Capitulo Os Reis Taumaturgos
Capitulo Os Reis Taumaturgos
Capitulo Os Reis Taumaturgos
Por
GLEUDSON PASSOS CARDOSO
Folha de Exame
Resultado Obtido:____________________________________
Banca Examinadora:
______________________________________________
Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçu Fraga
(Orientadora – PPGH-PUC/ SP)
________________________________________________
Profa. Dra. Margarida de Souza Neves
(Examinadora Externa - PPGH-UFF)
_________________________________________________
Profa. Dra. Marina Maluf
(Examinadora Interna – PPGH-PUC/ SP)
____________________________________________________
(Suplente)
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................................06
APRESENTAÇÃO
“Creio indispensável manejar uma relação mais fluida e complexa entre as instituições ou
classes e os grupos intelectuais. Inclusive por sua condição de servidores de poderes, estão
em contato imediato com o forçoso princípio institucionalizador que caracteriza qualquer
poder, sendo portanto os que melhor conhecem seus mecanismos, os que mais estão
treinados em suas vicissitudes e, também, os que melhor aprendem a conveniência de outro
tipo de institucionalização, o do restrito grupo que exerce as funções intelectuais. Pois
também por sua experiência sabem que se pode modificar o tipo de mensagens que emitem
sem que se altere sua condição de funcionário, e esta deriva de uma intransferível
capacidade que procede de um campo que lhe é próprio e que dominam, pelo qual se lhes
reclama serviços, que consiste no exercício das linguagens simbólicas da cultura. Não
somente servem a um poder, como também são donos de um poder.”
(Angel Rama, A Cidade das Letras, p. 47 e 48).
advento do homem moderno, o discurso letrado marcou notória posição política, sobretudo
em favor do anseio civilizatório e da lógica industrial, tendo a literatura e a imprensa como
máquinas de enunciação.
contexto social de Fortaleza na virada de século, a identificar suas distinções dos aspectos
culturais e ideológicos daqueles tempos de transição. Por conta da sua abrangência temática
sem uma delimitação mais consistente e, sobretudo, seja pelas discrepâncias ou similitudes
que o assunto sempre reportou-se às demais sociedades literárias existentes no século XIX, foi
preciso mapear os registros históricos deixados por esses núcleos letrados ao longo do tempo,
no sentido de pontuar as práticas letradas de cada grupo diante das transformações históricas
ocorridas.
Na época em que permaneceu sob a orientação das atividades do Programa
Especial de Treinamento (PET/ CAPES - UFC), a pesquisa procurou rever a documentação
que fora coletada e, partindo para a discussão com a produção bibliográfica afim, montou a
problemática que, inicialmente, nos debates acadêmicos realizados em diversos seminários,
simpósios e outros ciclos acadêmicos, delimitou-se às Agremiações Literárias na Construção
do Ideário Moderno: Um Discurso de Poder no Beletrismo Cearense (1873 - 1904). Esta
temática possibilitou montar um projeto de pesquisa que se propôs a identificar as
peculiaridades da elite letrada cearense, seus modelos políticos e institucionais, frente a
formação do pacto oligárquico em vias de realização na transição entre os regimes
monárquico e republicano.
Contudo, no ambiente do Programa de Estudos Pós Graduados em História
Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ao longo das frutíferas discussões
realizadas tanto nos cursos quanto nos eventos acadêmicos, bem como nas atividades de
orientação, a pesquisa foi ganhando maior definição teórica, metodológica e historiográfica
contribuindo, assim, para a discussão que aqui se apresenta.
A Historiografia do Ceará e os trabalhos literários que tratam daquela
sociedade no século XIX ignoraram as relações entre os campos de ação dos grupos letrados.
Seja no âmbito da imprensa ou da literatura, habitualmente, tem-se feito a delimitação dos
meios intelectuais como campos de atuação distintos, em que o trânsito e a proximidade
dessas áreas tornou-se praticamente invisível, acabando por desconsiderar as estratégias de
dominação simbólica e as relações de suas atividades como mecanismos políticos. Entretanto,
conforme foi constatado, mediante as trajetórias intelectuais estudadas, literatura, imprensa e
política foram instâncias fundantes do universo letrado cearense durante a virada de século, a
configurar estas formas de dominação e exercício de poder nas práticas letradas. Esta
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consideração inicial do presente trabalho mostra que, ao dialogar com a historiografia local e
com as fontes, foi possível compreender que tais atividades constituíram-se nestes campos
interligados, configurando as produções de época.
Na conjuntura que o Brasil atravessava em meados do século XIX, as
agremiações e sociedades literárias caracterizaram-se como espaços de uma prática intelectual
e política. Foi assim, por exemplo, nos movimentos de 1873 o combate entre os positivistas
da Academia Francesa e o tradicionalismo católico e, da mesma forma, com o Clube Literário
(1886) como porta-voz do discurso abolicionista de 1881/1884, nos campos da literatura e da
ciência. Tais momentos tornaram-se importantes referências para os letrados das décadas de
1890 e 1900, conforme será observado.
Para compreender a atuação desses espaços durante os primeiros anos do
regime republicano, torna-se de fundamental importância perceber a formação e a trajetória
dos sujeitos sociais presentes nos movimentos intelectuais e políticos do período. Suas
referências políticas e literárias, permitiram vislumbrar a inserção dos discursos letrados no
processo sócio-político local, a sua atuação na imprensa partidária e nos periódicos
literários, a formação de tais espaços na congratulação dos seus interesses, bem como a
construção do ideário ilustrado cearense para o Estado e Nação brasileiros diante da
transição política. Tais enfoques permitiram pontuar o papel das sociedades literárias da
década de 1890, quando a instabilidade política entre a Monarquia e a República cedeu
lugar às disputas personificadas nas oligarquias locais, que se velavam nas fachadas
partidárias e ideológicas, durante a organização do novo regime, na construção das novas
instituições nacionais. Assim, o percurso de tais questionamentos possibilitou a capitulação
deste estudo, a fim de que possa contribuir para a discussão já realizada pela historiografia
política e literária cearense, no sentido de mostrar de que forma esta abordagem propõe-se
a tornar menos obscuros alguns dos aspectos já elencados.
A proposta do Capítulo I – Práticas Letradas, Imprensa e Política no
Espaço Social Cearense – é cartografar o jogo entre as forças políticas e a atualização das
relações de poder colocadas no espaço social cearense, a perceber as especificidades
narrativas e discursivas dos letrados na virada de século. Para compreender os embates que
marcaram a transição entre Monarquia e República, o primeiro tópico, intitulado
Tradicionalismo e Vanguarda nas Imprensas Política e Literária Cearenses, propôs-se a
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analisar o embate ideológico entre as facções oligárquicas da sociedade cearense nas disputas
pelo poder local, mediante um ensaio cartográfico da estrutura política e sócio-econômica
durante aquela conjuntura.
A tentativa de formarem naquele território entre os segmentos sociais uma
opinião pública que correspondesse aos anseios por remodelar a velha estrutura de poder ao
discurso da ordem sócio-política moderna, demarcaram-se novos posicionamentos na
imprensa cearense que se estabeleceram a partir de um diferencial lingüístico e temático
discursivo, diante das diversas posturas político-partidárias já existentes. Distinguiram-se
então jornalismo partidário, representante dos interesses dos chefes políticos tradicionais,
incluindo comerciantes e alguns profissionais liberais, e o jornalismo literário, ligado ao grupo
dos “homens de letras” que, em maioria, eram oriundos do primeiro grupo. No primeiro, as
linhas editoriais tinham como prática político-discursiva a calúnia, difamação e ataques
diretos à imagem pública dos adversários políticos. Já o segundo, utilizava-se dos artifícios
metafóricos e estéticos da literatura para atrair e ganhar a opinião pública.
Mas, se o jornalismo partidário adotou práticas políticas retrógradas, para a
emergência da época o jornalismo literário ou intelectual tornou-se solidário à ordem
burguesa. Elaborando uma sofesticada gama discursiva alicerçada nas teorias modernas do
racionalismo, cientificismo e evolucionismo, foi ganhando sistemática plasticidade,
concomitante a transição política e a redefinição institucional brasileira entre os anos de 1870
e 1890. Sobretudo, a partir dos pressupostos eurocêntricos, a geração conhecida por Mocidade
Cearense aprimorou os meios de dominação simbólica e elaborou um corpo discursivo
composto por uma leitura orgânica sobre fatores e elementos da realidade local, a montar uma
máquina literária que legitimou sua ação política nas práticas letradas daquele território social,
para manipular a opinião pública em favor dos seus interesses facciosos.
Na feitura deste tópico, foram analisados as seguintes fontes hemerográficas:
os jornais “Pedro II”, “A Constituição”, “O Cearense” e o “Gazeta do Norte”, que
possibilitaram identificar os interesses personalistas, sob as legendas partidárias, das famílias
tradicionalistas que disputavam a administração pública, e a natureza de suas práticas
políticas. Os Relatórios do Presidente da Província do Ceará dos anos de 1885, 1886, 1887 e
1888, serviram para mapear os interesses que caracterizaram o espaço social estudado, os
problemas enfrentados pelos administradores com as querelas facciosas do cotidiano local. Da
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emergentes da capital. Ainda quanto à temática das secas, o romance “A Fome” e o livro de
memórias “Scenas & Typos”, ambos de Rodolfo Teófilo, foram imprescindíveis para
perceber como a potência estética desse autor do Realismo/ Naturalismo cearense leu esse
fenômeno como agente do progresso (diferentemente, em muitos casos, dos que preservaram
o mesmo estilo), favorecendo a manipulação dos enunciados coletivos operando por constituir
uma imagem heróica do bio-tipo cearense. As revistas “A Quinzena”, da “Academia
Cearense” e a “Revista Trimestral do Instituto do Ceará” contribuíram no sentido de mostrar
como estas leituras produziram poderosos enunciados que foram proferidos e experimentados
por esta geração de intelectuais até a primeira década deste século, a comporem um ideário de
Estado e Nação brasileiros propondo novos modelos institucionais.
Na eminência da queda do Segundo Reinado, a Mocidade Cearense, que
outrora participara da Academia Francesa e do Movimento Abolicionista, mobilizou-se em
prol da emergência por modelos institucionais que pudessem garantir a ordem política e
social. Desta feita, referendou-se nas duas campanhas em nome do empreendimento
civilizatório, com o argumento político-moral de combater as antigas estruturas de poder que
corroboraram para os problemas daquela conjuntura nacional.
Sob a bandeira de teorias eurocêntricas como o evolucionismo de Darwin e
Spencer, o cientificismo de Richet e Begehot, o determinismo de Buckle e Taine e o
positivismo de Comte e Littré, a Mocidade Cearense elaborou um sólido discurso no final da
década de 1880 que dizia-se fazer frente às antigas estruturas políticas e culturais como o
patriarcalismo, o mandonismo local, o ruralismo e o escravismo, a lançarem novos
parâmetros institucionais. No intuito de angariar prestígio político e social e consolidar cada
vez mais um público leitor em Fortaleza, a Mocidade ocupou-se do espaço do Clube Literário
e do seu órgão “A Quinzena” (1887 - 1888), adentrou na esfera pública a compor uma
sistematização nas suas práticas discursivas. Referendada nos diversos campos do
conhecimento, a congregar os intelectuais que trabalharam em favor da manipulação de
enunciados coletivos na Academia Francesa e no Movimento Abolicionista, aquela revista
relacionou os estudos de natureza etnográfica, historiográfica, filosófica, sociológica e
literária a formarem uma máquina literária, na tentativa de produzir desejos no território da
cidade, em que sua leitura social adentrou nas lutas políticas corroborando para a aceitação da
ordem burguesa, conforme os interesses das elites de Fortaleza.
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cocomitante à ação das diversas facções partidárias, políticas e oligárquicas que disputaram a
sua representatividade na configuração do poder local, visando a administração pública,
durante o governo provisório. É válido salientar que na Padaria Espiritual serão identificados
significativos diferenciais, temático, lingüístico, discursivo e sobretudo social, diante da
historicidade dos intelectuais cearenses e dos grupos políticos da época, distingüindo suas
práticas letradas calcadas na experiência cotidiana e origem dos seus sócios.
A gama documental submetida à análise neste tópico inicia-se nos estatutos
das respectivas agremiações estudadas, a fim de perceber os direcionamentos plausíveis de
cada engajamento, mediante às cláusulas que ensaiaram certa fisiologia burocrática, visando
legitimar a ação política destes indivíduos. Dois pequenos jornais, “A Voz do Povo” e “O
Norte”, tiveram crucial relevância para identificar os interesses políticos de facções que
atuaram na formação da nova ordem nacional durante os governos provisórios locais, bem
como os documentos de época transcritos no livro “Dactas & Factos para a História do Ceará:
Em Commemoração ao Centenário do Jornalismo Cearense e à participação do Ceará na
Confederação do Equador (1824 - 1924)”, do Barão de Studart. Diversos textos estampados
nos editoriais e programas dos periódicos “A Quinzena”, “O Pão... da Padaria Espiritual”,
“Iracema- Revista do Centro Literário” e “Revista da Academia Cearense”, foram
fundamentais para perceber, no geral, o posicionamento das respectivas sociedades literárias
frente às disputas políticas da época. O livro de memória “Novos Retratos & Lembranças e os
Manuscritos Inéditos”, de Antônio Sales, bem como o “Diccionario Bio-bibliographico
Cearense”, do Barão de Studart, serviram para mapear a trajetória dos principais intelectuais
por entre os jornais, clubes partidários e sociedades literárias, no sentido de identificar alguma
distinção no seu posicionamento político frente às emergências nacionais.
No Capítulo II, As Repúblicas das Letras Cearenses: A “Velha” Mocidade
e a Padaria Espiritual diante das Emergências Nacionais, o objetivo é diferenciar os
anseios políticos mobilizadores das práticas letradas daquelas agremiações literárias que
participaram das disputas políticas durante a reconstrução da nova ordem nacional, nos
primeiros anos do golpe republicano. Sendo a Padaria Espiritual a congratulação de
intelectuais que terá uma especial apreciação no último capítulo deste estudo, é percebido a
necessidade de diferenciá-la das suas contemporâneas, mediante a distinção dos referenciais
temáticos e discursivos.
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participou dos movimentos de 1870 e 1880) e dos Novos do Ceará (sujeitos recém ingressos
no movimento republicano local e oriundos dos setores médios baixos rurais e urbanos) foi
precisa para adentrar no universo das práticas letradas e discursivas da Padaria Espiritual. A
documentação utilizada neste tópico foi o periódico do Centro que possibilitou compreender a
peculiaridade desta agremiação no sentido de promover a denominada “reconstrução moral da
nação” a partir da instituição literária.
Como foi em relação ao Centro, a Padaria Espiritual herdou o veio literário da
revista “A Quinzena”. Contudo, distinguiu-se por reconhecer nas “letras e artes” o caráter
popular que elas poderiam comportar, a denotarem as verdadeiras instituições nacionais, bem
mais que se apropriar de teorias científicas ou a difusão de aspectos morais segundo as
ortodoxias positivistas propostas pelas agremiações contemporâneas.
A origem social dos padeiros foi, indubitavelmente, a maior referência para
compor a narrativa discursiva de “O Pão”, órgão da Padaria, que elaborou o que haveria de
ser os novos modelos institucionais brasileiros para aqueles tempos. Neste sentido, a análise
do último tópico deste capítulo, Letras & Artes para uma República do Povo: A Padaria
Espiritual e o Resgate das Instituições Populares, detém-se a identificar as principais
intensidades da experiência social e seus usos político e intelectual presentes em “O Pão”.
Desta feita, a documentação analisada foi o próprio periódico da Padaria
Espiritual, possibilitando reconhecer que lhe coube a distinção por elaborar um modelo
nacional baseado no cotidiano popular cearense, como bem mostra a sua produção literária e
periódica, mais que uma manifestação literária pré-modernista, de índole boêmia e jocosa,
como acostumou-se dizer na historiografia literária, e nem ao menos isso reconheceu a
historiografia política e social. Os livros de memória “Novos Retratos & Lembranças”, de
Antônio Sales, e “A Padaria Espiritual”, de Leonardo Mota, subsidiaram a compreensão da
feitura dos pressupostos institucionais elaborados pela agremiação mediante a origem social
dos “padeiros” e a sua trajetória política e intelectual.
O terceiro e último capítulo, intitulado Pão d’ Espírito, Fornadas Políticas e
Leituras Sociais, é dedicado exclusivamente à Padaria Espiritual. Como já pôde ser
percebido, diferente das referências e intensidades que alimentaram os anseios da Mocidade
Cearense, para a Padaria Espiritual a maior referência dos seus sócios na produção literária
foram as manifestações da vida popular. Desta feita, “O Pão” destacou-se dos demais
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periódicos literários aqui analisados por comportar simultaneamente em sua potência estética
os seguintes aspectos das tensões cotidianas naquela realidade: preservação dos enunciados,
conteúdos semânticos e modos de vida popular abalados com o avanço dos agenciamentos de
enunciação da cultura burguesa; a inserção de sua máquina literária no circuito de idéias do
período, concomitante os processos intitucionalizantes com a consolidação da ordem
republicana, e, por fim, a criação de linhas de fuga e de desterritorialização como forma de
fugir da captura da vontade operada pela produção simbólica que visava atualizar a ordem
capitalista naquela realidade.
À primeira fase de “O Pão” (1892) deve-se os traços que mais caracterizaram
a Padaria, sobretudo, no concernente aos aspectos que a distinguiram no âmbito da produção
literária da época. A boemia, o sarcasmo, a jocosidade e o humor, como bem coloca a
historiografia literária cearense, foram suas principais características estéticas ou posturas.
Contudo, no âmbito de suas práticas letradas, é permitido perceber que o órgão do grêmio
trouxe posturas que se reportaram às preocupações políticas e intelectuais durante a
reconstrução da nova ordem nacional. Na sua atividade estética “O Pão” diversas vezes
reportou-se aos traços cotidianos da cultura popular, hábitos, valores e costumes que
evidenciaram de fato as instituições do povo brasileiro, ainda que segundo uma temática
regional.
Neste sentido é que o tópico Tipos Populares para as Instituições Nacionais
tenta elucidar a natureza discursiva que marcou esta primeira fase da Padaria, também
presente em toda a sua produção periódica; a maneira que as intensidades das experiências
cotidianas dos padeiros foram incorporadas em seus textos, a desdobrarem-se em
apontamentos que indicaram parâmetros institucionais frente a reorganização política dos
segmentos sociais que definiram a nova ordem nacional.
O material analisado neste item começa pelo próprio “O Pão”, o maior registro
da agremiação, a fornecer os elementos poéticos, narrativos e discursivos, bem como os
impulsos do universo experimental e cotidiano dos sócios da Padaria. Da mesma forma, os
livros de memórias “Descrição da Cidade de Fortaleza” (Anto. Bezerra), “Novos Retratos &
Lembranças” (Anto. Sales), e “A Padaria Espiritual” (Leonardo Mota) foram mais detalhistas
no sentido de pontuar os aspectos sociais da vida na cidade de Fortaleza, durante a virada de
século, bem como o dia a dia dos padeiros nas suas atividades literárias. Como literatura de
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outros textos de estética simbolistas e decadentistas traçaram “linhas de fuga” como forma de
inquietação subjetiva, a não se deixarem capturar pelos agenciamentos de enunciação e
máquinas discursivas produtoras de desejos que primaram pela consolidação da ordem
republicana, bem como pelo o avanço da cultura burguesa naquela realidade. Desta feita, o
referido tópico procura mapear este silencioso momento de tensão que houve nos textos de
Lopes Filho, Lívio Barreto e Cabral de Alencar quando, no âmbito daquela conjuntura
política, quando encontrou-se em vias de consolidação o poder local nas mãos da oligarquia
acciolina e, da mesma forma, no âmbito nacional, quando o regime republicano ganhava a
passos largos a legitimidade com o acerto entre os grupos oligárquicos na “Política dos
Governadores”.
Neste item foram submetidos à análise os textos simbolistas e decadentistas
publicados em “O Pão”, contos e poemas, dos três primeiros expoentes da escola finissecular
no Ceará. Conforme será observado, tais registros literários revelam estratégias e artifícios
poéticos discrepantes em relação aos anseios institucionais do período. Do jornal “A
República”, da facção oligárquica Pompeu-Accioly, que consolidou o regime republicano
naquele território, extraiu-se os elementos discursivos que se detiveram na cooptação dos
indivíduos pelo pacto firmado entre as elites locais. Portanto, dos textos que foram escolhidos
para a análise historiográfica, pretende-se perceber a composição da potência estética
Decadência e suas estratégias de fuga em relação ao domínio político moderno na esfera
subjetiva.
A partir de tal percurso este estudo procurará veredar sua análise no campo da
discussão historiográfica, buscando, assim, dar a sua contribuição para o debate acadêmico
em torno da cultura e da política brasileiras. E, mais especificamente no caso do espaço social
e político cearense, tais apontamentos e problemáticas detiveram-se no sentido de levar ao
debate historiográfico as variadas formas de inserção do discurso intelectual na sociedade, na
compreensão dos processos e transformações dados no campo institucional brasileiro
daqueles tempos. Sobretudo, pretendeu-se mostrar que é no campo subjetivo que as relações
de poder são agenciadas, a se atualizarem nas relações cotidianas, e que instrumentos de
produção simbólica como as práticas letradas podem utilizar-se de meios como as narrativas
discursivas a favorecer os interesses individuais ou facciosos, a produzirem desejos que
podem legitimar instituições.
21
* * *
22
CAPÍTULO
I
Práticas Letradas, Imprensa e Política no Espaço Social
Cearense
“É um facto indiscutivel o incremento que a literatura brazileira tem tido nestes
ultimos annos, e uma das mais appreciaveis caracteristicas deste desenvolvimento é a
„entente cordiale‟ que se vai estabelecendo entre os homens de lettras, a reciprocidade de
sympathias que vai fortalecendo o espirito de classe e lançando as bases de um comercio de
ideas, que nunca existiu... “ (Antônio Salles, 1897).
1
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma Literatura Menor. – Rio de Janeiro: Imago
Editora; 1977. P. 07 – 14.
2
BOURDIEU, Pièrre. Meditations Pascaliennes. – Paris: Seuil; 1997 (Collection Liber). P. 98 – 100 e O
Poder Simbólico: Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 1998.
23
complexidade das relações de poder nas esferas social e política; e a este movimento de tensão
que atualiza as mais variadas intensidades humanas, deve-se o curso da História.
Preservar as antigas estruturas de poder sempre caracterizou o objetivo maior
dos grupos dominantes no Brasil. Em diversos momentos da nossa vida social e política, os
segmentos que compõem a esfera dominante brasileira ganharam legitimidade histórica e
institucional ao longo das transformações no tempo. Um elenco interminável de movimentos,
tensões, confrontos armados e revoltas internas, da colonização aos dias hodiernos, ilustraram
perfeitamente que as elites brasileiras saem sempre à frente na definição da configuração
nacional, ainda que fosse notória a inquietação por parte da grande maioria que compõe os
setores menos privilegiados da população. Em boa medida, a força que neutraliza a
atualização das intensidades potencializadas nos setores populares, deveu-se ao sucesso das
formas diferenciadas de preservação das estruturas tradicionais de poder, no seu exercício
violento de captura e submissão dos demais segmentos sociais.
