(Pensamento Crítico) György Lukács - Arte e So PDF

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pensamentoÇ rítico

13

UFRJ

Reitor
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Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura


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Editora UFRJ

Diretor
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Conselho Editorial
Carlos Nelson Coutinho (presidente)
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Leandro Konder
V irgínia Fontes
Gyorgy Lukács

ARTE E SOCIEDADE
ESCRITOS ESTÉTICOS 1932-1967

ORGAN IZAÇÃO, INT RODUÇÃO E T RADUÇÃO DE

Carlos Nelson Coutinho


e José Paulo Netto

Editora UFRJ
Rio de Janeiro
2009
Copyright © 2009 by Editora UFRJ

Os direitos autorais sobre a organização e tradução desta obra foram cedidos gratui­
tamente por Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto à Editora UFRJ.

Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão


de Processamento Técnico - SIB I/UFRJ

L954s Lukács, Gyõrgy, 1885-1971


Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967 ! organização,
apresentação e tradução Carlos Nelson Coutinho e José Paulo
Netto. - Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. (Pensamento
Crítico, 13)
276 p.; 14 x 21 cm
!. Arte e sociedade. 2. Filosofia marxista. 1. Coutinho, Carlos
Nelson, org. II. Netto, José Paulo, org. III. Título. IV. Série.
CDD 701.03

ISBN 978-85-7108-336-3

Revisão
João Sette Camara

Capa, Projeto Gráfico


e Editoração Eletrônica
Ana Carreiro

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Fórum de Ciência e Cultura
Editora UFRJ
Av. Pasteur, 250 ! sala 107
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Tel./Fax: (21) 2542-7646 e 2295-0346
(21) 2295-1595 r. 210, 223 a 225
http://www.editora.ufrj.br

Apoio
� Fundação Universitária
11 José Bonifácio
SUMÁRIO

Apresenta.;:ão 7

Prefácio à edição húngara de Arte e sociedade 21

1. Contribuições à história da estética 41


A estética de Hegel 43
Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels 87
Nietzsche como precursor d a estética fasci�ta 121

II. Para uma teoria marxista dos gêneros literários 161


A questão da sátira 163
O romance como epopeia burguesa 1 93
A característica mais geral do reflexo lírico 245
Sobre a tragédia 249

lndice de nomes 271


APRESENTAÇÃO

Este volume recolhe um conjunto de textos estéticos redigidos


por Gyõrgy Lukács entre 1932 e 1 967.1 Como nas outras duas anto­
logias de Lukács que organizamos e que já foram publicadas por esta
Editora, 2 o principal critério que orientou a seleção dos textos foi sua
representatividade no interior do pensamento do Lukács maduro.
O longo itinerário intelectual de Lukács tornou-se objeto de
uma amplíssima bibliografia, na qual um dos temas recorrentes foi a
definição das "etapas" de sua evolução, havendo um claro consenso
acerca de uma "ruptura" entre o jovem Lukács e o Lukács da maturi­
dade. Para a nossa seleção de textos, consideramos como o pensamento
maduro de Lukács aquele que o filósofo desenvolveu a partir do início
dos anos 1 930, ou seja, depois que - em seu primeiro exílio na União
Soviética - tomou conhecimento dos inéditos de Marx (em particular
Os manuscritos econômico-filósoficos de 1844) e de Lenin (os chamados
Cadernos filosóficos) . Este conhecimento o fez superar muitas das
posições defendidas em seus primeiros textos marxistas, especial­
mente no célebre História e consciência de classe ( 1 92 3 ) . 3

1.

A reflexão estética de Lukács, porém, tanto no plano da teoria


quanto no da crítica literária, não se iniciou nos anos 1 930: foi cons­
titutiva de toda a sua evolução intelectual e tem um posto central no
conjunto da sua obra.
Os primeiros escritos de Lukács, ainda pouco mais que adoles­
cente, foram publicados (a partir de 1 902) no Magyar Szalon [ Salão
Húngaro] : trata-se de textos de crítica teatral. O interesse pelo tea­
tro leva o jovem Lukács a ser um dos animadores ( 1 904- 1 908) da
companhia Thalia, que oxigena o ambiente cultural de Budapeste.
8 • GYORGY LUKÁCS

Este precoce interesse pelo teatro está na origem da elaboração de


uma densa História do desenvolvimento do drama moderno, cuja
primeira redação recebeu, em 1 908, o prêmio da Sociedade Kisfaludy;
a obra foi publicada em húngaro, em dois volumes, em 1 9 1 1 , quando
Lukács tinha apenas 26 anos. Embora inspirado no neokantismo, o
livro revela também preocupações sociológicas, às quais não eram
alheios temas marxistas, recolhidos sobretudo através do sociólogo
alemão Georg Simmel, que foi uma das referências teóricas e meto­
dológicas do jovem Lukács.
Logo em seguida, o filósofo redige ensaios em que vincula suas
formulações estéticas com uma clara preocupação ética. Na pers­
pectiva própria do que mais tarde designaria como anticapitalismo
romântico, ele compõe os ensaios que, reunidos em húngaro em 1 9 1 0
e publicados em alemão em 1 9 1 1 , lhe dariam notoriedade. Trata-se
do volume A alma e as formas, que despertou o entusiasmo, entre ou­
tros, de Thomas Mann. Neste livro, a crítica literária se articula com
indagações de natureza existencial: estética e ética vinculam-se numa
visão de mundo essencialmente trágica, que muitos - entre os quais
Lucien Goldmann4 - apontam como precursora do existencialismo.
Em 1 9 1 2 , Lukács se transfere para Heidelberg, na Alemanha,
onde frequenta o círculo privado de Max Weber. A eclosão da Pri­
meira Guerra acentua o componente trágico da sua visão do mundo.
São os anos da guerra que marcam, no jovem Lukács, a mais tensa
conexão entre estética e ética. Esta conexão é objeto dos muitos es­
critos que redigiu entre 1 9 1 2 e 1 9 1 7, alguns dos quais publicados só
postumamente, como é o caso de uma inacabada Filosofia da arte
( 1 9 1 2 - 1 9 1 4) e de uma igualmente inconclusa Estética, conhecida
como Estética de Heidelberg { 1 9 1 4- 1 9 1 7) . A conexão entre ética e
estética manifesta-se em seu fascínio pela obra de Dostoievski: nestes
anos, ele pensa que o romancista russo anuncia uma revolução es­
piritual que, tanto no plano da vida quanto no da arte, parece-lhe
ser a alternativa a um mundo que submergia numa crise sem espe­
ranças. Dedica-se então ao estudo da obra do autor de Crime e castigo,
do que resultaram vários apontamentos publicados também postu­
mamente. A incapacidade de concluir seus principais trabalhos em­
preendidos neste período revela, de certo modo, o descontentamen-
APRESENTAÇÃO + 9

to de Lukács com os pressupostos metodológicos predominante­


mente neokantianos que então norteavam sua atividade teórica.
Uma primeira clara ruptura com tais pressupostos aparece em
A teoria do romance. Concebido inicialmente como uma introdução
ao estudo sobre Dostoievski, termina por se tornar um texto autô­
nomo, publicado primeiro numa revista, em 1 9 1 6, e mais tarde sob
a forma de livro, em 1 920, ou seja, num momento em que Lukács já
havia se convertido ao marxismo.5 Nesta pequena obra-prima -
certamente o texto mais conhecido do Lukács pré-marxista -, revela­
se a passagem do filósofo húngaro do idealismo subjetivo de Kant
para o idealismo histórico-objetivo de Hegel. Não nos parece casual
que Lukács tenha autorizado a republicação deste ensaio já depois de
sua adesão ao marxismo: com efeito, ainda que nos quadros do
idealismo objetivo hegeliano, A teoria do romance propõe uma clara
vinculação entre as formas estéticas e as épocas históricas, entre a arte
e a sociedade, vinculação que se tornaria a principal preocupação
estética do Lukács marxista. Ao ler "O romance como epopeia
burguesa'',6 escrito em 1 937, o conhecedor de A teoria do romance
poderá constatar que - ainda que agora com base numa concreta
perspectiva histórico-materialista - o Lukács marxista retoma muitas
das formulações de sua obra juvenil, em particular a vinculação da
epopeia e do romance com épocas históricas diferenciadas.
Em dezembro de 1 9 1 8, sob o impacto da Revolução de Outu­
bro de 1 9 1 7, Lukács - surpreendendo e também, em alguns casos,
decepcionando muitos dos seus amigos, entre os quais Max Weber -
ingressa no recém-fundado Partido Comunista húngaro e, em con­
sequência, adere ao marxismo. 7 Nos anos sucessivos, ele assume
diversos encargos políticos. Já em março-agosto de 1 9 1 9, torna-se
vice-ministro da Cultura durante os breves 1 3 3 dias da república
soviética húngara. Depois da brutal repressão que se segue à der­
rubada desta república, Lukács torna-se um dos dirigentes do Partido,
primeiro na clandestinidade e, depois, na emigração em Viena. Ele
se divide então entre a militância política e a elaboração de ensaios
teóricos a ela estreitamente ligados. O produto mais célebre e polê­
mico desses primeiros anos de atividade comunista é a já mencio­
nada coletânea História e consciência de classe, que amplia e reelabora
1o • GYORGY LUKÁCS

alguns ensaios já publicados entre 1 9 1 9 (em húngaro, no volume


Tática e ética) e 1 922.
Nos anos situados entre 1 9 1 9 e 1 930, Lukács não se ocupa
preponderantemente da estética e da crítica literária.8 Contudo, já no
início dos anos 1 930, ele retomará intensamente o trabalho neste
domínio. Além da derrota na luta interna do Partido húngaro, outras
razões mais essenciais concorreram para trazê-lo de volta ao campo
teórico em que desenvolvera suas primeiras investigações. Com
efeito, durante seu primeiro período em Moscou, em 1 930-1 93 1 ,
Lukács teve oportunidade, como j á mencionamos, d e examinar
inéditos de Marx e de Lenin. É também neste momento que estabe­
lece relações com o pesquisador soviético Mikhail Lifschitz, estu­
dioso das questões estéticas na obra de Marx e Engels. Inicia-se en­
tre ambos uma estreita colaboração intelectual, que se prolongará até
o final da Segunda Guerra Mundial. Com base num detalhado exa­
;;1e dos textos dos dois fundadores do marxismo, Lukács e Lifschitz
sustentarão - contra a opinião então vigente, inclusive entre os mar­
xistas - a hipótese de que neles está contida in nuce uma teoria estética
sistemática.9 Deste mesmo exame, sobretudo com base em textos do
último Engels, Lukács deduzirá a centralidade do realismo (não
como estilo, mas como método de figuração) na avaliação crítica das
obras de arte.
Esta hipótese, naquele momento, punha-se claramente contra
a corrente: com efeito, todos os esforços dos marxistas da época da
Segunda Internacional (Gueorgui Plekhanov, Franz Mehring etc.)
partiam do pressuposto de que não era possível fundar uma estética
própria e autônoma a partir das obras de Marx e Engels. Desde então
e ao longo de toda a sua vida, Lukács buscará demonstrar concre­
tamente a correção e a fecundidade dessa hipótese .. No tocante ao
realismo, até então geralmente pensado como estilo que se radica­
lizou no naturalismo do fim do século XIX, a obra ulterior de Lukács
buscará atribuir-lhe um estatuto claro como método de figuração
estética.10
Foi com base nesta possibilidade de construir os fundamentos
de uma estética marxista sistemática que Lukács retomou suas
preocupações com temas especificamente artísticos e literários. Fez
APRESENTAÇÃO + 11

parte destas preocupações u m importante problema d e política


cultural. As experimentações das vanguardas estéticas ocidentais e de
expressivos segmentos da arte soviética (ou seja, da arte russa pós-
1917) tinham como base a suposição de que era necessária uma
ruptura entre a arte contemporânea e a grande arte do passado, ou
seja, punham em questão o chamado problema da herança. Lukács,
profundo conhecedor da história da arte, passou então a defender,
contra este "vanguardismo", a necessidade de que a renovação artís­
tica, sobretudo a que se realizava em nome da experiência socialista,
mantivesse um diálogo crítico e vivo com a tradição, separando nela
o vivo do morto.
Para o filósofo húngaro, seriam deletérios os efeitos estéticos
de fazer tabula rasa do passado. É isso o que explica, por exemplo, sua
permanente valorização positiva do realismo crítico gestado na época
burguesa. Segundo muitos críticos de sua obra, esta valorização
empobreceu sua avaliação da arte de vanguarda do século XX. Mas
não há dúvida de que também lhe propiciou uma incomparável
amplitude de visão na apreciação da grande arte ocidental. Foi gra­
ças a esta valorização, por exemplo, que Lukács, na luta contra o
fascismo, pôde estender a política da frente popular para o plano
cultural, com a defesa do realismo na arte e do racionalismo na
filosofia. Também deve-se a ela a sua crítica, num primeiro momento
elíptica, da concepção do "realismo socialista" vigorante na época de
Stalin, mas que perdurou inclusive depois dela. 1 1
O regresso de Lukács ao campo da estética e da crítica literária
articulou-se intimamente com a compreensão da essencialidade da
dimensão ontológica da obra marxiana. Nos estudos que realizou na
segunda metade dos anos 1920 e, sobretudo, no início da década de
1930, Lukács rompeu com praticamente todas ·as interpretações
unilaterais e/ou reducionistas da obra marxiana até então em curso,
abrindo assim caminho para sua assimilação como uma ontologia do
ser social. A clarificação e a concretização desta assimilação (só expli­
citada abertamente, inclusive no plano terminológico, nas obras do
último Lukács, o dos anos 1960) constituíram um processo que se
desenvolveu lentamente, mas cujas bases já estão assentadas no início
dos anos 1930.'2
12 • GYORGY LUKÁCS

2.

Este é o quadro teórico-metodológico em que se apoia Lukács


quando, depois de sua primeira estada em Moscou, dirige-se em 1931
para Berlim, onde permanecerá até 1933, em situação de semiclan­
destinidade. Terá então marcante incidência nos debates da intelec­
tualidade comunista, através especialmente dos ensaios publicados
no periódico Die Linkskurve [Virada à Esquerda] . É neste momento
que retomará o exercício sistemático da crítica literária e da elabo­
ração estética, que praticamente nunca mais abandonará; irá con­
tinuá-lo ao longo do seu segundo exílio na União Soviética (1933-
1945), quando terá um papel destacado na polêmica sobre o ex­
pressionismo e sobre o vanguardismo. Ele faz parte do coletivo da
revista Literaturnyi Kritik [ Crítica Literária] , fechada em 1939, que
reunia um grupo de pesquisadores extremamente talentosos (inclu­
sive seu amigo Lifschitz) . Neste período, contribui também, com
inúmeros ensaios, para a revista Internationale Literatur [Literatura
Internacional] , publicada em alemão na União Soviética.
Como já o havia feito em sua obra juvenil, o Lukács da matu­
ridade marxista continuará vinculando organicamente crítica lite­
rária e elaboração estética. O exame de conjunto da sua produção a
partir de 1933 revela a permanência desta íntima vinculação. Por­
tanto, não é casual, para ficarmos apenas nos anos 1930, que sua
acesa polêmica contra a dissolução da forma romanesca na literatura
vanguardista seja contemporânea de uma teoria do romance que
renova e supera dialeticamente aquela construída em 1916. É o que
pode ser visto em "O romance como epopeia _burguesa" (1935) ,
incluído nesta antologia. Este ensaio, publicado inicialmente como
verbete na Enciclopédia Literária soviética, foi redigido quando
Lukács preparava o livro O romance histórico, editado em russo em
f938, cujos dois primeiros capítulos tratam da natureza estética do
romance e do drama, apontando os vínculos destes dois gêneros
literários com a realidade social e histórica.
Nesta antologia, não recolhemos nenhum ensaio lukacsiano
que possa ser considerado estritamente de "crítica literária", embora
existam dezenas deles, nos quais se revela a acuidade analítica de
APRESENTAÇÃO + JJ

Lukács, especialmente (mas não exclusivamente ! ) quando trata de


autores dos séculos XVIII e XIX. Não foi assim casual a escolha do
subtítulo deste volume: Escritos estéticos 1932-1967. Sendo nosso
obj etivo apresentar amostras expressivas do pensamen to estético
maduro de Lukács, textos estritamente de "crítica literária" desbor­
dariam os fins propostos para este volume. No entanto� precisamente
pela mencionada unidade entre crítica e elaboração estética, os en­
saios aqui reunidos - sobretudo na segunda parte, dedicada à teo­
ria dos gêneros literários - contêm inúmeras digressões nas quais
Lukács, tratando da obra de diferentes autores, manifesta plenamente
a sua acuidade como crítico literário. 13
No exercício desta crítica e desta elaboração estética, a j á
mencionada defesa d a herança cultural está sempre presente. Como
vimos, Lukács parte da possibilidade de construir uma estética
marxista sistemática; além disso, insiste reiteradamente na ideia de
que só uma tal estética pode superar as insuficiências e contradições
contidas em formulações anteriores, mesmo aquelas mais lúcidas.
Mas, apesar de apostar na capacidade heurística da estética fundada
na obra de Marx e Engels, em nenhum momento ele abre mão do
recurso crítico às conquistas do pensamento anterior ao surgimento
do marxismo. Como o leitor pode constatar nas páginas aqui dedi­
cadas a Hegel e a Tchernichevski, a novidade do marxismo não des­
qualifica o acúmulo que lhe é anterior: para Lukács, assim como para
Lenin, também neste terreno o marxismo é herdeiro das melhores
tradições do passado cultural e não as nega nem as pode negar, se é
que pretende efetivamente superá-las.

3.

Os textos reunidos nesta coletânea estão divididos em duas


partes. Na primeira, intitulada "Contribuições à história da estética': 14
nossa escolha incidiu sobre textos que revelam momentos decisivos
da avaliação do Lukács maduro sobre a evolução da estética moderna.
O ensaio sobre Hegel 15 revela o importante papel que Lukács atribui
às reflexões do autor da Estética e demonstram, assim, a importância
que ele atribui à assimilação da herança progressista pelo marxismo.
14 + GYORGY LuKAcs

O ensaio sobre os escritos estéticos de Marx e Engels 16 tenta justificar


as razões pelas quais Lukács afirma que neles está contida in nuce
uma teoria estética sistemática. Finalmente, no polêmico texto sobre
Nietzsche, 17 expressa-se o combate lukacsiano contra as vertentes
irracionalistas da cultura moderna; sem descurar a importância do
autor de Ecce homo nem escamotear seus méritos literários, Lukács
busca demonstrar como a revolta contra a mesquinhez da ordem
burguesa, quando reduzida pelo anticapitalismo romântico ao estrito
âmbito da "crítica da cultura", pode derivar na antecipação de soluções
aristocráticas e antidemocráticas.
Na segunda parte, intitulada "Para uma teoria marxista dos
gêneros literários'', são recolhidos, na sequência em que foram pu­
blicados, textos nos quais Lukács busca determinar o modo pelo qual
diversos gêneros literários expressam, em sua legalidade estética
imanente, diferentes modos de figurar constelações histórico-sociais.
Todos estes textos demonstram que o pensamento estético de Lukács
não trata a obra de arte a partir apenas de uma "abordagem externa"
(ou "extraliterária", ou "sociológica", como querem alguns de seus
críticos) . Ao contrário, eles buscam demonstrar como as leis ima­
nentes da figuração estética - que são diversas nos diferentes gêneros
literários - só têm sua particularidade adequadamente revelada
quando o seu concreto condicionamento histórico-social é apre­
sentado na multiplicidade das suas mediações ..
No denso ensaio sobre a sátira, 18 Lukács utiliza categorias filo­
sóficas para tentar demonstrar que a sátira não é uma forma artística
específica, mas um modo de figuração que pode se manifestar em di­
ferentes gêneros artísticos e literários. O longo texto sobre o roman­
ce, 19 como já dissemos, retoma - a partir agora de um ponto de vista
histórico-materialista - a problemática já abordada por Lukács em
sua obra juvenil de 19 16. Particular interesse tem o pequeno texto
sobre a lírica.2° Foram muito raras as vezes em que Lukács dedicou-se
à análise deste gênero literário; nenhum dos seus inúmeros estudos
críticos da época marxista trata especificamente de um poeta lírico.
Neste sentido, as observações feitas neste pequeno texto, quase lite­
ralmente retomado mais tarde em sua Estética, são uma demonstra­
ção de que ele não descurou inteiramente os problemas postos por
APRESENTAÇÃO + 15

este importante gênero literário. Finalmente, o texto sobre a tra­


gédia21 identifica, a partir de uma discussão das formulações de
Tchernichevski, importantes determinações de�ta significativa va­
riante do gênero dramático.
Em seu texto sobre a lírica, Lukács insiste em que também este
gênero aparentemente intimista é um reflexo da realidade. Tocamos
aqui numa questão essencial: Lukács concebe a arte - e, em particular,
a literatura - como uma forma específica do reflexo de uma realidade
exterior à consciência do artista (em sua Estética, o que ele chama de
reflexo estético está organicamente vinculado à noção aristotélica de
mimese) . É a partir de 1930-1931 que o filósofo húngaro incorpora
ao seu universo teórico a concepção marxiana do conhecimento hu­
mano como reflexo da realidade. Desde então, ele passa a sustentar e
aprofundar a ideia segundo a qual a arte é uma modalidade específica
do reflexo da realidade, que produz um conhecimento antropo­
morfizador do mundo do homem (em contraste com o conhecimento
desantropomorfizador próprio da ciência), o que permite à arte elabo­
rar uma autoconsciência do desenvolvimento da humanidade.
Sobretudo nos textos reunidos na segunda parte deste volume,
o leitor poderá verificar que a concepção lukacsiana do reflexo es­
tético está longe do "mecanicismo" que alguns críticos (por desco­
nhecimento ou má-fé) lhe atribuem. No tratamento que Lukács dá
a este conceito epistemológico, a "teoria do reflexo" não implica nem
a ideia de uma "cópia" da realidade, nem - muito menos - uma ex­
clusão do papel necessariamente ativo da subjetividade criadora.
Ao contrário, foi graças a esta sua específica "teoria do reflexo", por
exemplo, que Lukács pôde fazer uma crítica radical das concepções
artísticas do naturalismo e, em consequência, salientar o caráter
indispensavelmente ativo da subj etividade nas obras dos grandes
artistas.

4.

O texto que abre a presente antologia - o prefácio que, como


vimos, Lukács escreveu para uma coletânea húngara de seus escritos
estéticos redigidos entre 1910 e 1960 - dispensa-nos de uma expo-
16 • GYORGY LUKÁCS

sição mais detalhada da evolução do seu pensamento crítico e estético,


já que ele mesmo a faz.
Contudo, para finalizar esta breve apresentação, cumpre-nos
fazer três observações.
A primeira refere-se ao fato de que, malgrado tenha dedicado
sua atenção também a outros campos da teoria social ( como a
filosofia, a história da filosofia e a política) , Lukács nunca abandonou
inteiramente sua preocupação com a estética e a crítica literária. Já no
final de sua longa vida, em meio às dificuldades que experimentava
na redação da Ontologia, o filósofo encontrou o tempo necessário
para escrever, respectivamente em 1964 e 1969, dois ensaios críticos
sobre o romancista russo Alexander Soljenitsin, no segundo dos
quais formula importantes observações teórico-estéticas sobre a no­
va forma do romance do século XX.22 Cabe mesmo dizer que, no
terreno da estética e da crítica literária, Lukács pode ser considerado -
e não são poucos os que o fazem - como o maior dentre os marxistas
do século que findou.
A segunda lembra que o rigoroso empenho de Lukács no
sentido de construir uma estética sistemática, que culminou com a
publicação (em 1963) da primeira parte de sua Estética, 23 pode ser
visto como o ponto de chegada de um dos seus principais projetos
juvenis ( que se recordem as já mencionadas e inconclusas A filosofia
da arte e Estética de Heidelberg) . Embora este projeto juvenil tenha
sido concebido numa perspectiva teórica bastante diversa, a perma­
nência do empenho lukacsiano no sentido de elaborar uma estética
sistemática revela um traço de continuidade entre o jovem Lukács e o
Lukács da maturidade. O mesmo se pode dizer da sua preocupação
com a ética, também fortemente presente em seu período juvenil.
Com efeito, concluída a Estética, Lukács retomou esta preocupação:
sua última grande obra, sobre a ontologia do ser social ( com suas
duas versões publicadas postumamente) ,24 foi originalmente conce­
bida como introdução a uma Ética, infelizmente nunca redigida.
A terceira, finalmente, diz respeito ao pesado tributo que
Lukács, sobretudo entre os anos 1930 e 1950, pagou por sua decisão
de permanecer nas fileiras do movimento comunista internacional,
APRESENTAÇÃO + J7

recusando-se sempre a assumir o recurso a uma fácil dissidência ou


ao exílio. Em 19 18, Lukács entrou no Partido Comunista para dele,
segundo sua vontade, nunca mais sair. E foi assim que atravessou,
dentro do Partido, todo o período da autocracia stalinista, não sem
"acidentes de percurso", como sua prisão, em Moscou, em 194 1. Não
é que Lukács tenha aceitado sem crítica tudo o que provinha da
ideologia que respaldava esta autocracia: como ele mesmo disse, tra­
vou muitas vezes, neste período, batalhas que podem ser comparadas
a uma clandestina guerra de guerrilhas contra a ideologia stalinista.
Mas sua permanência no movimento comunista, talvez para
além do que ele próprio tenha admitido, teve impactos nem sempre
positivos sobre sua obra. Não é este o lugar para discutir os muitos
tributos que Lukács pagou para sobreviver como teórico e até como
pessoa física durante a era de Stalin. Mas o leitor deste volume cer­
tamente vai se surpreender com certas passagens, em vários textos
aqui recolhidos, nas quais Lukács se refere a Stalin de modo a nos
deixar hoje perplexos. Por elas, podemos constatar que tais tributos
não foram poucos. Basta lembrar o último item do ensaio sobre
Hegel, no qual Lukács busca ressaltar a suposta "contribuição" de
Stalin para o desenvolvimento da teoria e da estética marxistas. Como
é possível que páginas tão brilhantes sej am concluídas com uma
apologia de Stalin como teórico?
Sobre tais tributos, ele mesmo tenta se explicar no texto com
que abrimos este volume. Mas, já num escrito de 1957, um ano
depois da denúncia dos crimes de Stalin no XX Congresso do PC
soviético, ele afirmava, talvez de modo excessivamente sumário: "Não
perderei tempo com as [ minhas] citações 'protocolares' de Stalin.
Sempre procurei reduzir essas citações ao mínimo indispensável e
limitar-me a reproduzir afirmações justas, ainda que frequente­
mente conhecidas muito antes de Stalin. (Este é o caso, por exemplo,
da interpretação da história como luta entre o velho e o novo. ) ".25
Se o leitor levar em conta as inúmeras pressões a que Lukács
foi submetido durante a era stalinista (e mesmo depois dela) , talvez
seja compreensivo com essas suas concessões e termine por admitir
que parecem dirigidas a ele as palavras de um personagem do ro-
18 • GYORGY LUKÁCS

mancista L. Feuchtwanger: "É fácil ser um mártir; difícil, muito difícil


é permanecer entre luzes e sombras em prol de uma ideia".26

C.N.C. e J.P.N.
Rio de Janeiro, março de 2009

Notas

1 Eles são introduzidos, em nossa edição, pelo prefácio que Lukács escreveu,
em 1 967, para uma edição húngara de seus escritos estéticos, também
intitulada Arte e sociedade. Apesar do mesmo título, são diversos os artigos
que selecionamos para nossa antologia. Há uma versão italiana da edição
húngara: G. Lukács, Arte e società, Roma, Riuniti, 2 v., 1977.
2 G. Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia, Rio de Janeiro,
Editora UFRJ, 2007; e Id., Socialismo e democratização. Escritos políticos
1956-1971, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008. Na primeira antologia, o
leitor encontra uma cronologia da vida e das obras de Lukács, bem como
o elenco dos principais textos dele e sobre ele já publicados no Brasil.
3 Seguimos aqui as indicações fornecidas pelo próprio filósofo num escrito
autobiográfico, "Meu caminho para Marx", que pode ser lido em Socialismo
e democratização (ed. cit., p. 37-54). Mas cabe consultar também o prefácio
autocrítico que ele escreveu em 1 967 para uma reedição de seus primeiros
escritos marxistas: G. Lukács, História e consciência de classe. Estudos sobre
a dialética marxista, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 1-50. É preciso
deixar claro que, apesar de uma substancial continuidade, a evolução de
Lukács posterior a 1 930 apresenta também importantes pontos de inflexão.
4 L. Goldmann, "Introduction aux premiers écrits de Georges Lukács'', em
G. Lukács, La théorie du roman, Paris, Gonthier, 1 97 1 , p. 1 56- 1 90.
5 Cf. G. Lukács,A teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as
formas da grande épica, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000.
6 Cf., infra, p. 1 93-243.
7 Sobre os traços messiânicos e eticistas deste primeiro marxismo lukacsiano,
cf. suas próprias observações autocríticas no já mencionado prefácio de 1 967
(G. Lukács, História e consciência de classe, ed. cit., p. 1 - 50).
8 O que não significa, d e modo algum, que ele tenha deixado inteiramente
de lado, neste período, suas preocupações estéticas e literárias. Para com­
prová-lo, basta recordar alguns pequenos textos publicados sobretudo em
Rote Fahne [Bandeira Vermelha] , cotidiano do Partido Comunista alemão.
Muitos deles foram selecionados e publicados por Michael Lõwy em G.
Lukács, Littérature philosophie marxisme (1922-1923), Paris, PUF, 1 978.
Nestes textos, Lukács trata não apenas de escritores (como Lessing, Balzac,
APRESENTAÇÃO + 19

Dostoievski, Bernard Shaw, Hauptmann e outros), mas também de temas


teóricos, como, por exemplo, a relação entre marxismo e história da lite­
ratura.
9 Cf., neste sentido, "Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels",
infra, p. 87- 1 1 9.
10
Sobre a oposição de princípio entre realismo e naturalismo, cf. "O romance
como epopeia burguesa", infra, p. 228 e ss.
11
Cf., por exemplo, G. Lukács, Realismo crítico hoje, Brasília, Thesaurus, 1 99 1 ,
p. 135-200.
12
Sobre isso, cf. Guido Oldrini, "Em busca das raízes da ontologia (marxista)
de Lukács", em M. O. Pinassi e S. Lessa (org.), Lukács e a atualidade do
marxismo, São P<rUlo, Boitempo, 2002', p. 49-75.
13 Em edições brasileiras, ensaios especificamente dedicados à crítica literária
(tratando de autores como Shakespeare, Balzac, Stendhal, Zola, Dostoievski,
Tolstoi, T homas Mann, Kafka e outros) podem ser encontrados em G.
Lukács, Ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1 965;
e Id., Realismo crítico hoje, ed. cit.
14 Retomamos aqui o título de uma importante coletânea de Lukács, Beitriige
zur Geschichte der Asthetik, publicada originalmente em 1 954 e reproduzida
no volume 1 0 das Georg Lukács Werke, intitulado Probleme der Asthetik,
Neuwied e Berlim, Luchterhand, 1 969, p. 1 1 -458. Além dos três ensaios
recolhidos em nossa primeira parte, Beitriige zur Geschichte der Asthetik
contém ainda textos sobre Schiller, T chernichevski, Vischer e Mehring.
15 Trata-se da introdução a uma coletânea húngara de textos estéticos de
Hegel, publicada em 195 1 .
16
Também redigido como prefácio para uma edição húngara dos escritos dos
fundadores do marxismo, publicada em 1945.
17 Publicado pela primeira vez em lnternationale Literatur, Moscou, n. 8,
1 935, p. 76-92.
18
Cf. lnternationale Literatur, Moscou, n. 1 1- 12, 1932, p. 1 36- 1 50. Repu­
blicado em Georg Lukács Werke, ed. cit, v. 4, Essays über Realismus, 1 9 7 1 ,
p . 83- 1 07.
19 Este ensaio apareceu como verbete na Literaturnaia Enciklopedia, v. IX,
Moscou, 1 935, p. 795-83 1 , com o título Roman kak burjuasinaia epopeia.
Esta versão foi traduzida do russo para o italiano, em G. Lukács, M. Bachtin
e altri, Problemi di teoria dei romanzo, Turim, Einaudi, 1 976, p. 1 3 1 - 1 78.
Foi depois encontrada, entre os papéis deixados por Lukács, a versão em
alemão do verbete, com vários acréscimos à mão do próprio autor. Esta
versão alemã foi traduzida para o francês, com o título "Le roman", em G.
Lukács, Écrits de Moscou, Paris, Éditions Sociales, 1 974, p. 79- 1 40. Nossa
tradução baseia-se num confronto entre estas duas edições.
20 • GYORGY LUKÁCS

JJ Publicado no volume Dem Dichter des Friedens Johannes R. Becher zum 60.
Geburtstg [Para o poeta J. R. Becher no seu sexagésimo aniversário], Berlim,
Aufbau Verlag, 195 1. Não foi retomado em nenhum dos volumes da citada
Georg Lukács Werke. Reproduzido na edição húngara de Arte e sociedade,
foi traduzido para o italiano em G. Lukács, Arte e società, ed. cit., v. 2,
p. 4 1 -44.
21 Tal como em Arte e sociedade, ed. cit., retomamos aqui o item III do ensaio
sobre "A estética de T chernichevski", publicado originalmente em 1952,
como prefácio à edição húngara de uma coletânea de textos estéticos do
pensador russo. Em sua íntegra, o ensaio está reproduzido em G. Lukács,
Beitrage zur Geschichte der Asthetik, ed. cit, p. 147-203.
22 Os dois ensaios foram reunidos num pequeno volume: G. Lukács,
Solschenizyn, Neuwied-Berlim, Luchterhand, 1970.
L' Esta primeira parte é intitulada "A peculiaridade do estético": cf. G. Lukács,
Asthetik, Berlim, Luchterhand, Teil 1 (Die Eigenart des Asthetischen), 1963 .
Como diz no prefácio a este volume, Lukács pretendia escrever outras duas,
a serem intituladas "A obra de arte e o comportamento estético" e "A arte
como fenômeno histórico-social". Dedicado no final da vida à redação de
sua Ontologia do ser social, ele não teve infelizmente o tempo para escrevê-las.
24 G. Lukács, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, em Georg Lukács
Werke, ed. cit., v. 13 e 14, 1 984- 1 986.
25 Cf. o "Prefácio" de Lukács à edição italiana de Contributi alia storia deli'es­
tetica, Milão, Feltrinelli, 1957, p. 10. Sobre as relações com Stalin, cf.
também G. Lukács, "Para além de Stalin", em Id., Socialismo e democrati­
zação, ed. cit., p. 207- 2 1 4.
26 Lukács tinha o hábito - nada acadêmico - de não indicar as referências bi­
bliográficas de suas muitas citações. Esse hábito foi mantido na edição já
citada de suas Werke. Com muito esforço, conseguimos identificar, nos tex­
tos aqui recolhidos, a maior parte destas referências e indicar sua localização,
quando possível, nas edições em língua portuguesa. Não tivemos sorte no
caso das citações de Nietzsche, pelo que pedimos desculpas ao leitor. Com
exceção das notas sem colchetes do ensaio "A questão da sátira", que são de
Lukács, todas as demais notas presentes neste volume são dos organizadores.
Por isso, salvo no caso do ensaio citado, elas vêm sem colchetes.
PREFÁCIO A EDIÇÃO HÚNGARA
DE ARTE E SOCIEDADE

Os ensaios aqui reunidos cobrem cinquenta anos do meu


desenvolvimento: os primeiros textos foram redigidos por volta de
19 1O, e os originais da Estética foram enviados à tipografia em 1960.1
Este desenvolvimento de meio século, expresso neste livro, não diz
respt;ito, porém, apenas ao autor - ainda que, em primeiro lugar, seja
a exposição direta do seu pensamento o que está em jogo; diz respeito
também ao ambiente em que se produziu tal pensamento. Assim,
este desenvolvimento individual só pode ser realmente compreen­
dido quando se considera o modo e o contexto em que as ideias
singulares emergiram, através das lutas entre determinadas correntes,
mediante a afirmação ou a negação delas.
Os ensaios de História do desenvolvimento do drama moderno,2
assim como o método teórico neles empregado, contrastavam aber­
tamente com as tendências da historiografia literária em voga à época.
Géza Feleky, em uma crítica ao meu livro, chega a sustentar que se
tratou de uma obra incômoda tanto para os meios oficiais quanto
para as correntes de oposição. Naquele tempo ainda dominavam as
concepções de Zsolt Beõthy e a universidade acreditava que era um
ato quase revolucionário fazer convites a um positivista como Frigyes
Riedl, 3 que sofrera a influência de Taine. Grande parte da oposição
literária encontrava-se, então, sob tais influências. A teoria literária e
artística de Huszadik Szábad [Século XX] ,4 nas suas linhas principais,
também se orientava pelo positivismo, embora mais moderno que o
dominante. Já o positivismo de Nyugat [ Ocidente] , em troca, derivou
no impressionismo subjetivista, por influência seja da crítica france­
sa, seja da obra do alemão Alfred Kerr.5 Os meus escritos da época
contrastam absolutamente com todas essas tendências.
Mesmo que neles já se possa perceber alguma influência do
marxismo, seria um equívoco identificar nele uma relação maior
entre o marxismo e a tendência a adotar o ponto de vista de uma
concreção social objetiva. Na minha aplicação das ideias inspiradas
22 • GYORGY LUKÁCS

em Marx, era enorme a influência de Simmel, que procurara inserir


alguns resultados particulares do marxismo na sociologia idealista
que, à época, começava a se desenvolver na Alemanha. Meus textos
tinham um caráter idealista-burguês, na medida em que eu não par­
tia das relações diretas e reais entre a sociedade e a literatura, mas
buscava, ao contrário, captar intelectualmente e realizar uma síntese
daquelas ciências - sociologia e estética - que se ocupavam deste
tema. Não é surpreendente, portanto, que a partir de uma perspectiva
artificiosa como esta resultassem construções abstratas. Embora o
ponto de partida histórico-literário, a tentativa de apreender a forma
dramática através dos seus efeitos sobre o público, tivesse como base
a generalização de observações corretas; e embora o livro também
contenha, indiscutivelmente, análises que se revelaram exatas, a sua
concepção de fundo, a tese segundo a qual o conflito dramático
(trágico ) é uma manifestação ideológica da decadência de classe,
precisamente em função da sua abstratividade, é uma construção
vazia. É verdade que um drama autêntico nasce somente se, na
realidade social, as normas morais válidas, que se criam necessaria­
mente na sociedade, entram em mútua contradição; mas deduzir esta
concepção, de forma direta e necessária, da decadência de classe é
procedimento inteiramente abstrato e, portanto, leva a construções
vazias.
Não é casual, aliás, que, concluído meu livro, eu tenha ime­
diatamente tentado elaborar uma interpretação menos abstrata dos
fenômenos literários. (Uma tentativa deste gênero pode ser encon­
trada no conjunto de ensaios intitulado A alma e as formas.6) Meu
esforço de concretização se limitava, então, ao intento de apreender a
estrutura interna, a essência geral de determinadas formas típicas do
comportamento humano e, em seguida, vinculá-las às formas lite­
rárias, mediante a figuração e a análise dos conflitos da vida. Assim,
cheguei a examinar o comportamento trágico concreto no ensaio
"Metafísica da tragédia". Mas o lugar central que reservei para o
comportamento no marco da filosofia da arte não significava de
modo algum que eu quisesse me aproximar do psicologismo posi­
tivista ou impressionista. Ao contrário: meu empenho resultava de
uma crescente influência da filosofia hegeliana. A Fenomenologia do
PREFÁCIO A EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 23

Espírito (e outras obras de Hegel) me induziu a tentar esclarecer o


problema mediante a dialética interna do "Espírito" e com base na
relação entre o homem ( indivíduo) e a sociedade. É então que emerge
a análise do comportamento trágico: o leitor de hoje pode ver, de um
lado, a despeito do misticismo da exposição, que nesta análise estão
sempre consideradas as relações essenciais do comportamento típico
do homem (não limitada a um<J. descrição empírica das reações e
manifestações imediatas, apenas individuais ou gerais, de momento) ;
e pode ver, d e outro, como a interpretação tipificadora desse compor­
tamento pressupõe e examina sempre um estado objetivo do mundo,
em relação dialética com este comportamento, e como esta interpre­
tação, tal como em Hegel, pressupõe os resultados do desenvolvi­
mento humano e social. Esta tendência se manifesta com a máxima
clareza quando se destaca o caráter terreno, pura e exclusivamente
humano da tragédia, em contraste com todas as concepções su­
pra-terrenas, transcendentes, religiosas. (Somente mais tarde, como
marxista, consegui chegar a uma análise adequada do comporta­
mento trágico, correspondente ao gênero da tragédia. No meu ensaio
sobre Tchernichevski, redigido quarenta anos depois,7 o leitor pode
verificar a correta concretização do problema. )
Apesar desta orientação, meu ensaio sobre a tragédia ainda
separava nitidamente a tragicidade do processo histórico real. Tal
orientação contrapunha ao sociologismo abstrato dos meus primei­
ros escritos uma generalização filosófica igualmente abstrata, ainda
que direcionada em sentido oposto. Minha evolução subsequente,
sempre sob a influência de Hegel, consistiu na tentativa de concreti­
zar o conteúdo. Em A teoria do romance,8 acentuou-se o caráter histó­
rico- filosófico: delineei toda uma concepção da história mundial
para esclarecer filosoficamente a afinidade e, ao mesmo tempo, o
antagonismo entre a epopeia e o romance. A extensão e o aprofun­
damento do problema derivaram das pesquisas filosóficas e socio­
lógicas que desenvolvi nos quatro anos anteriores, mediante as quais
intensifiquei o estudo cuidadoso da filosofia hegeliana (incluindo os
textos onde Kierkegaard critica Hegel) , bem como o esforço para
analisar mais a fundo as contradições do capitalismo, através do
exame dos textos sindicalistas de Sorel e ainda de Tõnnies e Max
24 • GYORGY LUKÁCS

Weber. Contudo, para dar um quadro fiel da gênese e dos problemas


centrais de A teoria do romance, devo dizer que a eclosão do primeiro
conflito mundial e o meu apaixonado posicionamento, desde o seu
início, contrário à guerra foram os elementos concretos que me
levaram a escrever aquele livro. A minha posição, à diferença daquela
da maioria dos pacifistas, era contrária tanto às democracias ociden­
tais quanto às potências centrais. Eu via, à época, na guerra mun­
dial, a crise de toda a cultura europeia; considerava o presente,
para dizê-lo com as palavras de Fichte, Zeitalter der vollendeten
Sündhaftigkeit [a era da completa culpabilidade ] ; considerava-o
como uma crise da civilização, da qual só se poderia sair por uma via
revolucionária. Decerto, a minha visão do mundo ainda tinha um
fundamento puramente idealista e, consequentemente, a "revolução"
seria puramente moral. Assim, no meu livro, a época do romance
burguês (de Cervantes a Tolstoi), do ponto de vista da filosofia da
história, era contraposta ao passado, à idade da harmonia épica
(Homero); por outro lado, era esboçada a possibilidade futura de uma
solução humana (espiritual) das contradições sociais. Sobre isso, eu
considerava a obra de Dostoievski como premonitória, como sintoma
da "revolução", e não mais apenas como romances. Não posso, aqui,
me delongar no exame das contradições resultantes da minha orien­
tação; limito-me, pois, apenas a indicar a orientação ideológica de
que nasceu A teoria do romance.
Não por acaso esta antologia húngara apresenta um amplo
salto, que vai de 1915 a 1931. A guerra e, em seguida, as revoluções
russa e húngara determinaram um giro profundo na minha con­
cepção de sociedade e na minha ideologia, fazendo de mim um
marxista. Procurei examinar de modo detalhado este processo,
inclusive o fracasso da minha primeira tentativa filosófica marxista
(História e consciência de classe) , no prefácio que escrevi para uma
reedição desta obra.9 Um exemplo qualquer, mesmo esquemático,
referente aos problemas relativos a esse processo nos levaria muito
longe e, ademais, não teria relação direta com a presente antologia.
Limitar-me-ei a observar que tal processo se concluiu em 1930,
quando levei a cabo os meus estudos sobre Marx, no Instituto Marx­
Engels, de Moscou. Na medida em que os anos situados entre 1918 e
PREFÁCIO A EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 25

1930 foram também o período de minha atividade política, não é


difícil compreender por que me dediquei mais raramente aos tra­
b alhos de estética e de história literária. Ao contrário , maior
importância assumiram estes estudos no período em que fui me
apropriando do verdadeiro marxismo. No Instituto Marx-Engels,
conheci e trabalhei com o camarada Mikhail Lifchitz, 10 com quem,
no curso de longas e amistosas conversações, debati questões fun­
damentais do marxismo. O resultado ideal mais relevante deste
processo de esclarecimento foi o reconhecimento da existência de
uma estética marxista, autônoma e unitária. Esta afirmação, in­
discutível nos dias de hoje, parecia a muitos marxistas, no início dos
anos 1930, um paradoxo . Os grandes debates, na sequência da
Revolução de 1917, envolviam de fato os problemas políticos, estra­
tégicos e táticos; e a opinião pública, inclusive no marco do movi­
mento operário revolucionário, considerava Lenin somente como
um insigne dirigente político, um grande tático. Raramente eram
submetidas à crítica as concepções surgidas no quadro da Segunda
Internacional, exceto se fossem estreitamente ligadas aos problemas
políticos imediatos. Assim, nos discursos teóricos sobre os fenôme­
nos estéticos, continuavam dominantes os juízos de Plekhanov e de
Mehring, segundo os quais a estética não era parte integrante do
sistema marxista. Plekhanov ligava-se especialmente ao positivismo
francês e às tradições da crítica democrático-revolucionária russa;
Mehring, por seu turno, se reportava a Kant e a Schiller. Lifchitz e eu
nos opúnhamos a estas concepções e, em poucos anos, com uma
rapidez para nós inesperada, uma parte considerável dos marxistas
aceitou nossas posições, apesar da resistência dos seguidores orto­
doxos de Plekhanov e Mehring. ( Estas novas posições foram di­
vulgadas pela primeira vez em um ensaio de 1933, no qual analiso a
discussão teórica que Marx e Engels mantiveram com Lassalle a pro­
pósito de sua tragédia Franz von Sickingen.11)
Embora fosse necessário detalhar melhor este ponto, o de­
senvolvimento subsequente da minha atividade seria incompreen­
sível sem uma descrição, ainda que sumária, das circunstâncias
concretas. Uma apresentação desapaixonada dessas circunstâncias
defronta-se, naturalmente, com sérios obstáculos objetivos. Ainda
26 • GYôRGY LUKÁCS

não foi escrita a história do desenvolvimento ideológico da era


stalinista. Muitos se contentam com a condenação em geral do "culto
à personalidade", sublinhando, no máximo, alguns erros oficial­
mente reconhecidos, e apresentam a situação como se, em suas linhas
gerais, a evolução do marxismo tivesse prosseguido sem embaraços
mesmo após a morte de Lenin. A maior parte dos que se encontram
sob a influência da ideologia burguesa chegam à conclusão -
obviamente de sinal contrário - de que o período stalinista foi a
continuação "lógica" do marxismo-leninismo. Estas duas concep­
ções são ainda mais equivocadas porque, além do mais, concebem a
era stalinista de modo a-histórico e não como um processo: con­
cebem-na como se, após a morte de Lenin, Stalin tivesse instaurado o
"culto à personalidade': prolongado sem mudanças até o XX Con­
gresso. Pouco importa se, dessa visão a-histórica, derivem posições
pró- Stalin ou a favor dos seus adversários. As críticas a Stalin,
mediante as quais se procura hoje justificar teoricamente Trotski ou
Bukharin, são tão incompatíveis com a história real como a apologia
(com maiores ou menores reservas) a Stalin.
Neste local, é obviamente impossível esboçar uma análise,
mesmo esquemática, desse importante complexo de questões. Mas
devo indicar brevemente os seus desdobramentos ideológicos, sem o
que o ponto de partida histórico das minhas posições da época
permaneceria ininteligível. A luta pelo poder se resolve a favor de
Stalin no período entre a morte de Lenin e 1928. No centro da luta
ideológica se colocava o seguinte problema: o socialismo pode
subsistir quando realizado num só país? Nesta luta, Stalin levou a
melhor e é preciso dizer que a sua vitória, mesmo recorrendo a
numerosas medidas repressivas de caráter administrativo no con­
fronto entre os grupos, deveu-se sobretudo ao fato de que somente a
sua concepção permitia oferecer - durante o refluxo da vaga revolu­
cionária mundial - uma direção e uma perspectiva à construção do
socialismo (não estão em questão, aqui, os erros teóricos e práticos da
construção concreta, mas a orientação teórica de todo o período) .
Como hoje resulta evidente, o passo seguinte, n a nova situação assim
criada, foi o reconhecimento de Stalin como digno sucessor de Lenin.
A condição teórica para atingir esta finalidade era fazer com que a
PREFÁCIO À EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 27

opinião pública reconhecesse em Lenin não somente o grande tático


da luta revolucionária, mas também aquele que restaurou e de­
senvolveu teoricamente o marxismo contra os desvios ideológicos
da Segunda Internacional. O debate filosófico dos anos 1930-1931
caminhou nessa direção; e, não obstante os aspectos que foram
justamente criticados depois, alcançou seu objetivo. Do ponto de
vista teórico, a função decisiva coube à publicação, em 1931, dos
Cadernos filosóficos de Lenin (contendo, especialmente, a crítica da
filosofia hegeliana) , além dos escritos do jovem Marx, até então
desconhecidos ou publicados apenas fragmentariamente, com base
em originais sem tratamento rigoroso. O estudo desses materiais
contribuiu para modificar o meu pensamento. Até então, eu procu­
rara interpretar corretamente Marx à luz da dialética hegeliana; a
partir daquele momento, procurei utilizar para o presente os resul­
tados de Hegel e do pensamento filosófico burguês - que, com ele,
alcançara o seu apogeu -, mas com a crítica dos seus limites, com
base na dialética materialista de Marx e de Lenin. Enquanto a maioria
dos dirigentes da Segunda Internacional via Marx exclusiva ou fun­
damentalmente como o pensador que revolucionara a economia
política, a partir de então começou-se a compreender que, com ele,
inaugurava-se uma nova época na história do pensamento humano,
que a atividade de Lenin tornara atual e efetiva. O reconhecimento da
autonomia e da originalidade da estética marxista foi o meu primeiro
passo na direção da compreensão e da realização de uma nova
inflexão ideológica.
Com esta convicção me transferi, no verão de 1931, para
Berlim, onde se colocaram no centro dos meus interesses sobretudo
os problemas literários da atualidade. Os dois ensaios aqui publicados
se inserem na luta ideológica da literatura proletária revolucionária
alemã. 12 No que toca ao confronto entre tendência e partidarismo, é
claro que uma estética fundada na dialética materialista não pode
aceitar uma tendenciosidade imposta de fora à obra literária. O
contraste se revela, aqui, entre o partidarismo que nasce da posição
artística e da essência da obra e a tendenciosidade que não tem uma
conexão orgânica com os problemas da verdadeira figuração e, as­
sim, falsifica a veracidade interna dos personagens e dos eventos
28 • GYôRGY LUKÁCS

representados. Não me impediu de continuar defendendo a minha


justa posição o fato de a teoria de Stalin e de Zdhanov13 ter mais tarde
definido como autêntico partidarismo aquela tendenciosidade e
elevado a seu decálogo o artigo de Lenin, escrito em 1905, sobre a
reforma da imprensa partidária. 14 O leitor, na parte do meu livro sobre
a particularidade que trata desta questão, 15 pode constatar como, ao
longo de décadas, tratei de aprofundar essa questão sem nunca
renunciar às minhas ideias. (No entretempo, a viúva e colaboradora
de Lenin, Nadia Krupskaia, confirmava que aquele artigo de Lenin,
tantas vezes citado, não dizia respeito à literatura. ) O outro ensaio
desse período, "Reportagem ou representação?", aborda um problema
fundamental e atual: o do realismo autêntico. Trata-se de um tema
preponderante em minha atividade posterior, motivado também pela
seguinte questão: a assimilação das correntes da moda na literatura
burguesa moderna pode ajudar os escritores quando a teoria oficial
os obriga a desviar-se da via que conduz à criação artística autên­
tica? Desde aquela época, tenho insistido: a literatura socialista
pode encontrar com suas próprias forças o caminho do verdadeiro
aprofundamento artístico. Correr atrás das modas ocidentais com­
porta tantos riscos quanto a capitulação em face do dogmatismo
sectário.
Pouco depois da conquista do poder por Hitler, transferi-me
para a União Soviética, onde trabalhei como colaborador permanente
da revista Literaturnyi Kritik [ Crítica Literária] até seu fechamento
(1940). Todos os meus artigos teóricos e de princípio sobre a essência
do realismo, sem exceção, foram publicados pela primeira vez nesta
revista. O leitor de hoje seguramente considerará insólito o fato de ter
sido possível, num período avançado da era stalinista, a publica­
ção regular de artigos deste gênero. Que fique bem entendido: utili­
zavam-se neles expedientes táticos; creio que não havia nada
publicado sem algumas citações de Stalin. O leitor advertido de hoje
pode certamente perceber o que os censores da época não notavam:
que tais citações pouco tinham a ver com o conteúdo real, essencial,
dos artigos. Mas esta é, claramente, apenas uma explicação super­
ficial. Ilustrarei, de modo breve, a situação real. Enquanto eu me en­
contrava em Berlim, desencadeou-se na União Soviética um violento
PREFÁCIO À EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 29

ataque contra a RAPP [Associação Russa dos Escritores Proletários] ,


então dominante no campo literário. 16 Observe-se que o debate se
orientou contra a tendência sectária da RAPP e que as suas conclu­
sões organizativas estabeleceram que se devia suprimir a organização
em separado dos escritores proletários e reunir todos os escritores
soviéticos numa única associação. Caberia ao próprio Gorki, no con­
gresso constitutivo da nova união dos escritores, esclarecer o objetivo
que se pretendia alcançar: a grande arte do socialismo (o realismo so­
cialista) . Isto significava lutar também contra o chamado trotskismo
literário, que, para o período de transição (ou seja, antes da realização
completa do socialismo) , só admitia a possibilidade de uma literatura
de propaganda. (Não é importante que, nessa ocasião, a referência a
Trotski fosse feita por amigos e inimigos; eminentes teóricos da
Segunda Internacional, como Mehring, haviam sustentado clara­
mente a mesma posição . ) As conclusões organizativas deixavam
transparecer com clareza as reais intenções de Stalin em relação a
esses problemas. Recordo que os dirigentes da RAPP de tendência
abertamente trotskista em política abandonaram a direção da vida
literária (notadamente Averbach, 17 que desapareceria depois, na
época dos grandes processos) . Em troca, foi importante a mobilização
de Gorki e de alguns outros escritores famosos, marginalizados pela
RAPP. Mas, ao mesmo tempo, o grupo da antiga direção da RAPP que
tinha uma orientação sectária nas questões literárias, mas politica­
mente era fiel a Stalin (Fadeiev, Ermilov18 etc. ) , esse grupo conquis­
tou postos decisivos na nova organização. Era claro, pois, que se trata­
va de realizar a antiga linha da RAPP - ou seja, criar uma literatura
que, mediante meios por eles definidos como literários, difundisse as
últimas resoluções do partido - no âmbito da nova organização uni­
tária de todos os escritores. Bastava, para isso, batizar como grande
arte do socialismo essa ação de propaganda; isso não só garantiu a
Gorki uma grande liberdade de crítica nos seus últimos anos de vida,
mas também permitiu o emprego de tendências modernistas ociden­
tais, mesmo as antirrealistas, desde que o escritor, em todas as ques­
tões de conteúdo político, assumisse individualmente como seus os
objetivos concretos, atuais, do partido (basta pensar nos romances de
Ehrenburg dos anos 193019).
30 • GYORGY LuKAcs

A situação daí resultante estava carregada de contradições


internas. Insistia-se, por exemplo, no caráter ideológico da literatura,
mas reconhecia-se como "ideologia" tão somente as mais recentes
resoluções do partido. Formalmente, exigia-se em geral a qualidade
artística; mas, desde que o autor fosse fiel ao partido, proclamava-se
como arte de alto nível mesmo o pior naturalismo. No entanto, e
apesar de tudo, essa situação contraditória assegurou - por um certo
tempo - alguma liberdade àquela tendência crítica que reivindicava
verdadeiramente o realismo socialista, a grande arte socialista, e
procurava elaborar teoricamente e aplicar os princípios e critérios
artísticos deste realismo. Assim, em torno da Literaturnyi Kritik
constituiu-se um grupo do qual Lifchitz, E. Usievich e eu éramos o
centro intelectual e a que pertenciam, entre outros, 1. Satz, os fale­
cidos Grib e Aleksandrov etc.2° Foi como membro desta comunidade
que redigi boa parte dos textos aqui reunidos, buscando mostrar
como os problemas estéticos fundamentais da figuração artística
surgem organicamente do reflexo real dos problemas da vida social. 21
Evidentemente, só posso falar dos meus propósitos e das circuns­
tâncias que favoreceram ou obstaculizaram sua realização; não me
cabe julgar em que medida realizei meus objetivos. Mas é indubitável
que as circunstâncias referidas me permitiram, entre 1933 e 1940,
desenvolver alguma atividade.
Um áspero debate decorreu, entre 1939 e 1940, na sequência
da publicação, em russo, do meu livro Para a história do realismo, que
reunia ensaios sobre Goethe, Hõlderlin, Büchner, Heine, Balzac,
Tolstoi e Gorki. A discussão, que se prolongou por um ano, centrava­
se no seguinte problema: em que medida era lícito aplicar em
literatura o princípio da vitória de realismo, já sugerido por Marx em
A sagrada família, que ganhou extrema importância na correspon­
dência dos últimos anos da vida de Engels e se tornou o fio condutor
dos ensaios de Lenin sobre Tolstoi? Será que não atentaria contra o
"caráter ideológico" da literatura a afirmação de que a medida do valor
literário consiste na visão do mundo, elaborada artisticamente, que
se expressa na obra e não na ideologia consciente do escritor, na qual
se exprime diretamente a tomada de posição política no momento
dado? Este debate - sobre problemas da atualidade - foi precedido de
PREFÁCIO À EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 31

ataques contra Elena Usievich, especificamente contra u m artigo


sobre poesia política, no qual os textos da época eram julgados como
de escasso valor humano e poético quando comparados à poesia de
Maiakovski. Cumpre notar que, desses dois episódios, não decorre­
ram medidas "organizativas" imediatas. Mas o fato é que, em 1 940,
Literaturnyi Kritik deixou de existir, embora, na resolução adotada a
respeito, não se faça menção direta àqueles episódios.
Nesta resolução, nada se dizia sobre mim; mas, na prática, não
tive mais acesso à imprensa literária russa. O único local onde podia
publicar meus ensaios eram as revistas In terna tionale Literatur
[Literatura Internacional] , editada em língua alemã, e em Uj Hang [A
Nova Voz] , em húngaro. Uma vez que esses textos não estão reunidos
nesta antologia, não cabe discorrer sobre eles. Lembro apenas que
dediquei esta minha "liberdade" sobretudo à maior elaboração de
ensaios filosóficos. Também não me referirei a meus escritos sobre
problemas de princípio da literatura húngara, publicados antes e
depois do meu regresso à pátria; tenho a esperança de que esses textos
possam ser recolhidos numa antologia específica. Mas, se aludo de
maneira breve à minha atividade húngara, faço-o especialmente
porque aqueles escritos foram parte importante no debate literário de
1 949- 1 950. 22 Entre todos, foi József Révai23 quem mais procurou
demonstrar que o fundamento político e teórico de toda a minha
atividade literária deveria ser buscado nas chamadas Teses de Blum
( 1 92 8 ) ;24 afirmou, ademais, que no debate russo fora justamente
criticada a minha concepção da relação entre ideologia, partidarismo
e obra de arte, e, enfim, que era um erro o meu modo de considerar a
política de frente popular como uma estratégia e não uma simples
tática. Já Márton Horváth25 destacou - e nisto estava apoiado nos fa­
tos - que nunca empreguei, nos meus trabalhos, a expressão "ro­
mantismo revolucionário" ; segundo ele, quando me ocupava de
escritores socialistas (na época, tratava-se em especial de O Don
silencioso26), escolhia apenas autores cuja orientação não era efetiva­
mente típica da literatura soviética e, portanto, careciam daquela
função decisiva. A tais autores e obras, Horváth contrapunha dire­
tamente os romances tipo Azaev, 27 defendendo-os da crítica de serem
naturalistas, já que, a seu j uízo, aquele naturalismo exprimia o
32 • GYORGY LUKÁCS

caráter profundamente democrático da arte soviética etc. Recor­


dando esta crítica, não o faço por amor à polêmica. É importante que
o leitor de hoje leve em conta que não sou eu que postulo a minha
velha oposição ao método naturalista, tanto do período stalinista
quanto do capitalismo ocidental manipulado: são os próprios
protagonistas dessas polêmicas que há muito o fizeram.
A continuidade do debate com Rudas28 permitiu-me abando­
nar a atividade literária direta (como crítico, redator etc. ) . Realmente,
cumpre reconhecer que os métodos políticos introduzidos no ano da
virada inviabilizavam qualquer crítica literária de princípio. As mi­
nhas pretensas autocríticas - que favoreceram minha retirada - foram
inteiramente formais. Isso foi sublinhado também por József Révai e
Márton Horváth; e os críticos sectários que me atacaram em seguida
censuraram a "condescendência" com que o regime de Rákosi me
tratou. Os artigos e capítulos de livros escritos depois desse debate, na
medida em que são a continuidade orgânica, direta, da atividade que
desenvolvi desde então, não requerem aqui nenhum comentário.
Mas cabe assinalar que foi muito importante o tempo livre que
conquistei com a minha retirada: ele me permitiu elaborar, de modo
sistemático, as minhas concepções estéticas.
Mesmo considerando que a parte final desta antologia recolhe
extratos do meu trabalho no campo da estética,29 julgo que o leitor,
aqui, não espera de mim uma síntese, ainda que esquemática, das
questões teóricas que enfrentei no curso da minha elaboração. E isto
é tanto menos necessário porque o prefácio à Estética analisa minu­
ciosamente o nexo entre o fundamento teórico e a a estrutura destas
obras e os principais problemas metodológicos do marxismo. No
entanto, pode surpreender o leitor o fato de que, por um lado, eu
atribua uma decisiva importância à categoria da particularidade na
estrutura da visão estética do mundo e, por outro, vincule a obra de
arte e a autêntica fruição das obras-primas ao reflexo particular da
realidade. Por isso, permito-me aduzir algumas observações sobre
esses problemas.
A particularidade é, antes de mais nada, uma categoria objetiva
do processo objetivo da realidade, do mesmo modo que o são a
singularidade e a universalidade. Uma das conquistas mais impor-
PREFÁCIO À EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 33

tantes do marxismo consiste na descoberta de que o processo de


abstração que produz a universalidade (por exemplo, o trabalho
socialmente necessário em relação ao trabalho individual concreto)
não é, em primeira instância, resultado de uma abstração intelectiva,
mas tão somente o reflexo, na consciência humana, do processo
social objetivo. Este é apenas um dentre muitos casos. O homem, faça
o que fizer, encontra sempre diante de si uma mesma e única rea­
lidade (com su�s categorias etc. ) . Mas os nossos diversos modos de
reagir à realidade nos induzem a interpretar e a agrupar as categorias
em relação tendencial à natureza dos objetivos do reflexo. Um ca­
çador vê, num bosque, coisas diferentes daquelas observadas por
uma pessoa que foi até lá para colher cogumelos; mas a diversidade
das observações não elimina a unidade objetiva da realidade do
ambiente. É deste modo que a particularidade se manifesta em
relação a qualquer realidade, em todos os aspectos da nossa vida. A
função dominante desta categoria na obra de arte e na recepção
artística permite satisfazer uma grande necessidade social: alcançar
uma unidade imediata e, ao mesmo tempo, multilateral, contradi­
tória e unitária, entre singularidade e universalidade, entre persona­
lidade e sociabilidade. A satisfação desta necessidade cabe principal­
mente à arte. Quanto mais desenvolvido é o homem, tanto mais ele é
pessoa. Mas, para se tornar tal, de modo real, sério e profundo, não
basta ocorrer uma combinação casual de particularidades individuais
casuais: é necessário que a particularidade do gênero humano não se
manifeste no homem como particularidade surda e muda, mas, ao
contrário, que encontre em seus atos e suas palavras uma expressão
sensata, uma verdadeira articulação humana. A continuidade - trans­
mitida pela sociedade concreta - do gênero humano, que de outro
modo seria muda, torna-se assim o caminho para a realização huma­
na ( genérica e, ao mesmo tempo, social e individual) . Portanto, o tí­
pico estético, no qual a particularidade se manifesta artisticamente e
da forma mais intensa, indica o caminho da realização concreta do
gênero humano. O típico é uma categoria central da obra de arte por­
que é por seu intermédio que a obra se torna o reflexo concreto, ex­
presso e sensivelmente sintetizado, das etapas singulares que o gênero
humano atinge no grande caminho que percorre para se conhecer e
34 + GYORGY LuKAcs

encontrar-se a si mesmo. Toda categoria artística, inclusive a mais


abstrata, nasce das necessidades mais profundas da vida humana,
determina suas formas de realização positiva e negativa e é por elas
determinada.
É por isto que a estética tem como seu centro o reflexo artístico
da realidade. Sei que todos os tipos de subjetivismo burguês e de
subjetivismo dogmático ( que se encontra sob a influência burguesa)
protestam vigorosamente contra esta formulação; a "sagrada" subje­
tividade considera a conexão necessária e objetiva da fantasia artís­
tica com a realidade como uma degradação da "ilimitada" faculdade
criativa do homem. Entretanto, a uma análise rigorosa, todo o nosso
fazer, todo o nosso saber, todo o nosso ser revelam-se, substancial­
mente, o produto de nossa reação em face da realidade. Lenin, que era
um homem extremamente original e agia sempre como pessoa,
afirmou que o caminho da revolução é sempre mais "astucioso" do
que podem imaginar os projetos mais criativos do melhor partido (e
muito mais do que os do indivíduo! ) . Para Lenin, um verdadeiro
político é aquele que sabe apreender com a máxima aproximação
possível e utilizar em sua ação aquela "astúcia". Não se pode dizer o
mesmo de um artista? Não foi deste tipo a capacidade dos maiores
artistas, de Leonardo, de Cézanne, de Shakespeare ou de Tolstoi? Ou
seja: esta capacidade não consiste em captar a "astúcia" com que o
dedive de uma colina revela de modo novo a estrutura particular de
todo o panorama? Ou a "astúcia" daquele gesto, daquela palavra,
por meio dos quais, na instantaneidade aparentemente casual,
concretiza-se uma fase importante do desenvolvimento da humani­
dade? O homem é um ser que sabe responder: em todos os campos da
sua vida e da sua atividade, exprime a sua grandeza, a sua capacidade
de progredir, não em achados subjetivistas ( que são, de resto, sem
nenhuma exceção, cópias pálidas, limitadas e desprovidas de pers­
pectivas de um fragmento de realidade toscamente apreendido ) ,
mas em sua aptidão para converter as "astúcias" d a realidade e m suas
próprias perguntas, com o objetivo de identificar através de sua
análise uma resposta em que se resolvam com clareza os problemas
do ,desenvolvimento da humanidade. A arte é uma manifestação
particular dessa tendência geral. Ela é uma manifestação indivi-
PREFÁCIO A EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 35

dual e social, de modo ao mesmo tempo contraditório e unitário;


e, por isto mesmo, é criadora de tipos. Neste sentido, num capítulo
do meu trabalho, caracterizo-a como autoconsciência do desenvol­
vimento da humanidade.30 Se estamos em condições de reconhecer o
percurso do gênero humano e utilizá-lo para nosso desenvolvimento
individual, devemos isto à arte, às realizações do reflexo artístico;
do mesmo modo, não seríamos capazes de avançar individualmente
se nosso desenvolvimento não estivesse fixado, interpretado, criti­
cado pela nossa memória individual e pela consciência que emerge
desta base.
Nos meus escritos estéticos, procurei determinar o lugar e a
função do comportamento e da posição estéticos, tanto criativos
quanto receptivos, no sistema real das ações humanas. Deste ponto de
vista, os pretensos dualismos insolúveis indicados pela concepção
burguesa do mundo e da arte revelam-se falsos problemas. Conside­
remos a polaridade subjetivismo/objetivismo. O homem vive a sua
vida individual em um mundo que existe independentemente dele.
A práxis humana, portanto, não pode ser nem pura subjetividade
nem pura objetividade. Mesmo o conhecimento mais objetivo é sem­
pre resultado de grandes e originais esforços subjetivos, enquanto a
subjetividade só pode tornar-se multilateral e profunda, consistente e
fecunda, mediante o conhecimento rigoroso da realidade objetiva. E,
na medida em que a atividade do homem se desenvolve sempre no
quadro da vida social, em incessante interação com ela, mostra-se
uma construção vazia todo dualismo abstrato que oponha, de modo
rígido e excludente, a personalidade e a sociabilidade do homem
(como é o caso, por exemplo, da concepção heideggeriana do homem
'
"lançado" na realidade) . Marx observou que só em sociedade o
homem pode isolar-se. A íntima exigência de estar sozinho e a
possibilidade de satisfazê-la, bem como os mais sutis problemas
formais, são produtos do desenvolvimento social. A verdadeira grande
arte repele tanto a concepção sectário-dogmática, segundo a qual a
essência humana só pode exprimir-se realmente na atividade social
imediata ( como se a chamada vida privada fosse no máximo um
"apêndice" eventual e sem importância) , quanto o preconceito bur­
guês, resultante da alienação, segundo o qual o eu seria a única base
36 • GYORGY LUKÁCS

vital da autorrealização ou do próprio fracasso. O marxismo se


distingue da sociologia burguesa, das teorias do "milieu" etc. não
apenas pela sua crítica radical da sociedade e pelo seu historicismo,
mas também porque conseguiu apreender esta unidade dialética
entre indivíduo e sociedade: a atividade humana forma a sociedade e
o movimento objetivo da sociedade só se efetiva mediante os indiví­
duos. Somente quando experimenta um processo de socialização é
que o homem se transforma de indivíduo natural em personalidade
humana.
O leitor atento e imparcial desta antologia certamente notará
que, já em meus primeiros ensaios, que remontam a meio século,
estão postos num certo sentido - mesmo que com base em um funda­
mento teórico equivocado e deficiente - estes mesmos problemas.
Isto talvez justifique a sua publicação conjunta com meus escritos
mais maduros. E talvez não seja casual que o destino de ambos tenha
sido o mesmo, apesar das grandes crises e das inflexões internas: se
os meus primeiros escritos incomodaram tanto a historiografia lite­
rária oficial quanto a Nyugat, minhas elaborações mais maduras
suscitaram reações análogas de muitos críticos: de Lázlo Rudas, de
um lado, e de Garaudy, de outro.31 Neste sentido, a despeito de todas
as mudanças e de todos as inflexões, meu desenvolvimento apresen­
ta também uma linha unitária, uma continuidade.

Notas

1 A antologia Arte e sociedade, publicada em húngaro em 1 968, recolhe desde


textos publicados por Lukács em 1 9 1 1 até excertos da Estética, editada em
alemão em junho de 1 963.
Deste livro, publicado em 1 9 1 1 (mas cuja primeira redação foi concluída em
1 908), a antologia húngara recolhe um texto, "Questões essenciais da forma
dramática".
3 Géza Feleky ( 1 890- 1 956), Zsolt Beõthy ( 1 848- 1 922) e Frigyes Riedl ( 1 856-
1 92 1 ) , como o leitor percebe, são ensaístas e críticos literários húngaros.
' Periódico progressista editado em Budapeste, dirigido pelo teórico do
radicalismo burguês húngaro, Oszkár Jászi ( 1 875- 1957 ) . Ao lado de Século
XX, a revista citada logo adiante, Ocidente, também editada em Budapeste,
constituía a outra grande referência da cultura húngara na primeira década
do século XX. Lukács colaborou com ambas.
PREFÁCIO À EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 37

5 Alfred Kerr ( 1 867- 1 948), escritor de vasta produção, crítico e jornalista,


colaborador dos mais prestigiosos jornais alemães da época.
" Deste livro, publicado em alemão em 1 9 1 1 , a antologia húngara recolhe o
ensaio "Metafísica da tragédia'', citado logo adiante.
7 Cf., infra, o texto "Sobre a tragédia", p. 249-269.
" Há edição brasileira desta obra, publicada originariamente em 1 9 1 6: G.
Lukács, A teoria do romance, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000.
9 Cf. G. Lukács, História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes,
2003. O citado prefácio, escrito em 1 967, está nas p. 1 -50.
10 Mikhail A. Lifchitz ( 1 905- 1 98 3 ) , filósofo, historiador e crítico de arte. É
autor de vários livros, em particular de Karl Marx e a estética, traduzido
em várias línguas. Como homenagem a essa amistosa relação,- Lukács
dedicou a Lifchitz, "com veneração e amizade", a sua obra O jovem Hegel,
escrita na segunda metade dos anos 1 930 e publicada em 1 948.
11 Cf. G. Lukács, Marx e Engels como historiadores da literatura, Porto, Nova
Crítica, s.d., p. 7-89.
1 2 Os dois ensaios recolhidos na antologia húngara são "Tendência ou parti­
darismo?" e "Reportagem ou figuração?'', ambos de 1 932.
1 3 Andrei A. Zdhanov ( 1 896- 1 948) foi o principal ideólogo do período
stalinista. Suas intervenções no domínio da arte e da filosofia fizeram com
que o termo "zdhanovismo" se tornasse sinônimo de stalinismo no terreno
artístico' e ideológico.
1 4 Lukács se refere a um pequeno texto de Lenin ("A organização do partido
e a literatura do partido" ) voltado para definir parâmetros para a imprensa
partidária. Stalin e Zdhanov, abusivamente, extrapolaram estas formulações
de Lenin para a literatura.
1 5 Trata-se do livro escrito originalmente em 1 957 e publicado no Brasil com
o título Introdução a uma estética marxista. Sobre a particularidade como
categoria da estética, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1 970. A parte
sobre o "partidarismo" está nas p. 1 93-203.
1" A RAPP foi dissolvida por uma resolução do Comitê Central do Partido
soviético, de 23 de abril de 1 932, e substituída pela União dos Escritores
Soviéticos, consolidada no 1 Congresso desta organização, em 1 934, no qual
Gorki pronunciou o discurso que anunciou oficialmente a teoria do realismo
socialista. Conectada à teoria oficial do realismo socialista estava a defesa
do romantismo revolucionário, que Lukács, como se verá adiante, na
polêmica húngara dos anos 1 949- 1 950, foi censurado por não aceitar.
1 7 Leopold Averbach ( 1 903- 1 937), crítico literário.
1 " Alexander A. Fadeiev ( 1 90 1 - 1 956), romancista de A derrota ( 1926) e A
jovem guarda ( 1 946) ; prestigiado pelas autoridades da era stalinista, ocupou
cargos importantes nos aparelhos de administração da cultura; suicidou-se
38 • GYORGY LUKÁCS

após a denúncia dos crimes de Stalin no XX Congresso do Partido soviético.


