passo é um passo que dou porque quero. Pela primeira vez
na vida, sigo meu caminho porque quero, porque sinto esperança
e amor e a euforia da beleza, porque quero saber como é viver. Eu
poderia pular e ser levada pela brisa para sempre.
Sinto que estou pronta para ter asas.
Adam me guia para um galpão abandonado nos arredores
de um campo aberto, cercado pela vegetação selvagem e tentáculos de
arbustos ensandecidos, irregulares e horríveis; parecem venenosos
para quem os ingere. E me pergunto se é aqui que Adam planejava
que ficássemos. Entro no espaço escuro e aperto os olhos. Consigo
avistar uma silhueta.
Há um carro aqui dentro.
Pisco.
Não, não é um carro. É um tanque.
Adam quase não consegue controlar sua própria ansiedade.
Olha para mim em busca de uma reação e parece feliz com meu
espanto. Palavras lhe escapam:
– Convenci Warner de que tinha quebrado um dos tanques que
trouxe para cá. Essas coisas foram criadas para funcionar com ele-
tricidade, então eu falei que a unidade principal queimou quando
entrou em contato com o conteúdo químico. Que foi destruída
por alguma coisa na atmosfera. Ele mandou um carro me trazer e
me buscar depois disso e falou que seria melhor deixar o tanque
onde estava. – Ele quase sorri. – Warner me mandava aqui contra
a vontade de seu pai e não queria que ninguém soubesse que ele
tinha destruído um tanque de 500 mil dólares. O relatório oficial
diz que o veículo foi sequestrado por rebeldes.
– E outra pessoa não poderia vir aqui e encontrar esse tanque?
Adam abre a porta do passageiro.
– Os civis ficam longe, muito longe deste lugar, e nenhum ou-
tro soldado jamais veio aqui. Ninguém quer sofrer os riscos da
radiação. – Inclina a cabeça. – Esse é um dos motivos pelos quais
Warner confiou a mim tomar conta de você. Ele gostava do fato de
eu estar disposto a morrer por minha tarefa.
– Nunca pensou que você sairia da linha… – murmuro, en-
tendendo.
Adam balança a cabeça.
– Não. E depois do que aconteceu com o sérum de rastreamen-
to, ele não tinha motivos para duvidar de que coisas loucas real-
mente aconteciam aqui. Eu mesmo desativei a estrutura elétrica do
tanque, por precaução, caso ele quisesse vir verificar. – Acena para
o veículo monstruoso. – Tive a sensação de que poderia ser útil um
dia. É sempre bom estar preparado.
Preparado. Ele sempre esteve preparado. Para fugir. Para escapar.
Eu me pergunto por quê.
– Venha aqui – diz, a voz perceptivelmente mais doce. Estende
a mão para mim na luz fraca e finjo ser uma feliz coincidência sua
mão roçar minha coxa nua. Finjo que não é maravilhoso tê-lo se-
gurando meu vestido enquanto me ajuda a subir no tanque. Finjo
ser incapaz de notar o jeito como me olha enquanto os últimos
raios de sol se despedem no horizonte.
– Preciso cuidar das suas pernas – diz, um sussurro contra mi-
nha pele, eletricidade em meu sangue.
Por um momento, sequer entendo o que ele quer dizer com
isso. Nem me importo. Meus pensamentos são tão impraticáveis
que me deixam surpresa. Nunca tive a liberdade de tocar em nin-
guém. Certamente ninguém jamais quis o toque das minhas mãos.
Adam é uma experiência totalmente nova.
Tocá-lo é tudo em que quero pensar.
– Os cortes não estão tão ruins assim – prossegue, a ponta dos
dedos deslizando por minhas panturrilhas. Respiro fundo. – Mas
teremos de limpá-los, só por precaução. Às vezes é mais seguro ser
cortado por um facão de açougueiro do que raspar em algum pe-
daço de metal desconhecido por aí. Não quero que se contamine.
Estou assentindo com a cabeça, mas sem nem saber por quê.
E me perguntou se estou tremendo por fora tanto quanto tremo
por dentro. Espero que esteja escuro demais para ele ver o quão
ruborizado meu rosto está, o quão constrangedor é ele tocar meu
joelho e me deixar louca. Preciso dizer alguma coisa.