A história mostra os níveis de experiência do passado que ajudaram a
configurar a atual estrutura de poder no Brasil. Os princípio da autoridade e da obediência, da
ordem e do mando, desde a colonização, foram os componentes principais para alimentar o
“espírito de facção” agenciador das instituições e dos governos, “amparados pelo costume e
pela opinião” - bases axiológicas que consolidaram a mentalidade do poder patrimonial na
cultura política brasileira3. É tão demasiadamente característico e peculiar a manutenção desta
esfera de valor nas relações sociais e trocas simbólicas que, até mesmo nos momentos de crise
política e institucional ao longo da história, os grupos dominantes – proprietários de terras,
chefes políticos tradicionais, comerciantes, intelectuais - ainda com seus interesses em
confronto, conseguiram preservar o seu exercício de poder sempre com a mesma estratégia: a
política da conciliação4. Tal aspecto, é louvado por designar precisamente que a potência de
plasticidade da cultura tupiniquim por adaptar, em determinado aspecto, os tipos étnicos que
compõem o povo brasileiro, é a mesma que consegue fundir concepções discrepantes como o
Liberalismo e o Tradicionalismo na mesma esfera política5. E, tanto pelos moldes
3
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. - São Paulo: Cia das Latras; 1995 (26ª ed.). P. 79 – 86.
4
MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa Montenegro. O Trono e o Altar: As Vicissitudes do
Tradicionalismo no Ceará (1817 - 1978). – Fortaleza: BNB; 1992. P. 45 e 76.
5
Nas primeiras partes do seu precioso estudo que alude aos movimentos políticos emancipatórios em que o
Ceará participou frente à política nacional, é pertinente a consideração que J. Alfredo Montenegro faz sobre a
esfera axiológica que comporta num mesmo plano a acomodação das idéias liberais em um terreno político
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tradicionalistas quanto pelos anseios liberais de outrora6, o que ainda perdura nas duas maiores
instituições brasileiras, é uma realidade política e social conservadora que favoreceu a idéia de
uma máquina de Estado gerenciada por interesses particulares e vitalícios, e a imagem de uma
Nação formada por cidadãos espoliados, miseráveis e extorquidos.
Entender um pouco deste agenciamento que vem configurando as instituições,
originalmente da formação e do desenvolvimento da estrutura sócio-política brasileira, em vias
gerais, é um dos objetivos a que se propôs o respectivo estudo. A compreender as forças
históricas, as intensidades da esfera social, que atualizaram relações de poder na construção
das instituições nacionais com a legitimação do regime republicano, as práticas políticas no
Ceará de meados do século XIX propiciam um campo fértil de análise para pontuar alguns
mecanismos de articulação do poder dominante naquele espaço. Sobretudo, para distinguir as
formas de coação e captura dos indivíduos daquela realidade a partir da opinião, um segmento
dos grupos tradicionais, que se referendavam em parâmetros sócio-culturais eurocêntricos
como a ilustração e a cultura das belas letras, adentrou no campo dos embates colocados para
viabilizar a regeneração da ordem, em um momento de instabilidade social e política
ocasionada, no âmbito nacional, pela abolição dos escravos e a queda do Segundo Império e,
no caso particular daquela realidade, pelo jogo de interesses dos diversos setores da sociedade
cearense daquele período.
Entretanto, da mesma forma em que este segmento abastardo encampou as
lutas políticas e institucionais, um outro advindo dos setores menos privilegiados da
sociedade, amparado pelo mesmo instrumental de práticas letradas, adentrou no campo de
tensões colocado, a fim de angariar papéis representativos para o seu grupo social.
marcado por práticas tradicionalistas de exercício do poder: “(...) a ideologia tradicionalista recebe vestes
várias na medida em que é retrabalhada em função desta ou daquela circunstância. O discurso a que se
amolda conserva algumas matrizes originárias, acrescentando outras, ou, sem, efetuar propriamente tais
acréscimos, dinamiza com vigor as mesmas matrizes, articulando de qualquer modo uma estrutura semântica
que tem muito do universo regional das especificidades que oferece, atenuando o rigor retórico, deixando de
lado recursos estilísticos clássicos ou barrocos [referendando-se aos discursos de época], levando-o mais ao
nível de percepção dos destinatários da mensagem. Da mesma plasticidade compartilha o Liberalismo, pela
filiação comum ao Racionalismo, ao imanentismo normativista que desenvolve, trancando o acesso
verticalizante à realidade subjacente. (...). O caráter de ideologia já traz embutida a intencionalidade (...) na
hipótese aqui ocorrente, em que tanto o Tradicionalismo como o Liberalismo vêm preconstituídos, com toda
a problemática que isso acarreta, ensejando um processo secundário de redimensionamento, uma vez que
não pode eximir-se da função precípua de responder às questões levantadas por outras circunstâncias ”.
Idem. P. 43 e 44.
6
SILVA DIAS, Mia. Odila Leite da. “Ideologia Liberal e a Construção do Estado no Brasil” IN: Anais do
Museu Paulista. T. XXX. – São Paulo; 1980/ 1981. P. 211 – 225.
25
Mencionou-se, na verdade, os dois segmentos letrados que atuaram na esfera pública do Ceará
no século XIX: primeiramente, a Mocidade Cearense e, em segundo, os Novos do Ceará.
Ambas gerações participaram das campanhas em prol da regeneração política e institucional
no espaço cearense durante a mudança dos regimes monárquico para o republicano, sobretudo,
no período entre os anos de 1873 e 1904. Estes grupos propuseram em suas máquinas
discursivas, através da atividade de imprensa, apontamentos para modelos institucionais
elaborados a partir das suas referências intelectuais, trajetórias políticas, leituras, experiências
sociais, cotidianas e suas matérias subjetivas. Em comum, o maior destaque que tiveram deu-
se no âmbito de suas práticas letradas, em que se sobressaiu o caráter gregário de formarem
agremiações, clubes e sociedades literárias, dentre outras ações e posturas, como forma de
consolidar forças e materializar seus objetivos de grupo, em busca de legitimar o seu exercício
político naquele território social.
A manter suas especificidades, em tais congregações, detentoras de uma
atividade estética7, seus sócios encontraram-se na missão de agir sobre as transformações
ocorridas no território social de Fortaleza, trabalhando os enunciados coletivos daquele espaço
de acordo com o papel dos intelectuais em uma cidade das letras8. Assim, deve ser elencado o
anseio por legitimar uma esfera de poder dominante, em certa medida discrepante daquela
realidade social (cultura de corte e das belas letras, teorias e esfera axiológica eurocêntricas),
sendo a forma de tornar proficuamente moderno a tradicional estrutura de poder vigente, a
partir de um sofisticado instrumental de práticas políticas do mundo moderno – a cultura
letrada. O abalo das instituições imperiais e a emergência para a reconstrução da ordem social
e política durante a primeira década do regime republicano, aliados à possibilidade do uso das
7
BARKHTIN, Mikhail. Questões de Estética e de Literatura. A teoria do Romance. – São Paulo: UNESP/
HUCITEC; 1998 (4ª ed.). P. 16 – 20.
8
Como a cidade moderna havia se tornado um território onde a comunicação e os símbolos da cultura
humana passaram a ter maior velocidade na sua transmissão, sobretudo com o desenvolvimento da imprensa,
os segmentos letrados passaram a exercer maior influência sobre os demais setores da sociedade; senão pela
sua função na burocracia e nas instituições dos Estados, foi por conta do seu desempenho em produzir
máquinas desejantes, propensas a criar sentimentos identitários, ideários nacionais, a agir sobre um espaço
social segundo uma idéia de sacerdócio na pólis: “As cidades desenvolvem suntuosamente uma linguagem
mediante duas redes diferentes e superpostas: a física, que o visitante comum percorre até perder-se na sua
multiplicidade e fragmentação, e a simbólica, que a ordena e interpreta, ainda que somente para aqueles
espíritos afins, capazes de ler como significações o que não são nada mais que significantes sensíveis para os
demais, e graças a essa leitura, reconstruir a ordem. Há um labirinto das ruas que só a inteligência
raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem. Esta é a obra da cidade letrada. Só ela é capaz de
conceber, como pura especulação, a cidade ideal, projetá-la antes de sua existência, conservá-la além de sua
execução material, fazê-la sobreviver inclusive em luta com as modificações sensíveis que introduz
incessantemente o homem comum”. RAMA, Angel. A Cidade das Letras. – São Paulo: Brasiliense; 1985.
26
9
SAMARA, Enir Mesquita. “Patriarcalismo e Poder na Sociedade Brasileira (Séc. XVI a XIX)”. São Paulo:
IN: Revista Brasileira de História. V. 11. Nº 22. P. 07 – 36 e PINHEIRO, Francisco José. Ceará: Relações de
Trabalho na Pecuária (1680 - 1790). – Fortaleza: MIMEO; 1993.
10
Segundo Edgard Carone no seu trabalho de fôlego sobre a República Velha, “Oligarquia significa
predomínio de grupos dominantes” CARONE, Edgard. A República Velha (Evolução Política). - São Paulo:
Difusão Européia do Livro; 1971. P. XI, V. II. Da mesma forma, pontuar alguns momentos da história política
do Ceará em que as tradicionais famílias oligárquicas digladiaram-se pelo domínio da máquina pública em
favor dos seus interesses de facção, não é tarefa difícil para os historiadores. Como pode ser constatado tanto
nas violentas brigas internas entre os chefes políticos locais quanto nos movimentos emancipatórios, os
conflitos políticos que se deram ao longo da formação da sociedade cearense ganharam conotação
personalista. Ou seja, diante dos momentos de transição e conjunturas - desde os alaridos na emancipação da
colônia e nas insurreições durante formação do Estado brasileiro no Primeiro Reinado (1817), no período
regencial (1832), na legitimação do Segundo Império (nas tensões políticas cotidianas) ao golpe republicano
(sobretudo durante os governos provisórios, em 1891) o favoritismo com a máquina pública em benefício das
poderosas famílias levou as facções oligáquicas locais às práticas mais sangrentas, estendendo a sua violenta
influência nas demais esferas sociais, angariando apoio político para suas empreitadas, como pode ser
constatado, quanto as origens, nos relatos de época dos viajantes estrangeiros (KOSTER. Henry. Viagens ao
Nordeste do Brasil. – São Paulo: Editora Nacional; 1942, Coleção Brasiliana); nos estudos mais recentes
sobre os movimentos emancipatórios de 1817 e 1824 (MONTENEGRO, João Alfredo. Op. Cit. e NOBRE,
Geraldo. Introdução à História do Jornalismo Cearense. – Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense; 1974 e “A
Revolução de 1817”. IN: SOUSA, Simone de. História do Ceará. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha;
1994. P. 131 – 143, ARAÚJO, Mia. Do Carmo Ribeiro. “A Participação do Ceará na Confederação do
Equador” IN: SOUSA. Op. Cit. P. 145 - 154); na revolução regressista de 1832, contra a facção oligárquica
27
Práticas de terror como, por exemplo, o banditismo, foram legítimos instrumentos da ação
política dos chefes e dos coronéis do sertão cearense, mantendo o seu poderio sobre a
população. Esses mecanismos, dentre outros como a calúnia, difamação, exonerações dos
cargos públicos, saques, empastelamento de jornais, eram antagonicamente utilizados para
legitimarem o poder de certas facções na máquina governamental. Ou seja, era promovendo
tensões sociais, coerção, violência física e ameaça corporal, que na montagem da política
imperial as famílias Alencar, Sousa e Madeira, Feitosa, Bezerra, Fernandes Vieira, Paula
Pessoa, Rodrigues, dentre outras, procuravam legitimar o seu domínio na máquina
administrativa, acusando a facção adversária que estava no governo de incapacidade para
controlar os conflitos cotidianos e restabelecer a ordem local11.
Sob o ódio que alimentou o espírito de facção nas famílias cearenses em suas
disputas históricas, as legendas partidárias ou objetivos político-ideológicos esmaeceram
frente à sede pelo poder apregoava, visando a posse do governo local12. Distintamente,
percebe-se que, paralelo ao processo político brasileiro, as oligarquias cearenses em
liberal do município do Crato liderada pela família Alencar, levanta-se a oligarquia do município de Jardim
sob o comando do comandante de armas Pinto Madeira na disputa pelo controle político da região do Cariri
(MONTENEGRO, J. Alfredo. Op. Cit. e “A Revolução de 1832” IN: SOUSA, Simone de. Op. Cit. P. 155 -
164); nas querelas familiares que tomaram conotação partidária durante o Segundo Reinado
(MONTENEGRO, Abelardo F. Os Partidos Políticos do Ceará. – Fortaleza: Edições UFC; 1980) e após o
golpe republicano em que os chefes oligarcas locais submetem-se à autoridade e à articulação política feita
pelo “raposa velha” Dr. Nogueira Pinto Accioly, chefe da maior oligarquia no Ceará até então conhecida, a
legitimar o golpe de 1889 e consolidar plenos poderes da sua facção (MONTENEGRO, Abelardo. Op. Cit. e
ANDRADE, João Mendes. “A Oligarquia Acciolina e a Política dos Governadores”. SOUSA. Op. Cit. P. 213
– 234.). Além destes estudos, inúmeros arquivos da Revista do Instituto do Ceará trazem maiores detalhes
dos movimentos políticos liderados pelas famílias tradicionais que buscavam a consolidação do poder local.
11
Os bandos armados a serviço dos coronéis e chefes políticos locais com o intuito de promoverem a
desordem social, muitas vezes eram presos permanente ou temporariamente pelos seus patrões que queriam
provar, através da opinião pública, a sua capacidade para manter a ordem local. Conforme nos aponta J.
Alfredo Montenegro, o banditismo tratava-se tão somente de uma extensão do patriarcalismo e da cultura do
privatismo que predominou nos grupos oligarcas em relação à máquina governamental: “Tal a extensão do
patriarcalismo, instrumento atroz de geração de antagonismo entre o poder público que forcejava por impor
e a ordem privada, cultivando a prepotência, a opressão, e os abusos dos potentados, proprietários
poderosos cujos séquitos contribuíam por demais para a desestabilização da paz coletiva, infestando os
sertões, as vilas de crimes de toda espécie, desde homicídios até afrontas, desrespeito e destituições de
agentes da administração (...)”. MONTENEGRO, João Alfredo. Op. Cit. P. 34.
12
Neste relatório do presidente da província em 1888, o texto mostra, em destaque, o quanto a violência dos
partidos políticos colocavam em risco a segurança pública: “Em honra do espírito de ordem que predomina
na população desta extensa província, e que ainda mais torna-se notável pela vivacidade com que se
interessa nas questões de assumpto commum, especialmente nas que se aggitam em rasão dos partidos
politicos, tenho a maior satisfação de affirmar a V. Exc. Que, jamais tive necessidade em tempo algum da
minha administração de adoptar medidas repreesivas contra qualquer pronunciamento attentatorio da
segurança e tranquilidade publica”. Relatório do Presidente da Província do Ceará, Dr. Enéas de Araújo
Torreão, ao passar a administração local ao Dr. Caio da Silva Prado em 21 de abril de 1888. Material
gentilmente cedido pela bolsista do PET de História da UFC, coletado do Arquivo Público do Ceará.
28
13
MONTENEGRO, Abelardo F. Op. Cit. P. 26.
14
Gazeta do Norte – Órgám Liberal. – Anno VIII, Nº 06. Fortaleza, 09. 01. 1888 (os jornais analisados neste
tópico foram identificados no Setor de Microfilmes da Biblioteca Pública do Ceará Menezes Pimentel,
Fortaleza/ Ce). São estes os detalhes finais do episódio narrado: “A desordem foi consummada depois de
concluída a eleição: já a mesa tinha o voto do Padre M. Cordeiro, contra o qual os nossos adversarios
reclamavam, já por estes havia sido formulado o seu protesto, já a eleição havia seguido todos os seus
tramites; quando os caudilhos da liga pretenderam impedir que a acta fosse redigida , consoante á lei e aos
factos occorridos; e como o não conseguissem, irritados e furiosos, dilaceráram-na e fizeram o conflicto.
Este é o facto; e para a verificação delle abra-se, como disse o „Cearense‟ um inquerito, mas dirigido por
auctoridades insuspeitas e imparciaes: não receiamos o resultado.”.
29
15
Conforme registrou o filho do antigo chefe liberal Senador Pompeu, num momento em que até a própria
campanha abolicionista no Ceará teria acompanhado as disputas partidária do período, “A esse tempo, as
approximações dos grupos adversos pela necessidade de luta pela vida; não no pensamento de abdicarem os
seus princípios e se recolherem à sombra da bandeira contrária, mas se secundarem pelo voto e formarem
colligações eleitoraes, na occasião dos pleitos representativos. Os Paulas [liberais do jornal „Cearense‟]
ligaram-se aos conservadores do „Pedro II‟, os Pompeus [liberais do jornal „Gazeta do Norte‟] aos da
„Constituição ‟[da família Freire, da ala do partido conservador liderada pelo Barão de Ibiapaba]. Foi no
convívio dessa união (...) que a „Constituição ‟ e a „Gazeta do Norte‟ fraternizaram para o fim commum da
emancipação dos escravos”. BRASIL FILHO, Tomás Pompeu de Sousa. In Memmoriam. Discurso sobre
(...) Justiniano de Serpa. – Fortaleza: Off graph/ Diário do Ceará; 1924. P. 07 e 08.
30
16
MONTENEGRO, Abelardo. Op. Cit. P. 42.
17
A incompatibilidade dos ideais da democracia burguesa e dos modelos político-filosóficos exteriores à
realidade brasileira foi pontualmente colocada por Sérgio Buarque e José Murilo de Carvalho. No primeiro, os
fundamentos personalistas e aristocráticos que moldaram os valores de nossa cultura patriarcal, não deixaram-
se neutralizar pelo avanço das idéias da liberal democracia, tendo estas que se adequar às peculiaridades da
nossa formação nacional, bem como na construção das nossas instituições durante as duas empreitadas
maiores da história política brasileira: a constituição do Estado brasileiro no Segundo Império e na Primeira
República (HOLANDA. Op. Cit. P. 182). E, no segundo, esta mania por tentar adequar à realidade nacional
modelos externos, sobretudo europeus, e, juntamente com a necessidade de construir um princípio de
cidadania, um auto governo, consistiram em difíceis tarefas para “construir quase do nada uma organização
que costurasse politicamente o imenso arquipélago social e econômico em que consistia a ex-colônia
portuguesa”. CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras: A Política Imperial. – São Paulo: Vértice:
Rio de Janeiro: IUPERJ; 1988. P. 107.
31
Dezembro” (da primeira versão oficial do partido conservador na província), caberia o papel
de defender as instituições nacionais mantidas pela tradição, bem como o apoio ao Imperador
segundo o centralismo político. Aos liberais cearenses, sob controle da tímida facção que
apoiou o empossamento do segundo imperador18, caberia garantir as liberdades individuais,
lutar pela autonomia e zelar para o bom funcionamento do pacto provincial. Em segundo, aos
dissidentes conservadores do jornal “A Constituição”, a ressonância nominal do próprio órgão
alimentaria a idéia de uma possível monarquia constitucional, defendida segundo os princípios
do constitucionalismo fincado no Liberalismo Clássico. Por fim, quanto o “Gazeta do Norte”,
como órgão de uma dissidência do partido liberal, poder-se-ia até pensar na possibilidade da
profusão de um ideal federalista democrático, e até mesmo de uma esperada campanha
republicana, representada por uma facção mais progressista, conforme daria a se entender.
Contudo, os interesses personalistas que prevaleceram acabaram por desmistificar qualquer
artifício retórico e discursivo; pois, qualquer ação política era direcionada de acordo com os
objetivos a serem alcançados.
Conforme mencionou-se em linhas supracitadas, estes grupos tiveram até
mesmo de superar seus traços personalistas e tirânicos para congratularem-se em torno de um
único objetivo: o governo provincial, a máquina administrativa. Tendo em vista as disputas
eleitorais de dezembro de 1887 para a formação das assembléias provinciais no ano seguinte,
deu-se a união das famílias Pompeu e Freire, de um lado, e Paula e Vieira, de um outro; ou
seja, liberais e conservadores dissidentes uniram-se, formando um grupo ascendente que
representava novos interesses na esfera dominante, tendo como adversária a coligação entre
liberais e conservadores das famílias mais antigas, representantes dos interesses tradicionais
que compunham a sociedade cearense, favoráveis ao jogo parlamentar da política imperial.
Como é possível de se notar, concomitante a união das facções, os jornais que as
18
Por quase duas décadas, pelo que se atesta, entre 1817 até 1837, o grande chefe liberal era o Senador José
Martiniano de Alencar e, consequentemente, ele e sua família concentravam as decisões políticas e
administrativas na província. Em virtude da perda do seu prestígio na política central e a sua saída da
presidência com a queda do regente Diogo Feijó no governo central, a oposição à esta facção é fortalecida e
funda-se o partido conservador no Ceará, sob o comando da família Fernandes Vieira, do Pedro II. Durante o
empossamento do Imperador, o partido liberal cearense, liderado pela família Paula Pessoa e pelo futuro
senador Tomás Pompeu, ficou coagido pela truculência conservadora (em uma possível vingança à época
vivida durante a administração do Senador Alencar), e em 1846, após a sucessão ministerial, lançaram o
jornal O Cearense. Ver: NOBRE. Op. CIT. P. 82; ARAÚJO, Mia. Do Carmo. Op. Cit. P. 118 e
MONTENEGRO, Abelardo. Op. Cit. P. 20 e 21.
32
representavam também uniram-se na mesma causa, juntamente com suas violentas práticas
políticas.
Afinal a Gazeta do Norte e a Constituição, aquella no dia 3 e esta
no dia 4 do corrente [quando fez-se a eleição no dia 29 de
dezembro de 1887] dignaram-se a dar aos seus leitores e ao
publico, os quadros da votação discriminada dos collegios do 2º
districto, que dispoem quasi todo elle de telegraphos. Foi uma
combinação mais que imediata foi um parto difficil e laborioso.
Mas afinal veio a luz o monstruoso feto, depois de tramado o
plano de validar a eleição de Coité; nullificar a de Pentecostes:
suspeitar a de Pendencia; além da alteração para mais, ou para
menos, em alguns collegios, do numero de votos attribuidos a
alguns candidatos contendores19.
19
“Eleição do 2º Districto”. O Cearense – Órgão Liberal. – Anno: XLIII; Nº 04. Fortaleza, 05. 01. 1888, p.
01.
33
empreender tal objetivo, desvestindo-se de qualquer artefato ou princípio moral e ético para
abocanhar o poder pelas vias legítimas20. Durante o governo do presidente Caio Prado, por
exemplo, que era apoiado pelo Barão de Ibiapaba e pela família Pompeu, os jornais “Pedro II”
e “Cearense” não pouparam esforços para depreciar a sua imagem de homem público e
político perante à população.