Vladimir Ermilov ( 1 904- 1 965 ), romancista e crítico literário.
1 9 Ilya Ehrenburgh ( 1 89 1 - 1 967), prolífico romancista russo; recebeu duas vezes
( 1 942 e 1 947) o Prêmio Stalin de Literatura, e, em 1 952, o Prêmio Lenin
da Paz.
3' Não nos foi possível obter maiores informações sobre os intelectuais
soviéticos que então constituíam o grupo referido por Lukács. Apuramos
apenas que Elena Usievitch era uma especialista em Maiakovski, do qual
publicou uma biografia; e que V. Grib, que morreu muito jovem, escreveu
um ensaio sobre Balzac, traduzido em várias línguas, e que figura na edição
brasileira, organizada por Paulo Rónai, da Comédia humana ( cf. H. de
Balzac, A comédia humana, Rio de Janeiro-Porto Alegre-São Paulo, Globo,
V.X, 1 952, p. :XX I -LXXIII).
21 Os textos a que Lukács se refere são, além de extratos do capítulo II de O
romance histórico, seu primeiro livro publicado em russo ( 1 937), os ensaios
"Arte e verdade objetiva", de 1 934, "A fisionomia intelectual dos personagens
artísticos" e "Narrar ou descrever?", ambos de 1 936. Os dois últimos estão
publicados em português, respectivamente em G. Lukács, Marxismo e teoria
da literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1 968, p. 165-2 1 4; e Id.,
Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1 965, p. 47-99.
22 O referido debate foi aberto por Rudas (cf. infra, nota 2 8 ) , em artigo
publicado no órgão teórico do Partido húngaro (Társadalmi Szemle [Revista
Social] ), no qual atacava Lukács, acusando-o de "cosmopolitismo'', "revisio­
nismo", "desvios de direita" e de se ter tornado um "serviçal do imperialismo".
Na sequência, Lukács - obrigado a se retirar da vida pública - foi duramente
atacado por Révai e Horváth (cf., infra, notas 23 e 2 5 ) . Cabe observar que
a campanha contra Lukács foi uma decorrência do endurecimento do regi­
me político húngaro em 1 948 ("o ano da virada" ), sob a liderança de Mátyas
Rákosi ( 1 892- 1 9 7 1 ) ; afinado com a política stalinista, Rákosi comandou o
Partido e o Estado húngaros de 1 946 a 1 956.
25 József Révai ( 1 898- 1 959) foi, entre 1 949 e 1 953, o "homem forte" da políti­
ca cultural na Hungria. Antigo admirador de Lukács, foi dos seus mais duros
críticos na década de 1 950.
24 As Teses de Bium são o informe que Lukács (usando Bium como nome de
guerra) apresentou, em 1 928, no II congresso do Partido Comunista
Húngaro. Estas Teses foram derrotadas neste congresso, o que levou Lukács
a se afastar da atividade política; nelas, ele antecipava alguns temas da
"frente popular", que só em 1 93 5 seriam adotados pela Internacional
Comunista. Cf. excertos das "Teses de Bium" em Temas de ciências humanas,
São Paulo, Ciências Humanas, n. 7, 1 980, p. 1 9-30.
25 Márton Horváth ( 1 906- 1 987) foi responsável pelo setor de "agitação e
propaganda" do Partido húngaro na primeira metade dos anos 1 950.
PRE FÁCIO A EDIÇÃO HÚNGARA DE ARTE E SOCIEDADE + 39

"' Trata-se d o romance mais conhecido d e Mikhail A . Sholokhov ( 1905- 1984),


Prêmio Nobel d e Literatura d e 1965.
27 Vasily N. Azaev ( 19 1 5 - 1 968 ) , autor de Longe de Moscou ( 1 948).
"' Lázló Rudas ( 1 885- 1 950), fundador do Partido Comunista Húngaro; depois
de se exilar na União Soviética, regressou à Hungria em 1944 e dirigiu,
primeiro, o Instituto Superior do Partido Comunista Húngaro (anexo ao seu
Comitê Central), e, depois, o Instituto Superior de Ciências Econômicas.
"' Os extratos mencionados por Lukács são "A particularidade como categoria
central da estética" (cf. Introdução a uma estética marxista, ed. cit., p. 147-
166); e "A particularidade do estético" (excertos da Estética, incluindo o
prefácio a que Lukács fará referência adiante).
�' Cf. Lukács, Introdução a uma estética marxista, ed. cit., p. 262-277.
3' Roger Garaudy ( 19 1 3 ) é autor de copiosa obra filosófica e política, parte da
qual divulgada em português. Antes de ser expulso do Partido Comunista
Francês, do qual foi dirigente e um dos filósofos "oficiais", assumiu posições
extremamente "liberais" no campo da política cultural, como se pode ver
em seus livros Perspectivas do homem ( 1959 ) , Para um realismo sem
fronteiras ( 1 963) e Do anátema ao diálogo ( 1 96 5 ) . Converteu-se mais tarde
ao islamismo e escreveu textos em que nega o Holocausto.
PA R T E 1

CONTRIBUIÇÕES A HISTÓRIA
DA E S TÉTICA
A ESTÉTICA DE HEGEL

A estética de Hegel representa, no campo da filosofia da arte, a


culminação do pensamento burguês, das tradições burguesas pro­
gressistas. Os conhecidos aspectos positivos do pensamento de Hegel
e do seu estilo têm a sua mais clara expressão nesta obra: o seu caráter
de universalidade, a sua profunda e aguda sensibilidade em face das
peculiaridades e contradições do processo histórico, a vinculação
dialética dos problemas históricos com as questões teóricas e siste­
máticas referentes às leis objetivas universais - todos estes traços po­
sitivos da filosofia hegeliana se expressam nitidamente na estética.
Os clássicos do marxismo apreciaram muito esta obra. Quando
Engels, na última década do século XIX, esforça-se para convencer
Conrad Schmidt a ocupar-se seriamente de Hegel, recomenda-lhe,
naturalmente e antes de tudo, a leitura da Ciência da lógica; mas
acrescenta: "Para descansar, sugiro-lhe a Estética. Logo que se fami­
liarizar um pouco com ela, você ficará assombrado". 1

1.

Também n o campo d a estética, foi n a filosofia clássica alemã


que ocorreu pela primeira vez, no quadro da história da filosofia
burguesa, a vinculação orgânica entre concepção histórica e con­
cepção teórico-sistemática. É verdade que também esta concepção
unitária teve precursores, como, por exemplo, Vico. Mas o filósofo
italiano não teve, quanto a isto, nenhuma influência sobre seus
contemporâneos e, no século XVIII, esta influência foi, digamos
assim, "subterrânea": não existe qualquer prova de que Hegel o tenha
lido.
As tentativas anteriores à filosofia clássica alemã de criar uma
história da literatura e da arte foram, em geral, de natureza empírica;
e, mesmo nos poucos casos em que se buscou dar-lhe uma funda­
mentação filosófica, a concepção demasiadamente abstrata, "atem­
poral" e "supra-histórica" que caracterizava tais teorias não permitiu
44 • GYORGY LUKÁCS

que fosse útil à compreensão das leis da arte e da história e tornou


impossível sua aplicação ao terreno da estética. O próprio problema -
o vínculo entre a visão estética e o conhecimento histórico - se
constituiu a partir dos problemas postos simultaneamente pela
literatura e pela história. A luta de classes da burguesia exigia a defesa
do direito à existência da nascente literatura e da nova arte, não
apenas em face das tradições da arte feudal, mas também diante da
teoria e da prática próprias ao período clássico da monarquia abso­
luta. Estas discussões começaram já em fins do século XVII e inícios
do XVIII (a querela entre antigos e modernos) e, em meados do século
XVIII, adquirem tons mais radicais. Os representantes teóricos mais
eminentes da burguesia revolucionária, Lessing e Diderot, conferem
à nova arte um fundamento profundo e ambicioso. Mas, em conse­
quência da sua configuração geral, a ideologia burguesa revolucio­
nária, no desenvolvimento estético dos princípios artísticos bur­
gueses, expressa-se sobretudo como uma defesa da arte autêntica
contra a falsa arte, como uma proclamação dos princípios "eternos"
da estética frente a todas as interpretações errôneas e a todas as
confusões (relação de Lessing com Aristóteles) . Aqui se revelam os
mesmos princípios ideológicos que, na economia clássica, exaltam a
ordem da produção capitalista como a única provida de sentido e
legitimidade.
Decerto, no curso do empenho do iluminismo para justificar
teoricamente a nova arte, surgem pontos de vista históricos na
concepção da literatura e da arte. Rousseau já percebe muito nitida­
mente a problemática e a contraditoriedade da cultura (em especial,
da arte) fundada na propriedade privada; e Herder tenta traçar um
quadro histórico unitário de toda a cultura humana, envolvendo a
literatura e a arte. Entretanto, nem mesmo os intentos mais amplos e
significativos no campo da estética favoreceram uma compreensão
sistemática da história e das suas leis. O pessimismo de Rousseau em
face da civilização fomentou, reiteradamente, uma subestimação da
arte em geral; e Herder não conseguiu articular organicamente o
materialismo espontâneo de suas interpretações históricas com uma
concepção materialista da própria arte. E foi por isso que, na época do
iluminismo, o problema da conexão entre a história e a teoria, em-
A ESTÉTICA DE H EGEL • 45

bora propiciando formulações muito relevantes, não teve uma so­


lução metodológico-filosófica.
Esta solução só foi alcançada na filosofia clássica alemã. Em
suas Teses sobre Feuerbach, Marx aponta precisamente o aspecto
metodológico que contribuiu para esta inflexão. Ele sublinha que,
em todas as antigas teorias materialistas, tem lugar uma deficiente
apreensão do mundo, que é tomado só a partir da contemplação e não
da práxis; ou seja, tais teorias descuram o aspecto subjetivo da ativi­
dade humana. "Por isto, o aspecto ativo, em oposição ao materialismo,
foi desenvolvido abstratamente pelo idealismo, que, naturalmente,
não conhece a atividade real e sensível como tal". 2
A elaboração filosófica desse "aspecto ativo", também no cam­
po da estética, é uma das principais conquistas da filosofia clássica
alemã. A principal obra de Kant no domínio estético - a Crítica da fa­
culdade de julgar3 - determinou uma reorientação na história da
estética. Nela, a análise filosófica da atividade do sujeito estético, tanto
em seu comportamento produtivo quanto em seu comportamento
estético receptivo, foi colocada no centro do método e do sistema.
Kant, porém, é apenas o iniciador deste desenvolvimento e não, como
geralmente afirmam os historiadores burgueses da estética, o res­
ponsável pela sua conclusão. Ademais, na medida em que Kant é um
idealista subjetivo, sua nova formulação se refere apenas ao indiví­
duo isolado, produtor ou receptor; e, por isso, desaparece quase
completamente em sua estética o papel histórico e social da arte. Sob
este prisma, a estética de Kant é um retrocesso em relação à de Herder,
já que seu momento progressista reduz-se estritamente a questões de
metodologia abstrata. ( Somente a clara percepção deste fato torna
compreensível o contraste entre Kant e Herder, jamais entendido
pelos historiadores burgueses da estética. )
Contudo, mesmo no marco desses limites, a estética kantiana
contém apenas os primeiros lineamentos do novo método. Como
idealista subjetivo, Kant concebe o princípio da atividade de forma a
negar a teoria estética do reflexo. Disso resulta, por um lado, que ele
só consiga determinar o objeto estético de modo puramente for­
malista, com a consequência, se nos ativermos à sua teoria, de que as
questões de conteúdo são colocadas fora do campo estético propria-
46 • GvORGY LuKAcs

mente dito. E, por outro lado - uma vez que Kant é um pensador
sério, e, como Lenin indicou, vacila entre o materialismo e o idealis­
mo -, surgem em sua estética, inevitavelmente, os próprios proble­
mas de conteúdo, insolúveis com os conceitos básicos do seu siste­
ma, e que muitas vezes acabam por ser inseridos nele mediante
argumentações sofísticas.
Mas, apesar dessa profunda contraditoriedade, a influência do
novo método utilizado por Kant em sua estética foi extraordinária.
Seu primeiro grande seguidor, Schiller, tentou harmonizar - dando
um passo adiante em relação a Kant - o elemento do conteúdo, ou
seja, a determinação filosófica concreta do objeto estético, com a
filosofia idealista. Tentativas como essa, naturalmente, teriam que ser
contraditórias: Schiller, no tocante ao conteúdo, ia além de Kant e se
empenhava energicamente na construção de um idealismo objetivo,
mas se mantinha aferrado, em sua teoria do conhecimento, ao
idealismo subjetivo de Kant. Por isto, contra a concepção burguesa
que faz dele um simples discípulo de Kant, deve-se compreender
Schiller como um pensador de transição entre o idealismo subjetivo
e o idealismo objetivo. O caráter de transição da filosofia schilleriana
se revela, antes de mais nada, no fato de Schiller superar o estilo
a-histórico da estética kantiana. Em Schiller, o novo método, a análise
da atividade do sujeito estético, converte-se explicitamente num
problema histórico. Em um de seus principais escritos, Sobre poesia
ingênua e sentimental,4 ele situa, pela primeira vez, a partir de um
ponto de vista filosófico, a questão da contraposição entre a arte antiga
e a arte moderna e procura expor filosoficamente a justificação desta
última. Todavia, Schiller opera basicamente ainda no marco das cate­
gorias do idealismo subjetivo, partindo das modificações estruturais
do sujeito estético. De qualquer forma, para além das suas limitações
epistemológicas, Schiller tem suficiente sensibilidade histórica para,
pelo menos, perceber a conexão dessas categorias subjetivas com as
transformações históricas e sociais.
Já a influência da estética de Kant sobre os escritos teóricos de
Goethe é muito diversa. Goethe sempre inclinou-se a um materia­
lismo espontâneo e, na sua estética, nunca recusou inteiramente a
teoria materialista do reflexo. Ademais, Goethe é um dialético es-
A ESTÉTICA DE H EGEL + 47

pontâneo e aí está a razão pela qual critica argutamente, mais de


uma vez, a teoria mecanicista do reflexo (por exemplo, em seu estudo
sobre as obras estéticas de Diderot) ; e, partindo sobretudo da sua
própria prática, desloca para o campo da teoria estética a diferença
histórica entre a arte moderna e a arte antiga ( O colecionador e seus
parentes etc. ) .
Mas a inovação metodológica d e Kant também s e desenvolve
em outra direção muito diferente, desde o início reacionária, aquela
do romantismo. Já o jovem Friedrich Schlegel - que, sob a influência
de Schiller, volta a tematizar a contraposição filosófico-estética entre
a literatura antiga e a moderna - introduz na caracterização desta
última alguns nítidos traços da decadência. Porém, ao mesmo tem­
po, os críticos, tradutores etc. românticos ampliam consideravel­
mente o horizonte da literatura e da arte universais. São eles que re­
novam o interesse por Dante e pela literatura medieval, que ofere­
cem ao público os grandes tesouros da literatura espanhola e que des­
cortinam verdadeiros novos mundos como tradutores da literatura
hindu.
É com base nisso que o jovem Schelling escreve a sua primeira
estética sistemática ( 1 80 5 ) , que trata filosoficamente as questões
históricas. Schelling já consumou a transição para o idealismo
objetivo, o que lhe permite a tentativa de apresentar filosoficamente a
dialética como força motriz da realidade obj etiva. No primeiro
período do idealismo objetivo, também se encontram em Schelling
algumas oscilações entre idealismo e materialismo. Disso resulta que,
em sua estética, o reflexo da realidade objetiva volta a desempenhar
um certo papel, mas de modo inteiramente mistificado: a retomada
da teoria do reflexo não é mais, em Schelling, do que a renovação da
doutrina platônica das ideias. Em sua estética, há uma tendência a
deduzir as questões mais importantes da evolução histórica da arte da
dialética objetiva da realidade; contudo, em sua realização efetiva, ao
lado de muitas observações analíticas percucientes, a dialética de
Schelling termina por se mover, graças à sua própria essência, entre
analogias abstratas e a imersão num misticismo irracional. Este
componente irracional se exacerba também porque Schelling só
consegue pensar a passagem do pensamento mecanicista ao dialético
48 • GYôRGY LUKÁCS

por uma via intuitiva, ou sej a, graças à chamada "intuição inte­


lectual".
No campo da estética, o principal pensador romântico é Solger.
Nele, o movimento dialético das contradições é muito mais vivo do
que em Schelling, mas também ele não consegue unificar este movi­
mento das contradições numa síntese dialética - e, por isso, a sua es­
tética desemboca, de forma similar, num misticismo relativista.

2.

A estética de Hegel é uma síntese crítica e enciclopédica de


todas essas tendências. O desenvolvimento crítico precedente acu­
mulara tal quantidade de material sobre história e teoria da arte que
Hegel pôde formular um conceito histórico e filosófico sintético da
evolução da arte. Nele, porém, esta evolução inclui a história e o sis­
tema da gênese, do perecimento e das transformações das categorias
estéticas no marco da história real da humanidade e do sistema
completo das categorias filosóficas.
É evidente que Hegel amadureceu este tratamento enciclo­
pédico dos problemas estéticos só de modo lento e gradual. É verdade
que, desde a sua juventude, Hegel ocupou-se com a literatura e a arte;
mas a estética, como ciência autônoma, só muito tardiamente
encontra espaço no âmbito do seu pensamento sistemático.
Em seus escritos juvenis dos períodos de Berna e de Frankfurt
(ou seja, até cerca de 1 800), Hegel só leva em conta os problemas da
arte em contextos históricos ou filosófico-sociais. Em sua juventude,
Hegel foi republicano e, embora sempre se opusesse às concepções
jacobinas, apresentava-se como um partidário entusiasta da Revo­
lução Francesa. Como tal, foi também um entusiasta da arte anti­
ga, cuja íntima conexão com a condição democrática das antigas
cidades-Estado ele sublinhou com frequência e energia. Sob a in­
fluência de Georg Forster, o dirigente da rebelião jacobina de Mainz
(falecido em 1 794 no exílio parisiense) , Hegel - em nome da Anti­
guidade, cuja renovação esperava como obra da Revolução - recha­
çou a arte do cristianismo e, com ela, do modo mais categórico, toda
a arte moderna.
A ESTÉTICA DE H EGEL • 49

Esgotado o período revolucionário francês, produz-se, na


filosofia de Hegel, ainda em Frankfurt, uma importante inflexão: ele
acerta contas com suas aspirações revolucionárias juvenis, das quais
esperava que proviesse - de acordo com a ideologia da Revolução
Francesa - uma renovação da cultura e da civilização democráticas
antigas.
Relaciona-se a esta inflexão o estudo profundo que Hegel faz
dos clássicos da economia (Steuart, Adam Smith ) , assim como da
vida econômica inglesa. No curso deste estudo, tornam-se-lhe cada
vez mais evidentes algumas contradições da sociedade capitalista e,
ao mesmo tempo, ele percebe com clareza a necessidade social do
capitalismo. Esta compreensão dissipa as suas ilusões juvenis de
poder recriar a cultura antiga com a ajuda da revolução. A primeira
consequência que deriva disso para a sua concepção da história é a
percepção de que a Antiguidade não é um ideal a renovar nem um
critério para avaliar as outras civilizações: é apenas a civilização de
uma época definitivamente passada e morta. Também em conse­
quência dessa aprofundada concepção crítica, Hegel já não conside­
ra mais as fases medieval e moderna como pura decadência e ruína,
mas as toma como o caminho efetivo da evolução social; por isso,
conhecer a legalidade desta evolução passa a ser a tarefa da filosofia e
da estética. De acordo com Hegel, toda essa evolução conduz à
sociedade capitalista; por isso, a civilização e a arte que caracterizam a
ascensão da sociedade capitalista são necessárias. Decorrência dessa
nova concepção é a modificação radical da atitude de Hegel em face
do cristianismo e, portanto, em face da civilização e da arte medievais.
Naturalmente, não podemos reconstruir aqui, passo a passo,
toda a evolução do pensamento de Hegel; teremos que nos limitar à
consideração das suas principais inflexões. Em seu período de Jena,
cuja grande obra conclusiva é a Fenomenologia do Espírito ( 1 807),5
Hegel concebe a arte como parte da evolução religiosa, como tran­
sição entre a pura religião natural e a religião "revelada", ou seja, o
cristianismo. Já essa ordenação mostra que, apesar da modificação do
seu ponto de vista quanto à filosofia da história, Hegel ainda conti­
nua considerando a arte grega clássica como a única verdadeira, mas
apreendida agora como um período passado e superado da história do
50 • GYORGY LUKÁCS

"Espírito". Talvez não seja supérfluo observar, tendo em conta o lei­


tor atual, que o tratamento da arte como uma parte da evolução
religiosa tem muito a ver com o atraso da filosofia alemã da época.
(Recordemos que até o materialista Feuerbach, quarenta anos depois,
viu nas mudanças da consciência religiosa as características centrais
do desenvolvimento histórico. Por outro lado, cabe notar que a
filosofia de Hegel, por causa do seu idealismo, está carregada de
elementos mistificados, mas ela coloca muitas vezes as questões da
consciência religiosa de um modo muito mais social e histórico do
que Feuerbach. )
Como sugerimos, a concepção d a Fenomenologia d o Espírito
conserva muito das ideias juvenis de Hegel, segundo as quais so­
mente se deve considerar autêntica a arte da Antiguidade. Os capí­
tulos estéticos da Fenomenologia contêm muitas análises, argutas e
profundas, da escultura grega, das epopeias homéricas, da Antígona
de Sófocles, da comédia grega. Estas passagens têm também muita
relevância pelo fato de Hegel relacionar, em suas análises estéticas das
grandes obras de arte, a origem dos gêneros, sua sucessão, sua desa­
parição etc., com a evolução da sociedade grega. A comédia antiga
aparece em sua estética como o gênero próprio das cidades- Estado
gregas já em sua dissolução. Nesta obra juvenil de Hegel, portanto,
são colocados os fundamentos da dialética histórica das categorias
estéticas. O processo de dissolução da arte grega antiga significa, neste
período de Hegel, o fim do desenvolvimento da arte. A comédia antiga
não é sucedida por nenhum novo gênero: a arte é substituída ou
deslocada pela categoria da "situação jurídica", que expressa ade­
quadamente o novo grau de desenvolvimento do "Espírito". A subs­
tituição da hegemonia grega pelo domínio de Roma significa, para
Hegel, a substituição da arte pelo direito; por isso, Hegel não trata,
nesta obra, dos problemas estéticos da I dade Média e da I dade
Moderna. (Mas analisa detalhadamente a obra-prima de Diderot, O
sobrinho de Rameau; a análise meticulosa, porém, refere-se exclusi­
vamente a questões de moral social e Diderot aparece aqui como
representante do iluminismo que prepara a Revolução Francesa; não
se diz, em nenhum momento, que Diderot é também um grande
artista.)
A EST1'TICA DE HEGEL • 51

A mesma concepção s e encontra ainda n a primeira edição da


Enciclopédia ( 1 8 1 7) . A diferença reside apenas em que, nesta obra,
aparece pela primeira vez, na terminologia de Hegel, o "Espírito
Absoluto". A estética ocupa o primeiro capítulo, sob o título "Religião
da arte"; seguem-no o tratamento da religião e da filosofia. Já surge,
p o i s , o conjunto da divisão tricotômica que terá seu pleno
desenvolvimento no posterior e clássico sistema hegeliano. A abor­
dagem da arte corresponde ainda, inteiramente, ao espírito da Fe­
nomenologia: apenas a antiga arte grega merece uma caracteriza­
ção cuidadosa por parte do filósofo. Este tipo de tratamento muda
somente na segunda edição da Enciclopédia ( 1 82 7 ) ,6 quando sofre
uma alteração radical. A mudança começa no próprio título do tema:
da anterior expressão só resta a palavra "Arte". A mudança reflete uma
transformação básica de conteúdo e de método. Agora encontramos
a periodização fundamental da estética hegeliana, a distinção e a
análise dos períodós artísticos simbólico (oriental), clássico e român­
tico (medieval e moderno) .
Atualmente não é possível seguir e reconstruir, e m todas as
suas fases particulares, o processo mediante o qual se constituiu a
forma metodológica definitiva da estética hegeliana, já que devem
ser considerados como perdidos para sempre, em sua maioria, os
manuscritos de que Hotho,7 o discípulo de Hegel, dispôs para a
primeira edição. Hegel deu cursos de estética por duas vezes em
Heidelberg ( 1 8 1 7 e 1 8 1 9 ) e quatro, em Berlim ( 1 820- 1 82 1 , 1 823,
1 826 e 1 828- 1 829 ) . Hotho teve acesso a muitos cadernos de ouvintes
desses cursos, principalmente os dos anos 1 823 e 1 826; e, ademais,
possuía as anotações do próprio Hegel. Sobre essas anotações, Hotho
indica que as mais antigas foram escritas em Heidelberg, em 1 8 1 7, e
que Hegel as revisou profundamente em 1 820. Pode-se inferir, então,
que a verdadeira reorientação da estética hegeliana ocorreu no último
ano de Heidelberg e nos primeiros anos de Berlim, ou seja, por volta
de 1 820. Mas os discípulos de Hegel que prepararam suas obras para
impressão trataram muito levianamente o legado do filósofo e assim
se perdeu a maior parte daquelas anotações.
O próprio Hotho não se preocupa minimamente com a his­
tória da formação da estética de Hegel. A única coisa que lhe im-
52 + GvôRGY LuKAcs

portava era extrair dos cursos de Hegel um livro que fosse legível de
um só fôlego. Conseguiu-o. Mas, ao mesmo tempo, perdeu os docu­
mentos mais importantes para reconstituir as origens da estética he­
geliana. Lasson,8 que não faz muito tempo nos ofereceu uma nova
edição da estética, pôde, ao menos, distinguir entre o texto original de
Hegel e as adições de Hotho. Ele indica também algumas diferenças
de ordenação do material entre o curso de 1 823 e o de 1 826; contudo,
isso só se refere à primeira parte da estética. Permanece como um
problema em aberto, portanto, o conhecimento da decisiva fase
inicial da estética de Hegel.
Este breve excurso é suficiente para sublinhar que a transfor­
mação da estética hegeliana está relacionada, antes de mais nada, ao
método e à periodização; isso fornece as bases histórico-sistemáticas
da estética. Seria uma grande superficialidade considerar que a in­
serção do desenvolvimento artístico moderno na estética de Hegel
depende exclusivamente do fato de que o filósofo só num segundo
momento se apropriou de todo o concreto material da arte moderna.
Claro que só paulatinamente Hegel alcançou o seu variado e imenso
saber. Mas já em lena, cidade em que manteve muitas relações com
Goethe, Schiller, Schelling e alguns românticos, ele pôde conhecer
destacadas obras da arte moderna. (Vimos, por exemplo, que estudou
detalhadamente, na Fenomenologia, a obra de Diderot, publicada
pouco antes na tradução de Goethe. ) Em 1 805, quando mantém con­
versações com Voss, o conhecido poeta e tradutor de Homero, sobre a
sua designação para Heidelberg, declara-se disposto a ministrar cur­
sos de estética. E, na sua Propedêutica filosófica ( 1 809- 1 8 1 1 ) ,9 estuda
dois estilos artísticos básicos: o antigo e o moderno, caracterizando o
primeiro como plástico e objetivo e o segundo como romântico e
subjetivo. Mas é notável o fato de que, nas análises subsequentes,
Hegel só aborde em detalhe o estilo antigo, o que se torna explicável
quando lembramos que a estética de Hegel contempla a Antiguidade
como o período próprio e autêntico da arte. Na seção introdutória à
arte romântica, Hegel lança um último olhar à Antiguidade e observa:
"Não há nem poderá haver algo mais belo".
A ESTliTICA DE H EGEL + 53

3.

Isto posto, fica claro que a gênese e a transformação da estética


hegeliana se centram na questão de como se devem conceber histó­
rica e dialeticamente os desenvolvimentos artísticos anteriores e pos­
teriores à Antiguidade. Ou seja: Hegel quer agora concretizar, histó­
rica e dialeticamente, no desenvolvimento da arte, o caráter e o valor
estéticos dos períodos que, a seu juízo, não correspondem ao conceito
puramente estético da arte; trata-se dos períodos nos quais a arte não
é a forma de manifestação do "Espírito", nos quais a evolução do "Es­
pírito" ainda não alcançou o grau de desenvolvimento filosófico do
estético ou já o superou - períodos, portanto, cujo caráter fundamen­
tal contradiz a essência do estético. A profunda elaboração das pecu­
liares contradições dialéticas que caracterizam tais períodos é um dos
grandes méritos da estética de Hegel. O romantismo valorizava exces­
sivamente, de modo anti-histórico e acrítico, a arte da Idade Média e,
mais tarde, a arte oriental, contrapondo-as abstratamente às grandes
obras artísticas da Antiguidade e do Renascimento; e, violando os
princípios básicos da estética, colocava aquelas muito acima destas. À
diferença do romantismo, Hegel explicita a linha do processo histó­
rico que, em quase todas as questões do desenvolvimento artístico,
fornece os fundamentos ou, pelo menos, o ponto de partida para a
correta avaliação histórica e estética dos fenômenos particulares. A
profundidade e a grandeza desta concepção histórica se manifestam
especialmente a propósito da arte que lhe é contemporânea: ao
tratá-la, Hegel descobre com acuidade o quão desfavorável ao desen­
volvimento da arte é a sociedade capitalista, mas isto não o impede de
revelar uma imensa sensibilidade em face da importância artística
das grandes figuras do período, notadamente Goethe.
O tratamento da história da arte, em Hegel, relaciona-se muito
estreitamente com a elaboração das categorias estéticas. Como idea­
lista objetivo, Hegel luta energicamente - contra Kant, contra os em­
piristas - pelo reconhecimento da verdade objetiva absoluta das ca­
tegorias estéticas. Mas, como dialético, vincula esta essência absoluta
das categorias ao caráter histórico, relativo, da sua concreta aparição e
procura sempre revelar de modo concreto a conexão dialética do
54 • GYORGY LUKÁCS

absoluto e do relativo, ou seja, a relação com o processo do desen­


volvimento histórico. Do ideal estético à teoria dos distintos gêneros
artísticos, a estética de Hegel procura sempre apreender esse insu­
primível entrelaçamento dialético do absoluto e do relativo.
Esta vinculação entre as categorias sistemáticas e históricas da
estética não representa, na estética de Hegel, uma simples comple­
mentação de considerações abstratas mediante "exemplos" históricos,
tal como ocorre nos seus sucessores, que colocam todas as questões
de modo muito mais abstrato; em Hegel, ao contrário, o que está em
jogo é a estreita conexão com a estrutura dialética de todas as questões
básicas da estética. Na perspectiva de Hegel, o todo da estética é uma
seção do grande desenvolvimento histórico do mundo, da natureza
ao "Espírito Absoluto". Neste desenvolvimento, a estética é o grau
inferior de manifestação do "Espírito Absoluto;: ou seja, o grau da in­
tuição. O grau imediatamente superior é o da representação, ou seja,
a religião; e o nível supremo é o do conceito, isto é, a filosofia.
Com esta estrutura histórica e dialética de todo o seu sistema -
e da estética no interior dele -, Hegel chega a formulações completa­
mente novas para inúmeras questões fundamentais da estética. (Mais
adiante, examinaremos as consequências deformadoras que o
idealismo de Hegel traz à sua dialética estética e, sobretudo, ao seu
sistema estético.) A estética hegeliana supera, em primeiro lugar, o
idealismo subjetivo kantiano, o seu falso dualismo, que contrapõe ao
conteúdo (supostamente externo à estética e completamente alheio
às suas categorias) uma forma concebida sempre de modo abstrato e
subjetivo, ainda que explicitamente caracterizada como estética. A
estética hegeliana parte sempre do conteúdo; e é da sua análise
concreta, histórica e dialética, que Hegel deduz as categorias estéticas
fundamentais: a Beleza, o Ideal, as várias formas artísticas concretas,
os gêneros artísticos etc. Mas, dado o idealismo objetivo hegeliano, o
conteúdo não surge apenas da atividade individual do sujeito estético,
da atividade do artista ou do receptor estético; ao contrário, o
indivíduo recebe este conteúdo da realidade objetiva, social e histó­
rica, que existe independentemente dele - e o recebe concretamente,
isto é, como conteúdo concreto daquele determinado momento do
desenvolvimento histórico da própria realidade.
A ESTÉTICA DE H EGEL + 55

Hegel, com isto, não suprime o papel ativo do sujeito estético;


mas esta atividade só pode se realizar no âmbito das condições con­
cretas aludidas. Portanto, o conteúdo de que se trata aqui é o estado de
desenvolvimento da sociedade e da história (estado do mundo) , que o
sujeito estético considera e elabora do ponto de vista da intuição. Põe­
se assim, para a atividade do sujeito estético, a necessidade, a tarefa de
reproduzir esteticamente este conteúdo e somente este, apossar-se
dele e expressá-lo com os meios próprios da arte - e, segundo a estética
hegeliana, tais meios peculiares da arte (as formas) surgem, sem
exceção, dos próprios conteúdos. Portanto, a estética hegeliana se .
funda na dialética, na interação dialética da forma e do conteúdo;
funda-se precisamente - bem mais intensamente na estética do que
na lógica - na prioridade do conteúdo.
Contudo, para Hegel, a concreção histórica do conteúdo não
equivale nunca a um relativismo histórico. Ao contrário: de acordo
com a estética hegeliana, somente uma tal concreção do conteúdo
pode dar lugar a uma determinação dos critérios estéticos. Isto se
aplica, antes de mais nada, à avaliação estética das obras de arte, à
definição do critério da grande obra, na medida em que esta expressa
com amplitude, profundidade e de modo intuitivo (ou seja, não com
a pura aj uda das reflexões do entendimento ) toda a inesgotável
riqueza de cada conteúdo particular. É o conteúdo, ademais, que
oferece o critério para avaliar em que medida o artista se expressa
numa forma viva ou morta (ou seja, neste caso, de modo formalista,
como epígono) em cada gênero artístico: isto é, o critério para avaliar
a correção da escolha do gênero é também o conteúdo histórico de
cada caso. As formas dos gêneros artísticos não são arbitrárias.
Surgem, ao contrário, da concreta determinação de cada estado social
e histórico (estado do mundo) . Seu caráter e sua peculiaridade são
determinados pela sua capacidade de expressar os traços essenciais da
fase histórico-social dada. É assim que surgem os diversos gêneros em
determinadas etapas do desenvolvimento histórico, que mudam
radicalmente de caráter (do poema épico, por exemplo, deriva o
romance) . Tais gêneros às vezes desaparecem completamente; outras
vezes, reaparecem com modificações no curso da história. Entretan­
to, na concepção de Hegel, dado que esse processo é objetivamente
56 • GYORGY LUKÁCS

necessário e submetido a leis, o seu conhecimento não conduz ao


relativismo: ao contrário, conduz à obj etividade dialeticamente
fundada e concreta das categorias estéticas.
Finalmente, é assim que Hegel elabora os critérios com base
nos quais se podem avaliar inteiros períodos estilísticos da história da
arte. Hegel não pensa que toda fase histórica da arte seja capaz de criar
uma arte igualmente valiosa, nem tampouco - como sustenta o rela­
tivismo burguês decadente - que a necessidade histórica do surgi­
mento de diversos estilos em determinados períodos possa anular as
diferenças estéticas de valor e de hierarquia que existem entre os
vários períodos e estilos. Ao contrário, Hegel pensa que, da essência
da arte, decorre que um determinado conteúdo seja mais adequado
do que outro para a expressão artística e que certos períodos de desen­
volvimento da humanidade não sejam ainda, ou não sejam mais,
adequados para a criação artística.
O estatuto especial que Hegel atribui à arte grega clássica
adquire, neste contexto, uma significação estética geral e, mais ainda,
uma significação filosófica geral. Toda a estética se converte, assim,
numa grandiosa explicitação dos princípios humanistas: a expressão
do homem desenvolvido em todas as suas dimensões, não mutilado,
não fragmentado pela desfavorável divisão do trabalho; a expressão do
homem harmonioso, no qual os traços individuais e sociais consti­
tuem um todo orgânico indivisível. Formar tais homens é, para
Hegel, a grande tarefa objetiva da arte. Naturalmente, pois, este ideal
da humanitas oferece o critério absoluto para a avaliação de todo estilo
artístico, de todo gênero ou de qualquer obra singular. Esta essência
humanista da arte determina, de acordo com Hegel, as categorias
estéticas. O jovem Marx sublinhou "que Hegel concebe a autocriação
do homem como um processo [ . . . ] , concebe a essência do trabalho, e
o homem objetivo, verdadeiro porque real, como resultado do seu
próprio trabalho". 10 A concepção social da filosofia hegeliana, baseada
nesta ideia, reflete-se em toda a sua estética. Somente no marco dessa
concepção de conjunto pode se entender a recusa da beleza natural, a
ideia de que a beleza, como categoria, depende necessariamente da
atividade social do homem. (O caráter idealista da concepção deter­
mina também, obviamente, a deformação do problema. ) Assim, a
A ESTÉTICA DE H EGEL + 57

estética hegeliana é a primeira - e a última - síntese ampla, científica,


teórica e histórica da filosofia da arte a que podia chegar a filosofia
burguesa.
É claro que este grandioso sistema tem que apresentar todos os
defeitos e todas as limitações do pensamento burguês. O idealismo
objetivo hegeliano era suficiente para descobrir e superar as deficiên­
cias do idealismo subjetivo kantiano; Hegel, mestre consciente da
dialética objetiva, pôde mesmo ir além do dialético espontâneo
Goethe. Como filósofo progressista que trata todo o ser social como
um processo, Hegel combate com êxito as tendências reacionárias do
romantismo e supera vitoriosamente Schelling e Solger. Mas tudo
isso se passa nos limites do idealismo objetivo. Todas as debilidades,
defeitos, deformações, fossilizações, construções abstratas, todas as
violentações da realidade que Marx, Engels, Lenin e Stalin descobri­
ram e criticaram na dialética idealista hegeliana também se verificam
na sua estética. E esta, tanto quanto a lógica de Hegel, é um docu­
mento básico da história do método dialético. Em quase todos os seus
problemas, a estética contém proposições fecundas e, em alguns
casos, soluções corretas. Mas mesmo estas, se as quisermos utilizar
realmente e com eficácia, têm que ser transformadas a partir de uma
perspectiva materialista: também as justas soluções propostas por
Hegel devem ser colocadas com os pés no chão.
Esta inversão materialista da dialética idealista de Hegel é o
problema geral posto por toda a sua filosofia, da qual a parte con­
cernente à arte é somente um aspecto. Consequentemente, a reelabo­
ração materialista da estética é, em grande medida, função da trans­
formação - geral, lógica, epistemológica etc. - dos problemas dialé­
ticos no espírito do materialismo, tarefa já basicamente efetivada por
Marx, Engels, Lenin e Stalin. Naturalmente, não é possível repetir
aqui, mesmo que de modo breve, tudo o que eles fizeram neste terre­
no. Limito-me a destacar as questões importantes que têm influência
significativa nos problemas decisivos da estética e que constituem as
principais fontes das deformações e erros idealistas da estética
hegeliana.
A primeira dessas questões diz respeito ao problema do reflexo.
O idealismo hegeliano é um idealismo objetivo que pretende reco­
nhecer a realidade objetiva como independente da consciência hu-
58 • GYORGY LUKÁCS

mana e expressá-la filosoficamente numa forma dialeticamente ra­


cional. O único método consequente e científico para realizar tal
aspiração é a teoria dialética do reflexo, que reconhece plenamente a
realidade objetiva que existe independentemente de nós, leva em
conta sua dialética objetiva e concebe a dialética subj etiva que se
apresenta em nossa consciência como o reflexo mais aproximado
possível do processo dialético objetivo. O conceito hegeliano de obje­
tividade, porém, é idealista; por sua essência mesma, é uma objeti­
vidade de natureza espiritual, mental. O conceito básico da dialética
objetiva de Hegel é, portanto, internamente contraditório ( como
gostam de dizer os húngaros, é um férreo anel de madeira) . É cons­
ciência, mas não consciência do sujeito, do homem; para conferir­
lhe um portador, portanto, Hegel tem que inventar o Espírito, o
Esp írito do Mundo, ou sej a, aquele princípio que, embora de
natureza espiritual e mental, existe ao mesmo tempo independente­
mente de toda consciência subjetiva humana e é até mesmo o criador
da consciência humana. Esta mistificação tem como consequência
que a filosofia hegeliana, que se apresenta com a pretensão de apreen­
der a realidade objetiva em sua autêntica essência, acabe se perdendo
num misticismo religioso.
Assim, enquanto a dialética materialista, apoiada epistemolo­
gicamente na teoria do reflexo, é capaz de determinar de modo pre­
ciso e científico a relação entre o mundo objetivo em si e a consciência
subjetiva, a dialética idealista de Hegel é obrigada, em troca, a refu­
giar-se na mística teoria da identidade de sujeito e objeto. A cons­
ciência subjetiva do homem é, segundo Hegel, produto de um proces­
so cuja força motriz é precisamente o Espírito do Mundo, cuja re­
velação consciente constitl!i a consciência humana, historicamente
produzida. O processo do conhecimento, portanto, não avança no
sentido de uma aproximação progressiva à realidade objetiva que
existe independentemente da nossa consciência, mas no sentido de
uma plena unificação de sujeito e objeto, no sentido da gestação do
sujeito-objeto idêntico. A objetividade da realidade objetiva não é,
pois, uma propriedade necessária dela mesma: é apenas a forma de
manifestação do fato de que o Espírito do Mundo ainda não alcançou
plenamente a si mesmo, ou seja, do fato de que a identidade de sujei-
A ESTÉTICA DE H EGEL • 59

to e objeto ainda não se realizou. Se a filosofia hegeliana fosse levada


até o fim, de modo consequente, o conhecimento perfeito seria a
dissolução de toda objetividade, a perfeita fusão de toda objetividade
no sujeito-objeto idêntico. Ou seja: seria um completo misticismo.
É claro que esta extrema consequência se opõe radicalmente à
tendência progressista do método dialético, arma poderosa no
caminho do melhor conhecimento possível da realidade objetiva.
Relaciona-se estreitamente a esta questão a contradição básica,
especialmente destacada por Engels, entre o sistema e o método de
Hegel. 1 1 Naturalmente, Hegel era um pensador muito sério (com um
saber da realidade extremamente amplo, enciclopédico) para desejar
que o coroamento da sua filosofia fosse um absurdo místico deste
gênero, ou seja, a reabsorção de toda objetividade no âmbito do su­
jeito. Entretanto, ele não chegou a este ponto simplesmente por não
ter evitado ser consequente com a tendência epistemológica do seu
sistema. Esta contradição entre sistema e método penetra todas as
suas análises. Por isso, não é possível - ao contrário do que muitos
imaginam - proceder à inversão materialista da filosofia hegeliana
limitando-se à simples incorporação das exposições concretas de
Hegel, colocando no lugar do idealismo o materialismo, substituin­
do o sujeito-objeto idêntico pela teoria do reflexo etc. Ao contrário,
há que considerar claramente que esta contradição básica da dialética
idealista hegeliana (a contradição entre sistema e método) influi
profundamente em toda análise concreta de Hegel. Mesmo quando
Hegel apreende profunda e corretamente conexões concretas, de­
vemos tomar suas exposições com o maior espírito crítico, já que
também elas estão penetradas pela referida contradição básica. A
tarefa da inversão materialista e do exame crítico da dialética idealista,
portanto, tem que incidir sobre a investigação de cada problema
particular, de cada detalhe da estética. Em sua análise da lógica hege­
liana, Lenin ofereceu aos marxistas o modelo metodológico para se
proceder a esta inversão materialista. 12 No que se refere ao conjunto e
aos aspectos de detalhe da estética, esta tarefa ainda está por se fazer.
É em razão da contradição básica da dialética idealista que
Hegel não pode determinar de modo concreto e consequente o lugar
da estética entre as ciências filosóficas. Para a dialética materialista,
60 • GYORGY LUKÁCS

não existe quanto a isto nenhuma dificuldade metodológica insupe­


rável, já que, para ela, o reflexo estético é um caso especial do reflexo
em geral. A tarefa da estética marxista consiste em reconhecer rigoro­
samente as categorias do estético, formulá-las e determinar cientifi­
camente o seu lugar na teoria geral do reflexo. Os artigos de Stalin so­
bre a linguística representam, também para esta questão, uma impor­
tante contribuição metodológica preparatória. 13
O problema se apresenta de forma muito diversa para a dialé­
tica idealista hegeliana. Em sua polêmica contra Kant, Hegel combate
corretamente os princípios do idealismo subjetivo, princípios que,
em estética, levam ao formalismo e ao agnosticismo. Ele também
tem razão, sempre em oposição a Kant, quando critica resolutamente
a rígida separação entre forma e conteúdo, ou seja, a concepção kan­
tiana que pretende ver os elementos do estético exclusivamente na
forma. Já no terreno da lógica, Hegel estabelece uma interação, uma
constante e recíproca mutação entre conteúdo e forma. Este é um
enorme avanço em relação a Kant; mas a lógica idealista de Hegel não
é capaz de determinar de modo consequente a prioridade do conteú­
do. Em sua estética, Hegel progride mais do que nas determinações
abstratas da lógica; com frequência, vê claramente que, em todo
fenômeno estético, o conteúdo concreto determina a forma estética
concreta - e aplica esta visão em suas análises. Na história da estética,
esta é uma conquista cuja importância é ainda maior na medida em
que Hegel concebe o conteúdo sempre de modo histórico, ou seja,
como conteúdo necessário de um determinado período histórico ou
de uma determinada fase de desenvolvimento. Aliás, Hegel oferece
mais de uma exposição na qual o caráter social dessa historicidade
aparece mais ou menos nitidamente, de modo que, em numerosas
análises da sua estética, p9demos encontrar a dialética concreta entre
conteúdo social e forma estética. Este é, sem dúvida, um momento
progressista do método dialético de Hegel.
No centro da estética hegeliana, portanto, está o conteúdo e
não a forma. Esta afirmação metodológica relaciona-se intimamente
ao esforço de Hegel para eliminar a dicotomia entre conhecimento
da verdade e mundo da representação artística, dicotomia que é a
maior debilidade e o aspecto mais reacionário de toda estética for-
A ESTÉTICA DE H EGEL • 61

malista, a começar pela kantiana. Kant se esforçou arduamente para


evitar, em sua estética, essas consequências extremas, relacionando
organicamente a estética a outros âmbitos da atividade humana
(como a moral); mas a tendência elementar do seu método impediu­
º de coroar com êxito tal esforço. Por isso, e contra a própria orien­

tação de Kant, os neokantianos acabaram por consumar o isolamento


da estética, até fundamentar com ela o princípio da art pour l 'art.
Como vimos, a estética hegeliana, que é uma estética do conteúdo,
rompe radicalmente com essa concepção. Neste campo, Hegel
procede como os iluministas, que jamais se resignaram a construir
ou admitir a possibilidade de uma contraposição excludente entre a
verdade e a beleza. Na medida em que, na sua estética, ele concretizou
historicamente e até mesmo socialmente o conteúdo, depois de afir­
mar sua prioridade, Hegel dá continuidade à estética do iluminismo,
enriquecendo-a com as perspectivas da dialética histórica.
Nem Hegel nem os iluministas souberam resolver, de modo
consequente, a questão da conexão entre verdade e beleza. Somente a
dialética materialista do reflexo é capaz de fazê-lo. Na filosofia do
iluminismo, a relação entre verdade e beleza e sua identidade última
era habitualmente formulada como se o estético, o belo, fosse apenas
uma forma subordinada primitiva, um estádio prévio ao conheci­
mento científico e filosófico da verdade. Ora, com esta formulação, a
estética e todo o âmbito da arte perdem sua autonomia e seu valor
específico, por mais que os grandes pensadores iluministas desejas­
sem exatamente o contrário.
A questão não pode, absolutamente, ser resolvida pela filosofia
pré-marxista. Já conhecemos os dois falsos extremos a que ela chega
diante dessa questão: um, a autonomia da estética, com base no for­
malismo subjetivo kantiano; outro, a dissolução da estética na teoria
geral do conhecimento, como fase meramente preparatória, embora
necessária, do conhecimento filosófico.
Hegel esforça-se arduamente para superar esses falsos extre­
mos. O fato de que ponha o conteúdo histórico no centro de sua con­
sideração é já um passo à frente neste terreno. Ele se beneficia neste
caso do avanço da sua metodologia geral, da sua lógica, que consiste
em estabelecer uma conexão dialética entre o fenômeno e a essência,
62 • GYORGY LuKAcs

superando a rígida contraposição entre um e outra, típica de todas as


filosofias de natureza metafísica, inclusive o velho materialismo.
Hegel vê assim a especificidade do estético no fato de que nele a essên­
cia aparece adequadamente no fenômeno, ou seja, de que, no campo
estético, a conexão entre fenômeno e essência não é de natureza con­
ceitua!, mas está dada imediatamente aos nossos sentidos; ou seja,
para usar a própria expressão de Hegel, no fato de que a essência
transparece no fenômeno. Hegel percebeu, assim, momentos muito
importantes da peculiaridade do estético. Mas o aprofundamento
dessas intuições e sua determinação como peculiaridade do reflexo
estético não eram possíveis sem o recurso ao método dialético mate­
rialista do reflexo.
Como observamos, no lugar do reflexo, Hegel colocou aquele
processo dialético idealisticamente mistificado que, a seu juízo, de­
semboca na identidade de sujeito e objeto. Naturalmente, ele incluiu
em seu sistema as teses, ricas em intuições corretas, acerca das pe­
culiaridades do estético. A estética é concebida como uma fase do
processo de busca e de encontro de si mesmo do sujeito-objeto idên­
tico. Este encontro consigo mesmo se produz no estágio mais alto da
consciência, ou seja, no nível - conforme a terminologia de Hegel -
do Espírito Absoluto. Neste nível, o filósofo distingue três estágios:
arte, religião e filosofia. Hegel vincula estas três fases históricas do
desenvolvimento do Espírito com três graus estruturais da sua lógica,
ou seja, a intuição, a representação e o conceito. A estética significa a
manifestação do Espírito Absoluto no plano da intuição; a religião,
no da representação; a filosofia, no do conceito. (Já mencionamos a
contradição que se estabelece entre o método e o sistema de Hegel
sempre que se queira levar sua filosofia às extremas consequências. )
Hegel, portanto, . pretende relacionar essa construção lógica
com a estrutura histórica do seu sistema, de tal modo que cada perío­
do de manifestação do Espírito seja vinculado a determinados pe­
ríodos históric:os; com isso, ele quer mostrar que a evolução do
Espírito, da intuição ao conceito, é um processo ao mesmo tempo fi­
losófico e histórico. Assim, por exemplo, o período da arte grega
significa para Hegel a forma de manifestação do Espírito no nível da
intuição; desse modo, a arte aparece como a forma fenomênica ade-
A ESTÉTICA DE H EGEL + 63

quada daquela determinada fase do desenvolvimento do Espírito. De


modo análogo se apresenta a relação entre a representação e a religião
cristã na Idade Média, bem como entre o conceito e a filosofia no
tempo de Hegel. Esta construção, tão refinada quanto artificiosa,
coloca o problema estético insolúvel da filosofia hegeliana: como se
explicam a existência e o caráter da arte antes e depois do "período
estético" propriamente dito ( isto é, o da arte grega) ? Hegel caracteriza
a arte oriental como a arte na qual o Espírito ainda não alcançou o
nível da intuição; e a arte medieval e moderna lhe aparece como
aquela na qual o Espírito já ultrapassou o nível da intuição. Em suas
análises de detalhe, Hegel oferece magníficas contribuições à pro­
blemática social - e, em consequência, conteudística e formal - da
arte oriental e, sobretudo, da arte moderna. Mas o brilho de tais
análises não elimina o caráter artificioso e contraditório de todo o
sistema.
Tenho que me limitar aqui a destacar dois momentos prin­
cipais. Primeiro: às vezes, Hegel se vê obrigado a concluir que o Espí­
rito já ultrapassou a arte e esta perdeu seu sentido filosófico; se esta
sua argumentação for levada até o fim, está encerrado o período da
arte. Felizmente para a estética hegeliana, o filósofo não impôs con­
sequentemente este ponto de vista à observação dos fenômenos con­
cretos nem à sua avaliação estética. Segundo: apesar de tudo, Hegel
não conseguiu fundamentar filosoficamente a autonomia da esté­
tica. Se consideramos a evolução do Espírito no sentido hegeliano, a
arte é, no sistema de Hegel, apenas um estágio preparatório do
adequado conhecimento da realidade, do conhecimento filosófico,
do nascimento do sujeito-objeto idêntico. A estética não pode, por­
tanto, nem mesmo em Hegel, superar a concepção ( expressa já por
Leibniz) de que a arte, estágio preliminar do conhecimento, é uma
forma fenomênica inadequada à essência da realidade, uma forma
imperfeita de conhecimento, e não um modo autônomo do correto
reflexo da realidade. É impossível harmonizar esta concepção com a
evidente autonomia, ainda que relativa, do mundo da arte na esfera
das atividades humanas. Por mais que Hegel supere os seus prede­
cessores na determinação do estético, das diversas categorias esté­
ticas e na análise dos fenômenos, nesta questão decisiva ele não
64 + GYôRGY LuKAcs

pôde superar a contradição que foi insolúvel também para esses


predecessores.
É dessas contradições básicas que decorrem, na estética hege­
liana, todos os aspectos construídos com rigidez e com escassa fun­
damentação. Apoiado em seu imenso saber e nos seus grandes dotes
de observação, Hegel pôde ver mais claramente do que todos os seus
predecessores a necessidade da transformação histórica de todos os
fenômenos estéticos. Claro que, antes dele, outros autores também
observaram essa necessidade. Mas, com exceção de Vico e de alguns
pensadores posteriores a Kant, as transformações foram observadas
apenas empiricamente, sem qualquer tentativa para conectá-las filo­
soficamente com as leis que regem o processo histórico. Um dos
maiores méritos da estética hegeliana consiste precisamente na ten­
tativa de historicizar as categorias básicas da estética. Por um lado,
Hegel reconhece que todo estilo tem por trás de si a estrutura da for­
ma, surgida do conteúdo social, e é histórico por sua essência e não
por sua mera exterioridade. Por isso, Hegel é capaz de oferecer análi­
ses profundas, corretas em muitos aspectos, de problemas básicos do
conteúdo e da estrutura dos estilos grego, romano, oriental, medie­
val etc. Por outro lado, Hegel também reconhece que os gêneros
artísticos não são simples abstrações de natureza empírica, nem di­
ferenciações lógicas de uma ideia platônica, mas produtos do proces­
so histórico, na medida em que são as expressões mais adequadas de
um sentimento vital determinado, nascido de concretas situações
histórico-sociais. De tudo isso decorre que, embora seja possível e até
teoricamente necessário estabelecer um sistema das divers ás artes e
gêneros artísticos, tais artes e tais gêneros não só se apresentam diver­
samente nos distintos períodos, mas cada período possui um ou al­
guns gêneros artísticos dominantes, que correspondem à situação
histórica de tal per.iodo. Sobre isso, Hegel chega mesmo a observar e
fixar as modificações qualitativas, historicamente determinadas, que
se produzem no interior dos gêneros artísticos e que, em ocasiões
concretas, alcançam um grau de intensidade tal que engendram um
gênero artístico essencialmente novo.
Quanto a isto, Hegel foi o primeiro a identificar as novas pro­
priedades de gênero do romance moderno e a conexão delas com as
A ESTÉTICA DE H EGEL • 65

peculiaridades da sociedade burguesa; ao mesmo tempo, observou


que, substantivamente, esse novo gênero artístico é uma renovação
do velho epos nas condições, basicamente diferentes, da sociedade
burguesa. 14 É com profundidade semelhante que Hegel analisa a
unidade fundamental e a diversidade qualitativa do antigo drama gre­
go e do drama shakespeariano. Com essas características, a estética
hegeliana põe, de fato, o fundamento para uma estética científica,
indissoluvelmente teórica e histórica.
Mas, em consequência das contradições entre método e siste­
ma, já assinaladas, Hegel não pôde levar à prática de modo coerente -
dotando-a de uma forma conceituai correspondente aos fatos da
história da arte - essa concepção genial: muito frequentemente, em
razão de seu sistema, viu-se obrigado a elaborar construções vazias e
rígidas. Assim, por exemplo, apresenta a arte oriental como o perío­
do autêntico da arquitetura, donde deriva uma subestimação teórica
do desenvolvimento arquitetônico dos gregos até o presente. E quan­
do, em seguida, caracteriza a escultura como forma dominante da
arte grega e a pintura e a música como formas dominantes da arte ro­
mântica ( "arte romântica", para Hegel, é a arte tanto da Idade Média
quanto da Idade Moderna), ele expressa sem dúvida uma ideia
profunda e verdadeira, muito fecunda para a estética posterior, mas
que, tal como a desenvolve na sua estética, está saturada de constru­
ções esquemáticas e confusas. O mesmo se passa com a afirmação
segundo a qual a sátira é a arte dominante na literatura romana tardia:
a ideia contém elementos de uma observação correta, mas se torna
exorbitante quando capitula ante as exigências articuladoras do seu
sistema artificial e descura as grandes realizações da sátira moderna.
Enfim, há que destacar um problema específico da arte: a sua
relação com a natureza, a questão do chamado belo natural. Tanto o
materialismo mecanicista quanto o idealismo subjetivo são incapa­
zes de resolver este problema porque contrapõem, como sendo abso­
luta e reciprocamente excludentes, a natureza totalmente indepen­
dente do homem e a atividade artística, entendida de modo subjeti­
vista. Tal contraposição gera dificuldades insuperáveis. Os problemas
da conexão entre as duas instâncias permanecem insolúveis, quer os
estetas pensem que a natureza está sempre esteticamente acima da
66 • GvORGY LuKAcs

sua reprodução humana pela arte (Diderot), quer pensem que a ar­
te, o belo, é produto exclusivo do sujeito, da consciência (Kant). Na
estética hegeliana aparece a ideia, afirmada com ênfase, segundo a
qual a natureza que figura como objeto da estética - a natureza na
qual se pode apresentar o belo natural - é um campo de interação en­
tre a natureza e a sociedade. No entanto, dada sua atitude geral
idealista, Hegel não pode explorar dialeticamente até o fim esta ideia
fecunda, caindo muitas vezes no desprezo (próprio do idealismo) da
natureza e, assim, apesar de algumas intuições geniais, deixa o pro­
blema sem solução.
Também neste caso, somente o marxismo pode resolver o pro­
blema. Reconhecendo a interação entre sociedade e natureza e fun­
damentando-a economicamente, Marx retirou o problema do terre­
no das simples intuições e possibilitou o seu tratamento científico
também pela estética. Uma solução definitiva foi propiciada pelos
artigos de Stalin sobre linguística, graças à tese de que a superestrutura
( e, logo, também a arte) não se vincula diretamente à produção e,
com isso, à natureza, mas está exclusivamente mediada pela base,
pelas relações de produção. Aqui adquire expressão clara o princípio
científico com cuja ajuda se pode resolver teoricamente o problema
básico da estética, reiterado desde os seus inícios.

4.

Somente Marx e Engels souberam realizar a inversão materia­


lista da estética. Os hegelianos, enquanto idealistas, puderam apenas
exagerar as deficiências do sistema de Hegel, ora fazendo retroceder
seu idealismo objetivo ao idealismo subjetivo, ora debilitando e tor­
nando mais grosseiras as contradições entre seu método e seu sis­
tema. E, quando dirige a Hegel uma crítica correta no plano geral,
Feuerbach o faz sempre do ponto de vista epistemológico do velho
materialismo mecanicista, o que o impede de operar efetivas e con­
cretas correções, que impliquem uma real superação das contradi­
ções. A crítica de Engels à filosofia de Feuerbach, especialmente à sua
filosofia da religião e à sua ética, 15 vale perfeitamente também para
a crítica feuerbachiana da estética de Hegel e, sobretudo, para suas
tentativas de desenvolver ulteriormente esta estética.
A ESTÉTICA DE H EGEL • 67

No entanto, mesmo que constatemos que a dissolução do he­


gelianismo - quer com os discípulos e críticos idealistas de Hegel,
quer com os seus opositores materialistas mecanicistas - não foi ca­
paz de superar as deficiências elementares da estética hegeliana, isto
não significa que tal dissolução tenha sido, neste campo, um movi­
mento carente de importância. Ao contrário: nos anos que vão de
1 830 a 1 850, na Alemanha e especialmente entre os democratas re­
volucionários russos ( Bielinski, Tchernichevski e Dobroliubov), a
crítica da estética hegeliana e a utilização dos seus elementos mais fe­
cundos desempenhou um papel relevante.
Na Alemanha, o maior poeta desse período, Heinrich Heine,
interessou-se muito pela crítica, reavaliação e desenvolvimento da
,
estética de Hegel. Para Heine, a grande questão consistia em superar
a concepção de Hegel segundo a qual o desenvolvimento universal da
arte já estava concluído no presente, tendo chegado ao seu termo
final. Heine designa como "período artístico" aquele que Hegel con­
sidera a culminação última da história da arte (o período goethia­
no) . E, embora reconheça que o "período artístico" chegou certamen­
te a seu final - em função de acontecimentos históricos, ou seja,
do desenvolvimento revolucionário iniciado pela Revolução de
Julho16 -, Heine não considera que isto sinalize o final da história da
arte, mas, ao contrário, que represente o início de um novo período,
o período da arte revolucionária. (Ao mesmo tempo que Heine,
Bielinski interpreta de modo análogo a história da literatura russa,
vendo em Pushkin o fim de um período e em Gogol o começo de um
novo período, o do realismo crítico. Bielinski supera Heine na medi­
da em que coloca o realismo crítico-social no centro da estética desse
período, percepção que Heine não pôde ter em consequência do
atraso alemão . )
Na Alemanha, a crítica d e esquerda à estética hegeliana cul­
mina com os trabalhos de Bruno Bauer; nesta época, Bauer mantém
estreita amizade com o jovem Marx, então idealista em filosofia, e
colabora eventualmente com ele. O jovem Bauer, representante ex­
tremo da ala esquerda hegeliana, esforça-se por elaborar os aspectos
progressistas da filosofia do mestre, mas os concebia, erroneamente,
como a autêntica filosofia de Hegel, oculta, silenciada e "esotérica",
vendo nos seus aspectos reacionários apenas uma adaptação externa
68 • GYORGY LUKÁCS

à situação alemã. (Pouco depois, em 1 843, Marx se oporia radical­


mente a esta interpretação da filosofia hegeliana. ) Bruno Bauer via
em Hegel um ateu, um inimigo do cristianismo e um adepto e pro­
pagandista da Revolução Francesa. No campo estético, utilizava os
vigorosos ataques de Hegel ao romantismo reacionário da sua época
e editou um panfleto com uma série de sentenças de Hegel a este
respeito. O jovem Marx, nesta altura, apoiava a atividade de Bruno
Bauer. Infelizmente, desse período da evolução de Marx, no que to­
ca a obras de caráter estético, só se conservam meros projetos (Sobre a
arte religiosa, Sobre o romantismo, de 1 84 1 - 1 842 ) ; no entanto, as nu­
merosas anotações e observações sobre livros de estética e histórias
da arte revelam como ele levava a sério estes projetos.
Os democratas revolucionários russos desenvolveram a sua
luta pela renovação da estética em um nível bastante superior ao
de Heine, para não falar de Bruno Bauer. Não nos é possível, aqui,
apresentar detalhadamente a tendência positiva da sua filosofia, nem
os seus limites, derivados do baixo desenvolvimento do movimento
revolucionário à época. Basta-nos sublinhar que esses autores per­
correram o caminho que vai do idealismo ao materialismo e que, no
tocante à concepção filosófica do materialismo, frequentemente
avançaram muito mais do que Feuerbach na aproximação à dialética
e na extração de consequências revolucionárias. Este progresso, é
certo, manifesta-se mais nas concretas análises estéticas feitas por
esses autores do que em suas teorias do conhecimento ou em suas
elaborações de princípios gerais da estética: neste caso, naturalmente,
como todos os pensadores que precederam Marx, eles se encontram
mais próximos ao velho materialismo.
É no campo das análises estéticas concretas que mais vigoro­
samente se manifesta essa aproximação à dialética materialista; neste
domínio, pode-se dizer deles, e com mais fundamento, o que Engels
afirmou sobre Diderot.17 É neste sentido que criticam a estética he­
geliana e especialmente os seus seguidores do idealismo de direita e
do idealismo subjetivo (crítica de Vischer18 por Tchernichevski) . Mas
a sua argúcia dialética aparece sobretudo na colocação de concretos
problemas literários e na sua solução. Já mencionamos a importan­
te periodização introduzida por Bielinski. Os democratas revolu-
A ESTÉTICA DE H EGEL • 69

cionários russos foram os primeiros a elaborar os princípios básicos


do realismo crítico, lançando assim os fundamentos teóricos de uma
correta avaliação da literatura e da arte dos séculos XVIII e XIX. Esta
é sua grande importância no terreno teórico; com ela, eles superaram
Hegel, que apenas vislumbrara problemas desta natureza, e também
Feuerbach, que, por causa da perspectiva abstrata da sua crítica a
Hegel, não foi igualmente capaz de descobrir e formular teoricamen­
te os novos problemas da época.
Estes democratas revolucionários eram, naturalmente, a ala
esquerda dos pensadores influenciados, direta ou indiretamente, por
Hegel. A maior parte dos estetas seguidores filosóficos de Hegel e os
continuadores idealistas das suas doutrinas situavam-se no campo
liberal ( F. T. Vischer, Rosenkranz, Ruge, Rõtscher, Hotho etc. ) . Na
Alemanha anterior a 1 848, quando a questão central era a preparação
da revolução burguesa, esses filósofos expressaram - mesmo que, em
numerosas questões, tenham mais retrocedido do que avançado em
relação a Hegel - tendências relativamente progressistas em alguns
aspectos. Ainda que de modo liberal, inseguro, ambíguo, eles pro­
curaram descobrir filosoficamente as novas características particu­
lares da moderna arte burguesa e formulá-las como novas categorias
estéticas (a estética do feio em Ruge, Rosenkranz etc. ) .
Porém, com a traição d a burguesia à sua própria revolução, em
1 848, os traços reacionários da estética dos hegelianos se desenvolvem
plenamente. A dialética do processo social se dilui até derivar num
positivismo trivial; a fundamentação epistemológica da estética re­
trocede de Hegel a Kant, ao idealismo subjetivo e, inclusive, além
dele, chegando ao misticismo irracionalista. Esta evolução constata­
se do modo mais claro no representante mais célebre desta tendên­
cia, Vischer, que iniciou sua trajetória como um hegeliano - dos cha­
mados ortodoxos - e foi, em seu último período, um precursor da
moderna estética irracionalista fundada na "experiência vivida"
[Erlebnis] .
A partir de 1 848, a filosofia se caracteriza pela completa mar­
ginalização de Hegel, tratado, conforme a expressão de Marx, como
um "cão morto". 19 Na filosofia - e, portanto, na estética -, imperam
Kant e Schopenhauer. O posterior movimento de renovação hegelia-
70 • GYôRGY LuKAcs

na, primeiro na Inglaterra, Itália etc. e depois na Alemanha, já no


período imperialista, foi, desde o seu início, decididamente reacio­
nário. Basta aludir a estetas tão conhecidos como Taine e, sobretudo,
Croce, que certamente foram influenciados por Hegel. O hegelianis­
mo do período imperialista manifesta ainda mais vigorosamente
essas tendências reacionárias. Glockner2º - que, dentre todos, foi
quem mais se ocupou da estética - rebaixa a estética de Hegel ao nível
reacionário de Vischer, que encerrou a sua trajetória como irraciona­
lista e defensor de Bismarck.

5.