– É melhor seguirmos nosso caminho, não é?
– Sim. – Adam respira fundo e parece voltar a si. – Verdade.
Precisamos seguir caminho. – Espreita a luz do anoitecer. – Te-
mos algum tempo antes de eles descobrirem que ainda estou vivo.
E temos que tirar vantagem desse tempo.
– Mas, assim que deixarmos este lugar… o rastreador vai voltar
a funcionar, não? Eles não vão descobrir que você não está morto?
– Não. – Salta no banco do motorista e tateia em busca da igni-
ção. Não usa chave, apenas aperta um botão. Fico curiosa por saber
se o veículo reconhece a impressão digital de Adam para começar a
funcionar. Um leve estalo e a máquina ganha vida. – Warner tinha
que renovar meu sérum toda vez que eu voltava. Uma vez que deixa
de funcionar, deixa de funcionar para sempre. – Abre um sorrisinho
torto. – Então, agora podemos realmente dar o fora daqui.
– Mas aonde estamos indo? – finalmente pergunto.
Ele engata a marcha antes de responder.
– Para a minha casa.
Trinta
O irmão dele.
Tento acalmar os nervos. Tento sorrir para o garoto estudan-
do meu rosto, estudando os pedaços patéticos de tecido que mal
cobrem meu corpo. Como eu nunca soube que Adam tinha um
irmão? Como pude nunca saber?
James se volta para Adam.
– Esta é Juliette?
Fico parada como uma idiota. Não lembro meus modos.
– Você sabe quem eu sou?
James se vira outra vez na minha direção.
– Ah, sim. Adam sempre fala de você. Muito.
Enrubesço e não consigo não observar Adam, que olha fixa-
mente para um ponto no chão. Ele pigarreia.
– É um prazer enorme conhecê-lo – consigo dizer.
James inclina a cabeça.
– Então, você sempre se veste assim?
Sinto vontade de morrer um pouquinho.
– Ei, cara – Adam interrompe. – Juliette vai passar um tempi-
nho com a gente. Por que não vai ver se tem cuecas suas espalhadas
pelo chão, hein?
James fica muito envergonhado. Sai correndo na escuridão sem
dizer uma palavra sequer.
O silêncio se instala por tantos segundos que perco as contas.
Ouço algo que se assemelha a uma goteira ao longe.
Respiro fundo. Mordisco o lábio inferior. Tento encontrar as
palavras certas. Fracasso.
– Eu não sabia que você tinha um irmão.
Adam hesita.
– Tudo bem… eu ter? Nós todos dividiremos o mesmo espaço e…
Meu estômago cai até os joelhos.
– É claro que tudo bem! Eu só… quer dizer… tem certeza de
que não tem problema nenhum… para ele? Eu ficar aqui?
– Não tem nenhuma cueca em lugar nenhum! – James anuncia ao
voltar, marchando na direção da luz. Eu me pergunto aonde ele foi,
onde fica a casa. Ele me observa. – Então você vai ficar com a gente?
Adam intervém:
– Sim, ela vai ficar um tempo com a gente.
James desliza o olhar de Adam para mim. Estende a mão.
– Bem, é um prazer finalmente conhecê-la.
Toda a cor do meu rosto derrete. Meu coração bate nos ouvi-
dos. Os joelhos estão prestes a quebrar. Não consigo parar de olhar
para a mãozinha estendida que ele oferece para mim.
– James – Adam adverte com um tom cortante.
James começa a rir.
– Eu só estava brincando. – E baixa a mão.
– O quê?
Mal consigo respirar. Minha cabeça gira, confusa.
– Não se preocupe – James fala, ainda rindo. – Não vou tocar em
você. Adam me contou tudo sobre os seus poderes mágicos.
Ele revira os olhos.
– Adam… contou… ele… o quê?
– Ei, talvez devêssemos entrar. – Adam pigarreia um pouco alto
demais. – Só vou pegar nossas mochilas bem rápido…
E corre na direção do tanque. E me deixa encarando James, que
não esconde sua curiosidade.
– Quantos anos você tem? – pergunta.
– Dezessete.
Assente.
– Foi o que Adam falou.
Fico arrepiada.
– O que mais Adam falou a meu respeito?
– Disse que você também não tem pais. Que é como nós.