De dia á dia novos acontecimentos vêm corroborar a nossa
opinião, muitas vezes manifestada n‟estas columnas, de que a
administração do Sr. Caio tem sido a mais inepta, immoral, e
reaccionaria que registra a história política d‟esta provincia. Ao
que parece temos na cadeira presidencial uma verdadeira hydra
de Lerne, cujas cabeças renascem ao depois de cortadas, possa
prosseguir na sua obra de envenenamento e destruição do nosso
organismo moral, político e social.
(...)
Dir-se-ia que estava occupando a presidencia, o typo mais
acabado da loucura: taes foram os actos absurdos e iniquos que
praticou o administrador. O machado da reacção trabalhou até
nos próprios domingos e dias santificados, e aos seus golpes
cahirem até 31 de dezembro último, e pelo simples facto de serem
nossos amigos, 256 empregados públicos21.
20
As calúnias e difamações sofridas por adversários políticos consistia na prática mais comum do jornalismo
partidário cearense, em que o perjúrio tornou-se um freqüente instrumento de ação sobre o público leitor em
vias de formar a opinião. “Uma Explicação – por acaso, lendo o Pedro II do mez passado, deparei no artigo
da redacção, o meu nome, servindo de joguete aos frustrados desejos daquele autor, em uma infeliz analyse
que fez os actos do illustrado Administrador da província, Exm. Sr. Dr. Caio Prado. Achado-se este
altamente collocado, a ponto de não attingir-lhe os insultos ou antes a imprópria linguagem de quem se diz
civilisado; em attenção aos meus amigos, especialmente ao partido conservador do qual faço parte, vendo
dar uma ligeira resposta ás expressões que a meu respeito publicou aquella folhinha. (...) Por compreender
assim, dou a presente explicação fazendo sentir – que conservador como sempre fui, apenas desliguei-me de
um grupo para unir-me dedicadamente a um outro maior, que representa as verdadeiras idéas deste partido e
que nesta provincia é dirigido pelo Exmo. Sr. Barão de Ibiapaba, verdadeira política que o Império se ufana
de ter por chefe o Exm. Sr. Conselheiro João Alfredo”. “Paginas Livres”. A Constituição. Anno: XXVI, Nº
13. Fortaleza, 16. 01. 1889. P. 02.
21
“Administração Inepta”. Pedro II – Orgão do Partido Conservador. Anno: XLXIX; Nº 05. Fortaleza, 11.
01. 1889. P. 01. Sobre o mesmo incidente, relata seu aliado na imprensa local, o Cearense de 09. 01. 1889
(Anno: XLIII, Nº 07, p. 01): “‟Duas Crises‟ – Desde 27 de Abril de 1888 que peza sobre esta infeliz
provincia o governo do Sr. Caio, e apenas resta-nos a esperança de um breve ver-nos livres de mais este
flagelo. Inditoso! Ceará quando na difficil quadra que te preparava um anno de desorganisações
metereologica [em alusão à seca deste período] devias ter a tua frente um homem reflectido, sensato,
prudente e humanitário enviaram o Sr. Caio para o flagelo metereologico acrescentar um outro – o
administractivo. Sim. Devias pagar bem caro o crime que havias commetido arrancando do captiveiro muitas
milhares de infelizes que gemiam sob o peso da escravidão. Quando, há ainda bem poucos annos, atiravas ao
quatro ventos o brado de liberdade do paiz, uma celeuma terrível levanta-se em outras partes do Império: os
mercadores da carne humana clamavam vingança contra o atentado commetido. Soou a vingança terrível,
havia chegado o momento de vingar o crime! Mandaram o Sr. Caio administrar o Ceará. Cumprindo ordens
do gabinete de 10 de março, que eram entregar a província ao grupo Ibiapaba, procurou S. Exc. a princípio,
com mostras de paz, illudindo a boa fé da província, amolar tudo a seu geito para que fosse forte o seu
governo; não poude. Convenceu-se que sua táctica estava burlada e atirou se então franca e cegamente
34
As demissões dos adversários dos seus respectivos cargos públicos era uma
prática política comum a qualquer grupo faccioso que chegava ao governo provincial. Adolfo
Caminha em seu romance “A Normalista” narrou acontecimentos deste tipo22. Para angariar
apoio da população, os adversários que não estivessem com a máquina administrativa sob o
seu mando, utilizavam-se dos fatos, também comuns à sua prática, como forma de atacar seu
alvo direcionado formando a opinião. Em boa medida, esta estratégia era parte integrante
condicionada do próprio movimento das disputas políticas entre as famílias tradicionais, desde
a colonização até a consolidação do regime republicano.
A máquina administrativa era o objetivo maior que as facções almejavam. Para
conquistá-la, a articulação com os grupos dominantes da arena nacional, o revezamento
ministerial como forma de conter as tensões regionais, enfim, qualquer situação na ordem
política era motivo para alguém tirar proveito. Durante a mudança de regimes, por exemplo,
no momento de completa indefinição e desarticulação dos grupos dominantes, as facções
políticas do Ceará, imbuídas da tarefa de “produzir resultados profícuos” da transição para a
população, permaneceram nas silentes articulações políticas até o momento oportuno de
abocanhar a sua parcela de poder23. Em boa medida, o que traduz aquilo que Renato Lessa
contra o partido Aquiraz [conservadores aliados da família Paula]. Commeteu as maiores injustiças contra
honrados funcionários, só pelo simples facto de pertencerem aquella parcialidade (...)” O destaque que este
registro merece é o concernente à apropriação do discurso que alimentou as idéias abolicionistas no Ceará, no
que se refere ao avanço institucional, apregoado pela campanha, da província em relação às demais.
Sobretudo, no meio do tiroteio dos jogos de interesses das facções políticas daquele território, tal discurso é
apropriado como forma de contestação ao grupo opositor que mantinha um aliado advindo da Corte,
acabando, os redatores do jornal em destaque, de mostrar o seu desafeto para com as decisões dos grupos
políticos do Centro-Sul. Como forma de ilustrar a plasticidade em transmudar discursos e posturas políticas
em relação aos interesses facciosos, vale ser mencionado que, durante a campanha abolicionista, o “Cearense”
fez “oposição sistemática” ao “Libertador”, conforme bem lembrou Raimundo Girão em A Abolição no
Ceará. – Maracanau: Prefeitura Municipal/ Casa de Cultura Capistrano de Abreu; 1988 (4ª ed.) P. 126.
22
“- Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez funcionários amigos da
oposição. Queres ve uma coisa?... Que dia é hoje?
- Domingo...
- Pois bem, vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos, que se dizem miúdos, com
a data de hoje. Eis ai está como se resolvem as questões desta ordem. Insultam-me, não é assim?
Injuriam-me, acham que sou mau, que não tenho juízo, que sou indiferente à sorte do Ceará... Pois
bem, hoje mesmo muita gente vai pagar pelos diretores de tal partido. Nada mais simples, não
achas?”. CAMINHA, Adolfo. A Normalista. – São Paulo: Editora Tres; 1973. P. 125.
23
Numa passagem do seu estudo sobre os partidos políticos do Ceará, Abelardo Montenegro discorre e
transcreve sobre a conotação dos interesses políticos e objetivos almejados durante a transição entre os
regimes monárquico para o republicano no Ceará: “‟No atual Estado do Ceará em particular, com uma
exceção apenas [referindo-se ao antigo jornal abolicionista „Libertador‟, em relação a um circunstancial
posicionamento favorável à causa, nas vésperas do golpe de 1889], toda a imprensa era guarda avançada
35
das instituições monárquicas. Não há muito a idéia republicana era satirizada atrozmente, a „República
estava coberta de moscas‟, proclamavam inflamados de orgulho e desdém, os que fruíam as regalias do
poder„. Vence a idéia. „Que era natural sucedesse? Senão a contra-revolta, porque esta seria absurda, ao
menos da parte daqueles que estavam no campo oposto o reconhecimento da derrota sem a comunhão total
das idéias. O silêncio em tais condições seria o conselho mais nobre; porque é inadimissível tão brusco
reviramento de opiniões. Que tão facilmente se amolda aos princípios dominantes ou não era sincero quando
apoiava os decaídos ou neutros que triufavam?‟”. MONTENEGRO. Op. Cit. P. 63.
24
LESSA, Renato. A Invenção Republicana. As Bases e a Decadência da Primeira República Brasileira. –
Rio de Janeiro/ São Paulo: IUPERJ/ Vértice: 1988. P. 24.
25
LEMENHE, Mia Auxiliadora. Família, Tradição e Poder: O Caso dos Coronéis. – Fortaleza: Imprensa
Universitária da UFC; 1996.
26
ANDRADE, F. Alves de. Tomáz Popeu e o seu Tempo. – Fortaleza: Instituto do Ceará; 1954. P. 12.
36
exercia autoridade política, chegando o seu bisavô, Antônio José Vitoriano Borges da
Fonseca, governador da Capitania do Siará Grande de 1765 a 1781; Antônio Bezerra, filho do
político, burocrata, professor e ideólogo do tradicionalismo católico durante a campanha de
romanização, Manoel Soares da Silva Bezerra27.
Em virtude das próprias condições materiais das suas esferas sociais, foi
possível à grande maioria destes sujeitos a realização da sua formação letrada nos cursos de
nível superior, sobretudo, nas principais cidades do Império28. E, inevitavelmente, ao
retornarem à sua província de origem, trouxeram consigo o essencial das suas bagagens de
leituras para, de alguma forma, aplicarem na realidade política e no espaço social que,
inicialmente, encontraram com poucas possibilidades de exercerem seus dotes intelectuais29.
Necessariamente, não cabe à proposta deste estudo identificar qual foi o
movimento que de fato propiciou aquilo que habitualmente costumou a ser chamado de
“florescimento das letras” ou “a fermentação das idéias no Ceará”. Há de se confessar que esta
tarefa rendeu a apreciação de boa parte dos trabalhos, até hoje elaborados, no campo da
historiografia literária, social e intelectual cearenses. Contudo, a atenção despendida por
algumas análises, mesmo que elencando aspectos de ordem interna fundamentais para
compreender a aludida atividade literária e intelectual, veio a sacrificar outros elementos
catalisadores de tal produção, seja em nome de uma lógica tecnicista sobre os mecanismos
27
STUDART, Guilherme (Barão de). Diccionário Bio-Bibliográphico Cearense. - Fortaleza: Typografia
Minerva; 1915. Vs. I, II e III (ed. fac-símile).
28
Pode-se mencionar alguns dos intelectuais cearenses do século XIX e as capitais onde realizaram seus estudos
superiores: Tomás Pompeu de S. Brasil Filho e Themístocles Machado, Bacharéis da Academia Livre de Direito
no RJ; Virgílio Brígido, Xilderico de Farias, Paulino Nogueira e Justiniano de Serpa, Bacharéis em Direito no
Recife; Araripe Jr., que iniciou Ciências Sociais e Jurídicas no Recife, porém vindo a receber o título de bacharel
pela Faculdade de Direito de São Paulo; Dr. Guilherme Studart e Rodolfo Teófilo, Faculdade de Medicina e
Farmácia em Salvador. Ver STUDART. Idem.
29
No artigo “O Nosso Progresso”, Antônio Bezerra argumenta sobre os intelectuais cearenses da sua geração
no que concerne às trajetórias intelectuais durante a difícil inserção que inicialmente tiveram na cidade de
Fortaleza: “Cerca de vinte annos atraz (por tanto no final da década de 1860) mais ou menos, poucos, bem
poucos dos nossos compatricios, residentes na provincia, se dedicavam a estudos de litteratura, e ainda
menos a especullações scientificas. É certo que para aqui regressavam alguns bacharelisados pela Academia
do Recife, mas estes quando muito faziam do direito o alvo de suas locubrações, impellidos pela necessidade
de salientarem-se na advogacia, si antes, preferindo a carreira da magistratura, não iam para o interior
depreciar-se mesmo com a ignorancia dos seus jurisdicionados. (... ...) Eu que do Rio e S. Paulo trouxera
um poucochinho dessa ancia de saber, communicada pela convivencia de talentosos condiscipulos, tive de
ceder ante a indifferença geral, mau grado o desesperado esforço que empreguei para congraçar os poucos
que liam, pode-se assim dizer. O mal era geral”. BEZERRA, Antônio. “O Nosso Progresso” IN: A
Quinzena. Propriedade do Club Litterário. Nº 07; Anno II. – Fortaleza: 03. 05. 1888. P. 51.
37
existentes que possibilitaram a reprodução cultural, seja em favor do avanço europeu em que
uma força referencial de ordem exterior viria operar naquela realidade social30.
Quanto a própria dinâmica sócio-cultural brasileira, no que se reconhece o
fluxo permanente de jovens abastardos oriundos das elites rurais transitando pelos cursos de
Direito, Medicina, Ciências, Engenharia, etc, das faculdades do Rio de Janeiro, São Paulo,
Salvador, Recife, Olinda31, há de ser considerado que este foi um fator de ordem interna que
significativamente afetou o universo letrado cearense, em meados do século XIX. Da mesma
forma, como um fator de ordem externa, a existência de alguns pontos de acesso à província
como, por exemplo, os portos, implica na possibilidade de um contínuo fluxo comercial que
permitiu a chegada de livros com as idéias que estruturavam o pensamento europeu naquele
espaço32. Contudo, para esta análise, devem sobressair as formas do uso de um corpo de idéias
30
Na historiografia literária e social cearense, cabe elencar as seguintes considerações a respeito deste
assunto. Primeiramente, em Leonardo Mota, memorialista e folclorista, aponta como “certo indício intelectual
na província” o surgimento da Biblioteca Pública em 1867, que vai intensificando-se pelos idos anos de 1870
com o surgimento da Academia Francesa, bem como a pertinente observação quanto a profusão da cultura
letrada na província pela ação dos gabinetes, clubes e grêmios de literatura espalhados por diversos
municípios do interior cearense (MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. – Fortaleza: Casa de José de
Alencar/ UFC; 1994). Já Dolor Barreira, que brilhantemente pontuou os principais movimentos intelectuais
do Ceará, pecou ao considerar a supremacia da influência intelectual estrangeira, tanto no que diz respeito ao
conjunto de práticas letradas quanto as formas de sociabilidade, em que, segundo ele, “No Ceará, foi, como se
disse [“a força da imitação” sendo a causa imediata e mais remota para o “florescimento das letras na
província”], a acção de associações do mesmo género [moderno e burguês europeu] e dos jornais e revistas,
que lhes serviram de órgãos, se deles dispunham, que as nossas locubrações, no feérico mundo das belas
letras, se expandiram, fecundaram e frutificaram” (BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. –
Fortaleza: Editora do Instituto do Ceará; 1948. T. I. P. 63). Sebastião Rogério Ponte, sobre alguns
movimentos literários no Ceará, dentre eles a Padaria Espiritual, ainda que não detido neste fio problemático,
reconhece que a partir do desenvolvimento urbano de Fortaleza, capital da província, fatores indicando que “a
capital, naquele momento, já não era tão provinciana e acanhada”, pois, “Nas últimas décadas do século XIX,
ela atravessou um inédito processo de transformações urbanas, econômicas, sociais e culturais, passando a
dispor de novos equipamentos e serviços urbanos (ferrovia, melhorias portuárias, calçamento, iluminação,
telegrafia, telefonia etc), de instituições científico-literárias e, paralelamente, de modas/ modismos e anseios
de modernização” (PONTE, Sebastião Rogério & SABOYA, Caterina Mia. O Pão e a Cidade: Cotidiano e
Contexto Urbano da Padaria Espiritual. – Fortaleza: NUDOC/ UFC; 1992. P. 08 e PONTE. Fortaleza Belle
Époque: Reformas Urbanas e Controle Social (1860 - 1930). – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/
Multigraf; 1993. P. 16 - 17). Entretanto, dentre as considerações aqui apresentadas, ao considerar as
trajetórias intelectuais dos letrados cearenses que tiveram participação política na década de 1880, Almir Leal
aponta precisamente indícios da formação de um universo letrado com práticas culturais distintas, possível
pelos “perfis e afinidades intelectuais”, bem como a “circulação de estudantes cearenses por outros universos
culturais”, tendo ainda, na formação intelectual, “outros elementos básicos de laços de classe [que] eram
reforçados, como obediência, disciplina, organização hierárquica da sociedade e práticas culturais
europeizadas ”(OLIVEIRA, Almir Leal de. Saber e Poder: O Pensamento Social Cearense no Final do
Século XIX. – São Paulo: Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em
História Social da PUC/ SP; 1998. P. 13 - 34).
31
AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ/ Brasília/ UNB; 1996 (6ª ed.). P.
273 – 359.
32
PONTE, Sebastião Rogério. Op. Cit. 1993.
38
exteriores em uma discrepante realidade social, cultural, política e institucional, aplicadas por
um segmento social que se propunha a remodelar a ordem dominante a partir de uma ruptura
estética e axiológica com os domínios tradicionalistas, caracterizada por um conjunto de
práticas políticas distintas. Ou melhor, deve-se entender naquela cartografia quais foram os
mecanismos de ordem interna daquela sociedade que possibilitaram o surgimento de uma
nova atividade estética e a inserção desta última nas relações de poder que recodificaram a
ordem dominante com o discurso moderno.
Ora, já que a volumosa gama documental sobre a atividade literária e
intelectual no Ceará deste período não conseguiu oferecer o pergaminho para este “elmo
doirado” que se reporta ao desenvolvimento intelectual cearense, exaustivamente especulado
pelas inúmeras locubrações literárias e historiográficas, de maneira alguma torna-se
sacrificante perceber que esta denominada atividade experimentou outros fluxos e canais que
possibilitaram uma intensa profusão de idéias, condicionando todo campo subjetivo e material
dos elencados indivíduos a aplicarem suas leituras na esfera cotidiana. O que de certa forma
causou tanto impacto aos historiadores, memorialistas e estudiosos da literatura desta época,
foi o fato desta fermentação de pensamentos ter repercutido-se num pequeno espaço social,
sem as vislumbradas condições técnicas, institucionais, econômicas e intelectuais possíveis de
se encontrar, com maior aceitação historiográfica, em outras localidades, seja nos centros
urbanos mais desenvolvidos do Império ou nas metrópoles européias. Portanto, tem sido boa
parte das considerações historiográficas colocadas até então impregnadas de pressupostos
teóricos e axiológicos europeizantes.
Desvencilhando-se dos possíveis determinismos históricos, para compreender
esse movimento deve-se entender que a potência que materializou o campo de possibilidades
de toda produção literária e intelectual no espaço social cearense, foi condicionada por uma
distensão de inquietudes nas relações sociais, um abalo semântico no universo das práticas e
usos políticos daquela estrutura de poder, em que o discurso moderno fora utilizado como
agenciamento estético em favor de uma nova ordem dominante, a permitir a inserção de outros
agentes históricos nas transformações político-institucionais colocadas em questão. Sendo
pontuados os fatores desta ordem, tem-se a configuração que se segue no sentido das
considerações acima. Entre 1873 e 1904 estava pontualmente evidenciada nas paragens
nacionais a reorganização da nova ordem política. Diante do impasse e da desorientação de
39
grupos tradicionais que sustentavam àquela estrutura de poder, tal emergência possibilitou que
um segmento “mais esclarecido” destes grupos, detentor de um instrumental político
específico do mundo moderno, o discurso, viesse por em prática suas leituras, colocando em
uso sua máquina literária, a inaugurar um novo exercício de poder em favor da sua raiz social
dominante naquele espaço de tensões. Potencializados por esta configuração social e política,
e possibilitados pelas mínimas condições materiais para aplicar o seu instrumental teórico-
discursivo (como o circuito de idéias, formas de sociabilidade, aparato técnico-tipográfico,
vida pública), a Mocidade Cearense estava diante de um território fértil para o exercício dos
seus anseios de grupo, bem como tornar desejante a nova ordem para os sujeitos daquele
espaço, a fazer uma opinião pública trabalhada no campo subjetivo pela atividade de
manipulação dos enunciados coletivos, e produzir novas relações cotidianas para atender à
lógica emergente do capital.
Portanto, deve agora ser mencionado que se trata de um impulso dos interesses
e desejos coletivos em vias de tornarem-se objetivados. Ou seja, a soma de diversos desejos
individuais em prol de um ideal coletivo que, a partir das experiências cotidianas de cada
letrado juntamente com o impacto das suas leituras sobre aquela realidade, empreendera um
conjunto de práticas políticas e trocas simbólicas em favor da realização material dos
interesses daquele grupo dominante em ascensão. Pois, já que boa parte deste estudo detém-se
a identificar, nos ideários das agremiações literárias, os apontamentos e direcionamentos para
a reconstrução institucional brasileira naquele tempo de transição política, uma cartografia do
que possa ter alimentado determinado tipo de desejo coletivo, mediante as condições materiais
de existência, possibilita adentrar sem maiores pretensões no campo subjetivo a fim de
perceber outras forças que atuaram silenciosamente nas transformações históricas do período.
A configuração de um ideário ilustrado, conforme será dado a perceber,
estruturado de forma orgânica e sistemática, sob a composição de uma máquina discursiva,
confere, primeiramente, ao poder das idéias um domínio subjetivo, que pode ser vislumbrado
como um exercício de poder sobre a opinião dos indivíduos, segundo o discurso político-
moral da filosofia positivista33. Dantes vislumbrado, sendo outrora as práticas políticas de
dominação no Ceará exercidas pela violência física bem mais que simbólica (atentados,
33
“Comte avança uma nova doutrina: o poder vem do saber”. PAIM, Antônio e BARRETO, Vicente.
“Liberalismo, Autoritarismo e Conservadorismo na República Velha”. IN: Curso de Introdução ao
Pensamento Político Brasileiro. – Brasília: EUNB; 1982. P. 100.
40
A exposição deste texto torna mais precisa o que essa geração de intelectuais
estava propondo por volta de 1887. Como é bem sabido, a imprensa no século XIX fora
utilizada como importante recurso na mobilização da opinião pública. No Ceará, os jornais
partidários atingiam todo o perímetro urbano de Fortaleza, chegando também à boa parte do
restante da província. Logo, a inserção política dos intelectuais através da imprensa em favor
dos valores da ordem burguesa minaria as bases dos comportamentos típicos locais, como o
conformismo e a indiferença da população, diante dos seus administradores. Nota-se que,
como enunciado, há um clamor de revolta bem característico dos alardes da ordem burguesa
frente ao poder tradicional, o que não viabilizaria a inserção política de todos os setores sociais
34
“Preliminares”. A Quinzena. Propriedade do Club Litterário. Anno I; Nº 01; Fortaleza: 15/ 01/ 1887. P. 01
(Edição fac-símile BNB/ ACL; 1984)
41
em confrontar-se com o quadro colocado, já que havia os segmentos letrados donos do novo
poder. Seguindo ainda a estrutura discursiva, vê-se uma crítica fulminante em relação ao
domínio da máquina administrativa pelos grupos que a controlavam. Por fim, o
reconhecimento da ação do poder ilustrado sobre as demais esferas que compunham a
sociedade.