Somente por meio da crítica e da inversão materialista é pos­


sível preservar o núcleo vivo e fecundo da estética hegeliana, bem
como aproveitar, no ulterior desenvolvimento, tudo o que nela é pro­
gressista para a fundamentação desta ciência. Marx e Engels, durante
toda a sua vida, ocuparam-se dos problemas da literatura e da arte,
mas nunca tiveram ocasião de reunir sistematicamente suas concep­
ções, nem de fazer uma crítica geral da estética hegeliana. (Sabe-se
que Marx pretendia escrever um livro sobre Balzac, que nunca pas­
sou de projeto e que nem sequer foi esboçado. ) Apesar disso, temos os
princípios fundamentais da inversão materialista neste domínio,
na forma de afirmações de Marx e Engels sobre algumas questões
concretas.
Marx e Engels, naturalmente, realizam a crítica da estética
hegeliana em conexão com a crítica geral da filosofia de Hegel. Já o
jovem Marx, na sua crítica à Fenomenologia do Espírito, chama a
atenção para o duplo e básico erro de Hegel: o "idealismo acrítico" e o
"positivismo acrítico". Nesta mesma investigação, Marx ressalta,
como indicamos, o mérito de Hegel, consistente em ver no trabalho
humano a base da autoprodução do homem, do seu fazer-se homem.
Ao mesmo tempo, Marx apreende e critica energicamente as limi­
tações idealistas desta concepção e as deformações delas derivadas:
"O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstra­
tamente espiritual".21 Por isto, em Hegel, toda conexão aparece inver-
A EST1'TICA DE H EGEL + 71

tida - mesmo quando, genialmente, ele intui a verdade. Hegel, mais


do que todos os estetas anteriores, esforça-se decididamente para fun­
damentar filosoficamente a objetividade das categorias estéticas. No
entanto, até sua teoria da prioridade do conteúdo é somente uma
afirmação da autorreflexão do Espírito Absoluto - não é o reflexo da
realidade objetiva, independente da nossa consciência, na consciên­
cia do homem em seu processo histórico. Assim, Hegel reduz a mera
aparência tanto a objetividade real quanto o processo histórico. Marx
afirma:
Uma vez que o Espírito Absoluto, com efeito, atinge a
consciência no filósofo apenas post festum, na condição de
espírito criador universal, sua fabricação da história existe
apenas na consciência, na opinião e na representação do
filósofo, apenas na imaginação especulativa. 22

Somente a dialética materialista - que, à diferença de Hegel,


faz do trabalho material real, não do trabalho abstratamente espiri­
tual, a base da humanização e da evolução do homem - pode expres­
sar correta e cientificamente a realidade também no campo estético.
Somente esta filosofia pode captar corretamente a objetividade social
de cada estado do mundo, o papel da atividade social do homem na
gênese e no desenvolvimento da arte, sem criar uma separação falsa e
rígida entre a relação do homem com a natureza e sua atividade social.
Somente a concepção materialista do trabalho pode oferecer uma
solução materialista às dificuldades insuperáveis que se apresenta­
ram mais de uma vez a Hegel, no contexto das suas geniais intuições.
E pode fazê-lo porque a concepção marxista do trabalho apreende o
intercâmbio da sociedade com a natureza, isto é, tanto a conexão das
categorias do trabalho com seus pressupostos naturais quanto a mo­
dificação desses pressupostos em relação com o desenvolvimento so­
cial do trabalho.
Na medida em que Marx concebe dialeticamente a arte como
reflexo da realidade objetiva, são dissolvidos todos os pseudopro­
blemas e todas as mistificações que estão na base do idealismo hege­
liano. A relação das categorias estéticas com a realidade histórica,
bem como a dialética de absoluto e relativo que aqui se instaura,
72 • GYORGY LUKÁCS

faz-se em Marx realmente concreta e viva, liberada de toda rigidez e


artificialidade idealista. Vamos nos limitar a um exemplo: a con­
cepção dialética da arte ou do gênero artístico dominante em cada
período. Vimos que, nesta questão, Hegel se vê frequentemente num
beco sem saída porque vincula, rígida e artificialmente, um determi­
nado fenômeno a um determinado período, empobrecendo assim a
riqueza do mundo histórico; é o que ocorre quando considera a
arquitetura como a forma típica da arte oriental ou quando aponta o
romance como o gênero artístico dominante no moderno período
burguês. Hegel, por força do seu sistema, é obrigado a limitar o
alcance do gênero artístico predominante exclusivamente ao período
em que surgiu e que o fez predominante. Este é seu procedimento até
mesmo quando vê no romance o paralelo moderno da antiga epopeia
e o produto da épica cavalheiresca medieval. Marx e Engels, ao con­
trário, analisam também, de modo concreto, a necessidade social que
faz com que, nas diversas épocas, surjam os precursores imperfeitos
do romance, os quais, no entanto e com a mesma necessidade social,
não podem alcançar o pleno desenvolvimento deste gênero artístico.
Engels se ocupa, por exemplo, dos romances da Antiguidade tardia,
nos quais o amor idílico só podia ter lugar na periferia da sociedade
oficial e cujos personagens eram exclusivamente escravos, os quais,
portanto, não tinham direito de participar da vida social, da vida do
cidadão livre. 23 Com esta observação, Engels mostra, por um lado,
que os embriões do romance surgem na periferia da sociedade anti­
ga, nascem dos seus fenômenos de dissolução; e, por outro, percebe
que, em tais condições, só podiam tratar-se mesmo de embriões. Tais
constatações, possibilitadas pelo materialismo dialético, rompem
com a rigidez idealista presente na teoria histórica hegeliana da arte.
Mas, com elas, Engels também refuta antecipadamente as modernas
teorias do sociologismo vulgar sobre os gêneros literários e artísticos,
que equiparam de modo abstrato e formalista os embriões de gêneros
às suas manifestações clássicas, desembocando assim num relati­
vismo histórico. A teoria marxista da sociedade e da história, por­
tanto, concretiza a relação entre a arte, sua base social e as transfor­
mações desta base. Enquanto em Hegel, sobre isso, pode-se encontrar
apenas uma intuição parcial ( às vezes, genial) das verdadeiras re-
A ESTÉTICA DE H EGEL • 73

lações, Marx e Engels podem explicá-las com uma teoria cientifica­


mente fundada.
A concepção hegeliana idealista da história não é apenas mais
pobre, mais abstrata e mais rígida do que a realidade, mesmo nos
casos em que Hegel intuiu as conexões reais; além disso, leva com
frequência a uma deformação da realidade, quase sempre num
sentido reacionário. Também aqui nos limitaremos a um exemplo
muito simples. Hegel viu na liberdade de ação dos homens, tal como
existiu especialmente no primeiro período da Antiguidade, um fe­
nômeno social favorável à arte. Mas, em decorrência da exacerbação
idealista desta ideia, ele faz de figuras do passado, como Gõtz von
Berlichingen ou Franz von Sickingen,24 "heróis" de tipo antigo, o que
o leva a elogiar o jovem Goethe pela sua escolha temática. Marx
também considera que a eleição desses temas por Goethe é acertada e
a defende contra as afirmações feitas por Lassalle, em nome de uma
rígida, abstrata e suposta apologia do progresso.25 Entretanto, em Gõtz
von Berlichingen, Marx obviamente não vê um "herói" clássico, mas
um "j ovem inescrupuloso'', representante de uma classe social ( a
cavalheiresca) condenada a o desaparecimento. Ambos o s juízos, o de
Hegel e o de Lassalle, são, porque idealistas, unilaterais e rígidos,
ainda que a percepção histórica de Hegel seja muito mais aguda do
que a de Lassalle. Mas o primeiro a apreender a complicada deter­
minação do processo histórico foi o dialético materialista Marx.
Para ele, não há dúvida de que Gõtz von Berlichingen, precisamente
por sua baixeza numa importante situação histórica, converte-se no
representante típico da sua classe; e Goethe, mesmo não tendo plena
consciência dessa conexão histórica, representou-a genialmente.
Em face de situações deste tipo, a dialética idealista revela-se
inteiramente desarmada. Como Hegel considera que o dinamismo
do processo artístico tem suas raízes na dialética interna do movi­
mento do "Espírito", é natural que, para ele, os grandes artistas te­
nham que expressar necessária, imediata e adequadamente o sentido
dessa evolução. A dialética materialista de Marx e Engels, ao contrá­
rio, vê na arte uma forma específica do reflexo da realidade objetiva.
Portanto, este reflexo pode ocorrer - como acabamos de ver no caso
de Goethe - por vias distintas e alcançar objetivos diferentes, supe-
74 + GYôRGY LuKAcs

riores aos imediatamente presentes nas representações do próprio


artista. Recordemos a excelente definição da arte de Balzac oferecida
por Engels:
O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as pró­
prias simpatias de classe e os seus preconceitos políticos,
o fato de ter visto o fim inelutável de seus estimados aris­
tocratas e de os ter descrito como não merecendo melhor
sorte e o fato ainda de ter visto os verdadeiros homens do
futuro no único sítio onde, na época, podiam ser encontra­
dos, tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos
do realismo e uma das características mais notáveis do
velho Balzac. 26

Somente a dialética materialista pode, no âmbito da arte, da


grande arte, penetrar tão profundamente na identificação da estru­
tura da realidade. E pode fazê-lo porque a teoria marxiana da luta de
classes é, ao mesmo tempo, a teoria do desenvolvimento contraditó­
rio da humanidade. Ainda que o método de Hegel situe corretamente
a contradição no centro de toda análise filosófica, ainda que seu gê­
nio consiga às vezes perceber realmente as conexões objetivas dos
processos, ele não soube captar a sua verdadeira dialética. Por isso,
muitos dos principais problemas da evolução da arte foram para ele
insolúveis. Também aqui vamos nos limitar a um só exemplo. Vários
autores, com destaque para Plekhanov, elogiam muito, e com razão, a
análise hegeliana da pintura holandesa do século XVII, presente na
Estética, considerando-a uma correta explicação histórico-social de
novas e importantes peculiaridades estilísticas. Mas é característico
dos limites da estética de Hegel que ele só consiga compreender e
valorizar os pintores que expressam de modo direto e sem problemas
aquele vigoroso florescimento econômico, político e cultural no seio
da burguesia. Contudo, estas mesmas relações sociais produziram,
como figura trágica, o maior pintor holandês, ou seja, Rembrandt; e
foram tais relações que formaram o fundamento do caráter trágico da
arte deste grande pintor. A dialética idealista hegeliana não era nem
podia ser capaz de compreender esses fatos.
Esta inversão metodológica e conteudístico-social de todos
os problemas concretos da estética hegeliana se manifesta também
A ESTÉTICA DE H EGEL + 75

quando Marx está mais ou menos de acordo com a formulação e a


avaliação estéticas de Hegel. A arte da Antiguidade, especialmente a
épica de Homero, é também para Marx, segundo suas próprias
palavras, "norma e modelo inalcançáveis".27 Mas somente porque
Marx e Engels descobriram as leis da sociedade gentílica e de sua
dissolução é que a arte grega, como expressão da "infância normal",
tem localizada a sua inserção histórica real na evolução da huma­
nidade. E Marx e Engels compreenderam que este período perten­
ce, irremediavelmente, ao passado. Mas disto não se segue, como
ocorre em Hegel, nenhum pessimismo diante da arte do presente e
do futuro. Igualmente não se segue a prescrição para imitar, for­
malista e academicamente, a arte antiga, como ocorre entre a maio­
ria dos seguidores idealistas de Hegel; nem, menos ainda, tem lugar a
avaliação da arte a partir da diferenciação ou do desvio das normas
antigas, como é o caso na estética e na prática artística da burguesia
decadente. A perspectiva socialista da evolução da humanidade, o
conhecimento de que a luta de classes leva inevitavelmente à dita­
dura do proletariado, ilumina corretamente, pela primeira vez, as
perspectivas do passado, do presente e do futuro da evolução da arte.
A correta avaliação da grande arte do passado - ou seja, da
Antiguidade, de Shakespeare etc. - depende intimamente da correta
avaliação do presente. Vimos que Hegel apreendeu com profundi­
dade a natureza problemática da moderna arte burguesa. Marx
sublinhou ainda mais energicamente este traço problemático,
dando-lhe uma explicação histórico-materialista: "Por exemplo, a
produção capitalista é hostil a certos setores da produção intelectual,
como a arte e a poesia". 28
Em Hegel, porém, o que se segue desta avaliação, do reconhe­
cimento dessa problemática, é que o "Espírito" já superou o nível do
estético e que, portanto, qualquer florescimento real da arte se tornou
definitivamente impossível. Marx, em troca, vê claramente que a der­
rubada do capitalismo implica necessariamente um novo e poderoso
impulso a toda cultura humana e, portanto, à arte. Não há dúvida
de que Marx concorda, em linhas gerais, com a valorização hegeliana
de Cervantes, Shakespeare e Goethe; mas, ao mesmo tempo, avalia
como merecedor de consideração relevante o realismo crítico so c ial
76 • GYORGY LUKÁCS

burguês, em particular Fielding, Balzac e os realistas russos, corrente


que a estética de Hegel praticamente ignora.
Aqui está em jogo algo mais do que a mera avaliação de alguns
grandes artistas. O verdadeiro sentido da concepção marxiana reside
no fato de Marx apreender, na contraditória evolução da sociedade
capitalista, a significação revolucionária da arte progressista. A
concepção hegeliana da arte deste período só podia ser resignada,
levando adiante as tendências análogas à resignação que surgem, por
exemplo, na arte do velho Goethe. Quando Marx e Engels sublinham
energicamente a importância dos grandes realistas dos séculos XVIII
e XIX, quando veem no grande realismo de Shakespeare um modelo
efetivo de representação da revolução popular, por trás de tudo isto
está a questão teórica da superação, mediante a dialética materialista,
da concepção hegeliana do "fim da história", que constitui também a
base da estética de Hegel.
Esta crítica, entretanto, implica também a superação materia­
lista da teoria hegeliana dos gêneros, a ruptura com suas limitações
idealistas. Em Hegel, por exemplo, o herói típico da tragédia é um
homem que defende, em face da velha ordem social, os princípios da
nova sociedade que avança na direção do futuro. Marx e Engels não
negam a existência de um tal tipo trágico; mas, em sua polêmica com
Lassalle, apontam a existência de outro tipo de herói trágico, referin­
do-se à tragédia das ilusões heroicas dos revolucionários do passado,
ilusões socialmente necessárias. Trata-se, por exemplo, da tragédia de
Thomas Münzer, a tragédia do revolucionário que chega cedo de­
mais. Em Hegel, como dissemos, a sátira é exclusivamente o gênero
artístico da Antiguidade decadente. Marx e Engels demonstram que a
crítica satírica das contradições, da mentira e da hipocrisia da socie­
dade burguesa - em Diderot, Balzac, Heine e Saltikov-Tchedrin -, é
grandemente característica da moderna literatura burguesa. Igual­
mente aqui, podemos verificar que uma concreta questão de avalia­
ção ou de gênero vincula-se necessariamente à concepção idealista
ou materialista dialética da evolução social; por isto mesmo, a inver­
são materialista da estética hegeliana não pode se restringir à crítica
materialista de alguns de seus princípios básicos, mas tem de envolver
todas as análises concretas de Hegel acerca de determinados estilos,
gêneros ou artistas.
A ESTÉTICA DE H EGEL + 77

Não chegamos a caracterizar aqui a inversão materialistá da


estética idealista de Hegel, mas nos limitamos a sugerir alguns de
seus traços principais. Uma verdadeira caracteri zação extrapola uma
introdução tão sucinta como esta, uma vez que demanda uma análise
exaustiva e radical, como a crítica que Lenin fez da lógica hegeliana.
Lamentavelmente, análises como esta ainda não são frequentes na
teoria marxista-leninista, mesmo que Lenin tenha oferecido a fun·­
damentação metodológica para este tipo de trabalho e mesmo que
Engels tenha exposto claramente como não se deve criticar Hegel,
caso se queira utilizar para o futuro o núcleo fecundo do seu pensa­
mento. Engels escreveu a Conrad Schmidt:
Você não deve, em nenhuma hipótese, ler Hegel [ . . . ]
querendo descobrir os paralogismos e os truques artificio­
sos que utilizou como andaimes para erguer o seu edifício.
Isso é trabalho meramente escolar. Muito mais importante
é reconhecer o verdadeiro e o genial sob a forma falsa e
o contexto artificioso. Assim, por exemplo, a transição de
uma categoria a outra ou de uma contraposição às seguin­
tes é quase sempre arbitrária. [ ... ] Mas a análise abstrata
desses procedimentos é pura perda de tempo.29

Estas indicações negativas de Engels, junto às positivas de


Lenin, podem ser muito úteis para estudar a estética de Hegel com
um correto espírito marxista.

6.

Não é casual a pobreza da literatura marxista no que se refere à


estética, especialmente a que se ocupa da relação de Marx com a
estética hegeliana. As tradições do período da Segunda Internacional
foram, também neste campo, extremamente deletérias. Para os teó­
ricos da Segunda Internacional, Hegel era efetivamente um "cão
morto". Até mesmo um marxista tão importante, tão educado este­
ticamente e tão profundo conhecedor da literatura quanto Franz
Mehring - apesar de ter feito, aqui e ali, diplomáticas e irrelevantes
observações sobre o saber universal de Hegel -, vê na estética kantiana
o trabalho teórico básico neste campo. Plekhanov estudou mais
profunda e detalhadamente a estética de Hegel, mas a sua análise não
78 + GvORGY LuKAcs

coloca as questões de princípio da crítica materialista no que diz res­


peito à estética hegeliana e à sua aplicação e não explora as suas
consequências metodológicas e teóricas. O que Lenin, sem deixar de
reconhecer seus méritos, apontou em Plekhanov no que tange à
filosofia hegeliana - ou seja, que mesmo se ocupando detalhadamen­
te de muitas questões ele nunca apreendeu os seus problemas decisi­
vos - aplica-se inteiramente à sua atitude em face da estética de Hegel.
Somente a arguta crítica exercida por Lenin e Stalin a toda a
teoria da Segunda Internacional, bem como a genialidade com que
aplicaram os princípios do marxismo ao período do imperialismo,
das guerras mundiais e da revolução proletária, possibilitaram o
desenvolvimento ulterior do marxismo também no campo da estéti­
ca. É claro que, aqui, só poderemos abordar brevemente algumas
questões particulares de todo esse amplo complexo problemático,
justamente aquelas que mais intimamente se relacionam com o
problema da estética de Hegel.
A primeira é a questão da concepção dialética do reflexo da
realidade objetiva. Lenin esclareceu que, se nos tempos de Marx, no
quadro da fundamentação e da emergência do materialismo dialé­
tico, a dialética era prioritária, no período imperialista a prioridade
consiste na acentuação do aspecto materialista da teoria e do método.
Na sua crítica demolidora do idealismo reacionário do período impe­
rialista, Lenin aperfeiçoou a teoria do reflexo e elevou-a a um nível
superior. Somente seria possível golpear mortalmente a filosofia
idealista estabelecendo claramente a diferença entre a teoria do refle­
xo própria do velho materialismo e aquela que é característica do ma­
terialismo dialético. Lenin levou a cabo este desenvolvimento espe­
cialmente no campo da epistemologia e da lógica, mas suas afirma­
ções básicas são também de importância decisiva para o ulterior de­
senvolvimento da estética na perspectiva materialista. É assim que
Lenin indica, precisamente no contexto da crítica à lógica hegeliana,
que as formas abstratas da lógica, as mais estáveis (relativamente) e
reiteradas durante milênios, como as formas silogísticas, são espécies
abstratas de reflexo da realidade. A aplicação desta tese de Lenin às
formas mais estáveis (relativamente) da arte, como, por exemplo, os
gêneros, fornece finalmente à teoria estética o seu fundamento ver-
A ESTÉTICA DE H EGEL + 79

<ladeiramente materialista. No campo da estética, Lenin aplicou este


princípio à análise de fenômenos concretos, como é o caso nos estu­
dos que escreveu sobre Tolstoi.30 Nestes, desconhecendo as páginas de
Engels que já citamos sobre o triunfo do realismo em Balzac (só
publicadas após a sua morte) , Lenin assume o mesmo ponto de vista
de princípio em relação a Tolstoi; mas, como está analisando um
escritor que viveu em condições mais avançadas da luta de classes, ele
concretiza e desenvolve a aplicação engelsiana do marxismo.
A segunda questão importante a que devemos dirigir a nossa
atenção é a que se refere ao papel da atividade do sujeito. Como já
vimos, o velho materialismo descurou esta questão, que foi recolhida
pelo idealismo subjetivo; mas este, em consequência do formalis­
mo que o acompanha, retirou da atividade o efetivo papel social do
indivíduo e, com ele, todo o conteúdo social da arte. Não é por acaso
que Kant identifica o conceito do belo com o do desinteresse. O
idealismo objetivo de Hegel, de fato, situa o conteúdo histórico e so­
cial da arte no centro das suas considerações. Mas ele se detém na
exposição objetiva do conteúdo: a atividade limita-se quase exclu­
sivamente ao processo de criação artística; e o papel social ativo da
obra de arte, o papel social da arte, se apaga ou, no melhor dos casos,
fica muito aquém da realidade. Já assinalamos que Marx e Engels
também percebem e criticam, a partir deste ponto de vista, as li­
mitações idealistas da estética hegeliana. A análise de Engels sobre a
poesia de tendência já coloca as bases da unidade orgânica insepa­
rável entre a individualidade artística do criador e a atividade social.
Nesta questão, todavia, Lenin avança além das determinações
de Engels e, ao desenvolver o marxismo, também oferece o seu real
fundamento científico. Na sua polêmica contra o objetivista burguês
Struve, o jovem Lenin define com rigor o partidarismo social de toda
autêntica descoberta filosófica de um materialista: "Por outro lado, o
materialismo inclui, por assim dizer, o elemento de partido, porque
em toda avaliação de um acontecimento, o materialista está obrigado
a considerar direta e abertamente o ponto de vista de um grupo social
determinado".31 Mas, ao mesmo tempo, o ponto de vista amplo de
Lenin não permite deduzir consequências subjetivistas dessa tomada
de posição subjetiva, aberta e determinada. Na mesma polêmica, ele
80 • GYORGY LUKÁCS

indica que o objetivismo burguês é impreciso, abstrato e imperfeito,


inclusive em sua aspiração à objetividade. Assim, portanto, quando o
materialismo· dialético exige o partidarismo, está ao mesmo tempo
apresentando como incondicionalmente necessário o reflexo mais
perfeito e objetivo:
Deste modo, o materialista é mais consequente do que
o objetivista e realiza o seu objetivismo mais profunda e
constantemente. Ele não se contenta com a alusão à neces­
sidade do processo, mas explicita qual é a formação econô­
mico-social que dá seu conteúdo a este processo, qual a
classe que determina concretamente aquela necessidade.

Lenin, nesta polêmica, não se refere diretamente à estética,


mas é perfeitamente claro que esta determinação teórica básica per­
mite criticar e resolver de modo definitivo, no sentido do materialis­
mo dialético, todas as questões da estética e, consequentemente,
aquelas postas pela estética de Hegel.

7.

Stalin desenvolveu essas doutrinas de Lenin e deu-lhes concre­


ção em face dos grandes problemas da nossa época. Não podemos
destacar aqui mais do que alguns pontos de vista teóricos básicos,
cujo conhecimento é imprescindível para estudar e criticar correta e
exitosamente a estética de Hegel no espírito do marxismo-leninismo
e aproveitar para o futuro o seu núcleo racional. Antes de tudo, há que
sublinhar as observações básicas de Stalin acerca da luta do novo con­
tra o velho como lei principal de todo processo dialético. É relevante
assinalar que, para Stalin, o novo, o que está em desenvolvimento,
importa mais do que o velho e o agonizante, inclusive quando, num
momento dado, é ainda mais débil e menos desenvolvido do que ele.
Com a ajuda deste princípio, pode-se inserir organicamente na to­
talidade do processo social a evolução da arte, a luta entre as teorias
estéticas; com ele, é possível perceber a transformação não apenas
quando se manifestam notáveis diferenças qualitativas (o drama an­
tigo e o drama shakesperiano, em Hegel), mas em todos os segmen­
tos da vida cotidiana da literatura e da arte. Deste modo, o desenvolvi-
A ESTÉTICA DE HEGEL • 81

mento d o estilo, dos gêneros artísticos, perde completamente o seu


caráter estático - de museu, por assim dizer -, puramente compara­
tivo, e se apresenta como fenômeno combativo e contraditório da so­
ciedade humana. E, por isso, não concebemos esta evolução apenas
como algo relativo ao passado, como Hegel o fez, mas como um pro­
cesso chamado a realizar o futuro da arte. Estes princípios básicos
estavam já claramente desenvolvidos em Marx e Engels, mas as
exposições de Stalin acerca da luta entre o novo e o velho concretizam
e desenvolvem também a teoria estética do marxismo-leninismo.
Igualmente marcam época os trabalhos de Stalin sobre os pro­
blemas da linguística, nos quais se afirma, com indiscutível clareza e
no espírito do marxismo, que a literatura e a arte são elementos da
superestrutura, definindo cientificamente o lugar delas no conjunto
da atividade humana. Mas, também aqui, Stalin não se limita a
estabelecer as justas conexões, mas as concretiza com extraordinário
vigor. Do ponto de vista do desenvolvimento da teoria estética, tem a
maior importância o fato de Stalin vincular inseparavelmente o
reflexo da realidade obj etiva ao caráter ativo da superestrutura,
estabelecendo que faz parte de sua essência contribuir para fortalecer
a nova base ou para destruir a antiga. Através deste caráter ativo,
adquire sua formulação científica mais elevada aquele momento que
destacamos em toda a história moderna da estética. Já aludimos às
importantes reflexões em que Lenin relaciona necessariamente a
questão da obj etividade com o problema do partidarismo . Este
desenvolvimento do marxismo alcança uma expressão mais ampla
com Stalin, que extrai todas as consequências da conexão entre
reflexo e atividade, identificando nesta última o caráter superestrutu­
ra! da superestrutura, ou seja, em nosso caso, o critério do caráter ar­
tístico da arte:
Basta que a superestrutura abandone sua função ins­
trumental, basta que ela passe da posição de defesa ativa
da sua base à posição de indiferença em face dela, a uma
posição indiferente em face das classes, para que ela perca
sua peculiaridade e deixe de ser superestrutura.32

A segunda tese básica dos estudos de Stalin sobre a linguística,


de importância decisiva para todas as questões da arte, é a que afirma
82 • GYORGY LUKÁCS

que a superestrutura liga-se à própria produção apenas de modo me­


diato, ou seja, através da base, das relações de produção:
A superestrutura não está diretamente vinculada à pro­
dução, à atividade produtiva do homem. Só se vincula a
ela indiretamente, por meio da economia, da base. Por
isso, a superestn1tura não reflete imediata nem diretamente
as modificações do nível de desenvolvimento das forças
produtivas, mas o faz segundo as transformações da base,
quando as modificações da produção já tenham se refletido
nas alterações desta última.

A estética marxista ainda não extraiu todas as consequências


dessas importantes teses. Mas está claro que, sem elas, os problemas
da estética, muito discutidos e nunca solucionados antes do surgi­
mento do marxismo, não podem ser resolvidos de modo nítido e
científico. Por exemplo: uma questão como a da beleza natural só
pode ter uma resposta científica séria a partir dessa tese de Stalin.
Ela envolve profundamente todos os problemas da estética: somen­
te agora podem ser corretamente apreendidas a modalidade que
preside a representação artística, a relação do artista com a natureza,
com o conteúdo, com a temática, com o mundo do objeto a ser repre­
sentado. É verdade que os grandes artistas e os grandes escritores sem­
pre representaram instintivamente a realidade de acordo com essa
conexão; o humanismo dos grandes escritores e dos grandes artistas
se revela precisamente nessa correta e instintiva tomada de posição.
Mas o tratamento científico da literatura e da arte, a estética e a crítica
seguiram esta evolução real com passo claudicante, na medida em
que não foram capazes de expor cientificamente os princípios da arte
realizados na prática.: A tese de Stalin finalmente permite a correta in­
terpretação científica da prática artística atual e futura da humanidade.
Enfim, temos que aludir brevemente a outra questão, ou seja,
a questão do realismo socialista. É evidente que nem mesmo a apro­
ximação mais esquemática a tal questão cabe nos limites de um
prefácio. Mas devemos mencionar, ainda que só de passagem, seus
aspectos metodológicos, já que só a prática e a teoria do socialismo
podem oferecer uma base realmente científica à questão da estrutura
histórica da estética, questão cuja formulação sistemática inicial é
um dos grandes méritos da estética de Hegel. Com efeito, a mera
A EST�TICA DE H EGEL + 83

existência do realismo socialista abre uma nova perspectiva à evolu­


ção da arte e, em estreita relação com isto, fornece à história efetiva da
arte (dos estilos, dos gêneros etc. ) o fundamento metodológico para a
elaboração científica das tradições progressistas.
Já indicamos como Marx e Engels criticaram a posição de
Hegel em face das possibilidades artísticas do presente e como tal
posição influiu em toda a sua concepção da história, em sua perio­
dização da arte e na elaboração da importância histórica e estética do
realismo. Mas a situação histórica em que Marx e Engels escreveram
determinava necessariamente que a arte do futuro socialismo fosse
para eles tão somente uma perspectiva geral do desenvolvimento da
arte. Várias de suas interpretações mostram claramente que eles
perceberam a necessidade desse desenvolvimento. Porém, como não
se tratava na época de um problema atual, é óbvio que não poderia
influir concretamente nas suas concepções artísticas. No tempo de
Lenin, o movimento operário revolucionário progredira já o sufi­
ciente para que surgisse o fundador literário do realismo socialista,
seu primeiro clássico: Maxim Gorki. Desde o início, Lenin com­
preendeu a significação de Gorki e extraiu, na sua teoria geral, as
consequências da nova situação. No tempo da ditadura proletária,
Lenin demonstrou na prática a sua clara visão teórica ao posicio­
nar-se de forma enérgica contra as falsas tendências sectárias da nova
arte proletária (Proletkult)33 e ao colocar com clareza a questão das
tradições progressistas, ou seja, de sua importância para o desenvol­
vimento da arte socialista. Apesar disso, foi preciso esperar por um
nível superior do desenvolvimento socialista para que o realismo
socialista, enquanto nova manifestação da arte em uma época nova,
se convertesse em problema central e positivo da literatura e da arte.
Stalin colocou o problema e, desde então, os representantes da teoria
soviética da arte estenderam suas doutrinas a todo o campo da ativi­
dade artística. Deste modo, a análise teórica e histórica da estética
adotou um novo ponto de vista, com apoio no qual podemos avaliar
corretamente as tradições progressistas tanto na arte quanto na sua
teoria estética. Em nosso caso, trata-se da crítica da estética hegeliana,
ou seja, da operação por meio da qual é possível retirar o invólucro e
extrair o núcleo racional que ela contém.
84 • GYôRGY LuKAcs

Marx, Engels, Lrnin e Stalin criaram os fundamentos de prin­


cípio da crítica materialista da estética hegeliana e nos tornaram
possível assimilá-la como uma herança que é preciso avaliar critica­
mente, aproveitando-a para nosso trabalho. Só nos foi possível carac­
terizar muito brevemente a atividade de Marx e Engels neste campo e
apenas expor esquematicamente o modo pelo qual Lenin e Stalin de­
senvolveram a estética do marxismo. Esperamos, contudo, que, de
alguma forma, o leitor tenha podido assimilar aqueles princípios,
graças aos quais a estética hegeliana revela-se capaz de ser utilizada
em nosso trabalho teórico. Mas considero necessário sublinhar, mais
uma vez, que são igualmente inaceitáveis tanto o ponto de vista que
sustenta que, como Hegel é idealista, nada do que afirma pode ser
verdadeiro, quanto o ponto de vista oposto, segundo o qual Hegel tem
razão em todos os pontos essenciais, pelo que bastaria substituir, nas
suas elaborações, o idealismo pelo materialismo. No que se refere a
este assunto e para caracterizar o correto método crítico, cabe recor­
dar as já citadas palavras de Engels sobre como não se deve criticar
Hegel. Marx, Engels, Lenin e Stalin nos indicaram o caminho da ver­
dadeira crítica, a crítica que analisa concretamente as deformações
teóricas e históricas que a filosofia idealista necessariamente traz
consigo e, ao mesmo tempo, permite extrair em cada caso as intuições
corretas - e às vezes geniais - da verdade, intuições de que é pródiga a
estética hegeliana.

Notas

1 Engels a Conrad Schmidt, 1 ° de novembro de 1 89 1 . Um fragmento desta


carta se encontra em K. Marx e F. Engels, Sobre a literatura e a arte, Lisboa,
Estampa, 1 97 1 . Há traduções para o português da obra de Hegel: Estética,
Lisboa, Guimarães Editores, 1 993; e Cursos de estética, São Paulo, Edusp,
4 V. , 2000-200 1 .
2 K. Marx, Teses sobre Feuerbach, em K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã,
São Paulo, Boitempo, 2007, p. 533 e 537.
3 1. Kant, Crítica da faculdade de julgar, Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1 99 5 .
4 F. Schiller, Sobre poesia ingênua e sentimental, Lisboa, Imprensa Nacional/
Casa da Moeda, 2003.
A EST�TICA DE H EGEL • 85

G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, Petrópolis, Vozes, 2008.


6 G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, São Paulo,
Loyola, 3 v., 1995- 1997.
7 Heinrich Gustav Hotho ( 1802- 1873 ) , historiador da arte e professor
universitário em Berlim depois de 1 829.
' Georg Lasson ( 1862- 1932), teólogo protestante, editou obras de Hegel a
partir de 1905.
9 G. W. F. Hegel, Propedêutica filosófica, Lisboa, Edições 70, 1989.

K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo, 2004,
p. 123.
11
F. Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, em K. Marx
e F. Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, v. 3, 1 963.
12
Lukács refere-se aos apontamentos de Lenin sobre a lógica hegeliana,
redigidos durante a Primeira Guerra Mundial. Há edição portuguesa desses
apontamentos: V. 1. Lenin, Obras escolhidas em seis tomos, Lisboa-Moscou,
Avante!-Progresso, v. 6, 1989.
13
Mencionam-se aqui as intervenções de Stalin publicadas no Pravda (edições
de 20 de junho, 4 de julho e 2 de agosto de 1950) , depois reunidas no
opúsculo O marxismo e os problemas da linguística ( cf. Problemas, São
Paulo, n. 28, julho de 1950 ) .
1 4 Sobre isso, cf., infra, " O romance como epopeia burguesa", p. 1 93 e ss.
15
F. Engels, Ludwig Feuerbach ..., ed. cit.
16
Em 27 de julho de 1830, na França, foi deposto Carlos X, descendente da
monarquia bourbônica restaurada em 18 1 5, depois da derrota de Napoleão;
em seu lugar, assumiu Luis Filipe, da casa de Orléans. Conhecido como
Revolução de Julho, este movimento teve impacto na Holanda, na Bélgica,
na Polônia, nos Estados italianos e alemães e na Península Ibérica.
17
Lukács refere-se aqui a uma passagem de Engels, contida na "Introdução"
ao seu Anti-Dühring, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 1 9 .
18
Friedrich T heodor Vischer ( 1807- 1 887), pensador liberal alemão; na década
de 1 850, Marx estudou cuidadosamente a sua Estética.
19
A expressão aparece em K. Marx, O capital, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, Livro I, v. l , 2008, p. 28.
lll H. Glockner ( 1 896- 1 979 ) , editor de obras de Hegel. Manteve relações
simpáticas com o nazismo.
21
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, ed. cit., p. 1 24.
22 K. Marx e F. Engels,A sagrada família, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 103 .
23 As observações de Engels assinaladas por Lukács encontram-se em A origem
da família, da propriedade privada e do Estado ( 1 884), em K. Marx e
F. Engels, Obras escolhidas, ed. cit., v. 3, 1 963, p. 63.
86 • GYôRGY LUKÁCS

24 Trata-se de personagens históricos recriados por J. W. Goethe em seu drama


Giitz von Berlichinger, o da mão de ferro ( 1 773).
25 Ferdinand Lassalle ( 1 825- 1 864) , u m dos fundadores d a social-democracia
alemã, publicou em 1 859 um drama que, ao contrário daquele de Goethe,
era centrado na figura de Franz von Sickingen. Na correspondência que
mantiveram sobre este drama, constata-se que Marx e Engels se opõem ao
tratamento que Lassalle deu ao tema. Excertos desta correspondência estão
em K. Marx e F. Engels, Sobre a literatura e a arte, ed. cit., p. 1 8 1 - 1 9 1 .
Lukács, em um ensaio de 1 933, "O debate sobre o Sickingen de Lassalle",
estudou detalhadamente as implicações estéticas dessa correspondência; este
ensaio encontra-se disponível em português em G. Lukács, Marx e Engels
como historiadores da literatura, Porto, Nova Crítica, s.d., p. 7-89.
"' Engels a M. Harkness, abril de 1 888, em Marx e Engels, Sobre a literatura
e a arte, ed. cit., p. 1 9 7- 1 98.
ZJ Esta apreciação d e Homero, bem como a referência à "infância normal"
grega, encontram-se na "Introdução" ( 1 857) a Para a crítica da economia
política, em K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos
escolhidos, São Paulo, Abril Cultural, col. "Os pensadores", v. XXXV, 1 974,
p. 1 3 1 .
28 K. Marx, Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, v. 1, 1 980, p. 267.
N Engels a Conrad Schmidt, 1 ° de novembro de 1 89 1; só um fragmento desta
carta (que não inclui a passagem citada) encontra-se traduzido ao português
(cf. supra, nota 1 ) . Para conferir o trecho transcrito por Lukács, cf. Marx­
Engels Werke (MEW), Berlim, Dietz Verlag, v. 38, 1968, p. 204.
"" Lukács se refere ao artigo de Lenin, "Tolstoi, espelho da revolução russa",
publicado em Proletari, 1 1 de setembro de 1 908, de que desconhecemos
edição em português.
31 A polêmica a que se refere Lukács, e da qual foram extraídas as citações
deste parágrafo, encontra-se em V. 1. Lenin, Quem são os amigos do povo
e como lutam contra os sociais-democratas, Lisboa, Estampa, 1 975.
32 Esta citação, bem como a do parágrafo seguinte, foi extraída do opúsculo
O marxismo e os problemas da linguística, mencionado na nota 1 3 , supra.
33 Abreviação de "Cultura Proletária'', um movimento que, depois da Revolução
de 19 1 7, postulava a criação de uma arte proletária radicalmente nova.
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE M ARX E ENGELS

Os escritos de Marx e Engels sobre literatura têm uma forma


bastante peculiar; convém, portanto, demonstrar desde logo ao leitor
a necessidade de tal forma, a fiu de que ele encontre a disposição
necessária para uma correta leitura e compreensão desses escritos.
Deve-se, antes de mais nada, saber que Marx e Engels nunca es­
creveram um livro ou um estudo orgânico sobre problemas literá­
rios no sentido estrito da palavra. É verdade que o Marx da matu­
ridade sempre acalentou o propósito de expor num alentado ensaio
suas ideias sobre Balzac, seu escritor preferido. Mas este proj eto,
como tantos outros, ficou no terreno das aspirações. O grande pen­
sador foi tão absorvido até o dia da sua morte pelo trabalho na sua
obra econômica fundamental que nem este projeto nem o de um
livro sobre Hegel puderam ser realizados.
Por esta razão, o presente volume1 é constituído em parte por
cartas e anotações de conversas e em parte por trechos extraídos de
trabalhos dedicados a temas diversos, nos quais Marx e Engels aflo­
raram os problemas capitais da literatura. Assim, é óbvio que a
escolha e a ordem dos textos de Marx e Engels sobre o assunto jamais
· são devidas aos dois autores. Os leitores alemães conhecem, por
exemplo, a excelente edição, organizada pelo professor M. Lifschitz:
Marx und Engels über Kunst und Literatur.2
A constatação deste fato não implica, porém, de modo algum,
que os trechos recolhidos deixem de constituir uma unidade con­
ceitua! orgânica e sistemática: só devemos esclarecer, preliminar­
mente, qual o caráter desta sistematicidade, que resulta das concep­
ções filosóficas de Marx e Engels. Naturalmente, não cabe expor aqui
de modo amplo a teoria marxista e sua sistematização: limitamo-nos
a chamar a atenção do leitor para dois pontos de vista. O primeiro
consiste em que o sistema marxista - em nítido contraste com a mo­
derna filosofia burguesa - não se desliga jamais do processo unitário
da história. Segundo Marx e Engels, só existe uma ciência unitária, a
ciência da história, que concebe a evolução da natureza, da sacie-
�ss • GYORGY LuKAcs

dade, do pensamento etc., como um processo histórico único, pro­


curando descobrir as leis gerais e as leis particulares (isto é, aquelas
que são específicas de determinados períodos) deste processo. Isso,
contudo, não implica de modo algum - e este é o segundo ponto de
vista - um relativismo histórico. A essência do método dialético, de
fato, está exatamente em que para ele o absoluto e o relativo formam
uma unidade indestrutível: a verdade absoluta possui seus próprios
elementos relativos , ligados ao tempo, ao lugar e às circuns­
tâncias. E, por outro lado, a verdade relativa, enquanto verdade real,
enquanto reflexo aproximativamente fiel da realidade, reveste-se de
uma validez absoluta.
Necessária consequência do ponto de vista acima referido é a
rejeição pela concepção marxista da acentuada separação e do is™a­
mento dos ramos particulares da ciência, tal como ocorre no mundo
burguês. Nem a ciência, nem os seus diversos ramos, nem a arte, pos­
suem uma história autônoma, imanente, que resulte exclusivamente
da sua dialética interior. A evolução em todos esses campos é
determinada pelo curso de toda a história da produção social em seu
conjunto: e só com base neste curso é que podem ser esclarecidos de
maneira verdadeiramente científica os desenvolvimentos e as trans­
formações que ocorrem em cada campo singularmente considerado.
É claro que esta concepção de Marx e Engels, que contradiz aberta­
mente tantos preconceitos modernos, não comporta uma interpre­
tação mecanicista, como a que costumam fazer numerosos pseudo­
marxistas ou marxistas vulgares. No desenvolvimento das análises
mais particularizadas que se seguirão, haveremos de voltar a esta
questão. Basta-nos, por ora, salientar que Marx e Engels jamais ne­
garam a relativa autonomia do desenvolvimento dos campos parti­
culares da atividade humana (direito, ciência, arte etc. ) ; jamais igno­
raram, por exemplo, o fato de que um pensamento filosófico, singu­
larmente considerado, liga-se a outro pensamento filosófico que
o precedeu e do qual ele é um desenvolvimento, uma correção, uma
refutação etc. Marx e Engels negam apenas que seja possível com­
preender o desenvolvimento da ciência ou da arte com base exclusi­
vamente, ou mesmo principalmente, em suas conexões imanentes.
Tais conexões imanentes existem, sem dúvida, na realidade objetiva,
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS �
mas só como momentos do tecido histórico, como momentos do
conjunto do desenvolvimento histórico, no interior do qual, por meio
do intrincado complexo de interações, o fato econômico (ou seja, o
desenvolvimento das forças sociais produtivas ) assume o papel
principal.
Portanto, a existência e a essência, a gênese e a eficác'ia da
literatura só podem ser compreendidas e explicadas no quadro his­
tórico geral de todo o sistema. A gênese e o desenvolvimento da li­
teratura são parte do processo histórico geral da sociedade. A essên­
cia e o valor estético das obras literárias, bem como a influência
exercida por elas, constituem parte daquele processo social geral e
unitário mediante o qual o homem se apropria do mun Jo por meio
de sua consciência. Do primeiro ponto de vista, a estética marxista e a
história marxista da literatura e da arte fazem parte do materialismo
histórico, ao passo que, do segundo ponto de vista, são uma aplicação
do materialismo dialético; em ambos os casos, porém, são uma parte
peculiar, especial, deste conjunto, com determinados princípios es­
téticos específicos.
Os princípios mais gerais da estética e da história marxista da
literatura encontram-se, pois, na doutrina do materialismo histórico.
Só a partir do materialismo histórico podem ser compreendidas a
gênese da arte e da literatura, as leis do seu desenvolvimento, as suas
transformações, as linhas de ascensão e queda no interior do processo
de conjunto. Por isso, cumpre-nos examinar preliminarmente algu­
mas questõe� gerais básicas do materialismo histórico. E não apenas
tendo em vista a necessidade de fundamentar cientificamente o
nosso empreendimento, mas também porque é exatamente neste
campo que devemos distinguir com clareza o autêntico marxismo (a
verdadeira visão dialética do mundo ) da sua vulgarização deforma­
dora, que - no terreno em que nos colocamos - comprometeu da
maneira mais perniciosa o marxismo aos olhos de um vasto círculo
de pessoas.
É sabido que o materialismo histórico identifica na base
econômica o princípio diretor, a lei determinante do desenvolvi­
mento histórico. Do ponto de vista da sua conexão com o processo
evolutivo do conjunto, as ideologias - e, entre elas, a literatura e a
90 • GYORGY LUKÁCS

arte - aparecem unicamente como superestruturas, que só secun­


dariamente determinam este processo. Desta constatação funda­
mental, o materialismo vulgar parte para a conclusão, mecânica e
errônea, distorcida e aberrante, de que entre base e superestrutura só
existe um mero nexo causal, no qual o primeiro termo figura apenas
como causa e o segundo aparece unicamente como efeito. Para o
marxismo vulgar, a superestrutura é uma consequência mecânica,
causal, do desenvolvimento das forças produtivas. O método dialético
não admite semelhante relação. A dialética nega que possam existir,
em qualquer parte do real, relações de causa e efeito puramente
unívocas: ela reconhece até mesmo nos dados mais elementares da
realidade complexas interações de causas e efeitos. E o materialismo
histórico acentua com particular vigor o fato de que, num processo
tão multiforme e estratificado como o é a evolução da sociedade, o
processo total do desenvolvimento histórico-social só se concretiza
em qualquer dos seus momentos como uma intrincada trama de
interações. Unicamente com uma metodologia deste tipo é possível
abordar, ainda que sumariamente, a questão das ideologias. Quem
quer que veja nas ideologias o produto mecânico e passivo do pro­
cesso econômico que lhes serve de base nada compreenderá da
essência e do desenvolvimento delas, e não estará representando o
marxismo, mas uma imagem caricatural do marxismo.
Em uma de suas cartas, Engels se exprime a respeito do pro­
blema nos seguintes termos:
O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, reli­
gioso, literário, artístico etc., baseia-se no desenvolvimento
econômico. Mas todos eles reagem também uns sobre os
outros e sobre a infraestrutura econômica. Não se trata de
que a situação econômica seja a causa, o único elemento
ativo, e que o resto sejam efeitos puramente passivos. Há
todo um jogo de ações e reações à base da necessidade
econômica, que, em última instância, termina sempre por
impor-se.3

Tal orientação metodológica marxista tem como conse­


quência a atribuição de um papel extraordinariamente importante,
no desenvolvimento histórico, à energia criadora e à atividade do
sujeito. A ideia central do marxismo, no que se refere à evolução
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 91

histórica, é a de que o homem se fez homem diferenciando-se do


animal por meio do seu próprio trabalho. A função criadora do
sujeito se manifesta, por conseguinte, no fato de que o homem se cria
a si mesmo, se transforma ele mesmo em homem, por intermédio do
seu trabalho, cujas características, possibilidades, grau de desenvolvi­
mento etc . , são, certamente, determinados pelas circunstâncias
objetivas, naturais ou sociais. Este modo de conceber a evolução his­
tórica está presente em toda a visão marxista da sociedade e, também,
na estética marxista. Marx diz, em uma passagem, que a música
suscita no homem o sentido musical; e essa concepção, igualmente, é
uma parte da concepção geral do marxismo no que concerne a todo o
desenvolvimento social.
Marx concretiza deste modo a abordagem do problema:
Somente pela riqueza objetivamente explicitada da es­
sência humana pode ser em parte aperfeiçoada e em parte
criada a riqueza da sensibilidade subjetiva humana. Isto é:
um ouvido musical, um olho capaz de colher a beleza da
forma; em suma, sentidos pela primeira vez capacitados
para um desfrute humano, sentidos que se afirmam como
faculdades essenciais do homem.4

Tal concepção assume grande importância não só para uma


compreensão do papel histórico e socialmente ativo do sujeito, mas
também para esclarecer o modo pelo qual o marxismo enxerga os pe­
ríodos específicos da história da humanidade, o desenvolvimento da
civilização e os limites, a problemática e as perspectivas desse desen­
volvimento. Marx conclui da seguinte maneira o raciocínio acima
citado:
A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda a his­
tória universal até nossos dias. O sentido subordinado a
exigências práticas animais é um sentido limitado. Para o
homem faminto, não existe a forma humana do alimento,
mas apenas a sua existência abstrata como alimento: o ali­
mento pode se apresentar indiferentemente em qualquer
forma, ainda que seja a mais grosseira, e não se conseguirá
dizer em que ponto a sua atividade nutritiva se diferenciará
da do animal. O homem angustiado por uma necessidade
não tem sentido algum, mesmo para o espetáculo mais
belo: o mercador de pedras preciosas só vê o valor comer-
92 • GYORGY LUKÁCS

cial delas, não vê a beleza e a natureza peculiar de cada


pedra; ele não possui qualquer senso estético para o mineral
em si. Portanto, a objetivação da essência humana, quer
do ponto de vista teórico, quer do ponto de vista prático,
é necessária tanto para tornar humanos os sentidos do ho­
mem como para criar um sentido humano adequado à in­
teira riqueza da essência humana e natural.5

Portanto, a atividade espiritual do homem dispõe, em todos os


seus campos de atuação, de uma determinada autonomia relativa; e
isso diz respeito sobretudo à arte e à literatura. Cada campo, cada
esfera de atividade se desenvolve espontaneamente - por obra do
sujeito criador - vinculando-se de modo imediato às suas criações
precedentes e desenvolvendo-as ulteriormente, ainda que por meio
de críticas e polêmicas. Já advertimos quanto ao fato de esta autono­
mia ser relativa e não comportar, em absoluto, a negação da priori­
dade da base econômica; disso, porém, não resulta, de modo algum,
que a convicção subjetiva de que cada esfera da vida espiritual se de­
senvolva espontaneamente seja mera ilusão. A autonomia a que nos
referimos é fundada objetivamente na essência mesma do desenvol­
vimento, na divisão social do trabalho.
Sobre esta questão, Engels escreve:
Os homens que se ocupam disso [do desenvolvimento
ideológico] pertencem, por sua vez, . a órbitas especiais da
divisão do trabalho e creem desenvolver um domínio inde­
pendente. E, à medida que passam a formar um grupo
autônomo dentro da divisão social do trabalho, suas pro­
duções, inclusive seus erros, influem sobre todo o desenvol­
vimento social e mesmo sobre o desenvolvimento econô­
mico. Apesar disso, porém, eles continuam sob a influência
dominante do desenvolvimento econômico.6

E, no trecho que se segue, Engels elucida bem a sua concepção


metodológica do primado do econômico:
A meu ver, a supremacia final do desenvolvimento eco­
nômico, inclusive sobre estes domínios, está fora de dúvida,
mas ela opera dentro das condições impostas em cada ter­
reno concreto: na filosofia, por exemplo, pela ação de in­
fluências econômicas (que, por seu turno, na maioria dos
casos, operam apenas sob disfarces políticos etc.) sobre o
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 93

material filosófico existente, transmitido pelos predecesso­


res. Neste caso, a economia não cria a partir do nada, mas
determina a maneira como se modifica e se desenvolve o
material de ideias pré-existente; e, mesmo assim, quase
sempre o faz de modo indireto, já que são os reflexos polí­
ticos, jurídicos e morais que, em maior proporção, exercem
influência direta sobre a filosofia. 7

Tudo o que Engels afirma aqui sobre a filosofia pode ser tam­
bém amplamente aplicado aos princípios fundamentais da evolução
da literatura. É claro que todo desenvolvimento, encarado de modo
concreto, tem o seu caráter particular, e o paralelismo entre dois de­
senvolvimentos jamais pode ser generalizado mecanicamente. É cla­
ro que, no quadro das leis que dizem respeito à sociedade em seu
conjunto, o desenvolvimento de cada esfera assume o seu caráter
particular, com suas leis próprias.
Se agora quisermos concretizar, ainda que só superficial­
mente, o princípio geral assim obtido, chegamos a formular um dos
princípios mais importantes da concepção marxista da história. No
que concerne à história das ideologias, o materialismo histórico
reconhece - ainda neste ponto, em franca oposição ao marxismo
vulgar - que o desenvolvimento das ideologias não acompanha
mecanicamente e nem segue pari passu o grau de desenvolvimento
econômico da sociedade. Na história do comunismo primitivo e da
divisão da sociedade em classes, a respeito da qual escreveram Marx e
Engels, não é de maneira alguma necessário que a cada florescimento
econômico e social corresponda infalivelmente um florescimento da
literatura e da arte, da filosofia etc.: não é absolutamente necessário
que uma sociedade mais evoluída socialmente possua uma literatura,
uma arte, uma filosofia necessariamente mais evoluída do que as de
uma sociedade com nível inferior de progresso.
Marx e Engels insistem, em muitas ocasiões, sobre a desi­
gualdade de desenvolvimento no campo da história das ideologias.
Engels, por exemplo, ilustra as considerações citadas há pouco re­
cordando como a filosofia francesa do século XVIII e a filosofia alemã
do século XIX nasceram em países completa ou relativamente atra­
sados, o que mostra que, no campo da filosofia, a função de guia pode
ser exercida pela cultura de um país que, no campo econômico, se
94 • GYORGY LUKÁCS

mantém em grande atraso quando comparado com outros países


próximàs. Esta constatação foi assim formulada por Engels: "Eis a
razão por que países economicamente atrasados podem, não
obstante, em filosofia, empunhar a batuta em matéria de filosofia:
[foi o que fez] a França do século XVIII, em relação à Inglaterra, em
cuja filosofia os franceses se apoiavam; e, mais tarde, a Alemanha em
relação a um e outro destes países". 8
Marx formula este pensamento - referindo-se principalmente
à literatura - de maneira, se possível, ainda mais clara e mais concisa.
Ele afirma:
Em relação à arte, sabe-se que certas épocas do flores­
cimento artístico não estão de modo algum em conformi­
dade com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, por
conseguinte, com o da base material que é, de certo modo,
a ossatura da sua organização. Por exemplo, os gregos
comparados com os modernos ou ainda Shakespeare. Em
relação a certas formas de arte, a epopeia, por exemplo,
até mesmo se admite que não mais poderiam ser produ­
zidas na sua forma clássica em que fizeram época, isto é,
naquela forma que imprimiu o seu selo a toda uma época
do mundo; que, portanto, no próprio âmbito da arte, al­
gumas das suas criações notáveis só são possíveis num es­
tágio inferior do desenvolvimento artístico. Se este é o caso
em relação aos diversos gêneros artísticos no âmbito da
própria arte, internamente, é já menos surpreendente que
seja igualmente o caso em relação a todo o domínio artístico
no desenvolvimento geral da sociedade.9

Tal concepção do desenvolvimento histórico exclui, nos


marxistas autênticos, toda esquematização e toda manipulação de
dados à base de analogias ou paralelismos mecânicos. O modo pelo
qual o princípio do desenvolvimento desigual se manifesta em um
determinado campo e em um determinado período da história das
ideologias é um problema histórico concreto, ao qual o marxismo só
pode dar resposta com base numa análise concreta da situação
concreta. E é por isso que Marx conclui desta maneira as conside­
rações precedentes: "A dificuldade reside apenas na maneira geral
de apreender estas contradições. Uma vez especificadas, são logo
resolvidas". 10
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 95

Marx e Engels se opuseram, durante toda a sua vida, às vul­


garizações esquemáticas de seus autointitulados discípulos, que
pretendiam substituir o estudo concreto do processo histórico con­
creto por uma concepção da história apoiada em deduções e analogias
meramente artificiosas, com a substituição das relações complexas e
concretas da dialética por meras relações mecânicas. Um excelente
exemplo da aplicação desse método pode ser encontrado na carta de
Engels a Paul Ernst, na qual o primeiro toma decididamente posição
contra a tentativa feita pelo segundo de definir o caráter "pequeno
burguês" de Ibsen a partir de um conceito geral de "pequeno burguês",
elaborado por Ernst à base da analogia com o tipo do espírito pequeno
burguês alemão, em vez de se reportar às peculiaridades concretas da
situação histórica norueguesa.
As investigações históricas de Marx e Engels no campo da arte
e da literatura estendem-se ao inteiro desenvolvimento da sociedade
humana. Mas, não menos do que no caso das suas tentativas para
identificar no desenvolvimento geral da sociedade humana os traços
do desenvolvimento econômico e social, o interesse principal deles,
no campo da arte e da literatura, voltou-se para a determinação dos
traços essenciais do presente, da evolução moderna. E, se considerar­
mos nesta perspectiva a concepção marxista da literatura, veremos
ainda mais claramente a importância assumida pelo princípio da
desigualdade de desenvolvimento na determinação das peculiari­
dades de qualquer período. Sem dúvida, o sistema de produção capi­
talista representa o grau econômico mais elevado no quadro do
processo evolutivo das sociedades divididas em classes. Mas também
não há dúvida de que, para Marx, tal sistema de produção é essen­
cialmente desfavorável ao desenvolvimento da literatura e da arte.
Marx não é o primeiro e nem o único a dar conta do fato e a descre­
vê-lo. Somente com ele, porém, as causas efetivas do fenômeno apa­
recem em sua integralidade efetiva. O fato é que somente uma con­
cepção abrangente, dinâmica e dialética, como o é o marxismo, pode
proporcionar o quadro exato dessa situação. Naturalmente, este não é
o lugar para abordarmos, nem mesmo de modo sumário, tal questão.
Isso torna particularmente claro para o leitor o fato de que a
teoria e a história marxistas da literatura constituem apenas parte de
96 • GYORGY LUKÁCS

um complexo mais amplo, ou seja, o materialismo histórico. Marx


não determina o sentido fundamentalmente hostil à arte do sistema
capitalista de produção a partir de pontos de vista estéticos. Assim,
se quisermos avaliar as afirmações de Marx sobre o assunto com base
em critérios quantitativos e estatísticos - o que não é lícito, certamen­
te, para quem queira alcançar uma justa compreensão do problema -,
chegaremos à conclusão de que esta abordagem da questão pouco
chegou a interessá-lo. Mas quem tenha estudado a fundo e de manei­
ra adequada O capital e outros escritos de Marx teve a oportunidade
de notar que algumas das suas indicações, consideradas no quadro de
conjunto de todo o sistema, oferecem uma penetração na essência do
problema bem mais aprofundada do que a dos escritos dos anticapi­
talistas românticos, que por toda a vida se ocuparam de estética.
A economia marxista, com efeito, faz com que as categorias do
ser econômico (do ser que constitui o fundamento da vida social)
sejam derivadas das manifestações de suas formas reais, isto é, como
relações entre homens e homens e, por meio destas, como relação
entre sociedade e natureza. Mas, ao mesmo tempo, Marx demonstra
que, no capitalismo, todas essas categorias aparecem necessariamente
numa forma reificada; e, por causa dessa forma reificada, ocultam a
sua verdadeira essência, ou seja, a de relação entre os homens. Nessa
inversão das categorias fundamentais do ser humano reside a fetichi­
zação inevitável que ocorre na sociedade capitalista. Na consciência
humana, o mundo aparece completamente diverso daquilo que na
realidade é: aparece deformado em sua própria estrutura, separado de
suas efetivas conexões. Torna-se necessário um peculiar trabalho
mental para que o homem do capitalismo penetre nesta fetichização
e descubra, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro,
preço etc . ) que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua
verdadeira essência, isto é, a de relações sociais entre os homens.
Ora, a humanitas - ou seja, o estudo apaixonado da substância
humana do homem - faz parte da essência de toda literatura e de toda
arte autênticas. Não basta, para que sejam chamadas de humanistas,
que estudem apaixonadamente o homem, a verdadeira essência da
sua substância humana; é preciso também, ao mesmo tempo, que
defendam a integridade do homem contra todas as tendências que a
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 97

atacam, a envilecem e a adulteram. Como todas essas tendências (e,


naturalmente, em primeiro lugar, a opressão e a exploração do ho­
mem pelo homem) não assumem em nenhuma sociedade uma
forma tão inumana quanto na sociedade capitalista - exatamente por
causa de seu caráter reificado e, portanto, aparentemente objetivo -,
todo verdadeiro artista ou escritor é um adversário instintivo destas
deformações do princípio humanista, independentemente do grau
de consciência que tenha de todo este processo.
Repetimos que é obviamente impossível discutir aqui am­
plamente o problema. Analisando alguns trechos de Goethe e de
Shakespeare, Marx põe em evidência esta ação anti-humana do
dinheiro, que altera e deforma a essência do homem:
Shakespeare destaca no dinheiro praticamente duas pro­
priedades: 1) é a divindade visível, a transmutação de to­
das as propriedades humanas e naturais no seu contrário,
a confusão e a inversão universal de todas as coisas, aquele
que concilia os inconciliáveis; 2) é a prostituta universal,
o proxeneta que corrompe os homens e os povos. A inver­
são e a confusão de todas as qualidades humanas e natu­
rais, a conciliação dos inconciliáveis - o poder divino - do
dinheiro, tudo isso provém da sua essência enquanto ser
genérico que se aliena, exterioriza e se vende. O dinheiro
é o poder alienado da humanidade. O que eu não posso
fazer como homem, isto é, aquilo que eu não consigo com
minhas forças essenciais individuais, consigo-o pelo dinhei­
ro. O dinheiro transforma, pois, essas forças essenciais em

algo que elas não são, quer dizer, rro contrário delas. 1 1

Mas, com isso, não se exaurem os temas principais ora abor­


dados. A hostilidade da ordem de produção capitalista à arte se mani­
festa igualmente na divisão capitalista do trabalho. Um maior de­
senvolvimento na compreensão deste aspecto do tema nos remeteria,
ainda uma vez, ao estudo da economia como uma totalidade. Do
ponto de vista do nosso problema, vamos nos contentar em fixar
aqui um só princípio, que será, novamente, o princípio do humanis­
mo, o princípio que a luta emancipadora do proletariado herdou dos
grandes movimentos democráticos e revolucionários precedentes,
herança elevada a um plano qualitativamente superior, ou seja, a
reivindicação do desenvolvimento harmônico e integral do homem.
98 • GYORGY LUKÁCS

Ao contrário, a hostilidade à arte e à cultura, própria do sistema


capitalista, comporta o fracionamento da totalidade concreta do
homem em espe c ializações abstratas.
Mesmo os anticapitalistas românticos reconhecem que é esse,
realmente, o estado de coisas. Com a diferença, porém, de verem nele
apenas a exprnssão de uma fatalidade, uma calamidade, pelo que
tentaram - ao menos sentimentalmente, no plano ideal - refugiar-se
em sociedades mais primitivas, assumindo, deste modo, uma posição
que devia inevitavelmente tomar características reacionárias. Marx e
Engels jamais negaram o caráter progressista do sistema capitalista de
produção, mas, ao mesmo tempo, desmascararam-lhe impiedosa­
mente os aspectos desumanos. Eles compreenderam e expressaram
claramente que apenas trilhando tal estrada a humanidade poderia
alcançar as condições materiais básicas para a sua libertação real e
definitiva no socialismo. Mas a compreensão do caráter econômico,
social e historicamente necessário da ordem social capitalista e a
fundamentada repulsa a qualquer "retorno" a épocas superadas não
embotam a crítica da civilização capitalista por Marx e Engels, mas,
ao contrário, a aguçam. Quando eles remetem a épocas já superadas,
isso não implica uma evasão romântica no passado; esta atitude
remete ao início da luta que emancipou a humanidade de um pe­
ríodo de exploração e opressão ainda mais oculto e intenso, ou seja, o
período feudal. Por isso, quando Engels fala do Renascimento, suas
considerações se referem a essa luta de emancipação, às conquistas
iniciais da luta dos trabalhadores em busca da libertação; e, quando
ele contrapõe a divisão capitalista do trabalho aos processos vigentes
naquele tempo, não o faz tanto para exaltar estes últimos, e sim,
principalmente, para mostrar o caminho que conduz a humanidade
à libertação futura.
Por isso, falando do Renascimento, Engels pôde afirmar:
Foi essa a maior revolução progressista que a humani­
dade conhecera até então; foi uma época que exigia gigantes
e que forjou gigantes pela força do pensamento, pela paixão
e pelo caráter, pela universalidade e pela erudição. Dos ho­
mens que lançaram as bases do atual domínio da burguesia
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTi>TICOS DE MARX E ENGELS + 99

poderá se dizer o que se quiser, mas de modo nenhum que


tenham pecado de limitação burguesa. [ . . . ] Os heróis
daqueles tempos ainda não eram escravos da divisão do
trabalho, cuja influência comunica à atividade dos homens,
como podemos observá-lo em muitos dos seus sucessores,
um caráter limitado e unilateral. O que mais caracteriza os
referidos heróis é que quase todos eles viviam plenamente
os interesses de seu tempo, participavam de maneira ativa
na luta política, aderiam a um ou outro partido e lutavam,
uns com a palavra e a pena, outros com a espada, e outros
com ambas as coisas ao mesmo tempo. Daí a plenitude
e a força de caráter que fazem deles homens de uma só
peça. Os sábios de gabinete eram nesta época uma exceção:
eram homens de segunda ou terceira linha, ou prudentes
filisteus que não desejam sujar os dedos. 12

Marx e Engels exigiam dos escritores do seu tempo, por


conseguinte, que - mediante a caracterização dos seus personagens -
tomassem apaixonadamente posição contra os efeitos perniciosos e
envilecedores da divisão capitalista do trabalho e colhessem o homem
na sua essência e na sua totalidade. E exatamente porque percebiam
na maior parte dos seus contemporâneos a falta dessa aspiração à
integralidade, do anseio pela totalidade, da orientação para o essen­
cial, consideravam-nos epígonos sem importância.
Na sua crítica a Sickingen, tragédia de autoria de Lassalle,
Engels escreve: "Você tem razão quando protesta contra a má indi­
vidualização, hoje muito espalhada, que se reduz afinal a pobres ar­
gúcias e é o sinal que distingue a literatura estéril dos epígonos". 13
Mas, na mesma carta, Engels indica também a fonte na qual o poeta
moderno pode buscar esta força, esta amplitude de horizontes, esta
totalidade. Na sua crítica ao drama de Lassalle, ele não se limita a
reprovar-lhe o fato de ter superestimado politicamente o movimento
aristocrático de Sickingen (que era substancialmente reacionário e
não tinha, desde o início, qualquer possibilidade de êxito) , e de ter ao
mesmo tempo subestimado as grandes revoluções camponesas da
época: indica, também, de que modo uma vasta e rica represeQtação
da vida do povo teria podido conferir ao drama características mais
realistas e cheias de vida.
1 00 • GYORGY LUKÁCS

As observações feitas até aqui mostram como a base econômica


da ordem capitalista de produção repercute na literatura indepen­
dentemente da subjetividade dos escritores. Marx e Engels, porém,
estão bem longe de negligenciar este momento subjetivo. Voltaremos
a abordar mais a fundo esta questão; por ora, limitamo-nos a uma
breve indicação: é exatamente a identificação do escritor burguês
com sua classe, com os preconceitos da sociedade burguesa, que o
acovarda, que o faz dar as costas aos problemas essenciais. No curso
das lutas ideológicas e literárias realizadas nos anos que se seguiram
imediatamente a 1 840, o jovem Marx desenvolveu uma crítica apro­
fundada ao romance de Eugene Sue Os mistérios de Paris, muito lido
naquele tempo e bastante popular na Alemanha. 14 Aqui, limita­
mo-nos a lembrar que aquilo que Marx mais fustiga em Sue é pre­
cisamente o fato de ele se adaptar à superfície da sociedade capitalista,
deformando e falseando a realidade por puro oportunismo. Hoje,
naturalmente, ninguém mais lê Sue. Mas a cada década surgem, em
consonância com os eventuais humores da burguesia, escritores que
se põem "em moda" e para os quais - com as variantes de cada caso -
essa crítica conserva a sua validez.
Pode-se notar que nossa análise, fixando-se inicialmente na
gênese e no desenvolvimento da literatura, passou quase que
insensivelmente a tratar de problemas de estética, no sentido estrito
do termo. E, com isso, chegamos ao segundo complexo de problemas
da concepção marxista da arte. Marx considerou extremamente
importante a investigação das premissas históricas e sociais da gênese
e do desenvolvimento da literatura, mas jamais sustentou que as
questões a ela concernentes fossem com isso sequer aproximativa­
mente exauridas.
A dificuldade não está em compreender que a arte e a
epopeia gregas estão ligadas a certas formas do desenvolvi­
mento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcio­
narem ainda um prazer estético e de terem ainda para nós,
em certos aspectos, o valor de normas e modelos inacessí­
veis.15

A resposta de Marx à questão que ele mesmo se coloca é, ainda


uma vez, de caráter histórico-conteudístico. Ele enfoca as relações
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 01

existentes entre o mundo grego, enquanto "infância normal da


humanidade", e a vida espiritual dos homens nascidos bem mais
tarde. Todavia, a questão não o leva ao problema da origem da socie­
dade, mas à formulação dos princípios fundamentais da estética (não
de maneira fo rmalista, é claro, mas em uma ampla perspectiva
dialética) . A solução fornecida por Marx, com efeito, suscita dois
grandes complexos de problemas relativos à essência estética de toda
obra de arte de toda e qualquer época: que significação possui o
mundo assim representado do ponto de vista da evolução da humani­
dade? E de que modo o artista representa um dos seus estágios, no
quadro geral dessa evolução?
O caminho que leva à questão da forma artística deve partir
daqui. E tal questão, naturalmente, só pode ser colocada e resolvida
em íntima conexão com os princípios gerais do materialismo dialéti­
co. Uma tese fundamental do materialismo dialético sustenta que
qualquer tomada de consciência do mundo exterior não é mais do
que o reflexo da realidade, que existe independentemente da
consciência, nas ideias, representações, sensações etc. dos homens. É
claro que o materialismo dialético, que na formulação geral deste
princípio concorda com todos os tipos de materialismo e se opõe a
todas as variantes do idealismo, é decididamente diferente do mate­
rialismo mecanicista. Quando Lenin criticava sobre isso o velho ma­
terialismo, insistia precisamente neste motivo fundamental, ou seja,
o de que o velho materialismo não estava em condições de conceber
dialeticamente a teoria do reflexo.
A criação artística, por conseguinte, enquanto uma forma de
reflexo do mundo exterior na consciência humana, está inserida na
teoria geral do conhecimento professada pelo materialismo dialético.
É certo que a obra de criação artística, dadas as suas peculiaridades,
constitui um momento singular, com características próprias, da
teoria materialista dialética do conhecimento; nela vigoram, muitas
vezes, leis nitidamente diversas das de outros campos abrangidos pela
referida teoria. Nas considerações que se seguem, procuraremos falar
a respeito de algumas dessas peculiaridades do reflexo literário e
artístico, sem pretender, obviamente, nem de longe, traçar um quadro
exaustivo (ainda que só esboçado) do conjunto de tais peculiaridades
e de seus problemas.
1 02 • GYORGY LuKAcs