Meu coração é uma barra de manteiga, derretendo descuidada-
mente em um dia quente de verão. Minha voz se suaviza.
– Quantos anos você tem?
– Vou completar onze no próximo ano.
Abro um sorriso.
– Então tem dez?
Ele cruza os braços. Franze o cenho.
– Terei doze em dois anos.
Acho que já adoro esse menino.
A luz da cabine se apaga e por um momento ficamos imersos
na escuridão absoluta. Um leve clique e um discreto brilho circular
nos oferece um pouco de luz. Adam segura uma lanterna.
– Ei, James? Por que não nos mostra o caminho?
– Sim, senhor. – Ele derrapa até parar diante de Adam, oferece
uma saudação exagerada e corre tão rápido que é impossível segui-
-lo. Não consigo evitar o sorriso se formando em meu rosto.
A mão de Adam desliza para dentro da minha enquanto corremos.
– Você está bem?
Aperto seus dedos.
– Você contou ao seu irmão de dez anos sobre os meus poderes
mágicos?
Ele dá risada.
– Eu conto muitas coisas a ele.
– Adam?
– Sim?
– Sua casa não seria o primeiro lugar onde Warner viria procu-
rá-lo? Não é perigoso ficar aqui?
– Seria. Mas, nos registros públicos, eu não tenho casa.
– E seu irmão?
– Seria o primeiro alvo de Warner. É mais seguro para ele um
lugar onde eu possa ficar de olho. Warner sabe que tenho um ir-
mão, só não sabe onde. E, antes que ele descubra, e ele vai desco-
brir, temos de nos preparar.
– Para lutar?
– Para nos defender. Sim.
Mesmo na luz fraca desse espaço estranho, consigo enxergar a
determinação que o sustenta. E isso me faz querer cantar.
Fecho os olhos.
– Está bem.
– Por que estão demorando tanto? – James grita ao longe.
E então seguimos nosso caminho.
Estou de pé.
Girando.
Analisando.
Amedrontada.
Encontraram a gente, é a única coisa que me passa pela cabeça.
Meu estômago é uma massa frágil; o coração, um pica-pau aluci-
nado. Meu sangue é um rio de ansiedade.
Adam está no banho.
James, no colégio.
Eu, completamente indefesa.
Reviro a bolsa de Adam até encontrar o que procuro. Duas
armas, uma para cada mão. Duas mãos, caso as armas falhem. Es-
tou finalmente com o tipo de roupa confortável para o combate.
Respiro fundo e imploro a meus punhos para que não tremam.
A batida na porta se torna mais forte.
Aponto as armas na direção dela.
– Juliette…?
Giro outra vez para encontrar Adam olhando em minha dire-
ção, as armas, a porta. Seus cabelos estão molhados; seus olhos,
arregalados. Ele assente para a arma extra em minha mão e eu a
jogo para ele sem dizer nada.
– Se fosse Warner, não estaria batendo – afirma, embora não
baixe a arma.
Sei que está certo. Warner teria atirado na porta, usado explosi-
vos, matado cem pessoas para chegar até mim. Certamente não me
esperaria abrir a porta. Alguma coisa se acalma dentro de mim,
mas eu não me permitiria ficar tranquila.
– Quem você acha…?
– Talvez seja Benny… Ela costuma vir para ver se James está bem…
– Mas ela não sabe que ele está na escola agora?
– Ninguém mais sabe onde é minha casa…
As pancadas se tornam mais fracas. Mais lentas. Ouço um som
grave, gutural, de agonia.
Adam e eu nos entreolhamos.
Mais uma batida à porta. Uma queda. Mais um gemido. Uma
pancada de um corpo contra a porta.
Eu tremo.
Adam passa a mão pelos cabelos.
– Adam! – alguém grita. Tosse. – Cara, por favor, se estiver aí…
Congelo. A voz soa familiar.
A espinha de Adam enrijece em um instante. Seus lábios se sepa-
ram; seus olhos ficam impressionados. Ele digita o código e vira o trin-
co. Aponta a arma na direção da porta enquanto a abre lentamente.
– Kenji?
Um breve arquejar. Um gemido abafado.
– Porra, cara, por que demorou tanto?
– O que você está fazendo aqui? – Clique. Mal consigo espreitar
pela pequena fresta da porta, mas está claro que Adam não se sente
nada feliz pela visita. – Quem o mandou? Quem está com você?