A atividade de imprensa tornou público os anseios alimentados no universo de
leituras e interesses da Mocidade Cearense. Com o uso da eloqüência bacharelesca35, aquela
“aristocracia do espírito”, desprendida em termos da realidade que a comportava36, encampou,
juntamente com os grupos tradicionais que há décadas digladiavam-se, as lutas políticas na
imprensa como forma de mobilizar a opinião pública, fazendo do instrumental letrado seu
legítimo exercício frente às decisões coletivas. É interessante perceber que, dentro do
“sentimento nobilitante” condutor dos valores da cultura brasileira, esses intelectuais com suas
práticas letradas e habilidades retóricas adentraram no campo político, reforçando a exclusão
social dos demais setores. Quando é reconhecida a esfera da imprensa como espaço possível
de atingir objetivos políticos, descontruiu-se o uso discursivo do poder simbólico de
conservação para reivindicação. Neste sentido, como a maioria da população era iletrada,
35
É Abelardo Montenegro quem discorre e faz uso de José Honório Rodrigues para perceber este movimento
no interior da elite dominante. “A atração pela bela frase e a repulsão pela análise objetiva não seria uma
atitude de autodefesa da elite política? A eloqüência, a torrente de palavras sonoras, é como uma canção de
ninar. É o tratamento reservado a populações que devem permanecer na infância, sem atingir a idade adulta.
E a menoridade é incompatível com a participação no Poder. Ou a verbosidade seria uma maneira de suprir
a deficiência da elite política? A pompa verbal e o ufanismo, o fascínio pelas drogas e minas cantadas por
Antonil supriam as deficiências diante das imensas tarefas visualizadas logo após a Independência. (...)
Como afirma José HONÓRIO RODRIGUES (grifo do autor), o primeiro foi entregue aos escravos. E não se
formou o capital nacional indispensável ao confronto de riqueza alardeada em discursos („Aspirações
Nacionais‟. São Paulo: Ed. Fulgor; 1965. P. 67 - 68). Ou a verborréia seria fruto da mentalidade mágica? A
ausência de técnicas e a impotência diante da natureza exuberante e dos problemas cruciais levaram os
representantes da elite política a apelarem para a magia das palavras encantadas. Transformação que não
alterava as relações de classe”. MONTENEGRO. Abelardo. Op. Cit. P. 55.
36
Para definir esta incompatibilidade entre a objetivação das idéias eurocêntricas apreendidas pela elite
intelectual e a realidade social, política e cultural brasileiras, Sérgio Buarque de Holanda foi pontual. “Ainda
quando se punham a legiferar ou a cuidar de organizações e coisas práticas, os nossos homens de idéias
eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saiam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações.
Tudo assim conspirava para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira
morria asfixiada. Comparsas desatentos do mundo que habitávamos, quisemos recriar outro mundo mais
dócil aos nossos desejos ou devaneios. Era o modo de não rebaixarmos, de não sacrificarmos nossa
personalidade no contato das coisas mesquinhas e desprezíveis. (...) acabaríamos, assim, por esquecer os
fatos prosaicos que fazem a verdadeira trama da existência diária, para nos dedicarmos a motivos mais
nobilitantes: à palavra escrita, à retórica, à gramática, ao direito formal”. HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Op. Cit. P. 163.
42
conforme já foi dado a se perceber, qualquer outra forma possível de posicionamento político
era inócua, neutra, sem expressão.
É impossível agrupar todas as individualidades à sombra de uma
mesma bandeira. Mas é possível (...) ter todas as aptidões ao
serviço da Pátria.
Não foi para assistir à política do regimem extincto que o paíz fez
a República. Impelliu-o outro sentimento, allentou o mais bello
ideal.
A imprensa, sobretudo, tem obrigação de mostrar-se à altura da
sua evangelização sagrada. Em política o momento é tudo.37
37
“Política de Paz”. O Norte. ANNO: I; Nº 02. Fortaleza, 15/ 04/ 1891. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/
Setor de Periódicos.
38
PONTE. Op. Cit. P. 145 - 150.
39
Ao longo do seu estudo sobre o jornalismo cearense, Geraldo Nobre discorre sobre as tipografias dos
partidos políticos que, além dos seus jornais, publicavam também órgãos de outra natureza, pertencentes a
indivíduos que possuíam outras causas. Sobre os anos de 1880, ele escreve que “Ao que consta, da Tipografia
do „Cearense‟ saíram „A Revista‟, de 1888, e „A Avenida‟, do ano seguinte, mas ambas foram publicações
literárias, o que prova a elevação mental dos redatores daquele órgão, chefiados pelo deputado Francisco
Barbosa de Paula Pessoa. Na „Gazeta do Norte‟, à frente de cuja redação se encontrava o dr. Tomás Pompeu
(2º), foi publicado o „Telefone‟ (1881), pequeno jornal que circulava aos domingos, sem caráter político. Do
lado conservador, a „Constituição‟ imprimiu, em sua oficina, „O Globo‟ (1887), redigido por alguns jovens
maranguapenses interessados em literatura e charadas”. NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à História
do Jornalismo Cearense. Op. Cit. P. 114.
43
o domínio que estes detiveram do instrumental literário também contribuiu em boa medida
para distinguir o perfil dos intelectuais do período nas suas atribuições públicas.
Em meados da década de 1880, enquanto o “Pedro II”, a “Constituição”, o
“Cearense” e a “Gazeta do Norte” eram os principais diários do Ceará, a existência de
inúmeros outros jornais noticiosos, revistas literárias, pasquins humorísticos e folhetos
configuraram o cenário jornalístico do período. Passando a seduzir o público leitor cearense
cansado dos “tiroteios” da arena política40, o jornalismo de notícias e artes cada vez mais
passava a fazer parte do cotidiano cearense. E não era tímida a manifestação destes outros
órgãos de imprensa, pois, em boa medida, movimentava uma augusta atividade lucrativa, seja
pela facilidade que tiveram para sua publicação, seja pelo meio de vida que foi possibilitado à
grande maioria dos intelectuais aqui estudados.
Primeiramente, foi a imprensa partidária que absorveu boa parte dos
intelectuais cearenses, uma vez que era raro encontrar indivíduos com instrumental letrado
para redigir nas linhas editoriais dos respectivos jornais. O caso de Justiniano de Serpa, o
exemplo mais ilustrativo desta situação, mostra como foram dados os primeiros passos da vida
pública de muitos homens de letras no Ceará41. Outros intelectuais do período, como Tomás
40
Pelos idos de 1880, o desprestígio público que estava sendo acometido sobre o jornalismo partidário,
sobretudo devido aos poucos atrativos de suas linhas editoriais que se resumiam em ataques aos adversários,
calúnias, difamações e relatos de violência, possibilitou que uma outra forma de comunicação com atrativos
literários, seções de humor etc, abarcasse o público leitor da província. Utilizando-se de artefatos literários e
de uma outra linguagem para seduzir a opinião, o jornalismo literário e noticioso foi pouco a pouco
conquistando espaço no público cearense, em geral, e, em particular, na capital Fortaleza, como bem mostra
Geraldo Nobre: “Se, nos últimos tempos da Monarquia, o jornalismo cearense se apresentava cada vez mais
menos político, embora os principais órgão continuassem com essa orientação, nem por isso se acentuava
nele o caráter noticioso, certamente por força dos compromissos do público, em grande maioria, com a
imprensa partidária. O número deveras elevado de periódicos estava em relação com outras atividades,
sobressaindo a literária”. Idem. P. 112.
41
“Justiniano de Serpa nasceu cercado de todos os obstáculos que se podem opor ao êxito de uma existência
(... ...). O humilde e desprotegido menino, que veio ao mundo nesse pacato e sonolento Aquiraz, subiu, mas
subiu honestamente, ereto e digno, de degrau em degrau, até a altura em que hoje contemplamos com
orgulho e admiração. Para compensar-lhe a falta de audácia, a natureza, além da poderosa inteligência
capaz de toda inteligência no domínio do saber, deu-lhe o Dom da eloqüência, o gládio de ouro com que ele
abria o caminho por onde marchava em rumo da glória. Orador e jornalista, ele teve na campanha
abolicionista uma excelente escola da palavra falada e escrita [obs: tanto no jornal „Libertador‟, da
Sociedade Cearense Libertadora, quanto na revista „A Quinzena‟, órgão do Clube Literário]. E a política logo
o seduziu, vendo nele uma força que era preciso aproveitar nas competições da imprensa e da tribuna
partidária. Nossa assembléia provincial o teve entre os seus representantes, como deputado do grupo
conservador que tinha como chefe o Barão de Ibiapaba, este também um homem feito por si mesmo, e, apesar
de inculto, bastante inteligente e sagaz para avaliar os préstimos intelectuais do moço que vinha subindo já
aureolado pelas primeiras vitórias do seu talento de orador e jornalista. (... ... ...) Representante do Ceará na
primeira Constituinte (1891), não mais logrou voltar à Câmara, como representante do Ceará, mas levou
longos anos se batendo na imprensa, primeiro ainda dob a monarquia, como redator-chefe da „Constituição‟,
44
órgão da facção conservadora chefiada pelo Barão de Ibiapaba, depois na „Pátria‟, de quem era co-
proprietário, no „Norte‟ [órgão dos “republicanos históricos” do Centro Republicano Cearense] e no „Diário
do Ceará‟” (SALES, Antônio. Novos Retratos e Lembranças. – Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC;
1995. P. 61 – 65). É ainda Antônio Sales que dá depoimento, agora, sobre a sua geração, os “Novos do
Ceará”, e o trabalho na imprensa da capital cearense: “Nós, os novos do Ceará, cheios de uma impaciente
curiosidade pelas coisas da inteligência, com uma teimosa chammasinha de Ideal a aquecer-nos os cérebros,
alimentando uma aversão desdenhosa pelas chatices do ramerão burguez, e republicanos, ainda por cima,
constituimos desde os primeiros dias da República um pequeno grupo de feição bohemia, para trocar
impressões de Arte, commentar leituras etc. Para os efeitos da publicidade nós nos distribuimos pelos três
diários existentes – „Libertador‟, „Norte‟ e „Estado do Ceará‟ [acrescente-se “O Diário”, onde trabalhava
Adolfo Caminha], onde estampávamos trabalhos literários e onde às vezes nos aggredíamos mais ou menos
energicamente”. SALES, Antônio. “O Ceará Literário” IN: Trabalhos (Manuscritos Inéditos). – Fortaleza:
Setor de Obras Raras da Academia Cearense de Letras (ACL); 1897. P. 245. Mais informações, ver NOBRE.
Op. Cit. P. 111 – 128; STUDART. “Catálogo dos Jornaes ...” IN: Revista da Academia Cearense. Op. Cit. P.
277 – 314 e Diccionário Bio-Bibliográphico Cearense. Op. Cit; MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual.
Op. Cit.
45
42
“Arrolamentos da População de Fortaleza - 1887”, localizado no Arquivo Público do Ceará (gentilmente
cedido pela bolsista Vânia Lúcia do PET/ História - UFC).
43
Contando ainda com a existência da revista “Sempre-Viva”, fundada por Juvenal Galeno e Gustavo
Gurgulino em 1849, os folhetins “Alforges” (1855) de Pedro Pereira, a revista “A Estrela” (1859) de Antônio
Bezerra e José Barcelos, a revista “Mocidade Cearense” (1853) da imprensa estudantil, a “Fraternidade”
(órgão maçônico) e o “Retirante” de meados da década de 1870, bem como os inúmeros pasquins políticos e
jocosos do período, o jornalismo cearense ganhou uma maior diversificação na década de 1880.
44
NOBRE. Op. Cit. P. 114 - 118.
45
THEÓPHILO, Rodolfo. Histórias da Seca no Ceará (1877 - 1880). – Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa;
1922 e, para o ano de 1884, GIRÃO. Op. Cit. P. 205.
46
46
Conforme será dado a se perceber nos textos a seguir, a sociabilidade de corte bem como a cultura das belas
letras foram marcante nos grupos dominantes, tendo também a sua repercussão nos setores menos
favorecidos. “Menino metódico e já curioso de coisas intelectuais eu ia à noite para o Reform Club,
contentando-me em assistir ao movimento da Biblioteca, sem ousar pedir um livro que tanto cobiçava. Mas
eu não conhecia ali ninguém, os livros sóse davam às famílias dos sócios (... ...) Mas o fato de naquele ano já
remoto (1876 a meados da década de 1880) um grupo de homens de outras carreiras que não têm fins
culturais, fundar uma biblioteca, construir um belo prédio para agasalhá-la e prestar-se para ir à noite
distribuir livros aos seus visitantes, é um caso tão estranho e tão belo que merece ser fixado nas páginas
deste livro, em vez de figurar apenas com uma vaga rubrica nas efemérides de nossa terra. Aliás, tanto nesta
capital como nas cidades do interior, houve sempre a tendência para fundar gabinetes de leitura, isolados ou
como anexos de sociedades literárias. (... ...) Do Reform Club, do Gabinete de Leitura e inúmeras
associações deste gênero que surgem em nossa terra, saiu, sem dúvida, a corrente espiritual de que
emergiram os vultos literários, científicos e artísticos com que concorremos para o panteão das glórias
nacionais” (SALES, Antônio. Novos Retratos & Lembranças. Op. Cit. P. 211 - 212). Sobre o elitismo
provinciano e o diletantismo literário de Fortaleza logo após o período deste estudo, dá-nos Raimundo Girão o
seguinte depoimento: “A história elegante e literária de Fortaleza não pode ser feita sem o exato
conhecimento da vida da Art-Nouveau, pois, veio ela suprir velha lacuna, propiciando ao mundo chique e aos
adoradores de Minerva os mais eufóricos encontros, num deleitoso intercâmbio de amizades, camaradagens
e troca de idéias, em boa prosa. Incontestáveis, as rodas que ai sucessivamente, se formaram, numa
expansividade ridente. Até os desafetos não coroavam de sentar-se à mesma mesa. Tantas essas rodas, que é
difícil enumerá-las. Nelas se ombreavam os já feitos e os plumitivos, os valores reais e os medalhões trepados
no seu pedestal de empáfia. Rodas que produziam com vantagem em benefício dos componentes, mas pouco
levavam a caixa do estabelecimento. A abertura do Café Riche defronte, abalou sensivelmente o prestígio da
Maison, porém ela o retomaria, à medida que aquele fracassava, invadidas as suas mesas por malandros e
gente de menor aceitação” - grifos meus - (GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. –
Fortaleza: Casa de José de Alencar; 1997. P. 189. 2ª ed.). Ver também PONTE. Op. Cit. P. 145 – 150;
CAMPOS, Eduardo. Capítulos de História da Fortaleza do Século XIX. – Fortaleza: EUFC; 1985;
NOGUEIRA, João. Fortaleza Velha. – Fortaleza: EUFC; 1981 (2ª ed.). Ainda sobre o que seria este
“Diletantismo literário” em consonância com os valores cosmopolitas de consumo, atingindo outras
localidades do país como, por exemplo, na então capital Rio de Janeiro, ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A
Questão Nacional na Primeira República. – São Paulo: Brasiliense/ CNPq; 1990. P. 111 – 126.
47
Neste sentido, pode-se dizer que a literatura foi o acesso facilitado ao público
leitor que os letrados cearenses encontraram para pouco a pouco conseguirem prestígio
público e social no cotidiano da capital. Desta feita, mediante considerações já elencadas, o
que tornou esta atividade em certa medida ressonante tanto aos homens de letras quanto à
sociedade local, foram antigas referências literárias que o público leitor cearense já havia
experimentado parcamente pelos anos de 1850 a 1870 em que, evidenciando o nome de José
de Alencar, que fez carreira pública na Corte, podem ser destacadas as atividades de Juvenal
Galeno e Gustavo Gurgulino na revista “Sempre Viva” (1849), a revista “Estrela” (1859) e as
publicações literárias secundaristas que circularam neste período. Estas experiências aos
poucos contribuiram para que a profissão de escritor fosse ganhando notoriedade no espaço
social cearense. Concomitante as relações que possibilitaram a intensificação da imprensa
literária no Ceará por volta de 1880, com o crescimento das atividades tipográficas e o
diletantismo em torno da literatura, o abalo sofrido nas estruturas de poder favoreceu a
inserção da ação letrada, bem como a distinção entre jornalismo partidário e o jornalismo
intelectual, durante o período que se estendeu da tensão entre os grupos dominantes brasileiros
na última década do Império até a sua reorganização com o pacto entre as oligarquias
regionais e a formação de uma nova ordem política, após a legitimação do regime republicano
por volta de 1894.
O trânsito que houve dos intelectuais cearenses entre os dois tipos de
jornalismo existentes, possibilitou que estes sujeitos fossem angariando a legitimação do poder
que passaram a exercer na esfera pública local. Ao longo do que será analisado neste estudo,
acompanhar-se-á, na verdade, a trajetória de duas gerações de homens públicos, intelectuais
que se empenharam no labor literário como forma de intervenção direta na sociedade
formando suas opiniões entre os indivíduos. Portanto, as trajetórias dos rapazes que integraram
tanto a Mocidade Cearense como os Novos do Ceará foram marcadas pelas experiências da
vida cotidiana e da realidade social dos seus integrantes, que distingue cada geração. Logo, as
afinidades pessoais que foram acompanhando a maioria destes indivíduos durante a sua
formação intelectual corroboraram para a identificação de objetivos a serem angariados
segundo suas experiências cotidianas.
Pode-se dizer que o fato da maioria dos integrantes da Mocidade terem
pertencido às famílias tradicionalistas, exercido atividade na imprensa principalmente nos
48
47
MONTENEGRO, Abelardo. Os Partidos Políticos do Ceará. Op. Cit.; MONTENEGRO, João Alfredo de
S. O Trono e o Altar: As Vicissitudes do Tradicionalismo no Ceará. Op. Cit.; PIMENTEL, José Ernesto.
Aristocratização Provinciana em Fortaleza (1840 - 1890). Dissertação de Mestrado defendida no Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. – Recife: UFPE, 1995 e Urbanidade
e Cultura Política. – Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC, 1998; WEYNE, Walda. Imprensa e
Ideologia: O Papel Político dos Jornais Cearenses na Transição Monarquia/ República. – Fortaleza:
NUDOC/ UFC; 1990. CORDEIRO, Mia. Celeste. Antigos e Modernos: Progressismo e Reação
49
48
Em uma sociedade mantida pelo trabalho escravo, as origens da cultura letrada na América Latina
estiveram ligadas ao projeto colonial e aos setores dominantes tanto para atender à vasta administração
colonial como suprir às exigências da evangelização. RAMA. Op. Cit. P. 44.
49
Ao discorrer sobre o material “livro” e o campo de expansão subjetiva que este comporta, na introdução
sobre o que seria o “rizoma”, Félix Guattari e Gilles Deleuze discorreram sobre o que entenderam quanto à
atividade de um agenciamento maquínico: “Um livro é um tal agenciamento e, como tal, inatribuível. É uma
multiplicidade – mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer
dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento maquínico é direcionado para os
estratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem
uma determinação atribuível ao sujeito, mas ele não é menos direcionado para um „corpo sem órgãos‟, que
não pára desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e
não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade. (...)
Considerado como agenciamento, ele (livro/ texto) está somente em conexão com outros agenciamentos, em
relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou
51
produzidas pela Mocidade Cearense, que no uso de sua máquina literária potencializou uma
atividade estética a se apropriar de enunciados coletivos50, na tentativa de produzir um modo
de vida burguês a ser instituído e legitimado ao longo do raio de ação de suas práticas letradas
e narrativas discursivas, o público leitor de Fortaleza.
Dando-se a produção de enunciados numa relação de poder51, sendo
experimentadas matérias subjetivas, relações de afeto e desejo, nas trocas simbólicas dos
indivíduos em suas relações cotidianas, no espaço social cearense entre as décadas de 1870 e
1880 os letrados da Mocidade apropriaram-se dos conteúdos simbólicos que ficaram
impregnados nos campos subjetivos daquela realidade, como forma de manipular a opinião
pública em favor dos seus interesses facciosos. Para tal empreendimento, fizeram uso de sua
máquina discursiva, originalmente literária, colocando seus instrumentais teóricos, repertórios
de leituras, a serviço de seus interesses de grupo, e impulsionaram uma potência estética52 que
colaborou para manutenção do poder tradicional com a roupagem da modernidade.
significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em
conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e
metamorfoseia a sua, com que corpo sem órgãos ele faz convergir o seu (...)”. DELEUZE, Gilles &
GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, V. I. – Rio de Janeiro: Ed. 34; 1995. P. 12.
50
Pelo que pode ser entendido, os enunciados movimentam-se nas cadeias semióticas que comportam os
sentidos. Estes são produtos de uma relação de poder entre os sujeitos sociais que, nas trocas simbólicas
cotidianas, se empenham para realizar seus desejos. O objeto da comunicação (fala, texto, imagem) evoca-os
e entram em conflito para atualizar uma vontade, um desejo experimentado. Apresentando-se no ato da
enunciação (portanto são experimentados), incorporam-se no sentido (onde se estabelece a comunicação),
conectam-se a outros campos desejantes e produzem o discurso. A este último cabe, em uma seqüência de
enunciados que se conectam numa relação de força, a experimentação das intensidades subjetivas ou
produzem as relações de poder no campo simbólico, como as narrativas na imprensa, nos livros. Logo, a
enunciação, a atividade discursiva, utiliza-se do domínio dos conteúdos semânticos, operando os
agenciamentos maquínicos que conecta os enunciados, produzindo desejos, ideários, como por exemplo, a
ação da máquina literária do Romantismo produzindo o sentimento de emancipação. Assim, pode ser
afirmado que o Saber, o qual se instituiu no Ocidente, é a legitimação subjetiva e material de uma
experimentação desejante que se sobrepôs às demais numa relação de poder. Ver DUCROT, Oswald.
“Enunciação”. (Trad. Isabel Almeida). IN: ROMANO, Ruggiero (Org.). (Linguagem e Enunciação) –
Enciclopédia Einaudi. – Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda; 1984. P. 368 – 393.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. – Rio de janeiro: Graal; 1979, Vigiar & Punir (Trad. Raquel
Ramalhete). – Petrópolis: Vozes; 1987 e GUATTARI, Félix & ROLNIK, Sueli. Micropolítica. Cartografias
do Desejo. – Petrópolis; Vozes; 1986.
51
DELEUZE, Gilles. Foucault. – São Paulo: Brasiliense; 1988.
52
A produção literária, como sendo campo de expansão subjetiva, pode capturar a vontade, condicionando a
opinião dos sujeitos a partir dos conteúdos simbólicos que ela possa vir utilizar, e estes a despertarem a
experimentação de um desejo. Por tanto, dentro de um campo de tensões onde dão-se as relações de poder, o
agenciamento maquínico da Literatura, ou a composição de uma máquina literária, captura os enunciados no
sentido de produzirem uma estética potencial, uma atividade estética sobre os enunciados coletivos,
reproduzindo os conteúdos simbólicos através de narrativas; no caso estudado, leituras sociais. Sobre Estética
ver: BAKTHIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A Teoria do Romance. – Op. Cit.
52
53
José Murilo de Carvalho (A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil. – São Paulo: Cia
das Letras; 1990. P. 129 - 140) já discorrera sobre a manipulação de determinados símbolos pelos discípulos
de Comte no Brasil durante os primeiros anos de República. Como haverá de ser percebido no decorrer do
presente estudo, a manipulação do conteúdo imagético-narrativo e simbólico das intensidades subjetivas
experimentadas já era bem aplicada pelos grupos letrados cearenses ainda no Império, sobretudo com o uso
particular da produção literária.