A teoria do reflexo não é absolutamente nova em estética. A


imagem consubstanciada na palavra reflexo, como metáfora que
exprime bem a essência da criação artística, tornou-se famosa graças
a Shakespeare, que, na cena dos comediantes em Hamlet, indica essa
concepção da arte como constituindo a base da sua teoria e prática
literárias. Mas a ideia em si é muito mais antiga: ela já constituía um
problema central na estética de Aristóteles. E, desde então, excetuadas
as épocas de decadência, predomina em quase todas as grandes
estéticas. É claro que uma exposição histórica da evolução das
concepções estéticas não cabe nesta introdução. Basta-nos, contudo,
recordar de passagem o fato de que muitas estéticas idealistas (como,
por exemplo, a de Platão) baseiam-se, a seu modo, nesta teoria. Mais
importante, ainda, é a constatação de que quase todos os grandes
escritores da literatura mundial escreveram instintivamente (com
maior ou menor grau de consciência) segundo tal teoria, e que os
esforços deles para esclarecerem a si mesmos os princípios básicos de
suas próprias criações encaminharam-se no sentido dessa teoria. A
meta de quase todos os grandes escritores foi a reprodução artística da
realidade: a fidelidade ao real, o esforço apaixonado para reproduzi-lo
na sua integridade e totalidade, tem sido para todo grande escritor
( Shakespeare, Goethe, Balzac, Tolstoi) o verdadeiro critério da gran­
deza literária.
Que a estética marxista, a propósito dessas questões funda­
mentais, não encampe as reivindicações de uma "inovação radical'', é
coisa que só surpreende àqueles que, sem motivo sério e sem ver­
dadeiro conhecimento de causa, vinculam a concepção do mundo do
proletariado a uma suposta "novidade absoluta" ou a um "vanguar­
dismo" artístico, acreditando que a emancipação do proletariado
comporte no campo da cultura uma completa renúncia ao passado.
Os clássicos e fundadores do marxismo jamais adotaram tal ponto
de vista. No entender deles, a concepção do mundo do proletariado, a
sua luta de emancipação e a futura civilização a ser criada por essa
luta devem herdar todo o conjunto de valores reais elaborados pela
evolução plurimilenar da humanidade.
Lenin constata, num de seus trabalhos, que uma das razões da
superioridade do marxismo em comparação com as ideologias bur-
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 03

guesas consiste exatamente nesta sua capacidade de incorporar


criticamente toda a herança da cultura progressista e de assimilar
organicamente tudo o que é grande no passado. O marxismo supera
estes seus predecessores apenas (se bem que este "apenas" signifique
muitíssimo, quer metodologicamente, quer no que concerne ao
conteúdo) por tornar conscientes as suas aspirações, eliminando os
desvios idealistas e mecanicistas de tais aspirações, reconduzindo-as
às suas verdadeiras causas e inserindo-as apropriadamente no sistema
de leis da evolução social. No campo da estética, no campo da teoria e
da história da literatura, podemos resumir a situação dizendo que o
marxismo eleva à esfera da clareza conceitua! aqueles princípios
fundamentais da atividade criadora que vivem há milênios nos
sistemas dos melhores pensadores e nas obras dos mais notáveis
escritores e artistas.
Se agora pretendemos esclarecer algum dos aspectos mais
importantes dessa situação, deparamo-nos com a seguinte questão: o
que é essa realidade que a criação artística deve refletir com fidelida­
de? Aqui, importa acima de tudo o caráter negativo da resposta: essa
realidade não é somente a superfície imediatamente percebida do
mundo exterior, não é a soma dos fenômenos eventuais, casuais e
momentâneos. Ao mesmo tempo que coloca o realismo no centro da
teoria da arte, a estética marxista combate firmemente qualquer
espécie de naturalismo, qualquer tendência à mera reprodução
fotográfica da superfície ime.diatamente perceptível do mundo
exterior. Ainda neste ponto, a estética marxista nada afirma de
radicalmente novo; limita-se a desenvolver ao seu mais alto nível de
consciência e clareza aquilo que sempre se encontrou no centro da
teoria e da prática dos grandes artistas do passado.
Mas, ao mesmo tempo em que combate o naturalismo, a
estética do marxismo combate, com não menos firmeza, um outro
falso extremo: a concepção que, partindo da ideia de que a mera cópia
da realidade deve ser rejeitada e da ideia de que as formas artísticas são
independentes dessa realidade superficial, chega a atribuir, no âmbito
da teoria e da prática da arte, uma independência absoluta às formas
artísticas. Esta falsa concepção chega a considerar a perfeição formal
como um fim em si mesma e, por conseguinte, prescinde da realidade
1 04 • GYORGY LUKÁCS

na busca de tal perfeição, apresentando-se como completamente


independente do real e julgando assim possuir o direito de modificá­
lo e estilizá-lo arbitrariamente. É uma luta na qual o marxismo
continua e desenvolve as teorias que os mestres da literatura mundial
sempre tiveram em relação à essência da verdadeira arte: teorias
segundo as quais cabe à arte representar fielmente o real na sua
totalidade, de maneira a manter-se distanciada tanto da cópia foto­
gráfica quanto do puro jogo (vazio, em última instância) com as for­
mas abstratas.
Essa maneira de conceber a essência da arte nos põe em con­
tato com um problema central da teoria do conhecimento do mate­
rialismo dialético: o problema das relações entre fenômeno e essên­
cia. O pensamento burguês e, em consequência, a estética burguesa
nunca puderam atingir o cerne desse problema. Toda teoria e toda
prática naturalista são levadas a unir de maneira mecânica e antidia­
lética fenômeno e essência, formando uma turva mistura, na qual a
essência é necessariamente sacrificada e, em muitos casos, chega a
desaparecer completamente. Já a filosofia idealista da arte e a sua
prática de estilização, ao contrário, captam claramente a antítese
entre fenômeno e essência, mas, por força da carência de dialética ou
por força da inconsequência da dialética idealista, detém-se exclusi­
vamente na antítese que existe entre os dois termos, sem reconhecer
a unidade dialética dos opostos que subsiste no interior dessa antítese.
(Essa problemática pode ser claramente percebida em Schiller, tanto
nos seus ensaios estéticos - extraordinariamente interessantes e
profundos - quanto na sua prática poética. ) A literatura e a teoria lite­
rária dos períodos de decadência costumam unificar as duas tendên­
cias errôneas: substituem a verdadeira busca da essência por um jogo
de analogias superficiais que, tal como as concepções da essência dos
clássicos do idealismo, prescinde do real. Tais construções analógicas
se compõem de detalhes naturalistas, impressionistas etc., e estes
detalhes inorgânicos se articulam em uma pseudounidade, sob a
égide de uma "concepção do mundo" mistificada.
A autêntica dialética de essência e fenômeno se baseia no fato
de que ambos são igualmente momentos da realidade obj etiva,
produzidos pela realidade e não pela consciência humana. No en-
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 05

tanto - e este é um importante axioma do conhecimento dialético -,


a realidade apresenta diversos graus: existe a realidade fugaz e
epidérmica, que nunca se repete, a realidade do instante que passa, e
existem elementos. e tendências de uma realidade mais profunda,
que ocorrem segundo determinadas leis, ainda que estas se trans­
formem com a mudança das circunstâncias. Tal dialética atravessa
toda a realidade, de modo que, numa relação desse tipo, relativi­
zam-se aparência e essência: aquilo que era uma essência que se
contrapunha ao fenômeno aparece, quando nos aprofundamos e
superamos a superfície da experiência imediata, como fenômeno
ligado a uma outra e diversa essência, que só poderá ser atingida por
investigações ainda mais aprofundadas. E assim até o infinito.
A verdadeira arte visa ao maior aprofundamento e à máxima
abrangência na captação da vida em sua totalidade onidirecional. A
verdadeira arte, portanto, sempre se aprofunda na busca daqueles
momentos mais essenciais que se acham ocultos sob a superfície dos
fenômenos, mas não representa esses momentos essenciais de ma­
neira abstrata, ou seja, suprimindo os fenômenos ou contrapondo-os
à essência; ao contrário, ela apreende exatamente aquele processo
dialético vital pelo qual a essência se transforma em fenômeno, se
revela no fenômeno, mas figurando ao mesmo tempo o momento no
qual o fenômeno manifesta, na sua mobilidade, a sua própria essên­
cia. Por outro lado, esses .momentos singulares não só contêm neles
mesmos um movimento dialético, que os leva a se superarem conti­
nuamente, mas se acham em relação uns aos outros numa perma­
nente ação e reação mútuas, constituindo momentos de um processo
que se reproduz sem interrupção. A verdadeira arte, portanto, fornece
sempre um quadro de conjunto da vida humana, representando-a no
seu movimento, na sua evolução e desenvolvimento.
Dado que, desse modo, a concepção dialética apreende, numa
unidade universal móvel, o particular e o singular, é claro que essa
concepção deve se manifestar de maneira peculiar nas formas feno­
mênicas específicas da arte. Ao contrário da ciência, que resolve este
movimento nos seus elementos abstratos e se esforça por identificar
conceitualmente as leis que regulam a interação entre os elementos,
a arte conduz à intuição pela sensibilidade desse movimento como
1 06 • GYORGY LUKÁCS

movimento mesmo, em sua unidade viva. Uma das mais importantes


categorias desta síntese artística é a do tipo. E não foi por acaso que
Marx e Engels se reportaram a este conceito quando quiseram definir
o verdadeiro realismo. Escreve Engels: "O realismo supõe, a meu ver,
além da fidelidade aos pormenores, a reprodução exata de caracteres
típicos em circunstâncias típicas". 1 6 Mas Engels afirma igualmente
que não é lícito, absolutamente, contrapor a tipicidade ao caráter
único do fenômeno, fazendo dela uma generalização abstrata deste:
"Cada um destes caracteres é um tipo, mas, ao mesmo tempo, um
indivíduo singular determinado, um 'este', como diz o velho Hegel. E
assim deve ser". 17
Portanto, o tipo não é, para Marx e Engels, o tipo abstrato da
tragédia clássica, nem o personagem que resulta da generalização
idealizante de Schiller, e muito menos aquela média que pretende­
ram estabelecer a literatura e a teoria literária de Zola e seus sucesso­
res. O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele convergem, em
sua unidade contraditória, todos os traços salientes daquela unidade
dinâmica na qual a autêntica literatura reflete a vida; nele, todas as
contradições - as mais importantes contradições sociais, morais e
psicológicas de uma época - se articulam em uma unidade viva. A
representação da média, ao contrário, faz com que tais contradições,
que são sempre o reflexo dos grandes problemas de uma época,
apareçam necessariamente diluídas e enfraquecidas no estado de
espírito e nas experiências de um homem medíocre, com o que são
sacrificados os seus traços essenciais. Na representação do tipo, na
criação artística típica, fundem-se o concreto e a lei, o elemento hu­
mano eterno e o historicamente determinado, o momento individual
e o momento social universal. Portanto, é na representação típica, na
descoberta de caracteres e situações típicas, que as mais importantes
tendências da evolução social conseguem uma expressão artística
apropriada.
A essas observações de caráter geral, devemos acrescentar uma
outra: Marx e Engels viam em Shakespeare e em Balzac (em compa­
ração, respectivamente, com Schiller, de um lado, e com Zola, de
outro) a tendência artística realista que melhor correspondia à es­
tética que professavam. A preferência por estes grandes escritores
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 07

indica, por si mesma, que a concepção marxista do realismo nada


tem a ver com a cópia fotográfica da vida cotidiana. A estética marxista
se limita a desejar que a essência individualizada pelo escritor não
venha representada de maneira abstrata e, sim, como essência
organicamente inserida no quadro da fermentação dos fenômenos a
partir dos quais ela nasce. Não é absolutamente necessário que o
fenômeno artisticamente figurado seja captado como fenômeno da
vida cotidiana e nem mesmo como fenômeno da vida real em geral.
Isso significa que até mesmo o mais extravagante jogo da fantasia
poética e as mais fantásticas representações dos fenômenos são
plenamente conciliáveis com a concepção marxista do realismo.
Não é de modo algum por acaso que precisamente algumas
novelas fantásticas de Balzac e de E. T. A. Hoffmann estivessem entre
as criações artísticas mais admiradas por Marx. Naturalmente, há
fantasia e fantasia. E há fantástico e fantástico. Se, neste campo,
quisermos procurar um critério de valorização e discriminação,
deveremos voltar às teses fundamentais da dialética materialista e à
teoria do reflexo da realidade. A estética marxista, que nega o caráter
realista do mundo representado através de detalhes naturalistas (que
escamoteiam as forças motrizes essenciais dos fenômenos) , consi­
dera perfeitamente normal que as novelas fantásticas de Hoffmann e
de Balzac representem momentos culminantes da literatura realista,
porque nelas, precisamente em virtude da representação fantástica,
as forças essenciais são postas em especial relevo.
A concepção marxista do realismo afirma que a arte deve
tornar sensível a essência. Ela representa a aplicação dialética da teoria
do reflexo ao campo da estética. E não é. casual que o conceito de tipo
seja aquele que, com maior clareza, evidencia tal peculiaridade da
estética marxista. Por um lado, o tipo fornece uma solução para a
dialética essência-fenômeno, solução específica da arte, que não se
repete em nenhum outro campo; e, por outro lado, remete ao mesmo
tempo àquele processo histórico-social do qual a melhor arte realista
constitui o fiel reflexo. Essa definição marxista do realismo prolonga
a linha que grandes mestres do realismo, como Fielding, adotaram na
sua prática artística; esses mestres se intitulavam historiadores da vida
burguesa, da vida privada. Mas Marx, a propósito da relação entre a
1 08 • GYORGY LUKÁCS

grande arte realista e a realidade histórica, vai além dos maiores


realistas e avalia os resultados obtidos por tal arte melhor do que eles.
Numa conversa com seu genro, o eminente escritor socialista Paul
Lafargue, Marx se exprime nos seguintes termos acerca desta função
de Balzac: "Balzac não foi somente o historiador do seu tempo, mas
também o criador de tipos proféticos que não existiam na época de
Luís Filipe, mas que, estando [nesta época] em estágio embrionário,
desenvolveram-se apenas depois de sua morte [ de Balzac] , durante o
período de Napoleão III". 18
To das essas exigências manifestam a resoluta e radical
objetividade da estética marxista. Segundo tal concepção, o traço
dominante dos grandes realistas é, pois, a tentativa apaixonada e
espontânea de captar e reproduzir a realidade tal como ela é, obje­
tivamente, na sua essência. A esse respeito, são numerosos os equí­
vocos correntes acerca da estética marxista. Costuma-se repetir que
ela subestima a ação do sujeito, que ela subestima a eficácia do fator
artístico subjetivo na criação da obra de arte. Costuma-se confundir
Marx com aqueles vulgarizadores que permanecem teoricamente
presos às tradições naturalistas e apresentam como marxista o falso e
mecânico objetivismo dessas tradições. Tivemos, contudo, ocasião de
constatar que um dos problemas centrais da concepção marxista é a
dialética do fenômeno e da essência, a descoberta e enunciação da
essência no contexto das contraditórias manifestações fenomênicas.
Ora, se não cremos que o sujeito artístico "crie" ex nihilo algo radical­
mente novo, se reconhecemos que ele descobre uma essência que
existe independentemente dele (e que não é acessível a todos e per­
manece por muito tempo oculta até para o maior dos artistas) , nem
por isso a atividade do sujeito cessa ou é minimamente diminuída.
Portanto, se a estética marxista identifica o maior valor da atividade
criadora do sujeito artístico no fato de ele assumir em suas obras o
processo social universal e torná-lo sensível, experimentalmente
acessível; e se, nessas obras, cristaliza-se a autoconsciência do sujeito,
o despertar da consciência do desenvolvimento social, nada disso
implica uma subestimação da atividade do sujeito artístico, mas, pelo
contrário, temos assim uma legítima valorização desta atividade,
mais elevada do que a de qualquer outro critério precedente.
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 09

Ainda aqui, como em tudo, o marxismo nada cria de "radi­


calmente novo". Já a estética de Platão, a sua doutrina do reflexo
artístico das ideias, aflorava essa questão. Mas, também neste campo,
o marxismo recoloca sobre seus próprios pés a verdade que os grandes
idealistas tinham descoberto invertida. Por um lado, o marxismo não
admite, como vimos, uma radical contraposição entre fenômeno e
essência, mas procura a essência no fenômeno e o fenômeno na
relação orgânica com a essência. Por outro lado, a captação estética da
essência, da ideia, não constitui para o marxismo um ato linear e
definitivo e, sim, um processo: processo que é movimento, aproxi­
mação gradual da realidade essencial, até mesmo porque a realidade
mais profunda e essencial é sempre apenas uma porção daquela
totalidade do real da qual também faz parte o fenômeno superficial.
Por isso, se o marxismo realça a objetividade mais radical do
conhecimento e da representação estética, acentua também, ao
mesmo tempo, o papel indispensável do sujeito criador, já que este
processo, esta aproximação gradual da essência oculta, é uma estrada
que se abre somente para os maiores e mais perseverantes gênios da
criação artística. A objetividade da ciência marxista chega ao ponto de
não reconhecer nem mesmo à abstração - à abstração verdadei­
ramente significativa - a propriedade de mero produto da consciência
humana; demonstra, ao contrário, especialmente para as formas
primárias do processo social ( isto é, as formas econômicas) , de que
modo a abstração se realiza e opera com base na própria realidade so­
cial e em seus objetos. Mas, para poder acompanhar o processo de
abstração com inteligente fantasia, para poder trilhar o seu caminho e
iluminar seus desenvolvimentos, é preciso concentrar em figuras e
situações típicas o tecido do processo global. E, para isso, requer-se
um gênio artístico da máxima grandeza.
Vemos, por conseguinte, que a objetividade da estética marxis­
ta não se acha absolutamente em contradição com o reconhecimento
do fator subjetivo na arte. Mas devemos ainda considerar esta ideia de
outro ângulo: precisamos acrescentar às nossas considerações que a
objetividade marxista não significa neutralidade em face dos fenôme­
nos sociais. Precisamente porque - como corretamente reconhece a
estética marxista - o grande artista não representa coisas ou situações
estáticas, mas investiga a direção e o ritmo dos processos, cumpre-lhe,
110 • GYORGY LUKÁCS

como artista, definir o caráter de tais processos. E, numa tomada de


consciência deste gênero, já está implícita uma tomada de posição. A
concepção segundo a qual o artista seria só um espectador passivo
desses processos, situando-se acima de todo e qualquer movimento
social (a flaubertiana impassibilité) , é, no melhor dos casos, uma
ilusão, uma forma de autoengano; mas quase sempre não passa de
uma evasão, de uma fuga diante dos grandes problemas da vida e da
arte. Não há grande artista em cuja representação da realidade não se
exprimam, ao mesmo tempo, também as suas opiniões, desejos, aspi­
rações apaixonadas e nostálgicas. Será essa constatação contraditória
em relação à nossa assertiva de que a essência da estética marxista é a
objetividade?
Entendemos que não. E, para poder elucidar a questão, deve­
mos lembrar brevemente o problema da chamada arte de tendência
ou de tese, procurando esclarecer qual seja a interpretação marxista
do problema e quais as relações dessa interpretação com a estética
marxista. O que é a tese? Numa acepção superficial, é uma tendência
política ou social do artista que ele quer demonstrar, defender e
ilustrar com a sua própria obra de arte. É interessante e sintomático
que Marx e Engels sempre se exprimissem com ironia a respeito de
tais construções artificiosas, quando tratavam de uma arte dessa es­
pécie. A ironia que manifestam se torna especialmente áspera
quando verificam que o escritor, para demonstrar a verdade de
qualquer proposição ou justificação, violenta a realidade objetiva,
deformando-a. (Vejam-se, em particular, as observações críticas de
Marx sobre Sue.) Mesmo quando se trata de um grande escritor, Marx
protesta contra a tendência no sentido de utilizar toda a obra, ou
mesmo um só personagem, como expressão direta e imediata das
opiniões do autor, o que priva o personagem da autêntica possibili­
dade de viver até o fundo suas próprias faculdades vitais segundo as
leis íntimas e orgânicas da dialética de seu próprio ser. E é isso que
Marx desaprova na tragédia de Lassalle:
Poderias exprimir, e num grau muito maior, as ideias
mais modernas na sua forma mais pura, ao passo que, ao
procederes como procedeste, excetuando-se a liberdade
religiosa, é a unidade política que permanece, de fato, como
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 111

a ideia central do teu drama. Muito naturalmente, no caso


que aponto, deverias ter shakespearianizado mais tua peça.
Considero o teu maior erro a schillerização, ou seja, a
· transformação dos indivíduos em simples porta-vozes do
espírito da época.19

No entanto, esta rejeição da literatura de tendência não signi­


fica absolutamente que a verdadeira literatura não tenha uma tendên­
cia. Cabe lembrar que a realidade objetiva, em si mesma, não é uma
caótica mistura de movimentos sem direção, mas um processo evolu­
tivo que possui internamente tendências mais ou menos acentuadas
e que, sobretudo, possui em si uma tendência fundamental. O des­
conhecimento desse fato, e uma tomada de posição falsa diante dele,
ocasionam sempre grandes prejuízos a qualquer criação artística.
Basta recordar a crítica de Marx à tragédia de Lassalle.
Isso já define a atitude do artista em face das diversas tendên­
cias do movimento social e, em particular, das tendências funda­
mentais deste processo. De acordo com isso, Engels exprime do
seguinte modo o seu ponto de vista sobre a tendência na arte:
Não sou, de forma nenhuma, adversário da poesia de
tendência como tal. Ésquilo, o pai da tragédia, e o pai da
comédia, Aristófanes, foram ambos, e de forma muito vi­
gorosa, poetas de tendência, bem como Dante e Cervantes.
E o que há de melhor em Intriga e amor de Schiller é o fato
de ser o primeiro drama político alemão de tendência. Os
russos e noruegueses modernos, que escrevem excelentes
romances, são romancistas de tendência. Julgo, porém,
que a tendência deve derivar da própria situação e ação,
sem ser explicitamente formulada. O poeta não tem que
já dar pronta ao leitor a solução histórica futura dos con­
flitos sociais que descreve.20

Engels explica aqui claramente de que modo a tendência se


concilia com a arte e ajuda o artista a produzir as maiores criações;
mas isso só ocorre quando a tendência brota organicamente da
essência artística da obra, da representação artística, ou seja - de
acordo com o que dissemos antes - da realidade mesma, da qual a arte
constitui o reflexo dialético. Ora, quais são as tendências funda­
mentais diante das quais os autênticos criadores de obras literárias
1 12 • GYORGY LUKÁCS

devem assumir posição? São as grandes questões do progresso do


gênero humano. Nenhum grande escritor pode permanecer indife­
rente diante delas; e, sem tomar apaixonadamente posição em face de
tais questões, não será possível criar tipos autênticos, com o que não
terá lugar o verdadeiro realismo. Sem essa tomada de posição, o
escritor jamais poderá distinguir entre o essencial e o não-essencial.
Do ponto de vista da totalidade do desenvolvimento social, a possibili­
dade de efetuar uma distinção justa é vedada àquele que não se
entusiasma pelo progresso, que não detesta a reação, que não ama o
bem e não repele o mal.
Neste ponto, porém, vemo-nos aparentemente envoltos numa
profunda contradição. Da argumentação precedente, parece resultar
que todo escritor da sociedade dividida em classes deve possuir, para
ser grande, uma concepção progressista do mundo em filosofia, so­
ciologia e política; parece resultar que, em suma (para dar a essa
aparente contradição uma formulação clara), todo grande escritor
deva ser política e socialmente de esquerda. No entanto, não poucos
entre os grandes realistas da história da literatura - e exatamente os
autores preferidos por Marx e Engels - demonstram o contrário: nem
Shakespeare, nem Goethe, nem Walter Scott, nem Balzac tiveram
uma posição política de esquerda.
Marx e Engels não só não procuraram evitar essa questão como
a submeteram, de fato, a uma análise sutil e profunda. Numa famosa
carta a Margaret Harkness, Engels aborda amplamente o problema,
isto é, o fato de que Balzac, portador de sentimentos politicamente
monarquistas e legitimistas, admirador da aristocracia em declínio,
exprima, nas suas obras, em última instância, exatamente a con­
cepção oposta.
Não há dúvida que, em política, Balzac era legitimista.
A grande obra que deixou é uma elegia permanente, lamen­
tando a decomposição inevitável da alta sociedade; todas
as suas simpatias vão para a classe condenada a desapare­
cer. Mas, apesar disso, a sátira nunca é tão contundente
nem a ironia nunca tão amarga como quando põe em
ação, precisamente, os aristocratas, esses homens e mulhe­
res por quem sentia uma simpatia . tão profunda. 21
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 13

E, em nítido contraste com isso, ele apresenta os seus adver­


sários políticos, os republicanos revoltosos, como os únicos verda­
deiros heróis da época. As consequências últimas dessa contradição
são sintetizadas por Engels da seguinte forma:
O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as pró­
prias simpatias de classe e contra seus preconceitos políti­
cos, o fato de ter visto o fim inelutável de seus tão estimados
aristocratas e de os ter descrito como não merecendo
melhor sorte, o fato de ter visto os verdadeiros homens do
futuro no único local onde, na época, podiam ser encontra­
dos - tudo isso eu considero como um dos maiores triun­
fos do realismo e uma das características mais notáveis do
velho Balzac. 22

Terá o corrido, talvez, um milagre? Ter- se-á revelado aqui


uma genialidade artística "irracional", misteriosa, que não pode ser
apreendida conceitualmente e que rompeu as cadeias das concepções
políticas que a adulteravam? Nada disso. O que a mencionada análise
de Engels demonstra é, substancialmente, um fato simples e claro,
cuja verdadeira significação, contudo, só foi pela primeira vez efeti­
vamente descoberta e analisada por ele e por Marx. Trata-se, antes de
mais nada, daquela honestidade estética incorruptível, isenta de qual­
quer vaidade, própria dos escritores e artistas verdadeiramente gran­
des. Para eles, a realidade, tal como ela é, tal como se revelou em sua
essência após pesquisas cansativas e aprofundadas, está acima de to­
dos os seus desejos pessoais mais caros e mais íntimos. A honestidade
do grande artista consiste precisamente no fato de que, quando a evo­
lução de um personagem entra em contradição com as concepções
ilusórias em função das quais ele se engendrara na fantasia do escritor,
este o deixa desenvolver-se livremente até suas últimas consequên­
cias, sem se perturbar com o fato de que suas mais profundas con­
vicções viram fumaça por estarem em contradição com a autêntica e
profunda dialética da realidade. Tal é a honestidade que podemos
constatar e estudar em Cervantes, em Balzac, em Tolstoi.
Mas também esta honestidade tem um seu conteúdo concreto.
Para percebê-lo, basta confrontar o legitimismo de Balzac com o de
um escritor como Paul Bourget, por exemplo. Bourget está efetiva-
1 14 • GYôRGY LUKÁCS

mente em guerra contra o progresso, quer mesmo impor à França


republicana o jugo da velha reação; ele se serve das contradições e do
caráter problemático da vida moderna para apresentar como remédio
a ideologia superada dos velhos tempos. O verdadeiro conteúdo do
legitimismo balzaquiano, ao contrário, é a defesa da integridade do
homem durante a ascensão capitalista iniciada na França à época da
Restauração . Balzac não percebe apenas a força irresistível desse
processo; percebe igualmente que sua irresistibilidade deriva dos
momentos progressistas que contém. Percebe que essa evolução, a
despeito de todos os seus traços deformados e deformantes, alcança,
no desenvolvimento da humanidade, uma etapa mais elevada do que
a feudal ou semifeudal que ela está destruindo, por vezes de forma
horrenda. Porém, ao mesmo tempo, Balzac verifica que este processo
traz consigo uma dilaceração, uma deformação do homem, e ele
repele isso em nome da salvaguarda da integridade humana. Dessa
contradição ( insolúvel para Balzac como pensador) , deriva sua con­
cepção social e política do mundo. Porém, na medida em que ele es­
tuda e representa o mundo com os meios da verdadeira objetividade
realista, não só consegue refletir fielmente em seus personagens a
verdadeira essência do processo, mas mergulha fundo dentro de si
mesmo e chega às autênticas raízes do seu amor e do seu ódio. Como
pensador, Balzac é fruto do ambiente de Bonald e De Maistre; como
criador, ele possui uma visão mais aguda e mais penetrante do que os
pensadores políticos da direita. Através das suas relações com a
integridade do homem, ele penetra nas contradições da ordem
econômica capitalista, na problemática da civilização capitalista; a
imagem do mundo própria do Balzac criador aproxima-se extraor­
dinariamente do quadro satírico da sociedade capitalista em forma­
ção elaborado por Fourier, seu grande contemporâneo.
Em sua acepção marxista, o triunfo do realismo significa um
completo rompimento com aquela concepção vulgar da literatura e
da arte que deduz mecanicamente o valor da obra literária a partir das
concepções políticas do escritor, da sua pseudopsicologia de classe. O
método marxista aqui indicado se presta muito bem para esclarecer
fenômenos literários, mesmo os mais complexos. Mas isso só ocorre
quando se sabe utilizá-lo concretamente, com genuíno espírito histo-
I NTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 1 15

ricista e com discernimento estético e social. Quem se iludir pen­


sando que vai encontrar nele um esquema aplicável a todo e qualquer
fenômeno literário mostrará que adota uma interpretação dos clás­
sicos do marxismo tão falsa quanto a dos marxistas vulgares de velho
estilo. Para que não reste nenhum equívoco a respeito, permitimo­
nos sublinhar mais uma vez: o triunfo do realismo não significa, se­
gundo Engels, que a ideologia abertamente proclamada pelo escritor
seja indiferente para o marxismo, como não significa que toda
criação de qualquer escritor represente um triunfo do realismo pelo
simples fato de se afastar em maior ou menor medida da ideologia
abertamente proclamada. Só se realiza o triunfo do realismo quando
artistas efetivamente grandes estabelecem uma relação profunda e
séria, ainda que não conscientemente reconhecida, com uma corren­
te progressista da evolução humana. Do ponto de vista marxista, é tão
inadmissível colocar no pedestal dos clássicos escritores ineptos ou
medíocres por causa de suas convicções políticas, quanto querer
reabilitar, com base na formulação de Engels, escritores de maior ou
menor habilidade, mas completa ou parcialmente reacionários.
Não foi por acaso que falamos, a respeito de Balzac, da salva­
guarda da integridade do homem. Na maior parte dos grandes
realistas, é este o motivo que leva à reprodução do mundo real, se bem
que - como é óbvio - com características e tons bastante diversos,
conforme as épocas e os indivíduos. Grandeza artística, realismo au­
têntico e humanismo são sempre indissoluvelmente ligados. E o
princípio unificador é precisamente aquele mencionado, ou seja, a
preocupação com a integridade do homem. Tal humanismo é um
dos princípios fundamentais mais essenciais da estética marxista. De­
vemos reafirmar que foram Marx e Engels os primeiros a colocar o
princípio da humanitas no centro mesmo da concepção estética.
Ainda aqui, como em tudo o mais, Marx e Engels foram os continua­
dores da obra dos maiores representantes do pensamento filosófico e
estético, elevando-o a um nível qualitativamente mais alto. Por outro
lado, porém, precisamente porque não são seus iniciadores, mas rea­
lizam o coroamento de uma longa evolução, Marx e Engels são de
longe os representantes mais consequentes deste humanismo.
116 • GYôRGY LUKÁCS

E, se são tais representantes, o são - contrariamente aos pre­


conceitos burgueses habituais - exatamente com base em sua con­
cepção materialista do mundo. Numerosos pensadores idealistas já
sustentaram parcialmente princípios humanistas análogos aos de
Marx e Engels; numerosos pensadores idealistas lutaram em nome
do humanismo contra tendências políticas, sociais e morais com­
batidas também por Marx e Engels. Mas só a concepção materialista
da história é capaz de reconhecer que a verdadeira e mais profunda
lesão ao princípio do humanismo, a dilaceração e mutilação da inte­
gridade humana, é apenas a consequência inevitável da estrutura
econômica, material, da sociedade. A divisão do trabalho nas socie­
dades de classe, a cisão entre cidade e campo, a divisão entre trabalho
físico e trabalho espiritual, a exploração e a opressão do homem pelo
homem, a fragmentação do trabalho nas condições anti-humanas da
ordem capitalista de produção - todos estes processos são processos
econômicos, materiais.
Sobre os efeitos culturais e artísticos de todos esses fenômenos,
já escreveram (em tom ora elegíaco, ora irônico) até mesmo pensado­
res idealistas, revelando grande profundidade e acuidade de visão;
porém, só a concepção materialista da história, elaborada por Marx e
Engels, estava em condições de alcançar as raízes da questão. E, por
terem penetrado até as raízes, eles puderam superar a crítica mera­
mente irônica das manifestações anti-humanistas do desenvolvimen­
to e da existência das sociedades divididas em classes, bem como as
lamentações elegíacas que evocam nostalgicamente tempos passados
pretensamente idílicos. Eles souberam demonstrar cientificamente
de onde provém e para onde se dirige o processo geral, bem como o
modo pelo qual será possível salvaguardar realmente a integridade
humana, a integridade do homem real. Souberam indicar o modo
pelo qual se devem modificar as bases materiais de que resultam
necessariamente a mutilação e a corrupção do humano; o modo pelo
qual a humanidade adquire consciência e pelo qual o proletariado,
portador social e político avançado desta consciência, pode criar bases
materiais que facilitem o aperfeiçoamento social, político, moral,
espiritual e artístico, impulsionando a humanidade a um nível jamais
alcançado no passado.
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 117

Esta questão se situa no centro do pensamento de Marx. Num


de seus textos, ele contrapôs a situação do homem na sociedade
capitalista à situação do homem na sociedade socialista:
No lugar de todos os sentidos físicos e espirituais, co­
locou-se, portanto, pura e simplesmente, a alienação de
todos estes sentidos, substituídos pelo sentido do possuir.
A esta absoluta pobreza precisou ser reduzido o ser huma­
no para que ele pudesse engendrar de dentro de si mesmo
a sua riqueza íntima [ ... ] . Assim, a supressão da proprieda­
de privada representa a completa emancipação de todos os
sentidos, de todas as faculdades humanas. E representa
essa emancipação exatamente pelo fato de que tais sentidos
e faculdades se tornaram humanos tanto subjetiva quanto
objetivamente. 2 3

Assim, o humanismo socialista se insere no centro da estética


marxista, da concepção materialista da história. Em oposição aos
preconceitos burgueses (que se apoiam na concepção tosca e antidia­
lética própria do marxismo vulgar) , é preciso sublinhar com ênfase
que, se esta concepção penetra nas raízes mais profundamente entra­
nhadas no solo, nem por isso nega a beleza das flores. Ao contrário, é
a concepção materialista da história, a estética marxista, e somente
ela, que fornece os instrumentos para uma justa compreensão deste
processo na sua unidade, na sua orgânica conexão entre raízes e
flores.
Por outro lado, aquela afirmação de princípio da concepção
materialista da história - segundo a qual a verdadeira e definitiva
emancipação da humanidade em relação às consequências defor­
mantes da sociedade dividida em classes só pode se realizar no socia­
lismo - não implica, absolutamente, uma contraposição rígida,
antidialética, esquemática, que leve a um repúdio sumário da cultura
das diversas sociedades divididas em classes ou à indiferença em face
das diversas realizações dessas sociedades e de suas manifestações
culturais e artísticas (como ocorre frequentemente nos vulgariza­
dores superficiais do marxismo) . Sem dúvida, a verdadeira história da
humanidade começará com o socialismo. Mas a pré-história que
conduz ao socialismo constitui um elemento essencial da formação
do próprio socialismo. E as etapas desse caminho não podem deixar
118 • GYORGY LUKÁCS

indiferentes os defensores do humanismo socialista e da estética


marxista.
O humanismo socialista torna possível à estética marxista a
unificação do conhecimento histórico e do conhecimento puramente
estético, a contínua convergência do juízo histórico e do juízo esté­
tico. Desse modo, a estética marxista resolve precisamente a questão
que mais atormentara os seus predecessores, quando eram realmente
grandes, e que foi sempre deixada de lado pelos menores: a da unidade
entre o valor estético permanente da obra de arte e o processo
histórico do qual ela - exatamente na sua perfeição, no seu valor
estético - não pode ser desvinculada.

Notas

1
Trata-se da edição húngara dos escritos estéticos de Marx e Engels, para a
qual Lukács escreveu esta introdução.
2 Verlag Bruno Henschel, Berlim, 1 948. Uma edição bastante resumida dos
escritos estéticos de Marx e Engels foi publicada no Brasil, com o título
Sobre literatura e arte, São Paulo, Global, 1 979, 1 07 p. Uma coletânea mais
ampla saiu em Portugal: Sobre a literatura e a arte, Lisboa, Estampa, 1 97 1 ,
293 p.
3 Engels a Starkenburg, 25 de janeiro de 1 894, em K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, v. 3, 1 963, p. 299. Nos anos 1 970, des­
cobriu-se que o verdadeiro destinatário desta carta de Engels era B. Borgius,
sobre o qual se carece de informações.
4 K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo, 2004,
p. 1 1 0. Aqui, como nas demais referências a esta edição brasileira dos
Manuscritos, utilizamos outra tradução.
5 Ibid., p. 1 1 0- 1 1 1 .
6 Engels a Schmidt, 27 de outubro de 1 890, em K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas, ed. cit., v. 3, p. 290.
7 Ibid., p. 29 1 .
8 Ibid.
9 K. Marx, "Introdução" ( 1 857) a Para a crítica da economia política, em id.,
Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos, São Paulo, Abril
Cultural, col. "Os pensadores'', v. XXXV, 1 974, p. 1 30. A tradução, aqui e
na citação seguinte, está levemente modificada.
10
Ibid.
INTRODUÇÃO AOS ESCRITOS ESTÉTICOS DE MARX E ENGELS + 119

11
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, ed. cit., p. 1 59- 1 60.
12
F. Engels, "Introdução" à Dialética da natureza, em K. Marx e F. Engels,
Obras escolhidas, ed. cit., v. 2, p. 254.
13
Carta de Engels a Lassalle, 18 de maio de 1 859, em K. Marx e F. Engels,
Sobre a literatura e a arte, ed. portuguesa citada, p. 1 88.
14
C f. K. Marx e F. Engels, A sagrada família, São Paulo, Boitempo, 2003,
p. 1 85-236.
15
K. Marx, "Introdução" a Para a crtrica da economia política, e d . cit., p. 131.
16
Engels a M . Harkness, abril de 1 888, em K. Marx e F. Engels, Sobre a
literatura e a arte, ed. cit., p. 1 96.
17
Engels a Minna Kautsky, 26 de novembro de 1 885, ibid. , p. 1 92.
18
Paul Lafargue, "Karl Marx: recordações pessoais", em D. Riazanov ( org. ) ,
Marx: o homem, o pensador, o revolucionário, São Paulo, Global, 1 984,
p. 86.
19 Marx a Lassalle, 19 de abril de 1 859, em K. Marx e F. Engels, Sobre a
literatura e a arte, ed. cit. , p. 1 84.

:<i Engels a Minna Kautsky, ed. cit., p. 1 93.


21
Carta a M. Harkness, abril de 1 888, em K. Marx e F. Engels, Sobre a
literatura e a arte, ed. cit., p. 1 97.
22 Ibid. , p . 1 97- 1 98.
13 K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, e d . cit., p . 1 08- 1 09.
N IETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA F ASCISTA

Admitindo-se como verdade que eu seja


um decadente, sou também o oposto disso.
Nietzsche, Ecce homo

1.

Não h á u m único motivo d a estética fascista que não proceda,


direta ou indiretamente, de Nietzsche; não vale a pena enumerá-los
aqui, a começar pela doutrina do mito e pelo antirrealismo. Na
análise da estética de Nietzsche, o leitor perceberá tão clara e intensa­
mente o parentesco com a estética fascista que nossa exposição deve
se concentrar mais na tarefa de mostrar as diferenças entre ambas.
Porque há diferenças em quase todos os pontos, apesar da predomi­
nância daquele parentesco. Tais diferenças se devem não apenas ao
fato de Nietzsche, em toda a sua problemática, ser um pensador que
tem importância e interesse, ao passo que seus adeptos fascistas são
apologistas ecléticos, sicofantas e demagogos, charlatães a serviço do
capitalismo senil, mas também, e principalmente, à radical distinção
existente entre os dois períodos de evolução da ideologia burguesa.
O fascismo tem que eliminar da herança burguesa todos os
seus elementos progressistas; no caso de Nietzsche, tem que adulterar
ou negar todos os momentos nos quais ele formula uma crítica ro­
mântica, subjetivamente honesta, da cultura capitalista. Claro que é
impossível eliminar por completo da obra de Nietzsche o seu pro­
fundo desespero em face da decadência da cultura capitalista; é fato,
pois, que a' crítica nietzschiana da cultura capitalista fundamenta as
tendências liberais da "crítica da cultura" do período imperialista, tão
violentamente combatida pelo fascismo. Por isso, Rosenberg, o
teórico oficial do fascismo, 1 apesar de toda a sua estima por Nietzsche,
deve considerá-lo "criticamente". Rosenberg vê em Nietzsche uma
vítima do período liberal, materialista.
1 22 • GYORGY LUKÁCS

A loucura de Nietzsche é como uma parábola. Uma


gigantesca e reprimida vontade criadora certamente conse­
guiu fazer-se sentir como uma inundação, mas esta mesma
vontade, há muito intimamente estilhaçada, não tomou
uma forma criadora.

E Rosenberg considera a anterior influência de Nietzsche


como característica do seu "período de loucura":
Em seu nome, sob os seus ensinamentos, levou-se à
frente a infecção da raça por semitas e negros de toda
espécie, enquanto ele aspirava ao puro cultivo da raça.
Nietzsche aninhou-se nos sonhos de desavergonhados
amantes políticos, o que é pior do que cair nas mãos de
um bando de delinquentes. O povo alemão só ouviu falar
dele em termos de ruptura de todos os vínculos, de
subjetivismo e de "personalidade", nunca em termos de
disciplina da raça ou de elevação interior.

Numa palavra: Rosenberg sabe que, no período anterior ao


fascismo, Nietzsche foi um filósofo do odiado liberalismo.
A liquidação desta herança liberal em Nietzsche é operada por
Rosenberg mediante os insultos mais triviais. Seu companheiro fas­
cista, Alfred Bãumler, professor da Universidade de Berlim, visa aos
mesmos objetivos, mas com procedimentos menos toscos. Bãumler
polemiza duramente contra o perfil de Nietzsche oferecido pelo seu
colega Ernst Bertram, também fascista e discípulo de George. 2 Para
Bertram, que continua a reelaboração fascista das tradições nietzs­
chianas do imperialismo de pré-guerra, Nietzsche é somente um
"revolucionário trágico" (nas palavras de Bãumler) .
Nunca - afüma Bertram - , d e modo tão tragicamente
exemplar, a tendência dissolutora dos mistérios própria
do meramente individual e de toda a sua crueldade intelec­
tual combateu toda forma de obscuridade sagrada, com
a reverência premonitória do iniciado vinculado intimamen­
te à religião, com a mesma veemência que no voltairiano
sublimado em Zaratustra.

Esta imagem de Nietzsche, que representa uma continuação


fascistizada e exacerbada em sentido místico da interpretação de
Nietzsche por Simmel, é objeto da mais contundente recusa por parte
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 23

de Baumler. Também este critica as tendências "positivistas" de


Nietzsche e, às suas teorias místicas, opõe as "mais profundas" e
"autênticas" de Gõrres, Bachofen3 etc. Mas, para ele, Nietzsche não é
uma figura trágica; ao contrário, é o pensador com o qual se abre um
período completamente novo para a humanidade. De acordo com
Baumler, Nietzsche combate em duas frentes: contra o iluminismo e
o romantismo, sendo assim o precursor teórico da demagógica luta
do fascismo em duas frentes, ou seja, contra o marxismo e a reação.
(A tentativa de Moeller van den Bruck4 de apresentar o conservado­
rismo como oposição tanto ao liberalismo quanto à reação é o prelú­
dio da concepção que Baumler tem de Nietzsche. )
A tragédia da vida de Nietzsche, de acordo com Baumler, é que
o Segundo Reich alemão, o de Bismarck, carecia dos pressupostos
necessários à compreensão da sua filosofia, determinando a inutili­
dade da luta de Nietzsche para convertê-la em fundamento do Se­
gundo Reich. E, por esta razão, o Reich bismarckiano sucumbiu. "O
liberalismo nacionalista, que Hegel fundou ideologicamente, era a
última forma da síntese do iluminismo e do romantismo, que
Nietzsche estava chamado a dissolver." E Nietzsche vislumbrou o que
Bismarck não conseguiu ver:
A história do Reich converteu-se na história da derrota
intelectual de Bismarck. [ . ] O burguês comerciante subor­
..

dinou o estadista, o liberalismo e o romantismo se alterna­


ram na política e, sobretudo, se fizeram bons negócios [ .. . ]
.

Na guerra mundial, todo o luxuoso edifício romântico­


liberal ruiu e, neste mesmo momento, os grandes oponentes
do passado retornaram.

Esta contraposição Bismarck-Nietzsche é, segundo a filosofia


fascista da história, o motivo mais profundo do naufrágio do Segundo
Reich; o Terceiro Reich, finalmente, realiza a reconciliação, a síntese
daquelas duas místicas figuras. O escritor fascista Franz Schauwecker
afirma sobre o presente: "O encontro obstaculizado, antes impossível,
entre Bismarck e Nietzsche será um fato consumado, frente ao qual
fracassará qualquer ataque das forças inimigas". Trata-se do mito
fascista da "síntese da interioridade alemã com o poder alemão".
Tudo o que há de certo neste mito é que Nietzsche, depois da
rápida superação do seu entusiasmo juvenil pela fundação do Reich,
1 24 + GYORGY LuKAcs

foi sempre um explícito inimigo de Bismarck e do seu regime e


desprezava a amb os. Sobre Bismarck, Nietzsche escreveu: "De
filosofia, Bismarck sabe tanto quanto um camponês ou um estudante
de qualquer associação de duelistas e tem por ela o mesmo apreço
que eles". Sobre o Reich bismarckiano, afirmou "ser, em todo o caso, o
Império da mais profunda mediocridade e da burocracia mais
chinesa". Nietzsche despreza a solução política bismarckiana por­
que vê nela um compromisso entre governo e povo. Sua crítica a
Bismarck e ao regime bismarckiano opera na mesma linha da crítica
a Schopenhauer e Wagner, mesmo após a ultrapassagem da admi­
ração inicial que tinha por eles. Nessas três figuras, Nietzsche comba­
te o que designa por "decadência". Num aforismo de MorgenrOte
[Aurora] , junta os três: o filósofo alemão mais lido, Schopenhauer, o
músico alemão mais ouvido, Wagner, e o estadista mais admirado,
Bismarck. Sabemos - mas teremos que repeti-lo aqui várias vezes -
que a luta contra os princípios artísticos de Richard Wagner consti­
tui o núcleo do combate da estética de Nietzsche contra a decadên­
cia e em prol de uma "arte sadia'', do mesmo modo como a supera­
ção de Schopenhauer está no centro da sua filosofia posterior. A
colocação de Bismarck ao lado dessas duas figuras, portanto, mostra
muito precisamente a avaliação que Nietzsche faz dele: um repre­
sentante da decadência no âmbito do Estado e da política.
Quanto a esta decadência política, Nietzsche esclarece o seu
significado com brutal clareza: "A democracia moderna é a forma
histórica da decadência e da ruína do Estado". Ele expressou esta ideia
em diversas passagens da sua obra e com as mais distintas variações.
Limitar-me-ei a recordar um texto característico do seu período
tardio:
Atenhamo-nos à realidade: o povo venceu, os "escra­
vos", o "populacho", o "rebanho" [ . . . ] ; foram eliminados
os "senhores" [ . . ] . Essa vitória pode ser considerada, ao
.

mesmo tempo, como uma septicemia (ela levou a uma


mistura das raças) [ . . ] . A "libertação" da humanidade (em
.

face dos "senhores") se encontra no bom caminho; tudo


se judaíza, ou cristianiza, ou se torna plebeu, a olhos vistos
(pouco importam as palavras) .
N IETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 25

Nietzsche apresenta aqui, tal como antes o fizera Bruno Bauer,


a vitória da democracia moderna como a vitória do princípio judaico­
cristão sobre a Roma aristocrática. O Renascimento foi um contra­
ataque, mas a Reforma propiciou novamente a vitória do princípio
judaico - cristão. E o último golpe foi assestado pela Revolução
Francesa: "A última distinção política que ocorreu na Europa, a dos
séculos XVII-XVIII franceses, submergiu sob os instintos do ressenti­
mento popular". A vitória dessa democracia do populacho conduz à
[ ... ] abolição do conceito de Estado, à supressão da oposi­
ção entre o "privado" e o "público". Passo a passo, as so­
ciedades privadas absorvem os assuntos do Estado [ ... ] . O
florescimento da pessoa privada (cuido bem para não di­
zer: do indivíduo) é a consequência do conceito democrático
de Estado [ . ] .
..

É supérfluo qualquer comentário para compreender o que


Nietzsche pensava daquele Bismarck que firmava um compromisso
precisamente com o populacho: para ele, Bismarck é um reacionário
insuficientemente enérgico.

2.

Não é nosso propósito, aqui, a tarefa de explicitar as evidentes


contradições desse mito histórico produzido por Nietzsche. Tivemos
de recordá-lo brevemente somente para acessar adequadamente as
suas concepções estéticas, uma vez que a luta de Nietzsche contra a
decadência contemporânea da arte se concentra num ataque às
tendências democrático-plebeias da arte da época, em especial a de
Richard Wagner. A característica básica dessa decadência plebeia da
arte, para Nietzsche, é o predomínio do elemento teatral.
Uma época de democracia, tanto em Atenas quanto
hoje, eleva o ator. Richard Wagner ultrapassou tudo neste
domínio e suscitou um conceito do ator tão alto que pro­
voca calafrios. Música, poesia, religião, cultura, livro, família,
pátria, comércio e arte, arte mais do que tudo, significam
atitude cênica.
1 26 • GYORGY LUKÁCS

E, em outro local: "Wagner foi realmente um músico? De


qualquer modo, foi algo mais, ou seja, um histrião incomparável, o
ator máximo, o mais assombroso gênio teatral dos alemães, nosso
cênico par excellence".
A partir deste centro da sua crítica da decadência, Nietzsche
revela claramente os motivos político-sociais da sua radical aversão
em face do ator:
A doutrina da igualdade! Sim, mas há um veneno
ainda pior: pois essa doutrina parece predicada pela pró­
pria justiça, quando, na realidade, é o fim da justiça. [ . ]
..

As vicissitudes dessa doutrina da igualdade foram tão


espantosas e sangrentas que esta " ideia moderna" par
excellence conquistou uma espécie de auréola luminosa, de
tal modo que a Revolução como espetáculo tentou até
mesmo os espíritos mais nobres. Este, porém, em última
instância, não é um motivo para respeitá-la mais. Sei ape­
nas de um - Goethe - que a recebeu como deveria: com
asco [ ... ] .

Consequentemente, Nietzsche degrada Wagner, do ponto de


vista da história da arte, colocando-o entre os românticos franceses;
para ele, Wagner é "o Victor Hugo da música como linguagem". De
acordo com Nietzsche, o romantismo francês é "uma reação do gosto
plebeu"; o próprio Victor Hugo é
[ ... ] superficial e demagógico, sempre com palavras adi­
posas e grandes gesticulações viscerais, um bajulador do
povo que, com a voz de um evangelista, dirige-se a tudo
o que é baixo, oprimido, frustrado, desvalido e não sabe
absolutamente nada do que significa a seleção e a grandeza
do espírito, nada do que seja consciência intelectual; é, em
resumo, um ator inconsciente, como quase todos os artistas
do movimento democrático. Sua arte influiu sobre a massa
como uma bebida alcoólica: ao mesmo tempo embriagan­
do e embrutecendo.

Nietzsche encontra essas mesmas características em Michelet,


George Sand etc. e, em seguida, resume assim a hierarquia dos tipos
artísticos:
Há 1 ) uma arte monológica ( o u "em diálogo com
deus"); 2) uma arte social, que pressupõe a sociedade, um
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 27

tipo mais refinado de homem; 3) uma arte demagógica,


por exemplo: Wagner (para o "povo" alemão), Victor Hugo.

Esta arte dos "plebeus suados" é uma arte para a massa. Com
isto, Nietzsche expressa o seu mais profundo desprezo por toda essa
tendência, já que pulchrum est paucorum hominum [o belo é para
poucos] . Na arte das massas, o belo é substituído por aquilo que as
comove, ou seja, pelo grandioso, pelo sublime, pelo gigantesco, pelo
sugestivo, pelo embriagador etc.
Conhecemos as massas, conhecemos o teatro. O que
de melhor o frequenta: jovenzinhos alemães, Siegfrieds
com chifres e outros wagnerianos, precisam do sublime,
do profundo, do aniquilador [ ... ] . Mas há outros que fre­
quentam o teatro: os cretinos da cultura, os pequenos ex­
tenuados, os eternamente femininos, os que têm prazer na
digestão - numa palavra, o povo , que também precisam
-

do sublime, do profundo, do aniquilador. Tudo isso tem


uma lógica monótona: "o que ·nos agita é forte; o que nos
eleva é divino; o que nos comove é profundo" [ .. ] . Para
.

elevar os homens há que ser sublime. Portanto, caminhe­


mos acima das nuvens, apostrofemos ao infinito, enfeite­
mo-nos com grandes símbolos. Sursum! Bum! Bum! este -

é o melhor conselho. Que o "peito erguido" seja o nosso


argumento e o "belo sentimento", o nosso advogado. A
virtude continua com a razão sobre o contraponto.

Essa mesma brutal vulgaridade manifesta-se, de acordo com


Nietzsche, no naturalismo literário:
Pretende-se obrigar o leitor a ficar atento, "violentá-lo";
daí os numerosos pequenos detalhes sufocantes utilizados
pelo naturalisme. Também isto é próprio de uma era de­
mocrática: há que excitar os grosseiros intelectos esgotados
pelo excesso de trabalho.

Nietzsche relaciona estreitamente essa decadência democrá­


tica e plebeia ao desenvolvimento econômico-social do século XIX.
Isto não quer dizer que ele tenha compreendido minimamente as
específicas determinações econômicas do capitalismo; nem super­
ficialmente se interessou por elas. Mas ele percebe as expressões mais
flagrantes da economia capitalista: a introdução da máquina, a
crescente divisão do trabalho, a expansão das grandes cidades, a
1 28 + GYORGY LuKAcs

liquidação da pequena produção etc.; e, sem descobrir quaisquer


das mediações econômicas e de classe, vincula direta e imediata­
mente todos esses fenômenos aos sintomas da decadência cultural
que constata. A sua atitude diante das consequências culturais do
desenvolvimento capitalista é, inicialmente, a do anticapitalismo
romântico, a da crítica romântica aos efeitos da "idade da máquina",
destruidores da cultura. Sua crítica de modo algum supera o nível
médio daquela corrente; na verdade, no que toca à compreensão dos
vínculos reais entre os fenômenos, ele fica muito abaixo da crítica
dos anticapitalistas românticos ingleses e franceses. Vej amos, por
exemplo, suas observações sobre os efeitos envilecedores da máquina:
A máquina é impessoal, anula o orgulho do trabalho
feito, retira-lhe a qualidade e os defeitos próprios de todo
trabalho não maquinal. Antigamente, comprar algo de
um artesão era distinguir uma pessoa, que desfrutava de
alguma auréola; assim, o mobiliário e a vestimenta se con­
vertiam em símbolo de estima recíproca e de comunidade
pessoal; em troca, hoje parece que vivemos em meio a um
mundo anônimo e impessoal de escravos. Não deveria ser
necessário pagar tão cara a suavização do trabalho.

Nietzsche dirige seu ataque principal às consequências anti­


culturais da divisão capitalista do trabalho. Também aqui, ignora tudo
o que se refere à própria produção e à luta de classes. Importam-lhe
apenas dois momentos do problema. Primeiro, o fato de que a divisão
capitalista do trabalho retira de toda ocupação a significação imediata
de que desfrutava nas sociedades precedentes: em suma, o fato de que
toda ocupação, tanto a do capitalista quanto a do trabalhador, tenha se
tornado sem sentido na sociedade atual. Segundo, e mais importante,
o problema do ócio, do tempo livre. Nietzsche considera, com razão,
que o ócio é o pressuposto subjetivo de uma atuação cultural ativa ou
passiva e, como conhecedor da história antiga, sabe muito bem o que
o ócio significou para o cidadão da cultura antiga. Por isto, analisa,
sob este prisma, com raiva e ironia, o ócio na sociedade capitalista,
insuficiente quantitativa e qualitativamente. Mas com uma pecu­
liaridade: só coloca a questão para a classe dominante. Na concepção
de Nietzsche, os trabalhadores nada têm a ver com a cultura; o seu
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 29

ócio não interessa ao filósofo. Não é casual, pois, que a escravatura


disponha de um papel tão importante na imagem da Antiguidade
pintada pelo jovem Nietzsche: sem escravidão, não há ócio para a
classe dominante; e, sem ócio, não há cultura. Escreve Nietzsche: "Se
for verdade que os gregos desapareceram por causa da escravidão, há
outra coisa muito mais certa: nós fracassaremos por falta de escravos".
De ambos estes pontos de vista, Nietzsche - sem se dar conta do
substrato econômico da questão - estabelece uma polêmica contra a
despersonalização do homem na sociedade capitalista. O "defeito capital
dos homens ativos" recebe dele a seguinte crítica:
Geralmente carecem os ativos de atividade superior, ou
seja, individual. São homens ativos como funcionários,
comerciantes, eruditos, isto é, como seres genéricos, nunca
na condição de determinados homens individuais e únicos;
deste ponto de vista, são inúteis. A desgraça dos ativos
consiste em que sua atividade, quase sempre, é um pouco
irracional. Assim, por exemplo, não se deve perguntar ao
banqueiro que reúne dinheiro a finalidade da sua inin­
terrupta atividade: é uma finalidade irracional. Os homens
ativos se movimentam como se movimentam as pedras,
de acordo com a estupidez da mecânica. Como em todos
os tempos, também agora os homens se dividem em es­
cravos e livres. Mas aquele que não dispõe de dois terços
do dia para si mesmo é um escravo, qualquer que seja a
sua qualificação: estadista, comerciante, funcionário, eru­
dito.

É muito interessante e característica a variação romântico­


reacionária mediante a qual Nietzsche inverte a crítica do capitalismo
feita pelos iluministas. Ferguson5 já criticara duramente a sociedade
capitalista porque a sua divisão do trabalho transforma os homens em
ilotas, impedindo a existência de homens livres. Nietzsche, por um
lado, reduz esta crítica, ao referi-la apenas à classe dominante, ao
passo que Ferguson visa sobretudo à degradação dos trabalhadores
pelo capitalismo; por outro lado, Nietzsche a limita quase exclusi­
vamente à cultura, entendida num estreito sentido burguês. Conse�
quentemente, a sua crítica leva-o a exigir do capitalismo uma "vida
com sentido" apenas para os produtores de cultura e para um público
1 30 • GYORGY LUKÁCS

cultivado que, econômica e socialmente, é parasitário. O uso da


ideologia da pólis grega, com seu desprezo pelo trabalho (embasado
na situação econômica da época) - ideologia tão tragicamente pro­
blemática quando da sua renovação na época da grande Revolução
Francesa -, torna-se em Nietzsche, às vésperas do imperialismo, uma
apologia reacionária do parasitismo.
Este traço parasitário se revela claramente quando Nietzsche
analisa as decisivas consequências que, segundo ele, a divisão capi­
talista do trabalho traz para a arte. Também aqui ele parte da quan­
tidade e da qualidade do ócio.
Temos a consciência de uma época laboriosa: isto nos
impede de dedicar à arte as melhores horas e manhãs, em­
bora a arte seja o que há de mais grandioso e digno. A arte
nos parece coisa do ócio, do descanso para se recompor:
dedicamos a ela as sobras do nosso tempo, das nossas for­
ças. Este é o fato geral que modifica a situação da arte
diante da vida: impondo a seus receptores grandes exigên­
cias de tempo e energia, ela põe contra si mesma a consciên­
cia dos ativos e dos dotados, restando-lhe os inconscientes
e néscios. Mas estes, pela sua natureza mesma, não se in­
clinam à grande arte, interpretando as suas pretensões co­
mo soberba. Isto é o fim da grande arte, pois lhe faltarão
oxigênio e estímulo; ou, então, a grande arte tentará adap­
tar-se a essa atmosfera estranha (ou, pelo menos, subsistir
nela), atmosfera que é o elemento natural tão somente pa­
ra a arte menor, a do entretenimento, da diversão agradável.
Mas, para adaptar-se assim, a arte tem que se vulgarizar
ou se travestir.

Em outra passagem, Nietzsche caracteriza os homens supe­


riores da sociedade capitalista, contrapondo-os aos dos períodos pre­
cedentes:
Temos assim o sentimento de uma gigantesca extensão,
mas também de um gigantesco vazio; e a intenção de to­
dos os homens superiores consiste, neste século, em vencer
este terrível sentimento de vazio. O contrário deste sentimen­
to é a embriaguez. Anotamos, quase como numa contabili­
dade, os nossos pequenos gozos, como se, com a soma dos
muitos pequenos gozos, pudéssemos compensar aquele
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 131

vazio, pudéssemos preenchê-lo. E como nos enganamos


com esta astúcia aritmética!

Esta caracterização nietzschiana da recepção artística na


sociedade capitalista nos reconduz à sua anterior e peculiar polêmica
com a cultura democrático-plebeia da sua época. Nas últimas con­
siderações que transcrevemos, Nietzsche se limita a indicar as bases
sociais que, a seu juízo, promovem o domínio do plebeísmo na arte.
Mas ele logo reuniu todos os aspectos desse problema num esboço de
filosofia da cultura que vê na barbárie o signo geral da era moderna:
"A agitação é tão grande que a cultura superior já não pode florescer
[ . . . ] ; por falta de repouso, a nossa civilização desemboca numa nova
barbárie". De acordo com Nietzsche, porém, esta é uma "barbárie
domesticada": seus traços essenciais são o embrutecimento, a feiura,
a intensificação das características servis, o já descrito plebeísmo da
arte etc. ( Como veremos, essa barbárie deve ser distinguida da
barbárie da "besta loira': dos "Senhores da terra" - que, para Nietzsche,
é positiva e, pois, louvada. ) Ao longo de toda a sua vida, Nietzsche
travou consequentemente essa polêmica. Já no seu trabalho juvenil
contra David Friedrich Strauss,6 Nietzsche zombou do esteta Vischer
porque este, em seu discurso sobre Hõlderlin, afirmara que o poeta
carecia de humor. Por falta de humor, segundo Vischer, Hõlderlin
"não pôde suportar a ideia de que não se é bárbaro quando se é apenas
um filisteu". Nietzsche despreza como "clichê desdenhoso" essa ca­
lúnia contra a memória do "magnífico Hõlderlin". Ele escreve:
Admite-se que alguém seja um filisteu, mas ... um bár­
baro? De modo algum! Infelizmente, o pobre Hõlderlin
não soube ser tão sutil [ . . ] . É claro que o esteta nos quis
.

dizer o seguinte: é possível ser um filisteu e um homem de


cultura; nisto consiste o humor de que Hõlderlin carecia
e esta carência o condenou.

Não são necessárias mais explicações: verifica-se, já à primeira


vista, que Nietzsche, nesta luta contra a cultura, a arte e a teoria
artística do seu tempo, é um continuador da crítica romântica anti­
capitalista. Assim como esta, Nietzsche sempre contrapõe à ausência
de cultura do presente a alta cultura de períodos pré-capitalistas ou
de capitalismo incipiente. Como todos os críticos românticos da
1 32 • GYORGY LUKÁCS

degradação do homem pelo capitalismo, Nietzsche combate a


moderna civilização fetichizada, contrapondo a ela a cultura de
estágios econômica e socialmente mais primitivos. Ele refere-se
explicitamente a um "crepúsculo da arte" e observa, em seus melan­
cólicos comentários a este fato: "O que há de melhor em nós é pro­
vavelmente herança de sensações passadas, a que raramente podemos
aceder diretamente hoje; o Sol já se pôs, mas o céu da nossa vida ainda
arde e é iluminado por ele, embora não o vej amos mais".
Este elementar traço romântico da crítica cultural é de im­
portância decisiva para a estética de Nietzsche. Toda uma série de
motivos das suas avaliações estéticas deriva diretamente dele. E
Nietzsche não só exagera a arte dos tempos pré ou protocapitalistas,
como todos os críticos românticos da civilização capitalista, mas
exagera também a arte daqueles escritores que, em consequência das
circunstâncias especiais que envolvem a sua produção, derivadas do
atraso capitalista em que atuaram, conservam as tradições culturais
pré-capitalistas: estes são os escritores favoritos de Nietzsche. Em um
resumo crítico da prosa alemã, ele destaca, junto às conversações de
Goethe com Eckermann e os aforismos de Lichtenberg,7 dois livros de
seus contemporâneos: Nachsommer [ O verão de São Martinho] , de
Adalbert Stifter, e Leu te von Seldwyla [ O povo de Seldwyla] , de Gottfried
Keller8 - e o faz ignorando a fundamental contraditoriedade entre
essas duas obras. Mais adiante, trataremos das contradições que se
produzem entre estes motivos da estética de Nietzsche e as outras
razões dos seus juízos artísticos. Por agora, limitamo-nos a sublinhar,
por um lado, o fato curioso (embora nada casual) de que, nesta alta
valoração do romantismo tardio alemão semirrealista - a cujo nível
ele rebaixa o grande realismo de Keller -, Nietzsche coincide com seu
desprezado liberal Vischer; e, por outro, que ele jamais foi conse­
quente com esta valoração, mas, ao contrário, chega a juízos diame­
tralmente opostos. Àssim, critica o músico Brahms - que ocupa na
história da música uma posição pós-clássica e romântica tardia, aná­
loga à de Stifter na literatura, embora mais importante - escrevendo
que ele "tem a melancolia da incapacidade: não cria por abundância,
mas está sedento de abundância".
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 33

A peculiaridade histórica de Nietzsche, porém, consiste em


que não critica a civilização capitalista somente a partir deste ponto de
vista romântico. Ele odeia, sem dúvida, a civilização capitalista do
seu tempo; e a odeia, como vimos, precisamente porque o seu fun­
damento é o desenvolvimento do capitalismo (a máquina, a divisão do
trabalho etc. ) . Mas ele também odeia a civilização do seu tempo por
um motivo inteiramente contrário: porque esse capitalismo ainda
não lhe parece suficientemente desenvolvido. Nietzsche, que produziu a
sua obra às vésperas do período imperialista, é ao mesmo tempo um
elegíaco romântico de épocas culturais europeias passadas e um
arauto e "profeta" do desenvolvimento imperialista. É certo que sua
"profecia" do imperialismo está longe de ser uma clara previsão das
tendências sociais que o geraram e nele se desenvolveram; ao con­
trário, trata-se também de uma utopia romântica. Nietzsche não
oferece nenhuma previsão real do imperialismo real; para fazê-lo,
teria que considerar sobretudo o agravamento das contradições de
classe. O que ele faz é elaborar, com os traços da ausência de cultura
do capitalismo contemporâneo (que ataca por seu atraso) , uma ima­
gem utópica de uma situação social que os supera. A ausência de cul­
tura dos capitalistas e a "avidez" dos proletários são os dois polos que
odeia no capitalismo do seu tempo.
Se, nas questões culturais gerais, Nietzsche recorre sempre à
cultura das épocas anteriores e as contrapõe como ideal em face do
presente, nestas duas últimas questões - para ele decisivas - não ope­
ra do mesmo modo. Ou seja: Nietzsche não manifesta entusiasmo
nem com o artesanato corporativo nem com a relação patriarcal entre
o capitalista e o trabalhador. Seu ideal é outro: consiste no domínio
de capitalistas desenvolvidos, cultivados e convertidos em soldados
romanos, sobre um disciplinado exército de trabalhadores trans­
mudados em soldados ascetas. (Nesta utopia capitalista, Nietzsche é
um precursor da concepção de Spengler do domínio de césares capi­
talistas. )
Soldados e caudilhos sempre têm, entre eles, u m com­
portamento superior ao de trabalhadores e empresários.
Pelo menos imediatamente, toda cultura militar está muito
acima de toda a chamada cultura industrial; esta, em sua
1 34 • GYôRGY LUKÁCS

forma atual, é a mais vulgar das formas de existência até


hoje conhecida. Nela opera simplesmente a lei da necessida­
de: quem quiser viver deve vender-se, mas quem o faz é
desprezado, e o trabalhador é comprado. [ ... ] Aos industriais
e aos grandes empresários do comércio têm faltado larga­
mente, até agora, todas as formas e os signos da raça su­
perior. [ ... ] Se tivessem no olhar e no gestual a distinção
da nobreza de sangue, talvez o socialismo das massas não
existisse. Pois estas massas estão dispostas a submeter-se
a qualquer tipo de escravidão, desde que o superior [ ... ] es­
teja legitimado para ordenar pelo nascimento [ ... ] . Mas a
falta de superioridade e a lamentável vulgaridade do in­
dustrial de mãos gorduchas e avermelhadas faz o povo
pensar que foram somente o acaso e a sorte que situaram
uns acima dos outros [ . . . ] .

Nesta utopia romântico-reacionária do desejado desenvolvi­


mento capitalista ( característica de Nietzsche e importante para a
ulterior evolução da ideologia fascista) , desempenha certamente
um papel o atraso capitalista da Alemanha, objeto de crítica ("a
lamentável vulgaridade do industrial de mãos gorduchas e averme­
lhadas"); mas é significativo que nunca, em nenhum sentido, se to­
me como modelo o país mais desenvolvido do ponto de vista capi­
talista, a Inglaterra, a qual, para Nietzsche, representa a quintessência
da agitada estupidez da civilização.
Na verdade, o modelo de Nietzsche é a estilização romântica
do militarismo, ou seja, uma Prússia que supere seus traços gros­
seiros, limitados, provincianos e que, conservando seu essencial ca­
ráter militar, seja capaz de se europeizar, de se tornar culta e ingressar
na política internacional. (Também aqui, a concepção nietzschiana é
o paradigma de todas as posteriores teorias sociológicas fascistas do
Estado. ) E este é o ponto em que Nietzsche se diferencia da maioria
dos críticos românticos do capitalismo. Ele não se opõe ao desenvol­
vimento capitalista enquanto tal e, portanto, não tem a nostalgia das
velhas relações patriarcais entre capitalista e trabalhador; neste de­
senvolvimento, o que Nietzsche repudia é o caráter plebeu e demo­
crático, é a destruição da exata hierarquia entre o capitalista e o
trabalhador. No que diz respeito ao trabalhador, seu ideal é que "se
forme aqui uma espécie modesta e ascética de homem, uma espécie
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 35

de chinês - o que teria sido razoável e, mais do que isso, necessário". O


que conferiu à evolução do capitalismo uma direção contrária à que
seria desejável foram as concessões à democracia, o flerte com a
revolução, as tendências culturais judaico-cristãs etc.
Impôs-se ao operário a formação militar, foi-lhe dado
o direito de associação e o direito político do voto. Então,
por que se assombrar agora se operário sente a sua existên­
cia como um constrangimento (dito moralmente: como uma
injustiça) ? [ .. . ] Quem deseja um fim tem que aceitar tam­
bém os meios; por isso, quem quer ter escravos e os educa
como senhores apenas manifesta a sua própria loucura.

Enquanto não se conseguir uma reorientação no sentido da


utopia de Nietzsche - cujo símbolo é o super-homem -, "há que ir
avançando, ou seja, atolando-se passo a passo na décadence (esta é a
minha definição do 'progresso' moderno ) ". Bãumler, o intérprete
fascista de Nietzsche, levou às últimas consequências esses motivos
ideológicos ao afirmar, muito de acordo com o sentimento do
filósofo, que o oposto do super-homem, daquele "último homem" de
Zaratustra, é "o funcionário da sociedade democrático-socialista".

3.

Foi preciso detalhar estas duas séries de motivos contraditórios


do pensamento de Nietzsche porque a sua existência paralela, nessa
contraposição excludente, é a chave para compreender a contradito­
riedade de todas as suas concepções. A crítica romântica da civili­
zação capitalista constitui o centro da filosofia de Nietzsche e, por­
tanto, também da sua estética. Porém, como vimos, esta crítica parte
de duas posições contrapostas e que, de fato, excluem-se mutuamen­
te: Nietzsche repudia a civilização capitalista porque ela é demasiado
capitalista e porque é pouco capitalista. Ele critica a civilização capita­
lista simultaneamente a partir do ponto de vista de um pré-capitalis­
mo romanticamente idealizado e a partir do ponto de vista de uma
utopia imperialista, isto é, desde o ponto de vista do passado e desde o
ponto de vista do futuro daquela mesma civilização. A contradição
básica dos críticos românticos do capitalismo - ou seja, o fato de,
1 36 + GvôRGY LuKAcs

apesar de todos os seus esforços para serem "livres" e "independentes"


de todas as categorias capitalistas, só criticarem o capitalismo a partir
de um ponto de vista capitalista - aparece exacerbada em Nietzsche,
reposta em um nível superior de tensão. As correntes anticapitalistas
românticas costumam cair no ecletismo, como resultado da oposição
que estabelecem entre os "lados bons" e os "lados maus" do capita­
lismo . É verdade que Nietzsche recolhe este procedimento e de­
semboca assim, inevitavelmente, no ecletismo; no entanto, na ten­
tativa de enlaçar essa oposição à tendência contrária, consistente na
potencialização utópico- romântica do capitalismo plenamente
desenvolvido, ele acaba por produzir, com esta unificação de tendên­
cias contraditórias, uma síntese meramente mítica. E a dominância
desta última tendência acarreta necessariamente a impossibilidade,
para Nietzsche, de fixar-se na complacente exposição dos "lados
bons" do capitalismo. O seu mito tem que se orientar precisamente
para fazer dos "lados maus" do capitalismo o centro da sua construção
utópica.
Portanto, ao contrário do que acreditaram muitos professores
universitários do período imperialista - que viram nele um pensador
"arguto", mas que não possuía nenhuma inclinação à sistematici­
dade -, o fato de Nietzsche manifestar- se de modo formalmente
contraditório sobre quase todas as questões da cultura em geral e da
estética em particular não é casual nem, tampouco, uma inconse­
quência do seu pensamento, no sentido trivial dessa expressão. As
contradições do pensamento de Nietzsche se devem, antes, ao fato de
que o filósofo, que buscou uma síntese mítica das suas tendências
ideológicas, claramente contrapostas e mutuamente excludentes,
explorou - como pensador de qualidade e categoria - o motivo que
lhe interessava em cada caso até o limite, levando-o, com firme
valentia intelectual, até a inconsequência e, confiado no poder
sintético do seu mito, até o paradoxo. É evidente que, desse modo,
o choque entre as tendências contraditórias já assinaladas se exa­
cerba; e também é evidente que nenhum mito conseguiria unificar as
contradições a não ser de um modo eclético, ainda que literariamente
magnífico. De qualquer forma, o ecletismo patético e paradoxal de
Nietzsche é muito superior ao ecletismo vulgar dos professores
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 137

universitários do período imperialista, que, por razões apologéticas,


suavizaram todas as contradições a ponto de apagá-las, procurando
elaborar um sistema "unitário". A contraditoriedade do pensamento
de Nietzsche expressa, ainda que de modo distorcido, as contradi­
ções reais da cultura da Europa capitalista às vésperas do período
imperialista e, pois, não é casual que ele tenha chegado, inclusive
internacionalmente, a ser o mais influente pensador do imperia­
lismo.
Para efetuar uma análise concreta das principais contradições
da teoria estética de Nietzsche, devemos começar recordando ao leitor
o que já se disse sobre a barbárie do presente. Em suas obras, Nietzsche
contrapõe a essa teoria da barbárie uma teoria completamente
contrária, ou seja, uma teoria da aprovação da barbárie. Do ponto de
vista social, esta teoria parte da afirmação da guerra. Desta afirmação,
o que nos importa são as motivações e as consequências no âmbito da
filosofia da cultura e de estética. Em favor da guerra, Nietzsche
escreve: "Ela barbariza os dois efeitos recém-mencionados [ estupidez
e perversidade] e, assim, torna-os mais naturais; a guerra é, para a
cultura, época de sono ou hibernação; o homem sai dela mais forte
para o bem e para o mal". E resume: "A cultura não pode prescindir
das paixões, dos vícios e das perversidades"; são necessárias "recaídas
temporárias na barbárie para que a cultura e sua existência não se
percam por culpa dos meios da cultura". E, na justificação dessas
teses, Nietzsche oferece uma imagem clara do que significam tais
vícios e paixões necessários à cultura: "aquele ódio impessoal, aquele
sangue-frio de assassino com boa consciência, aquele fogo comum e
organizador no extermínio do inimigo, aquela orgulhosa indiferença
ante as grandes perdas, ante a própria existência e a do amigo [ .. . ]".
Estes são os imprescindíveis traços de barbárie que a guerra oferece
em favor da cultura, que, sem ela, perde vitalidade.
Esta teoria da barbárie está consequentemente aplicada na es­
tética de Nietzsche. Ele polemiza energicamente contra a humanitas
da estética de Kant e de Schopenhauer e formula o seu próprio ponto
de vista com a radicalidade paradoxal que lhe é peculiar: "O refi­
namento da crueldade é uma das fontes da arte". Mas a elaboração
desta ideia conduz necessariamente Nietzsche a uma conclusão
1 38 • GYORGY LUKÁCS

inesperada: a característica da arte que antes nos era apresentada co­


mo um traço da barbárie plebeia da idade democrática, dos român­
ticos franceses e de Richard Wagner - isto é, a violentação do receptor
da arte -, aparece agora como um traço, por ele aceito, de toda arte.
Nietzsche escreve contra o "desinteresse" da estética kantiana:
Um arranjo extremamente interessado, inescrupulosa­
mente interessado, das coisas [ . . ] . Gozo na violentação
.

mediante a introdução de um sentido [ .. ] . O contemplador


.

estético permite a sua violentação e faz o contrário do que


costuma fazer diante do que chega do exterior [ ... ] .

Vale dizer: o mesmo princípio artístico que antes Nietzsche


recusara contundentemente como característico da "barbárie do­
mesticada" da civilização moderna se converte agora num princípio
básico central de toda a sua estética.
A mesma antinomia se apresenta, mais exacerbada, quando
examinamos o problema nuclear da estética de Nietzsche: o proble­
ma da decadência. Nietzsche considerava que o tema central da sua
atividade filosófica era a luta contra a decadência em todos os terre­
nos; estava convencido de que o seu mérito principal era ter assumido
a luta contra a enfermidade avassaladora da civilização capitalista.
Quando contrapõe a Carmen de Bizet a Wagner, parece-lhe justifica­
ção suficiente a seguinte frase: "Volta à natureza, à saúde, à alegria, à
juventude! ". E a crítica a Wagner concentra-se na tese segundo a qual
ele é um "doente". O filósofo da decadência, Schopenhauer, atraiu
Wagner e fez dele um artista típico da decadência: "E aqui começo a
ficar severo. Pois estou longe de contemplar tranquilamente como
este decadente nos faz mal à saúde e à música. Wagner é pelo menos
um homem? Ele não é, antes, uma doença? Wagner faz adoecer tudo
o que toca e pôs doente a música". E, do mesmo modo como antes que­
ria desmascarar o plebeísmo de Wagner alinhando-o com os român­
ticos franceses (Victor Hugo etc. ) , agora o desmascara como deca­
dente procurando encontrar traços comuns a ele e à decadência eu­
ropeia (Baudelaire, os Goncourt, Flaubert) . Assim, por exemplo,
propõe o seguinte método para estudar o "conteúdo mítico" dos tex­
tos de Wagner:
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 139

Traduza-se Wagner a o real, a o moderno o u , mais


cruelmente ainda, ao burguês. Então, em que ele se conver­
te? Que grandes surpresas nos esperam! Você acreditaria
que as heroínas de Wagner, todas e cada uma delas, quando
lhes arrancamos a heroica pele, se parecem, até se confun­
direm, com Madame Bovary? Compreende-se mais ou
menos, então, que também Flaubert poderia traduzir suas
heroínas ao escandinavo ou ao cartaginês e oferecê-las a
Wagner como libreto mitologizado. Em geral, Wagner pare­
ce interessar-se somente pelos problemas que hoje interes­
sam aos pequenos decadentes de Paris. E nunca a mais de
cinco passos do hospital [ ... ] .

A influência europeia de Wagner deve-se precisamente à sua


essência decadente.
Quão assemelhado Wagner deve estar a toda a decadên­
cia europeia para que esta não o sinta como decadente!
Wagner pertence a ela, é seu protagonista, seu nome maior
[ . . . ] . A decadência presta homenagem a si mesma ao
homenageá-lo. Não se defender dele é mais um sinal de
decadência. O instinto está debilitado e atrai o que deveria
evitar. Leva aos lábios o que mais rapidamente o precipita
no abismo.