Kenji pragueja baixinho algumas vezes mais.
– Olhe para mim – ordena, embora sua voz mais se assemelhe a
um apelo. – Acha que vim até aqui para matar você?
Adam fica em silêncio. Respira. Duvida.
– Não tenho problema nenhum em enfiar uma bala nas suas
costas.
– Não se preocupe, cara. Eu já tenho uma bala nas costas. Ou
na perna. Ou qualquer merda do tipo. Nem sei mais.
Adam abre a porta.
– Levante-se.
– Tudo bem, não me importo se você arrastar meu rabo aí
para dentro.
Adam massageia o maxilar.
– Eu não quero seu sangue no meu tapete. Não é algo que meu
irmão precise ver.
Kenji cambaleia e entra no cômodo. Eu tinha ouvido sua voz
uma vez antes, mas nunca vira seu rosto. Contudo, esse provavel-
mente não é o melhor momento para primeiras impressões. Seus
olhos estão avermelhados, inchados; tem um enorme corte na la-
teral da testa. Seu lábio está cortado, sangrando um pouquinho; o
corpo curvado e abatido. Ele estremece, mantém uma respiração
rasa enquanto se mexe. Suas roupas estão em frangalhos; a parte
superior do corpo, coberta apenas por uma regata; os braços bem
desenvolvidos, com cortes e hematomas. Fico impressionada por
ele não ter congelado e morrido. Kenji não parece notar minha
presença até finalmente surpreender-se.
Ele para. Pisca. Abre um sorriso enorme, atrapalhado apenas
pela mais discreta carranca provocada pela dor.
– Puta merda! – exclama, ainda absorvendo minha presença. –
Cara, você é louco…
– O banheiro fica bem aqui – Adam responde, duro como
uma pedra.
Kenji vai andando, mas o tempo todo olha para trás. Aponto a
arma para seu rosto. Ele ri mais duramente, treme, arqueja um pouco.
– Cara, você fugiu com a menina louca! Você fugiu com a psi-
copata! – grita para Adam. – Pensei que tivessem inventado toda
essa história. O que você tem na cabeça? O que vai fazer com essa
doida? Não é de se espantar que Warner o queira morto… N,
, …
– Ela não é louca. E ela não é surda, seu idiota.
A porta se fecha, isolando os dois, e só consigo ouvir a discussão
abafada. Tenho a sensação de que Adam não quer que eu ouça o
que tem a dizer a Kenji. Ou isso, ou não gostou dos gritos.
Não tenho ideia do que Adam está fazendo, mas imagino que
tenha a ver com tirar a bala do corpo de Kenji e cuidar de suas outras
feridas da melhor maneira possível. Adam tem um kit de primeiros
socorros considerável e mãos fortes e estáveis. Eu me pergunto se
desenvolveu esse talento no exército. Talvez para cuidar de si mesmo.
Ou pode ser que para cuidar de seu irmão. Faria sentido.
Para nós, plano de saúde é um sonho que há muito tempo ficou
para trás.
James chegou.
Trinta e sete
– Fico realmente feliz por você aceitar tão bem, estou mesmo.
Mas, James, não é algo com que se animar. Estamos fugindo para
salvar nossas vidas.
– Mas estamos fugindo juntos – James fala pela quinta vez, sem-
pre com um sorriso estampado no rosto. Passou a gostar de Kenji
quase rápido demais, e agora os dois estão conspirando para trans-
formar nosso problema em uma espécie de missão elaborada. – E
eu posso ajudar!
– Não, não é…
– É claro que pode…
Adam e Kenji falam ao mesmo tempo. Kenji consegue se ex-
pressar primeiro.
– Por que ele não pode ajudar? Dez anos é idade suficiente
para ajudar.
– Isso não é problema seu – Adam retruca, tomando o cuidado
de controlar a voz. Sei que está se mantendo calmo para não assus-
tar o irmão mais novo. – Não é da sua conta.
– Eu finalmente vou poder acompanhar você – James insiste,
sem conseguir se conter. – E quero ajudar.