53
da Mocidade, que será analisada como forma de compreender as razões que impulsionaram
a ação de sua máquina discursiva, bem como a sua produção literária durante as primeiras
décadas do regime republicano.
A Mocidade Cearense, ou a geração dos jovens que pertenceram ao mais
novo segmento social em ascensão naquele período, ainda que oriundos dos setores
tradicionais, combateram as práticas do poder tradicional e para isso exerceram plena
atividade intelectual em Fortaleza, a capital cearense. Sobretudo entre as décadas de 1870 e
1890, a cidade experimentou a confluência de enunciados que pairavam entre o promissor,
o trágico, o empreendedor, o forte, resistente, o dignificado. Acontecimentos daquela
realidade como o comércio intenso com as nações industrializadas desde meados de 1860,
sobretudo com os portos de Lisboa e Liverpool, o surgimento de casas comerciais em que
se destacaram as lojas inglesas54, a necessidade de urbanizar aquele espaço tanto em virtude
do seu crescimento populacional55, bem como disciplinar o espaço das ruas para atender os
anseios industriosos, e incentivar o consumo dos produtos estrangeiros, fizeram com que
Fortaleza experimentasse o sentido do progresso, o ideário mais eloqüente daqueles tempos
em que o capitalismo emergente procurou alastrar-se perante os povos da Terra56.
Naquele momento de afirmação das elites de Fortaleza sobre o restante da
província, um episódio trágico veio para marcar a vida dos cearenses: a seca de 1877, que
dizimou juntamente com a peste de varíola um pouco menos que a metade da população
total do Ceará. Pobres, ricos, casas, fazendas, famílias, gados, plantações, fortunas, enfim,
quase toda província fora consumada pelo flagelo da seca; um prejuízo material e humano
54
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. – Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC; 1997. P.
101 – 106.
55
Foi de muito cedo que Fortaleza experimentou a disciplina urbanística. Por volta do início do século XIX,
quando ainda com as características de uma pequena vila e “o comércio menor do que o Aracaty”, o
TenenteCoronel de Engenheiros Silva Paulet, sob as ordens do Capitão-Mor Governador Sampaio, planejou a
primeira planta urbanística para “a elaboração do plano urbanístico, da mais alta ressonância para o
progresso”, em 1812. Com a mesma preocupação, o Boticário Ferreira, assim conhecido o comerciante,
farmacêutico e político Antônio Rodrigues Ferreira, quando passou pela Câmara dos Vereadores entre as
décadas de 1830 e 1840, trabalhou por tornar a capital mais urbanizada, alargando as suas ruas, e assim,
atender a demanda do crescimento comercial que já se anunciava. Mas, foi sobretudo o Engenheiro Adolfo
Herbster com a sua já bem conhecida “Planta Topográfica da Cidade de Fortaleza e Subúrbios”, de 1875, que
deram-se de fato as obras públicas para esquadrilhar a cidade, segundo o modelo de Paris, abrindo
boulevards, novas ruas e avenidas, tanto para propiciar um melhor fluxo de pessoas e posicionamentos dos
espaços destinados ao comércio, bem como definir a área urbana destinada às elites fortalezenses. GIRÃO.
Idem. P. 73 – 98.
56
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque. Reformas Urbanas e Controle Social (1860 - 1930).
– Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha; 1993 e TAKEYA, Denise Monteiro. Europa, França e Ceará. –
São Paulo/ Natal: HUCITEC/ Editora da UFRN; 1995.
54
57
“O decênio 18880 – 1889 foi o último sob governo monárquico, apresentando-se a imprensa cearense, no
seu decurso, com vitalidade realmente notável, como prova o fato de terem surgido cento e setenta e cinco
publicações, segundo o Catálogo Geral do Barão de Studart. No entanto, o aspecto mais importante a
considerar refere-se ao aparecimento dos jornais „Gazeta do Norte‟ e „Libertador‟, que renovaram o
jornalismo na província (...)”. NOBRE, Geraldo S. Introdução à História do Jornalismo no Ceará. –
Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense; 1974. P. 141.
55
58
GRAHAN, Richard. Grã-Betanha e o início da modernização no Brasil. – São Paulo: Brasiliense; s/ r.
56
59
BEZERRA, Antônio. “O Nosso Progresso”. IN: A Quinzena. Propriedade do Club Litterário. – Nº 07;
Anno II; Fortaleza, 03. 05. 1888. P. 52.
57
então, pelos idos de 1850 e 1860, o “menosprezo aos productos da intelligencia” era o que
imperava, conforme já constatou-se no tópico anterior. Com o retorno de alguns intelectuais
à terra natal, e, sobretudo, pela iniciativa de Rocha Lima60, Capistrano de Abreu, Araripe
Júnior, Xilderico de Faria, João Lopes e Thomás Pompeu Filho, dentre outros, em 1872
fundaram aquela que seria a primeira congregação de letras cearenses, após o grupo dos
“Oiteiros”, segundo os valores modernos. A Academia Francesa, grupo que atribuíram
como sendo literário, mas, na verdade era filosófico61, nasceu em Fortaleza num momento
marcado pela primeira experimentação de progresso antes da seca e a inquietação social
que as idéias da Escola do Recife já propagava no início da década de 1870, com Sílvio
Romero e Tobias Barreto à frente da campanha. Cabe dizer que estes anseios por romper,
no campo do conhecimento, com as instituições que “atrasavam” a sociedade brasileira
foram em boa medida difundidos por este espaço da intelligênzia tupiniquim. A
denominada “Geração de 1870” pregava a salvação da nação brasileira através da ciência, e
a Academia Francesa foi o principal expoente dessa geração no Ceará62.
60
“Rocha Lima era o mais jovem de todos e entretanto o mais profundo: fadado para morrer cedo, a sua
intelligencia tomou um desenvolvimento extraordinariamente preccoce, alando-se ousadamente ás mais altas
abstracções da Critica e da Philosophia. Todos os grandes pensadores e artistas de então lhe eram
familiares, e n‟esse superior convívio o seu espirito scientifico assumiu proporções assombrosas para a sua
idade e para o meio, como o demonstram os seus trabalhos ora enfeixados com o título de „Critica e
Literatura‟”. SALLES, Antônio. Trabalhos (Manuscritos Inéditos). – Setor de Obras Raras da Academia
Cearense de Letras; 1898. P. 223. Ver também BEZERRA, Antônio. “O Nosso Progresso”. IN: A Quinzena –
Propriedade do Club Litterario. Anno: II; Nº 07. – Fortaleza: 03/ 05/ 1888. P. 51; BARREIRA, Dolor.
História da Literatura Cearense. – Fortaleza: Edições do Instituto do Ceará; 1948. P. 86 – 90 e OLIVEIRA,
Almir Leal de. Saber e Poder. O Pensamento Social Cearense no final do Século XIX. Op. Cit. P. 50 – 52.
61
Ver VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis
(1908). – São Paulo: Letras & Letras; 1998. P. 342; BARREIRA. Op. Cit. P. 85 – 98. BOSI, Alfredo.
História Concisa da Literatura Brasileira. – São Paulo: Cultrix; 1994 (33ª ed.). P. 246; AZEVEDO, Sânzio.
“Grêmios Literários do Ceará”. IN: SOUSA, Simone de. História do Ceará. – Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha; 1994 (2ª ed.) P. 185 e 186; BEZERRA. Op. Cit e LINS, Ivan. História do Positivismo no
Brasil. – São Paulo: Companhia Editora Nacional; 1967 (Coleção Brasiliana, V. 322) P. 115 – 130.
62
“Percebe-se uma suada agitação no paiz, factos occorrem que denunciam uma revolução subjacente. A
sociedade brazileira encarreirada nas vias do seu aperfeiçoamento moral, como que se retrae! (...) Há uma
estupefacção geral, o calafrio agita e entorpece as extremidades do corpo social. Que accidente
experimentou a paz, ou que temorosas visões do futuro o preoccupam n‟este mommento? O passado,
envoltto em seu sangrento sudario assoma das trevas, agita a discórdia e vem bradando-a postos! É a
reacção sacrilega. São erros batidos a tomarem sua desforra, o blasphemo mentindo a Deus, em honra de
quem a intelligência trabalhará a um sécculo. Pela Sciência somente, penetrando a lei universal o horror
aprende a conhecer-se, adquire a consciência, o eqüilibrio de uma força, a plenitude, a certeza de si mesmo.
Uma lei misteriosa, cujo o segredo possue o regedor dos mundos, determina taes accontecimentos. É
constante a vicissitude do bem e do mal. Aos secculos de civilisação succedem os secculos de barbaria, os
erros vem apos as grandes conquistas do espirito humano, o dia tem por términos a noite. É que a verdade
brilha de uma luz tão viva, que nunca o homem se approximará d‟ella demasiadamente. Quando indusidos
da grande máxima: - saber é poder, a Mocidade brazileira procurava penetrar os arcanos da sciência para
58
Mais que o “berço das idéias inovadoras”, a Academia Francesa pode ser
entendida como sendo um pacto político e estético. No primeiro caso, deu-se pela união de
forças entre os intelectuais que não encontravam espaço de inserção naquela realidade
marcada por sentimentos e valores tradicionais, e que não podendo aplicar seu
conhecimento ingressaram nas linhas editoriais dos jornais partidários, participando das
lutas políticas. Em segundo, por estes realizarem a conexão das leituras63 positivistas e
evolucionistas aos interesses dos setores emergentes de Fortaleza, lançando uma leitura de
progresso para a ação dos sujeitos ligados à atividade comercial. Este período que denotou
um momento de tensão entre os grupos dominantes da sociedade brasileira, começou com a
ascensão dos grupos médios urbanos, a introdução do pensamento europeu ligados ao
positivismo, ao evolucionismo, bem como um recrudescimento das idéias liberais,
passando pela abolição dos cativos em 1888, golpe de 1889 até a legitimação republicana
por volta de 1898, com a legitimação do governo das oligarquias64.
Conforme foi percebido em considerações já elencadas, os integrantes da
Academia Francesa estavam impregnados das leituras e teorias eurocêntricas já
proficuamente repercutidas nas faculdades donde haviam realizados seus estudos. Ao
chegarem ao Ceará, encontraram uma sociedade marcada pelos valores e instituições
tradicionais no domínio daquela estrutura de poder. Para garantir sua inserção social e
política, não pouparam esforços: empenharam-se no mesmo intuito dos grupos urbanos que
também lutavam por romper com os segmentos tradicionalistas e dominantes. Assim,
apegaram-se ao messianismo do século XIX, em que as enunciações razão, ciência e
liberdade - a tríade religiosa daqueles tempos emergentes – pregavam a emancipação dos
indivíduos dos domínios da tradição.
um dia illuminar a sua pátria (...)!”. Fraternidade – Órgãm da Aug:. Loj:. Ma:. Frat:. Cear:.. – Anno: I; Nº
01. – Fortaleza: 04/ 11/ 1873. P. 01.
63
“Cada um de nós lia e tomava nota de uma obra de Comte, Darwin, Spencer ou Littré, os autores mais
autorizados da época, e reunidos, expunhamos o resultado dessa leitura, submetendo-o à crítica e análise dos
demais (...). Dir-se-ia que ali estavam universitários alemães a controverterem os mais árduos problemas
científicos ou filosóficos (...)”. STUDART, Barão de. “Tomaz Pompeu de S. Brasil. Notas sobre a sua Vida”.
IN: Revista Trimestral do Inst. Do Ceará. – Fortaleza: Typ. Minerva; 1929. P. 12 APUD ANDRADE.
Tomáz Pompeu e o seu Tempo. Op. Cit. P. 17.
64
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História da Civilização Brasileira. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil;
1997 (5ª ed). P. 289 – 360; MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira V. IV (1877 - 1896). –
São Paulo: T. A. Queiroz; 1996; CARONE, Edgard. A República Velha V. II (A Evolução Política). Op. Cit.
e FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. A Formação do Patronato Político Brasileiro, V. II. – São
Paulo: Globo; 1995 (10ª ed.) P. 501 – 577.
59
65
“Passado e Presente”. IN: Fraternidade. Órgão da Aug:. Loj:. Frat:. Cearense. Anno I; Nº 01. – Fortaleza:
04/ 11/ 1873. P. 01. BPCMP. M. 105.
66
No mesmo artigo, percebe-se que os teóricos e personagens políticos do Iluminismo francês eram lidos e
conhecidos pelos homens de letras cearenses bem como aqueles que lutavam por romper com a esfera
axiológica tradicionalista que perdurava durante a década de 1870 naquela realidade política e social: “O
secculo XVIII, é verdade, já havia tocado na arca sancta das tradicções, mas nem Voltaire, (...), nem
Condorcet com a sua theoria algebrica do progresso, nem Diderot (...), nem D‟Alambert com o calculo frio
de pensador poderam derrocar as crenças arraigadas nos espíritos por tantos secculos, de uma maneira
durável e moralizadora. A obra da Enciclopédia, como todo producto da actividade humana veio a tempo.
Nas épocas de de completa transformação do senso moral, a violência feita aos principios naturaes géra,
como no mundo phisico, reacções perigosas, em que todo excesso se autorisa em sentido opposto”. Idem.
60
69
“No velho continente a sociedade civil para manter a sua authonomia, encarece os meios preventivos e
arma-se para a lucta com a internacional vermelha, que proclama a expropriação geral em benefício da
communidade e aniquila os fundamentos da actividade humana pela negação da propriedade e com a não
menos celebre internacional negra, que faz o nihilismo humano a lei suprema de seu desideratum e eleva á
altura de dogma social, a negação da liberdade de pensar e a abdicação das almas ante a prepotência
cezariana do papado. Ultramonthanismo e communismo se abraçam e se unem para um mesmo fim: Bock
estende a mão Max (sic) que retribue o comprimento com o sublevamento Carthagena; Félix Pyat sorri á
Luiz Veillot que marcha á vanguarda das forças clericaes e ameaça pertubar a tranqüilidade e a paz na
França; os Carlistas se confraternisam com os Cantonaes e erguem um alto de fé contra os ideaes liberaes
da constituição hespanhola de 1869 (...). Os extremos se tocam, o petroleiro veste a sotaina do jesuita, este
enverga a blusa do communista. As ideas que pareciam distanciadas aparentemente, convergem para um
mesmo fim – reduzir a razão ao obscurantismo pela sêde de raciocínios a capitular ante a palavra do mestre
e a autoridade do sacro collégio romano, ou o amordaçar a consciência e a vontade para que elles não
protestem contra o regimem, que proscreve a família, a propriedade e a dignidade humana. E porventura,
haverá differença essencial entre as douctrinas jesuítas e os princípios socialistas da communa?”.
Fraternidade. Anno: I; Nº 18. – Fortaleza: 10/ 03/ 1873. P. 01.
70
MONTENEGRO, João Alfredo. O Trono e o Altar. As Vicissitudes do Tradicionalismo no Ceará. Op. Cit.
71
CASTELO, Plácido Aderaldo. História do Ensino no Ceará. – Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará; 1970.
72
“Os seminários lhe foram exclusivamente confiados, para formar o coração da mocidade brasileira, que se
dedica ao althar, e dar direcção ao seu espírito. Um dominio absoluto se lhe assegurou sobre a consciência
dos neofitos, e quando os homens mais previdentes reclamaram contra uma (obs: trecho danificado) tão
perigosa, já ia mui adiantado o processo de assimilação; o mal tinha deixado profundamente raizes. A
educação é o ponto fixo do universo, que Archimedes pedira para ver a terra; e sentia Leibnitz que será o
senhor do mundo quem poderá senhorear-se d‟ella. (...) Com effeito, o padre dos últimos tempos tem o
coração tão ermo d‟essas nobres affeições, que engendram a Pátria, como lazzarista disperso sobre a terra.
Antes seus olhos passa e repassa somente a visão de Roma reconquistada; mas nem um só mommento o seu
espírito se preoccupa d‟essa Nação, que quer romper a immensa crysálida, para um dia tratar de igual aos
grandes povos da terra! (... ... ...) Não se pode admittir clero que não seja nacional, sob pena de perder a
62
doutrina positiva, careceria por tanto que os sujeitos, “necessitados de saber”, tivessem
acesso ao conhecimento que haveria de ensiná-los as “leis morais”, a emergência para
emancipá-los dos domínios estáticos e obscurecidos impostos pela tradição, e,
conseqüentemente, levar a nação aos rumos do progresso atingindo o “grau da
civilização”73.
Formular a lei do desenvolvimento civilisador de cada povo é
mostrar o grau de conhecimento a que elle tem chegado
intellectualmente.
Foi esse theorema histórico que o sábio englêz Buckle
desenvolveu brilhante em sua obra intitulada – História da
Civilisação da Inglaterra.
Para elle as idéas moraes [pautadas nos princípios da
liberdade, razão e ciência] são antes instituições invariáveis da
razão humana, do que postulados scientíficos que se completam
e desenvolvem nos períodos históricos.
É assim, diz elle, que a moral de hoje é mais ou menos o que foi
nos tempos primitivos, aparte o elemento intellectual que a
desenvolve e dá-lhe uma feição actual..
Pensamos também como o sábio historiador, que differença
anotar entre as acções moraes de um povo em diversas épocas é
resultado do adiantamento intellectual que se opera n‟elle
atravéz dos secculos74.
nação alguma cousa dos seus traços moraes. A elle cabe a guarda dos costumes na inspecção da família, a
segurança do estado na sustentação das doutrinas, que são o fundamento de sua lei. (...) Que povo já foi tão
imprudente que confiasse os seus althares aos estrangeiros? Ou que conquista já se firmou que não
começasse pelo aniquilamento do padre nacional?”. Fraternidade. Anno: I; Nº 03. – Fortaleza, 18. 11. 1873.
P. 01 e 02.
73
ARANTES, Paulo Eduardo. “O Positivismo no Brasil. Breve Apresentação do Problema para um Leitor
Europeu”. IN: Novos Estudos. – São Paulo: CEBRAP; 1988. P. 185 – 194.
74
Fraternidade. – Anno I; Nº 06. – Fortaleza: 09/ 12/ 1873. P. 01.
75
Ver PARTNER, Peter. O Assassinato dos Magos. – Rio de Janeiro: Campus; 1991 e GOMES, Manoel. A
Maçonaria na História do Brasil. – Rio de Janeiro: Editora Aurora; 1970 (2ª ed.).
63
médicos76 - investiu no conhecimento dos rapazes que integravam o grupo dos positivistas
que “bebiam das idéias da França”, e aproveitou carona com a questão religiosa, na tensão
vivida quanto deu-se o rompimento do Estado Imperial com a Igreja, devido a
excomungação de padres que eram maçons assim como inúmeros estadistas brasileiros77.
Para os maçons do Ceará, sobretudo os pertencentes à Mocidade, nem mesmo a política
imperial ou mesmo as disputas locais ficaram ilesas no combate, podendo ganhar apoio ou
repúdio quando o assunto era relacionado à Igreja78. Como não poderia deixar de ser, o
ataque ao domínio clerical na imprensa foi inevitável frente à “Tribuna Catholica”, que era
76
NEVES, Berenice Abreu de Castro. Intrépidos Romeiros do Ceará: Maçons Cearenses no Império (1870
- 1880). Dissertação de Mestrado Defendida no Programa de Sociologia da Universidade Federal no Ceará;
1998.
77
“Remontando-se a secculos esta lucta entre Jesuitismo e Maçonaria, tem aquelle (diocesano local) em
nome da egreja lançado sobre esta diversos anathemas todos fundados em origens, que não resistem a uma
seria argumentação. A Maçonaria nunca combateo a egreja, pelo contrario sempre livrou-a das garras do
perverso jesuitismo da morte do seu fundador Ignacio Loyola, o sucessor Diogo de Laynez, abuzando do
cargo de que foi revestido, entendeo que devia prender os destinos do mundo christão aos designios de suas
doutrinas, filhas da ambição e da vaidade”. – Fraternidade. Nº 04. – Fortaleza, 25/ 11/ 1873. P. 03. “A curia
romana, sempre inimiga da liberdade dos povos, apresentou as armas e sahio á campo em defesa da
ignorancia, da superstição e velhos preconceitos religiosos. (...) A maçonaria não se arreceiou da lucta;
ergue a luva atirada no solio de suas officinas por esses homens da sombra e foi batel-os nos seus proprios
intricheiramentos. Acompanhou-os á seus esconderijos para melhor estudal-os e tentou a luz do sol, a
torpeza e corrupção d‟esses corvos, que pretendem dominar a família, o estado, o mundo inteiro. A lucta
tornou-se de vida ou morte para a civilisação. Se triumpha a liberdade, estão salvos os direitos da
consciencia; se succumbe, a tyrannia da curia há de reduzil-a ao regimen da Companhia (...). (... ...) É
ardua a nossa tarefa, sabemos, mas o nosso devotamento a causa da moralidade dos povos, da liberdade de
consciencia e de todos os interesses legitimos da humanidade, nos permitirá supportar com firmeza e
satisfacção as provanças da lucta!”. Fraternidade. Anno: I; Nª 05. – Fortaleza: 02/ 12/ 1873. P. 01. Ver
também: ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja Contra Estado. – São Paulo: Kairós; 1979.
78
Como pode ser percebido neste artigo, a questão religiosa foi apoiada pelos maçons e positivistas do Ceará
frente à influência do poder clerical: “Na falla com que S. Magestade o Imperador abriu a sessão da
Assembléa Geral, lê-se o seguinte trecho, relativo a magna questão religiosa. O procedimento dos bispos de
Olinda e do Pará sujeitou-os ao julgamento do Supremo Tribunal de Justiça. Muito me penalisa este facto,
mas cumpria que não ficasse impune tão grave offensa á Constituição e ás leis. Firme no propósito de manter
ilesa a soberania nacional, e de resguardar os direitos dos cidadãos contra os excessos da autoridade
eclesiasticca, o governo conta com o vosso apoio, e, sem apartar-se da moderação até hoje empregada, há de
conseguir pôr termo a um conflicto tão prejudicial á ordem social, como aos verdadeiros interesses da
religião”. Fraternidade. Anno: I; Nº 28. – Fortaleza: 26/ 05/ 1874. P. 04. Desde o início da campanha da
Ilustração no Ceará que a política partidária local sofreu ataques por conta de suas posturas comprometidas
com os valores tradicionalistas: “A Constituição – o jornal do governo, que não tem a seu serviço uma penna
capaz de discutir as questões da actualidade ou que não tem coragem e lealdade bastante para defender o
gabinete; (...) „A Constituição‟, dizemos, procura, as vezes, entoar com a „Tribuna Catholica. (...) Lhe
responderemos como Aypelles: Ne sutor ultra crepidam, declarando que, si quer entrar na liça, primeiro nos
deve dizer quem é, e donde vem, para collocar-se no estadio com os outros combatentes vestidos de armas
taes, como é de costume nos torneios da intelligencia”. Fraternidade. Anno: II; Nº 30. – Fortaleza: 09/ 06/
1874. P. 03.
64
o jornal da Aquidiocese de Fortaleza79; o que leva a crer que os maçons cearenses estavam
comprometidos com os interesses emergentes de época.