Neste marco, e partindo de uma crítica ao estilo wagneriano,


Nietzsche oferece uma detalhada análise crítica dos modos de mani­
festação estética da decadência, uma caracterização do estilo geral do
doentio. Ele pergunta:
Como se caracteriza toda decadência literária? [E logo
responde] : Pelo fato de a vida já não habitar o todo. A pa­
lavra se torna soberana e salta da frase, a frase se expande
e obscurece o sentido da página, a página ganha vida à
custa do todo e o todo perde o seu caráter de todo. Mas
este é o símbolo de todo estilo da decadência: sempre
anarquia dos átomos, desagregação da vontade, "liberdade
do indivíduo" no charlatanismo moral, e tudo isso amplia­
do até uma teoria política: "direitos iguais para todos''. A
vida, a própria vitalidade, a vibração e a exuberância da
vida reprimida nas criações mais minúsculas; o resto pobre
da vida. Em todas as partes, enrijecimento, fadiga, fossiliza-
1 40 • GYORGY LUKÁCS

ção ou hostilidade e caos - e ambas tanto mais manifestas


quanto mais altas as formas de organização. O todo deixou
de viver: é composto, calculado e artificial, é um artefato.

E, partindo dessa crítica destruidora da decadência, Nietzsche


tributa a Wagner o único elogio, a sua definição como decadente:
"Wagner é admirável e amável somente na invenção do mínimo, na
composição do detalhe; quanto a isto, é de justiça proclamá-lo um
mestre de primeiro nível, o nosso maior miniaturista em música [ ... ]".
Esta aniquiladora crítica da decadência artística, que contém
certamente muitas observações corretas e acertadas, tem também um
outro lado muito interessante, em especial sob dois aspectos. Por uma
parte, Ernst Bertram, o biógrafo fascista de Nietzsche, demonstrou
que esta crítica procede, nas suas linhas essenciais, de um ensaio de
Paul Bourget,9 escritor que o próprio Nietzsche considera como um
representante típico da decadência moderna. E, por outra, quem
conhece um pouco de Nietzsche notou, ao ler as linhas que reprodu­
zimos acima, que nelas não há apenas uma crítica da falta de estilo
peculiar à decadência e da decomposição decadente do estilo de
Wagner, mas, também e ao mesmo tempo, uma caracterização muito
correta do estilo mental e literário do próprio Nietzsche.
Como indica a frase que tomamos como epígrafe, é claro que
Nietzsche não ignorou o seu íntimo parentesco com a decadência
literária e artística. Ele sabia bem quanto era profundo o seu vínculo
com tudo o que condenava como decadente, quanto o seu pensa­
mento - por suas intenções e aspirações - era uma autossuperação da
decadência. E é característico de Nietzsche que, no mesmo período
em que opõe o "sadio" Bizet ao "doente" Wagner, oponha polemi­
camente a "doente" decadência de Paris à vitalidade e à "saúde"
alemãs. "Na Europa, como artista, a única pátria que se tem é Paris
[ . . . ] . Não vejo, em nenhum outro século da história, um lugar, co­
mo a Paris atual, onde se possam encontrar juntos tantos curiosos
e delicados psicólogos - como exemplo, citarei os senhores Paul
Bourget, Pierre Lati, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaitre 'º
[ . . . ] . Cá para nós, prefiro esta geração inclusive aos seus grandes
mestres [ . . . ] ". Mas esta avaliação da "doença" contra a "saúde" se aplica
ao próprio Wagner. Se, em Nietzsche contra Wagner, de 1 888, ele
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉT I CA FASCISTA + 141

censura Wagner por deslizar d a "sadia sensualidade" feuerbachiana à


decadência cristã patológica do Parsifal, já em Ecce homo, também de
1 888, combate Wagner de um ponto de vista completamente oposto.
Eis a impressão que lhe produziu o Tristão: "O mundo é pobre para
quem nunca foi o bastante doente para sentir esta 'voluptuosidade e
inferno' [ ... ] ". Esta obra é o non plus ultra de Wagner, que descansou
depois com Os mestres e O anel. "Para uma natureza como a de
Wagner, fazer- se sadio é uma recaída [ . . ] ". Assim, o Nietzsche do
.

último período já se crê "sadio" e crê que pode contemplar a "doença"


da sua anterior decadência como um estágio de transição; porém, do
mesmo modo que a sua crítica do estilo wagneriano é sua autocrítica
estética como escritor, a frase que acabamos de citar pode valer para
ele mesmo - é verdade (como também para Wagner) que apenas
hipoteticamente, pois Nietzsche jamais se curou, mesmo no sentido
das suas próprias definições.
Já vimos que, em sua maturidade, Nietzsche combateu tanto
Wagner, como artista da decadência, quanto Schopenhauer, como
filósofo da decadência. Para o Nietzsche desse período, o pessimismo
é um dos sintomas característicos da decadência. A evolução de
Richard Wagner para o pessimismo, seu trânsito da influência de
Feuerbach para a de Schopenhauer, de Siegfrid a Parsifal, é, para
Nietzsche, o sintoma típico do caráter decadente da arte wagneriana.
E Schopenhauer, com sua filosofia pessimista, converte-se para ele
em condutor da decadência europeia.
Tudo isto se depreende, claramente, das observações analíticas
feitas até agora. Mas, na sequência, devemos considerar com maior
atenção o reverso da luta de Nietzsche contra o pessimismo. Já su­
blinhamos, como peculiaridade da atitude filosófica de Nietzsche,
que ele tenta justificar o capitalismo precisamente mediante a acei­
tação do seu "lado mau", posição filosófica da qual deriva, conse­
quentemente, a sua afirmação da barbárie. A ambiguidade da filosofia
nietzschiana acarreta, necessariamente, que essa vital afirmação do
"lado mau" da vida culmine na tendência filosófica paradoxal e
contraditória que consiste em afirmar e aceitar a vida desde o ponto
de vista do pessimismo. Não nos é possível analisar aqui, detalha­
damente, as contradições filosóficas que decorrem desta posição
1 42 • GYORGY LUKÁCS

de Nietzsche; basta, para nosso problema, compreender que, como


Schopenhauer, ele vê a essência da arte no fato de que ela transfigura
e torna digna de aceitação a existência recusável em si mesma e
diante da qual só se pode ser, filosoficamente, pessimista. A diferença
entre os dois pensadores consiste em que Schopenhauer, como pes­
simista consequente e integral, considera a arte como uma forma de
afastamento da vida, ao passo que Nietzsche leva a termo a para­
doxal tentativa de converter aquela função da arte em veículo da sua
pessimista aceitação afirmativa da vida. ( Esta pessimista aceitação
afirmativa da vida é a base daquele "realismo heroico" de Nietzsche,
exatamente o que mais admiram nele os seus atuais adoradores
fascistas. )
J á está voltada para este problema a sua obra juvenil Die Geburt
der Tragodie [ O nascimento da tragédia ] , escrita ainda sob intensa
influência de Schopenhauer. Num projeto posterior para um novo
prólogo a esta obra, Nietzsche caracteriza o que era, à época, o seu
problema básico:
O primeiro problema que me atormentou seriamente
foi o da relação da arte com a verdade e, ainda hoje, sinto­
me tomado por uma santa cólera diante dessa cisão. Meu
primeiro livro foi dedicado a esta questão; O nascimento
da tragédia acredita na arte com base numa outra crença:
a de que não é possível viver com a verdade, que a "vontade
da verdade" já é um sintoma de degeneração.

Este problema básico permanece no centro da concepção


nietzschiana da arte. Em seu último período, o filósofo ainda afirma,
de modo quase schopenhauriano: "Só esteticamente é possível uma
justificação do mundo". E, de acordo com esta concepção de base,
Nietzsche determina assim a essência da arte:
A força motriz é a transformação do mundo para po­
der suportá-lo: consequentemente, um imenso sentimento
da contradição [ ... ] . O "estar livre do interesse e do ego" é
um absurdo, fruto de observação insuficiente. Trata-se,
antes, da delícia de estar agora em nosso mundo, livres do
medo do desconhecido.

A fundamentação filosófica da essência da arte continua sen­


do, pois, em Nietzsche como em Schopenhauer, de estilo pessimista,
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + J 43

mesmo quando o filósofo acreditava ter superado completamente a


filosofia schopenhauriana e seu pessimismo decadente; o pressuposto
ideológico da arte, com efeito, permanece sendo a concepção do
mundo como caos, absurda confusão de forças irracionais e hostis,
que são, em si mesmas, recusáveis e insuportáveis, e cuja visão só se
pode tolerar graças à estilização operada pela arte, que as encobre e as
mimetiza ao deformá-las. Com esta concepção básica, Nietzsche,
assim como Schopenhauer, encontra-se em frontal oposição a todas
as tendências do período revolucionário burguês e à estética alemã de
Kant a Hegel, que, apesar de toda a diversidade na fundamentação
ideológica, partiu sempre da ideia segundo a qual a tarefa da arte con­
siste em reproduzir a essência (em si mesma, racional) do mundo,
sustentando que a estilização própria da arte reside em liberar esta
essência dos detalhes obnubiladores do puramente empírico.
É verdade que também se pode localizar, em Nietzsche, uma
tendência significativa a aproximar-se dessa linha da estética clássica.
Em sua polêmica contra a decadência representada por Wagner,
Schopenhauer e Bismarck, Nietzsche chega mesmo a estabelecer, em
comparação com as posições da sua juventude, uma relação mais
aberta e sem preconceitos com a filosofia de Hegel. Todavia, em fun -
ção dos fundamentos histórico -sociais do seu pensamento, essa
tendência não tem condições de propiciar uma verdadeira superação
das contradições da sua atividade filosófica, mas, ao contrário,
exacerba o caráter antinômico da sua estética e das suas avaliações de
artistas e obras de arte. Na luta contra Wagner e contra a decadência
artística, Nietzsche vê-se obrigado a defender, em face do "monumen­
talismo" plebeu de Wagner, um grande estilo, verdadeiro e clássico;
para justificar esta exigência, vê-se, em seguida, obrigado a defender o
princípio da racionalidade da obra de arte, a importância da lógica na
estrutura da grande obra de arte: "Há muito de tentador no ilógico ou
no semilógico: Wagner sabia-o bem [ . . . ] . A virilidade e o rigor do
desenvolvimento lógico não eram acessíveis a ele; então, descobriu
'algo mais eficaz'". E, noutro lugar: "O drama exige uma lógica rigo­
rosa mas o que a lógica importava a Wagner?".
-

Esta polêmica de princípio, dirigida contra todo o desenvolvi­


mento irracionalista do drama alemão depois dos clássicos e, mais
1 44 • GYORGY LUKÁCS

geralmente, contra toda a moderna evolução literária, requer natu­


ralmente, também em Nietzsche, além da proclamação estética do
princípio da razão na estilização artística, uma fundamentação
histórica. Nas argumentações que se seguem às últimas frases cita­
das, o filósofo sublinha, reiteradas vezes, que o público de Wagner
não é o de Corneille. A afinidade de Nietzsche com a literatura e a arte
francesas, a sua consigna contra Wagner - il faut méditerraniser la
musique -, concentram-se agora na tendência a glorificar a literatura
clássica francesa por seu caráter rigorosamente lógico e construtivo.
Em algumas passagens, Nietzsche chega mesmo a dizer que "meu
gosto de artista defende, com alguma contrariedade, os nomes de
Moliere, Corneille e Racine contra um gênio selvagem como
Shakespeare". Noutro lugar, alude à polêmica anti-shakespeariana de
Byron e o cita: "Seguimos um sistema revolucionário internamente
falso [ . . . ] ; considero Shakespeare o pior modelo, embora seja o poeta
mais extraordinário". E Nietzsche convoca a verdadeira arte a afastar­
se das ruínas e restos dessa falsa evolução operada pelo século XIX:
Não indivíduos, porém máscaras mais ou menos ideais;
não realidade, mas uma universalidade alegórica; os carac­
teres temporais e as cores locais reprimidos e tornados
quase invisíveis e míticos; a sensibilidade atual e os proble­
mas da sociedade contemporânea reduzidos à forma mais
simples, despojados de suas propriedades estimulantes,
excitantes, patológicas, para que percam todo efeito exceto
o do sentido artístico; não materiais e caracteres novos,
mas os velhos e desde muito conhecidos, com uma anima­
ção sempre nova que os transforme - esta é a arte, tal co­
mo a compreendeu tardiamente Goethe, tal como a cultiva­
ram os gregos e os franceses.

E resume as suas ideias sobre o exemplar estilo grande e verda­


deiro: "O grande estilo surge quando o belo triunfa sobre o incomen­
surável".
Esta tendência da estética e da crítica estética de Nietzsche -
apesar de estar em contradição com seus juízos artísticos - não é, para
ele, em absoluto, algo secundário. Nietzsche não é apenas um ado­
rador da tragédie classique: também o é do seu último grande con­
tinuador, Voltaire. Em seu livro Menséhliches, allzu Menschliches
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 45

[Humano, demasiadamente humano] , inicialmente dedicado à me­


mória de Voltaire, elogia reiteradamente a extraordinária sabedoria
artística das suas tragédias, especialmente Maomé. A oposição entre
Voltaire e o desenvolvimento característico do século XIX, bem como
entre Voltaire e Rousseau - em quem Nietzsche vê o pai espiritual de
todas essas falsas tendências democráticas -, não é, a seu ver, somente
uma oposição artística, mas também ideológica e política. Sobre esta
"loucura da doutrina da subversão", Nietzsche escreveu:
Não foi a natureza de Voltaire, comedida, inclinada à
ordenação, à purificação e à reconstrução, mas as apaixona­
das loucuras e semimentiras de Rousseau que despertaram
o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu clamo
Écrasez l 'infâme! Este espírito, por muito tempo, afastou
o espírito do iluminismo e do desenvolvimento progressista;
vejamos se é possível convocá-lo novamente.

A linha estética básica desta tendência de Nietzsche é, portanto,


a salvação da lógica e da razão contra a avalanche sentimental
irracionalista do século XIX, a salvação do caráter aristocrático
tradicional da arte contra a sua infecção democrático-plebeia. Mas
esta tendência acarreta, em Nietzsche, uma contradição insolúvel
com as suas tendências gerais, que são pessimistas-irracionalistas;
acabamos de ver que, para ele, o otimismo de Rousseau é uma
expressão do seu caráter revolucionário e plebeu. A tendência
"lógica", aristocrática e tradicional, encontra-se vinculada, em
Nietzsche, a um profundo pessimismo, a um ceticismo dissolutor,
em especial no que toca à possibilidade e ao valor do conhecimento do
mundo externo. É impossível, nesta oportunidade, analisar em detalhe
a epistemologia agnóstica de Nietzsche, muito aparentada às teses de
Mach 1 1 e muito influente na nova versão fascista dessas doutrinas.
Limitar-nos-emos a ilustrar seu ponto de vista com uma passagem
muito característica para, em seguida, cuidar das suas consequências
estéticas. "Não o mundo como coisa em si - que não tem sentido e é
digno de uma gargalhada homérica -, mas o mundo como erro, tão rico
em significação, tão profundo, tão cheio de milagres, de felicidade e
de desgraça". E, sem contemplação, Nietzsche infere desse agnosti­
cismo todas as consequências pertinentes à avaliação da ciência e do
1 46 • GYORGY LUKÁCS

cientista: "Dados esses pressupostos, o que deve acontecer com a


ciência? Qual a sua posição? Num sentido importante, a de inimiga da
verdade, já que é otimista, acredita na lógica':
A análise nietzschiana da arte tem sempre como pressuposto
a tese da incognoscibilidade do mundo externo. O artista, diz
Nietzsche, "tem, em relação ao conhecimento da verdade, uma mo­
ralidade inferior à do pensador". No que toca à grande arte do passado,
Nietzsche afirma que sua grandeza depende intimamente da fé dos
artistas em falsas "verdades eternas': Mas não se limita a esta indi­
cação histórica: sempre se esforça por provar, a propósito de concretos
problemas estéticos, que o método artístico criador tem como fun­
damento objetivo a incognoscibilidade do mundo e a ausência de
valor de um tal conhecimento. É assim que analisa, de maneira muito
interessante, a criação de figuras humanas pelos artista:
Quando se diz que o dramaturgo (e o artista em ge­
ral) cria caracteres reais, presta-se tributo a uma bela ilu­
são [ ... ] . De fato, não compreendemos muito um homem
vivo, real, e generalizamos bem superficialmente quando
lhe atribuímos tal ou qual caráter; ora, a esta nossa atitude
em face do homem, tão imperfeita, corresponde a do poeta,
construindo ("criando", neste sentido) esboços de homens
tão superficiais quanto o nosso conhecimento do homem
[ ... ]. A arte tem como ponto de partida a ignorância do ho­
mem acerca da sua interioridade (física e de caráter) [ .. ] .
.

Sob este ponto de vista, Nietzsche é muito coerente quando,


como vimos, descobre a essência da arte numa "manipulação sem
escrúpulos das coisas". Em polêmica com a estética clássica alemã,
escreve: "Na contemplação estética, o objeto está profundamente
falseado". E esta concepção, por mais que contradiga o seu "classicismo
lógico", é consequência necessária da tendência pessimista básica do
seu pensamento. Em face de um mundo tal como o vê Nietzsche, a
arte só pode ter como tarefa "a ficção e a manipulação de um mundo
no qual possamos nos aceitar em nossas necessidades mais profun­
das". A antinomia insolúvel da filosofia e da estética de Nietzsche
leva-o, com paradoxal consequência, a só alcançar esta aceitação
afirmativa mediante a falsificação do homem e do mundo, já que o
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 147

homem não pode viver com a verdade, n a verdade. Assim, pois, ao


mesmo tempo em que combate sem reservas a falsidade da arte
decadente moderna, Nietzsche é inevitavelmente o fundador da tese
de uma falsidade de princípio como base da estética. Nietzsche se
torna o fundador do antirrealismo moderno.
As mesmas antinomias se apresentam, naturalmente, na de­
terminação da posição geral da arte no desenvolvimento da civiliza­
ção. A obra de Nietzsche foi produzida na época de maior intensidade
das tendências da arte pela arte na literatura europeia. Não surpreende
que o filósofo tenha sido, simultaneamente, o mais acerbo inimigo e
o propugnador mais extremo daquelas tendências que tentavam re­
duzir a arte ao puro formalismo artístico. Por nossa exposição até
aqui, o leitor certamente já terá observado em Nietzsche a presença
destas tendências. A posição filosófica de Nietzsche, pessimista e
agnóstica, compele-o a diluir, na estética, todas as questões de con­
teúdo para acentuar - como em todas as tendências da arte pela arte -
exclusivamente a forma. Ainda que as considerações que o fizeram
simpatizar com o classicismo tenham sido de natureza claramente
política, os seus padrões de avaliação são, no entanto, puramente
formais. Nietzsche considera a limitação da forma, a constrição, a
dificuldade, como os momentos dos quais pode emergir uma sadia
evolução da arte. Seu ideal é "dançar acorrentado". "A questão que se
coloca a todo artista, poeta ou escritor grego é a seguinte: que nova
constrição se impõe? [ . . . ] 'Dançar acorrentado', dificultar tudo e
difundir a ilusão da facilidade: este é o jogo de prestidigitação que
querem nos ensinar". E Nietzsche considera que a rigorosa constrição
do drama clássico, a exigência de unidade de lugar e de tempo, a
limitação do verso e da estrutura da frase, a constrição da música pelo
contraponto e a fuga, a constrição da eloquência grega pelas figuras
gorgianas etc., são outros tantos meios para alcançar aquela perfei­
ção formal. "Assim, paulatinamente, aprende-se a caminhar com gra­
ça por estreitas pontes, cruzando abismos, e se adquire como butim a
suprema flexibilidade de movimento". Nem Flaubert nem Baudelaire,
em Paris, poderiam formular mais categoricamente a exigência da
arte pela arte.
1 48 • GYORGY LuKAcs

Mas esta tendência estética básica de Nietzsche se encontra em


irreconciliável contradição com a conceituação da arte em sua filoso­
fia da cultura. Nela, o filósofo toma posição, energicamente, "contra a
arte das obras de arte".
Acima de tudo e imediatamente, a arte tem que embe­
lezar a vida, fazer-nos suportáveis aos outros e, se possível,
até agradáveis [ . . . ] . Logo, a arte tem que ocultar ou reinter­
pretar tudo o que é feio [ ... ] . Junto a esta grande, até exces­
siva, tarefa que a arte tem, a propriamente chamada arte
das obras de arte não é mais do que um apêndice.

Deste ponto de vista da filosofia da cultura, Nietzsche condena


a arte moderna, porque os poetas já não são os mestres da humani­
dade. Os artistas antigos eram
[ ... ] domadores da vontade, transformadores de animais,
criadores de homens e, acima de tudo, formadores, trans­
formadores e performadores da vida, ao passo que a gló­
ria dos artistas atuais está, talvez, em libertar os homens,
romper cadeias, destruir.

Conforme esta tendência do pensamento de Nietzsche, por­


tanto, a arte não existe por si mesma e o importante nela não é o ofício
ou o caráter do artista, a solução perfeita dos problemas formais; ao
contrário, a arte é apenas um meio para o desenvolvimento superior
da humanidade no sentido da teoria nietzschiana, ou seja, no senti­
do da ulterior seleção biológica. Por isso, os poetas - segundo esta
exigência de Nietzsche - são "indicadores do futuro" e sua tarefa
consiste em "continuar compondo a bela imagem humana"; o autên­
tico fim da poesia "não é a reprodução do presente nem a reanimação
e composição do passado: é a indicação do futuro". Esta função da
arte, neste contexto, determina, para Nietzsche, o seu valor, do mesmo
modo que, em outros contextos, como vimos, a perfeição formal
constituía o único critério de valor das obras de arte e dos artistas.

4.

Todas essas antinomias, que poderiam ser multiplicadas ( uma


vez que a filosofia de Nietzsche praticamente apresenta, para cada
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + J 49

questão, essa mesma estrutura antinômica), remetem a seu funda­


mento: a posição histórico-social de Nietzsche. Já caracterizamos esta
posição ao dizer que Nietzsche critica - inconscientemente - a evolu­
ção capitalista, em particular sua cultura, a partir de dois ângulos: do
ponto de vista de um passado pré-capitalista e a partir da utopia de um
desenvolvimento imperialista mais avançado. Como para todo crítico
romântico do capitalismo, também para Nietzsche a experiência
central é a degradação e a depravação do homem pela coisificação
capitalista. Em comparação com o tempo dos principais represen­
tantes do anticapitalismo romântico, Nietzsche vive um período do
capitalismo e da luta de classes muito mais desenvolvido e ampliado;
por isso, sua crítica é muito mais ideológica e, em comparação com a
crítica daqueles representantes, é muito mais meramente cultural,
uma vez que ele não sabe nem entende praticamente nada dos pro­
blemas econômicos do capitalismo, que não lhe interessam em abso­
luto. Ademais, os efeitos degradantes do capitalismo se manifestam
muito mais na época de Nietzsche do que nos tempos de floresci­
mento do anticapitalismo romântico. Por isto, ainda que Nietzsche
critique a cultura capitalista somente na perspectiva das suas conse­
quências e sintomas na vida espiritual e na atividade dos homens, ele
pôde ver essas contradições num nível de maior explicitação e inso­
lubilidade do que a maioria dos seus predecessores românticos. E a
estrutura antinômica do pensamento de Nietzsche se manifesta
muito claramente na constatação destes sintomas. Poder-se-ia resu­
mir do modo mais breve a sua crítica da degradação do homem di­
zendo-se que o desenvolvimento capitalista deforma e perverte o
homem tanto em sua vida afetiva quanto em seu entendimento. Na
vida emocional, este processo produz uma superabundância de
sentimentos inúteis e vivências "superiores", sem raízes nem sentido,
bem como a fossilização, o empobrecimento e a esterilidade da vida
emotiva, da capacidade de o homem ter experiências. O mesmo se
passa no domínio do entendimento humano: nele se produz uma
exagerada intelectualização do homem, um predomínio do entendi­
mento que torna árida qualquer originalidade da experiência e, ao
mesmo tempo, uma cretinização geral dos homens, uma redução da
sua capacidade de reconhecer o que lhes é essencial, de distinguir en­
tre o útil e o deletério.
1 50 • GYORGY LUKÁCS

Esta rica visão da fossilização do homem moderno confere


interesse à polêmica de Nietzsche contra a decadência: ainda que se
considerem inteiramente falsos o seu ponto de partida, as suas con­
clusões, a sua intenção etc., o fato é que, em várias observações sobre
aqueles sintomas, ele realmente descobre uma série de importantes
formas de manifestação da ideologia da decadência capitalista. É
verdade que o acerto relativo dessas observações polêmicas está es­
treitamente ligado ao aspecto absolutamente reacionário da sua
posição filosófica. Já assinalamos, como peculiaridade do pensa­
mento de Nietzsche e à diferença da maioria dos anticapitalistas
românticos, que o filósofo não é um utopista dos "lados bons" do ca­
pitalismo, mas, ao contrário, ele defende e engrandece o capitalismo
partindo, precisamente, dos seus "lados maus': A crescente impos­
sibilidade de transfigurar em harmonia as contradições do capita­
lismo e assim suprimi-las apologeticamente, bem como a inviabi­
lidade de retornar a situações patriarcais, foi transformando o velho
liberalismo e o romantismo à moda antiga numa ladainha estéril e
vazia. Schopenhauer já inicia o novo curso da apologia do capitalis­
mo, que é o da apologia indireta, sob a forma de uma crítica global da
existência como tal. Nietzsche - e, já antes dele, Jacob Burckhardt -
oferece uma orientação histórica à filosofia de Schopenhauer. Para
este, toda a existência se apresenta como um caos sem sentido, com o
que se degradava ao nível de mesquinharia ridícula qualquer crítica
específica à economia capitalista; já Nietzsche concentra seu pessi­
mismo no problema da história. Ele conserva, sem dúvida, como
fundamento metafísico, a ideia da insensatez universal da existência;
mas, apesar disto, constata que, em alguns períodos, a humanidade
conseguiu arrancar dessa insensatez objetiva um sentido subjetivo
(Grécia, Renascimento etc. ) . Somente no último século, a partir da
Revolução Francesa, a decadência impregna inteiramente a huma­
nidade. Contra esta decadência, segundo Nietzsche, há que lutar. A
historicização do pessimismo significa, portanto, em Nietzsche, a sua
ativação, em contraste com a tendência de afastamento passivo do
mundo, própria a Schopenhauer.
Mas onde este ativismo deve ser aplicado? Uma vez que
Nietzsche não pode nem quer saber nada das causas objetivas da
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 151

degradação do homem que ele constata, tem que fazer do homem


abstraído de suas bases sociais uma figura m ítica . Ao homem
decadente hoje predominante, ao homem corrompido pelo cristia­
nismo, por Sócrates, por Rousseau etc., há que contrapor um "ho­
mem novo". Não é por acaso que Nietzsche, orgulhosamente, se
qualifica como "psicólogo". Toda a sua filosofia pode realmente re­
duzir-se a uma psicologia ( infla<la até a mitificação) da sua própria
evolução: a evolução de um homem inicialmente vítima da deca­
dência contemporânea (veneração por Schopenhauer e Wagner, ilu­
sões sobre o Reich bismarckiano), mas que depois experimenta a
falsidade dessas tendências e, graças a isso, torna-se "sadio", "supera"
a decadência. Esta própria vivência de superação psicológica da de­
cadência é então generalizada, convertida numa filosofia da histó­
ria e da cultura. Este fundamento vivido é o que dá à filosofia de
Nietzsche - que, objetivamente, é uma apologética - o tom subjetivo
da experiência real, da autenticidade e da sinceridade. Objetivamen­
te, por trás da experiência nietzschiana, não existe mais do que a
ilusão de poder superar as contradições do capitalismo mediante o
mito de um capitalismo mais desenvolvido, criado de modo fantás­
tico, o mito do imperialismo.
O núcleo do método mitificador de Nietzsche consiste, por­
tanto, em converter os princípios históricos em confronto em tipos
humanos em luta, cabendo ao filósofo o aprofundamento psicoló­
gico desses tipos. Essa psicologia mítica dissimula, para o próprio
Nietzsche, as contradições da sua concepção e da sua avaliação das
contradições objetivas do capitalismo. E também lhe permite, com
base em seu agnosticismo que se faz misticismo, obter certa "cienti­
ficidade': certa aparência de captação da realidade. (Mitificação do
darwinismo, biologismo etc . ) Ao mesmo tempo, essa mitificação
possibilita a Nietzsche ocultar o caráter capitalista das utopias que
contrapõe ao capitalismo real. Quando condena a concorrência ca­
pitalista para, ao mesmo tempo, fazer da luta pela existência um
princípio mítico e do agonismo grego a mitologia de toda sociedade
sadia, Nietzsche ignora que está seguindo o velho costume romântico
de contrapor a "boa" à "má concorrência". E o mesmo se passa com o
super-homem e as demais figuras dos seus mitos. Mas a ocultação vai
1 52 • GYôRGY LUKÁCS

além, já que o mito, que continua sendo capitalista, não se apresenta


apenas como algo diverso do capitalismo, mas, ao mesmo tempo, co­
mo uma radical novidade histórica: a defesa dos princípios do capita­
lismo aparece assim como um assalto radical contra a sociedade atual,
ou seja, converte-se numa atitude pseudorrevolucionária.
É com base neste fundamento psicológico-mítico que tem
lugar a "sup eração" nietzschiana da decadência. Assim como
Nietzsche alimenta, no terreno pessoal, a ilusão de ter superado a
decadência em sua própria vida, do mesmo modo acredita poder
superar intimamente, psicologicamente, a decadência na psicologia
mitificada das suas figuras histórico-mitológicas. Este método deter­
mina a sua peculiar atitude em face do problema da decadência:
Nietzsche não a condena em bloco, como o fazem os limitados defen­
sores de antigos estágios do desenvolvimento, nem, tampouco, se re­
festela com prazer narcisista no pântano da decadência, como os
literatos degenerados vulgares. Na decadência, Nietzsche vê sobre­
tudo um estágio de transição necessário no rumo de uma "cura"
[ Gesundung] do homem. Percorrendo esse caminho, ele leva conse­
quentemente até o extremo a contraditoriedade dos fundamentos da
sua filosofia. Nietzsche quer escapar da decadência precisamente por
meio da sua exacerbação. O que na decadência vulgar dissolve a vida,
inibe a vida, pode metamorfosear-se em seu contrário, em con­
trário da decadência, mediante a sua intensificação, mediante a in­
tensificação da energia que contém.
Em última instância, trata-se de uma questão de força:
toda essa arte romântica poderia ser plasmada por um
artista exagerado e de vontade poderosa justamente em
algo antirromântico ou - para usar a minha fórmula -
em algo dionisíaco; do mesmo modo, todo tipo de pes­
simismo e de niilismo, posto em mãos mais fortes, conver­
te-se num martelo ou numa ferramenta com a qual se
constrói um novo degrau rumo à felicidade.

Em tudo isso se constata claramente a profunda vinculação de


Nietzsche às tradições da crítica romântica ao capitalismo: ele com­
bate o romantismo, mas de tal forma que ao "mau" romantismo deca­
dente se contraponha um romantismo "bom", ou sej a, o "dionisíaco".
NIETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 53

Como vimos, do ponto de vista do conteúdo, Nietzsche inverte o


método dos velhos críticos românticos do capitalismo. Ele faz a
apologia dos "lados maus" do capitalismo, o que lhe permite uma
crítica cultural de extremo radicalismo, um desmascaramento à
primeira vista sem reservas das contradições culturais do capita­
lismo. Neste ponto, Nietzsche aparentemente se assemelha aos
críticos "cínicos" do capitalismo nascente. Mas tal semelhança não
passa de mera aparência, pois aqueles críticos (como, por exemplo,
Mandeville12) percebem com nitidez o caráter objetivamente revolu­
cionário da evolução capitalista; e, precisamente do impulso revo­
lucionário do papel histórico objetivo de sua classe, retiram a cora­
gem e a capacidade para anunciar, com cínica lucidez, que o cami­
nho que tem de ser percorrido por essa evolução é necessariamente
um caminho de sangue e baixeza. Nietzsche, ao contrário, faz a apo­
logia do capitalismo tomado em seus "lados maus"; e isto porque é
muito clarividente para não perceber que todos os argumentos dire­
tamente apologéticos há muito perderam força e vitalidade e que o
capitalismo só pode ser salvo por meio de uma crítica aparente­
mente sem reservas dos seus efeitos degradantes, ou seja, por meio de
um credo quia absurdum. Precisamente para salvar intelectualmente
o capitalismo, Nietzsche desmascara toda a abjeta mesquinhez das
suas formas de manifestação sociais e culturais; e lhes contrapõe, co­
mo apologia do sistema tomado em sua totalidade, a gigantesca
abjeção do seu mito histórico, da sua "besta loira", do seu "César
Bórgia como papa". Desse modo, o mito da barbárie do capitalismo
decadente torna-se o núcleo do mito histórico de Nietzsche.
Esta apologia da barbárie se apresenta, em Nietzsche, como
um grande mito estético-histórico-filosófico: é a "transmutação dos
valores" como contexto substancialmente novo do cânone anterior
da beleza, ou seja, do Renascimento e, sobretudo, da Grécia clássica.
A concepção da Antiguidade na trilha de Winckelmann e Lessing foi
um reflexo da preparação da revolução democrática; foi o brado que
pretendia redespertar o cidadão da pólis, o citoyen, o homem novo,
livre e harmônico, da sociedade a construir ex novo. Já o classicismo
de Schiller e de Goethe leva a um debilitamento do pathos social,
embora, sem dúvida, com base num aprofundamento interior, numa
1 54 • GYORGY LUKÁCS

penetração na problemática do homem europeu realmente novo,


inserido na sociedade efetivamente nova que surgiu das tormentas da
Revolução Francesa. Os supostos herdeiros de Goethe, depois da der­
rota da Revolução de 1 848, eliminam completamente esse funda­
mento social da exemplaridade da Antiguidade clássica; surge assim
o "classicismo" de uma j usteza formalista, vazia e pedante, que
necessariamente perde toda relação com as correntes principais da li­
teratura e da vida.
O contragolpe não se faz esperar: a hostilidade reacionária
alemã à Revolução Francesa engendra uma nova imagem pseudor­
realista do mundo grego. A Penthesilea de Kleist é o prólogo artístico
dessa tendência: uma explosão da moderna vida do instinto deca­
dente e reprimido, do ódio espontâneo contra o equilíbrio e a razão,
mas apresentada sob uma veste clássica. O gigantesco ímpeto poético
de Kleist se impõe progressivamente na nova concepção da Antigui­
dade clássica presente na historiografia e na filosofia românticas
(Schelling, Gõrres, Creuzer etc. ) . Bachofen, salvo pelo seu modo mí­
tico de se expressar, nada tem a ver com essa tendência; na verdade,
ele descobre a profunda revolução social que esclarece a história real
da Antiguidade, ou seja, a ruína do comunismo primitivo, o trânsito
do matriarcado ao patriarcado.
Alfred Bãumler, o historiador fascista deste desenvolvimento,
percebeu a vinculação que Nietzsche mantém com ele. Mas, falsifi­
cando Bachofen em sentido místico e reacionário, Bãumler censura
Nietzsche por ter abordado o problema de um modo ainda demasia­
damente positivista, racionalista. A censura não se justifica. É verdade
que Nietzsche é mais simples, mais "retilíneo" e menos nebuloso do
que muitos de seus predecessores. Mas sua tendência básica é a mes­
ma. Em primeiro lugar, também ele elimina a conexão entre a liber­
dade democrática do antigo cidadão da pólis e a beleza da arte grega;
em segundo, também ele suprime a beleza e a harmonia como cate­
gorias centrais da estética; e, em terceiro, também nele a "transmu­
tação" da exemplaridade dos antigos é apresentada como se os gregos
tivessem transformado todos os instintos do caos bárbaro num poder
opressor e conquistador, exercido tiranicamente. O ideal grego de
Nietzsche, assim como sua imagem ideal do Renascimento, mostra
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 1 55

estes dois períodos como a coroação daquela barbárie que, segundo


ele, é a única força capaz de apontar a saída - uma saída militarista e
imperialista - para a crise cultural da sua época, a época das dores do
parto do imperialismo alemão e internacional.

5.

Com todas essas tendências básicas da sua filosofia, Nietzsche


abre caminho para o processo de desenvolvimento da ideologia
burguesa que, na época do imperialismo do pós-guerra, deságua na
ideologia fascista. Não há um único motivo da filosofia e da estética
fascistas cuja fonte não se possa buscar diretamente em Nietzsche. E,
aqui, importa menos a similitude imediata de diversas afirmações ou
juízos singulares do que o método geral de abordagem da cultura e da
arte. A demagogia social do fascismo é uma elaboração da apologia
indireta nietzschiana do capitalismo, assim como toda a concepção
fascista da "elite" procede da contraposição nietzschiana entre o ho­
mem superior e o homem inferior, da sua teoria do ressentimento
etc. Portanto, o fascismo considera com razão que Nietzsche é um de
seus antepassados mais insignes. Mas, ao mesmo tempo, como vimos,
o fascismo suspeita muito de certos traços do método de Nietzsche e
de seus resultados. É que, entre Nietzsche e o fascismo, há o espaço de
uma geração, durante o qual se desenvolveu ainda mais a decadência
ideológica do capitalismo. O utópico sonho imperialista de Nietzsche
já se tornou uma terrível realidade. A paradoxal falta de preconceitos
de Nietzsche é, por isto, dificilmente suportável para o fascismo. O
ecletismo fascista - que se apresenta externamente pomposo, mas
que é na verdade radicalmente paupérrimo e mentiroso - tem que
encaminhar as contradições de Nietzsche para uma grosseira, super­
ficial e demagógica "síntese". O fascismo não pode prescindir das
"grandes figuras" de Bismarck e de Wagner e tem de "reconciliá-las"
com Nietzsche. Tampouco pode suportar o livre reconhecimento por
Nietzsche da civilização românica, a exigência nietzschiana de um
modo de expressão latino claro e preciso (exigência em função da
qual Nietzsche viu em Heine o único escritor alemão realmente
grande depois de Goethe) . O fascismo vulgariza a tendência estética
1 56 • GvORGY LuKAcs

antirrealista de Nietzsche, sua exigência de "falsificação" do objeto


estético, de "manipulação interessada e inescrupulosa das coisas",
transformando-as numa exaltação toscamente apologética da bar­
bárie do capitalismo monopolista em putrefação, obtida através de
mitos jornalísticos superficialmente ecléticos.
Esta atitude do fascismo em relação a Nietzsche contribui para
tornar mais clara a posição por ele ocupada no desenvolvimento da
ideologia burguesa alemã. Nietzsche é, por um lado, o primeiro pen­
sador alemão de ampla ressonância, no qual se expressam aberta­
mente as tendências claramente reacionárias da incipiente putrefa­
ção do capitalismo; é o primeiro arauto filosófico da barbárie im­
perialista. Por outro lado, Nietzsche é o último pensador do desen­
volvimento burguês alemão no qual ainda estão presentes, com certo
grau de vitalidade e eficácia, as tradições do período clássico, ainda
que, sem dúvida, de modo deformado e deformador. Entre o de­
senvolvimento clássico-burguês e Nietzsche, situam-se o obscure­
cimento romântico das tradições clássicas durante o período da Santa
Aliança, a traição da burguesia alemã à sua própria revolução em
1 848 e posteriormente, bem como a sua capitulação diante da "mo­
narquia bonapartista" (Engels) dos Hohenzollern, respeitada por
Bismarck. Nietzsche, portanto, recolhe a herança do período clássico
já hipotecada a todas essas mediações reacionárias. E, embora seja o
último grande pensador alemão que mantém uma relação viva com
aquela herança, precisamente por isso, pela paixão subjetiva com que
se apropria de tal herança, Nietzsche se converte no coveiro das
tradições clássicas alemãs. Sua polêmica destrói o academicismo
vazio da trivialização liberal das tradições gregas dos clássicos, assim
como o faz com a estreita veneração da Idade Média, com a retórica
cristã-obscurantista dos românticos. Ao mesmo tempo, porém,
transforma a herança clássica, o mundo grego, o Renascimento, os
séculos XVII e XVIII franceses e o classicismo alemão num mito da
barbárie decadente.
E esta transformação conteudística da herança das tradições
clássicas se acompanha, em Nietzsche, da destruição metodológica
dos caminhos que possibilitariam a reelaboração da própria herança.
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTÉTICA FASCISTA + 157

Nietzsche liquidou metodologicamente o modo filológico, tedioso e


pedante desta apropriação da herança, o historicismo banalizado dos
liberais e dos românticos tardios. No seu lugar, todavia, coloca o
método da construção arbitrária, a fantasiosa transformação da his­
tória em mitos, a "engenhosa" manipulação da história, dos homens e
das épocas. Em Nietzsche, a conexão real das grandes figuras da
história com as lutas reais de suas respectivas épocas desaparece ainda
mais resolutamente do que em seus vulgares e superficiais opositores.
Para Nietzsche, cada figura histórica se decompõe em traços psico­
lógicos isolados, com os quais se pode construir, à vontade, qual­
quer mito de que se careça. Como pensador subjetivamente honesto,
Nietzsche tinha clareza sobre esse seu método: "Só o pessoal é eterna­
mente irrefutável. É possível, com três pinceladas, dar a imagem de
um homem; eu procuro extrair de cada sistema três pinceladas e
prescindo do resto". É assim que Nietzsche se constitui no grande
antepassado de todas as construções históricas arbitrárias e de todas as
míticas fabulações do período imperialista - do impressionismo ao
expressionismo, de Simmel a Gundolf etc., e, mais tarde, de Spengler
a Moeller van den Bruck e a Jünger, 13 e, ainda mais tarde, a Rosenberg
e Goebbels, estende-se um mesmo e único caminho que, na Alema­
nha, Nietzsche foi o primeiro a percorrer.
No fascismo, os resultados a que se chega por este caminho são
tão grosseiros que toda a herança cultural não passa aqui de pretextos
para slogans demagógicos. A forma e o conteúdo da herança progres­
sista da evolução da humanidade estão, sob o fascismo, perdidos para
a burguesia. Mas o fascismo, por sua vez, herda um longo processo
evolutivo, em cujo ponto de inflexão se encontra Nietzsche; para este
processo contribuíram também, sem o saber nem querer, muitos
inimigos burgueses do fascismo. Em suma: o mais claro reconheci­
mento da diferença entre o nível ideológico de Nietzsche e o de seus
herdeiros fascistas não pode eliminar o fato histórico básico de que
Nietzsche é, efetivamente, um dos mais importantes precursores do
fascismo.
1 58 • GYORGY LUKÁCS

Notas

1 Alfred Rosenberg ( 1 893- 1 946) , nascido na Estônia, discípulo do racista


inglês H. S . Chamberlain ( 1 85 5 - 1 92 7 ) , fo i também responsável pelos
territórios orientais ocupados pelo exército nazista. Condenado à morte
pelo Tribunal de Nurenberg.

2 Stefan George ( 1 868- 1 93 3 ) , influente poeta que reuniu em torno de si


( " Círculo de George " ) importantes membros da intelectualidade de língua
alemã. Apesar de protofascista, seu aristocratismo afastou-o dos nazistas.
Logo depois da chegada destes ao poder, autoexilou-se na Suíça.

3 Joseph von Gõrres ( 1 776- 1 848 ), publicista inicialmente adepto da Revolução


Francesa, depois abertamente conservador. Johann J. Bachofen ( 1 8 1 5 - 1 887),
professor d a Universidade d e Basileia, estudioso d a evolução da família.

4 Arthur Moeller van den Bruck ( 1 876- 1 92 5 ) , escritor, influente na formação


dos primeiros círculos fascistas.

5 Adam Ferguson ( 1 723- 1 8 1 6 ) , professor em Edimburgo, autor de vasta obra,


o maior iluminista escocês.

6 D. F. Strauss ( 1 808- 1 874), membro da "esquerda hegeliana", foi autor da


célebre Vida de Jesus ( 1 835- 1 836) que, na Alemanha, abriu a via ao ma­
terialismo.

7 Georg C. Lichtenberg { 1 742- 1 799), filósofo e escritor.


8 Adalbert Stifter ( 1 805- 1 868), austríaco, poeta e pedagogo. Gottfried Keller
( 18 1 9 - 1 890), suíço, romancista muito admirado por Lukács.
9 Paul Charles Joseph Bourget ( 1 852- 1 93 5 ) , poeta, dramaturgo, célebre por
seus "romances psicológicos", era membro da Action Française, um
movimento político monarquista e de ultradireita.

10 P ierre Loti ( pseudônimo de Louis - M arie Julien Viaud, 1 850- 19 23) ,


romancista, membro d a Academia Francesa desde 1 8 9 1 ; Gyp ( pseudônimo
de Sybelle Gabriele Mirabeau, condessa de Janville Marte!, 1849- 1 93 2 ) ,
escritora d e romances e m série, antissemita; Henri Meilhac ( 1 83 1 - 1 897),
escritor d e libretos d e ópera, membro da Academia Francesa desde 1 888;
Anatole France (pseudônimo de Jacques Anatole François Thibault, 1 844-
1 924), Prêmio Nobel de Literatura de 1 92 1 ; Jules Lemaitre ( 1 853- 1 9 1 4 ) ,
escritor, membro d a Action Française.
11 Ernst Mach ( 1 838- 1 9 1 6 ) , austríaco, físico e filósofo, que exerceu grande
influência também na Rússia e foi criticado por Lenin em Materialismo e
empiriocriticismo.
12 Bernard de Mandeville ( 1 670- 1 73 3 ) , médico holandês radicado na Ingla­
terra, autor satírico da Fábula das abelhas ( 1 7 1 4), na qual, registrando o
fato de que a produção de bens de luxo gera empregos, ironiza dizendo que,
na sociedade presente, "os vícios privados tornam-se virtudes públicas".
N I ETZSCHE COMO PRECURSOR DA ESTf:TICA FASCISTA + J 59

13 Ernst Jünger ( 1 895- 1 998), entomologista e escritor. Depois de 1 934 - ano


em que Lukács escreveu este ensaio -, afastou-se dos fascistas.
PA RT E I I

PA R A U M A T E O R I A M A R X I S TA
DOS GÊNEROS LITERÁRIOS
A QUESTÃO DA SÁTIRA

1 . Pontos de partida para uma teoria da sátira

Na Alemanha, a sátira é o filho rejeitado da teoria burguesa da


literatura. Embora a sátira seja precisamente o domínio no qual a li­
teratura da burguesia revolucionária produziu obras-primas imortais
(Swift, Voltaire etc. ) , até mesmo os pensadores mais importantes
dedicaram ao problema da sátira, no período em que a filosofia clás­
sica alemã passou a se ocupar sistematicamente da teoria literária,
nada mais do que algumas observações embaraçadas. Em seguida,
tentaremos transformar este "embora" num "porquê". Mas, de ime­
diato, iremos - com a ajuda de alguns exemplos - examinar breve­
mente a posição da filosofia clássica alemã em face de nossa questão.
Dado o nível filosófico geral alcançado nesta época, a questão é
posta em bases sócio-históricas até mesmo por um idealista subje­
.
tivo como Schiller. Em seu grande ensaio sobre Poesia ingênua e
sentimental ( 1 79 5 ) , a sátira é concebida como uma das formas que
surgem quando o poeta rompe com a "natureza", ou seja, quando per­
de a ligação ingênua que o unia à natureza. 1 Por isso, diz Schiller: "O
poeta pode ser dito satírico quando toma como objeto [ . . . ] o afasta­
mento das coisas em relação à natureza e a contradição entre a reali­
dade e o ideal". O próprio Schiller sente que esta definição, em con­
sequência de seu ponto de partida filosófico e desta formulação da
contradição como algo que se estabelece entre a "realidade" (princí­
pio objetivo) e o "ideal" (princípio subjetivo ) , tem grandes possibili­
dades de gerar interpretações ditadas por um subjetivismo arbitrário.
Ele tenta concretizar ainda mais sua definição, buscando assim supe­
rar e suprimir, ou pelo menos atenuar, esta arbitrariedade. Portanto,
ele prossegue do seguinte modo: "Na representação de uma realidade
revoltante, o que importa essencialmente é que a necessidade seja o
pano de fundo sobre o qual o poeta ou o narrador imprime as cores do
real e que ele saiba pôr nossa alma à disposição das ideias". Em outras
1 64 • GYORGY LUKÁCS

palavras, Schiller exige que o poeta satírico oponha à realidade


degenerada que lhe é contemporânea a realidade tal como deve ser -
ou sej a, a realidade conforme à "natureza" - e que busque produzir o
efeito satírico a partir desta oposição.
A problemática de Schiller, por mais abstrata e idealista-subje­
tiva que seja sua tentativa de historicizar os diferentes gêneros artísti­
cos e os métodos criativos, assumiu grande importância nos debates
subsequentes da teoria literária. Decerto, de acordo com a situação de
classe dos interessados e com seus correspondentes pontos de partida
filosóficos e metodológicos, a concepção schilleriana foi frequente­
mente combatida, mas sem que fosse abandonada a ligação entre as
problemáticas histórica e estética. Iremos nos limitar aqui à aborda­
gem sumária da concepção e dos pontos de vista de Hegel, que repre­
sentou a culminação deste período. Sob o aspecto metodológico,
Hegel representa um grande passo à frente em relação a Schiller, já
que empresta um conteúdo mais concreto e objetivo à concepção
histórica deste último, que é ainda confusa e marcada por generali­
dades abstratas. Em Hegel, a sátira não é mais apenas um estágio
histórico geral no desenvolvimento do método criador, mas é apre­
sentada - de modo inteiramente concreto - como a desagregação da
arte clássica, "a aberta oposição entre a subjetividade finita e o mundo
degenerado", 2 uma forma artística específica da sociedade latina. E ele
caracteriza a sátira do seguinte modo:
O gênero satírico se baseia em princípios firmes que
são incompatíveis com nossa época, já que ditados por
uma sabedoria abstrata, por uma virtude rígida e autossu­
ficiente; estes princípios entram em oposição com a reali­
dade, tornando-se impotentes para contribuir de modo
eficiente, por meios autenticamente poéticos, para o desapa­
recimento dos lados falsos e sombrios da vida e para a re­
conciliação autêntica no seio da verdade.

Dois pontos merecem atenção nesta definição da sátira. Em


primeiro lugar, Hegel certamente constata que algumas condições
históricas concretas presidem o nascimento da sátira, mas ele situa
este nascimento na Antiguidade, em Roma; portanto, ele afasta su­
mariamente da estética toda a literatura satírica da burguesia ascen-
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 65

dente desde o Renascimento e a Reforma (Maquiavel, Rabelais,


Ulrich von Hutten etc. ) até a Revolução Francesa. Em segundo lugar,
o que é apenas a outra face da mesma moeda, ele considera a sátira
como um gênero artístico imperfeito. Como vimos, a imperfeição da
sátira, segundo Hegel, decorre da insuficiência da "reconciliação com
a realidade". Em outra passagem de sua Estética, que se refere de perto
à nossa questão, Hegel - tratando da passagem do simples ridículo ao
cômico -- expressa-se sobre isso de modo ainda mais claro. Antes de
mais nada, ele define o ridículo, com justeza e profundidade, como
um "contraste entre o essencial e sua manifestação exterior". Mas o
ridículo deve ser depurado para se elevar ao "cômico". A observação e
o conhecimento deste contraste entre a essência e sua manifestação
devem se elevar a uma figuração realmente artística; só assim a
"reconciliação" torna-se a base do método criador. Sobre isso, Hegel
se expressa de um modo absolutamente claro:
São cômicos apenas o bom humor e a segurança infi­
nitos que permitem ao homem situar-se acima da contra­
dição em que está envolvido, em vez de sofrer esta con­
tradição e sentir-se infeliz; é cômica apenas a serenidade
com a qual o sujeito, contente e satisfeito consigo mesmo,
pode suportar a desagregação de seus objetivos e realiza­
ções.

Na mesma página, Hegel rej eita a sátira por sua "secura";


quando fala da desagregação da forma artística medieval (e, portanto,
do nascimento da arte moderna, da arte burguesa) , ele põe apenas o
humor, que tem também a "reconciliação" como base filosófica, no
lugar deixado vazio pela história e que, quando da desagregação da ar­
te antiga, havia sido ocupado pela sátira; finalmente, em sua Estética,
ele simplesmente não cita os grandes representantes da sátira, ou,
quando o faz, interpreta suas obras como "cômicas" ou "humorísti­
cas". Tudo isso nos permite dizer, com clareza, que Hegel cancela do
domínio da arte a sátira criada pela burguesia ascendente.
Decerto, durante o período de desagregação do hegelianismo,
que foi o período de preparação filosófica da Revolução de 1 848, assis­
te-se, em todos os campos, a um retorno à filosofia e à literatura
francesas do século XVIII, ou seja, à fase revolucionária do desen-
1 66 • GYôRGY LUKÁCS

volvimento burguês. Mas, depois de 1 848, a burguesia rapidamente


liquida esta "recaída". O hegeliano Friedrich Theodor Vischer, o
pensador burguês e liberal que exerce a maior influência no domínio
da estética na Alemanha, é certamente obrigado a corrigir a posição
de Hegel, que consiste em limitar historicamente a sátira à Antigui­
dade e a deslocar o período da sátira para as "épocas de desagregação";
contudo, em sua Estética, Vischer destaca a Roma da decadência e o
século XVI, o que o leva, por conseguinte, embora ele tenha ampliado
o ponto de vista hegeliano, a deixar de lado o período propriamente
revolucionário da burguesia. Nele, isso tem lugar no quadro de uma
polêmica direta contra todo este período. Ele define a sátira como
uma região fronteiriça da arte, como uma forma que se afasta, em
maior ou menor medida, da arte "verdadeira'', da arte "pura". Também
nele a amplitude deste afastamento depende da presença ou não da
"reconciliação com o real". Vischer ataca violentamente o "extravasa­
mento de bílis em Swift"; afirma que "a amargura contra o mundo
[ . . . ] " reforça "a base não poética". Quanto mais isso se expressar de
modo claro, quanto mais (nas palavras de Vischer) a sátira for direta,
tanto mais ela se afasta do nível artístico. Ele diz: "A sátira direta ou
positiva mantém expressamente o ideal em contato com o real,
denuncia sua baixeza por meio de um ataque aberto e se inscreve
assim, do modo mais decidido, na separação prosaica entre a ideia e o
mundo". Portanto, ela não mais será "de modo algum estética [ . . . ] se
não usar nos detalhes meios cômicos, essencialmente o chiste [ . . . ] ".
As passagens citadas mostram os limites contra os quais a
estética burguesa, mesmo em suas expressões mais avançadas, tinha
necessariamente de se chocar em suas tentativas de apreender teori­
camente a questão da sátira. Neste terreno, tais limites são o idealismo
filosófico e o interesse de classe de uma burguesia que, para realizar
seus objetivos classistas, renuncia de modo cada vez mais claro e deci­
dido a todo meio revolucionário e, por isso, remaneja seu próprio
passado de acordo com esta exigência. Estas duas limitações estão
estreitamente ligadas entre si: o idealismo filosófico reduz a tal estado
de abstração a realidade social na qual se baseia esta problemática
que, no ar rarefeito das pálidas noções gerais, a distorção conceituai
desta realidade pode ocorrer de modo quase inconsciente. Com
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 67

efeito, em primeiro lugar, fala-se da oposição entre a ideia e a rea­


lidade, entre a essência e o fenômeno, sem que seja nem possa ser
esclarecido, no plano sócio-histórico, o que significam essência e fe­
nômeno na realidade social. Em segundo lugar, fala-se de "desagre­
gação" e de "decadência" em geral, mas não são indicados concreta­
mente que elementos se desagregam, que elementos e que homens são
os portadores desta desagregação: uma "civilização" (por exemplo, a
civilização clássica) se desagrega e o Espírito universal encarna-se
numa nova figura; ora, em tal construção, desaparecem a economia,
as classes e as lutas de classe. Em terceiro lugar e em consequência, o
idealismo contrapõe o indivíduo artisticamente produtivo à socie­
dade, ao estado da sociedade, ao espírito da época, em vez de contrapor
(num processo que a sátira deveria figurar) o escritor enquanto re­
presentante de uma determinada classe, num estágio determinado de
seu desenvolvimento, a um sistema social determinado. Segue-se
disso, portanto, em quarto lugar, que a oposição social concreta (ou
seja, a crítica, na sátira, de uma sociedade de classe por uma classe que
é por ela oprimida, ou a autocrítica de uma classe) é transfigurada
numa revolta ética abstrata do indivíduo contra sua época "degene­
rada" e a "justificação" desta revolta é submetida a uma análise de
natureza filosófica.
É compreensível que a "justificação ética" desta revolta tenha
sido melhor reconhecida quando o conflito estava mais distante dos
problemas da atualidade e quando as sátiras mantinham relações
menos tensas com as tradições revolucionárias da burguesia. E é
também compreensível que o tratamento pelo escritor da oposição
entre essência e fenômeno ( na sociedade) tenha recebido um juízo
estético tanto mais elogioso quanto menos era vigoroso o ataque con­
tra a sociedade que gera esta oposição. O escritor que se adequa a tais
preceitos - diz Vischer -
[ .. ] não se volta para o riso livre e isento de preconceitos;
.

inclina-se a tomar o mal como loucura [ ] ; a representação


...

se faz graciosa e leve; trata-se de um jogo de adorável des­


preocupação, que se transforma em procedimento objetivo
e fornece uma imagem do mundo.

Ou seja: o escritor, se quer se manter "no nível estético': deve


partir do reconhecimento de que, "malgrado tudo, a potência da ideia
1 68 + GYôRGY LuKAcs

não pode realmente morrer, nem mesmo em nosso mundo malvado".


Já que o Estado e a sociedade burguesa representam a Ideia em sua
figura concreta e objetiva, o escritor deve ser otimista diante da socie­
dade burguesa, deve (ainda que fustigando em sua obra aberrações
isoladas) aprovar sem reservas os fundamentos desta sociedade.
Não é por acaso que precisamente o problema da sátira faça
aparecer os limites da estética burguesa de modo tão claramente ní­
tido, de modo bem mais brutal do que o que ocorre na maioria das
demais questões literárias. E isso se dá porque, na questão da forma
da sátira, a relação com o conteúdo de classe se expressa mais imedia­
tamente do que na maioria dos problemas formais na literatura. A
sátira é um modo de expressão literária abertamente combativo. O
que é figurado na sátira não é o porquê e o contra o quê se combate,
nem o próprio combate: é a própria forma da figuração que, em seu
princípio e de modo imediato, assume a característica de um combate
aberto. É por isso que, quando do tratamento teórico da maior parte
das outras formas literárias, nas quais a relação entre o conteúdo de
classe e a forma é mediatizada de modo complexo, é relativamente
mais fácil contornar ou esvaziar o sentido desta mediação e realizar a
reconciliação do conteúdo de classe por meio de uma "forma pura".
Como vimos em Schiller, Hegel e Vischer, não é possível abordar o
problema da forma da sátira sem tomar posição, do ponto de vista da
estética, sobre a questão da forma do combate aberto. Mas eles não
podiam se esquivar clandestinamente do problema, já que - a des­
peito do seu idealismo filosófico e dos limites de classe que lhes eram
impostos pelo desenvolvimento específico da burguesia alemã - estes
pensadores ainda eram, malgrado tudo, representantes teóricos de
uma classe em ascensão e, portanto, pensadores corajosos e resolutos,
que se empenhavam em pensar até o fim os problemas com que se
defrontavam e em expressar abertamente suas opiniões. Eles não
caíam nem na apologia nem na vulgarização. 3 Por isso, ao tratarem
da sátira, estes pensadores deviam necessariamente se deparar com
os problemas formais fundamentais deste gênero e expressá-los com
maior ou menor clareza. É também essa a razão pela qual a relação
entre estas questões formais e o conteúdo social da sátira tenham se
imposto a eles com maior ou menor clareza. Portanto, as distorções
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 69

generalizantes, abstratamente idealistas do seu modo de abordar esta


problemática, bem como as soluções visivelmente embaraçadas que
eles propõem como respostas, não podem anular o fato de que neles -
e, antes de mais nada, em Hegel - foram formuladas as questões fun­
damentais sobre a forma da sátira. É por isso que, também neste caso,
para clarificar a questão com base no materialismo dialético, é preciso
proceder à inversão materialista da problemática hegeliana.

2. O contraste imediato entre fenômeno e essência

Hegel definiu o ridículo em geral e a sátira em particular como


o contraste entre essência e fenômeno. Em que consiste, contudo, no
que se refere ao conteúdo e à forma da literatura, este contraste entre
essência e fenômeno? Na elaboração geral da relação entre estas cate­
gorias - apesar de todas as extravagâncias idealistas, apesar das dis­
torções nela presentes, devidas ao fato de o idealismo pôr as coisas de
"cabeça para baixo" -, a lógica hegeliana se mostra bastante concreta
(Engels ap o nta em tal relação o núcleo desta lógica). No tratamento
da sátira, são justamente estes traços negativos da dialética idealista
que se põem necessariamente no primeiro plano. O principal proble­
ma é que, neste caso, a simples oposição entre fenômeno e essên­
cia não basta. O que é mais importante destacar, de modo concreto, é
o seguinte: o que devemos entender, no domínio específico da litera­
tura, por "essência", "fenômeno" e "contraste entre os dois"? A estética
idealista foge aqui da única concretização possível, ou seja, a concre­
tização social. Decerto, Hegel sabe muito bem que a matéria da sátira
é a vida social. Portanto, também nele o contraste entre essência e
fenômeno é tornado visível a partir desta matéria; porém, bem mais
nitidamente do que em outras partes da Estética, as categorias que
têm uma matéria concreta e um conteúdo social são projetadas no
espaço vazio da relação puramente estética, abstratamente formal,
apenas categorial. A inversão materialista, portanto, deve operar por
meio da concretização do conteúdo social, do sentido de classe da
essência e do fenômeno.
Já em O capital, Marx efetuou esta concretização das catego­
rias decisivas do ser social. A dialética concreta destas categorias, tanto
1 70 • GYORGY LUKÁCS

histórico-sociais quanto teórico-universais, manifesta-se na relação


necessária entre a forma fenomênica imediata da superfície das coi­
sas (por exemplo, o preço) e as verdadeiras forças motrizes (o desen­
volvimento das forças produtivas ) . Enquanto reflexo conceitual­
sensível da vida social real dos homens, a literatura se baseia neces­
sariamente na mesma dialética. A superfície das coisas, o mundo dos
fenômenos, engloba o mundo fenomênico das categorias econô­
micas, mas também todos os sentimentos, pensamentos, experiências
que os homens acumulam sobre o conjunto da realidade social em
que vivem, bem como todas as ações geradas pela interação com este
ambiente imediato. E o dever de toda figuração literária é o de repre­
sentar este universo imediato e este ambiente dos homens em sua in­
teração com a essência, com as reais forças motrizes da sociedade e da
história. A situação histórica do escritor, seu pertencimento de classe,
o nível de sua concepção do mundo, sua força na figuração - estes são
os elementos que determinam em que medida ele é capaz de apro­
fundar sua pesquisa até chegar às forças motrizes reais da realidade
que ele representa e de figurar artisticamente a essência apreendida.
Na verdade, pode parecer que precisamente aqui esta relação
vai escapar ainda mais de nossas mãos. Decerto, pusemos em evidên­
cia o conteúdo social do fenômeno e da essência na literatura, mas de
modo ainda totalmente abstrato. Se ficarmos neste nível, caracteriza­
remos globalmente a literatura, mas ocultaremos a distinção específi­
ca entre a sátira e os demais gêneros literários. Pois é claro que toda
autêntica literatura, que reflete de um ou de outro modo a vida da
sociedade, deve se basear, em última instância, na dialética entre
fenômeno e essência. Um romance de Balzac ou de Tolstoi, um drama
de Shakespeare ou de Goethe, terão como eixo central de sua constru­
ção a seguinte questão: de que modo a essência, as forças motrizes dos
eventos se manifestam por trás da superfície dos fenômenos e das
representações dos homens? (Naturalmente, isso ocorre sempre se­
gundo um fator determinante, ou seja, as condições de existência his­
tórico-sociais do escritor acima mencionadas. ) Mas, se a reprodução
da dialética entre essência e fenômeno da vida social dos homens é
uma característica de toda literatura, em que consiste então sua ma­
nifestação especifica na sátira?
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 71

Diante desta problemática, fica claro que as determinações da


estética idealista não eram abstratas somente no plano do conteúdo,
mas - precisamente em função deste idealismo abstrato - elas eram
também incompletas do ponto de vista formal. Por isso, à determina­
ção hegeliana do "contraste entre essência e fenômeno" é preciso
aduzir - se quisermos apreender a particularidade da sátira - que
aquilo que forma a base do método criador da sátira é a oposição
imediata entre essência e fenômeno.
Mas o que mudou de substancial por termos acrescentado em
nossa definição a palavra "imediato"? Creio que muitas coisas. No
caso do romance, por exemplo, a dialética de fenômeno e essência
pode se impor através de todo um sistema dinâmico de mediações;
mais do que isso, não é de modo algum necessário que esta dialética
se manifeste aberta e expressamente, mas é somente por meio deste
sistema de mediações que ela pode ser revivida. O mundo dos fenô­
menos, em sua gênese e em sua eficácia, é assim constantemente fi­
gurado em relação com todo o seu ambiente, com todas as interações
entre causas e efeitos, com a valorização dos elementos "excedentes";
em função disso, vemos aparecer esta totalidade social, esta imagem
universal de uma época ou de um estágio social que o romance tem
como tarefa figurar. Ao contrário, a sátira constantemente afasta estas
mediações. Este afastamento é o fundamento do seu método criador.
Quando Swift, por exemplo, na última parte de As viagens de Gulliver,
propõe uma pintura satírica da decadência irremediável da sociedade
capitalista de seu tempo,4 ele encarna os vícios mais detestados desta
época (cupidez, mentira etc. ) num ser vil e animalizado, mas ao qual
atribui todos os traços aparentes do homem, contrapondo-lhe seres
plenos de nobreza, ainda "em estado de natureza", que não possuem
nem mesmo p alavras para designar mentira, dinheiro, poder,
governo, guerra, castigo etc., mas os faz aparecer sob a forma de cava­
los. Depois de frequentar estes nobres animais, Gulliver é tomado de
tal ódio e desgosto por toda raça humana que quer se suicidar quando
se vê privado da companhia deles; e, quando regressa à sua casa, não
pode suportar nem a visão nem a linguagem e nem mesmo o cheiro
de seus semelhantes, já que isso lhe recorda os odiosos "Yahoos" que
vivem no país dos sábios e nobres cavalos que lhe esclareceram a dife­
rença entre a nobreza e a degradação.
1 72 • GYôRGY LUKÁCS

Citei Gulliver apenas como exemplo particularmente carac­


terístico do método criador da sátira. Mas muitos outros exemplos
poderiam ser lembrados. Pode-se recordar o contraste entre as
aventuras cruéis, estranhas e fantásticas do Cândido de Voltaire
(sífilis, terremoto de Lisboa, Inquisição etc.) e a impostura da con­
cepção do mundo otimista, inspirada em Leibniz e Pope, segundo a
qual este mundo seria precisamente "o melhor dos mundos possí­
veis". Ou a representação do contraste entre o Cavaleiro da Triste
Figura e a realidade em Dom Quixote, os moinhos de vento, o rebanho
de carnei,ros etc., intervêm como encarnação sensível imediata deste
'
contraste e, em virtude do método criador da sátira, operam o afasta­
mento consciente de qualquer mediação, de qualquer análise, de
qualquer gênese, de qualquer explicação ou dedução etc.
Talvez se possa dizer que estes exemplos são exageros fantás­
ticos do método criador da sátira. (E veremos que, efetivamente, a
sátira exagera sua figuração no sentido do fantástico, do grotesco e
até mesmo, por vezes, do fantasmagórico. ) Contudo, o poeta latino
Juvenal diz corretamente, sobre a sátira, que difficile est satiram non
scribere, ou seja, que é difícil não escrever sátira. Com efeito, a vida
cotidiana apresenta frequentemente a nossos olhos, sobretudo nas
épocas em que as classes estão em franca desagregação, fatos que por
si sós, por assim dizer, apresentam-se na realidade como sátiras
prontas e acabadas. Através de um caso nítido e gritante, tais fatos
trazem à superfície sensível, imediatamente perceptível das coisas, a
essência de um determinado estágio de desenvolvimento de uma
classe social ou mesmo de toda uma sociedade de classes. Em tal caso
particular, que se apresenta na própria realidade, encarnam-se a
unidade imediata e, ao mesmo tempo, o contraste imediato entre
essência e fenômeno.
Limitar-me-ei aqui, para ser breve, a recordar casos por todos
conhecidos: o Capitão de Kõpenick,5 Domela6 e o caso Kreuger,7 nos
quais, de modo diverso, foi a própria realidade que produziu "a face
da classe dominante" sob uma forma satírica quase acabada. O efei­
to provocado por tais casos funda-se no seguinte processo: o desnu­
damento de um fenômeno fútil é obtido de uma só vez, imediatamen­
te, sem a ajuda da reflexão ou da intervenção de cadeias interme-
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 73

diárias, ou seja, pelo súbito aparecimento de sua essência. A vacuida­


de do militarismo, da obediência passiva etc., na Alemanha de antes
de 1 9 1 4, por exemplo, se encarna tão fortemente no Capitão de
Kõpenick que o efeito imediato das cenas decisivas seria enfraquecido
não apenas pela reflexão, explicação ou análise, mas também pela
figuração dos elos intermediários que levam a tais cenas ou resultam
delas. Este modo essencial da sátira se manifesta também no fato de
que o chiste e a piada espirituosa pertencem igualmente a estas ma­
nifestações da vida que nascem, na maioria dos casos, sem intenção
artística; em tais manifestações, a forma satírica brota com força
elementar, de modo espontâneo; por isso, elas podem ser considera­
das como embriões ou células-mãe, presentes na própria vida, da
sátira desenvolvida e elevada a forma. É como se o escritor satírico, tal
como o diabo do romance de Lesage, não tivesse de fazer mais do que
retirar o teto das casas a fim de nos mostrar, sob uma forma satírica
acabada, a realidade tal como se oferece imediatamente a nossos olhos
e ouvidos.
Mas trata-se apenas de uma aparência. Aceitar isso sem um
exame mais aprofundado seria desconhecer, com perigosa levian­
dade, as exigências que o método criador da sátira põem ao escritor.
Com efeito, quando lemos as adaptações literárias do Capitão de
Kõpenick e dos casos Domela ou Kreuger, revela-se de modo evidente
que, quase sem exceção, elas não elevaram a um grau superior - mas,
ao contrário, enfraqueceram - a força satírica do evento real. Não é
difícil descobrir a razão. Onde reside o poder satírico destes eventos
reais? No fato de que, por ocasião de um caso particularmente nítido
e gritante, uma possibilidade particularmente característica de uma
determinada sociedade realiza-se com súbita veemência (em decor­
rência, certamente, de uma série complexa de causas, mas que não se
manifestam no interior do próprio efeito) . O efeito satírico do evento
real se apoia no fato de que consideramos o estado social, o sistema, a
classe etc. em questão como caracterizados pelo fato de que neles é
possível em geral algo deste gênero. Não tentaremos de modo algum
saber se tal evento pertence à média, ao típico ou ao verossímil: basta
a simples possibilidade - mesmo quando admitimos que se trata de
uma "contingência" - para que consideremos o objeto da sátira como
1 74 • GYORGY LUKÁCS

suficientemente caracterizado. (O efeito produzido por todo chiste real,


possuidor portanto de um valor objetivo, ou por uma anedota verda­
deira, baseia-se nos mesmos pressupostos. )
A târefa da figuração satírica, portanto, é a seguinte: tornar
ideologicamente conscientes os pressupostos "espontaneamente natu­
rais" da sátira e representá-los de modo a que ganhe um impacto sensível
o que foi ideologicamente clarificado. Em outras palavras: esta tarefa
consiste em figurar como necessário, sob a forma de uma evidência
imediata, o que surgiu apenas "por acaso" na realidade. Decerto, tam­
bém as outras formas de figuração literária fazem constantemente o
contingente elevar-se ao necessário. Mas, na sátira, esta elevação à
necessidade é diametralmente contrária ao método empregado em
outras formas de figuração. Enquanto estas, ao representarem todos
os elos intermediários, revelam em sua totalidade a complexa dialé­
tica do acaso e da necessidade, superando assim o acaso, na sátira é
como acaso que o acaso deve se elevar à necessidade. Sua necessidade
reside no fato (e somente nele) de que a simples possibilidade do acaso,
que não elimina nem pode eliminar seu caráter contingente,8 expres­
sa a essência do sistema em cujo seio ele foi produzido. A sátira pode
ser efetivamente elevada a forma somente quando a simples possibi­
lidade do objeto da representação satírica é suficiente para desmasca­
rar o sistema figurado e revelar a sua essência real; quando a conde­
nação definitiva que está imediatamente contida nesta representação
não precisa ser fundamentada; quando, portanto, a simples possibili­
dade de um evento contingente surge imediatamente como a essência
oculta do objeto, como seu traço característico essencial.
É precisamente aqui que toda deficiência ideológica, toda
apreensão insuficiente da essência do universo figurado pela sátira
salta aos olhos de modo concreto. Em Almas mortas, a grandiosa sátira
de Gogol sobre a sangrenta passagem da Rússia da servidão ao capita­
lismo, a ideia barroca e fantástica do impostor Tchitchikov - ou seja,
a de comprar "almas mortas" - é inteiramente suficiente para des­
mascarar o conjunto do moribundo e inumano sistema da servidão.
Mas, ao mesmo tempo, a segunda parte do livro, da qual restaram
apenas fragmentos não bem realizados, mostra muito claramente, no
nível mesmo da figuração, onde se situa o limite ideológico de Gogol:
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 75

sua crítica é estática, contentando-se em caracterizar com acentos


destrutivos os "pequenos", ao mesmo tempo em que conserva suas
ilusões sobre a "cabeça" de todo o sistema, ou seja, sobre o czar9
(pouco importa que se trate de uma ilusão ou de um compromisso) .
A partir d o momento e m que s e manifesta este elemento ideológico,
é como se o vigor da figuração fosse cortado em dois: o riso pleno de
audácia é sucedido por frouxo tartamudeio. Este exemplo basta para
mostrar claramente até que ponto o acesso satírico ao simples possí­
vel, ao contingente e ao necessário, está estreitamente ligado ao nível
ideológico do escritor, já que se trata evidentemente de uma questão
ideológica determinar se e como um sistema social (ou uma parte,
um aspecto, um fator de um sistema social) pode ser considerado
como suficientemente caracterizado pelo fato de que um evento
determinado, certamente acima da média, é possível em seu interior.
Uma tal ligação pode tanto atingir o centro do sistema quanto restar
irremediavelmente em sua superfície. E, precisamente na sátira, o
essencial é completamente deixado de lado quando se pretende abor­
dar a questão apenas sob o aspecto da perfeição ou imperfeição for­
mais. Ao contrário, a questão da profundidade da sátira, de sua
precisão nos golpes que desfere etc., é uma questão de conteúdo: trata­
se precisamente de saber se e como o sistema em questão é carac­
terizado de modo verdadeiro, é apreendido de modo verdadeiro me­
diante a forma de caracterização acima esboçada. Comparemos, por
exemplo, a clássica sátira de Voltaire, O ingênuo, com Um ianque na
corte do Rei Artur, de Mark Twain. Estas duas obras partem de uma
ideia semelhante do ponto de vista formal, ideia que, de resto, a sátira
usa muito frequentemente: transportando um ser humano para um
ambiente muito diverso daquele em que vive, seja do ponto de vista
histórico, geográfico ou social, cria-se um modo de iluminar viva­
mente este meio social (e, eventualmente, também a situação do ho­
mem transportado para este meio) através dos efeitos de contraste
satírico que nascem do contato imediato entre dois universos que
normalmente não têm entre si relações imediatas. Mas o fato é que,
enquanto Voltaire desfecha duros e precisos golpes numa série de
importantíssimos problemas sociais de sua época, Mark Twain se
mantém sempre na superfície, a despeito da comparação entre ambos
1 76 • GYORGY LUKÁCS

revelar interessantes contrates entre as técnicas de dois períodos


históricos diversos etc. 1 0
Este nível ideológico é ainda mais necessário porque a sátira
faz nascer uma imagem específica da realidade e, por conseguinte,
pode menos do que outras formas de expressão literária iludir-se
mediante a criação de sucedâneos. Com efeito, nas outras formas de
expressão literária, é possível - pelo menos diante de um leitor su­
perficial - utilizar detalhes "recolhidos da realidade" para substituir o
contexto social desconhecido ou insuficientemente conhecido pelo
autor; com isso, mascara-se a falta de coerência interna do conteúdo
e o caráter inorgânico da composição e, desse modo, cria-se uma ilu­
são sobre a realidade através da simulação de uma capacidade ine­
xistente de refletir o real (é o caso do Berlin Alexanderplatz, de Dõblin).
Mas o efeito de realidade da sátira depende muito pouco, evidente­
mente, da exatidão fotográfica do detalhe; por isso, é impossível ope­
rar aqui com sucedâneos deste tipo. Já chamamos a atenção para o fa­
to de que a sátira pode deslizar para o grotesco e o fantástico. Podemos
agora compreender a razão desta tendência. A sátira liga acaso, possi­
bilidade e necessidade, fenômeno e essência, de modo diverso daquele
que ocorre na própria realidade; e nela são afastadas as mediações
reais. Por isso, a sátira cria uma imagem do mundo cuja evidência
depende, do ponto de vista da forma, da força de impacto sensível do
contraste figurado, e, do ponto de vista do conteúdo, da exatidão da
ligação entre as categorias. Põe-se assim a seguinte questão: o acaso
aqui representado reflete realmente com exatidão, no que se refere à
essência (e, portanto, ao conteúdo) , o estado social figurado pela sáti­
ra? O que se manifesta imediatamente, portanto, é uma impressão de
realidade, a impressão fornecida pelo reflexo da realidade; contudo, o
fator que desencadeia a sátira é, por sua estrutura, qualitativamente
diferente da realidade refletida.
Esta diferença qualitativa se manifesta não quando o autor da
sátira (como Swift ou Voltaire) abandona, nos detalhes e na constru­
ção da obra, o terreno dos fatos empíricos, mas, ao contrário, quando
ele se esforça para elevar o efeito satírico tomando os detalhes e suas
relações na realidade imediata, para assim duplicar com ainda maior
acuidade o contraste global entre o elemento "contingente" no evento
que desencadeia todo o processo e sua necessidade satírica ( Gogol ) . É
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 77

claro, contudo, que a diferença qualitativa em relação ao reflexo


normal da realidade não será abolida nem mesmo pelo recurso a
métodos realistas. I I Também aqui a combinação dos elementos de
realidade - por mais realista que seja sua figuração - não corresponde
à estrutura da realidade: não apenas a ligação entre tais elementos vai
além da média, da verossimilhança cotidiana (é o que ocorre em
quase todos os grandes realistas) , mas também, além do típico. A sátira
atinge o efeito típico precisamente na medida em que faz coincidir a
essência e o fenômeno; mas deve ficar claro que esta coincidência
imediata (e, ao mesmo tempo, contraditória) é obtida por meio do
contraste entre, por um lado, os detalhes não típicos, e, por outro, a
verdade do conteúdo, a exatidão do conjunto da composição. O típico
é assim alcançado por meio da abolição da forma contraditória no
seio do conteúdo adequado de sua própria contradição. É por isso que
as contradições da forma são, também aqui, o reflexo das contradi­
ções dialéticas do conteúdo; mas este reflexo não se dá diretamente,
por meio da simples figuração das contradições, mas de tal modo que
a criação da forma reproduza, em sua estrutura, a contradição funda­
mental do conteúdo. Aparece assim uma realidade poética que, tanto
em seus detalhes quanto em sua totalidade, é um reflexo correto da
realidade, mas que se afasta dela na ligação do detalhe com o todo - em
sua estrutura, portanto -, criando assim a aparência de uma realidade
nova e original. Este distanciamento da realidade (que continua a ser,
contudo, uma reprodução correta da essência da realidade) , esta con­
tínua oscilação entre o real e "irreal", cria a impressão do grotesco e do
fantástico. Na verdade, isso ocorre somente quando este "irreal" ex­
pressa, no nível do conteúdo, precisamente a essência da realidade; se
isso não ocorrer, o fantástico degenera necessariamente num jogo
fútil e grosseiro com elementos reais deformados e arbitrariamente
ordenados. O fantástico e o grotesco efetivamente poéticos produzem
seus efeitos precisamente porque a força de impacto sensível do
fenômeno revela imediatamente a essência que o funda e vice-versa:
no detalhe grotesco, "inverossímil': expressa-se imediatamente a pro­
funda verdade das relações em sua totalidade.
Por conseguinte, na sátira, é impossível separar o nível ideoló­
gico elevado e a força de impacto sensível. De tudo o que dissemos até
agora, ressalta com clareza o fato de que a imaginação satírica só pode
1 78 • GYôRGY LUKÁCS

realmente ter lugar quando a configuração global apresenta um


conteúdo correto. 12 Decerto, a força de impacto sensível da figuração,
as qualidades de invenção e de imaginação da construção da obra,
não são aqui - como em nenhum outro terreno da literatura - uma
simples consequência mecânica do elevado nível ideológico, da
apreensão correta da totalidade no nível do conteúdo. O simples co­
nhecimento, por mais exato que seja, não basta de modo algum para
que se obtenha a figuração satírica. Nossos exemplos anteriores
(Swift, Cervantes etc.) mostram de modo claro como a sátira neces­
sita das qualidades de invenção concreta e sensível do escritor. É pre­
cisamente por isso que o ponto de partida da sátira - seus persona­
gens, suas situações, a história que ela conta - não pode se apoiar na
vantagem que viria de uma argumentação fundada na análise, na
dedução etc. Dado que, a despeito do seu caráter fantástico, os
pressupostos sensíveis da sátira devem ter uma evidência imediata,
uma capacidade de sugestão instantânea, a concepção do mundo do
autor satírico deve se encarnar imediatamente em figuras sensíveis.
É precisamente aqui onde se revelam a falsidade e a banalidade
da concepção burguesa decadente, ora amplamente difundida, se­
gundo a qual seriam antinômicas clareza ideológica e força de impac­
to sensível, razão e imaginação, reflexão e vida. A força de sugestão
sensível, tão indispensável à sátira, liga-se estreitamente à formação
e ao aprofundamento da concepção do mundo: todo erro no plano
do pensamento, toda insuficiência na reflexão ideológica, tem neces­
sariamente, no seio deste meio sensível (embora ele não se apoie na
causalidade média da vida cotidiana) , de eclodir imediatamente co­
mo uma contradição da forma fenomênica sensível com ela mesma
ou com a essência que nela se exprime. Quando isso ocorre, a realida­
de da sátira - esta realidade fantástica e grotesca, que provoca in­
quietação - se degrada numa fria alegoria. Esta unidade imediata da
forma fenomênica sensível e do conteúdo ideológico, base de todo
detalhe, deve penetrar em cada palavra ou jogo de palavras. Limito­
me a citar aqui brevemente, como exemplo característico, algumas
.
estrofes de um poema satírico de Heine sobre Maria Antonieta, no
qual os fantasmas da rainha guilhotinada e de suas acompanhantes se
reúnem no Palácio das Tulherias para a cerimônia do "despertar":
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 79

Agora é preciso cuspir,


mas sem cabeças nem perucas,
em meio a damas que também perderam
tudo que tinham acima das nucas.
São as consequências da Revolução
e de suas falsas doutrinas.
Tudo isso é culpa de Rousseau,
de Voltaire e das guilhotinas.
Mas, que estranho! ,
estas pobres criaturas, a o que parece,
não têm a menor ideia
de que estão mortas e só merecem prece.
Continuam a se pavonear como antes
e a buscar tolamente seduzir.
Que palhaçada e que horror absurdo
estas decapitadas a ir e vir!