O garotinho aceitou a notícia com naturalidade. Sequer tremeu
quando Adam explicou o verdadeiro motivo pelo qual estava em
casa e por que estávamos juntos ali. Achei que ver o rosto ferido e
abatido de Kenji o assustaria, talvez o deixasse nervoso ou gerasse
uma sensação de medo em seu coração, mas ele permaneceu sur-
preendentemente inalterado.
Então me ocorreu que talvez esse garotinho já tenha visto coi-
sa pior.
Adam respira algumas vezes antes de se virar para Kenji.
– Quão longe fica?
– A pé? – Kenji parece incerto pela primeira vez. – Pelo menos
algumas horas. Se não fizermos nenhuma burrada, talvez chegue-
mos ao anoitecer.
– E se formos de carro?
Kenji pisca. Sua surpresa se dissolve em um sorriso enorme.
– Porra, Kent, por que você não falou antes?
– Cuidado com os palavrões perto do meu irmão.
James revira os olhos.
– Ouço coisas muito piores do que isso todos os dias. Até Benny
fala palavrões.
– Benny? – Adam repete com as sobrancelhas arqueadas.
– Sim.
– O que ela…? – Ele para. Muda de ideia. – Isso não significa
que você possa continuar ouvindo – Adam avisa ao irmão.
– Eu já tenho quase onze anos!
– Ei, rapazinho – Kenji o interrompe. – Está tudo bem. Foi
uma falha minha. Tenho mesmo que ser mais cuidadoso. Além do
mais, há mulheres por perto. – E pisca com um olho para mim.
Desvio o rosto. Olho em volta.
Se é difícil para mim deixar essa casa humilde para trás, só pos-
so imaginar o que Adam deve estar sentindo agora. Acredito que
James esteja animado demais com o perigoso caminho que nos
aguarda para realmente se dar conta do que está acontecendo. Para
realmente entender por que nunca mais vai voltar a esse lugar.
Somos todos fugitivos tentando salvar nossas vidas.
– Então, que história é essa? Você roubou um carro? – Kenji
quer saber.
– Um tanque.
Kenji solta uma forte risada.
– A
– Mas é um pouco conspícuo para usar durante o dia.
– O que quer dizer conspícuo? – James quer saber.
– É um pouco… indiscreto – Adam estremece.
– P ! – Kenji tropeça nos próprios pés.
– Eu falei para tomar cuidado com o linguajar…
– Você ouviu isso?
– Ouviu o quê?
Os olhos de Kenji apontam em todas as direções.
– Há outro jeito de sair daqui?
Adam está de pé.
– J…
James corre para o lado de seu irmão. Adam verifica sua arma.
Eu penduro as bolsas em minhas costas, Adam faz a mesma coisa,
sua atenção desviada na direção da porta.
– C…
– Quão perto…?
– N …
– O que você…
– K, …
E então saímos correndo, seguindo Adam para dentro do quar-
to de James. Adam arranca uma cortina de uma das paredes e reve-
la uma porta escondida a apenas 2 segundos da sala de estar.
Atira na tranca de saída de emergência.
Alguma coisa explode menos de 5 metros atrás de nós. O baru-
lho estilhaça meus ouvidos, vibra em meu corpo. Quase sofro um
colapso com o impacto. Tiros de metralhadoras atingem todos os
cantos. Passos ecoam pela casa, mas já estamos correndo pela saída.
Adam ergue James nos braços e disparamos em meio à explosão
repentina de luzes cegando nosso caminho pelas ruas. A chuva ces-
sou. As estradas estão escorregadias e enlameadas. Há crianças em
todo lugar, cores vivas dos corpos pequenos de repente gritando
com nossa aproximação. É inútil tentar ser discreto agora.
Eles já nos encontraram.
Kenji tenta correr atrás de nós, cambaleando com seu último
pico de adrenalina. Viramos em uma ruela estreita e ele solta o
corpo contra um muro.
– Desculpe – ele ofega. – Eu não consigo… podem me deixar…
– Não podemos deixar você… – Adam grita, olhando em todas
as direções, analisando tudo à nossa volta.
– Que doce da sua parte, irmão, mas tudo bem…
– Você precisa mostrar aonde temos que ir!
– Ah, puta merda!
– Você disse que nos ajudaria!
– Pensei que tivesse dito que tinha um tanque!
– Não sei se você notou, mas tivemos que mudar os planos de
forma inesperada…
– Eu não consigo acompanhar, Kent. Eu quase nem consigo andar!