Tornar-se então preclaro que no discurso do jornal “Fraternidade” a idéia de
uma nação é definida pelo atributo de um princípio moral, que é conhecer e aplicar as
idéias emancipatórias produzidas na Europa para acompanhar o desenvolvimento das
sociedades capitalistas. Por tanto, dever-se-ia romper com os valores e as instituições como
o Clero, o maior representante do poder tradicional e religioso que ainda imperava no
Ocidente, e investir no conhecimento científico, no desenvolvimento e aprimoramento
intelectual dos indivíduos, para que o Brasil, sendo uma nova nação, pudesse alcançar o seu
desenvolvimento moral correspondente aos anseios daqueles tempos80. Logo, o periódico
utilizado pela Academia Francesa propagava o discurso nacionalista segundo a lógica dos
setores da elite emergente de Fortaleza, em que o discurso científico, minando o poder
79
A luta entre o jornal maçônico “Fraternidade” e a “Tribuna Catholica” chegou a utilizar-se dos bastidores
da política nacional, como forma de combater posturas ligadas ao pensamento político tradicional, como pode
ser percebido no trecho do artigo que se segue: “A Tribuna Catholica, orgão da caixa pia, publicando sobre
os immediatos auspícios do deocesano, acaba de fazer uma importante descoberta. O Conselheiro Zacharias,
diz ella, chefe liberal, deffendeu a causa da religião no senado e é presidente da associação catholica na
corte; o Dr. Dias da Cruz, influencia liberal também é membro dessa sociedade; o conselheiro Paranaguá,
um dos chefes liberaes pronunciou-se em favor da egreja. Logo, conclue sabiamente, os liberaes são
catholicos, apostolicos romanos! Logica irresistivel! Em primeiro lugar, ainda ninguém lembrou-se de pôr
em duvida a orthodoxia do partido liberal do Brazil; mas admittida a hypothese contraria, os tres cidadãos
indicados pela folha episcopal podem constituir o partido, e resumir o seu programma? Não por certo. Os
partidos militantes no paiz são catholicos, por ora não appareceu ainda o schisma; os seus membros apenas
divergem no modo de encarar questões de direito (... ... ...). Combater os abusos, não é combater a
religião, é antes procurar dar-lhes maior esplendor, maior realce embora os raios despeitosos do Vaticano.
A religião não se impõe pelo Knot, senão pelos exemplos, pela pratica das virtudes evangelicas. O crê ou
morre deixou-se embora para os sectários de Mahomet”. Fraternidade. Anno: I, Nº 03. – Fortaleza, 18/ 11/
1873. P. 03.
80
“As ideias e não os factos são que dirigem o mundo (F. Laurent). Quando ellas tornam-se as aspirações
geraes de uma época, quando são a expressão das necessidades de um povo, força é, que se traduzam nas
leis e costumes do paiz que as vio nascer. Comprimil-as ou oppor-lhes barreiras é crear resistência, que
pode formular-se em revolução. As ideias nascem com o desenvolvimento intellectual de cada povo, e desde
que cahem no dominio publico tornam-se o patrimonio de uma Nação, uma, como que alimentação moral de
cada individuo. (...) Para as velhas nacionalidades da Europa a Liberdade de consciencia é hoje um facto.
Após longos annos de lucta entre egreja e o estado, este conseguio um triumpho assignalado nos annaes
históricos da humanidade, dando os direitos de cidade a consciencia universal. (...) Entre nós a liberdade de
consciencia foi garantida imperfeitamente na carta constitucional. O legislador constituinte, rodeado de uma
população sinceramente ortodoxa, curou bem pouco de dar legitima satisfacção ás crenças heterodoxas que
então apareciam como lampejos. O brasileiro teve de recitar o credo em cada acto de sua vida civil, sob a
pena de ser despojado de seus direitos políticos, e limitar-se a viver como estrangeiro no sol que vio nascer.
O direito de intervenção nos negócios publicos, o de fiscalisação directa sobre o emprego dado aos
dinheiros dos contribuintes (trecho danificado)” Fraternidade. Nº 05. – Fortaleza: 02/ 12/ 1873. P. 01.
65
81
HOBSBAWN, Eric J. Nações e Nacionalismos desde 1780. – São Paulo: Paz & Terra; 1998 (2ª ed.). P. 51.
66
doutriná-los nos princípios de Comte. Mas, sobre o que era de fato a Escola Popular, tem-se o
registro no “Fraternidade” do dia 09. 06. 1874, quando deu-se a realização de uma
conferência, cujo o tema tratava da religião. De ante mão, ao que parece, não eram pessoas
simples, operários ou populares, que freqüentaram este espaço, mas cidadãos “de bom grado”
pertencentes às elites de Fortaleza.
Conferência – Quinta-feira, 4 do corrente, realisou-se no salão
da Eschola Popular, a conferência do nosso illustrado e
intelligente Ir:. Dr. Manoel Quintiliano da Silva.
O auditorio numeroso e contando em seu seio as pessoas mais
gradas desta cidade, ouvio com a mais profunda e religiosa
attenção á palavra de luz do prolector e retirou-se nada tendo a
desejar de uma intelligencia orvalhada pelo estudo, fortificada
por convicções profundas e empregnada da fé sacrossancta de
uma regeneração social.
O dia 4 de junho tornar-se-há legendario em nossa história,
pois neste dia a nossa população dispertou dos clarões
radiantes de uma aurora nova, que trazia em seus véos o
orvalho vivificante de uma esperança, capaz de alimentar o
espirito humano, em sua lucta gloriosa contra as emboscadas
do jesuitismo85.
Permanece a impressão que vem acompanhando esta análise desde que ela
reportou-se à circulação de idéias e à atividade tipográfica em Fortaleza. É mui notório que a
Mocidade escreveu, publicou seus textos, promoveu a repercussão das suas idéias e leituras
entre os setores dominantes da cidade. Não diferente, no caso da Escola Popular as
conferências foram assistidas pelo mesmo grupo social do qual eram oriundos. Era um retorno
per si, ou seja, suas idéias circulavam entre seus párias emergentes, entre as elites de
Fortaleza, o que facilitou muito o pacto estético e político outrora mencionado. É notório que a
preocupação com a “regeneração social”, em instruir os cidadãos para conviver no processo de
consolidação das relações capitalistas, era de caráter urgente para os segmentos que
remontavam a nova ordem econômica, política e social. E neste sentido, dever-se-ia precaver
contra qualquer agravo tendo como uso os instrumentos do saber científico. É importante
perceber que pouco depois, entre 1874 e 1886, os cidadãos de Fortaleza aceitavam sem
maiores temores as realizações do saber médico-científico e psiquiátrico, sobretudo na
85
“Diversos” IN: Fraternidade. Anno: II; Nº 30. – Fortaleza: 09/ 06/ 1874. P. 03.
68
construção de asilos para debilitados mentais, mendigos, pedintes – formas que as elites da
cidade encontraram para conter o avanço naquele território das “classes perigosas”86.
Como não poderia deixar de ser, entre os conteúdos abordados nas
conferências, a religião sempre foi um assunto muito discutido87. E foi o assunto da religião
que sempre chamou a atenção dos cidadãos, como bem poderia ser esperado de uma sociedade
arraigada e sustentada nos valores e códigos tradicionalistas. Porém, outros temas que
apareceram como eletricidade, educação, democracia, astronomia, família, viriam para
mostrar aos cidadãos de Fortaleza as novas leituras daquela ordem que surgia88. A idéia de
liberdade, por exemplo, proferida na conferência de Xilderico de Farias, na Escola Popular,
em que o texto fora publicado no “Fraternidade” do dia 19. 06. 1874, procurou mostrar a
vontade individual emancipada dos interesses da Religião e do Estado, chegando até mesmo a
um posicionamento mais extremo do pensamento liberal.
Liberdade de Pensamento, liberdade de crenças – foi a these
desenvolvida na ultima conferencia da Escola Popular pelo nosso
illustrado Ir:. Dr. Xilderico de Farias.
O nosso Ir:. Com aquella elevação de pensamento que devassa os
vastos domínios do espírito humano, com aquella logica severa
que estabelece o processo da consciencia social, elevou a questão
a altura de uma larga synthese sociologica, em que desapparecem
todas as affeições politicas e particulares, para só deixar ver o
lado humanitario e philantropo.
(... ...)
A authopsia feita nos argumentos da sachristia deixou bem patente
a sem razão e caduquice dos immobilistas, d‟aquelles que
suppõem deter a força evolucionista do espirito, do progresso e da
liberdade, quando apenas a tem abafado e comprimido.
86
PONTE. Op. Cit. P. 91 – 96.
87
“Conferencia – No dia 28 de junho teve lugar a 3ª conferencia da Escola Popular, sendo o seu orador o Sr.
Amaro Cavalcante, que tomou para thema do seu discurso a Religião. Cabe ao illustre prelector a gloria de
ter iniciado entre nós o systhema de conferencias. A já firmada reputação do Sr. Amaro, a vastidão e
importancia do assumpto de sua conferencia atrahiram-lhe um numeroso auditorio. Apezar da energia, da
fluencia e do vigor de sua palavra e de sua erudicção, o orador, algumas vezes, parecia affogar-se na
immensidade do assumpto, sem poder elevar-se a um ponto de vista donde podesse dominal-o. Para isso
concorreram duas couzas: 1º. A profundeza quazi insondavel do thema, que por sua importancia e
difficuldade, tem exhaurido quazi que o vigor intellectual de nosso secculo; 2º. A pretenção utopica de
conciliar a fé com a razão, a revelação com a sciencia, eccletismo amphibio e superficial, que extinguiu-se
até mesmo na França, onde a corrente de idéas philosophicas e litterarias, no principio d‟este secculo, foi
dirigida por J. Cousin, Jouffroy, Royer-Colard, Chateaubriand, B. Constant, Lamartine, etc. Comtudo o
orador foi calorosamente applaudido e todos ficaram maravilhados das facculdades intellectuaes e
oratoriaes com que o Sr. Amaro jogou para uma conciliação comodadora, quanto chimerica”. Fraternidade.
Anno: II; Nº 33. Fortaleza: 07/ 07/ 1873. P. 02 e 03.
88
BARREIRA. Op Cit. P. 91 – 94.
69
89
“O tiro de Morte”. IN: Fraternidade. Anno: II; Nº 31. – Fortaleza: 19/ 06/ 1874. P. 02 e 03. Nas páginas a
seguir, o periódico publica o texto da conferência realizada em que aqui transcreve-se alguns trechos na
coluna “Escola Popular”: “Meus Senhores - Não julgueis que vai morrer a idéa das conferencias publicas por
ter ella de encarnar-se hoje em pessoa menos competente. (...) Venho fallar-vos da liberdade religiosa, que
Laboulaye chamava - a grande questão do futuro, e que é entre nós uma grande questão do presente, um
assumpto palpitante de actualidade.(...) Si as idéas que vou expender não forem as vossas, ou de alguns de
vós, além, da imprensa livre, além da palavra livre, qualquer de vós tem para combatel-as a cadeira que
estou occupando e que a Escola Popular põe a vossa disposição. Pertenço ao numero d‟aquelles que pensam
que a diversidade no modo de pensar está muito longe de ser uma especie de linha sanitaria que torna
incommunicaveis os membros de partidos oppostos, os sectarios de differentes douctrinas. Ao contrario,
quero enxergar a diversidade de idéas; nos pontos de vista differentes por que se encara a verdade, uma das
mil maravilhas pelas quaes a variedade infinita do universo forma uma harmonica e mysteriosa unidade. A
vida da intelligencia seria uma monotonia atrophiante sem as disputas dos homens de que já fallava o
Evangelho. (...) Não há, meus senhores, sentimento mais profundamente gravado no coração que o
sentimento religioso. A homenagem que a creatura rende ao Creador, homenagem que nasce da idéa da
nossa imperfeição e da concepção racional de um ente perfeito, é uma especie de solidariedade que liga o
finito ao infinito, que liga a terra ao ceu. A religião – o complexo dos deveres do homem para com Deus, é o
amor, - o amor na sua mais elevada e sublime manifestação porque é o amor eterno e profundo que nasce da
humildade, mas que vôa para a immensidade, elevando o coração a Deus. (...) E se vos convirdes que a
consciencia é livre, em que cada um no seu foro intimo concebe e adora o Creador, como lhe inspiram a
consciencia e o coração, como podereis negar a mesma liberdade á manifestação da crença e da adoração,
como querereis tolher a liberdade do culto? (...) Fallo-vos, meus senhores, no homem no ponto de vista
individual, no estado de natureza, como dizia a philosophia do secculo XVIII, si é que existe um estado
social; fallo-vos no direito encarnado no individuo, abstracção feita no meio social em que vive, abstracção
feita do estado organisado; e, ahi nessas eras anti-historicas, n‟esta vida extra-social, quando o direito era a
força, quando a lei era o sic volo, quando a natureza material esmagava sob o pezo de seus esplendores o
homem destituido das energias da associação, nesse chaos inconcebivel, si alguma cousa sobrenadava a
treva immensa, era sem duvida o sentimento religioso, era, como diz a Biblia, o espirito de Deus boiando
sobre as aguas. Mas pergunta-se: entrando o homem para a sociedade, organisado o estado por essa troca
mutua de direitos e obrigações, por essa cessão que cada um faz de certa porção de sua liberdade natural em
beneficio da segurança, da ordem, da liberdade de todos, deverá perder a sua natural expansão o sentimento
religioso, deverá ser tolhida a liberdade de cultos? O que é o Estado? O Estado, a sociedade politica não é
mais do que a união, a justaposição, a coexistencia dos individuos com os seus direitos e deveres. O Estado
tem por fim a „garantia dos direitos e das liberdades de cada um, salvas as restricções que a liberdade de
cada um faz a liberdade de todos‟; donde se vê que em vez de comprimir, o dever do Estado é proteger,
alargar e desenvolver esses direitos naturaes que constituem a personidade humana, e entre as quaes está
itoel dire de adorar a Deus. Os direitos do Estado são a somma dos direitos individuaes; a sua missão é
garantir a vida social do individuo. O Estado não se compõe de crentes, compõe-se de cidadãos. Em que é
que o modo porque o meu visinho concebe e adora a Deus pode quebrar o laço necessario para a
solidariedade social? O fim do Estado é a justiça e a justiça é o cumprimento dos deveres e o respeito aos
direitos alheios.Tem-se dito, meus senhores, que o Estado não pode ser atheu. Isto é um erro. „O Estado,
dizia Royer Collard, não é indifferente, o Estado não é neutro: elle não é mais que incompetente‟. Seria
conceder a infallibilidade aos homens que fazem leis, o dar-lhes o direito de conhecer e proclamar a verdade
em materia religiosa. Uma assembléa legislativa não é um concílio, nem a religião pode ser uma instituição
70
politica, uma questão administrativa. Perante a sociedade todos os cultos são iguaes, porque todos traduzem
um direito: e o dever do Estado é proteger o direito (... ... ...)”.
71
90
“Escola Popular – „Soberania Popular, conferencia pelo Dr. Pompeu Filho, na reunião de 16 de agosto‟”.
Fraternidade. Fortaleza: 29/ 09/ 1874. P. 02 e 03.
91
“Reconhece ao bacharel Thomaz Pompeu de Souza Brasil o direito de continuar a perceber o ordenado de
professor aposentado do Lyceu do Ceará, cumulativamente com os vencimentos de professor effectivo da
Escola Militar – O povo do Estado do Ceará, por seus representantes, decretou e eu promulgo a seguinte lei:
Art. 1. Fica reconhecido ao bacharel Thomaz Pompeu de Souza Brasil o direito de continuar a perceber o
ordenado de professor aposentado do Lyceu do Ceará cumulativamente com os vencimentos de professor
effectivo de professor da Escola Militar deste Estado; Art. 2. Revogam-se as disposições em contrario. O
Secretario de estado dos Negocios da fazenda a faça publicar. Palacio do Presidente do Ceará, em 31 de
outubro de 1898, 10 da República. Antônio Pinto Nogueira Accioly”. A República. Anno: VII; Nº: 258. -
Fortaleza: 11/ 11/ 1898. P. 01. (BNB, Edição fac-símile)
72
92
BEZERRA, Antônio. “O Ceará e os Cearenses”. IN: Revista da Academia Cearense. Anno: V; Nº 05. –
Fortaleza: 1900. P. 170.
93
Idem.
73
94
“Mortalidade na Capital”. IN: Cearense. Fortaleza: 06/ 12/ 1877. P. 02.
95
“Infeliz Creança – Em dias do mez passado, na povoação da Canôa, o Sr. Luiz Gonçalvez da Justa ao
levantar-se e abrindo a porta da sua casa, encontrou morta uma creança, que só tinha ossos e pele, tal era o
seu estado de margem. Julga-se pelos trapos vestidos no corpo e das averiguações particulares procedidas,
ser essa victima da fome filha de algum retirante em trajeto para esta capital”. “Relatório que o „Retirante‟
74
experimentou uma horrenda estiagem que dizimou quase a metade do seu capital material e
humano. Inevitavelmente a catástrofe não deixou de afetar todos os cearenses; uns mais,
sobretudo os da zona rural, e outros não tão assolados pela fome ou escassez d‟água, como
os setores das elites fortalezenses. Contudo, as elites da capital, temeram com o avanço dos
retirantes moribundos e maltrapilhos, que, segundo discursavam, era gente “degenerada e
desprovida de qualquer conduta moral”, avançando sobre o território da cidade, o espaço
destinado às elites. Esta intensidade experimentada viria afetar a Mocidade Cearense na
confecção de suas narrativas discursivas, sobretudo nos textos dos órgãos durante as
décadas de 1880 e 1890. No momento em que se dava a formação das instituições do
regime republicano, aquele segmento letrado viria propagar em sua máquina literária o
sentido que após a desgraça do flagelo, o povo cearense haveria de tornar-se um tipo ideal,
um exemplo de força e virtude à nação brasileira por ter sobrevivido às forças naturais.
Percebe, por exemplo, em artigos de órgãos literários/ científicos como “A Quinzena”97,
apresenta ao Exm. Sr. Conselheiro João José Ferreira de Aguiar, sobre o estado geral da provincia, com
relação ao flagello da secca”. O Retirante. – Fortaleza: 07/ 12/ 1877. P. 03.
96
“Eis como o Rev. Scaligero, vigario de Quixadá, nos descreve o estado de sua freguesia em 29 do passado
- „Hontem aqui cheguei e não sei como lhe escrevo, imprecionado com os quadros de lastimas que aqui
encontrei. É horrivel viajar para o centro. Pelas estradas encontrei uma procissão interminavel de retirantes,
nús, inchados, cadavericos e tiriricantando de frio e fome! Muitos já cahidos, quasi inanidos, como succedeu
no Riacho do Castro, onde cahindo um pobre homem e 3 filhos teriam morrido se o Sr. Moura, alli morador,
não os accudisse com algum alimento. Aqui desapareceram as esperanças do povo que vae tocando ao
desespero. Todos os recurssos do governo me parecem insufficientes. Cheio de dor e contrariado dou-lhes
noticia de que aqui já tem morrido de fome, rigorosamente falando cinco pessoas e isso dentro da villa!!! Já
se encontra gente cahida pelas calçadas! (...) Além da fome, a nudez é completa, muitos desgraçados não tem
um trapo com que cubrir o pudor para sahirem a pedir uma esmola! (... ...) Os que não morreram de fome,
morrerão com certesa da alimentação das raizes bravas, de que muitos além de inchados, estão com a boca
cortada, como se soffressem de escorbuto, por causa do gravatá. (... ...). Ainda agora sahiu de nossa casa
uma pobre mulher, mãe de família, que deixou os filhos cahidos de fome, vem pedir uma esmola e dice-me
que os tem alimentado dando-lhes um pouco d‟agua com sal! Uma mulher retirante pede para seu pae que
ficou cahido de fome n‟areia do rio! Um pae apresenta-me seis filhos pequenoz, nús e magrinhos, com fome,
pedindo uma esmola (...). Tendo ido ver um doente encontrei n‟essa casa um quadro horrivel: a miséria, a
dor, a fome! Sobre uma immunda encherga jazia uma desgraçada mulher quasi esqueleto, nua da cintura
para cima, com uma creança tão mirada como ella no peito! Basta, basta de miséria‟”. Cearense. Anno:
XXXI. – Fortaleza: 07/ 10/ 1877. P. 03. BPCMP, Setor de Microfilmes. M. 84.
97
Sobre o quadro de misérias que o Ceará sofreu com a seca de 1877 a 1879, Abel Garcia teceu a sua
narrativa atribuindo à mulher cearense a superação dos sofrimentos humanos ocorridos com as intempéries
através de sua “solidariedade moral”: “N‟uma phase de desventuras para o Ceará, em que as energias mais
viris quebravam-se contra a rigidez da fatalidade cosmica, vibravam, como as tonalidades d‟uma
orchestração de crystaes, no ouvido do pobre, umas notas harmonicas e enthusiasticas, um canto electrisador
da coragem abatida. Sahiam da alma da mulher aqulles sons. Com o coração a transbordar de amor e labios
que traduziam pelos sorrisos, vinha ella vasar n‟alma do desgraçado o tonico da esperança. Rememorar essa
passagem tristonha e por vezes sulcada de luminosos rasgos de humanitarismo, é tentar na linguagem da
poesia aljofrada de imagens scintillantes como alvas estalactites ao sol a pintura do quadro de desolação,
que por momentos ameaçou partir a estreita solidariedade moral do povo cearense”. GARCIA, Abel. “A
75
Mulher Cearense”. IN: A Quinzena: Propriedade do Club Litterario. Anno: I; Nº 04. – Fortaleza: 28/ 02/
1887. P. 01.
98
“Um dos factos em que mais se notou a coragem e resignação desse povo excepicional, foi na
terribilíssima secca de 1877, 1878 e 1879. Descrever as luctuosas scenas dessa quadra de dores e agonias de
uma população inteira, seria serviço superior á nossa capacidade. Perderam-se para mais de trezentas mil
vidas naquelle período angustioso, mas dentro de poucos annos, não se lembrava mais a antiga provincia dos
seus ainda recente padecimentos. No tempo em que se grassou a varíola, houve dias em que morreram para
mais de mil pessoas. Foi doloroso o quadro da fome e da peste, e, no entanto, o povo manteve-se revestido de
immensa coragem para defrontar com todas as calamidades. Habituou-se á desgraça”. BEZERRA, Antônio.
“O Ceará e os Cearenses”. Op. Cit. P. 147.