3. O ódio sagrado

Embora tenhamos insistentemente sublinhado a significação


decisiva de uma completa elaboração ideológica do conteúdo, nossas
considerações se mantiveram ainda no nível da forma. Contudo, se
queremos clarificar ulteriormente, ainda que de um ponto de vista
geral e abstrato, o problema da sátira, teremos de superar o aspecto
formal, a função da concepção do mundo na criação da forma, e ten­
tar ir até seu conteúdo de classe. Não fizemos mais, até aqui, do que
examinar a relação entre, por um lado, concepção do mundo, e, por
outro, o vínculo entre conteúdo e forma; cabe agora voltar nossa
atenção para o conteúdo e as motivações sociais da concepção do
mundo indispensável à sátira. Decerto, nossas reflexões anteriores
não eram indiferentes a esta questão. Na verdade, este problema, tan­
'
to na teoria literária burguesa quanto na própria criação, foi conti­
nuamente tomado como base de todas as discussões formais e crí­
ticas, embora de um modo ainda implícito. Portanto, trata-se agora
de integrar à descrição da própria sátira este pressuposto que sempre
esteve objetivamente presente e que, em consequência, sempre foi
levado em conta.
1 80 • GYORGY LUKÁCS

O autor satírico combate sempre uma situação social, uma


tendência da evolução social; mais concretamente, ainda que nem
sempre os próprios autores estejam conscientes disso, ele combate
uma classe, uma sociedade de classes. O combate, como vimos, deve
ser dirigido contra os vícios essenciais, contra os abusos essenciais de
uma dada ordem social, se é que a sátira pretende realmente atingir
um nível elevado e fig1,1rar efetivamente, no fenômeno satiricamente
representado, a essência desta classe e desta sociedade. É evidente que
podem existir apenas duas possibilidades: ou uma classe é criticada a
partir de outra classe (caso em que os vícios, os abusos etc., são partes
integrantes do sistema e é por meio deles que uma determinada classe
impõe seus interesses diante das outras classes) , ou se trata da auto­
crítica de uma mesma classe. 13 Se examinarmos de mais perto a
primeira possibilidade, veremos imediatamente que não ir além da
crítica satírica de uma classe por outra é um ponto de vista intei­
ramente errado, próprio do formalismo abstrato e do "sociologismo".
Ao contrário, mesmo do ponto de vista da sátira, não é indiferente
saber quem critica quem. A análise formalista, que busca se refugiar
no domínio "puramente artístico" do como, esquece necessariamen­
te o fato de que este como é determinado de modo decisivo e funda­
mental pela identificação de quem critica e de quem é criticado. Com
efeito, a elevação e a profundidade atingidos pela classe adversária
não só são diferentes do ponto de vista histórico - ou seja, são diferen­
tes no interior de uma mesma classe em função dos seus diferentes
estágios de desenvolvimento -, in as apresentam também uma deter­
minada característica geral que assume, precisamente para o proble­
ma que nos ocupa, uma importância decisiva: a classe progressista,
ligada objetivamente ao desenvolvimento da sociedade ( com base no
desenvolvimento das forças produtivas) é capaz de criticar com maior
precisão a classe cuja existência se vincula às velhas relações de
produção que devem ser superadas. Mas isso não vale para o caso
contrário: a contradição que opõe o desenvolvimento das forças
produtivas às relações de produção que entravam este desenvolvi­
mento, oposição necessariamente destinada a se aprofundar constan­
temente, privará cada vez mais os defensores das relações de produção
que envelhecem, ou que já envelheceram, de toda compreensão das
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 181

forças que revolucionam a sociedade. Decerto, o s defensores do mun­


do que morre também produzem sátiras - e o fazem em grande nú­
mero. Toda classe dominante luta também com as armas do sarcasmo
e da ironia contra a classe que ela oprimiu e explorou, mas que agora
entra em cena com a ambição de tomar seu lugar de classe dominante
da sociedade.
Coloca-se aqui uma questão: a que levam necessariamente estas
sátiras das velhas classes contra as classes em ascensão? Para ser breve,
limito-me aqui a mencionar a literatura satírica escrita contra a
grande Revolução Francesa e, em particular, as duas comédias de
Goethe, Os revoltados e O cidadão geral. Até mesmo o maior admi­
rador de Goethe não negará que estas duas comédias situàm-se no
mais baixo nível de sua produção literária. E isso pela simples razão
de que estas duas peças nasceram do fato de que ele não compreendeu
a Revolução Francesa. Outras obras e afirmações de Goethe teste­
munham a mesma incompreensão, como, por exemplo, Hermann e
Dorotéia ou A filha natural. Contudo, apesar desta debilidade ideo­
lógica fundamental, que danifica toda a sua estrutura, estas duas úl­
timas obras revelam nos detalhes uma grande força poética e são em
seu conjunto dignas de admiração, ao passo que, nas duas primeiras,
Goethe - buscando satirizar um objeto que ele não compreendia -
cai abaixo do nível médio dos folhetins da época.
Mas nem mesmo esta compreensão da estrutura fundamental,
dos vícios fundamentais da sociedade contra a qual se luta - compre­
ensão que só a classe ascendente pode possuir -, é suficiente para o
nascimento de verdadeiras sátiras. Uma crítica - por mais fundamen­
tal e apaixonada que seja, por mais que se dirija ao essencial - não é de
nenhum modo obrigada a escolher o método criador da sátira: ela
pode analisar as situações que combate em seus fundamentos
objetivos e lutar contra elas precisamente através de sua representação
tais quais são. (Lembraria Moll Flanders, de Defoe; Ana Karênina, de
Tolstoi; Zola etc. ) . Para que nasçam verdadeiras sátiras, esta crítica
deve se enriquecer com um matiz particular, ou seja, o que nasce da
indignação, do desprezo e de um ódio tornado clarividentes graças à
paixão, à reflexão e à compreensão do real. É graças a esta clarivi­
dência em face dos sintomas mais insignificantes, das virtualidades
1 82 + GYORGY LuKAcs

mais contingentes de um sistema social, que a sátira percebe e figura


a doença deste sistema, que o condena a uma morte próxima. Este
ódio sagrado vivido pela classe revolucionária foi sempre um veículo
eficaz para uma revolução real, que pretenda extirpar pela raiz a velha
ordem. Quando uma sociedade não é mais viável, quando surge a
necessidade de destruí-la radicalmente e de substituí-la por uma
forma de sociedade fundamentalmente nova, este processo se reflete
nas mentes mais avançadas e progressistas da classe ascendente sob a
forma deste ódio límpido, que discerne com seu olhar de águia todas
as fraquezas e vícios e que nada pode debilitar ou apaziguar (Marat,
Lenin) .
Decerto, a classe que está desaparecendo também odeia aquela
que porta consigo a revolução. Mas este ódio não pode possuir esta
compreensão das coisas que permite captar o que é essencial. E isso
sobretudo no terreno da literatura e, mais ainda, da sátira. Revela-se
aqui, com evidência, que
[ ... ] a burguesia [ depois de 1 848 ] tinha uma exata noção
do fato de que todas as armas que forjara contra o feudalis­
mo voltavam &eu gume contra ela, que todos os meios de
cultura que criara revelavam-se contra sua própria civiliza­
ção, que os deuses que inventara a tinham abandonado.14

Com efeito, os sintomas, as possibilidades, os detalhes que


inflamam o ódio dos que tombam não atingem o essencial, ou sua
ironia volta-se contra o que há de grai:ide, de fundamentalmente novo
na transformação revolucionária. Quando Heine, por exemplo, no
poema que citamos, faz um jogo de palavras com Maria Antonieta,
que "perdeu a cabeça", podemos ver que, na base deste j ogo de
palavras, há um conhecimento correto do contexto histórico. Ao
contrário, quando Goethe ironiza o "cidadão geral'', os exemplos de
Hoche, de Ney, de Murat, de Lannes e de tantos outros reduzem esta
ironia a um vagido impotente diante do sol que se levanta. 15
A compreensão destas relações é importante sob muitos as­
pectos e pode permitir formular de modo mais concreto a questão da
sátira. Antes de mais nada, pode-se ver claramente a razão por que a
estética do período clássico do idealismo alemão, apesar de observa­
ções justas no domínio formal, não pôde esclarecer adequadamente a
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 83

questão da sátira. A evolução do tratamento desta questão em Hegel


mostra até que ponto a compreensão da sátira depende da compreen­
são da Revolução Francesa. Em oposição às suas posições citadas an­
teriormente, o jovem Hegel põe a questão de modo inteiramente di­
verso.16 Como se sabe, na Fenomenologia do Espírito, Hegel trata
longamente de O sobrinho de Rameau, a sátira de Diderot. E, neste
caso, ele não considera "seco" o c uro rigor desta obra-prima e tam­
pouco lamenta que nela não exista nenhuma "reconciliação autênti­
ca" com a realidade. Ao contrário, é precisamente aqui que ele consta­
ta o progresso do Espírito:
O dilaceramento da consci�ncia, que é consciente de si
mesmo, é o riso sarcástico sobre o ser-aí como também
sobre a confusão do todo e sobre si mesmo, e é, ao mes­
mo tempo, o eco que ainda se escuta de toda esta confusão.
[ ... ] É o Si para-si-essente, que não só sabe julgar e palrar
sobre tudo, mas que também sabe dizer com riqueza de
espírito tanto as essências fixas da efetividade, quanto as
determinações fixas que o juízo põe. Sabe dizê-las em sua
con tradição, e essa contradição é sua verdade. 1 7

Também a descrição da comédia antiga como desagregação do


velho mundo dos deuses faz parte da mesma problemática.
Na época em que foi redigida a Fenomenologia, a questão da
revolução burguesa (ainda que sob a forma "papoleônica") era ainda
uma questão atual; mais tarde, quando já professor da Universidade
de Berlim, Hegel a considerava apenas como um pressuposto, cer­
tamente indispensável, da sociedade burguesa, mas como algo que
pertencia irremediavelmente ao passado. Esta mudança fundamental
na concepção do mundo de Hegel tem, para o problema que aqui nos
interessa, a seguinte consequência: os pressupostos de classe - e, por­
tanto, os pressupostos ideológicos da sátira, ou seja, o ódio e a
indignação em face de um estado social justamente condenado à
morte - não mais podiam desfrutar da simpatia de Hegel. Neste
período mais tardio de sua evolução, a filosofia hegeliana da histó­
ria admite a revolução apenas como um fenômeno do passado (a
Alemanha fez sua revolução com a Reforma e não precisa mais de
nenhuma outra) ; do mesmo modo, como vimos, também a sátira
torna-se para ele um fenômeno do passado.
1 84 • GYORGY LUKÁCS

E, no caso, de um passado o mais distante possível. Este des­


locamento tem consequências profundas para a teoria da sátira. Pode­
se compreender que, para as velhas teorias literárias mecanicis­
tas dos séculos XVII e XVIII, a sátira apareça como um gênero literário,
como a epopeia, a lírica, o drama etc. Mas, neste terreno, Schiller deu
um passo à frente. Quando ele divide a "poesia sentimental" em sátira,
elegia e idílio, ele opera - mesmo nos limites do seu idealismo subje­
tivo - uma ampliação do conhecimento. Ao concentrar sua atenção
sobre "a maneira de sentir dominante nestes gêneros poéticos", ele
afirma que "uma emoção elegíaca não nos é proporcionada somente
pela elegia propriamente dita; o poeta dramático e o poeta épico po­
dem também nos emocionar de modo elegíaco". Com isso, ele dá um
passo na direção de uma compreensão dialética, ainda que de modo
inconsequente, já que isso não o leva a modificar em nada os antigos
gêneros; como idealista subjetivo, ele concebe as categorias da sátira,
da elegia e do idílio somente como maneiras de sentir, e não como
métodos criadores que nascem de fundamentos sociais objetivos e
assumem, para o conj unto da figuração poética, uma importância de
primeiro plano. Por mais inconsequente que tenha sido a formulação
schilleriana, Hegel e seus sucessores deram um passo atrás. Eles
atribuem à sátira - entendida como gêne �o literário, e não como mé­
todo criador - um pequeno lugar à margem, seja num passado re­
moto (Hegel), seja fora da literatura propriamente dita (Vischer).
Como vimos, esta tomada de posição se relaciona com o fato
de que estes teóricos não podem mais reconhecer o significado posi­
tivo e a fecundidade literária do ódio da classe revoluciop ária. Disso
decorre, por um lado, que a sátira seja vista não como um método
criador utilizável pelos mais diversos gêneros, mas como algo fechado
nos estreitos limites de um gênero literário limitado; e, por outro, que
a sátira seja contraposta - de modo inconsequente e confuso, mesmo
do ponto de vista em questão - a diversos outros conceitos, como
"maneiras de sentir" (o humor), gêneros literários (a comédia) , meios
de expressão (o chiste, a ironia) . Estas duas séries de consequências
estão estreitamente ligadas; na verdade, são apenas dois aspectos da
mesma falsa problemática. O que aqui é mais importante e caracte­
rístico é a oposição entre a sátira e o humor. O humor seria uma
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 85

forma do cômico na qual, graças à "superação" do ódio "antipoético"


e "cheio de secura" ( ao qual, de resto, se faz alusão, mas sem quase
nunca nomeá-lo) , realizar-se-ia a "reconciliação": "Como toda arte
verdadeira, a comédia deve apresentar o racional em si e para si, não
sob a ameaça de uma destruição mais ou menos catastrófica, mas,
pelo contrário, como opondo-se vitoriosamente a todos os inconve­
nientes e a tudo o que há de insensato na realidade". 1 8 Dado que, para
Hegel, a sociedade burguesa e seu Estado são claramente definidos
como "o racional em si e para si", o que aqui se exclui da literatura de
sua época é indubitavelmente toda crítica, toda sátira que trave efeti­
vamente um combate. Só paulatinamente esta opinião abriu seu ca­
minho. De Jean-Paul a Ruge, os diferentes teóricos da literatura em­
penham-se para encontrar uma formulação que, mesmo reconhe­
cendo a "reconciliação" como exigência suprema da estética, deixe
pelo menos um pequeno espaço igualmente livre para a combativida­
de, e não somente para uma aparência de combatividade voltada para
a periferia dos problemas.
Vischer combate estas tentativas de solução intermediária afir­
mando que, nestes casos, estaríamos diante "mais da sátira do que do
cômico ou do humor"; e, segundo ele, isso expressaria um desespero
indigno da arte autêntica e, portanto, não seria uma verdadeira cate­
goria estética. Como sempre em Vischer, manifesta-se aqui o fato de
que "não pode existir mal absoluto, e, no vasto mundo dos loucos, a
loucura é amada precisamente por ser o suporte, o estimulante e o
lugar do nascimento clandestino da sabedoria". Aqui se desce rapi­
damente a ladeira do idealismo subjetivo próprio da burguesia li­
beral e prega-se, sob a forma do compromisso nebuloso, a mesma
"reconciliação" com o presente que, no fim de sua vida, Hegel pro­
clamava com aberto cinismo. Como a base de classe desapareceu para
dar lugar a uma oposição de tipo idealista entre o mundo em geral e o
sujeito em geral, qualquer ataque resoluto contra o mundo só pode
ser interpretado como desespero. E Vischer, este burguês liberal ajui­
zado, resolve dar lições a Aristófanes:
Se ele tivesse unido a seu grande humor político a
consciência perfeita de que os deuses antigos e seus antigos
costumes continuariam a viver sob uma nova forma de
1 86 • GYORGY LUKÁCS

vida, que tinha necessariamente de brotar do Estado grego


em dissolução, como conteúdo próprio e infinito do
espírito livre, ele teria realizado a forma suprema do humor
aqui exigida.

Em suma, a função do humor como meio de superação da


sátira "semiartística" consiste em que, por um lado, o escritor deveria
adotar um relativismo generalizado, ou seja, deveria incluir igual­
mente sua própria tomada de posição (seu próprio ponto de vista de
classe) no círculo dos objetos a ironizar; e, por outro, que ele deveria
se esforçar para ter uma tolerância liberal em face do mundo critica­
do. A prática literária do último meio século mostra com clareza a
onde levou, com a ajuda do humor, este "aprofun damento" idealista.
Trata-se agora de incluir em nossa análise a segunda possibili­
dade de relação entre a sátira e a classe, ou seja, a autocrítica da classe
sob a forma da sátira. Se não o fizermos, pode surgir a impressão de
que o humor, a ironia etc., tratados pela teoria literária romântica e
pós-hegeliana, seja esta forma de sátira. Esta impressão seria uma
meia verdade e, portanto, um erro. Decerto, é exato que os abalos que,
no curso da Revolução Francesa, sacudiram a consciência de classe
da burguesia e de seus ideólogos provocaram também uma oposição
da burguesia contra si mesma, que se reflete � a teoria e na prática da
ironia, do humor etc. Mas seria um equívoco confundir este relativis­
mo do autodilaceramento, ou frequentemente da autocomplacência,
com a autocrítica revolucionária de uma classe por seus escritores.
Até mesmo no nível ideológico, a luta de classes - a luta pela transfor­
mação da sociedade - não pode ser travada sem uma vigorosa auto­
crítica da classe destinada a vencer. E isso porque se apresentam com
frequência situações nas quais os mais odiosos fenômenos no campo
inimigo ligam-se a debilidades, defeitos ou vícios que têm de ser com­
batidos na própria classe. Quando Lenin, por exemplo, manifestava
contra o burocratismo do jovem Estado soviético um ódio crescente,.
jamais deixou de exercer uma ironia violenta em face dos defeitos de
sua própria classe, de seu próprio partido, fustigando o medo dà res­
ponsabilidade, a incultura, a ignorância etc. que tornavam possível
este burocratismo. Limito-me a recordar seu informe ao XI Congres­
so do Partido Comunista da Rússia ( 1 92 1 ) , no qual ele relata com
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 87

grande amplitude satírica peripécias altamente cômicas, como


aquela em que se vê um francês que quer comprar sardinhas em con­
serva, os "organismos competentes" que querem vendê-las, o dinhei­
ro disponível e, finalmente, o Birô Político que é obrigado a intervir a
fim de que as sardinhas e o dinheiro consigam finalmente o meio de
se encontrar. Concluindo, diz Lenin: "Isso não é uma política no­
va, não é política econômica, não é nem mesmo política pura e sim­
plesmente: é simplesmente zombar do mundo". Podemos encontrar
sátiras deste tipo nas declarações dos mais diversos líderes revolu­
cionários. Também aqui é possível constatar: é difícil não escrever sá­
tiras. E é óbvio que esta forma de sátira se encontra também na lite­
ratura. Limito-me a recordar O sobrinho de Rameau.
É claro que, do ponto de vista dos princípios abstratos, este tipo
de sátira não se distingue da forma literária de combate analisada
acima; e, como ela, ignora também o modo da "reconciliação pelo
humor". (É óbvio que a sátira pode ter um vigor menos corrosivo e
amargo quando se trata de uma autocrítica de erros menores, margi­
nais; mas, também neste caso, não tem lugar o relativismo do humor. )
Um traço peculiar se manifesta, contudo, quando consideramos as
sátiras autocríticas da burguesia, particularmente num estágio j á
declinante d a evolução desta classe. Pode ocorrer neste caso, muito
facilmente, o seguinte: a autocrítica satírica, que desnuda os vícios
mais profundos da classe através de um de seus membros, pode
desembocar no desespero quando nenhuma saída pode ser oferecida.
Swift é o maior exemplo literário desta tendência; para a evolução
mais recente, recordaria, por exemplo, Bouvard e Pécuchet, de Flaubert,
e Os últimos dias da humanidade, de Karl Kraus. Contudo, estamos
aqui diante de uma mudança qualitativa. Por um lado, no início do
século XVIII, não era de modo algum possível a Swift perceber con­
cretamente uma perspectiva realista de superação do capitalismo;
portanto, é compreensível que ele tenha identificado a sociedade
burguesa com a humanidade e que, a partir desta identificação, tenha
chegado ao absoluto desespero. E, por outro lado, sua crítica se dirige
contra os fundamentos sociais objetivos do capitalismo (na medida
em que, na época, ele podia percebê-los) e - somente em relação com
tais fundamentos - contra suas consequências ideológicas. Para os
1 88 • GYôRGY LUKÁCS

autores mais recentes, ao contrário, a história já coloca, cada vez mais,


a persp ectiva de sup eração do capitalismo; mas eles evitam
(conscientemente ou não) a ruptura com sua própria classe, embora
esta fosse a conclusão logicamente coerente com a crítica que efe­
tuam, preferindo refugiar-se numa posição desesperada diante da
"humanidade" em geral. Em estreita relação com isso, a crítica satí­
rica passa cada vez mais de uma crítica social a uma "crítica da cultu­
ra': de uma crítica dos fundamentos a uma crítica das opiniões, de
uma crítica essencial a uma crítica marginal. Não pretendemos su­
bestimar a crítica à ideologia (basta recordar Voltaire e Diderot) , mas
a "crítica cultural" satírica da burguesia declinante não ousa mais
abordar os fundamentos econômicos objetivos dos fenômenos que
ela combate por meio da sátira, ou já não é mais capaz de ir até estes
fundamentos. Seu desespero não vai além da superfície dos fenô­
menos sociais.
Como a evolução burguesa demonstra de modo cabal, somen­
te o ódio, o desprezo e a indignação contra o que merece ser odiado,
desprezado e causar indignação podem se tornar o ponto de partida
ideológico indispensável à sátira. Nos diferentes países e sob as formas
mais diversas, a sátira burguesa nasceu da indignação revolucionária,
do ódio sagrado; com o desaparecimento do caráter revolucionário da
burguesia, esta sátira se extinguiu, tanto na teoria quanto na prática.
Fora da União Soviética, a literatura da revolução proletária ainda está
nos inícios de seu desenvolvimento. O que ainda lhe falta, sobretudo,
é a profundidade e a audácia da concepção do mundo que pode dar
e dará uma forma de figuração sensível e viva ao ódio permanente
do proletariado em face da sociedade capitalista. Para alcançar este
objetivo, contudo, é preciso que nossos escritores se libertem de uma
concepção do mundo - e, portanto, de uma representação sensível -
ainda prisioneira de um esquematismo rotineiro. Um ódio de classe
que se coagula em rotina ou em banalidade, çomo é o caso para mui­
tos escritores, não fará mais do que repetir constante):ll ente genera­
lidades abstratas, sem jamais descobrir tim caso particúlar "inveros­
símil" que, com a força de convicção própria a todo evento supreen­
dente, faça cair sob os golpes da sátira todo um sistema captado de
1 modo vivo. É precisamente a sátira que exige a maior liberdade, a
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 89

maior mobilidade, a riqueza inventiva mais intensa para quem quer


dominar e esclarecer sua própria concepção do mundo e apreender
esta realidade sobre a qual é difícil não escrever sátiras.
Esperamos que nossa argumentação tenha demonstrado que a
sátira não é um gênero literário, mas um método criativo. Seu domí­
nio se estende da polêmica e do pequeno poema de agitação ao grande
romance e à grande comédia. A realidade objetiva do capitalismo
moribundo produz a cada dia, a cada hora, um grande número de te­
mas para a sátira. O ódio crescente, a indignação e o desprezo que bro­
tam do proletariado e dos trabalhadores em face desta sociedade refor­
çam constantemente as condições subjetivas de que a sátira necessita.
Depende dos escritores da revolução proletária encontrar o tema e o
objeto da grande sátira hoje possível.

Notas

1 Talvez não seja necessário insistir no fato de que a "natureza" é aqui tomada
no sentido de Rousseau e designa um estado determinado da sociedade pri­
mitiva, como, por exemplo, o dos poemas homéricos. Decerto, em Schiller,
a concepção original de Rousseau é diluída e deformada no sentido do idea­
lismo subjetivo: a relação entre a civilização e a "natureza" é isolada da ques­
tão da propriedade privada etc. Mas, mesmo em Schiller, malgrado tudo, a
"natureza" significa um estágio da sociedade (e uma qualidade da natureza
humana) . [ Lembramos que, neste ensaio, as notas sem colchete são do pró­
prio Lukács; as demais, dos organizadores.]
2 [Aqui e em seguida, todas as citações de Hegel são retiradas da Estética. Para
as edições em português desta obra, cf. Estética, Lisboa, Guimarães, 7 v.,
1 959- 1 964 (republicada em volume único, 1 993); e Cursos de estética, São
Paulo, Edusp, 4 v., 2000-200 1 . ]
3 Decerto, esta constatação vale, antes de mais nada, para Hegel. Nas teorias
literárias de Schiller, reflete-se também o covarde recuo da pequena burgue­
sia alemã diante dos eventos de 1 793- 1 794; ao contrário, a Estética de
Vischer - iniciada no!\ anos 1 840, mas concluída só em 1 857 - mostra ni­
tidamente, em �uas partes finais, a evolução direitista da burguesia liberal
alemã depois de 1 848. Contudo, as bases teóricas não foram revistas por
Vischer; mesmo depois de 1 848, ele se manteve fiel a seu método, ainda
que, desde o início, este tenha sido bastante ambíguo e próximo do idea­
lismo subjetivo.
4 O limite ideológico de classe que Swift não pôde superar manifesta-se no
fato de que, nele, a sátira é dirigida contra a "humanidade" em geral, e não,
1 90 • GYORGY LUKÁCS

pelo menos conscientemente, contra a concreta sociedade capitalista. A


burguesia revolucionária identifica ingenuamente "o homem" e o membro
da classe burguesa, quer esta identificação leve a uma atitude de aprovação
positiva ( apesar do ponto de vista crítico) , como é o caso em Diderot ou
Lessing, quer, ao contrário, como em Swift, conduza a uma depreciação
pessimista e desesperada.
5 [Em 16 de outubro de 1 906, um sapateiro - que se tornou conhecido como
Capitão de Kõpenick - adquiriu de um trapeiro um uniforme. de capitão,
invadiu uma prefeitura, prendeu o prefeito e levou todo o dinheiro dos co­
fres públicos. A história foi parar nos jornais da época e fez todo mundo
rir do vexame do governo prussiano: este sapateiro havia ridicularizado a
confiança inabalável no uniforme militar e também a obediência cega pre­
gadas por este governo. ]
6 [O impostor Harry Domela s e atribuiu diversos títulos d e nobreza, até se
converter no príncipe Lieven da Letônia, neto do próprio kaiser alemão.
Demorou algum tempo até ele ser desmascarado. ]
7 [ Ivar Kreuger, sueco famoso como inventor d o palito d e fósforo, construiu
um verdadeiro império dos fósforos. Chegou a controlar dois terços da pro­
dução mundial deste produto. Suicidou-se em 1 932, recebendo uma ho­
menagem de destaque na revista The Economist, que se referiu ao "rei dos
fósforos" como um ícone insuperável da carreira empresarial. Três semanas
depois, a própria Economist publicou uma matéria divulgando suas fraudes,
que envolviam esquemas com gestores de fundos, negociações de ativos de
minas imaginárias no Canadá etc.]
8 "O contingente é um real que, dr;: início, é apenas possível e cujo outro ou
contrário existe igualmente" ( Hegel, Ciência da lógica) .
9 Ilusões deste tipo possuem também uma sua dialética histórica. A s ilusões
de Moliere sobre a monarquia absoluta (que era no século XVII uma força
progressista) devem ser avaliadas de modo inteiramente diverso do que as
de Gogol no início do século XIX.
m Pode-se também mostrar, tomando como exemplo a paródia e o pastiche,
que o critério de avaliação da sátira se baseia no conteúdo, A paródia,
mesmo quando sua forma é perfeita, não realizará seus objetivos se a imita­
ção não ressaltar as imperfeições da forma parodiada no nível do conteúdo,
da ideologia, e, se for o caso, de uma relação evidente e imediata com a pró­
pria forma. É por isso que a paródia de Schiller feha pelos irmãos Schlegel
foi tão eficaz: ela toma como ponto de partida a forma neoclássica e paté­
p
tica do Schiller do último período e a põe em o osição com seu conteúdo,
o compromisso pequeno-burguês. (Esta crítica tambélll parte de um ponto
de vista pequeno-burguês, mas de camadas boêmias, marginais, o que deter­
mina seus limites e indica até que profundidade ela pode ir. ) Citarei apenas
o primeiro verso da paródia do poema de Schiller, Dignidade das mulheres:
"Honrai as mulheres, elas tricotam nossas meias . . . .
"
A QUESTÃO DA SÁTIRA • 1 91

11 Espero ser desnecessário sublinhar que não se entende aqui por método
realista um reflexo fotográfico do real. No que se refere ao pensamento,
Lenin observa: "Pois, mesmo na generalização mais simples [ ... ] , há uma
certa dose de imaginação (e é absurdo negar o papel da imaginação mesmo
na mais rigorosa das ciências) ". No caso do realismo na arte, a imaginação
é igualmente indispensável. Contudo, não se trata aqui do papel da imagi­
nação no reflexo literário da realidade em geral, mas especificamente dos
pressupostos do efeito de realidade no fantástico, no grotesco etc.
12 Decerto, quando se fala de "conteúdo correto", é preciso ter em vista, em
cada caso, a situação de classe concreta do escritor, ou seja, a justeza de con­
teúdo que lhe é acessível a partir de tal situação. Por conseguinte, com esta
restrição dialética, a expressão liga-se também à "falsa consciência".
13 Falaremos em seguida desta segunda forma, a qual, como veremos, é neces­
sariamente muito mais rara e só raramente atinge a plena realização.
14 [K. Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, in Marx-Engels, Obras escolhi­
das, Rio de Janeiro, Vitória, v. l , 1 956, p. 26 1 . ]
15 Decerto, Goethe emitiu julgamentos mais razoáveis sobre a Revolução
Francesa, como, por exemplo, depois do que ocorreu em Valmy. Mas isso
em nada altera o nível com que trata a questão em O cidadão geral. Não
é certamente por acaso que seja na sátira on de se situa o nível mais baixo
de suas tomadas de posição em face da Re".olução Francesa.
16 Uma descrição cientificamente exata da evolução de Hegel será impossível
enquanto dispusermos apenas de edições "homogêneas" de seus cursos uni­
versitários. O fato é que ainda hoje dispomos de textos "homogêneos" a
partir de afirmações separadas por um espaço de doze anos (no caso da Esté­
tica) ou de vinte e cinco (no caso da História da filosofia) .
17 [ G . W. F. Hegel, Fenomenologia d o Espírito, Petrópolis, Vozes, 1 992, parte
II, p. 59.]
18 [G. W. F. Hegel, Estética. Poesia, Lisboa, Guimarães, 1 964, p. 446 . ]
O ROM ANCE COMO EPOPEI A BURGUES A

1. As vicissitudes da teoria do romance

O romance literário é o gênero mais típico da sociedade bur­


guesa. Embora nas literaturas do Oriente antigo, da Antiguidade e da
Idade Média existam obras sob muitos aspectos afins ao romance, os
traços típicos do romance aparecem somente depois que ele se tornou
a forma de expressão da sociedade burguesa. Por outro lado, é no
romance que todas as contradições específicas desta sociedade são
figuradas do modo mais típico e adequado. Ao contrário das outras
formas artísticas (por exemplo, o drama) , que a literatura burguesa
assimila e remodela em função de seus próprios objetivos, as formas
narrativas da literatura antiga sofreram no romance modificações tão
profundas que, neste caso, pode-se falar de uma forma artística
substancialmente nova.
A lei universal da desigualdade do desenvolvimento espiritual
em relação ao progresso material, estabelecida por Marx, manifesta­
se de modo claro também no destino da teoria do romance. Com base
em nossa definição geral do romance, seria possível supor que a teoria
desta nova e específica forma literária foi elaborada de modo com­
pleto na estética burguesa. Mas não foi isso o que aconteceu: os pri­
meiros teóricos burgueses ocuparam-se quase exclusivamente dos
gêneros literários cujos princípios estéticos podiam ser recolhidos da
antiga literatura, como o drama, a epopeia, a sátira etc. O romance se
desenvolve de modo quase inteiramente independente da teoria geral
da literatura, que não o toma em consideração e não influi sobre ele
( recorde-se, nos séculos XVII e XVIII, Boileau, Lessing, Diderot etc. ) .
A s primeiras alusões sérias a uma teoria d o romance encontram -se
em observaÇões dispersas feitas pelos próprios romancistas, que de­
monstram elaborar este novo gênero de modo inteiramente cons­
ciente, ainda que, em suas generalizações teóricas, não superem o
que é absolutamente necessário para sua própria criação.
1 94 • GYôRGY LUKÁCS

Decerto, esta falta de atenção para o que é especificamente


novo no desenvolvimento burguês da arte não é casual. O pensa­
mento teórico da burguesia nascente, em todas as questões da estética
e da cultura, tinha forçosamente de se manter o mais próximo
possível de seu modelo antigo, no qual encontrara uma poderosa
arma ideológica em sua luta pela cultura burguesa contra a cultura
medieval. Esta tendência se reforçou ainda mais no período absolu­
tista, quando a burguesia atravessava as primeiras fases do seu desen­
volvimento. Todas as formas de criação artística que haviam crescido
organicamente da cultura medieval, assumindo um aspecto popular
e até mesmo plebeu - e que, portanto, não correspondiam aos mo­
delos antigos -, foram ignoradas pela teoria e, frequentemente, re­
chaçadas como "não artísticas" (como, por exemplo, o drama shakes­
peariano ) . E, como se sabe, o romance - em seus primeiros grandes
representantes - liga-se direta e organicamente, ainda que ao mesmo
tempo de modo polêmico, à arte narrativa medieval: a forma do
romance surge da dissolução da narrativa medieval, como produto de
sua transformação plebeia e burguesa.
Somente na filosofia clássica alemã é que surgem as primeiras
tentativas de criar uma teoria estética geral do romance e de incluí-lo
organicamente num sistema de formas estéticas. Ao mesmo tempo,
também as formulações dos grandes romancistas sobre seu próprio
trabalho ganham amplitude e profundidade (Walter Scott, Goethe,
Balzac) . Portanto, os princípios da teoria burguesa do romance foram
estabelecidos neste período.
Mas uma literatura mais abundante sobre a teoria do romance
veio à luz somente na segunda metade do século XIX. Foi nesta época
que o romance confirmou definitivamente sua predominância co­
mo forma de expressão típica da consciência burguesa na literatura.
As tentativas de fazer renascer a epopeia antiga com base na civiliza­
ção moderna, bastante difundidas nos séculos XVI I e XVIII (Milton,
Voltaire, Klopstock) , desaparecem neste período. Além disso, nos
maiores países europeus, há já algum tempo havia se encerrado o
ponto culminante do desenvolvimento do drama. É assim natural
que surj a também (mais ou menos na época da publicação dos
artigos teórico-polêmicos de Zola) uma mais ampla literatura sobre o
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 1 95

romanée, ainda que não tanto de caráter teórico-sistemático, mas


sobretudo de natureza jornalística e voltada para questões de atuali­
dade. A desigualdade do desenvolvimento fez com que esta literatu­
ra se ligasse, ao mesmo tempo, à fundamentação teórica do natura­
lismo: o romance foi separado das grandes tradições e conquistas da
época revolucionária clássica e a forma do romance se dissolveu sob
o efeito da decadência geral da ideologia burguesa.
Por mais interessantes que sejam estas teorias do romance para
o conhecimento das aspirações artísticas· da burguesia depois da
metade do século XIX, elas não podem resolver os problemas fun­
damentais do romance, ou seja, não podem nem fundamentar a
autonomia do romance como gênero literário particular no seio de
outras formas de narração épica, nem especificar as características
específicas deste gênero, os princípios que o diferenciam da literatura
que tem como objetivo o puro divertimento.

2. Epopeia e romance

A teoria marxista do romance deve partir, portanto, ainda que


criticamente, das ideias elaboradas sobre este gênero literário pela
estética clássica alemã. A estética do idealismo clássico foi a primeira
a pôr, no plano dos princípios, a questão da teoria do romance - e o faz
de modo simultaneamente sistemático e histórico. Quando Hegel
chama o romance de "epopeia burguesa': põe uma questão que é, ao
mesmo tempo, estética e histórica: ele considera o romance como o
gênero literário que, na época burguesa, corresponde à epopeia. O
romance, por um lado, tem as características estéticas gerais da grande
narrativa épica; e, por outro, sofre as modificações trazidas pela época
burguesa, o que assegura sua originalidade. Com isso, em primeiro
lugar, é determinado o lugar do romance no sistema dos gêneros
artísticos: ele deixa de ser um gênero "inferior': que a teoria evita com
soberba, sendo plenamente reconhecido seu caráter típico e domi­
nante na literatura moderna. Em segundo lugar, Hegel deriva preci­
samente da oposição histórica entre a época antiga e os tempos mo­
dernos o caráter e a problemática específicos do romance. A pro­
fundidade desta formulação do problema manifesta-se no fato de que
1 96 • GYORGY LuKAcs

Hegel, seguindo o desenvolvimento geral do idealismo clássico ale­


mão a partir de Schiller, sublinha enfaticamente a hostilidade à arte
da moderna sociedade burguesa; ele constrói sua teoria do romance
precisamente com base na contraposição entre o caráter poético do
mundo antigo e o caráter prosaico da civilização moderna, ou seja, da
sociedade burguesa.
Como já bem antes dele o fizera Vico, Hegel - ainda que cer­
tamente sem indicar os seus fundamentos econômicos objetivos -
liga a criação da epopeia à fase primitiva de desenvolvimento da
humanidade, ao período dos "heróis", ou seja, ao período em que a
vida social ainda não era dominada, como o seria na sociedade
burguesa, pelas forças sociais que adquiriram autonomia e indep�n­
dência em face dos indivíduos. O caráter poético da época "heroica",
que se expressa de modo típico nos poemas homéricos, repousa na
autonomia e na atividade espontânea dos indivíduos; o que significa,
como diz Hegel, que "a individualidade não se separa do todo ético a
que pertence, e tem consciência de si somente em sua unidade subs­
tancial com este todo". 1 O caráter prosaico da época burguesa consis­
te, para Hegel, na inevitável abolição tanto desta atividade espontânea
quanto da ligação imediata entre o indivíduo e a sociedade. Diz ele:
"No atual Estado de direito, os poderes públicos não têm em si mes­
mos uma figura individual, mas o universal enquanto tal reina em
sua universalidade, na qual o caráter vivo do indivíduo ou é removido
ou aparece como secundário e indiferente". Portanto, os homens mo­
d_ernos, ao contrário dos homens do mundo antigo, "têm seus obje­
!ivos e condições pessoais separadas dos objetivos do todo; o que o in­
divíduo faz com suas próprias forças o faz somente para si e, por isso,
responde apenas por sua própria ação e não pelos atos do todo. subs-
tancial ao qual pertence".
Esta lei, que regula a vida da sociedade burguesa, é reconhecida
incondicionalmente por Hegel como resultado historicamente ne­
cessário do desenvolvimento da humanidade e como um progresso
absoluto em relação ao primitivismo da 1época "heroica". Mas este
progresso tem também uma série de lados negativos; o homem perde
sua anterior atividade espontânea e a submissão ao moderno Estado
burocrático, vivida como a submissão a um organismo coercitivo
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 1 97

externo, priva-o de qualquer atividade deste tipo. Esta degradação


destrói o terreno obj etivo para o florescimento da poesia, que é
suplantada pela prosa rasteira e pela banalidade. A tal degradação, o
homem não pode se submeter sem resistência. Diz Hegel:
.
O interesse e a necessidade de uma totalidade individual
efetiva e de uma autonomia autêntica não nos abandona­
rão jamais, e não podem nos abandonar, por mais que o
de3envolvimento da ordem na vida civil e política madura
[ou seja, o desenvolvimento burguês] seja por nós reconhe-
"
cido como fecundo e racional.

Embora Hegel considere impossível eliminar esta contradição


entre poesia e civilização, ele pensa ser possível mitigá-la. Esta função
é encarnada pelo romance, que desempenha na sociedade burguesa o
mesmo papel desempenhado pela epopeia na sociedade antiga. En­
quanto "epopeia burguesa': o romance deve, segundo Hegel, conciliar
as exigências da prosa com os direitos da poesia e encontrar uma
"média" entre eles.
Na realidade que se tornou prosaica, o romance deve, sempre
segundo Hegel, "devolver à poesia, nos limites em que isso é possível
na situação dada, o direito que ela perdeu". Mas isso deve ser feito não
na forma de uma contraposição romanticamente cristalizada entre
poesia e prosa, mas mediante a figuração de toda a realidade prosaica
e da luta contra ela. Essa luta encontra sua realização
[ ... ] no fato de que, por um lado, os personagens, inicial­
mente em oposição à ordem do mundo, aprendem a reco­
nhecer nela o autêntico e o substancial, reconciliando-se
com suas relações e nela ingressando de modo ativo; mas,
por outro lado, eles cancelam do que fazem e realizam a
forma prosaica, substituindo a prosa existente por uma
realidade que se torna amiga da beleza e da arte.

Na teoria do romance de Hegel, encontraram sua mais lumi­


nosa expressão todas as grandes virtudes do idealismo clássico, mas,
ao mesmo tempo, também as suas inevitáveis limitações. Por ter se
aproximado, ainda que de forma falsa e idealista, da compreensão de
uma contradição essencial da sociedade burguesa - ou seja, do fato de
que nela o progresso técnico material é alcançado ao preço de um
1 98 • GYôRGY LUKÁCS

rebaixamento de muitos aspectos decisivos da atividade espiritual e


social, em particular da arte e da poesia -, a estética clássica alemã
conseguiu realizar uma série de importantes descobertas, que cons­
tituem a razão de sua permanente grandeza. Em primeiro lugar, ela
tornou evidente o elemento comum que liga o romance à epopeia.
Na prática, essa ligação se reduz ao fato de que todo romance de
grande significação tende à epopeia, ainda que de modo contraditório
e paradoxal - e é precisamente nesta tendência jamais alcançada que
ele adquire sua grjll deza poética. Em segundo lugar, o significado da
teoria burguesa clássica do romance reside na tomada de consciência
da diferença histórica entre a epopeia antiga e o romance, e, portanto,
na compreensão do romance como um gênero artístico tipicamente
novo.
Não temos aqui o espaço para falar detalhadamente da teoria
geral da epopeia na filosofia clássica, ainda que esta última tenha feito
muito para um conhecimento teórico da composição dos poemas
homéricos (por exemplo: o significado dos momentos regressivos na
epopeia em contraposição com a progressão dos motivos no drama,
autonomia das partes singulares, função do acaso etc. ) . Estas teses
gerais são de extraordinária importância para entender a forma
romanesca, já que esclarecem os princípios poéticos formais graças
aos quais o romance, como antes dele a epopeia, pode dar um quadro
completo do mundo, um quadro de sua época.
Goethe formula do seguinte modo a oposição entre romance e
drama:
No romance, devem-se representar sobretudo ideias e
acontecimentos; no drama, personagens e fatos. O romance
deve avançar lentamente: as ideias do protagonista devem
retardar [ .. ] a evolução demasiadamente rápida da ação.
.

[ . ] O herói do romance deve ser passivo, ou, pelo menos,


..
·

não excessivamente ativo.2

Esta passividade do herói do romance é exigida por considera­


ções de natureza formal: ela é necessária a fim de que, em torno dele,
possa se desenvolver, em toda a sua amplitude, a totalidade do mundo.
No drama, ao contrário, o protagonista encarna a totalidade de uma
contradição social levada a seu limite extremo.
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 1 99

Nesta teoria do romance se expressa, ao mesmo tempo,


frequentemente sem que os próprios teóricos o percebam, um caráter
específico do romance burguês: a sua impossibilidade de encontrar e
representar um "herói positivo". Decerto, a filosofia clássica não
aborda plenamente este problema, já que ela tende conscientemente
a alcançar um impossível estado médio entre as tendências contra­
postas e em luta no seio do capitalismo: não por acaso ela toma como
modelo o Wilhelm Meister de Goethe, romance que se propõe cons­
cientemente figurar este "estado médio". Todavia, a filosofia clássi­
ca esclareceu até certo ponto a diferença entre epopeia e romance.
Schelling, por exemplo, vê o objeto do romance na luta entre idea­
lismo e realismo, enquanto Hegel o aponta na educação do homem
para a vida na sociedade burguesa.
A importância dessas conquistas da estética clássica se mani­
festa no fato de que elas liquidaram definitivamente todas as tenta­
tivas feitas nos séculos XVII e XVIII no sentido de criar e fundamen­
tar teoricamente uma epopeia moderna. A inexequibilidade destas
tentativas revela-se no fato de que Voltaire, em sua teoria da poesia
épica, polemiza precisamente com o princípio heroico dos poemas
homéricos e busca construir uma teoria da epopeia carente de todo
heroísmo, apoiada numa base puramente moderna, ou seja, na base
social que é própria do romance. Não é certamente por acaso que
Marx, falando da hostilidade do capitalismo à poesia em geral e à
poesia épica em particular, cite precisamente a Henriade de Voltaire
como caso modelar de um poema épico fracassado. 3
Portanto, uma atitude teoricamente justa em face da forma do
romance pressupõe uma compreensão teoricamente correta das con­
tradições do desenvolvimento da sociedade capitalista. A filosofia
clássica alemã não era de modo algum capaz de chegar a uma tal
compreensão. Para Hegel, Schelling etc., o desenvolvimento burguês
era o último grau "absoluto" do desenvolvimento da humanidade.
Eles não podiam compreender, portanto, que o capitalismo está his­
toricamente condenado; a compreensão da contradição fundamental
da sociedade capitalista (a contradição entre a produção social e a
apropriação privada) situava-se para além de seus horizontes. Até
mesmo a filosofia de Hegel só podia, no melhor dos casos, aproximar-se
200 • GYORGY LUKÁCS

da formulação de algumas consequências importantes que decorrem


daquela contradição. E nem mesmo aqui esta filosofia podia com­
preender a verdadeira unidade dialética dos opostos sociais. Den­
tro destes limites, Hegel chega apenas à exata antecipação das contra­
dições do desenvolvimento capitalista, ao pressentimento da insepa­
rabilidade entre o seu caráter progressista, que revoluciona a produ­
ção e a sociedade, e a intensa degradação do homem que este desen­
volvimento traz consigo.
O mérito imorredouro da estética clássica alemã para a teoria
do romance reside na descoberta da profunda relação que liga o
romance como gênero à sociedade burguesa. Mas é precisam ente a
justeza deste modo de formular a questão que determina necessa­
riamente os limites da resposta que lhe é dada. Para a estética do
idealismo clássico alemão, um conhecimento exaustivo e rigoroso da
sociedade burguesa - e, mais ainda, da marcha de seu desenvolvi­
mento, da superação histórica de seus limites - era impensável. Até
mesmo Hegel - que, entre todos os seus contemporâneos, foi quem
melhor compreendeu a essência do capitalismo - não pôde ir além de
um simples pressentimento da contradição interna da sociedade
capitalista; e, quando ele tenta retirar deste pressentimento suas con­
sequências estéticas, cai necessariamente em contradições insolú­
veis. É por isso que sua observação correta sobre a natureza antiartís­
tica do capitalismo se transforma na errônea teoria do fim da arte, ou
seja, da passagem do "Espírito" para um estágio situado além da arte.
É também por isso que ele concebe a variante antirromântica da
"reconciliação com o real" como o conteúdo necessário do romance,
manifestando com isso, sem dúvida, um amor pela verdade que
recorda o "cinismo" de Ricardo,4 mas com uma estreiteza que o
obrigou a ignorar muitas possibilidades e questões importantes do
romance.
Os teóricos burgueses - até mesmo os do período clássico -
estão diante de um dilema: ou exaltar romanticamente o período he­
roico, mítico, primitivamente poético da humanidade, buscando
assim escapar da degradação capitalista do homem mediante um
retorno ao passado (Schelling) ; ou atenuar a contradição do ordena­
mento capitalista, insuportável para a consciência burguesa, numa
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 201

medida suficiente para tornar possível, pelo menos, uma certa aceita­
ção e um certo reconhecimento deste ordenamento ( Hegel ) . Ne­
nhum pensador burguês superou este dilema teórico, nem mesmo,
como seria de prever, no que se refere à teoria do romance. E os
grandes romancistas só podem figurar de modo correto esta contra­
dição quando, inconscientemente, deixam de lado suas próprias
teorias românticas ou conciliadoras. A estética clássica alemã iden­
tificou a diferença específica entre epopeia e romance; viu, por
exemplo, que, enquanto a objetividade da epopeia antiga é conferida
pelo mito, é a forma específica do romance que lhe fOnfere esta objeti­
vidade ( "o romance só é objetivo graças à sua forma", diz Schelling) .
Contudo, tal estética não foi capaz de tratar concretamente estas
características do romance e não foi além de uma contraposição -
ainda que correta em suas grandes linhas - entre romance e epopeia.
As bases para a construção de uma autêntica teoria científica
do romance foram colocadas, pela primeira vez, na doutrina de Marx
e Engels sobre a arte. Marx deu uma explicação materialista da desi­
gualdade do desenvolvimento da arte com relação ao progresso ma­
terial, bem como da hostilidade do modo capitalista de produção à
arte e à poesia: esta explicação contém a chave para compreender a
desigualdade do desenvolvimento de formas e gêneros literários es­
pecíficos. As ideias gerais de Marx sobre a epopeia antiga e sobre sua
contrafação moderna, contidas na Introdução à crítica da economia
política e nas Teorias da mais-valia, bem como o capítulo do livro de
Fngels sobre A origem da família, da propriedade privada e do Estado
dedicado à desagregação da sociedade tribal, trazem à luz a dialética
do desenvolvimento da forma épica, um de cujos momentos mais
importantes é construído pelo romance.

3. A forma específica do romance

Por suas finalidades e natureza, o romance tem todos os traços


característicos da forma épica: a tendência a adequar o modo da
figuração da vida ao seu conteúdo; a universalidade e a amplitude do
material abarcado; a presença de vários planos; a submissão do
princípio da reprodução dos fenômenos da vida por meio de uma ati-
2 02 • GYORGY LUKÁCS

tude exclusivamente individual e subjetiva diante deles (como é o ca­


so na lírica) ao princípio da figuração plástica, na qual homens e
eventos agem na obra quase por si, como figuras vivas da realidade
externa. Mas todas estas tendências atingem sua plena e completa
expressão somente na poesia épica da Antiguidade, que constitui a
"forma clássica da epopeia" (Marx). Neste sentido, o romance é o
produto da dissolução da forma épica, a qual, com o fim da sociedade
antiga, perdeu o terreno para seu florescimento. O romance aspira
aos mesmos objetivos a que aspira a epopeia antiga, mas não pode
jamais alcançá-los, já que - nas condições da sociedade burguesa,
que constituem a base do desenvolvimento do romance - os modos
de realizar os objetivos épicos tornam-se tão diferentes dos antigos
que os resultados são diametralmente opostos às intenções. A con­
tradição da forma do romance reside precisamente no fato de que este
gênero literário, como epopeia da época burguesa, é a epopeia de uma
sociedade que destrói a possibilidade da criação épica. Mas este fato -
que, como veremos, constitui a causa principal dos defeitos artísticos
do romance quando comparado à epopeia - proporciona-lhe, ao mes­
mo tempo, também uma série de vantagens. O romance abre cami­
nho para um novo florescimento da épica, de cuja dissolução nasce,
gerando com isso possibilidades artísticas novas que a poesia ho­
mérica ignorava.
Schelling tem toda razão quando atribui uma tão grande im­
portância à forma do romance. Byron - que, a despeito de usar uma
forma versificada, escreveu com seu Dom Juan um romance e não
uma epopeia - formulou enfaticamente, desde os primeiros versos, a
oposição entre epopeia e romance sob o ponto de vista da forma. Ele
quer romper com a composição épica, com o início já in media res,
pois quer contar a biografia de seu herói desde o começo. Com isso,
Byron aponta efetivamente para uma característica específica essen­
cial da forma romanesca. Como a epopeia opera com um herói que,
por toda sua psicologia, cresceu sem problemas no seio da sociedade
em que vive, a figuração épica não carece de nenhuma espécie de
explicação genética; por conseguinte, ela pode ter seu começo no
ponto mais favorável ao desenrolar dos eventos épicos. A narração do
passado serve somente aos interesses do relato, à explicitação da ima-
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 203

gem do mundo, à tensão épica etc., mas não tem em vista uma
explicação do caráter do herói e de sua relação com a sociedade. No
romance, ocorre precisamente o contrário: o passado é absoluta­
mente necessário para explicar geneticamente o presente, o desen­
volvimento ulterior do personagem. Mas Byron aborda o problema
sob um aspecto formal: ele exige a forma biográfica como forma do
romance. Ora, sabe-se que grande parte dos romances clássicos ado­
tam esta forma biográfica; mas seria incidir no formalismo deduzir
da necessidade para o romance do princípio da explicação genética a
conclusão de que a forma biográfica é igualmente necessária. Balzac,
por exemplo, o grande mestre do desenvolvimento genético, põe ex­
pressamente a exigência de começar o romance em qualquer ponto
do desenvolvimento do herói e utiliza também esta variante da figu­
ração em sua prática criadora.
Como vimos, ocorre uma contradição entre teoria e prátiéa no
desenvolvimento do romance, que se manifesta no atraso da teoria
com relação à prática da criação romanesca. Disso se poderia concluir
que, para a construção da teoria do romance com suas particulari­
dades específicas, poderiam servir como material somente as obras
dos grandes romancistas. Contudo, ao lado da teoria por assim dizer
"oficial" dos grandes poetas e pensadores do período revolucionário
da burguesia, encontramos neles também uma teoria "esotérica", na
qual se manifesta, mais do que em sua teoria propriamente dita do
romance, uma mais clara compreensão das contradições fundamen­
tais da sociedade burguesa.
Vejamos um exemplo. Já na Fenomenologia do Espírito, Hegel
indicou a oposição entre o período heroico e o período prosaico da
burguesia, ou seja, a oposição entre a atividade humana espontânea
e a dominação de forças sociais abstratas. Essa indicação serve para
iluminar o caminho que leva da epopeia e da tragédia gregas ao mun­
do da prosa ( Roma). Mas os leitores atentos da Fenomenologia cer­
tamente observaram que esta passagem aparece duas vezes, inicial­
mente nos capítulos que tratam da transição à sociedade burguesa
moderna, ou seja, nos capítulos sobre o "reino humano espiritual" e
sobre "o espírito alienado de si mesmo, a cultura". Estes capítulos
mostram uma atividade espontânea e uma autonomia do homem,
204 + GvôRGY LuKAcs

mas a atividade espontânea tornada alienada de si mesma, defor­


mante e deformada, própria do período de nascimento do capita­
lismo, o da acumulação primitiva. Em tais capítulos, Hegel nada diz
sobre a poesia, em particular sobre o romance e seus problemas
formais, mas não é certamente por acaso que, num momento de­
cisivo de suas considerações, ele cite O sobrinho de Rameau de Diderot
e extraia da estrutura e da forma desta obra-prima importantes
conclusões:
O que no mundo da cultura se experimenta é que não
têm verdade nem as essências efetivas do poder e da riqueza,
nem seus conceitos determinados, bem e mal, ou a cons­
ciência do bem e do mal, a consciência nobre e a consciência
vil; senão que todos estes momentos se invertem, antes,
um no outro, e cada um é o contrário de si mesmo. [ ... ]
Mas a linguagem do dilaceramento é a linguagem perfeita
e o verdadeiro espírito existente de todo este mundo da
cultura.5

Os princípios desta teoria "esotérica" hegeliana do romance


contêm também os princípios da poética "esotérica" de Balzac, que,
na maioria das vezes, ele enuncia pela boca de seus personagens (e,
portanto, na forma atenuada da ironia). Assim, em Ilusões perdidas,
Blondet diz:
Tudo é bilateral no domínio do pensamento... O que
faz Moliere e Corneille serem grandes não é a faculdade de
fazer Alceste dizer sim e Filinte, Otávio e Cinna dizerem
não. Rousseau, na Nova Heloísa, escreveu uma carta a fa­
vor e outra contra o duelo. Você teria coragem de definir
qual era a verdadeira opinião dele? Qual de nós poderia
julgar entre Clarice e Lovelaée, entre Heitor e Aquiles? Qual
é o herói de Homero? Qual foi a intenção de Richardson?