– Você precisa tentar…
– Há rebeldes à solta. Estão armados e preparados para atirar.
O toque de recolher agora está funcionando. Todos devem retornar
imediatamente às suas casas. Há rebeldes à solta. Estão armados e
preparados para atirar…
Os alto-falantes espalham o aviso por toda a rua, atraindo a
atenção para nossos corpos abraçados na ruela estreita. Algumas
pessoas nos veem e gritam. O som dos coturnos se torna mais alto.
Os tiros se tornam mais ferozes.
Preciso de um momento para analisar os prédios à nossa volta e
me dar conta de que não estamos em um complexo. A rua em que
James mora é um território não regulamentado: uma série de pré-
dios comerciais abandonados amontoados, restos de nossas antigas
vidas. Não entendo por que sua casa não fica em um dos comple-
xos, como o resto da população. Não tenho tempo para descobrir
por que só vejo duas faixas etárias representadas, por que idosos e
órfãos são os únicos residentes, por que foram abandonados em
uma terra ilegal, com soldados que não deveriam estar aqui. Sinto
medo de pensar nas respostas para minhas próprias perguntas e,
em um momento de pânico, temo pela vida de James. Dou meia-
-volta enquanto corremos, vislumbrando seu corpinho apertado
nos braços de Adam.
Seus olhos estão fechados com tanta força que tenho certeza de
que chegam a doer.
Adam xinga em voz baixa. Chuta a primeira porta que con-
seguimos encontrar em um prédio abandonado e grita para que
entremos com ele.
– Preciso que fique aqui – diz a Kenji. – E eu devo estar louco,
mas tenho que deixar James com você. Preciso que cuide do meu
irmão, entendeu? Eles estão atrás de Juliette, e estão atrás de mim.
Nem imaginam que podem encontrar vocês dois.
– O que você vai fazer? – Kenji quer saber.
– Preciso roubar um carro. Aí volto para buscá-los. – James
nem protesta quando Adam o coloca no chão. Seus lábios estão
brancos; seus olhos, arregalados. As mãos tremem. – Eu venho
buscar você, James – Adam reforça. – Prometo.
O garoto assente repetidas e repetidas e repetidas vezes. Adam
beija a cabeça do irmão uma vez, rápido, forte. Solta nossas bolsas
no chão. Vira-se para Kenji.
– Se deixar qualquer coisa acontecer com ele, eu mato você.
Kenji não ri. Não franze a testa. Respira fundo.
– Vou cuidar dele.
– Juliette?
Adam segura minha mão e voltamos às ruas.
Trinta e oito
– Você tem sorte de esse não ser manual – ele fala, tentando rir.
– Manual?
– Câmbio manual.
– O que é isso?
– Um pouco mais complicado.
Mordisco o lábio.
– Você lembra onde deixamos James e Kenji? – Não quero nem
considerar a possibilidade de os dois não estarem mais lá. De terem
sido descobertos ou algo assim. Não consigo suportar a ideia.
– Lembro.
Sei que está pensando exatamente a mesma coisa que eu.
– Como eu chego lá?
Adam me explica que o pedal direito é para acelerar. O esquer-
do, para frear. Tenho que colocar o câmbio na posição D, de “diri-
gir”. Uso o volante para virar. Há espelhos para ajudar a ver o que
tem atrás. Não consigo acender os faróis e terei de contar com a
ajuda da lua para iluminar meu caminho.
Ligo a ignição, piso no freio, puxo o câmbio. A voz de Adam é
o único sistema de de que preciso. Solto o freio. Piso no acele-
rador. Quase colido com uma parede.
É assim que finalmente voltamos ao prédio abandonado.
Acelerador. Freio. Acelerador. Freio. Acelerador demais. Freio
demais. Adam não reclama, o que quase torna a situação pior. Só
consigo imaginar o que meu jeito de dirigir está causando a seus feri-
mentos. Fico grata por pelo menos não termos morrido, ainda não.
Não sei como ninguém nos avistou até agora. E fico curiosa por
saber se Warner está mesmo morto. E se tudo se transformou real-
mente em caos. E me pergunto se é por isso que não há soldados
na cidade. Todos desapareceram.
Acho.