99
Necessariamente, este artigo na Revista do Instituto do Ceará, de Joaquim Catunda, não alude ao tema
específico da seca no Ceará. Porém, sendo um estudo de climatologia, e admitindo pressupostos ocorridos
seja pelas trocas simbólicas ou intensidades experimentadas durante as secas, reconhece-se que a referida
evolução das forças cósmicas, por sua própria lei natural, haveria de condicionar a terra a uma constante
retomada dos períodos de intempéries - como a estiagem ou tempos glaciais – se não tivesse o homem
dominado o conhecimento científico. Por tanto, conclui-se que a catástrofe, a tragédia estética na narrativa
textual, é componente da forma arquitetônica do presente discurso: “É o clima immutabil, como pretendia
Aragon, ou obedecendo á lei que rege todas as realidades evolue, é vir a sêr? Foi sempre, desde os primeiros
ensaios da vida na superficie do planêta, o que actualmente é, ou se-há modificado gradualmente até assumir
as feições de hoje? Nessa ultima hypothese, qual o termo da evolução, e si o clima virá a desapparecer em
remoto futuro, arrastando em suas modificações e morte dos organismos? Stará a terra, como sepulkchro
enorme, condemnada a rolar indefinidamente nas congeladas e lobregas regiões do vasio as cinzas da
humanidade, depois que com o derradeiro homem se-extinguir para sempre o labor do pensamento?
Impossivel a solução d‟essas questões, antes que as sciencias de observação se-houvessem enriquescido
d‟essa prodigiosa somma de factos de que tanto se-orgulha hoje o spirito humano, e que, no dominio das
sciencias, hão feito surprehendentes revelações, derrocado preconceitos secculares e corrigidos erros
sanctificados pelas tradições religiosas. (... ... ...). Continúa, porem, a condemnação do sol, largas
manchas que apparecerão em sua superficie se transformarão em crosta. Antes d‟essa extincção final, o
calôr e a luz irão diminuindo progressivamente; a vida acanhará sempre mais a sphera de suas
manifestações, na direcção do Equador. A zona glacial transportará os tropicos, determinando a extincção e
a transmigração dos organismos para a zona equinocial. A humanidade, exaustas as suas energias
evolutivas, se-aquescerá, envelhescida, debaixo do Equador nos dous hemispherios, aos raios de um sol
palido e sem calôr, que afinal se apagará no spaço, deixando a terra alumiada somente da luz sideral”.
CATUNDA, Joakim. “As Evoluções do Clima”. IN: Revista do Instituto do Ceará. Anno: II; T. II. –
Fortaleza: Typographia Economica; 1888. P. 15 – 23.
100
WHITE, Hayden. Meta-História. A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo: EDUSP; 1995. P.
204 – 205.
101
THEÓPHILO, Rodolpho. Scenas & Typos. – Fortaleza: Assis Bezerra; 1919. P. 03.
76
102
Nestas cenas do romance, percebe-se que o darwinismo estético do autor preocupava-se com a resistência
do homem em relação ao meio e a virtude do corpo e da mente que superando às intempéries naturais
contrapuseram-se à imagem da decadência moral: “Uma onça pintada, tão grande, que media quase dois
metros da ponta do focinho à extremidade da cauda, de pé no fundo da gruta, balançando o rabo, como
fazem os gatos, olhava para Freitas [que estava em busca de água e alimento para saciar as necessidades da
família]. Os olhos do fazendeiro fitaram os da fera ordenando-lhe que se rendesse. O animal e o homem não
perdiam um movimento do seu contrário. Manuel de Freitas tinha a luta como travada. Em tais condições era
a vida pela vida. Teve uma idéia, cuja elaboração foi rápida e o absorveu com todos os seus sentidos. Dessa
saiu a resolução de atacar prontamente a fera. Anima-o a convicção de que a onça não resistirá á sua
musculatura e ao seu terçato, e prepara-se para ataque, que deve ser súbito e terrível. (...) Tendo em uma das
mãos o terçato e na outra o chapéu, corre sobre a fera. Esta encabrita-se, escancara a boca mostrando as
compridas e aguçadas presas. Freitas agride a onça, com agilidade pasmosa, introduz-lhe o chapéu na boca,
cravando-lhe ao mesmo tempo o terçado no coração”. P. 19. “(...) Do chão alevantou-se o esqueleto, que
media mais de um metro e meio, e tinha a hediondez dos espectros. O tronco largo e bem desenvolvido
mostrava ter sido vestido de uma carnação vigorosa, que havia consumido a fome e deixado nuas as
vértebras e as costelas. O espinhaço, como uma coluna de nós, apenas coberto de pele, deixava contar todos
os ossos. A ele se articulava a cabeça, um pouco mais vestida do que uma caveira, com um rosto esquálido, a
fisionomia carregada de ferocidade de animal faminto. (...) Manuel de Freitas, temendo pelo pudor da filha,
cuja virginidade moral se macularia percebendo as formas de um homem todo nu, levantou-se e pôs-se à
frente do faminto. (...) era necessário retirar já dali aquele homem, fazê-lo sair enquanto o sono da filha
impedia que fosse vista a figura impudica do retirante. O fazendeiro aproximando-se do faminto fitou-o com
energia e com um gesto ordenou-lhe que saísse. O infeliz coçou-se, roeu as unhas com gula e desespero,
rangeu os dentes, mastigou a saliva e articulou com dificuldade – fome – mas em um som abafado e todo
gutural”. THEÓPHILO, Rodolpho. A Fome. – Fortaleza/ Rio de Janeiro: Academia Cearense de Letras/ José
Olympio; 1979 (primeira edição 1890). P. 33 - 34.
103
Aqui transcreve-se parte do poema que comportou no seu conteúdo imagético-narrativo a intensidade
experimentada pela estética trágica da seca: “Minha patria! Lar querido.../ Qu‟immensa desolação!/ No lucto
do coração;/ Que a minha terra adorada,/ Por fera sêcca assolada,/ Ora vejo amortalhada,/ N‟amargura,
n‟afflicção!/ Meu Deus!... que scenas d‟horror!/ Misericordia, oh Senhor!// (...) O gado que nédio outr‟ora/
Urrava escarvando o pó.../ É múmia que geme e chora.../ Nos ossos a pelle só!/ De sêde e fome expirando,/
Penoso a vista espraiando.../ Vai a campina lastrando.../ Em vão de seu dono o dó!// (...) A lavoura
desaparece,/ Como foge a creação;/ Já o abastado empobrece,/ O pobre supplica o pão;/ E todos nivéla a
77
sorte.../ Vem a peste, surge a morte,/ Ninguem se julga mais forte.../ É tudo – consternação!// (...) Os
sertanejos descendo/ Em bandos ao litoral.../ Sem mantimentos... comendo,/ Bravia raiz lethal.../ Ai,
choram... são retirantes.../ Andrajosos, mendigantes.../ Esparsos... agonisantes.../ Perdendo o sopro vital!//
(...) Transforma-se em necroterio/ O meu amado torrão;/ Da morte no vasto Império/ Só reina a –
putrefacção!/ Os corpos sem sepultura.../ Ao tempo... sem compostura.../ Do bruto, da creatura/ Os restos em
confusão!// Negreja o feral recinto/ Nuvens de vis urubús.../ Coveiro imundo e faminto,/ Qu‟apenas deixa
ossos nús;/ E quando baixa ao relanto,/ Eis o morcego cedento/ A sugar minguado alento/ Dos moribundos...
Jesus!// Aqui loucos, esfaimados,/ Cruéis filhos, cruéis paes!/ Entre os seres desalmados,/ Virtudes
celestiaes!.../ A mãe que delira e freme,/ Se o filho com fome geme/ Por que seus peitos espreme.../ E os peitos
não vertem mais!// (...) Alli devora vê-se radiando/ Os affectos filiaes.../ Fracos entes carregando/ Os seus
amigos leaes!/ E da casa no terreiro/ Uivando o fiel rafeiro.../ N‟outra parte, o bandoleiro/ Devora restos
mortaes!// (...) E ahm... o casal deserto!/ Que a família abandonou.../ Velho pai de passo incerto/ E embreve
á campa baixou;/ Após a consorte... o filho.../ Qu‟importa do moço o brylho?/ Tudo cahiu sob o trilho,/ Que o
infortunio rojou!// (...) Revogai tamanha pena.../ Clemencia, Senhor, perdão/ Se a culpa não foi pequena,/
Grande há sido a expiação!/ Em ruínas sepultadas/ Eis minha patria adorada.../ Escutai a malfadada/ Que
vos pede compaixão!/ Não mais tanto horror!/ Misericórdia, oh Senhor!”. APUD Revista Trimestral do
Instituto do Ceará. Anno: I; T. I. _ Fortaleza: Typografia do Cearense: 1887. P. 65 – 68.
78
Nada mal para alimentar o vigor de sujeitos que outrora pregaram a idéia de
progresso material e espiritual, com o labor voltado para o avanço das instituições
burguesas e comprometimentos com interesses ligados ao capital internacional. A seca
acabou não resultando no fim das empreitadas da civilização. Pelo contrário, condicionaria
ao povo cearense pendor à disciplina, ao trabalho, resistindo às intempéries, acabando por
moldar o seu caráter em prol do progresso, que era o compromisso moral dos novos tempos
que não poderia ser esquecido. Logo, “triunfar nas lutas da vida”, esta enunciação dawinista
e lamarckiniana, conectou-se precisamente com os anseios dos grupos emergentes de
Fortaleza, no sentido de aprimorarem-se na afirmação e legitimação dos seus interesses,
assim como o spencerianismo viria para justificar, segundo os princípios da
heterogeneidade, a expansão de tais anseios, a estender seus domínios e o interesse do
104
QUERÓS, Pedro de. “A Evolução Cearense”. IN: Revista da Academia Cearense. T. VIII; Nº 08. –
Fortaleza: 1903. P. 07 – 09.
79
capital em capturar todas as alteridades sociais daquela sociedade fadada pelos domínios da
tradição.
Estando os setores letrados empenhados na manipulação dos enunciados
coletivos, por agenciar os modos de subjetivação da sociedade em favor dos interesses de
uma classe emergente, às elites fortalezenses, através da máquina administrativa, couberam
os esforços para conter o avanço dos retirantes e manter a imagem de progresso na cidade.
É nesse momento de fato que se percebe Fortaleza como sendo o espaço cobiçado das elites
emergentes; pois, a vinda para a cidade dos imigrantes do interior, vítimas do flagelo, da
fome e da exploração fundiária, era ameaça na certa para aquele espaço dominado por
interesses maiores, destinados à imagem sã do progresso urbano e comercial, conforme
exigia a demanda do mercado105.
Para abrigar a grande população de immigrantes que vem pedir
reccursos n‟esta capital tem o Senhor Desembargador Estellita
mandado construir choupanas nos arreboldes da cidade.
Existem hoje arraiaes na Logoa Secca, Tejubana, Meirelles,
entrada da Florista e Boulevard do Duque de Caxias!
(...)
Nos dois ultimos pondo os que forão recentemente construídos e
hoje que se acha ainda em construção, são até supperiores ao
necessario.
Julgamos que domicilios provisorios como esses não deveriam
passar de simples palhoças.
Fazer casas de barro e telha é muito dispendioso e quando é
necessario construir barracas em muito maior numero do que
os que existem e deveriam antes acelerar a construção de todas
de que melhorar algumas106.
105
“De dia para dia se torna mais critica e dollorosa a situação das classes pobres, em virtude da secca que
assola tão duramente essa infeliz província”. “Editorial”. O Retirante – Órgam das victimas da secca.
Fortaleza: 08/ 08/ 1877. P. 03.
106
“Obras Públicas”. IN: Cearense. Órgam do Partido Liberal. – Fortaleza: 14/ 10/ 1877. P. 02.
107
“Segunda-feira a tarde visitamos os arraiaes de imigrantes do terceiro districto, á cargo do Sr. Capitão
Santos Neves, nos bairros do Calçamento e São Sebastião e então tivemos de assistir quadros bem
dollorosos. Para mais de 4 mil inffelizes, muitos delles accometidos de febres e outras enfermidades, pobres
mulheres nos ultimos dias do periodo gestativo, debaixo de cajueiros e moitas, expostas a toda a sorte de
imtemperies”. “Barracas para imigrantes”. O Cearense. Fortaleza: 01/ 11/ 1877. P. 03. Para maiores detalhes
sobre esta prática de conter o avanço dos setores despossuídos na capital cearense ver: RIOS, Kênia Sousa.
80
é dado a ser percebido, foi nesse momento de ascensão das elites emergentes da cidade que
se iniciou esta prática. No romance “A Fome”, por exemplo, o autor reconstrói em trechos da
sua narrativa as cenas do cotidiano da capital cearense durante a estiagem de 1877/ 1879.
Havia muita miséria na população adventícia da capital. As
mesmas cenas da fome nos ermos caminhos do interior tinham
lugar nas ruas e praças de Fortaleza. Quase cem mil infelizes de
todas as idades viviam miseravelmente nos abarracamentos do
governo, nas praças públicas e nos passeios das casas! (...)108.
progresso para os que resistiram à seca. Como se vê, o darwinismo estético da narrativa
caminhou junto da manipulação dos enunciados que pairavam sobre a imagem da capital.
Vê-se então no romance que as mazelas sofridas na província acompanharam
as personagens durante toda a peregrinação rumo à Fortaleza, desfechando o enredo na capital
(lugar do progresso), onde coincidentemente acaba-se a seca com a chuva, dando-se logo o
retorno das personagens para o campo que estaria em bonança. É interessante como este
mesmo movimento chega a acontecer também nas atualizações de intensidades e realizações
materiais dos sujeitos aqui abordados. Muitas vezes sendo da mesma forma utilizado na luta
entre as facções políticas locais110, o discurso das elites fortalezenses, quanto à resistência ao
flagelo da seca bem como o seu pendor para o progresso, sendo intensamente experimentado
no espaço da capital, chegou a causar agitação em outros espaços da província. A repercussão
da campanha abolicionista em Fortaleza, por exemplo, veio a operar no município do Acarape
que acabou por desencadear um processo político-intitucional naquela realidade, levando a
emancipação dos cativos em 1º de janeiro de 1883 (um ano antes da abolição na província,
1884) em nome da civilização111. Desta feita, nota-se que a atualização das intensidades
subjetivas experimentadas em uma dada realidade sobre as realizações materiais de outros
territórios sociais, ilustra a potência da ação discursiva no empenho por operar em favor de
uma vontade dominante em uma relação de poder, a estender os seus domínios sobre outros
grupos sociais.
110
O Retirante foi, no período, o periódico que se atribuiu “órgão das vitimas da seca” para combater a
administração do presidente da província, o Conselheiro Ferreira de Aguiar, conforme pode ser percebido
neste artigo de época: “Percorre-se os arrebaldes d‟esta capital, como especialmente as estradas, e ahi se
encontrará a miséria entrelaçada com a fome! E o governo, de braços cruzados, conserva-se innabalavel:
nada vê, nada ouve; ao nosso que faria por certo um acto de verdadeira caridade mandando, dar abrigo a
essa legião de moribundos e soccorendo-lhes com o necessario para lhes mittigar a fome (...)”. “Distribuição
de Esmolas”. O Retirante. – Fortaleza: 01/ 07/ 1877. P. 03.
111
“Manuel Fernandes de Araújo, escrivão das rendas gerais no Município, tivera que vir a Fortaleza
recolher saldos na Tesouraria da Fazenda. Na Capital viu como avançava o movimento emancipador e, ao
voltar comunicou ao coletor Joaquim Agostinho Fraga o que observara e ambos transmitiram ao coletor
provincial Antônio da Silva Matos a intenção de fazer algo mais positivo em prol dos escravizados. E deram
os passos iniciais, o próprio Matos alforriando os três que possuía, exemplo imitado, espontaneamente, pelos
outros senhores – Simeão Teles de Menezes Jurumenha, Gil Ferreira Gomes de Maria, Emiliano
Cavalcante... A visita de membros da Cearense Libertadora completou o resto, pois o que faltava aos
acarapenses de boa vontade – dinheiro para algumas manumissões, ela pressurosamente forneceu. (... ...) A
mensagem de fé e de igualdade, como de São Paulo aos coríntios, levando-lhes a essência dos novos
evangelhos, iria ser trazida para o rosal virente pelos inquietos apóstolos da Libertadora, nos vagões da
estrada de ferro puxados pela „Sinimbu‟, que era também um símbolo de primazia, a número-um das
locomotivas da empresa, e repletos de flores, de música, de perfumadas damas e cavalheiros de distinção”.
GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. – Maracanau: Prefeitura Municipal de Maracanau/ Casa de
Cultura Capistrano de Abreu; 1988 (4ª ed.) P. 160.
82
dessa “revolução sem derramar sangue”, segundo o discurso, a Mocidade teria causado a ira
dos que lutavam pela manutenção da escravidão na Corte, nas províncias do eixo centro-sul.
A especulação deste fato, sobretudo na manipulação de enunciados coletivos, teria a sua
repercussão mais gritante anos depois, quando deu-se a emergência pela formação das
instituições republicanas, em que as agremiações literárias do Ceará surgidas na década de
1890 travariam os seus debates na arena da imprensa literária, direcionando seus interesses
de grupo ao campo político-institucional brasileiro, como bem é notado neste trecho da
“Revista da Academia Cearense” já mencionado.
Foi energica, renhida mesmo aquella batalha contra o direito
de um homem sobre o outro, propriedade amparada por lei,
protegida pelo governo, pelos interesses de todos; mas por fim a
força do direito domou ao direito da força, a civilisação aos
preconceitos em triumpho egualou todos os homens sem
derramar-se o sangue de irmãos.
O glorioso feito de 25 de março de 1884 apressou o de 13 de
maio de 1888 (...)114.
Como bem pode ser percebido também neste soneto do padre mineiro Corrêa
de Almeida, publicado em “O Pão”, órgão da Padaria Espiritual em 1895, vê-se que em boa
medida a repercussão da narrativa produzida pela máquina literária da intelectualidade
cearense deu à abolição de 1884 certa repercussão em outras províncias, ou melhor,
agenciou enunciados em outros espaços sociais do país. Pode-se dizer que, neste caso
singular, a atualização das intensidades produzidas naquela relação de poder impregnou-se
naquele sujeito, em sua cartografia subjetiva.
No intuito de livrar do captiveiro
Os homens de côr prêta e de côr parda,
O heroico Ceará foi o primeiro
A collocar-se afoito na vanguarda.
114
BEZERRA. Op. Cit. P. 192.
85
115
ALMEIDA, Pe. Corrêa de. “A Padaria Espiritual do Ceará”. IN: O Pão... da Padaria Espiritual. Anno: II;
Nº: 09. – Fortaleza: 01/ 02/ 1895. P. 02.
116
SOUZA, Euzébio. “O Ceará e a Abolição”. IN: Revista do Instituto do Ceará. Anno: XXXVIII; T.
XXXVII. – Fortaleza: Typographia Minerva; 1923. P. 385.
117
“É preciso confessar que a idéa partiu de uma associação comercial, da „Perseverança e Porvir‟”.
BEZERRA. “O Ceará e os Cearenses”. Op. Cit. P. 191.
118
GIRÃo. Op. Cit. P. 113, 122, 185 e 254.
119
Logo no início da Sociedade Cearense Libertadora, as mulheres começaram a exercer significativa
participação no movimento abolicionista do Ceará. E, sobretudo, pela sua permanente atuação, bem como por
serem em sua maioria as esposas, mães, filhas e familiares dos abolicionistas de outras sociedades, elas
uniram-se em uma facção distinta do abolicionismo local, as “Libertadoras Cearenses”. Como não poderia
86
deixar de ser, o discurso civilizador é empregado e reforçado com enunciados que se reportaram à idéia de
patriotismo e caridade no sentido cristão: “Mimosas filhas de Moema, e santa seiva do coração cearense! A
vós que tendes a virtude de crear em vossos regaços de mães, varões illustres como Alencar – o espelho de
vossa alma plena de poesia e amor; ou Sampaio – a apotheose do vosso coração viril e esforçado de
heroismo, a vós viemos depor aqui em face do mundo sobre o altar das liberdades publicas – a imprensa –
um voto de sincera gratidão, um brado de jubiloso enthusiasmo pelo modo extremamente patriotico com que
acudistes ao reclamo da bemdita idéa da emancipação dos escravos que gemem ainda sob o nosso
esplendido ceo, nos ferros dos captiveiros! Sim! Que o vosso congresso patriotico demonstrado tantas vezes
na paz e na guerra, na afflição ou no prazer, é sempre um escudo formidavel, um estimulho enthusiastico
para os luctadores da patria. É do calor diviao dos vossos olhos cheios de doçura inefavel que so infiltram
n‟alma dos nossos heroes com a virtude da electricidade – a coragem e o valor, a abnegação e o
enthusiasmo, nas justas do progresso, da liberdade e da civilisação. Santelmos da patria, anjos tutelares dos
seus heroes, vós sois tambem na quadra dos combates, das luctas reaes ou materiaes – a vivandeira ou a
heroina”. “As Senhoras Cearenses”. IN: Libertador – Orgão da Sociedade Cearense Libertadora. Anno: I;
Nº 01. - Fortaleza: 01/ 01/ 1881. P. 02. “Na cruzada humanitaria que o Ceará levantou em prol da mais santa
das causas, a mulher cearense tomou a posição mais nobre – collocou-se na vanguarda. Seu nome figurou
logo na primeira pagina do livre que recolhia os suffragios abolicionista. Seus serviços tambem não se
fizeram esperar- e ellas prestaram-n‟os com extremos de amor e dedicação. Já consignamos, cheios d‟esse
orgulho que dá o amor da patria, o muito que fizeram as senhoras cearenses no Bazar expositor. A mesma
dedicação nos veio ainda pinhorr no concerto que teve lugar em beneficio da Sociedade Cearense
Libertadora. (...) Ella saudou ao povo heroico do dia 27 de janeiro, desferindo-lhe o canto de sua adhesão na
mimosa poesia que corre impressa no Cearense, nº 23. Foi ella ainda que trouxe á lembrança publica a data
memoravel da abolição da escravatura em Cuba. Mas modesta, como a violeta do val, exhala seu perfume ao
longe, e esconde-se á sombra que a subtrahe á appreciação. É assim o coração da mulher cearense”. “O
Coração da Mulher Cearense”. IN: Libertador. Anno: I; Nº 04. – Fortaleza: 17/ 02/ 1881. P. 02.
120
GIRÃO P. 73 – 77 e 170.
121
Ainda que houvesse outras sociedades abolicionistas no Ceará, a Cearense Libertadora e o Centro
Abolicionista foram as que tiveram maior repercussão, tanto pelo número e posição social das pessoas que as
pertenceram, bem como ao número de alforrias que conseguiram. Foram também as que mais se distinguiram
uma da outra; notoriamente, a Libertadora como sendo a “carbonária” (como sempre fizeram questão os seus
sócios de se auto denominarem) e o Centro a de postura conciliadora, por isso, taxada de forma pejorativa
inúmeras vezes por seus comparsas abolicionistas de “legalistas”. “O „Centro‟ queria a liberdade do escravo
pela ordem juridica, pelo regimen de paz, pelos meios suasorios, pela persuasão affectiva, pela palavra
evangelica, pelo equilibrio das forças existentes e do porvir com interesses creados e dominantes. A
„Libertadora‟, ao contrário, a queria pelos meios revolucionarios, sem escolher armas na panoplia dos
elementos tumultuarios, desconhecendo tudo e todos. Era um clarão rubro querendo ser a aurora –
annunciadora do sol. (...) O „Centro‟ queria que a libertação fosse uma festa de concordia, uma symphonia
de amôr, e naõ um producto da discordia, uma pocema selvagem; queria que todos os brasileiros, irmanados
e confundidos n‟uma união cordial, abrissem uma nova era, um cyclo aureo á luz do Cruzeiro do Sul,
fazendo do nosso patriotismo um monumento perene de grandeza moral. As cartas de liberdade, que elle
conseguiu, contam-se por centenas, muitas centenas. A „Libertadora‟, não se pode contestar, era um
organismo forte, mas mal equilibrado, na pura expansão de uma super-actividade asynergica. Era um
soberbo núcleo de acção indisciplinada, de orientação norteada por estimulos irreflectidos. Contava com
factores de alta valia, mas desviados de uma conveniente directriz”. FONSECA FILHO, Júlio César da. “Em
torno da Abolição”. IN: Revista do Instituto do Ceará. Anno: XXXVIII; T. XXXVIII. – Fortaleza:
Typographia Minerva; 1924. P. 355 – 357.