Do ponto de vista prático, esta poética não leva Balza� (nem o


Hegel do período da Fenomenologia) a um ceticismo niilista. Ela
significa apenas que Balzac, em sua obra, desenvolv� até o fundo as
contradições mais profundas da sociedade burguesa e figura a inter­
penetração dinâmica destas contradições como forças motoras desta
sociedade. O fato de que Balzac, como Goethe e Hegel, busque, do
ponto de vista teórico, encontrar um utópico "estado médio" destas
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 205

contradições e o tenha até mesmo figurado em alguns dos seus ro­


mances não tem aqui importância, já que o significado do autor de A
comédia humana na história do romance reside precisamente no fato
de que, no essencial de sua obra, ele se afastou desta utopia e se ateve
à figuração das contradições existentes. É aqui que estão seu mérito e
sua força.
Contudo, o conhecimento criador das contradições antagôni­
cas como forças motrizes da sociedade capitalista (radicadas, em sua
forma geral, no antagonismo de classe entre proprietários e não­
proprietários) é apenas o pressuposto da forma romanesca, não a
própria forma. Já Hegel havia enunciado que o conhecimento correto
do "estado geral do mundo" é apenas o pressuposto do "princípio
poético" propriamente dito, a premissa da invenção e do desenvolvi­
mento da ação. O problema da ação constitui precisamente o ponto
central da teoria da forma do romance. Todo conhecimento das
relações sociais é abstrato e desinteressante, do ponto de vista da
narrativa, se não se torna o momento fundamental e unificador da
ação; toda descrição das coisas e das situações é algo morto e vazio se
é descrição apenas de um simples espectador, e não momento ativo
ou retardador da ação. Esta posição central da ação não é uma in­
venção formal da estética; ao contrário, ela deriva da necessidade de
refletir a realidade do modo mais adequado possível. Se se trata de
representar a relação real do homem com a sociedade e a natureza
(ou seja, não apenas a consciência que o homem tem dessas relações,
mas o próprio ser que é o fundamento desta consciência, em sua
conexão dialética com esta última) , o único caminho adequado é a
figuração da ação. E isso porque somente quando o homem age em
conexão com o ser social é que se expressa sua verdadeira essência, a
forma autêntica e o conteúdo autêntico de sua consciência, inde­
pendentemente de que ele o saiba ou não, e quaisquer que sejam as
falsas representações que ele tenha desta conexão. A f�ntasia poética
do narrador consiste precisamente em inventar uma história e uma
situação nas quais se expresse ativamente esta "essência" do homem,
ou seja, o elemento típico do seu ser social. Através deste talento in­
ventivo, que pressupõe naturalmente uma profunda e concreta pe­
netração nos problemas sociais, os grandes narradores podem criar
206 • GYORGY LUKÁCS

uma representação global de sua sociedade, a partir da qual - como


diz Engels de Balzac - é possível, "mesmo no que respeita aos
pormenores econômicos", aprender mais do que "e ri-i todos os livros
de historiadores, economistas e profissionais da estatística da época".6
As condições em que surge esta ação, seu conteúdo e sua forma
são determinados pelo grau de desenvolvimento da economia e da
luta de classes no momento em questão. Mas a epopeia e o romance
resolvem este problema central que lhes é comum de modo diame­
tralmente oposto. Para ambos os gêneros, é necessário tornar evidente
as peculiaridades essenciais de uma determinada sociedade por meio
de destinos individuais, das ações e dos sofrimentos de indivíduos
concretos. É nas relações do indivíduo com a sociedade, expressas
através de um destino individual, que se manifestam as características
essenciais do ser histórico-concreto de uma forma social dada. Engels
descreve a grande dame como figura principal dos romances de Balzac
e afirma que, "em torno deste quadro central, [ ele] pinta toda a
história da sociedade francesa".7
Mas, no estágio superior da barbárie, no período homérico, a
sociedade ainda era relativamente unida. O indivíduo situado no
centro da narração podia ser típico ao expressar a tendência funda­
mental de toda a sociedade, e não a contradição típica no interior da
sociedade. A realeza, "ao lado do conselho e da assembleia do povo,
significa apenas a democracia guerreira" (Marx) - e Homero não
mostra nenhum meio' pelo qual o povo (ou uma parte do povo) possa
ser obrigado a fazer algo contra a própria,vontade. A ação da epopeia
homérica é a luta de uma sociedade relativamente unida, de uma
sociedade enquanto coletividade, contra um inimigo externo.
Com a desagregação da sociedade tribal, desaparece da arte
narrativa esta forma de figurar a ação, já que ela desapareceu também
da vida real da sociedade. As características, as ações ou as situações
dos indivíduos não podem mais representar toda a sociedade, ou seja,
não podem se tornar típicos de toda a sociedade. Cada indivíduo
representa agora uma das classes em luta. E são a profundidade e a
justeza com as quais é compreendida uma dada luta de classes em
_
seus aspectos essenciais que permitem resolver o problema da
tipicidade dos homens e de seus destinos. A unidade da vida do povo,
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 207

que se tornou contraditória, pode ser representada apenas por meio


da apreensão correta das oposições que a constituem, ou seja, como a
unidade destas oposições. As tentativas posteriores de renovar os ele­
mentos formais da antiga poesia épica estão condenadas, na medi­
da em que nascem num nível de desenvolvimento mais elevado das
oposições de classe, a representar a sociedade de um ponto de vista
errôneo, especulativo, como se esta fosse ainda um sujeito unitário.
Uma vez surgida a sociedade de classes, a grande arte narrativa só
pode extrair sua grandeza épica da profundidade e tipicidade das
contradições de classe em sua totalidade dinâmica. Na figuração
épica, estas oposições se encarnam sob a forma de luta dos indivíduos
na sociedade. Disso resulta, em particular no romance burguês mais
tardio, a aparência de que o tema principal seria a oposição entre o
indivíduo e a sociedade. Mas se trata apenas de uma aparência. A luta
dos indivíduos entre si ganha objetividade e verd �de somente porque
os personagens e os destinos dos homens refletem de modo típico e
fiel os momentos centrais da luta de classes. Mas, já que a sociedade
capitalista cria a base econômica para uma ligação multilateral e
recíproca que abarca toda a vida humana (produção social), o ro­
mance do período capitalista pode oferecer um quadro da sociedade
na totalidade viva e dinâmica de suas contradições (produção social e
apropriação individual) . Em Balzac, o amor e o casamento da grande
dame pode ser o eixo em torno do qual se alinham os traços carac­
terísticos de uma transformação de toda a sociedade. As histórias de
amor dos romances gregos (como, por exemplo, Dafne e Cloé de
Longo) , ao contrário, são idílios separados do conjunto da vida so­
cial: os personagens "não passam de simples escravos que não têm
participação no Estado, esfera em que se move o cidadão livre". 8
A dialética do desenvolvimento desigual da arte se manifesta,
contudo, no fato de que esta mesma contradição principal, que cria a
possibilidade da verdadeira ação romanesca - e que faz do romance a
forma artística predominante de toda uma época histórica -, cria ao
mesmo tempo as condições menos favoráveis para a solução central
do problema desta forma artística, ou seja, o problema da ação. O
caráter da sociedade capitalista é de tal natureza que, em primeiro
lugar, as forças sociais se manifestam nela de modo abstrato, im-
208 + GvôRGY LuKAcs

pessoal e inapreensível pela narração poética (decerto, Hegel já havia


notado este fato, mas sem compreender suas causas econômicas e,
portanto, de modo incompleto) . Em segundo lugar, esta natureza faz
com que a realidade burguesa cotidiana frequentemente não favoreça
uma tomada de consciência imediata e clara das contradições sociais
fundamentais; e isto porque, na sociedade burguesa, dominada por
fo rças espontâneas e elementares, n inguém é capaz de tomar
consciência do impacto de suas ações nos demais indivíduos e o
choque de interesses adquire muitas vezes um caráter impessoal.
Portanto, para os grandes romancistas, o problema da forma consiste
em superar esta hostilidade do material com que trabalham, inven­
tando situações nas quais a luta recíproca seja concreta, clara, típica,
sem aparecer como um choque fortuito; só assim, da sucessão desta;
situações típicas, pode ser construída uma ação épica realmente
significativa.
"Personagens típicos em circunstâncias típicas" - assim Engels
define, numa carta sobre Balzac, a essência do realismo no romance.9
Mas esta tipicidade significa, precisamente, o que vemos em Balzac:
um distanciamento da realidade cqtidiana "média" é artisticamente
necessário para obter situações e ações épicas, para encarnar concre­
tamente em destinos humanos as contradições fundamentais da
(

sociedade e evitar que estas apareçam apenas como um comentário


sobre tais destinos. A criação de personagens típicos (e de situações
típicas) significa, portanto, a figuração concreta das formas sociais:
significa um novo renascimento - que não seja pura imitação mecâ­
nica - do pathos da arte e da estética antigas. Hegel define do seguinte
modo a palavra grega pathos, que ele diz ser intraduzível:
Segundo os antigos, pode-se designar com a palavra
pathos as potências gerais que não se manifestam apenas
para si, em sua independência, mas que são igualmente vi­
vas no coração humano e agitam a alma humana até em
suas mais profundas regiõ �s. 1 0

Portanto, o pathos não é simplesmente idêntico à paixão:


decerto, ele se exterioriza na paixão, mas é ao mesrr.. o tempo "uma
potência da alma, legítima em si, um conteúdo essencial da raciona­
lidade". 1 1 O pathos antigo se apoiava na ligação imediata entre o
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 209

privadq e o público na pólis e, ao mesmo tempo, na unidade imediata,


nos personagens da epopeia e do drama antigos, do universal e do
particular, do típico e do individual. Na vida moderna, esta unidade
imediata é inatingível. A separação entre as funções sociais e as ques­
tões privadas condena toda poesia burguesa do "cidadão" a uma uni­
versalidade abstrata: é precisamente por causa disso que esta poesia
perde seu pathos no sentido antigo da palavra. Mas este fechamento
no privado e o isolamento entre os indivíduos - que, como diz Marx,
é "a realização completa do materialismo da sociedade civil"12 -
tornam-se não um fenômeno casual, mas uma lei universal; e, por
isso, a busca do pathos da vida moderna só pode ter sucesso, até certo
ponto, seguindo esta direção. Assim, ainda nas palavras de Marx,
"quando o sol universal se põe, a borboleta procura a luz da lâmpada
do particular". 13
Os grandes representantes do romance realista começaram
muito cedo a ver na vida privada o verdadeiro material do romance. Já
�ielding se definia como "o historiador da vida privada"; Restif de la
Bretonne e Balzac definiam do mesmo modo a tarefa do romance.
Mas esta historiografia da vida privada só não se rebaixa ao nível da
crônica banal quando, no âmbito privado, manifestam-se concreta­
mente as grandes forças históricas da sociedade burguesa. No prefácio
à Comédia humana, Balzac declara o seu programa: "O acaso é o
maior romancista do mundo; para ser-se fecundo basta estudá-lo. A
sociedade francesa ia ser o historiador; eu nada mais seria que o seu
secretário". 14
Este orgulhoso objetivismo do conteúdo, este grande realismo
na figuração do desenvolvimento social pode se encarnar na obra de
arte somente quando se vai além do âmbito da realidade cotidiana
"média" e o escritor atinge o pathos da vida privada (Balzac) ou "o
materialismo da sociedade burguesa" (Marx) . Mas este pathos só pode
ser encontrado por meio de caminhos muito indiretos e complexos.
As forças sociais que o artista apreende, figurando o seu caráter con­
traditório, devem aparecer como traços característicos dos persona­
gens representados, ou seja, devem possuir uma intensidade de pai­
xão e uma clareza de princípios que não existem na vida burguesa
cotidiana; e, ao mesmo tempo, devem se manifestar como caracterís-
210 + GYôRGY LuKAcs

ticas individuais de um indivíduo concreto. O caráter contraditório


da sociedade capitalista se manifesta por toda parte e a humilhação e
depravação do homem impregnam toda a vida na sociedade burguesa,
tanto subjetiva quanto objetivamente; por isso, quem vive uma expe­
riência apaixonada e profunda até o fim torna-se inevitavelmente
objeto destas contradições, um rebelde (mais ou menos consciente)
que se põe contra a ação despersonalizadora do automatismo da vida
burguesa. Em um de seus prefácios, Balzac observa que os seus leito­
res não compreenderam de modo algum seu personagem pai Goriot
se nele viram apenas resignação: Goriot, ingênuo e ignorante, é a seu
modo tão rebelde quanto Vautrin. Balzac capta aqui perfeitamente o
ponto em que, mediante o pathos, podem nascer uma situação e uma
ação épicas também no romance moderno. Nas figuras de Goriot e
Vautrin (bem como nas da Marquesa de Beauséant e de Rastignac) ,
encarna-se efetivamente u m certo pathos: cada uma destas figuras é
elevada a um nível de paixão tão alto que nelas se manifesta o conflito
interno de um momento essencial da sociedade burguesa; e, ao
mesmo tempo, cada uma delas se encontra num estado de revolta
subjetivamente justificada, mesmo se nem sempre consciente, repre­
.
sentando assim em suas próprias pessoas um momento singular da
contradição social. É somente graças a isso qu� tais figuras se encon­
tram numa relação recíproca viva: as grandes contradiÇões da socieda­
de burguesa adquirem nelas uma forma concreta, como se tais con­
tradições fossem problemas que elas vivem individualmente.
Esta composição do romance, que salva a invenção poética da
destruição provocada p elo deserto prosaico da vida cotidiana
burguesa, não é de modo algum uma partic ularidade individual de
Balzac. O pro cedimento pelo qual Stendhal e Tolstoi põem em
contato, respectivamente, Julien Sorel (j acobino retardatário ) e
Mathilde de la Mole (aristocrata monarquista e romântica) , ou o
príncipe Nekludov e Kátia Maslova, 15 fazendo nascer uma ação épi­
ca, este procedimento está fundado no mesiJo princípio, ainda que
com as diferenças dos métodos criativos de ambos em relação a outras
questões. A unidade entre o individual e o típic9 só pode se mani­
festar claramente na ação. Como diz Hegel, a ação "é a mais clara
manifestação do indivíduo, de sua disposição de espírito e de seus
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 21 1

objetivos; somente em sua ação torna-se realidade o que o homem é


no mais profundo do seu ser". E esta ação - esta real unidade entre o
homem e o "destino", a unidade entre o homem e a forma de mani­
festação das contradições que determinam o seu destino - é o que lhe
confere a nova forma mediata e indireta do pathos antigo. O perso­
nagem é típico não porque é a média estatística das propriedades
individuais de um certo estrato de pessoas, mas porque nele - em seu
caráter e em seu destino - manifestám-se as características objetivas,
historicamente típicas de sua classe; e tais características se expres­
sam, ao mesmo tempo, como forças objetivas e como seu próprio
destino individual.
A justa compreensão desta unidade determina a fecundidade
dos motivos épicos, sua capacidade de servir como base para o desen­
volvimento de uma ampla ação na qual se manifeste a totalidade de
um mundo. Quanto maior for a concretude com a qual o pathos de
uma figura artística individual se vale com a contradição social que
determina intimamente o seu destino, tanto mais a composição do
romance se aproxima da infinitude épica dos antigos. A Estética de Hegel
apresenta à grande arte épica - e, portanto, também ao romance -
uma exigência j usta, ou sej a, a figuração de uma "totalidade dos
objetos". Isso significa não somente figurar as relações recíprocas
entre os homens, mas também as coisas, as instituições etc., que
mediatizam estas relações dos homens entre si e com a natureza. A
exigência de totalidade significa que a escolha destes objetos não deve
ser arbitrária. Mas isso não significa de modo algum a falsa exausti­
vidade "enciclopédica" de Zola e de muitos escritores de sua escola, já
que estes "objetos" só ganham significação na medida em que media­
tizam relações sociais e humanas, ou seja, para usarmos uma lingua­
gem técnica, na medida em que são momentos da ação romanesca. A
"totalidade dos objetos'', portanto, não é uma justaposição pedante de
elementos isolados de um suposto "meio'', mas nasce - a partir de
uma necessidade do próprio relato - da representação de destinos
humanos, na qual as determinações típicas de um problema social se
expressam com base em uma ação. Como imagem da realidade
social, do desenvolvimento da sociedade, a ação do romance é domi­
nada pela necessidade.
212 + GvôRGY LuKAcs

Mas a verossimilhança da ação, no sentido de uma probabili­


dade média estatística, não tem aqui quase nenhuma importância.
Os grandes romancistas, de Cervantes a Tolstoi, valem-se sempre do
acaso com soberana liberdade; a ligação extrínseca entre as singulares
ações em suas obras é extremamente frouxa. O Dom Quixote é
formado por uma série de episódios singulares, ligados entre si
somente por meio do pathos da figura do protagonista em seu
contraste com Sancho Pança e com a realidade prosaica. Apesar disso,
tem-se aqui a unidade da ação no grande estilo épico, já que os
personagens do romance revelam sua essência de modo sempre con­
creto, agindo em situações concretas. Nos romancistas modernos, ao
contrário, ainda que feitas com habilidade, as construções são vazias
e desconexas no sentido épico, já que as oposições, mesmo quando
bem observadas, permanecem apenas como oposições entre perso­
nagens e concepções e não podem se expressar em ações.
Poderia parecer que o novo pathos como base da composição
romanesca distinga esta composição da epopeia e a aproxime do
drama. O pathos social antigo, que se manifesta de modo imediato,
encontra efetivamente na tragédia sua expressão mais adequada e
pura. Ao contrário, o novo "pathos da vida privada'', que sofre
múltiplas mediações, só pode se manifestar na ação quando são
figurados todos os elos de mediação sob a forma_ de pessoas concretas
e de situações concretas; este pathos, portanto, destrói a forma do
drama. O caráter dramático da composição de alguns romances de
Balzac (e também de Dostoievski) não contradiz esta afirmação; com
efeito, não se pode imaginar um drama que contenha uma riqueza de
detalhes mediadores tão ramificada como aquela que tem lugar no
romance. A debilidade artística dos dramas de grandes romancistas
(Balzac, Tolstoi) não é de modo algum casual. Tampouco é casual o
fato de que a multiplicidade dos personagens contraditórios da vida
burguesa tenha encontrado sua expressão adequada em toda uma
série de grandes romances, ao passo que as tentativas de simplificar e
abreviar esta multiplicidade, submetendo-a à totalidade intensiva do
drama, levaram a um fracasso quase generalizado.
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 213

4 . O nascimento do romance

Do ponto de vista do conteúdo, o romance moderno nasceu da


luta ideológica da burguesia contra o feudalismo. Mas a nítida
oposição à concepção medieval do mundo, que se manifesta na
totalidade dos primeiros romances, não os impediu de recolher a
herança da arte narrativa medieval. Esta herança está longe de se
esgotar nos enredos aventureiros etc., que o novo romance retoma
em forma satírico-popular ou ideologicamente reelaborada. O novo
romance recolhe da narrativa medieval a liberdade e a heterogenei­
dade da composição de conjunto; a sua dispersão numa série de
aventuras singulares ligadas entre si somente pela personalidade do
protagonista principal; a relativa autonomia destas aventuras, cada
uma das quais se apresenta como uma novela acabada; a amplitude
do mundo representado. Decerto, todos estes elementos são radi­
calmente reelaborados, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto
daquele da forma, e não somente nos casos em que são tratados ao
modo da paródia e da sátira. Começam a penetrar na composição
romanesca, com intensidade cada vez maior, elementos plebeus.
Heine tem razão quando considera que este momento é decisivo:
" Cervantes criou o romance moderno quando introduziu no
.romance de cavalaria a figuração fiel das classes subalternas e da vida
popular".
Mas o novo material, cuja apropriação artística levou à criação
da nova forma romanesca, não nasceu apenas desta renovação de­
mocrática da temática de aventuras da velha narrativa, ora apro­
ximada à vida real: é agora a prosa da vida que, ao mesmo tempo,
ingressa no romance moderno. Cervantes e Rabelais, criadores do
romance moderno, refletem em suas obras este importantíssimo
fato, ainda que dele extraiam conclusões diferentes. Tanto a aristo­
cracia de Cervantes quanto o burguês de Rabelais se rebelam, por um
lado, contra a degradação do homem na moribunda sociedade feu­
dal, e, por outro, contra a sua degradação na nascente sociedade
burguesa, embora cada um deles veja a seu modo o caminho para
superar esta dupla degradação. A unidade do sublime e do cômico na
imagem de Dom Quixote - uma unidade que jamais voltou a ser
alcançada - é determinada precisamente pelo fato de que Cervantes,
214 • GYORGY LuKAcs

ao criar bte personagem, luta de modo genial contra as características


principais de duas épocas, uma das quais está substituindo a outra: ou
seja, ao mesmo tempo, contra o heroísmo da cavalaria medieval, cada
vez mais destituído de sentido, e contra a baixeza prosaica da socie­
dade burguesa, que se manifestava claramente desde seus inícios.
Esta espécie de "luta em duas frentes" contém em si o segredo
da inigualável grandeza e, se assim pudermos nos expressar, do
realismo fantástico deste primeiro grande romance. A Idade Média,
esta "democracia da não-liberdade",16 fornece aos escritores, preci­
samente no período de sua dissolução, uma temática de homens e de
situações extremamente rica e variada. Neste período, a autonomia e
a atividade espontânea do homem podem ainda se manifestar de
modo relativamente livre (Hegel considera este período uma espécie
de retorno ao antigo heroísmo e explica corretamente' a grandeza de
Shakespeare com as possibilidades que o período lhe oferecia) . A
prosa da vida burguesa não era nesta época mais do que uma sombra
que incidia sobre a ampla variedade da vida em movimento, uma
vida plena de maravilhosas colisões e aventuras; a limitação da vida
individual, a mutilação do homem pela divisão capitalista do traba­
lho não eram ainda, na época do Renascimento, um fato social
dominante.
Mas esta luta simultânea contra o feudaliSmo e contra a já
anunciada degradação burguesa fornece ao artista muito mais do que
um rico material para a criação. O mundo multicolorido das formas
medievais de vida continua a ser um material rico mesmo quando se
combate com o máximo vigor o seu conteúdo social; e a nascente
sociedade burguesa, com sua nova ideologia, está ainda marcada pelo
pathos da liberação do homem em face da mortificação feudal, da
servidão social e ideológica, da mediocridade e da mesquinhez
econômica e política da Idade Média. Para Rabelais, a inscrição na
porta principal da abadia de Theleme - "faça o que bem quiser" - tem
ainda o pathos legítimo e entusiasmante da libertação da humani­
dade. Este pathos não perde seu valor, nem mesmo aos olhos do leitor
contemporâneo, pelo fato de que o apelo a "fazer o que se quer"
deveria inevitavelmente degenerar em seguida no hipócrita "laisser
faire, laisser passer" da covarde e abjeta burguesia liberal. Na utopia de
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 215

Rabelais, ainda ecoa o pathos d a luta contra toda mutilação do


desenvolvimento livre e integral do homem, o pathos que inspirou
mais tarde a luta heroica dos jacobinos e levou à brilhante crítica do
capitalismo feita pelos socialistas utópicos, em particular por Fourier.
Portanto, também a luta de Rabelais contra a prosa da nova vida
burguesa não é uma revolta pequeno-burguesa contra os "lados
maus" da civilização (como, mais tarde, o seria nos adversários ro­
mânticos do capitalismo ) . A utopia do "estado médio': da reconci­
liação dos adversários em luta, conserva-se naturalmente como uma
utopia também em Cervantes e em Rabelais; mas, por vir artistica­
mente figurada, ela não requer uma renúncia à representação das
forças antagônicas em toda a sua oposição.
Este ponto de vista permite que o romance em seu nascimento
assuma, em relação à questão do "herói positivo", uma posição intei­
ramente diversa daquela que será possível mais tarde. A essência das
classes dominantes na sociedade burguesa não permite que um
grande e honesto escritor encontre neste ambiente um "herói posi­
tivo". Mas, no período de nascimento do romance burguês, uma
peculiar disposição das oposições sociais, das velhas e novas formas
de sujeição da liberdade e da atividade espontânea dos homens,
permitia ao romancista incluir na figuração do seu herói, apesar de
todas as observações satíricas e irônicas, os traços de uma autêntica
"positividade': No desenvolvimento ulterior do romance, toda "po­
sitividade" do herói é destruída pela crítica, pela ironia e pela sátira,
com tanto maior intensidade quanto mais o crescente domínio da
burguesia leva a uma regressão da individualidade e à formação de
"homens com estreita mentalidade burguesa" (Engels) . Quanto mais
o romance se transforma numa figuração da sociedade burguesa,
numa crítica e autocrítica criativa desta sociedade, tanto mais clara­
mente se manifesta nele o desespero suscitado no artista pelas con­
tradições, para ele insolúveis, de sua própria sociedade (Swift compa­
rado a Rabelais e Cervantes) .
A s particularidades d o Renascimento geram também o estilo
original do romance em sua fase inicial: o realismo fantástico. Os
grandes princípios ideológicos e sociais da época são apreendidos e
representados pelo romancista de modo realista; realistas são os tipos
216 • GYORGY LUKÁCS

figurados, os quais, por meio da heterogênea variedade das aventuras,


são levados pelo artista a autênticas ações, a uma verdadeira
explicitação de sua essência; realista é o modo da escrita, o traçado
preciso dos detalhes necessários em sua ligação orgânica com as
grandes forças sociais, cuja luta se manifesta nestes detalhes. Mas a
história narrada é conscientemente não realista e, sim, fantástica. Este
elemento fantástico nasce neste caso, por um lado, da visão utópica
das grandes forças da época, e, por outro, da comparação satírica do
velho mundo em dissolução e do novo que está nascendo a partir dos
princípios de l uta pela libertação do homem. Como veremos em
seguida, este fantástico não tem ainda em si nada de romântico, pois
não se trata de um desesperado combate de retaguarda contra a prosa
da vida capitalista; ao contrário, ele está ainda impregnado da alegre
energia revolucionária da nova sociedade em gestação. E este fantás­
tico não se contrapõe ao realismo e não constitui algo contrário, nem
sequer do ponto de vista artístico, ao realismo geral da composição; ao
contrário, funde-se com ele num todo orgânico: tem sua fonte na
grandeza da concepção de conjunto destes escritores, em sua capaci­
dade de apreender e figurar de modo justo as características verda­
deiramente decisivas de sua época, sem levar em conta a verossimi­
lhança exterior das situações e da combinação em que elas se mani­
festam. A luta contra a Idade Média, acompanhada ao mesmo tempo
pela apropriação de sua herança temática e form Íl, torna possível a
Cervantes e Rabelais cultivarem este original realismo fantástico.
Mesmo os escritores que dedicaram sua atividade à luta contra o feu­
dalismo num período mais tardio puderam ainda, embora de forma
atenuada, prosseguir na linha deste realismo fantástico (os romances
de Voltaire) . As viagens de Gulliver, de Swift, são uma transição origi­
nal entre o tipo rabelaisiano de realismo e aquele que seria próprio de
Defoe; do ponto de vista formal, há uma continuidade com a linha de
Rabelais, mas o caráter puramente satírico do realismo de Swift já
abre uma nova fase no desenvolvimento do romance.
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 2J 7

5. A conquista da realidade cotidiana

A visão amarga e pessimista que Swift tem da sociedade


burguesa é quase única no século XVIII; também é única a sua forma
satírico-fantástica, que se situa fora da corrente principal do desenvol­
vimento do romance no maior país capitalista, a Inglaterra, bem co­
mo na França. Não é que os demais escritores mostrem em suas obras
fatos menos negativos, situações menos terríveis e quadros menos
cruéis do "reino \).nimal do espírito" 17 da sociedade burguesa nascen­
te, em seu período de acumulação primitiva. Nas obras de Defoe e de
Lesage, de Fielding e de Smollett, de Restif e de Lados, e mesmo de
Richardson e Marivaux, ainda que sob forma diversa em cada um de­
les, é figurado de modo realista um mundo que, em seu conteúdo,
poderia fornecer um material mais do que suficiente para justificar o
pessimismo de Swift. Mas o tom fundamental de toda a figuração
nestes escritores é diverso daquele de Swift: trata-se de mostrar a
vitória da tenacidade e do mérito burgueses sobre o caos da sociedade
que está superando os restos do feudalismo e de evocar o terrível qua­
dro, sórdido e sangrento, da acumulação primitiva. Walter Scott diz
do Gil Blas de Lesage: "Este livro deixa no leitor um sentimento de sa­
tisfação consigo mesmo e com o mundo". E também o Moll Flanders
de Defoe, bem como a maioria dos outros grandes romances deste pe­
ríodo, se concluem com um final feliz. Portanto, os escritores têm
, uma atitude positiva em face de sua própria época e de sua própria
classe, que estava realizando uma grande transformação histórica.
Mas esta autoafirmação da burguesia vem ao lado de uma grande
dose de autocrítica: todos os horrores, todas as abominações da acu­
mulação primitiva na Inglaterra, bem como a desagregação moral e o
arbítrio do absolutismo na França, são desmascarados através de im­
piedosas imagens realistas. Aliás, pode-se dizer que, com a figuração
destas dores do parto da sociedade capitalista, surge o romance realista
no sentido estrito da palavra - e que, pela primeira vez, a realidade
cotidiana é conquistada pela literatura.
O romance abandona o vasto campo do fantástico e se volta
decisivamente para a figu�ação da vida privada do burguês. É neste
período que se manifesta, em toda a sua clareza, a tentativa do roman-
218 • GYôRGY LUKÁCS

cista de se tornar o historiador da vida privada. Os amplos horizontes


históricos do romance em seus inícios se restringem; o mundo do
romance se limita cada vez mais à realidade cotidiana da vida
burguesa e as grandes contradições motrizes do desenvolvimento
histórico-social são figuradas apenas na medida em que se manifes­
tam de modo concreto e ativo nesta realidade cotidiana. Mas estas
contradições continuam a ser figuradas. E o realismo da vida cotidia­
na, a recém-descoberta "poesia da realidade cotidiana", a vitória dª
poesia sobre esta realidade prosaica, tudo isso não passa de um meio
para a figuração concreta e viva dos grandes conflitos sociais da épo­
ca. Portanto, este realismo está muito longe de ser uma simples cópia
da realidade cotidiana, uma simples reprodução de seus traços exte­
riores, ao contrário do que era frequentemente exigido pela estética
oficial da época. Com clara consciência, os romancistas tendem a
uma figuração realista do típico, a um realismo para o qual a cuida­
dosa figuração dos detalhes não é mais do que um meio. Fielding diz
claramente que o retrato de pessoas vivas, mesmo que plenamente
bem realizado em sentido artístico, não tem nenhum valor se as pes­
soas figuradas não são tipos. Ele cita ironicamente o exemplo de um
seu conhecido que fizera fortuna sem recorrer a fraudes e trapaças;
decerto, diz Fielding, este homem existe na realidade, mas não pode
se tornar o herói de um romance. O princípio do , típico, porém, que
está na base do grande realismo, não se manifesta apenas nesta
escolha negativa. Fielding continua:
Embora todo bom autor deva se manter nos limites da
verossimilhança, não é absolutamente necessário que seus
personagens e suas peripécias sejam cotidianas, ordinárias
ou vulgares, como as que têm lugar em qualquer rua e
qualquer casa ou podem ser encontradas nos aborrecidos
'
artigos dos j ornais.

Estes escritores triunfam contra a prosa cada vez mais intensa


da vida por meio da força, da energia e da espontaneidade de seus
heróis típicos. Os grandes realistas desta época veem até que ponto o
homem se tornou um joguete das forças econômico-sociais e em que
escassa medida a sua vontade e as regras morais influem em seu
destino. Apesar disso, o caráter poético de.Gil Blas, de Tom Jones e de
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 2J 9

Moll Flanders18 nasce de sua enérgica atividade de representantes


típicos de uma classe em ascensão: a sua vida, cujos eventos e proces­
sos são determinados por estas forças econômico-sociais, sofre vários
abalos, mas, apesar de tudo, eles chegam com êxito à outra margem
do rio. Com a sociedade capitalista, nasce a dominação da natureza
pelo homem; mas, no início, por mais terrível que seja sua manifesta­
ção concreta, as forças sociais ainda não atingiram aquele ponto de
absoluta alienação do pensamento e da vontade do homem, que seria
o traço próprio da sociedade capitalista já consolidada e funcionando
de modo automático. Byron define Fielding como "o Homero em
prosa da natureza humana". Por razões sobre as quais voltarei em
seguida, este juízo é exagerado. Mas não há dúvida de que, nas melho­
res partes dos maiores romances desta época, há uma espécie de
aproximação à antiga epopeia. Assim, por exemplo, a luta do homem
com a natureza, enquanto símbolo do nascente domínio da natureza
pela sociedade, é figurada na primeira parte do Robinson Crusoé de
Defoe com uma força épica incomparável, aproximando-se efetiva­
mente, algumas vezes, da poesia das coisas próprias da epopeia antiga.
Esta poesia se manifesta em numerosos e importantes romances des­
te período. Trata-se do reflexo literário, da configuração épica do cará­
ter progressista da liberação das forças produtivas pelo capitalismo
em luta pela supremacia social. Este caráter progressista continua
ainda a ser aqui o fator predominante, mesmo em meio a todos os
horrores produzidos pelo desenvolvimento capitalista. No Robinson,
este momento é quase inteiramente dominante, mas sem que por
isso as contradições sejam apologeticamente encobertas; disso resulta
sua peculiar poesia, que se manifesta igualmente, ainda que de modo
menos perceptível e claro, nos demais romances deste período.
Este empenho vitorioso dos heróis dos primeiros romances
realistas tem em si um certo traço de "mediação" entre as grandes
contradições da época e, sem dúvida, lhes atribui um caráter relativa­
mente "positivo". Mas o estreitamento do horizonte com relação aos
grandes romancistas do primeiro período já se manifesta muito clara­
mente na questão do caráter positivo do herói. Este caminho descen­
dente não deve de modo algum ser atribuído a um menor talento dos
escritores, mas tem sua explicação no crescente avanço do capitalis-
220 • GYôRGY LUKÁCS

mo e na consequente degradação do homem. A "positividade" do he­


rói paga um preço: o da tendência à limitação e à mediocridade. Não
penso apenas na aborrecida religiosidade puritana de Robinson; em
Gil Blas e Tom Jones, as maiores figuras artísticas desta época, até
mesmo a energia da atividade espontânea já tem uma certa marca da
mediocridade burguesa. Esta tendência não é uma questão de talento
individual do escritor. Isso pode ser visto, em primeiro lugar, no fato
de que, na França menos desenvolvida do ponto de vista capitalista, a
figura de Gil Blas pôde restar menos contamínada por esta limitação,
o que não se pode dizer de nenhum personagem criado p elos
escritores ingleses, embora, como realistas, estes superassem Lesage.
Em segundo lugar, os heróis de todos estes romances, apesar de sua
positividade do ponto de vista burguês, tornaram-se, no decurso do
ulterior desenvolvimento da burguesia, cada vez mais inaceitáveis
por ela como heróis positivos (veja-se, por exemplo, a crítica a Tom
fones feita por Thackeray) .
A crescente onda da reificação capitalista, a estandardização do
modo de vida e o nivelamento do indivíduo geram, no âmbito do
romance realista, as mais variadas formas de expressão do protesto
subjetivo. Nasce assim, entre outras coisas ( como, já genialmente
observara Schiller) , a tendência ao idílio como figuração de uma
"ingênua" relação total do homem com a natureza, algo que a civi­
lização burguesa nega de modo inevitável e impiedoso. Mas a gran­
deza da época em questão se manifesta no fato de que até mesmo as
narrativas idílicas desta época têm um caráter combativo e de protesto
(O vigário de Wakefield, de Goldsmith) . É precisamente nos romances
que expressam este protesto subjetivo e sentimental que se revela do
modo mais claro que os grandes escritores deste período, ao lado da
crítica das sobrevivências da velha sociedade, fornecem uma auto­
crítica da própria classe que constrói a nova sociedade. Podemos ver
aqui que, quanto mais enérgica for esta luta contra o velho ordena­
mento, quanto mais a conquista criadora da vida espiritual dos perso­
nagens representados se vincular à luta contra as convenções mortas
e mortificantes da sociedade aristocrática feudal, tanto mais ampla e
profunda se torna a figuração artística (Richardson, Abade Prévost,
Diderot, Sterne) . Trata-se da luta que a burguesia trava, em nome de
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 22 1

toda a sociedade, a favor da autonomia e da atividade espontânea dos


sentimentos humanos. Contudo, quanto mais esta tendência se
interioriza, quanto mais se expressa no protesto lírico da individua­
lidade humana contra a prosa da vida material, tanto maior será a
força com que ela desagrega a forma da narrativa; quanto mais a líri­
ca, a análise e à descrição suplantarem o personagem, a situação e a
ação, tanto mais serão liquidadas as grandes tradições da representa­
ção realista da realidade e toda esta tendência se tornará o prenúncio
do romantismo.
Rousseau e o Goethe do Werther são a expressão mais con­
centrada destas tendências. Mas, embora em parte eles preparem
a desagregação romântica da forma do romance, ainda estão longe
dela. Contudo, há componentes preponderantes em seus romances -
como as cartas, os diários, as confissões, as descrições líricas da pai­
xão etc. - que já começam a dissolver a forma épica do romance. A
impotência prática do homem para penetrar, através de uma ação
espontânea, o mundo capitalista cada vez mais fetichizado leva à
tentativa de encontrar, para a conturbada subjetividade humana, um
ponto de apoio dentro dela mesma, de criar para ela um mundo pró­
prio, de vida interior, "independente" e não reificado. Em Laurence
Sterne, esta tendência encontra pela primeira vez uma claríssima
expressão. Ele transforma o elemento fantástico objetivo dos velhos
romances num fantástico subjetivo; e as combinações dos traços au­
tênticos da realidade se convertem nele numa bizarra ornamen­
talidade formal. Ele rompe conscientemente com a unidade da
narrativa a fim de criar, mediante arabescos fantásticos, uma unidade
subjetiva, uma unidade dos estados de espírito contrastantes da com­
paixão e da ironia; tais contrastes tornam-se agora o espelho no qual
se refletem as contradições objetivas. A base ideológica desta disso­
lução da forma é o deslocamento relativista das contradições reais da
vida para o "coração do poeta": Sterne relativiza o contraste entre Dom
Quixote e Sancho Pança, mostrando que cada um dos irmãos Shandy
une em si mesmo os dois personagens de Cervantes, já que cada um
deles é o Dom Quixote dos próprios ideais e o Sancho Pança dos
ideais alheios. Este extremo relativismo subjetivista de Sterne ex­
pressa uma característica, muito importante e cada vez mais intensa,
222 • GYORGY LUKÁCS

da ideologia burguesa: sua reação ao poder crescente da prosa da


existência. Por isso, Friedrich Schlegel está certo quando aponta em
Sterne "a poesia natural das classes superiores de nossa época".

6. A poesia do "reino animal do espírito"19

Como diz Marx em O 18 brumário, a Revolução Francesa foi o


término do período heroico do desenvolvimento da burguesia:
Uma vez estabelecida a nova formação social, os colos­
sos antediluvianos desapareceram; e, com eles, a Roma
ressuscitada [ .. ] . Inteiramente absorta na produção da ri­
.

queza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não


mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma
haviam velado seu berço. 20

No período situado entre a Revolução Francesa e o ingresso


autônomo do proletariado na arena da história universal, a ideologia
burguesa se eleva pela última vez às grandes sínteses sistemáticas
(Hegel, Ricardo, os historiadores franceses da época da Restauração) ;
algo similar pode ser dito d o romance. A figuração d a realidade
cotidiana, que havia alcançado tão grande perfeição no romance do
século XVIII, transforma-se agora num mero p rocedimento artístico,
num meio de expressão épico-monumental do caráter já então tragi­
camente inconciliável das contradições capitalistas. Em certo senti­
do, pode-se dizer que o romance volta ao fantástico de seu período
inicial, mas este fantástico torna-se agora o realismo fantástico das
evidentes contradições da vida burguesa; o pathos otimista se
transforma em pressentimento trágico do fim inevitável da civiliza­
ção burguesa. (No desenvolvimento do romance russo, a Revolução
de 1 905 desempenha o mesmo papel que junho de 1 848 na Europa
Ocidental. 21 Os grandes representantes do romance russo, de Pushkin
a Tolstoi, correspondem portanto a um estágio de desenvolvimento
do romance análogo àquele de Goethe, Balzac e Stendhal.)
Mas o novo realismo fantástico se distingue do anterior porque
passou pela experiência do romantismo. Decerto, é impossível forne­
cer aqui uma caracterização social e ideológica do movimento ro­
mântico europeu; limito-me, portanto, a mencionar o que é absolu-
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 223

tamente necessário para a compreensão do desenvolvimento do ro­


mance. A multiplicidade de versões do movimento romântico deve­
se ao fato de que ele é uma combinação, dosada de modo diverso em
diferentes escritores e grupos, de uma recusa reacionária da Revo­
lução Francesa com um protesto confuso contra a reificação morti­
ficante trazida pelo capitalismo vitorioso. A luta contra a prosa da vi­
da burguesa adquire no romantismo um caráter reacionário, voltado
para o passado; mas, dado que as correntes sociais das quais o ro­
mantismo é expressão ideológica conservam-se sempre, consciente
ou inconscientemente, no terreno da realidade burguesa, também o
protesto romântico contra a prosa burguesa se baseia inevitavelmente
na aceitação tácita da reificação capitalista, quase como se esta fosse
um "destino" inelutável. Disso resulta que, no domínio da arte e da
teoria artística - e, portanto, também no campo do romance -, o
romantismo não pode nem mesmo tentar superar o caráter prosaico
da vida mediante um método criativo que permita descobrir na
realidade social os elementos de uma atividade humana espontânea,
que esta realidade ainda conserva, e de torná-los assim objeto de uma
ampla figuração realista. Ao contrário, o romantismo do século XIX
perpetua uma oposição cristalizada entre prosa objetiva e poesia
subjetiva, reduzindo-se assim a um protesto impotente contra esta
prosa.
Esta degradação socialmente determinada do princípio poé­
tico, rebaixado ao nível de uma subjetividade impotente, manifesta­
se na literatura romântica seja na escolha temática de sistemas sociais
que ainda não foram tocados pelo capitalismo (os romances histó­
ricos de Walter Scott); seja na contraposição entre o princípio poético
e aquele prosaico mediante uma forma exageradamente fantástica
( E. T. A. Hoffmann, E. A. Poe etc.); seja no abandono absoluto do
terreno da realidade social, na tentativa de criar livremente, a partir
do sujeito, a realidade poética como uma particular esfera "mágica"
(Novalis) ; seja, finalmente - e este é o momento mais importante
para o desenvolvimento ulterior do romance -, num exagero simbó­
lico- fantástico da reificação cristalizada do mundo exterior, na
tentativa de, mediante esta estilização simbólica, depurá-la do caráter
prosaico e torná-la de novo poética. O canhão que rompe suas
224 • GYôRGY LUKÁCS

amarras e termina na ponte do navio, no 1793 de Victor Hugo, é


talvez o exemplo mais expressivo desta estilização. O canhão, escreve
Hugo,
[ ... ] torna-se inesperadamente uma espécie de besta sobre­
natural. É uma máquina que se transforma num monstro.
[ . . ] Dir-se-ia que este eterno escravo se vinga; parece que
.

a raiva que está nos objetos que chamamos de inertes su­


bitamente emerge e explode. [ .. ] Não podemos matá-lo
.

porque ele é morto. Mas, ao mesmo tempo, é vivo. E vive


da vida sinistra que lhe vem do infinito.22

O romantismo - que escreve em sua bandeira a luta impla­


cável contra a prosa da vida moderna - leva, no final das contas, a uma
capitulação incondicionada a essa prosa "fatal", terminando, inclusi­
ve, por se converter numa glorificação simbólica ( involuntária, na
maior parte das vezes) , numa apologia poética desta aborrecida e
condenada prosa da vida.
Não há um só escritor importante, neste período de desenvolvi­
mento do romance, que esteja inteiramente isento de influências
românticas. Nesta influência profunda e generalizada do romantis­
mo na literatura burguesa da época da Revoluçãq Francesa, mani­
festa-se a necessidade social que produziu as tendências românticas.
Mas os grandes escritores desta época são grandes precisamente
porque não capitulam, sob a aparência de uma oposição intransi­
gente, diante da crescente prosa da vida burguesa, mas buscam
descobrir e figurar, por meio de múltiplas formas, os elementos que
. ainda sobrevivem de uma atividade espontânea dos homens. A luta
destes escritores contra a degradação do homem na ordem capitalista
consolidada é mais profunda do que a luta dos românticos preci­
samente porque ela é mais vital e evita um pretenso "radicalismo".
Mas as tendências românticas estão presentes em todos eles enquanto
momentos (parcialmente) superados. Mas só "parcialmente". Embo­
ra os grandes escritores realistas do século XIX superem o romantis­
mo, na medida em que sua luta criadora contra a degradação do ho­
mem penetra muito mais profundamente do que o fazem os românti­
cos no interior do mundo objetivo, eles não superam inteiramente a
herança romântica. Querendo ou não, eles são obrigados, quando
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 225

não podem derrotar o caráter reificado das formações sociais, a


recorrer aos meios da estilização romântica.
Ambas as formas de superação do romantismo, a verdadeira e
a aparente, manifestam-se claramente em Balzac. Mas esta ambigui­
dade dos grandes escritores deste período em face do romantismo
manifesta-se de modo muito diferenciado em cada um deles. Todos
podem ser criticados por fazerem concessões, por um lado, à prosa da
vida, e, por outro, ao subjetivismo romântico. Esta dupla crítica do
romance clássico já aparece nos debates sobre o Wilhelm Meister de
Goethe. Numa carta endereçada a Goethe, na qual resume sua im­
pressão final, Schiller escreve que o aparato romântico deste roman­
ce, apesar de toda a habilidade artística de Goethe, terá o efeito apenas
de um "jogo teatral", de um "procedimento artificioso", enquanto
Novalis, como romântico coerente, recusa esta obra de Goethe como
"um Cândido dirigido contra a poesia":23 "Trata-se de uma história
doméstica e burguesa poetizada. [ . . . ] O espírito deste livro é o ateísmo
artístico. Ele é construído com grande habilidade; mas o fato é que se
obtém um efeito poético com um material poético barato".
Esta duplicidade na luta dos melhores pensadores e artistas
contra a degradação do homem na ordem capitalista - duplicidade
que resulta, em última instância, do fato de que esta luta se trava
inevitavelmente no terreno burguês, enquanto o conhecimento das
causas desta degradação tende a romper com todos os limites
burgueses - determina a posição dos escritores na questão do herói
"positivo". A exigência hegeliana de que o romance eduque o leitor
para a realidade burguesa deveria levar, em última instância, à criação
de uma personalidade positiva proposta como modelo. Mas este herói
positivo, como certa feita se expressou cinicamente Hegel, seria não
um herói, mas
[ . . . ] um filisteu como os outros: [ ] a mulher, outrora
...

adorada como um ser único, comporta-se mais ou menos


como todas as outras mulheres, o emprego obriga ao tra­
balho e gera aborrecimentos, o casamento transforma-se
num calvário doméstico; é, em suma, o despertar depois
da juvenil embriaguez.24

Deste modo, a realização da exigência hegeliana levaria


inevitavelmente à banalidade; e, para realizá-la de modo poético, seria
226 + GYORGY LuKAcs

preciso pôr em ação a dialética irônica desta realização (ver o epílogo


de Guerra e paz, de Tolstoi). Em geral, por razões que já mencionei, a
conciliação das contradições sociais só pode se tornar um elemento
da composição do romance quando ela não é efetivamente realizada,
ou sej a, quando o autor figura algo diverso e maior do que esta
conciliação dos opostos, isto é, sua trágica impossibilidade. O in­
sucesso das intenções conscientes do escritor, a figuração artística de
uma realidade diversa daquela projetada, constitui precisamente a
grandeza dos escritores neste período de desenvolvimento do
romance.
Caracterizando Tolstoi como "espelho da revolução russa'',
Lenin descreve com grande clareza esta relação paradoxal entre a
intenção do artista e sua obra:
Como se pode chamar de espelho o que não reflete
absolutamente os fenômenos de modo justo? Mas nossa
revolução é um fenômeno extremamente complexo; entre
a massa de seus executores e participantes diretos, há mui­
tos elementos que não compreenderam o que estava acon­
tecendo. [ .. ] Tolstoi refletiu o intenso ódio, a aspiração já
.

amadurecida no sentido de uma vida melhor, o desejo de


livrar-se do passado, bem como a imaturidade das fanta­
sias, a falta de educação política, a fraqueza diante da re­
volução. 25

Estas profundas observações críticas valem também, mutatis


mutandis, para Balzac e Goethe; com efeito, Engels adotou o mesmo
ponto de vista metodológico para criticá-los. Diz-se do herói de
Wilhelm Meister que ele partiu como Saul em busca das jumentas do
seu pai e terminou por encontrar um reino; mas seria possível dizer,
com ainda maior justeza, em referência a estes romances clássicos,
que seus criadores efetivamente buscaram e encontraram as jumen­
tas (a utopia do "estado médio" ) , mas que, no caminho desta busca,
descobriram e figuraram o reino das contradições históricas da socie­
dade capitalista.
A representação destas contradições, insolúveis no capitalis­
mo, torna possível - nas obras bem-sucedidas - a figura do herói
"positivo". Em um dos seus prefácios, Balzac escreve que seus ro-
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 227

mances teriam fracassado se, para o leitor, as figuras de César


Birotteau, Pierrette, Madame de Mortsàuf etc., não fossem mais
atraentes, por exemplo, do que as de Vautrin ou Lucien de Rubempré.
Na verdade, os romances de Balzac são bem realizados precisamente
porque isso não ocorreu. Quanto mais profugdamente o artista
descobre as contradições da sociedade burguesa, quanto mais des­
mascara impiedosamente a baixeza e a hipocrisia desta sociedade,
tanto menos exequível se torna a cínica exigência hegeliana de um
herói "positivo" filisteu. Já vimos que os heróis "positivos" do
romance do século XVIII ( que eram livres e vigorosos, ainda que
limitados) torn à� -se cada vez mais inaceitáveis, no século XIX,
como heróis positivos. A exigência de criar um herói "positivo" torna­
se, para a burgu,esia do século XIX, cada vez mais apologética, ou seja,
a exigência de que o escritor não descubra as contradições, mas as
mascare e as concilie. Gogol pronunciou-se contra esta exigência:
Não me entristece que não estejam satisfeitos com meu
herói; o que me entristece é que esteja alojada na alma a
invencível certeza de que os leitores possam estar igualmente
satisfeitos com esse mesmo Tchitchkov: Se o autor não
tivesse olhado para dentro da alma do personagem, se
não houvesse remexido até o fundo o que escapa à atenção
geral e se oculta, não teria revelado os pensamentos mais
secretos, aqueles que nenhum homem confia a outro; se
o tivesse mostrado como ele aparecia a toda a cidade, a
Mánolov e aos outros, então todos ficariam felizes e conten­
tes e o considerariam uma pessoa interessante.26

Com estas palavras, Gogol evidencia com clareza a problemá­


tica social fundamental do romance moderno: aquilo a que aspiram
os grandes escritores enquanto representantes das tendências histó­
rico-universais progressistas da revolução burguesa contradiz as exi­
gências instintivas feitas à literatura pelo homem médio da sociedade
burguesa. O que faz a grandeza dos clássicos do romance burguês é
precisamente o que os afasta da maioria dos membros de sua própria
classe: é o caráter revolucionário de suas aspirações o que os torna
impopulares no ambiente burguês.
228 • GYORGY LUKÁCS

7. O "novo" realismo e a dissolução da forma romanesca

Ao lado do grande romance, sempre existiu uma literatura


meramente agradável. Ela jamais enfrentou seriamente os grandes
problemas sociais, mas limitou-se a reproduzir o mundo tal como
ele se reflete na consciência burguesa média. No período de ascensão
da burguesia, contudo, a oposição entre esta literatura meramente
agradável e o grande romance não era de modo algum tão nítida
quanto veio a se tornar no período da decadência burguesa. No plano
da escrita, a velha literatura agradável ainda vivia das tradições da
robusta arte narrativa popular; em sentido social, só raramente ela
caía numa apologética grosseira e mentirosa. As coisas se passam de
modo inteiramente diverso no período da decadência da burguesia. A
apologia se torna o traço cada vez mais predominante da ideologia
burguesa: quanto mais emergem de modo nítido as contradições do
capitalismo, tanto mais grosseiros se tornam os meios utilizados para
glorificá-lo de modo mentiroso e para caluniar o proletariado revolu­
cionário e os trabalhadores rebeldes. Em consequência, no período
posterior a 1 848, o romance sério, verdadeiramente artístico, tem de
se posicionar contra a corrente dominante e se afastar cada vez mais
da ampla massa dos leitores de sua própria classe. Esta posição
oposicionista, quando não leva a uma adesão à causa do proletariado,
cria em torno do escritor burguês uma atmosfera de isolamento
social e artístico cada vez mais profundo. Ao contrário dos escritores
do período anterior, eles não podem mais viver a vida da sociedade, a
vida de sua própria classe, nem participar de suas lutas: transformam­
se em observadores de uma realidade social que lhes é, em maior ou
menor medida, estranha e hostil.
Devido a esta situação, os grandes escritores deste período só
podem recolher do passado a herança do romantismo. A relação viva
entre eles e as grandes tradições do período ascendente da burguesia
se debilita de modo crescente; mesmo quando se sentem herdeiros
destas tradições e estudam com afinco o seu legado, encaram-no cada
vez mais de um ponto de vista romântico. Flaubert é o primeiro e, ao
mesmo tempo, o maior representante deste novo realismo que busca
o caminho de uma apropriação artística da realidade burguesa em
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 229

oposição a uma apologética vulgar e mentirosa. A fonte artística do


realismo flaubertiano reside no ódio e no desprezo pela realidade
burguesa, que ele observa e descreve com extraordinária exatidão em
suas manifestações humanas e psicológicas; mas, ao analisá-las, ele
não vai além da polarid(\de cristalizada das contradições que
emergem à superfície, sem penetrar em suas conexões essenciais
mais profundas. O mundo que ele figura é o mundo da prosa
definitivamente consolidada. Tudo o que é poético existe doravante
somente no sentimento subjetivo, na revolta impotente dos homens
(dos "jovens" de Hegel) contra a prosa da vida; a ação do romance
pode consistir apenas na figuração do modo pelo qual este sen­
timento de revolta, a priori impotente, é esmagado por esta vil prosa
burguesa. De acordo com esta concepção fundamental, Flaubert
introduz em seus romances o mínimo de ação possível; descreve
eventos e homens que quase não superam o nível da realidade bur­
guesa cotidiana, sem fornecer ao leitor nem um enredo épico nem
situações e personagens concretos. Já que o ódio e o desprezo pela
realidade descrita constituem o ponto de partida de seu método
criativo, ele renuncia conscientemente ao modo narrativo caracterís­
tico de todos os velhos realistas ( um modo que, nos maiores dentre
eles, aproxima-se mesmo do estilo da epopeia) . Esta arte da narração
é substituída, em Flaubert, pela descrição refinada de detalhes
sofisticados. A banalidade da vida, contra a qual se insurge romanti­
camente este realismo, é figurada num plano puramente "artístico":
não são as características objetivamente importantes da realidade que
se encontram no centro da atenção do artista, mas a banalidade
cotidiana, que ele recria por meio da revelação artística de seus de­
talhes mais vistosos.
A essência da herança romântica reside sobretudo no falso
dilema entre objetivismo e subjetivismo. O dilema é falso porque es­
te subjetivismo e este objetivismo são igualmente vazios, inflados e
coagulados. Mas o dilema era inevitável porque sua origem não está
na individualidade deste ou daquele artista, ou em sua ausência de
honestidade ou de talento, mas tem sua base na situação social do
intelectual burguês no período da decadência ideológica da bur­
guesia. Subjetivismo vazio e objetivismo inflado são as categorias que
230 • GYORGY LUKÁCS

aparecem necessariamente na superfície do mundo fenomênico do


capitalismo consolidado. Fechados no círculo mágico deste mundo
objetivo e necessário dos fenômenos, é em vão que os grandes escrito­
res realistas deste período buscam encontrar um terreno objetivo
sólido para sua criação realista e, ao mesmo tempo, conquistar para a
poesia, a partir das forças interiores do sujeito, um mundo que se
tornou prosaico.
A intenção consciente de Zola é superar as tendências român­
ticas; mas isto ocorre apenas na intenção, apenas em sua própria
imaginação . Ele quer que o romance tenha uma base científica;
propõe substituir a fantasia e o arbítrio inventivo pelo experimento e
pela documentação. Mas esta cientificidade não é mais do que uma
variante do realismo romântico, sentimental e paradoxal de Flaubert:
com Zola, passa a predominar o aspecto pseudo-objetivo do roman­
tismo. É verdade que Goethe e Balzac encontraram nas ideias cientí­
ficas de Geoffroy de Saint-Hilaire muitos estímulos úteis para exp\i­
car seu próprio método criativo de figuração da sociedade; mas o fato
é que, neles, esta influência científica não fez mais do que reforçar
uma tendência dialética que já existia, ou seja, a tendência a descobrir
as principais contradições da sociedade. Ao contrário, a tentativa de
Zola de usar neste sentido as ideias de Claude Bernard levou-o apenas
a um registro pseudocientífico dos sintomas do desenvolvimento ca­
pitalista e não o fez penetrar nos fundamentos deste processo. (Paul
Lafargue observa corretamente que, para a prática literária de Zola, o
vulgarizador Lombroso contou muito mais do que Claude Bernard. ) .
Experimentação e documentação significam, n a prática, que Zola
não participa da vida do mundo, não figura no romance suas próprias
experiências de vida e de luta, mas se aproxima de um complexo
social como um repórter (na justa observação de Lafargue) que tem
como objetivo descrever tal complexo. O universo de Zola é o canhão
louco de Victor Hugo, do qual já falamos, tornado prosaico.
Zola descreve com muita exatidão o modo como escreveu seus
romances; de resto, segundo ele, este é o modo _como devem ser
escritos os romances realistas. Diz ele:
Um de nossos romancistas naturalistas quer escrever
um romance sobre o mundo dos teatros. Parte desta ideia
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 23 1

geral, sem ter ainda um fato ou um personagem. Sua


primeira preocupação deve ser a de agrupar num conjunto
de notas tudo o que pode saber sobre o mundo que pre­
tende figurar. Deve conhecer um ator, assistir a uma peça.
Depois, [ ... ] conversará com os homens mais informados
sobre o assunto e coletará as palavras, as histórias, os re­
tratos. Isso não basta: ele buscará em seguida os documen­
tos escritos. [ . . . ] Finalmente, visitará os locais, viverá alguns
momentos num teatro para conhecer todos os seus recan­
tos, passará noites no camarim de uma atriz, impregnar­
se-á o mais possível do ar ambiente. E, uma vez recolhidos
todos os documentos, seu romance se escreverá por si
mesmo. O romancista terá apenas de distribuir logicamente
os fatos [ . . ] . O interesse não está na excentricidade da
.

história; ao contrário, quanto mais banal e comum ela for,


tanto mais se tornará típica.27

O falso objetivismo deste método se manifesta aqui, com toda


clareza, no fato de que, em primeiro lugar, Zola identifica o banal
com o típico e o contrapõe apenas ao singular, ao simplesmente
interessante; e, em segundo, no fato de que ele não vê mais o que é
característico e significativamente artístico na ação, na reação ativa
do homem aos eventos do mundo exterior. Nele, a figuração épica das
ações é substituída pela descrição dos fatos e das circunstâncias.
A contraposição entre narrar e descrever é tão velha quanto a
literatura burguesa, já que o método criativo da descrição nasceu da
reação imediata do escritor à realidade prosaicamente cristalizada,
que exclui toda ação espontânea do homem.28 É bastante significativo
que já Lessing tenha protestado energicamente contra o método
descritivo por ser ele contrário às leis da poesia, em geral, e da épica,
em particular; sobre isso, Lessing cita Homero para mostrar, com
base no exemplo do escudo de Aquiles, que no autêntico poeta épico
todo "objeto acabado" se dissolve numa série de ações humanas. É
inútil, mesmo nos melhores escritores, a luta contra a crescente onda
da prosa burguesa da vida; isso pode ser comprovado no fato de que a
figuração das ações humanas é cada vez mais suplantada, no ro­
mance, pela descrição das coisas e dos fatos. Zola não faz mais do que
formular teoricamente, de modo bastante nítido, a decadência
espontânea da arte narrativa no romance moderno. Ele ainda se
232 • GYôRGY LUKÁCS

encontra no início desta decadência; e é por isso que suas obras, num
grande número de episódios apaixonantes, ainda estão próximas das
grandes tradições do romance. Mas as linhas fundamentais de sua
criação já abrem caminho para uma nova orientação. Basta comparar
a cena de uma corrida de cavalos em seu romance Naná e aquela
contida em Ana Karênina de Tolstoi. Em Tolstoi, trata-se de uma cena
épica viva, na qual tudo é épico, desde a sela do cavalo até o público,
ou seja, onde tudo é construído através das ações dos homens em
situações para eles significativas. Em Zola, temos uma descrição
esplêndida de um evento da vida da sociedade parisiense, evento que,
do ponto de vista da ação, não tem nenhuma ligação com o destino da
protagonista do romance, e a que os demais personagens assistem
apenas na condição de espectadores interessados, mas não envolvi­
dos. Em Tolstoi, a cena da corrida é um episódio épico na ação do
romance; em Zola, é uma simples descrição. Tolstoi, portanto, não
tem necessidade de' " inventar" uma "relação" entre os elementos
objetivos deste episódio e os protagonistas do romance porque a
corrida é parte essencial da própria ação. Zola, ao contrário, é obrigado
a ligar a corrida ao resto do conteúdo de seu romance de modo
simbólico, ou seja, mediante a coincidência casual dos nomes do
cavalo vencedor e da protagonista do romance.
Este uso do simbolismo, que Zola recolheu como herança em
Victor Hugo, atravessa toda sua obra: a grande loja, a Bolsa etc., são
símbolos da vida moderna elevados a uma gigantesca dimensão,
como a igreja de Notre-Dâme ou o canhão em Victor Hugo. O falso
objetivismo de Zola se manifesta do modo mais claro nesta coexis­
tência inorgânica de dois princípios criativos inteiramente heterogê­
neos: o detalhe apenas observado e o símbolo puramente lírico. Este
caráter inorgânico atravessa toda a composição: já que o mundo des­
crito em cada romance não é construído com base em ações concretas
de homens concretos em situações concretas, mas é uma espécie de
recipiente, de ambiente abstrato no qual os homens são inseridos a
posteriori, desaparece a ligação necessária entre o personagem e a ação;
para o mínimo de ação indispensável, basta algum traço recolhido
dos casos médios. Contudo, a prática de Zola é, também aqui, melhor
do que sua teoria, ou seja, as características de seus personagens são
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 233

mais ricas do que os enredos que ele concebe; mas, precisamente por
isso, eles não se transformam em ações, permanecendo objeto de
simples observações e descrições. Portanto, o número de tais descri­
ções pode aumentar ou diminuir à vontade. A cientificidade do méto­
do de Zola, cujo objetivismo mal oculta o empobrecimento da ima­
gem do mundo social que ele constrói, não pode assim nem levar a
um reflexo exato das contradições da sociedade capitalista, no plano
do conhecimento, nem à criação de obras narrativas acabadas, no
plano artístico. Lafargue mostra corretamente que, apesar da exatidão
de suas observações singulares, Zola aborda temas dos quais não vê as
determinações sociais decisivas (o alcoolismo dos operários em O
matadouro, a oposição entre velho e novo capitalismo em O dinheiro).
Por outro lado, n o que s e refere a o desenvolvimento d o romance, não
têm tanta importância os erros de fato cometidos por Zola na inter­
pretação dos fenômenos sociais ( embora os velhos realistas, por
participarem pessoalmente das lutas sociais de seu tempo, intuíssem
a verdade nas questões decisivas) , mas sim o fato de que tais erros fa­
voreceram a aceleração da dissolução da forma romanesca. Os gran­
des "historiadores da vida privada" tiveram por sucessores tão somente
cronistas líricos ou jornalísticos dos eventos do dia a dia.
Flaubert e Zola constituem a última inflexão no desenvolvi­
mento do romance. Por isso, tornou-se necessário examinar mais
detalhadamente suas obras, já que as tendências à dissolução da
forma do romance manifestam-se neles, pela primeira vez, de uma
forma quase �lássica. O desenvolvimento ulterior do romance, apesar
de toda a sua variedade, transcorre nos quadros dos problemas já
delineados em Flaubert e Zola, ou seja, no quadro do falso dilema
entre subjetivismo e objetivismo, que leva inevitavelmente a uma
série de outras antíteses igualmente falsas, como, por exemplo, a
perda cada vez mais irremediável da verdadeira tipicidade das
situações e dos personagens, substituída pelo falso dilema entre a
banalidade da média e o que é puramente "original" ou "excêntrico".
Em consequência deste falso dilema, o desenvolvimento do romance
moderno oscila entre os dois extremos igualmente falsos da "cienti­
ficidade" e do irracionalismo, entre o fato bruto e o símbolo, entre o
documento da "alma" ou da "atmosfera': Decerto, não faltam nem
234 • GYôRGY LUKÁCS

mesmo as tentativas de voltar ao verdadeiro realismo. Mas tais


tentativas só em raríssimos casos vão além de uma aproximação ao
realismo flaubertiano. Não se trata de um acaso. Zola, como escritor
honesto, afirma sobre sua própria prática: ''Agora, toda vez que me
empenho num estudo, deparo-me com o socialismo".29 Na atual
sociedade, um escritor não tem de modo algum necessidade de tratar
tematicamente das questões imediatas da luta proletária de classe para
se deparar com o problema, central em nossa época, da luta entre
capitalismo e socialismo. Mas, para enfrentar até o fundo todo o ·

conjunto de questões relativas a esta luta, o escritor deve romper com


o círculo mágico da ideologia burguesa decadente. Somente pou­
quíssimos escritores são capazes de fazê-lo; os demais restarrl prisio­
neiros, em sentido artístico e literário, deste círculo cada vez mais es­
treito, cada vez mais repleto de contradições. A ideologia da burguesia
decadente, cada vez mais apologética, restringe continuamente a
esfera da atividade criativa do escritor. Como diz Heinrich Mann,
"saber o que um escritor virá a ser depende daquilo que sua classe
pode suportar".
Não podemos propor aqui, nem mesmo sumariamente, uma
história do romance mais recente. Registraremos apenas - ao lado da
tendência decadente geral da ideologia burguesa, que culmina na
barbárie fascista e no sufocamento consciente de toda tentativa de
figuração verdadeira da realidade - os principais tipos de solução para
os impasses do romance que foram tentadas nas últimas décadas.
Repetimos: elas permanecem todas no plano do falso dilema que já
observamos em Flaubert e Zola. A escola de Zola, em sentido estrito,
desagregou-se muito cedo, mas o "zolismo", o falso objetivismo do
romance documental, subsiste até hoje, com a única diferença de que
os laços que ainda ligavam Zola ao velho realismo se rompem cada
vez mais e o programa de Zola se realiza de modo cada vez mais puro
(o que não exclui o surgimento de algumas obras bem realizadas
deste tipo, como, por exemplo, alguns romances de Upton Sinclair) .
Com muito mais força, naturalmente, crescem o subjetivismo e o
irracionalismo, que surgem logo após a desagregação da escola de
Zola propriamente dita. Esta tendência transforma paulatinamente o
romance num agregado de fotografias instantâneas da vida interior
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 235

do homem e, no final, leva à completa dissolução de todo conteúdo e


de toda forma do romance (Joyce, Proust) .
Como protesto contra estes fenômenos d e dissolução, fazem­
se as mais variadas tentativas - no mais das vezes reacionárias - de
renovar a antiga força e vitalidade da narração. Alguns escritores
fogem da realidade capitalista para um mundo rural estilizado, que
pretende es tar nos antípodas do capitalismo (como Knut Hamsum) ,
o u num mundo colonial não ainda contaminado pelo capitalismo
(Kipling) ; outros, através de uma reconstrução estética das condições
da velha arte narrativa, buscam restabelecer o romance como forma
artística (redução à novela, estilização histórico-decorativa ao modo
de Conrad Ferdinand Meyer) etc. Naturalmente, surgem também
escritores que fazem a tentativa heroica de nadar contra a corrente e,
com base em uma crítica honesta da sociedade contemporânea,
buscam conservar ou reativar as grandes tradições do romance. À
medida que, por um lado, aprofundam-se as contradições e a
degradação da ordem capitalista, e, por outro, fortalece-se vitoriosa­
mente o socialismo na União Soviética, à medida que crescem os
sentimentos revolucionários entre os intelectuais, os melhores repre­
sentantes da literatura ocidental rompem as relações com a bur­
guesia, o que abre para a sua criação amplas perspectivas (Romain
Rolland, André Gide, André Malraux, Jean-Richard Bloch etc. ) .

8 . As perspectivas do romance socialista

Já tivemos ocasião de destacar o papel que o ingresso do pro­


letariado na arena histórica desempenhou no desenvolvimento de­
clinante do romance: quanto mais a luta de classes entre proleta­
riado e burguesia aparece com clareza como o evento central da vida
social, tanto menos é possível ao romancista burguês abordar com
profundidade os problemas centrais da sociedade. O amadureci­
mento da consciência proletária de classe no decurso do desenvol­
vimento revolucionário do proletariado gera, também no campo do
romance - como, de resto, em todos os campos da cultura -, novos
problemas e novos métodos criativos para resolvê-los. Já observamos
que o problema da degradação do homem na sociedade capitalista
236 • GYORGY LUKÁCS

tinha inevitavelmente de se tornar o problema central de toda a


estética do romance. Em A sagrada família, Marx caracteriza do
seguinte modo a diversa atitude da burguesia e do proletariado diante
da degradação geral do homem no capitalismo:
A classe proprietária e a classe do proletariado represen­
tam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira se
sente à vontade nesta autoalienação, sabe que a alienação
é seu próprio poder e nela encontra a aparência de uma
existência humana; a segunda, ao contrário, sente-se ani­
quilada nesta alienação, vislumbra nela sua impotência e
a realidade de uma existência desumana. Ela é, para fazer
uso de uma expressão de Hegel, no interior da abjeção, a
revolta contra esta abjeção, uma revolta à qual é necessaria­
mente levada pela contradição entre sua natureza humana
e sua situação de vida, que é a negação aberta e absoluta
desta natureza.30

Por isso, o proletariado - cuja consciência de classe revolucio­


nária se expande no período do declínio ideológico da burguesia - é
capaz de compreender toda a dialética do desenvolvimento capitalis­
ta; ele vê na miséria, prossegue Marx, "o aspecto subversivo revolucio­
nário [ . . . ] que porá fim à velha sociedade"; ele sabe também que o ca­
pitalismo "é o mau lado que suscita o movimento, que faz história ao
fazer com que o combate amadureça". 31
Desta posição de classe nova e necessária do proletariado em
face das contradições da sociedade capitalista, surgem para o roman­
ce, através da mediação das mudanças em sua temática, importantís­
simos problemas formais. Para o proletariado, bem como para o ro­
mancista socialista, a sociedade não é um mundo "acabado", feito
de objetos cristalizados: a luta de classe do proletariado se trava num
mundo em que a atividade espontânea dos homens pode se tornar
heroica. Já no romance burguês, como vimos, podia brotar uma
tensão épica da luta do homem por sua existência exterior e por sua
integridade interna, na medida em que esta luta ainda era travada
corajosamente contra a degradação feudal e capitalista. O pathos desta
luta se intensifica no proletariado, não só porque a existência do
trabalhador é muito mais insegura no capitalismo, mas também
porque a luta contra a eterna ameaça que pesa sobre a existência
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 237

individual está indissoluvelmente ligada às questões gerais de toda a


classe proletária e ao grande problema da transformação da sociedade.
Com efeito, a luta contra as ameaças que pesam sobre a existência
individual deve, para o proletariado, converter-se na luta pela
organização revolucionária da classe tendo em vista a derrubada do
capitalismo. A estrutura das organizações proletárias de classe
(sindicatos, partidos) resulta de uma atividade heroica dos proletá­
rios. Esta atividade heroica torna-se ainda mais elevada pelo fato de
que tal luta é, ao mesmo tempo, o processo de humanização dos
operários oprimidos pelo capitalismo: a dialética da autocriação do
homem por meio do trabalho e da luta reproduz-se aqui no nível
mais alto do desenvolvimento histórico. Se aqui, nas palavras de
Marx, "o próprio educador tem de ser educado", 32 então este processo
não é uma adaptação à prosa da vida burguesa, como Hegel exigia do
romance burguês, mas uma luta incessante que tem como meta a
destruição dos últimos restos de degradação do homem na sociedade
e no próprio homem. Disso resulta que o indivíduo proletário que
trava esta luta deve necessariamente se tornar um herói "positivo".
Esta nova aproximação à epopeia se tornará ainda mais evidente se
recordarmos o seguinte: nos romances burgueses, até mesmo nos
mais bem realizados, os problemas sociais objetivos só podiam ex­
pressar-se indiretamente, mediante a figuração da luta dos indiví­
duos entre si; algo diverso ocorre no romance socialista, já que na
representação da organização de classe do proletariado, da luta de
classe contra classe, do heroísmo coletivo dos operários, manifesta-se
um elemento estilístico que se aproxima da essência da epopeia
antiga, que figurava a luta de uma formação social contra outra. O
significado histórico-universal de Maxim Gorki reside precisamen­
te no fato de que ele compreendeu - e expressou numa forma artis­
ticamente acabada - todas estas novas tendências que decorrem da
situação histórica do proletariado.
Estas peculiaridades do desenvolvimento do proletariado co­
mo classe encontram sua máxima expressão depois da conquista do
poder. O proletariado vitorioso, que tomou em suas próprias mãos o
poder estatal, continua a luta para extirpar as raízes da sociedade de
classe. A conquista do poder estatal, a ditadura do proletariado, a
238 • GYôRGY LUKÁCS

transformação planificada da economia, a abolição das contradições


econômicas próprias do capitalismo etc., tudo isso leva, também no
terreno do romance, a uma série de modificações radicais no plano
do conteúdo e da forma. O socialismo destrói a reificação fetichizáda
das categorias econômicas e das instituições sociais. A suposta
autonomia destas últimas e sua oposição hostil às massas trabalha­
doras desaparecem. "O Estado somos nós", como disse Lenin. A luta
contra a degradação do homem eleva-se qualitativamente a uma fase
superior, na qual ela se orienta de modo ativo contra as causas
objetivas desta degradação (separação entre cidade e campo, entre
trabalho físico e intelectual etc. ) ; e esta luta de classe no terreno da
economia é acompanhada pela luta ideológica contra os resíduos da
velha sociedade na consciência dos homens. Desaparece a velha
insegurança sobre o amanhã - e isto cria a possibilidade de que
desapareçam as formas de ideologia que se desenvolveram com base
nessa insegurança (a religião) . A luta de classes pela destruição das
classes liga-se indissociavelmente ao desenvolvimento de inúmeras
formas de atividade espontânea e de um novo heroísmo das massas
trabalhadoras; em outras palavras, liga-se à luta por um novo homem,
por um "homem de formação multilateral" (Lenin) , por um homem
que não sofra nem participe, ativa ou passivamente, de qualquer tipo
de exploração de outro ser humano (libertação da mulher etc. ) .
Todos estes momentos d o desenvolvimento geram n o realismo
socialista um tipo de romance radicalmente novo. O crescimento dos
elementos puramente épicos resulta necessariamente das tendências
do próprio desenvolvimento social. Mas confundiríamos as pers­
pectivas do desenvolvimento com o próprio desenvolvimento se
víssemos apenas as vitórias de hoje e deixássemos de lado a luta e os
obstáculos internos e externos; se, no lugar de caminhos tortuosos,
impostos pela dialética objetiva da luta de classes e da construção so­
cialista, traçássemos uma utópica linha reta. As constantes observa­
ções críticas do camarada Stalin a respeito, por exemplo, do colcós
como simples forma socialista que só pode ser preenchida com um
conteúdo socialista através do trabalho e da luta, ou sobre o modo dia­
lético como se efetua o desaparecimento do Estado etc., são ao mesmo
tempo indicações sobre as relações entre romance e epopeia no perío-
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 239

do da construção socialista. Portanto, deve-se entender com clareza


que se trata aqui de uma tendência para a epopeia e não de um fato já
consumado. Pois, como se sabe, o proletariado está apenas no
caminho da realização da grandiosa tarefa que consiste em "superar
os vestígios do capitalismo na economia e na consciência da huma­
nidade" (Stalin) . É precisamente esta luta que desenvolve os novos
elementos épicos; ela desperta em grandes massas energias até então
reprimidas e deformadas, faz brotar destas massas os homens de
vanguarda do socialismo, dirigindo-os para ações que manifestam
neles capacidades que eles mesmos não conheciam e os transformam
assim em líderes das massas em movimento. As qualidades indivi­
duais destes líderes consistem precisamente na sua capacidade de
realizar de modo 'claro e determinado os valores sociais universais.
Eles adquirem assim, em medida crescente, os traços característicos
dos heróis épicos.
Este novo florescimento de elementos da epopeia no romance
não é simplesmente uma retomada artística da forma e do conteúdo
da velha epopeia (por exemplo, da mitologia) , mas nasce necessaria­
mente da sociedade sem classes que está surgindo. Ele não rompe as
ligações com o desenvolvimento do romance clássico. Com efeito, a
construção do novo e a destruição objetiva e subjetiva do velho estão
ligadas entre si por uma indissolúvel conexão dialética. É precisa­
mente ao participar da luta pela edificação socialista que os homens
superam em si mesmos os resíduos ideológicos do capitalismo. Cabe
à literatura a tarefa de mostrar o homem novo em sua concretude ao
mesmo tempo individual e social. Ela deve conquistar para a criação
artística a riqueza e a multiplicidade da construção socialista. Como
disse Lenin,
[ ] a história em geral e, em particular, a história das
...

revoluções é sempre mais rica de conteúdo, mais variada,


mais multilateral, mais viva, mais "astuciosa" do que o su­
p õ e m os melhores partidos e as vanguardas mais
esclarecidas das classes mais avançadas. 33

A tarefa d� romance no período da construção do socialismo é


a de figurar concretamente esta riqueza, esta "astúcia" do desenvolvi­
mento histórico, esta luta pelo homem novo e pela erradicação de
240 + GYORGY LuKAcs

qualquer forma de degradação do homem. A literatura do realismo


socialista luta efetivamente, com tenacidade e lealdade, por este novo
tipo de romance; e, nesta luta por uma nova forma artística, por um
romance que se aproxime da majestade da epopeia, mas conservando
ao mesmo tempo as características essenciais do romance, o realismo
socialista já obteve significativos resultados ( Cholokhov, Fadaiev,
Panferov, Gladkov etc. ) .
A nova atitude d o romance d o realismo socialista e m face dos
problemas do estilo épico confere um significado inteiramente
particular, nesta fase do desenvolvimento, à questão da herança. Em
primeiro lugar, o romance do realismo socialista se desenvolve
necessariamente a partir dos problemas estilísticos da época atual.
Como observou Lenin, o socialismo se constrói com o material
humano legado pelo capitalismo. Ora, como as questões estilísticas
do presente dependem necessariamente do ser social, têm a ver com a
consciência, com este material humano. Portanto, ninguém pode
negligenciar estas questões estilísticas. É preciso submetê-las a um
trabalho de crítica e superá-las através da crítica. Mas, em segundo
lugar, o estilo do realismo socialista exige uma representação cada vez
mais enérgica da unidade dialética entre o individual e o social, entre
o que é singular e o que é típico no homem. As condições sociais do
realismo burguês se diferenciam bastante das condições do desen­
volvimento do realismo socialista; basta pensar no fato de que os
velhos realistas lidavam com a base social das contradições insolúveis
do capitalismo, ao passo que o realismo socialista brota de uma
sociedade na qual as contradições sociais estão sendo levadas à sua
solução definitiva, graças à atividade do proletariado e de seu partido
dirigente.
Mas a impiedosa coragem dos velhos realistas em seu modo de
pôr e resolver os problemas constitui a herança literária cuja assi­
milação crítica é de essencial importância para o realismo socialista.
E isso é ainda mais verdadeiro na medida em que a evolução do capi­
talismo em declínio obscureceu e deformou todas as questões postas
pela sociedade, de modo que o modelo natural para uma arte que
ponha as questões com coragem e levando em conta todas as suas
determinações, para um realismo impiedoso que não se perde na
representação de detalhes banais, só pode ser o velho realismo
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 241

burguês. Naturalmente, a assimilação da herança deste grande


realismo deve ser crítica: deve implicar, antes de mais nada, um
aprofundamento do método criador do realismo artístico. E, final­
mente, em terceiro lugar, cabe lembrar que, da necessária tendência
do desenvolvimento do romance socialista no sentido da epopeia,
decorre a exigência de que também a velha epopeia e seu estudo teó­
rico sejam considerados uma parte importante da assimilação da
herança cultural. Para a literatura do realismo socialista, foi certa­
mente muito positivo o fato de que seu grande mestre e guia, Maxim
Gorki, seja o elo vivo de mediação entre as tradições do velho realismo
e as perspectivas do realismo socialista. A revolução russa, em
consequência de uma possibilidade favorável, nasceu do desenvol­
vimento desigual, ou seja, nasceu a partir da revolução burguesa
( 1 905 e fevereiro de 1 9 1 7) ; do mesmo modo, a decadência literária -
ao contrário do que ocorreu nos países ocidentais, onde teve lugar
um longo período de estagnação revolucionária - não teve ocasião de
se desenvolver na Rússia. Gorki, o primeiro clássico do realismo so­
cialista, mantém ainda relações diretas, até mesmo pessoais, com os
últimos clássicos do grande realismo burguês ( Tolstoi) . A obra de
Gorki, portanto, é a continuação viva das grandes tradições do ro­
mance realista e, ao mesmo tempo, a reelaboração crítica destas tradi­
ções, em conformidade com as perspectivas do realismo socialista.