Quase esqueço de deixar o carro em ponto morto quando che-
gamos ao edifício abandonado e familiar. Adam tem que estender
a mão e fazer isso por mim. Ajudo-o a se ajeitar no banco traseiro
e ele me pergunta por quê.
– Porque vou colocar Kenji para dirigir e não quero que seu
irmão o veja assim. Está escuro o suficiente para James não ver
seu corpo. Não acho que precise vê-lo assim, com dor.
Ele assente depois de um momento infinito de silêncio.
– Obrigado.
Saio correndo na direção do prédio. Abro a porta. Mal consigo
enxergar os dois na escuridão. Pisco os olhos para focar. James está
dormindo com a cabeça no colo de Kenji. As bolsas estão abertas,
há latas de comida jogadas no chão. Os dois estão bem.
Graças a Deus, estão bem.
Eu poderia morrer de alívio nesse momento.
Kenji segura James em seus braços, esforçando-se um pouco para
suportar o peso. Seu rosto é sério, inabalado. Ele não sorri. Não diz
nenhuma idiotice. Estuda meus olhos como se já soubesse, como se
já entendesse por que demoramos tanto para voltar, como se houvesse
só um motivo para eu estar com essa aparência infernal agora, com
sangue por toda a blusa. Provavelmente também no rosto. E nas mãos.
– Como ele está?
Quase perco o controle nesse momento.
– Preciso que você dirija.
Ele respira fundo. Assente várias vezes.
– Minha perna direita ainda está boa – diz para mim, mas acho
que não me importaria se não estivesse.
Precisamos chegar ao esconderijo seguro e minhas noções ao
volante não vão nos levar a lugar nenhum.
Kenji ajeita James, que continua dormindo, no banco do pas-
sageiro e fico muito feliz por o menino não estar acordado agora.
Pego as bolsas e levo-as para o banco de trás. Kenji se senta no
banco do motorista. Olha pelo retrovisor.
– É bom encontrá-lo vivo, Kent.
Adam quase sorri. Balança a cabeça.
– Obrigado por cuidar de James.
– Agora você confia em mim?
Um leve suspiro.
– Talvez.
– Vou aceitar esse seu talvez como resposta. – Kenji sorri. Liga
o carro. – Vamos dar o fora deste inferno.
– Ponto Ômega?
– A última letra do alfabeto grego. O último desenvolvimento,
o último de uma série. – Ele para à minha frente e pela primeira
vez noto um ômega gravado na parte traseira de sua jaqueta. – So-
mos a única esperança que restou à nossa civilização.
– Mas como… com números tão pequenos… como podem
esperar conseguir competir?
– Estamos em processo de construção há muito tempo, Juliette.
– É a primeira vez que pronuncia meu nome. Sua voz é forte,
calma, estável. – Passamos muitos anos planejando, organizan-
do e mapeando nossa estratégia. O colapso da sociedade humana
não deve ser surpresa para ninguém. Nós mesmos o provocamos.
A pergunta não era se as coisas entrariam em colapso, era só quan-
do. Era um jogo de espera. Uma questão de quem tentaria tomar
o poder e como usaria esse poder. – O medo… – ele se vira para
mim antes de dar meia-volta outra vez, seus passos silenciosos no
chão de pedra – é um grande motivador.
– Isso é patético.
– Eu concordo. E é por isso que parte do meu trabalho consiste
em reavivar os corações paralisados que perderam toda a esperança.
– Entramos em outro corredor. – E contar a vocês que quase tudo
o que aprenderam sobre a situação do mundo é mentira.
Paro onde estou. Quase caio para trás.
– O que quer dizer com isso?
– Quero dizer que as coisas não chegam nem perto de estarem
tão ruins quanto o Restabelecimento quer que acreditemos.
– Mas falta alimento…
– São eles que impedem as pessoas de terem acesso aos alimentos.
– Os animais…
– São mantidos escondidos. Geneticamente modificados. Cria-
dos em pastos secretos.
– Mas o ar… As estações… O clima…
– Não está tão ruim quanto nos fazem acreditar. É provável
que seja nosso único problema real. Ainda assim, é um problema
causado pelas manipulações perversas da Mãe Terra. Manipulações
criadas pelos homens, mas que ainda podemos consertar.
Ele se vira para me encarar. Seu olhar firme é capaz de ativar
minha concentração.