Notas

1 Aqui como adiante, Lukács cita textos da Estética de Hegel.


2 J. W. Goethe, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, São Paulo,
Ensaio, 1 994.
3 K. Marx, Teorias da mais-valia, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, v. l ,
1 980, p . 267.
4 Em suas Teorias da mais-valia (ed. cit., v. 2, 1 98 5 ) , Marx refere-se ao
"cinismo de Ricardo" para mostrar que a economia clássica burguesa era
ainda capaz de apontar as contradições do capitalismo.
5 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, Petrópolis, Vozes, 1 992, parte II,
p. 55-56.
6 F. Engels, carta a M. Harkness, abril de 1 888, em K. Marx e F. Engels, Sobre
a literatura e a arte, Lisboa, Estampa, 1 97 1 , p. 1 97.
242 • GYôRGY LUKÁCS

7
Ibid.
8 F. Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, em K.
Marx e F. Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, v. 3, 1 963, p. 63.
9 Engels, carta a M. Harkness, ed. cit., p. 1 96.
10
Hegel, Fenomenologia do Espírito, ed. cit., parte I, p. 2 1 5.
" Ibid.
12
K. Marx, Para a questão judaica, Lisboa, Avante! , 1 997, p. 89. Modificamos
a tradução.
13
K. Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro,
Lisboa, Presença, 1 972, p. 88.
14
Honoré de Balzac, A comédia humana, Rio de Janeiro-Porto Alegre-São
Paulo, Globo, v. 1, 1 959, p. 14.
15
Personagens, respectivamente, de O vermelho e o negro e de Ressurreição.
16
K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo, Boitempo, 2005,
p. 52.
17
A expressão é de Hegel na Fenomenologia do Espírito, ed. cit., parte I,
p. 246 e ss.
" Personagens, respectivamente, de Lesage, Fielding e Defoe.
19
Cf., supra, nota 1 7.
"' K. Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte, em K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas, ed. cit., v. l , 1 956, p. 225.
21
Lukács se refere ao fato de que, em junho de 1 848, no seio do processo
revolucionário ocorrido na França, o proletariado francês promoveu uma
insurreição que foi esmagada pelas forças burguesas. Em toda a sua obra,
Lukács situa neste episódio o início do que vai chamar de "decadência
ideológica da burguesia".
22 Victor Hugo, Quatre-vingt-treize, primeira parte, livro II, tomo IV.
23 Cândido é uma novela de Voltaire.
24
G. W. F. Hegel, Estética. A arte clássica e a arte ro mân tica, Lisboa,
Guimarães, 1 958, p. 30 1 .
25 Lukács cita o artigo de Lenin, "Tolstoi, espelho da revolução russa'', publicado
em Proletari, 1 1 de setembro de 1 908.
'li> Gogol se refere a personagens do seu romance Almas mortas.
v E. Zola, Le roman expérimental, Paris, Garnier-Flammarion, 1 979, p. 2 14-2 1 5.
28 Lukács desenvolve este argumento, inclusive a comparação entre Naná e
Ana Karênina, em seu ensaio "Narrar ou descrever?", em id., Ensaios sobre
literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1 968, p. 47-99.
zi Carta a J. Van Santen Kolff, de junho de 1 886.
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 243

" K. Marx e F. Engels, A sagrada família, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 48.
A tradução está modificada.
31 Ibid, p. 49.
32 K. Marx, "Teses sobre Feuerbach", em K. Marx e F. Engels, A ideologia
alemã, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 6 1 1 - 6 1 2 .
33 V. I. Lenin, A doença infantil do "esquerdismo" n o comunismo, e m id., Obras
escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscou, Avante ! -Progresso, t. 3, 1 979,
p. 332.
A CARACTERÍSTICA M AIS GERAL DO REFLEXO LÍRICO

Na elaboração teórica da teoria marxista-leninista do reflexo, a


lírica foi até hoje imperdoavelmente negligenciada. Aliás, sob a in­
fluência de um inteligente marxista inglês, Caudwell, 1 surgiu até
mesmo a tendência a aplicar a teoria do reflexo somente à épica e ao
drama, enquanto a lírica aparecia, ao contrário, como uma autorre­
presentação da interioridade subjetiva, cujas raízes remontariam aos
comportamentos mágicos da sociedade primitiva.
Não posso abordar nesta oportunidade, nem mesmo esquema­
ticamente, os problemas aqui evocados, e menos ainda resolvê-los.
Mas cabe afirmar com ênfase que a lírica - no sentido indicado pela
estética marxista em geral - é, tanto quanto a épica e o drama, um re­
flexo da realidade objetiva que existe independentemente de nossa
consciência. É óbvio que esta identidade genérica não suprime, nem
teórica nem praticamente, as diferenças fundamentais entre estes
gêneros literários. Não se deve esquecer, sobretudo, o fato de que na
lírica o processo do reflexo, a característica subjetiva de "espelho do
mundo" (como Heine se referiu a Goethe) , adquire uma função qua­
litativamente diversa em comparação com a épica e o drama.
E tampouco se deve esquecer que tais momentos subjetivos
existem também na épica e no drama, em particular na épica. Porém,
mesmo no drama, onde as leis da forma excluem que o autor apareça
na obra, toda a atmosfera dos eventos, seus tempos, seu ritmo - inclu­
sive no quadro de um reflexo fiel - são permeados pela subjetividade
do criador. De resto, o mesmo ocorre com o mundo interior e com o
mundo em que vive cada personagem, ou seja, com o ambiente ( co­
mo dizem os pintores) no qual cada um deles se apresenta diante de
nós, mas também com a lei que rege tal ambiente. Por outro lado, é
universalmente conhecido que toda criação épica é fortemente deter­
minada pela subjetividade do artista enquanto sujeito da narração. É
um preconceito moderno - bem expresso na autoilusão de Flaubert -
supor que a criação é tanto mais verdadeira quanto mais fielmente
246 • GYORGY LUKÁCS

refletir a realidade, ou seja, quanto mais esta subjetividade for afastada


ou, até mesmo, eliminada.
Não há nenhuma razão para pôr em dúvida estes princípios.
Eles não só tornam geneticamente compreensíveis algumas evolu­
ções, mas também dão consistência a importantes e autônomas for­
mas de passagem entre a épica e a lírica, como a elegia e o idílio. Con­
tudo, sem que haja contradição com o que dissemos até agora, a
subjetividade do poeta tem na lírica um significado específico, que é
o fundamento deste gênero artístico. Mesmo na lírica aparentemente
mais objetiva, é precisamente esta subjetividade o que se percebe de
modo imediato - e, portanto, ela é o centro sensivelmente poético da
obra. A diferença qualitativa em relação aos outros gêneros artísticos
é constituída não pela aberta emergência da subjetividade constituti­
va, mas, ao contrário, pela específica e visível ação desta subjetividade,
pelo seu específico modo de existência, pelo seu papel dinâmico na
própria forma da obra.
A tentativa de apreender de modo preciso, no plano conceituai,
a doutrina dialética da contradição produz aqui importantes dificul­
dades linguísticas. Não são poucos os que, mesmo admitindo esta
atividade do sujeito criador - e esta clara admissão é inevitável não só
para a teoria da lírica, mas para toda a estética marxista-leninista -,
levantam contra a imagem do espelho uma objeção de fundo, ou seja,
a de que a função da subjetividade parece ser puramente passiva,
mecânica.
Quem pensa assim está errado. A imagem do espelho é inevitá­
vel, já que só com seu auxílio podemos compreender o dado funda­
mental da arte no plano da concepção do mundo, ou seja, o de que ela
é um reflexo sui generis da realidade que existe independentemente
de nossa consciência. Esta concepção da realidade como algo inde­
pendente da consciência que a reflete é decisiva não só no plano gno­
siológico - enquanto elemento necessário de distinção entre idealis­
mo e materialismo -, mas também no plano prático da criação poé­
tica. Nas últimas décadas, foi possível ver claramente como os poetas
que tentaram se libertar deste vínculo com a realidade que existe
independentemente deles desembocaram no caos, na desagregação
de toda forma artística. Quando a subjetividade do poeta tenta se libe-
A CARACTERÍSTICA MAIS GERAL DO REFLEXO LÍRICO + 247

rar da realidade, tornando-se aparentemente autônoma e inflada,


termina inelutavelmente por operar no vazio, precipitando-se no
abismo do nada; portanto, ela se dissolve, até mesmo como subje­
tividade.
Por isso, quando insistimos em definir o poeta lírico como
"espelho do mundo", aceitamos esta contradição linguística na me­
dida em que se trata não de uma contradição lógico-formal, na qual
se põe um ou/ou entre verdadeiro e falso, mas de uma contradição
ativa e fecunda da própria vida: o comportamento do poeta lírico é,
indissociavelmente, ativo e passivo, ou seja, ele ao mesmo tempo cria
e reflete. Com efeito, o caminho que leva do fenômeno à essência, da
superfície à lei, só pode ser percorrido de modo ativo. Mas esta ati­
vidade não suprime de modo algum o caráter fundamental de todo o
processo, ou seja, o de ser um reflexo da realidade objetiva. Ao con­
trário, trata-se da forma mais profunda e autêntica deste reflexo. Mas
é preciso levar sempre em conta que tanto a essência e a lei quanto o
fenômeno e a superfície são realidades objetivas. Assim, a totalidade
do real só pode ser apreendida (gradualmente) por nós quando a
dialética objetiva de fenômeno e essência e a dialética subjetiva de
nossa penetração na essência são concebidas como indissoluvel­
mente ligadas uma à outra.
No interior do contexto geral da estética, portanto, a especifici­
dade da forma lírica - deixando aqui de lado as formas de passagem -
consiste no fato de que este processo emerge nela como processo
também no plano artístico. A realidade representada na lírica se
manifesta de certo modo diante de nós in statu nascendi; ao contrário,
as formas da épica e do drama - também aqui com base na ação da
dialética subjetiva - representam apenas, na realidade poeticamente
refletida, a dialética objetiva de fenômeno e essência. O que na épica
e no drama se desenvolve como natura naturata, ou seja, em sua
dinâmica objetivamente dialética, aparece-nos na lírica como natura
naturans.
248 + GYORGY LuKAcs

Nota

1 O inglês Cristopher Caudwell, pseudônimo de Cristopher St. John Sprigg


( 1 907- 1 93 7 ) , morreu como combatente das Brigadas Internacionais na
guerra civil espanhola. Apesar de sua morte precoce, Caudwell deixou várias
obras, quase todas publicadas postumamente; entre elas, destaca-se Illusion
and Reality. A Study of the Sources of the Poetry, à qual Lukács certamente
se refere.
SOBRE A TRAGÉDI A

Se quisermos compreender plenamente a concepção de


Tchernichevski 1 acerca da tragédia, devemos examinar em que me­
dida esta problemática estava madura ao tempo em que ele ingressou
no debate literário.
Hegel procurara conceber a tragédia como uma manifestação
objetiva do processo histórico-social e fazer da sua forma artística a
expressão deste conteúdo ideal. Neste sentido, já na Fenomenologia do
Espírito, ele analisa a Antígona, de Sófocles, interpretando-a como
um momento importante no âmbito do desenvolvimento do Espírito
do Mundo. Nessa obra, Hegel considera a tragédia e a comédia clás­
sicas como manifestações da dissolução, interna e dialética, da reli­
gião grega. Na sua Estética, Hegel examina as tragédias grega e shakes­
peariana segundo o mesmo critério. Em termos gerais, e sem entrar
em detalhes, podemos caracterizar a concepção hegeliana da tragédia
do seguinte modo: embora a história universal descreva uma curva
sempre ascendente, este percurso é cheio de contradições; conflitos
trágicos, trágicos fracassos de indivíduos e de nações assinalam as
suas etapas e inflexões. O Fausto, de Goethe, é talvez a expressão mais
acabada desta concepção da vida, segundo a qual o destino do gênero
humano, tomado na sua totalidade, não é trágico; mas esta totalidade
não trágica compõe-se de uma série de tragédias. (Veja-se, sobre esta
questão, o meu livro Goethe und seine Zeit [ Goethe e sua época] ) .
A dissolução da escola hegeliana s e fez acompanhar, também
neste caso, por um empobrecimento de tipo liberal. Já em Vischer2
desaparece a perspectiva histórica, em última análise otimista, de
Hegel e de Goethe. Por trás do sentimento de impotência liberal
diante do curso da história, que vai no rumo da revolução, coloca-se
uma profunda dualidade: a burguesia liberal tem consciência da
necessidade de uma transformação radical da velha Alemanha ( uma
vez que, sem esta transformação, torna-se impossível o efetivo desen­
volvimento da produção capitalista) , mas, simultaneamente, a revo­
lução necessária àquela transformação constitui o objeto principal
250 + GYORGY LuKAcs

dos temores dessa mesma burguesia. A teoria vischeriana da tragédia


é a expressão teórica dessa dicotomia espiritual, carregada de
compromissos. Não é casual que a revolução ocupe, nos exemplos
utilizados por Vischer para ilustrar a sua teoria, o primeiro plano. A
propósito do conflito trágico, ele escreve, na sua Estética:
Mas é um equívoco compadecer-se do herói do movi­
mento, quando a revolução é derrotada, como se ele fosse
um inocente; a ordem que subsiste tem os seus próprios
direitos. A verdade está no termo médio.

Este "termo médio", esta compreensão da pretensa verdade de


todas as tendências em confronto se converte, em Vischer, numa glo­
rificação da impotência mais covarde. Em seu artigo sobre Uhland, 3
ele narra a história do fim tragicômico do Parlamento de 1 848- 1 849
quase como se fosse puramente trágica, considerando- a como o
paradigma do trágico. Vischer relata que a parte sobrevivente do
Parlamento, forçada à retirada pela contrarrevolução, refugiou-se em
Stuttgart; ali, tentou realizar novas sessões, que foram proibidas pelo
governo local. E ele descreve as situações e os conflitos que surgiram -
a seu juízo, trágicos - da seguinte maneira:
Se os ministros se encontravam num trágico conflito,
não menos trágica era a situação para a parte adversária:
os membros do Parlamento, senão ao preço da desonra,
não poderiam recuar de suas posições, assim como os mi­
nistros não poderiam permanecer indecisos e inativos. Eu,
por minha parte, confesso que, se pudesse dividir-me em
duas pessoas diferentes, simultaneamente manifestante e
ministro, recorreria à tropa contra a manifestação de que
eu mesmo participava.

Neste exemplo, o "objetivismo" trágico da estética liberal apa­


rece verdadeiramente como paródia de si mesmo; entretanto, quando
o Leitmotiv é uma vil impotência diante da "trágica necessidade" da
contrarrevolução e da sua "compreensão': a paródia não tarda em
converter-se, em muitos aspectos, numa explícita ideologia da con­
trarrevolução. Assim, por exemplo, num parágrafo da sua Estética,
Vischer analisa a trágica situação de Luís XVI. O rei temia que ocor­
resse com ele o mesmo que ocorrera a Carlos I, da Inglaterra, exe­
cutado sob a acusação de derramar o sangue de seu próprio povo:
SOBRE A TRAGÉDIA + 251

O rei sabe que lhe falta a coragem para, no momento


adequado, derramar o sangue de uns quantos miseráveis
e, por isso, acaba por derramar realmente o sangue de
inúmeros súditos fiéis [ ... ] . Enfim, sem que o rei ordenasse,
o sangue do povo é derramado no assalto às Tulherias; se
ele tivesse tido coragem para ordená-lo meia hora antes,
estaria salvo.

Como se vê, a "tragédia" de Luís XVI - conforme a concepção


liberal do trágico - consistiu em que, no momento oportuno, ele não
ousou ordenar que se disparasse sobre o povo de Paris, não ousou
liquidar a revolução mediante o terror aberto. Aqui, a dimensão polí­
tica da teoria vischeriana da tragédia aparece com clareza meridiana.
Esta concepção do trágico não se limitou a uma orientação
teórica geral da burguesia e da intelligentsia liberais: durante a revo­
lução de 1 848, ela se manifestou no domínio da ação política. A teoria
do trágico própria dos hegelianos desempenhou papel ativo no Parla­
mento de Frankfurt, quando se discutiu a questão polonesa, isto é,
quando se tratou de determinar a posição da nascente democracia
alemã frente à repartição da Polônia e à opressão de seu povo pelos
alemães. O então conhecido poeta alemão Wilhelm Jordan,4 que fazia
parte da extrema esquerda do Parlamento e estava influenciado pelo
hegelianos, interveio no debate definindo como "trágico" o destino do
povo polonês; segundo Jordan, todos se compadecem com esta
"tragédia'', mas não é possível nem lícito a nenhuma força humana
opor-se à férrea necessidade que causa a ruína do herói trágico,
convertendo o seu destino em tragédia. Marx, que acompanhou passo
a passo a discussão sobre a Polônia na Neue Rheinische Zeitung [Nova
Gazeta Renana] , zombou, com cáustica ironia, dos filisteus liberais,
que se disfarçavam sob a máscara da tragicidade sublime. (Observe-se
que Marx, entre as fontes de Jordan, arrola também o hegeliano
Rosenkranz. ) À vazia retórica de Jordan, ele contrapõe a situação his­
tórica real: o atraso e a dissolução da democracia nobiliária, a aliança
entre a alta nobreza e os conquistadores estrangeiros causaram a
tragédia polonesa. Esta tragédia - ou seja, a crise da democracia nobi­
liária - não pôde, de fato, ser evitada. No entanto, surge na Polônia
um novo "herói", ou seja, o povo valente, em face do qual o s liberais
do calibre de Jordan experimentam calafrios: e é certa a vit< ia desse
herói, isto é, a vitória da democracia camponesa.
252 • GYôRGY LUKÁCS

Examinamos com mais detalhes do que o próprio Tchernichevski


o conteúdo político e ideológico da teoria do trágico própria dos hege­
lianos para que resulte claro ao leitor que ele tem razão em sua polê­
mica - conduzida ora com argumentação rigorosa, ora com ironia
mordaz - contra a concepção vischeriana da tragédia. Quer dirija suas
armas contra a "necessidade trágica", quer critique a "culpa trágica" ou
o conceito de "destino", Tchernichevski sempre opõe a concepção
progressista da democracia revolucionária ao liberalismo reacionário
( aberto ou disfarçado) da burguesia. A estética liberal revela sempre
um covarde derrotismo em face da história, da evolução do gênero
humano; ela expressa constantemente seu pavor diante da revolução
e das massas enquanto principais estimuladoras da ideologia revolu­
cionária; e o faz quer operando com um falso conceito de liberdade e
reduzindo toda catástrofe trágica (mediante explicações artificiosas e
cavilosas) à "culpa trágica", quer mistificando o conceito de necessi­
dade sob a forma de "destino".
Se, contudo, consideramos que Tchernichevski tem inteira
razão na sua polêmica contra a concepção da tragédia de Vischer e dos
hegelianos, não consideramos que toda a sua argumentação e todas as
suas conclusões possam hoje - no período do marxismo-leninismo -
ser mantidas; na verdade, seu tratamento do problema em tela, a
partir do seu método antropológico, está superado. Tudo isso se torna
claro nas análises em que Tchernichevski critica o conceito de "des­
tino". Ele tem razão, sem dúvida, quando sustenta que este conceito é
absolutamente incompatível com a moderna concepção científica do
mundo. Quando a estética hegeliana introduz o conceito de "destino"
em sua teoria da tragédia, só através de um procedimento sofístico
consegue reduzir a um denominador comum elementos que, por sua
natureza, são excludentes. Mas a argumentação de Tchernichevski
mostra-se aqui antiquada, quando explica a difusão dessa concepção
fatalista pela renovada afirmação da mitologia do semisselvagem. É
de perguntar-se, porém, por que precisamente o século XIX difun­
diria essa concepção há tanto tempo esquecida. Se o iluminismo dos
séculos XVII e XVIII já a desqualificara, como é possível que, em
meados do século XIX, ela conquiste uma posição tão importante?
S O B RE A TRAGÉDIA + 253

Somente o marxismo pode dar a esta questão uma resposta


satisfatória. Lenin, quando trata da influência que a religião exerce
sobre as massas ( inclusive as massas trabalhadoras) do período im­
perialista, sublinha que o capitalismo constitui hoje a raiz mais pro­
funda da religião. A força cega do capital, que lança o homem na mi­
séria, que o avilta e destrói, sem que este homem possa dar-se conta
do processo que causa tudo isto - eis a origem da religiosidade con­
temporânea. O que Lenin diz sobre a religião vale perfeitamente
também para a concepção fatalista que desempenhou papel tão des­
tacado nas ideologias do século XIX, ressalvando-se que a crença no
"destino" difundiu-se mais entre a intelligentsia burguesa e pequeno­
burguesa do que entre as massas trabalhadoras. Mas, também neste
caso, o momento fundamental é dado pelos efeitos negativos do capi­
talismo, que determinam a substancial insegurança do curso da vida,
tal como esta aparece ao indivíduo, submetido à imprevisibilidade do
acaso. Por esta razão, na abertura do século XIX, a tragédia centrada
na inelutável "fatalidade do destino" (a chamada Schicksalstragodie)
torna-se moda literária; e, mesmo que a grande literatura e a estética
não aceitem sem reservas o grosseiro misticismo próprio a esse gê­
nero literário, uma concepção fatalista similar, sob forma "refinada",
impregna tanto Vischer e os hegelianos quanto, mais intensamente e
com diversas variantes, a literatura e a crítica burguesas mais tardias e
tem peso ainda em nossos dias. Seu método antropológico impediu
que Tchernichevski fundamentasse adequadamente sua polêmica -
justa no que toca às questões principais - em bases de caráter histó­
rico-social. Ademais, é claro que esse caráter antropológico, e não
efetivamente histórico, da crítica de Tchernichevski se reflete na de­
terminação do próprio objeto da polêmica.
Mais adiante, no curso da análise da tragédia, esta questão me­
todológica se transforma ainda mais decisivamente em um problema
estético de natureza conteudística. Também aqui - como em muitas
outras questões estéticas -, Tchernichevski não se limita a uma crítica
negativa das errôneas argumentações idealistas: busca opor às falsas
determinações as determinações corretas, de modo a colocar concre­
tamente a estética idealista com os pés no chão. Quando oferece uma
254 + GYORGY LuKAcs

nova explicação estética das manifestações da vida e dos fenômenos


da realidade (do belo, do sublime etc. ) , Tchernichevski aponta reso­
lutamente para o futuro e alcança resultados fundamentais para a
estética; mas, quando o problema da forma se põe em primeiro plano,
vêm à luz muito nitidamente os limites do seu método antropoló­
gico. Depois de liquidar criticamente a equivocada teoria da tragédia
de Vischer, recorrendo a inúmeros fatos da vida, corretamente inter­
pretados, Tchernichevski avança esta sua nova formulação:
Dizem-nos: "um fracasso meramente casual é um con­
trassenso na tragédia". Replicamos: é verdade, especialmente
nas tragédias criadas pelos escritores, mas não na vida
real. Na criação literária, o autor acredita ser seu dever
imprescindível "extrair a solução do próprio enredo"; mas,
na vida, a solução é, muitas vezes, puramente casual e o
destino é trágico. Admitimos prontamente que o destino
de Macbeth e de Lady Macbeth, que deriva necessariamente
da sua situação e das suas ações, é trágico. Mas não é trá­
gico o destino de Gustavo Adolfo, que morre casualmente
na batalha de Lützen5, em plena carreira de triunfo e de
vitória? "O trágico é o aterrorizante na vida do homem" -
esta definição é absolutamente completa para o trágico, na
vida e na arte. É certo que a maior parte das obras de arte
justifica o acréscimo - "o trágico é o aterrorizante que
vitima o homem mais ou menos inevitavelmente". Mas,
em primeiro lugar, é duvidoso que a arte proceda correta­
mente representando o aterrorizante como quase inevitável,
quando, na própria realidade, ele nem sempre o é, sendo
simplesmente casual; em segundo lugar, parece que, com
frequência, pelo mero costume de procurar cm toda grande
obra de arte "a necessária concatenação dos eventos", "o
necessário desenvolvimento da ação a partir da íntima
essência dela mesma'', nós procuramos forçosamente en­
contrar "a necessidade contida no curso dos acontecimen­
tos" mesmo onde ela não existe absolutamente, como é o
caso cm boa parte das tragédias de Shakespeare.

É evidente que, nesta passagem, Tchernichevski ignora a forma


literária da tragédia. Mais adiante, teremos oportunidade de ver
como, no pensamento de Tchernichevski - mesmo quando ele atinge
os limites do seu tempo, da sua classe e, pois, do seu próprio método
SOBRE A TRAG�DIA • 255

filosófico -, podemos encontrar intuições extraordinariamente


fecundas também para o desenvolvimento filosófico posterior. Mas
aqui, nesta concepção - prescindindo dos problemas literários con­
cernentes à forma -, saltam à luz, na avaliação dos fatos da vida, certos
limites implícitos em sua concepção do mundo, limites que, mesmo
levando ( em nosso juízo) a resultados equivocados, estão conectados
intimamente aos grandes e positivos aspectos do seu espírito revolu­
cionário. Quando Tchernichevski enfatiza vigorosamente que, na
vida, o aterrorizante (logo, o trágico) "pode ser absolutamente casual
sem, por isto, deixar de ser trágico"; quando, para prová-lo, recorre ao
destino de Gustavo Adolfo, o que faz é voltar a sua atenção para um
fato extremamente importante das sociedades de classes, com base
numa concepção democrático-revolucionária do trágico enérgica e
justamente contraposta à concepção liberal dos hegelianos.
Acreditamos que as citações anteriores esclareceram suficien­
temente o leitor sobre a natureza de classe dessa concepção dos hege­
lianos: trata-se, para eles, de "justificar" o sistema vigente (ou seja, o
sistema feudal-absolutista) ; toda tentativa revolucionária contra a
"ordem vigente" assume a "culpa trágica" e, por isto, é com razão que
necessariamente fracassa. É claro que o fracasso dessa tentativa traz
consigo uma transformação da ordem vigente que é bem-vinda para
a burguesia: as reformas liberais. Em outras palavras, a teoria da
tragédia dos hegelianos, com a "necessidade", a "culpa" etc. nela
contida, serve, por um lado, para justificar todos os horrores da socie­
dade de classes como uma trágica necessidade. Tchernichevski, muito
corretamente, adverte contra a manobra dos hegelianos, que consiste
em colocar metafisicamente em um denominador comum a natu­
reza e a sociedade, a fim de conferir ao seu oportunismo um substrato
trágico; ele sabe que a natureza, na sua efetividade, é absolutamente
indiferente em relação às aspirações humanas. Por outro lado, essa
teoria pretende demonstrar a inutilidade de qualquer tentativa revo­
lucionária. Portanto, quando Tchernichevski contrapõe a todas essas
construções artificiosas simplesmente o aterrorizante como a essên­
cia do trágico, isto significa uma convocação à luta revolucionária
contra todas as atrocidades, onde quer que elas se manifestem, seja na
natureza indiferente ao homem, seja na vida social dos homens.
256 + GYORGY LUKACS

Tchernichevski, neste contexto, não afirma - embora isto se


possa inferir sem dúvida do sentido das suas considerações - que a
nova teoria do trágico, proposta por ele, contenha essencialmente a
negação do trágico, pelo menos enquanto fenômeno necessário e
incontrolável da vida social dos homens. Posteriormente, no curso da
sua elaboração, ele desenvolve inequivocamente esta concepção,
especialmente no romance Que fazer?, cujo conteúdo ideológico
essencial reside na convicção de que os conflitos da vida (dos quais,
segundo a concepção burguesa, devem resultar inexoravelmente
conflitos trágicos) poderão ser resolvidos humanamente - isto é, de
modo não trágico - quando estiver realizado o princípio do "egoísmo
racional". (No meu ensaio sobre este romance, que se encontra em
Der russische Realismus in der Weltliteratur [ O realismo russo na litera­
tura universal] , tratei amplamente tanto dos precedentes históricos
quanto das consequências morais e estéticas desta concepção. ) Talvez
sej a suficiente aludir aqui, esquematicamente, à intima conexão
entre esta concepção de Tchernichevski e os princípios revolucioná­
rios iluministas. Tratando precisamente do legado de Tchernichevski,
Lenin caracterizou assim a sua concepção de fundo: "O iluminista
confia no atual desenvolvimento social, pois não percebe as contradi­
ções que lhe são inerentes". E, antes de proceder a esta caracterização,
Lenin sublinhou energicamente a essência revolucionária da con­
cepção de Tchernichevski, ao evocar
[ ... ] a "herança" da década de 1 860, com sua fervorosa fé
no caráter progressista deste desenvolvimento social, com
sua implacável hostilidade, única e exclusivamente dirigida
contra os vestígios do passado, com a sua convicção de
que bastaria apenas acabar por completo com eles e as
coisas correriam da melhor maneira possível.6

É em nome desse iluminismo revolucionário que, no seu ro­


mance, Tchernichevski se posiciona abertamente contra o trágico. As
considerações sobre este ponto contidas em sua dissertação7 não são
suficientemente claras e coerentes porque, nelas, ele apresenta essa
negação do trágico como uma nova teoria destinada a reconhecer o
próprio trágico. As discussões que esta teoria provocou demonstra­
ram claramente que, a partir dela, caso se extraiam todas as suas con-
S O B RE A TRAGÉDIA + 257

sequências, conclui-se pela negação da tragédia. Plekhanov con­


siderava errada a teoria da tragédia de Tchernichevski (voltaremos,
mais adiante, à sua argumentação ) , mas Lunatcharski defendeu-a
contra Plekhanov. Na argumentação de Lunatcharski, é interessante
a ideia de considerar trágica a nossa debilidade em relação às forças
da natureza - devida, segundo ele, à sociedade de classes, ao capita­
lismo -, bem como as consequências de uma tal debilidade. A tragi­
cidade daí derivada (o aterrorizante) , portanto, estaria destinada a
desaparecer com o fim da sociedade capitalista; Lunatcharski recorre
à concepção de Marx sobre a extinção da religião, uma vez suprimida
a sociedade capitalista: "Uma vez que o homem vence a natureza -
afirma Lunatcharski -, a religião se torna supérflua e desaparece tam­
bém da nossa existência o sentido do trágico".
A nosso ver, Lunatcharski não tinha nenhum direito de apelar
a Marx para estabelecer este paralelo entre religião e tragédia. No
mesmo texto em que nitidamente toma posição contra a religião, Zur
Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung [ Crítica da filosofia
do direito de Hegel. Introdução] - em que comparece a famosa asser­
ção: "A religião é o ópio do povo"8 -, Marx trata a tragédia como um
fato histórico real e não a coloca em paralelo com a religião. O reco­
nhecimento da tragédia, tanto na vida quanto na literatura - de fato,
durante toda a sua vida, Marx foi um entusiasta das tragédias de
Ésquilo e de Shakespeare, enquanto o velho Engels alimentava um
vivo interesse por Ibsen -, acompanhou toda a atividade crítica de
Marx e de Engels. Nenhum deles nunca repudiou de modo simplista
a antiga teoria da tragédia: tal como fizeram com toda a herança
ideológica anterior, colocaram-na sobre seus próprios pés, valendo­
se para isto da dialética materialista. Um momento fundamental,
neste sentido, é a concreta concepção e interpretação históricas da
tragédia, tanto na vida quanto na literatura, que já se encontra no tex­
to juvenil de Marx acima citado, mas que comparece plasticamente
formulado no profundo debate epistolar que os fundadores do mar­
xismo mantiveram com Lassalle a propósito da sua tragédia Franz
von Sickingen.9
Esta inversão materialista fornece uma nova interpretação,
veraz, das grandes obras da antiga literatura trágica (veja-se a análise
258 • GYORGY LUKACS

engelsiana da Oréstia10) e, ao mesmo tempo, novas orientações para o


desenvolvimento futuro do drama. É assim que Marx e Engels, no
curso das suas discussões com Lassalle, aludem à tragédia do revolu­
cionário prematuro e observam que, na história da guerra campone­
sa na Alemanha, a verdadeira figura trágica não é o reacionário
Sickingen, mas o líder da revolução plebeia, Thomas Münzer. 1 1 Neste
caso, a oposição à concepção da tragédia própria do idealismo hege­
liano difere inteiramente da de Tchernichevski: enquanto este repu­
dia, junto com a teoria equivocada, a própria tragédia, a oposição de
Marx e Engels envolve a totalidade dos problemas histórico-sociais.
Marx e Engels, obviamente, nunca redigiram uma teoria siste­
mática do drama; contudo, descobriram claramente os momentos
fundamentais da tragédia verdadeira e, ao mesmo tempo, a função
real que lhes cabe. Os fundadores do marxismo colocaram em desta­
que a função determinante do conflito, sem o qual não há tragédia
nem drama. Marx observa, porém, que a essência trágica ou cômica
de um conflito social real não é determinada por nenhuma caracte­
rística formal e, menos ainda, pela fantasia poética subjetiva: também
o tempo e o lugar em que um conflito emerge sob forma trágica ou
cômica representam, enquanto dados de fato, o resultado da concreta
situação histórico-social.
Mas a concretização materialista-dialética da tragédia em
Marx e Engels vai muito além da simples colocação do conflito no
lugar central. Marx e Engels determinam de modo preciso quais são
os momentos espirituais, morais, sociais que permitem a alguns dos
conflitos possíveis elevarem-se ao nível do trágico. Um desses mo­
mentos, em especial, é dado, antes de mais nada, pela experiência
positiva do homem (da classe) no interior do conflito, bem como, em
íntima relação com isto, pelas lições sociais que se extraem do desen­
volvimento dramático, trágico, do próprio conflito: ou seja, é dado
por aquela crítica e autocrítica que o conflito e seu trágico desfecho
suscitam na classe revolucionária, no campo do progresso. Não por
acaso Marx e Engels, mais de uma vez, relacionaram a crítica da revo­
lução alemã de 1 848 à análise do destino trágico de Thomas Münzer.
Também não é casual que Marx, numa carta a Kugelmann, em que se
refere às condições da Comuna de Paris e às suas prováveis perspec-
S O B RE A TRAGÉDIA + 259

tivas trágicas, destaque aqueles momentos a que nos referimos acima,


ou seja, o conflito social, a verificação, a função socialmente catártica
(revolucionária) da catástrofe trágica. Eis a passagem que nos importa
nesta carta, de 1 7 de abril de 1 8 7 1 :
O "acidente" decisivo desfavorável desta vez não deve
de modo algum ser encontrado nas condições gerais da
sociedade francesa, mas na presença dos prussianos na
França e sua posição logo junto de Paris. Os parisienses
estavam muito conscientes disso. Mas a canaille burguesa
de Versalhes também o estava. Precisamente por isto eles
apresentaram aos parisienses a alternativa de aceitar o
combate ou sucumbir sem luta. No último caso, a desmo­
ralização da classe operária seria uma desgraça muito
maior que a queda de qualquer número de "líderes". A luta
da classe operária contra a classe capitalista e seu domínio
entrou em nova fase com a batalha de Paris.12

Esta nova fase chegou à maturidade no trágico conflito da


classe operária parisiense, com a heroica prova de coragem oferecida
pelos trabalhadores.
Também a este propósito podemos verificar como o marxis­
mo, de modo muito mais radical do que o permitido pelo método
antropológico do democrata revolucionário Tchernichevski, é capaz
de romper com o oportunismo liberal dos sucessores de Hegel, com
as distorções idealistas que eles operaram no tratamento da tragédia.
Repetimos: Tchernichevski percebeu muito claramente as conse­
quências dessas distorções reacionárias, tanto em política quanto em
estética, e as rechaçou com adequado pathos revolucionário; mas
Tchernichevski, ao recusar a concepção idealista da tragédia, recusou
igualmente a própria tragédia. Ao contrário, o marxismo, e apenas
ele, pôde determinar corretamente, de modo materialista, o conceito
de tragédia e extrair desta determinação consequências revolucioná­
rias concretas. Ademais, o caráter fundamental da concepção engel­
siana sobre o caso de Münzer, tanto para a concepção marxista da tra­
gédia quanto para a avaliação revolucionária de alguns momentos de­
cisivos de inflexão no curso das lutas de classes, foi demonstrado por
Lenin, em 1 905, em seu artigo contra Martinov ("A social-democracia
e o governo revolucionário provisório" ) . Martinov cita abundante-
2 60 • GYORGY LuKAcs

mente a análise de Engels sobre Münzer e, alterando-lhe o significa­


do, conclui que, na revolução democrática então em curso, o partido
operário não pode participar do governo revolucionário nem se
esforçar para a instauração da ditadura democrática do proletariado e
do campesinato, sob pena de repetir a tragédia de Münzer. Lenin
demonstra, antes de mais nada, que a situação do partido proletário
russo no marco da revolução de 1 905 nada tem em comum com a si­
tuação - indicada por Engels - em que se encontrava Thomas Münzer.
Mas, com isto, Lenin não subestimava a necessidade de identificar o
conflito nem de avaliar como possível o risco de uma derrota:
O inteligente Martinov - escreve Lenin é incapaz de
-

compreender que uma derrota, a derrota do líder do pro­


letariado, a derrota de milhares de proletários na luta por
uma república efetivamente democrática, sendo uma derro­
ta física, não é uma derrota política, mas, ao contrário, é
uma grande conquista política do proletariado, uma gran­
diosa afirmação da sua hegemonia política na luta pela
liberdade.

Não pode haver dúvidas: a concepção da tragédia de Tchernichevski


fica muito aquém daquela de Marx e de Lenin. Mas também não po­
de haver dúvidas de que aqueles que criticam a teoria da tragédia de
Tchernichevski a partir de uma teoria "geral" qualquer - estética ou
filosófica - permanecem num nível muito inferior ao do seu espírito
revolucionário. É o caso de Plekhanov: ele não aceita a identificação
de Tchernichevski entre o trágico e o aterrorizante e lhe contrapõe a
sua própria definição: "Em geral, o trágico verdadeiro é determinado
pelo conflito que surge entre as aspirações conscientes do indivíduo -
necessariamente limitadas e mais ou menos unilaterais - e as potên­
cias cegas do devir histórico, que operam com a força de leis naturais".
E aqui, quando Plekhanov recorre à análise hegeliana da Antígona e
censura Tchernichevski porque este "parece esquecer, na sua argu­
mentação, a existência da história", certamente indica, sem dúvida,
alguns defeitos sérios na concepção de Tchernichevski; mas a sua
crítica não é um avanço e, sim, um retrocesso. Plekhanov, realmente,
não compreende o motivo revolucionário que constitui o verdadeiro
fundamento social de toda a oposição de Tchernichevski à concepção
SOBRE A TRAGllDIA • 261

burguesa do trágico; ele não chega a apreender, na concepção de


Tchernichevski, apesar dos seus equívocos de método e de conteúdo,
aquilo que é fecundo e aberto ao futuro. Para o desenvolvimento da
estética era necessário, indiscutivelmente, criticar os erros e determi­
nar princípios mais corretos. Nos clássicos do marxismo, esta tarefa
foi conduzida colocando-se, na teoria do trágico, em primeiro lugar,
a função social revolucionária de momentos como o conflito, a afir­
mação etc. Quanto a este aspecto, Plekhanov permanece abaixo do
grau de desenvolvimento que o marxismo já alcançara em seu tempo.
Mas esta deficiência do eminente marxista da Segunda Inter­
nacional não se vincula a um problema meramente estético-metodo­
lógico. Assim como, nas discussões de Marx e Engels com Lassalle, o
problema central consistia em como criticar a revolução de 1 848 de
modo a que o movimento revolucionário dos trabalhadores ascendes­
se a um grau de desenvolvimento mais alto; assim como da teoria de
Marx surge a concepção "trágica" da Comuna parisiense - do mesmo
modo a contraposição entre Plekhanov e Lenin sobre a tragédia vin­
cula-se à contraposição entre as avaliações menchevique e bolchevi­
que da revolução de 1 905. Esta contraposição veio à luz com violên­
cia depois do fracasso da insurreição moscovita: enquanto Lenin,
apesar do insucesso imediato, via na insurreição um grande passo à
frente do movimento revolucionário proletário, Plekhanov, rebai­
xando-se ao nível de uma concepção m �nchevique, sustentava que os
trabalhadores de Moscou não deveriam ter pegado em armas.
É evidente que todo esse complexo de problemas experimenta,
com a vitória do socialismo, uma transformação qualitativa. O mo­
mento mais essencial desta transformação consiste no fato de que o
socialismo elimina a base das contradições antagônicas próprias da
sociedade de classes; mas o desenvolvimento histórico continua sen­
do dialético, conforme sua própria natureza. A partir do momento
em que as contradições que mobilizam o desenvolvimento deixam
de ser antagônicas, torna-se claro que também no âmbito de toda a
superestrutura opera-se uma transformação qualitativa. É igual­
mente claro que esta transformação afeta profundamente a concep­
ção e a interpretação do conflito. Mas esta transformação, ou salto
qualitativo, foi concebida por muitos de maneira equivocada, exa-
2 62 + GYORGY LUKACS

gerada, o que provocou distorções: com efeito, muitos acreditaram


que a revolução socialista eliminaria completamente os conflitos da
vida e, consequentemente, da literatura. Não se compreendeu que, se
o conflito experimentou uma mudança qualitativa com a supressão
das contradições antagônicas, ele continua existindo como dado real
da vida e, pois, como elemento conteudístico e formal da literatura,
como reflexo literário de contradições agora não antagônicas. A in­
terpretação de Tchernichevski realizada por Lunatcharski, que já
mencionamos, expressa essencialmente esta teoria da pretensa au­
sência de conflito na vida e na literatura socialistas. Uma teoria si­
milar, assim como a prática dramática nela inspirada, dominou por
longo tempo uma parcela da literatura soviética. Só recentemente a
discussão sobre a dramaturgia, concluída com um artigo do Pravda,
de 7 de abril de 1 952, restaurou - naturalmente, com as devidas mo­
dificações - os antigos direitos do conflito dramático, liquidando a
falsa concepção de um "drama sem conflito':
Sublinhemos que apenas uma parcela da literatura soviética
incorreu neste equívoco. Além dos dramas de Gorki, em cujo centro
sempre está um conflito, recordaremos apenas uma obra tão notável
como Liubov Iarovaya, de K. Trenev, 13 para indicar claramente que os
melhores representantes da literatura dramática do realismo socia­
lista nunca se expuseram à influência daquela falsa teoria. (Inciden­
talmente, devemos observar aqui que as melhores obras da épica so­
viética, sem exceção, têm como ponto de partida o conflito enquanto
dado fundamental real da vida. É evidente que a articulação do
conflito apresenta, na épica, um caráter inteiramente diverso daquele
que tem no drama. Mas este não é lugar para tratar de tal diferença. )
A interpretação marxista-leninista do trágico, apreendido co­
mo dado real da vida, e a plena clarificação da sua estrutura concei­
tua!, possibilitada por esta interpretação, criam as premissas para
uma compreensão da tragédia na sua peculiar forma artística. Neste
particular, Tchernichevski confrontou-se com dois obstáculos in­
transponíveis. O primeiro era constituído por uma subestimação
geral da forma artística, derivada da concepção da arte como suce­
dâneo da vida. Também neste caso - como, de resto, no processo de
transformação radical de toda teoria científica - se manifesta aque-
SOBRE A TRAGÉDIA + 263

le necessário desenvolvimento que Engels destacou numa carta a


Mehring: num primeiro momento, sempre se tende a descurar o
aspecto formal dos problemas em proveito do conteúdo. 14 O outro
obstáculo era constituído pela simplificação (procedente das aspi­
rações democrático-revolucionárias) da função social do trágico e da
sua estrutura conceituai, com todas as distorções daí derivadas; em
suma, este segundo obstáculo era a identificação do trágico com o
aterrorizante. Escolhemos a palavra distorções porque Tchernichevski
reconhece no aterrorizante, corretamente, um momento do trágico
(tanto na vida quanto na arte), mas acaba por fazer deste momento
secundário e complementar o momento fundamental que determina
o trágico. Se, ao contrário e de acordo com os clássicos do marxismo,
situamos os momentos que essencialmente determinam a tragédia
no conflito histórico-social, na afirmação que se manifesta neste
conflito e no efeito "purificador" próprio desta afirmação (ou sej a, na
catarse) , não eliminamos o aterrorizante - que permanece sempre
como momento necessário do trágico -, mas ele perde muito da cen­
tralidade que tem na concepção de Tchernichevski. A função do ater­
rorizante tem por fundamento este fato: na agudização do conflito, a
verdadeira afirmação que põe à prova o homem só pode adquirir sua
plena significação se está em jogo toda a sua existência física ou moral
(ou ambas) ; a justificação da função do aterrorizante reside, portanto,
em que somente através dele se põe verdadeiramente à prova o
autêntico ser do homem e se converte esta prova em critério da verda­
de interior do conflito. E a profundidade e a função revolucionária da
catarse trágica se encontram, por sua essência, em íntima relação
com o desenvolvimento pleno dos momentos aludidos.
Todos esses elementos do trágico podem ser encontrados no
âmbito da própria vida ( recorde-se o que Marx disse acerca da
Comuna de Paris e o que Lenin observou sobre 1 905). Por isso, a for­
ma artística do trágico só se realiza mediante a concentração artística,
sensível, da trama ideal contida na realidade. É aqui que a competição
de Leonardo da Vinci com a realidade ganha toda a sua significação, 15
não no sentido de que a arte possa eliminar as deficiências da reali­
dade, "aperfeiçoando-a", mas no de que o mais profundo conteúdo
ideal da realidade se concentra - tanto idealmente quanto sob a forma
264 • GYôRGY LUKÁCS

de simbologia sensível - na forma da tragédia, elevando-se, assim, às


mais altas sínteses artísticas. Engels, em sua Dialética da natureza,
exprime-se sobre este problema, considerando-o sob o ponto de vista
científico: "Abstrato e concreto. A lei geral da mudança de forma do
movimento é muito mais concreta do que cada um de seus exemplos
'concretos"'. 16 No mesmo sentido, de acordo com Marx, "o concreto é
concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade
do diverso". 1 7
Estas considerações valem também para o reflexo estético da
realidade, desde que tomemos em conta a peculiaridade deste reflexo.
E, no que toca a esta peculiaridade, devemos ressaltar, em primeiro
lugar, que a arte não apreende as determinações que operam na reali­
dade como leis gerais (e concretas, no sentido supramencionado) : ela
representa casos singulares, únicos e específicos, que, sem perder a
sua singularidade, e inclusive mediante a intensificação do seu cará­
ter singular, expressam fielmente, sob forma emblemática, todas as
grandes relações normativas contidas na vida. Uma tal forma trágica,
alcançada através da concentração artística, contém o elemento da
necessidade. E este elemento eleva o caso singular acima do plano da
casualidade, confere ao conflito e à experiência, que constituem o
objeto da representação, um significado social, tornando-os típicos -
e só esta tipicidade pode suscitar no espectador a catarse trágica, a
profunda experiência de que, na representação, está representado o
seu próprio destino social. Sem este elemento da necessidade, a fun­
ção social educativa e ideologicamente progressista própria da tra­
gédia seria impensável. Por isso, quando Tchernichevski escreve
que, nas grandes obras de arte, buscamos, "por mero costume", "a ne­
cessária concatenação dos eventos'', ele descura, sem compreendê-lo,
um dos mais importantes momentos da estrutura ideal da forma
trágica.
Esta afirmação não reduz, naturalmente, a importância da
polêmica de Tchernichevski contra a deformação idealista, liberal, do
trágico. Esta importância não diz respeito apenas à sua orientação
ideológica revolucionária geral, sobre a qual já falamos, mas se esten­
de ainda aos problemas específicos da estrutura artística do drama.
Também aqui a polêmica de Tchernichevski ultrapassa o âmbito do
S O B RE A TRAGllDIA + 265

puro conteúdo: a refutação da teoria de Vischer representa um golpe


definitivo naquela dramaturgia acadêmica de epígonos, presente
sobretudo na Alemanha, que estava sob a influência de Vischer (e
que, por seu turno, acabou influindo sobre a sua estética) . Assim,
mesmo que a teoria de Tchernichevski, como assinalamos, não tenha
sido capaz de dar respostas aos mais complexos problemas formais
inerentes à estrutura do drama (problemas resolvidos teoricamente
apenas pelo marxismo) , Tchernichevski - e, de modo especial, seu
grande companheiro de luta, Dobroliubov18 - ofereceram, com sua
atividade crítica, um grande suporte ao novo drama russo, que nascia
na segunda metade do século XIX graças precisamente a esta atividade
crítica. Esse suporte foi dado, em particular, à arte inovadora de
Ostrovski, 19 na medida em que os dois democratas revolucionários
assumiram uma posição enérgica contra os epígonos formalistas.
Também neste caso verifica-se um fato que já tivemos ocasião de
salientar: Tchernichevski e Dobroliubov, bem como Diderot em seu
tempo, superam em muito em sua atividade crítica, no que se refere
à aplicação concreta da dialética, suas teorias abstratas. É verdade que,
nos importantes ensaios de Dobroliubov sobre Ostrovski, o elemento
ideológico-conteudístico desloca para um segundo plano o elemento
dramático-formal; mas, apesar disto, aqueles textos têm uma im­
portância fundamental para a teoria do novo drama. No âmbito da
compreensão e da elaboração da justa dialética entre conteúdo e
forma, o marxismo-leninismo alcança resultados superiores aos de
Tchernichevski. No entanto, apesar de todos os seus limites, que
devem sempre ser assinalados, Tchernichevski e Dobroliubov cons­
tituem uma herança viva nas questões teóricas da estética, inclusive
no que diz respeito à elaboração das formas artísticas.
No enfrentamento dessas questões, muitos sofrem a influên­
cia da falsa interpretação de tragédias célebres, interpretação reitera­
damente imposta pela estética e pela filosofia da burguesia decadente.
Esta interpretação se sustenta na ideia de um suposto pessimismo da
tragédia, da suposição formal (ou melhor, essencialmente ideológica)
de que a tragédia deve necessariamente ter seu desfecho na derrota, na
aniquilação, na morte do herói. Esta opinião carece de qualquer fun­
damento histórico sério: basta recordar, talvez, a Oréstia para demons-
2 66 • GYORGY LUKÁCS

trar que nem mesmo nas tragédias da Antiguidade clássica, conside­


radas canônicas por séculos, é obrigatória a aniquilação física do pro­
tagonista. No século XIX, precisamente Hebbel, que tanto contribuiu
com sua teoria e sua prática para a formação dessa falsa interpretação,
escreveu sobre O príncipe de Homburg, de Kleist: "O príncipe de
Homburg é parte das mais singulares criações do espírito germânico
porque, nesta obra, mediante o simples calafrio da morte, mediante a
sua sombra, que aparece no fundo do cenário, consegue-se o que nas
outras tragédias só se obtém por meio da morte". E Lessing, repre­
sentante eminente e progressista da moderna teoria da tragédia,
também enuncia, teoricamente, que o fracasso do protagonista não
constitui de fato uma característica absolutamente necessária à deter­
minação do trágico.
Estas reservas valem ainda mais para essa herança da estética
da burguesia decadente que é a suposta vinculação da tragédia com
uma concepção do mundo pessimista. As filosofias de Schopenhauer
e Nietzsche formularam esta vinculação e Wagner e Hebbel, depois
de 1 848, assim como a prática dramática do último Ibsen, conferiram
a esta concepção um significado muito amplo. Apesar da larga in­
fluência dessa concepção, ela não passa de um preconceito decadente.
As grandes tragédias do passado de modo algum representavam como
necessário o caráter vão e condenado ao fracasso dos esforços e das
aspirações dos homens; ao contrário, representavam a sempre concre­
ta e sempre renovada luta entre o velho e o novo, luta na qual a reali­
zação (ou, pelo menos, a perspectiva da realização) de um nível supe­
rior coroa a destruição do velho ou a derrota do novo que, com forças
ainda muito débeis, procura liquidar a velha ordem. Isto se verifica ao
tempo do próprio nascimento da tragédia: no Prometeu de Ésquilo, na
Oréstia. E, em Shakespeare, o fracasso do herói, no interior das lutas
mediante as quais a sociedade feudal se dilacera, não representa
nunca uma pessimista catástrofe cósmica; nas tragédias shakespearia­
nas, o representante da nova ordem, que substituirá a velha, está sem­
pre presente e, ao final, aparece triunfante (Macduff em Macbeth,
Edgar em Rei Lear, Richmond em Ricardo III) ; o mesmo se passa no
Egmont, de Goethe, quando ao herói, pronto para o cadafalso em prol
da independência e da liberdade da sua pátria, aparece-lhe Klãrchen
como gênio da liberdade etc. etc.
SOBRE A TRAGÉDIA + 267

Este conjunto de fatos demonstra historicamente que os clás­


sicos do marxismo colocaram definitivamente, de modo materialista,
a teoria da tragédia sobre seus próprios pés. Tais fatos - e, entre eles,
inclui -se a circunstância de Vischer e outros hegelianos terem
operado decisivamente para a deformação da essência da tragédia, em
conformidade aos ideais da burguesia decadente - demonstram
também a grande importância hi� tórica da obra de Tchernichevski.
Se deixarmos de lado os fundadores do marxismo, ele foi o único que
assumiu uma clara orientação contrária à concepção idealista e anti­
progressista do trágico, própria da burguesia decadente. Os aspectos
positivos da concepção de Tchernichevski não chegam à altura do
materialismo dialético e histórico; por isso, não são suficientes para
oferecer os fundamentos adequados a uma correta compreensão his­
tórica dos fenômenos trágicos do passado e, também, do presente e do
futuro. Isso, porém, não diminui a importância histórica da contri­
buição de Tchernichevski. A tirania czarista jamais destruiu o con­
teúdo ideológico progressista da literatura russa; além disso, uma par­
te considerável da intelligentsia russa só bem mais tarde do que a da
Europa Ocidental (e em muito menor medida) caiu sob a influência
ideológica da concepção do mundo da burguesia decadente. Isso foi
determinado, obviamente, em primeiro lugar, pelo desenvolvimento
social russo e pelas lutas de classes na Rússia; mas no interior desta
situação objetiva, os escritos de Tchernichevski - inclusive os que di­
zem respeito aos problemas da tragédia - tiveram uma fundamental
importância positiva, progressista, revolucionária.

Notas

' Nikolai G. Tchernichevski ( 1 829- 1 88 9 ) , de origem pobre, estudou na


Universidade de São Petersburgo. Dedicou-se ao jornalismo revolucionário,
destacando-se como redator da revista Sovremennick [O Contemporâneo ] ,
centro articulador d a intelectualidade russa d e esquerda. Além d e inúmeros
trabalhos de estética e crítica literária, escreveu o romance Que fazer?, que
formou gerações de revolucionários russos.
2 Cf., supra, nota 18 ao ensaio A estética de Hegel, p. 85.
3 Ludwig Uhland ( 1 787- 1 862 ) , poeta romântico, professor em Tübingen, foi
membro do parlamento de Frankfurt em 1 848. Este parlamento, dominado
268 + GYORGY LuKAcs

pela burguesia liberal, opôs-se durante algum tempo à monarquia absolutista


da Prússia, mas terminou por capitular a ela, pondo assim fim à revolução
democrático-burguesa que sacudiu a Alemanha em 1 848 - 1 849.
4 Carl Friedrich Wilhelm Jordan ( 1 8 1 9- 1 904) . A intervenção referida por
Lukács ocorreu a 24 de julho de 1 848, e os comentários de Marx, logo a
seguir mencionados, foram publicados na Nova Gazeta Renana, edição de
26 de agosto de 1 848. Johann Karl Friedrich Rosenkranz ( 1 805 - 1 879),
também mencionado em seguida, foi professor em Kõnigsberg e escreveu
a primeira biografia de Hegel.
5 Gustavo Adolfo ( 1 594- 1 632), rei da Suécia no curso da Guerra dos Trinta
Anos ( 1 6 1 8 - 1 648), morreu logo após derrotar, na batalha citada, o coman­
dante do exército dos Habsburgo, Albrecht von Wallenstein ( 1 583- 1 634).
6 V. 1. Lenin, "A que herança renunciamos?", em Obras escolhidas em três
tomos, Lisboa-Moscou, Avante! -Progresso, t. l , 1 977, p. 7 1 e 66.
7 Trata-se da dissertação As relações estéticas entre a arte e a realidade,
redigida por Tchernichevski em 1 8 5 3 , ainda na Universidade de São
Petersburgo, e só publicada dois anos mais tarde.
8 K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo, Boitempo, 2005,
p. 145.
9 Cf., supra, a nota 25 do ensaio sobre A estética de Hegel, p. 86.
'° Trata-se da trilogia de Ésquilo (525 a. C.- 456 a. C.); o comentário de Engels
está no prefácio à quarta edição de A origem da família, da propriedade
privada e do Estado, em K. Marx e F. Engels, Obras escolhidas, Rio de
Janeiro, Vitória, v. 3, 1 963, p. 1 2 - 1 3 .
11 A observação está na carta de Marx a Lassalle, 19 de abril de 1 859 (cf. K.
Marx e F. Engels, Sobre a literatura e a arte, Lisboa, Estampa, 1 9 7 1 , p. 1 84).
A figura histórica de Thomas Münzer ( 1 489- 1 525) é analisada por Engels
em As guerras camponesas na Alemanha, São Paulo, Grijalbo, 1 977.
12 K. Marx, O 18 brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1 969, p. 293-294.
13 Trata-se de um drama em cinco atos de Konstantin A. Trenev ( 1 876- 1 945 ) .
14 Engels a Mehring, 1 4 d e julho d e 1 893, e m K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas, ed. cit., v. 3, 1 963, p. 292-296.
15 Lukács se refere, provavelmente, à afirmação de Leonardo de que o pintor
"luta e compete com a natureza".
16 F. Engels, Dialética da natureza, Rio de Janeiro, Leitura, s.d., p. 1 74.
17 K. Marx, "Introdução" ( 1 857) a Para a crítica da economia política, em id.,
Manuscritos econômico filosóficos e outros textos escolhidos, São Paulo, Abril
Cultural, col. "Os pensadores", v. XXXV, 1 9 74, p. 122.
S O B RE A TRAGeDIA + 269

18 O crítico literário Nikolai A. Dobroliubov ( 1 836- 1 86 1 ) , embora precoce­


mente falecido, teve grande influência no pensamento democrático-revolu­
cionário russo do século XIX.
19 Alexander Ostrovski ( 1 823- 1 886 ) , um dos maiores dramaturgos russos,
autor de quase cinquenta peças.
ÍN DICE DE NOMES

A Burckhardt, Jacob, 1 50
Byron, George Noel Gordon, 1 44,
Aleksandrov, A. V., 30 202, 203, 2 1 9
Aristófanes, 1 1 1 , 1 85
Aristóteles, 44, 1 02 e
Averbach, Leopold, 29
Azaev, Nikolai Nikolaievitch, 3 1 Carlos 1, rei da Inglaterra, 250
Caudwell, Cristopher, 245
B Cervantes Saavedra, Miguel de, 24,
75, 1 1 1 , 1 1 3, 1 78, 2 1 2, 2 1 3, 2 1 5,
Bachofen, Johann Jacob, 123, 1 54 2 1 6, 22 1
Balzac, Honoré de, 30, 70, 74, 76, Cézanne, Paul, 34
79, 87, 1 02, 1 06, 1 07, 1 08, 1 1 2, Cholokhov, Mikhail
1 1 3, 1 14, 1 1 5, 1 70, 1 94, 203, Alexandrovitch, 240
204, 206, 207, 208, 209, 2 1 0, Corneille, Pierre, 1 44, 204
2 1 2, 222, 225, 226, 227, 230 Creuzer, Friedrich, 1 54
Baudelaire, Charles, 1 38, 147 Croce, Benedetto, 70
Bauer, Bruno, 67-68, 125
Bãumler, Alfred, 1 22, 1 23, 1 35, 1 54 D
Beõthy, Zsolt, 2 1
Dante Alighieri, 47, 1 1 1
Berlichingen, Gõtz von, 73
De Maistre, Joseph Marie, 1 14
Bernard, Claude, 230
Defoe, Daniel, 1 8 1 , 2 1 6, 2 1 7, 2 1 9
Bertram, Ernst, 1 22, 1 40
Diderot, Denis, 44, 47, 50, 52, 66,
Bielinski, Vissarion Grigorievitch,
68, 76, 1 83, 1 88, 1 90 n. 4, 1 93,
67, 68
204, 220, 265
Bismarck, Otto von, 70, 123, 1 24,
Dõblin, Alfred, 1 76
1 25, 143, 1 55, 1 56
Dobroliubov, Nikolai
Bizet, Georges, 1 38, 140
Alexandrovitch, 67, 265
Bloch, Jean-Richard, 235
Dostoievki, Fiodor Mikhailovitch,
Boileau, Nicolas, 1 93
24, 2 1 2
Bonald, Louis Gabriel, 1 14
Bourget, Paul, 1 1 3, 1 40
E
Brahms, Johannes, 1 32
Büchner, Georg, 30 Eckermann, Johann Peter, 1 32
Bukharin, Nikolai lvanovitch, 26 Ehrenburg, Ilia, 29
2 72 • GYORGY LUKÁCS

Engels, Friedrich, 25, 30, 43, 57, 59, Goldsmith, Oliver, 220
66, 68, 70, 72, 73, 74, 75, 76, 77, Goncourt, Edmond de, 1 38
79, 8 1 , 83, 84, 87- 1 1 8 , 1 56, 1 69, Goncourt, Jules de, 1 38
20 1 , 206, 208, 2 1 5, 226, 257, Gorki, Maxim, 29, 30, 83, 237, 24 1 ,
258, 260, 26 1 , 263, 264 262
Ermilov, Vassilii Dmitrievitch, 29 Gõrres, Joseph, 123, 1 54
Ernst, Paul, 95 Grib, V. R., 30
Ésquilo, 1 1 1 , 25 7, 266 Gundolf, Friedrich, 1 5 7
Gyp (Gabrielle Martel d e Janville) ,
F 1 40

Fadeiev, Alexander, 29, 240 H


Feleky, Géza, 2 1
Ferguson, Adam, 1 29 Hamsun, Knut, 235
Feuerbach, Ludwig, 50, 66, 68, 69, Harkness, Margaret, 1 1 2
141 Hebbel, Christian Friedrich, 266
Fichte, Johann Gottlieb, 24 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich,
Fielding, Henry, 76, 1 07, 209, 2 1 7, 23, 27, 43-84, 87, 1 06, 1 23, 1 43,
2 1 8, 2 1 9 1 64, 1 65, 1 66, 1 68, 1 69, 1 83, 1 84,
Flaubert, Gustave, 1 3 8 , 1 39, 147, 1 85, 1 89, 1 90 n. 3, 1 9 1 n. 1 6,
1 87, 228, 229, 230, 233, 234, 245 1 95, 1 96, 1 97, 1 99, 200, 20 1 ,
Forster, Georg, 48 203, 204, 205, 208, 209, 2 1 1 ,
Fourier, Charles, 1 14, 2 1 5 2 1 4, 222, 225, 229, 237, 249, 259
France, Anatole, 140 Heine, Heinrich, 30, 68, 76, 1 55,
1 78, 1 82, 2 1 3, 245
Herder, Johann Gottfried, 44, 45
G
Hitler, Adolf, 28
Garaudy, Roger, 36 Hoche, Lazare, 1 82
George, Stefan, 1 22 Hoffmann, Ernst Theodor
Gide, André, 235 Amadeus, 1 07, 223
Gladkov, Fiador Vassilievitch, 240 Hõlderlin, Friedrich, 30, 1 3 1
Glockner, Hermann, 70 Homero, 24, 52, 75, 204, 206, 2 1 9,
Goebbels, Joseph, 1 5 7 23 1
Goethe, Johann Wolfgang, 3 0 , 46, Horváth, Márton, 3 1 , 32
52, 53, 57, 73, 75, 76, 97, 1 02, Hotho, Heinrich Gustav, 5 1 , 52, 69
1 1 2, 1 26, 1 32, 1 44, 1 53, 1 54, Hugo, Victor, 1 26, 1 27, 1 38, 224,
1 55, 1 70, 1 8 1 , 1 82, 1 9 1 n. 1 5, 230, 232
1 94, 198, 1 99, 204, 22 1 , 222, Hutten, Ulrich von, 165
225, 226, 230, 245, 249, 266
Gogol, Nikolai, 67, 1 74, 1 76, 1
1 90 n. 9, 227
Ibsen, Henrik, 95, 257, 266
Í NDICE DE NOMES + 2 73

J Lessing, Gothold Ephraim, 44,


153, 1 90 n. 4, 1 93, 23 1 , 266
Jean-Paul (Jean Paul Friedrich
Lichtenberg, Georg Cristoph, 1 32
Richter) , 1 85
Lifschitz, Mikhail Aleksandrovitch,
Jordan, Wilhelm, 25 1
25, 30, 87
Joyce, James, 235
Lombroso, Cesare, 230
Jünger, Ernst, 1 57
Longo, 207
J uvenal, 1 72
Loti, Pierre, 1 40
Luís Filipe, rei da França, 108
K Luís XVI, rei da França, 250, 25 1
Kant, Immanuel, 25, 45, 46, 47, 53, Lunatcharski, Anatoli, 257, 262
60, 6 1 , 64, 66, 69, 70, 79, 1 37,
143 M
Keller, Gottfried, 1 32
Mach, Ernst, 1 45
Kerr, Alfred, 2 1
Maiakovski, Vladimir, 3 1
Kierkegaard, Soren, 23
Malraux, André, 235
Kipling, Rudyard, 235
Mandeville, Bernard de, 1 5 3
Kleist, Ewald Christian von, 1 54,
Mann, Heinrich, 234
266
Maquiavel, Nicolau, 1 65
Klopstock, Friedrich Gottlieb, 1 94
Marat, Jean-Paul, 1 82
Kraus, Karl, 1 87
Maria Antonieta, rainha da
Krupskaia, Nadia, 28
França, 1 78, 1 82
Kugelman, 258
Marivaux, Pierre de, 2 1 7
Martinov, Alexander, 259, 260
L
Marx, Karl, 22, 24, 25, 27, 35, 45,
Lados, Choderlos de, 2 1 7 56, 57, 66, 67, 68, 69, 70, 7 1 , 72,
Lafargue, Paul, 1 08, 230, 233 73, 75, 76, 78, 79, 8 1 , 83, 84,
Lannes, Jean, 1 82 87- 1 1 8, 1 69, 1 93, 1 99, 20 1 , 202,
Lassalle, Ferdinand, 25, 73, 76, 99, 206, 209, 222, 236, 237, 25 1 ,
1 1 0, l l l , 25� 258, 26 1 257, 258, 260, 26 1 , 263, 264
Lasson, Georg, 52 Mehring, Franz, 25, 29, 77, 263
Leibniz, Gottfried Wilhelm, 63, 1 72 Meilhac, Henri, 1 40
Lemaitre, Jules, 1 40 Meyer, Conrad Ferdinand, 235
Lenin (Vladimir Ilitch Ulianov) , Michelet, Jules, 126
25-27, 28, 30, 34, 46, 57, 59, 77, 78, Milton, John, 1 94
79, 80, 8 1 , 83, 84, 1 0 1 , 1 02, 1 82, Moeller van den Bruck, Arthur,
1 86, 1 87, 1 9 1 n. 1 1 , 226, 238, 239, 123, 157
240, 253, 256, 259, 260, 26 1 , 263 Moliere ( Jean-Baptiste Pocquelin) ,
Leonardo da Vinci, 34, 263 1 44, 1 90 n . 9, 204
Lesage, Alain René, 1 73, 2 1 7, 220 Münzer, Thomas, 76, 258, 260
2 74 • GYORGY LUKÁCS

Murat, Joachim, 182 Ricardo, David, 200, 222


Richardson, Samuel, 204, 2 1 7, 220
N Riedl, Frigyes, 2 1
Rolland, Romain, 235
Napoleão III, Bonaparte,
Rosenberg, Alfred, 1 2 1 , 1 22, 1 57
imperador
Rosenkranz, Karl, 69, 25 1
dos franceses, 108
Rõtscher, Heinrich Theodor, 69
Ney, Michel, 1 82
Rousseau, Jean-Jacques, 44, 145,
Nietzsche, Friedrich, 1 2 1 - 1 57, 266
1 5 1 , 1 79, 1 89 n. 1, 204, 22 1
Novalis (Georg Philipp Friedrich
Rudas, Ladislau, 32, 36
von Hardenberg) , 223, 225
Ruge, Arnold, 69, 1 85

o
s
Ostrovski, Nikolai, 265
Saint-Hilaire, Geoffroy de, 230
Saltikov-Tchedrin, Mikhail
p
Ievgrafovitch, 76
Panferov, Fiodor, 240 Sand, George (Amandine-Aurore-
Platão, 1 02, 1 09 Lucile Dupin) , 1 26
Plekhanov, Gueorgui Satz, I., 30
Valentinovitch, 25, 74, 77, 78, 257, Schauwecher, Franz, 1 2 3
260, 261 Schelling, Friedrich Wilhelm
Poe, Edgar Allan, 223 Joseph, 47, 48, 52, 57, 1 54, 1 99,
Pope, Alexande� 1 72 200, 20 1 , 202
Prévost, Antoine François, abade, Schiller, Friedrich, 25, 46, 47, 52,
220 1 04, 1 06, 1 1 1 , 1 5 3 , 1 63, 1 64,
Proust, Marcel, 235 1 68, 1 84, 1 89 n. 1 e 3, 1 90 n. 10,
Pushkin, Alexander Sergueievitch, 1 96, 220, 225
67, 222 Schlegel, August Wilhelm, 1 90 n. 10
Schlegel, Friedrich, 47, 1 90 n. 10,
R 222
Schmidt, Conrad, 43, 77
Rabelais, François, 1 65, 2 1 3, 2 14,
Schopenhauer, Arthur, 69, 1 24,
2 1 5, 2 1 6
1 37, 1 38, 1 4 1 , 1 42, 143, 1 50,
Racine, Jean de, 1 44
1 5 1 , 266
Rákosi, Mathias, 32
Scott, Walter, 1 1 2, 1 94, 2 1 7, 223
Rembrandt, Harmensz van Rijn,
Shakeaspere, William, 34, 75, 76,
74
97, 1 02, 1 06, 1 1 2, 1 44, 1 70, 2 14,
Restif de la Bretonne, Nicolas­
254, 257, 266
Edme, 209, 2 1 7
Sickingen, Franz von, 73, 258
Révai, József, 3 1 , 3 2
Simmel, Georg, 22, 1 22, 157
Í NDICE DE NOMES + 2 75

Sinclair, Upton, 234 u


Smith, Adam, 49
Uhland, Johann Ludwig, 250
Smolett, Tobias, 2 1 7
Usievitch, Elena, 30, 3 1
Sócrates, 1 5 1
Sófocles, 50, 249
V
Solger, Karl, 48, 57
Sorel, Georges, 23 Vico, Giambattista, 43, 64. 1 96
Spengler, Oswald, 133, 1 5 7 Visher, Friedrich Theodor, 68, 69,
Stalin (Iossip Vissarionovitch 70, 1 3 1 , 1 32, 1 66, 1 67, 1 68, 1 84,
Djugashvili) , 26, 28, 29, 57, 60, 1 85, 189 n. 3, 249, 250, 253,
66, 78, 80, 8 1 , 82, 83, 84, 238, 254, 265, 267
239 Voltaire (François Marie Arouet) ,
Stendhal (Henri-Marie Beyle) , 1 44, 1 45, 163, 1 72, 1 75, 1 76,
2 1 0, 222 1 79, 18� 1 94, 1 99, 2 1 6
Sterne, Laurence, 22 1 , 222 Voss, Johann Heinrich, 52
Steuart, James, 49
Stifter, Adalbert, 1 32 w
Strauss, David Friedrich, 1 3 1
Struve, Piotr Bernardovitch, 79 Wagner, Richard, 1 24, 1 25, 1 26,
Sue, Eugene, 100, 1 1 0 1 27, 1 38, 1 39, 1 40, 1 4 1 , 1 43,
Swift, Jonathan, 1 63, 1 66, 1 7 1 , 1 76, 1 44, 1 5 1 , 155, 266
1 78, 1 87, 1 89- 1 90 n. 4, 2 1 5, 2 1 6, Webe� Max, 23-24
217 Winckelmann, Johann Joachim,
1 53
T
z
Taine, Hyppolite, 2 1 , 70
Tchernichevski, Nikolai Zhdanov, Andrei A., 28
Gavrilovitch, 23, 67, 68, 249- Zola, Émile, 1 06, 1 8 1 , 1 94, 2 1 1 ,
267 230, 23 1 , 232, 233, 234
Thackerey, William Makepeace,
220
Tolstoi, Liev Nikolaievitch, 24, 30,
34, 79, 1 02, 1 1 3, 1 70, 1 8 1 , 2 10,
2 1 2, 222, 226, 232, 24 1 ,
Tõnnies, Friedrich, 23
Trenev, Konstantin, 262
Trotski (Liev Davidovitch SBD / FFL CH I USP
b . Flore stan Fern ande s Tom bo : 343552
Bronstein) , 26, 29 B i
DOAC .6.0 I FAP-L IVRO S VI
Twain, Mark, 175 .A quisiç. ão :
LIVR INHO
Proc . 2009 /1 6720-7 / MEU
5,60 9/2/2 01 1

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