– Ainda temos uma chance de mudar as coisas. Podemos ofere-
cer água limpa para todas as pessoas. Podemos garantir que as co-
lheitas não sejam reguladas pelo lucro, podemos garantir que não
sejam geneticamente modificadas para beneficiar os produtores.
Nosso povo está morrendo porque estamos dando veneno para as
pessoas se alimentarem. Os animais estão morrendo porque esta-
mos forçando-os a comer lixo, forçando-os a viver com a sujeira
que produzimos, prendendo-os, abusando deles. As plantas estão
murchando porque jogamos produtos químicos na terra, produtos
que as tornam prejudiciais à nossa saúde. Mas essas são coisas que
podemos consertar. Eles nos alimentam com mentiras porque acre-
ditar nelas nos torna fracos, vulneráveis, maleáveis. Dependemos
dos outros para termos alimento, saúde, sustento. Isso nos debilita.
Cria pessoas covardes, crianças escravas. É hora de combater.
Seus olhos brilham cheios de sentimentos, seus punhos se fe-
cham em fervor. Suas palavras são fortes, carregadas de convicção,
articuladas e significativas. Não tenho dúvida de que já seduziu
muitos com essas ideias tão fantasiosas. Esperança em um futuro
que parece perdido. Inspiração em meio a um mundo árido, sem
nada a oferecer. É um líder natural. Um orador talentoso.
Mas tenho dificuldade de acreditar nele.
– Como pode ter certeza de que suas teorias estão certas? Tem
alguma prova?
Suas mãos relaxam. Seus olhos se acalmam. Seus lábios formam
um pequeno sorriso.
– É claro.
Agora quase ri.
– Qual é a graça?
Ele sacode a cabeça. Só um pouquinho.
– Acho seu ceticismo engraçado. Admiro-o, para dizer a verda-
de. Nunca é boa ideia acreditar em tudo que ouvimos.
Entendo o duplo sentido.
– Touché, senhor Castle.
Um instante de silêncio.
– A senhorita é francesa, senhorita Ferrars?
Talvez minha mãe seja. Desvio o olhar.
– Então, cadê a prova?
– Todo este movimento é prova suficiente. Nós sobrevivemos
por causa dessas verdades. Buscamos comida e mantimentos nos
vários complexos de armazenamento que o Restabelecimento cons-
truiu. Encontramos seus campos, suas fazendas, seus animais. Eles
têm centenas de acres dedicados a plantações. Os camponeses são
escravos, trabalham sob ameaças de morte impostas sobre eles e suas
famílias. O resto da sociedade ou é morto, ou separado em setores,
presos para serem monitorados, cuidadosamente analisados.
Mantenho uma expressão imparcial, neutra. Ainda não sei se
acredito ou não no que ele está dizendo.
– E o que você precisa que eu faça? Por que se importa com a
minha presença aqui?
Ele para diante de uma parede de vidro. Aponta para a sala do
outro lado. Não responde à minha pergunta.
– O seu Adam está se curando graças ao nosso povo.
Quase tropeço em minha pressa por ver Adam. Pressiono as
mãos contra o vidro e observo a área bem iluminada. Ele está dor-
mindo, com o rosto perfeito, em paz. Essa deve ser a ala médica.
– Olhe com atenção – Castle me pede. – Não há nenhuma agu-
lha perfurando o corpo dele. Nem aparelhos para mantê-lo vivo.
Ele chegou aqui com três costelas fraturadas. Pulmões fechados,
quase em colapso. Uma bala na coxa. Os rins feridos, como grande
parte do corpo. Pele em carne viva, punhos sangrando. Um torno-
zelo torcido. Perdeu mais sangue do que a maioria dos hospitais
seria capaz de repor.
Meu coração está prestes a cair para fora do corpo. Quero que-
brar esse vidro e embalá-lo em meus braços.
– Tem quase duzentas pessoas no Ponto Ômega – Castle me
diz. – Menos de metade delas tem algum tipo de dom especial.
Impressionada, viro-me para ele, que diz bem baixinho, com
todo o cuidado:
– Eu a trouxe aqui porque aqui é seu lugar. Porque você precisa
saber que não está sozinha.
Quarenta e sete
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ĕĆĕĊđĉĊĈĆĕĆ ĈĆėęģĔ250g/m2
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