87
A emancipação dos cativos no Ceará que ainda tardaria três anos, proferiu no
texto um discurso ufanista perante às outras províncias, ou melhor, aos grupos dominantes
de cada realidade local. Este tipo de argumento utilizado de modo geral pelas elites
brasileiras, que tem como bardo a preocupação em fazer do Brasil um país moderno123, fora
empregado pelos setores emergentes da capital cearense, em que se destacaram os
comerciantes, no sentido de combater o centralismo político e econômico do eixo centro-
sul, onde concentrava-se à economia nacional voltada para o cultivo do café, mantido pelo
braço escravo.
122
“O Novo Anno”. IN: Libertador – Orgão da Sociedade Cearense Libertadora. Anno: I; Nº 01. -
Fortaleza: 01/ 01/ 1881. P. 02.
123
“Em quanto a liberdade não congraçar-nos no mesmo amplexo, como irmãos que somos perante Deus e a
humanidade, perante a civilisação e o progresso, seremos um povo sem authonomia, sem consciencia do
nosso valor, por quanto amesquinha a nossa grandeza, as instituições liberaes que nos governam, o
desequilibrio de acção, o poderio do forte contra o fraco, do senhor contra do escravo, cuja permanencia
criminosa, a despeito dos brados de indignação a repetição de scenas de horrores, praticadas a sangue frio e
em pleno seculo XIX”. “Abaixo a Escravidão”. IN: Libertador. Anno:I; Nº 02. – Fortaleza: 15/ 01/ 1881. P.
01.
88
124
Continuando o texto acima, transcreve-se ainda o seguinte trecho elucidativo quanto o assunto: “(...) Ah!
Que do intimo d‟alma sentimos não termos delles cá no norte para atirarmo-lhes á face a bofetada do
desprezo e mostrarmo-lhes que nem sempre é o dinheiro quem decide das questões de honra, principalmente
quando se tracta de uma nacionalidade que pretende-se aviltar. Que os filhos do norte, ardentes em suas
aspirações, como o sol que nos encandece, não se bandiam tão facilmente ao explendor do metal – elles que
aprendam a arcar até contra as iras da propria natureza. Habituados ao trabalho livre, só almejam a
liberdade que ennobrece os povos. Porque o povo livre muitas vezes tem feito cahir a seus pés os thronos mal
seguros. (... ...) Abolida a escravidão no norte, haveis de sujeitar-vos a lei dos vencedores, que a liberdade
há de impor-vos. Apanhamos a luva e nesta peleja em que temos empunhado honra e vida, não longe está o
dia em que conhecereis de que lado há de pender a victoria, á despeito dos vossos milhões que a liberdade
repelle como obra da infamia”. Nas últimas linhas, percebe-se que há certa tentativa de tornar análogo, ou
como intensidade experimentada subjetivamente, o processo de emancipação dos cativos no Brasil e a sua
consequente inserção ao progresso com o trabalho livre e o industrialismo, conforme foi lido quanto ao
processo ocorrido nos Estados Unidos. Afinal, não é à toa o discurso impregnado de alusões ao atraso advindo
do Sul e os laivos de progresso que emanariam do Norte, conforme atesta-se no texto. “Aos poucos
escravagistas do sul e ao jornal que se vendeu”. IN: Libertador. Anno: I; Nº 04. – Fortaleza: 17/ 02/ 1881. P.
01.
89
neste momento, cabia aos homens de letras, contagiados pelos mesmos interesses emergentes,
caírem na batalha com as suas armas.
Argumentos de natureza filosófica do direito natural, baseado no iluminismo
francês, reforçados nos princípios da moral cristã, bem como no discurso evangelizador dos
abolicionistas norte-americanos125, sustentaram na imprensa engajada as razões não tão
preclaras da campanha abolicionista cearense, em que se seguiu os interesses políticos dos
grupos emergentes de Fortaleza. Parte da Mocidade Cearense que operava na campanha,
como Guilherme Studart, João Lopes, João Cordeiro, Abel Garcia, Oliveira Paiva, Justiniano
de Serpa e Antônio Bezerra, dentre outros, em boa medida haveria de deter a manipulação de
enunciados em favor da construção de um sentimento pátrio que legitimasse as conquistas do
seu povo e, sobretudo, da facção (letrada) que estaria direcionando tal empreendimento,
segundo suas leituras.
Em vista da attitude magestosa que haveis tomado na festa que
hontem teve lugar no Passeio Publico para extirpar do solo
cearense a nodoa da escravidão, é-nos lizongeiro pensar que
em futuro proximo cantaremos de um extremo a outro da
provincia o hymno da liberdade, da igualdade e da
fraternidade!
Todos animados do mesmo pensamento, estimulados no mesmo
empenho, não longe está o dia em que ufanos possamos dizer: a
terra das carnaubeiras, fadada para grandes commettimentos
não tem mais um escravo em seu seio!
A liberdade conciliará todos os seus filhos sob a mesma
bandeira, e empenhados na idéa de engradecimento da terra
querida, as artes, as lettras, a industria, a lavoura e a
agricultura desenvolver-se-ham, nascidas e animadas ao bafejo
de livres instituições.
Seremos grandes perante as nações cultas, porque somos
livres126.
Pressupondo que haveria uma marcha evolutiva para as nações, a força das
teorias da evolução, como sendo as leis do progresso, travaria combate com o imobilismo
dos grupos tradicionais que estariam mantendo uma instituição no país como a escravatura.
A razão abolicionista no Ceará, que se alimentava tanto dos ideais iluministas e liberais,
125
CARVALHO, José Murilo de. “Escravidão e Razão Nacional”. IN: Dados. Revista de Ciências Sociais.
Vol. 31, nº 03. – Rio de Janeiro: IUPERJ; 1988. P. 287 – 290.
126
“O Novo Anno”. Op. Cit. P. 02.
90
127
“Para convencer esta predicção dos vergalhistas não passar de uma perniciosa especulação [sobre a
opinião dos escravocratas em relação aos emancipados se entregarem à preguiça, à vadiação, ao roubo e à
embriagues], - mais para conservarem o poder dominical e satisfazerem ao habito hediondo de dar
vergalhadas (há senhores que tem escravos, por que não podem passar sem o uso diario desse barbaro e
sanguinario vicio) do que por amor dos seus proprios interesses, basta-nos considerar nos effeitos da
emancipação dos escravos nos Estados Unidos, da qual, não obstante ter sido effectuada de chófre,
resultaram grandes beneficios para aquelle paiz. Alli, os antigos escravos tem feito extraordinarios
progressos em sua educação moral, scientifica e industrial como se acha perfeitamente demonstrado em
alguns artigos sobre a epigraphe „Educação dos libertos‟ publicados em o Novo Mundo de Junho e Julho de
1879. (... ... ...) o relatório official dá algarismos demonstrando positivamente que as principaes villas e
cidades do Sul estão augmentando de população. Durante os tempos eram rarissimas as fabricas no Sul. Há
uma répulsão providencial entre a industria manufactureira e a escravidão: é possivel lavrar a terra com
escravos; mas é impossivel fabricar usurpando o trabalho dos nossos semelhantes. Disso resultou que depois
da emancipação os Estados do Sul estão se tornando manufactureiros; cada dia erguem-se novas fabricas, e
em breve acabará o perigo em que estava a Republica, tendo em confederação Estados exclusivamente
agricolas e Estados sómente manufactureiros. Á vista desse exemplo magno; em presença desta pratica, é
inexplicavel a tibiesa dos estadistas do Brazil (continua o Novo Mundo) em decretar a completa emancipação
dos escravos”. “Consequencia da Emancipação I”. IN: Libertador. – Nº 02; Fortaleza: 15/ 01/ 1881. P. 02.
91
131
É freqüente o número de textos de jornais e personagens ilustres re-publicados em diversos periódicos
cearenses, quando o que estava sendo tratado em outras paragens reportava-se aos “feitos heróicos da Terra da
Luz”, como, por exemplo, a abolição. Conforme pode ser percebido até então neste estudo, as elites
cearenses, no campo de tensões políticas frente o domínio das elites centralizadoras do eixo centro-sul,
utilizaram-se do recurso da imprensa como estratégia e forma de legitimar o seu discurso referendado nos
enunciados civilizatórios, utilizando-se de sua narrativa empregada, sobretudo, a partir da campanha
abolicionista. “Passamos hoje para nossas columnas o que á nosso respeito disse o Diario de Noticias da
Bahia, nº 152 de 9 de julho ultimo, no artigo „Movimento Abolicionista no Ceará‟ e o que disse a Pacotilha,
jornal da tarde, do Maranhão no seu nº 78 de 8 do referido mez, no artigo „Pacotilha no Pará‟. Queremos
com isto provar uma vez aos nossos adversarios que, ao passo que, contra nós movem a arma da intriga e da
calumnia; os escriptores mais sinceros daquellas provincias occupam-se em elevar mais o nosso movimento e
para elle chamam a attenção de todo o Brazil, considerando esta provincia a primeira no impulso da
liberdade. Não são negreiros abjectos que sabem presar devidamente o nosso trabalho e que tem sempre
para nós uma palavra de animação. São cavalheiros que sabem presar devidamente o nosso trabalho e que
tem sempre para nós uma palavra de animação. Por nossa parte lhes agradecemos as lisongeiras expressões
de encorajamento, garantindo-lhes que não retrocedemos um passo da linha de conducta, que nos
imposemos, ainda a custo de muito sacrificio (...)”. Libertador. Anno: I; Nº 16. – Fortaleza: 08/ 08/ 1881. P.
03.
93
132
Dos intelectuais presentes nas linhas editoriais do jornal maçônico Fraternidade – órgão da imprensa por
onde escreviam membros da Academia Francesa – temos João Lopes presente em “A Quinzena”, no mesmo
engajamento em prol da marcha “civilizatória”. Ver: BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. –
Fortaleza: Edições do Instituto do Ceará; T. I; 1948. P. 86.
133
Grande parte dos sócios do Clube haviam participado da Campanha Abolicionista de 1880, sobretudo, o
próprio João Lopes, Justiniano de Serpa, Guilherme Studart, Antônio Bezerra, Virgílio Brígido, Antônio
94
para “A Quinzena”, além do legado das teorias eurocêntricas em voga, níveis de experiência
social e a postura política marcadas no território cearense pelos contrastes sócio-políticos
brasileiros que orientaram essa geração de letrados.
Conforme é sabido, a Academia Francesa representou o foco precursor - por
iniciativa autônoma, não governamental - das idéias cientificistas, evolucionistas e positivistas.
Na formação do Clube Literário, ocorrida em 1886, tais matrizes intelectuais, outrora
difundidas no jornal maçônico “Fraternidade” bem como na antiga “Escola Popular”,
congratularam-se em “A Quinzena”, de tiragem quinzenal que atingia toda a capital e o
interior da província por assinaturas. Este fato, juntamente com a ocorrida participação da
maioria dos sócios do Clube no Movimento Abolicionista, fundiram-se num empreendimento
político e intelectual. Através do conhecimento científico, conforme sua leitura sobre o espaço
social e político cearense, a Mocidade teria o conhecimento das leis morais e científicas que
possibilitariam o progresso (material, tecnológico, científico, intelectual) para aquilo que seria,
segundo parâmetros europeus, o “grau da civilização”.
Lamarck, o precursor de Ch. Darwin (...), já havia assignalado a
influência da acção do meio na transformação (...) do homem,
modificando-o em suas disposições physio-psychicas. Applicado à
história das sociedades por Begehot, Comte, Buckle, Taine e
outros, o processo crítico-naturalista poude explicar certos
phenomenos da vida humana até então não comprehendidos em
sua origem134.
Martins e Oliveira Paiva. Ver ADERALDO, Mozart Soriano. “Renascimento Literário Cearense” (Prefácio da
edição fac-símile). A Quinzena. Propriedade do Club Litterário. - Fortaleza: Academia Cearense de Letras/
BNB (edição fac-símile).
134
“A Mulher Cearense”. A Quinzena. Propriedade do Club Litterário. - Fortaleza: Academia Cearense de
Letras/ BNB (edição fac-símile). - Anno I; Nº 02; 30/ 01/ 1887. P. 02
95
sua leitura social. Percebido que a leitura daqueles beletristas cearenses referendara-se nas
teorias que apreciavam uma outra realidade social, política e institucional, senão a européia,
deve-se compreender que o movimento impulsionador das transformações históricas na
Europa, seus fluxos da experiência cotidiana e institucional fossem agentes na dinâmica da
realidade brasileira. Ou melhor, que os capitais simbólicos da ordem burguesa fossem
cultivados naquele território social, onde a cultura letrada passaria a elaborar uma nova
linguagem em que os usos de poder fovoreceram os filhos da velha elite com a manutenção
renovada da ordem senhorial.
Sendo a atividade de imprensa um recurso em que poderiam atuar na opinião
dos indivíduos, o jornalismo literário cearense partiu para o confronto político-institucional, no
âmbito das práticas políticas e discursivas, frente às antigas formas de domínio dos grupos
tradicionalistas, senhores de terra e chefes políticos locais. Conforme considerações já
elencadas, oriunda do mesmo grupo social, essa elite letrada dos fins da década de 1880
elaborou, através de uma forma mais sofisticada de dominação, o uso do discurso ilustrado e
científico com notório impulso de coação política. Contudo, para o empreendimento
civilizatório encaminhar-se, através de práticas sociais modernas como, por exemplo, a cultura
letrada e a ilustração, a velha política do bacamarte deveria ser substituída pela ação das letras
que mesmo tendo pouco espaço mediante seu escasso público leitor, utilizou-se da
recodificação de enunciados coletivos a produzir desejos que viessem atender e legitimar seus
interesses de grupo dominante naquela cartografia social.
Criada com a intenção de ser uma “publicação puramente litterária”, sendo
órgão de uma agremiação de letras que “atendia à pouca intensidade da vida litterária em nós
(os cearenses)”, os autores de “A Quinzena” entenderam, de fato, a atividade de imprensa
como sendo o recurso de extensão pragmática e captura subjetiva dos indivíduos no território
da cidade. Em nome dos ideais e objetivos para os quais foram criados sua revista e seu clube,
o empreendimento civilizatório em curso no Ceará precisava ser retomado, e para isso a
Academia Francesa, que utilizou-se outrora do mesmo meio de atuação política, o uso do
intrumental letrado foi referência como agente do processo em favor da nova ordem.
Outro facto de muita significação (depois do surgimento na arena
jornalística local dos jornais “Gazeta de Notícias” e “O
Município”) é a existência próspera e gloriosa que teve a
Fraternidade, folha de combate, mais do que litterária, na
96
Como pode ser percebido, propusera-se, nas linhas editoriais do referido órgão,
a fomentação do gosto literário para um determinado espaço social marcado por contrastes e
rarefações culturais gritantes. A razão dos textos científicos, suportes teóricos herdados da
máquina discursiva da Academia Francesa, alicerçava a necessidade de construir novas
instituições baseadas em práticas sociais do universo letrado como espaços de leitura,
circulação de idéias, formas novas de sociabilidade, etc. Era pensado que essa gama de valores
e hábitos modernos possibilitaria o conhecimento da evolução natural e sociológica no
cotidiano da província cearense que permitiu, diante as demais províncias do país, a extinção
da Escravidão (instituição que correspondia ao atraso social). Incompatível com o marasmo
político, as lutas entre os grupos partidários liderados pelas famílias tradicionais que se
digladiavam pelo poder administrativo, assim como o provincianismo da sociedade em relação
às aptidões literárias e à resistência a esta cultura moderna, faziam com que toda esfera de
valores e hábitos tradicionais fossem discursivamente depreciados como resquícios de um
tempo avoengo em detrimento, a ceder território para as leis da evolução e para o progresso
moral, material e humano. Diante de tal circunstância, os artigos literários e a própria
natureza pela qual se repercutiu no surgimento do Clube e da sua revista, são dados como
assuntos de uma “Caixa de Pandora” aos estudiosos da Literatura e da História.
Sendo o Clube Literário formado por espíritos que se empenharam pelo
“florescimento das letras” na sociedade cearense, que dotavam de “labores isolados”136, o seio
dessa congregata literária comportou interesses pragmáticos que denotam uma postura
política distinta. Saídos do eloqüente Movimento Abolicionista Cearense (seja da Sociedade
Cearense Libertadora ou do Centro Abolicionista Cearense), muitos dos sócios do Clube que
circularam pelo jornal abolicionista “Libertador” lançaram indícios quanto a preocupação em
135
“Preliminares”. A Quinzena. – Fortaleza: Anno I; Nº 01; 15/ 01/ 1887. P. 02.
136
BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. – Fortaleza: Edições do Instituto do Ceará; T. I;
1948. P. 115 e 119.
97
elaborar um modelo nacional de bio-tipo cearense, segundo uma construção literária. O que de
fato ocorreu de forma mais definida somente na década de 1890 com o surgimento da Padaria
Espiritual e do Centro Literário, coforme será analisado, a ousadia maior do Clube foi tentar
consolidar um público para a leitura que os seus sócios estavam levando a diante. Desta feita,
o que se entendeu como sendo os “gostos literários do grupo [que] requeriam, porém, uma
arena particular e mais selecta”137, não deve ser compreendido como exclusivismo dos sujeitos
da Mocidade Cearense por não encamparem as lutas políticas do período. Mas, foi o momento
em que eles propuseram em sua produção intelectual, de acordo com os princípios da
ilustração, um modelo-tipo nacional referendado na leitura que elaboraram sobre a evolução
sociológica cearense ante seus desejos políticos locais. Se houve algum distaciamneto foi
meramente semântico, no que condiz à sua leitura sobre a sociedade brasileira, segundo
parâmetros do pensamento europeu que dizia manter distância das decisões político-
institucionais levadas a cabo pelas legendas partidárias contemporâneas.
O tipo nacional, resistente às intempéries do meio físico, detentor de um labor
humanitário e apto às idéias e inovações do mundo moderno, conforme pensavam, haveria de
portar força e resistência físicas fomentadoras de um caráter que se voltava para as
preocupações da época. Assim, as leituras cientificistas e evolucionistas repercutidas entre as
décadas de 1870 e 1880, possibilitaram que se elaborasse as linhas discursivas no Clube
Literário que apontaram a índole moral da sociedade cearense, em que acontecimentos da
história local, como a seca de 1877 e a abolição de 1884, foram adequados às teorias que
reforçavam a idéia de progresso positivo. Essa leitura repercutida nas práticas letradas dos
órgãos da Mocidade, entre 1887 e 1904, lançou apontamentos discursivos para a idéia de um
“sujeito inovador”; uma leitura daqueles sujeitos sociais que aludia às conquistas daquela
sociedade, em que haveria de ser constituído um novo tipo nacional. Tratava-se tão somente
de tornar legítimas no campo letrado sua ação política com uso de um poder que se afirmava
no território social de Fortaleza.
Na verdade, em vias literárias, “A Quinzena” trouxe textos que comportaram
uma carga concisa daquilo que se entendeu por regionalismo literário. Esse regionalismo, por
sua vez, compreende-se que estava previsto na construção de um protótipo modelar cearense
como sendo um sujeito inovador, que se ampliou numa coesa organicidade intelectual
137
SALES, Antônio. Trabalhos (manuscritos inéditos). – Fortaleza: Arquivo de Obras Raras da ACL; 1897.
P. 228.
98
138
“Fazia-se a colheita do café. Às cinco horas da manhã eu despertei ao echoar do busio pelas quegradas
da serra. Era o toque de reunir. O feitor convidava assim os trabalhadores para a festa do trabalho, mas do
trabalho livre! (...) A nevoa como um immenso lençol envolvia tudo. Uma brisa preguiçosa a osculava a
temperatura baixa da monhtanha. No páteo da vivenda o feitor distribuia cestos à genta da apanha. Homens,
mulheres, meninos ainda somnolentos affrontavam a humidade vestidos de roupas leves. Era um quadro
esplendido! Todos livres, sem receio do tronco, do chicote, acudiam ao primeiro signal de alerta para a festa
do trabalho. Senti uma consolação que me foi até a alma, recordandome que nós tinhamos sido também
soldados da cruzada da abolição! E além, na raiz da serra, dormia ainda a Pacatuba o plácido somno da
primeira comarca livre do território brazileiro! (...) E que emoções não senti quando depois de quinze dias de
um trabalho insano recebi da repartição de fazenda a certidão de que n‟aquelle pedaço do Brazil não havia
mais um homem escravo! Chorei de alegria! (... ...) Em breve desapareceram entre os alcantis e eu do pateo
da casa ainda admirava! Recolhi-me commovido e depois de termos tomado café sahimos a passear pelo
sitio. O sol já estava alto e a serra ainda se conservava embuçada em seu manto de névoa! Caminhavamos
devagar admirando a variedade da (trecho danificado, ilegível), o luxo da vegetação. Os „piroas‟ excediam
em parte as mais altas palmeiras. Muitas „parasitas‟ e „lianas‟, floresciam agarradas às hastes das grandes
árvores. As „aristolochias‟, as „orchideas‟ coloriam com suas corollas multicores parte da floresta (...)
Alguns fetos, entretanto, destacavam-se do tapete que cobria a terra pelo fino arrendado de suas folhas
pennadas. Admirando os tinhamos entrado em um caramachão feito naturalmente por „passifloraceas‟
enredadas a um grupo de cafeeiros”. THEÓPHILO, Rodolpho. “História Natural”. IN: A Quinzena. –
Fortaleza; Anno I; Nº 17; 17/ 09/ 1887. P. 132 e 133.
139
Os textos que melhor expressam a resistência da mulher cearense às intempéries do meio físico e
geográfico enquanto aspectos formadores do seu caráter e a sua índole moral, tendo por manipular enunciados
99
em favor da sua participação na campanha abolicionista, encontram-se nos números 02 (30/ 01/ 1887. P. 02) e
04 (28/ 02/ 1887. P. 02) d‟A Quinzena.
140
“O Nosso Progresso”. IN: A Quinzena. Fortaleza, 03. 05. 1888. P. 51 – 53.
141
AZEVEDO, Sânzio de. “Os Grêmios Literários do Ceará” IN: SOUSA, Simone de (Coord.). História do
Ceará. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha; 1994 (2ª ed.). P. 187.
142
AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Brasília: UNB; 1996. (6ª ed.). P.
383 e 384.
100
143
OLIVEIRA, Almir Leal de. Saber e Poder: O Pensamento Social Cearense no final do Século XIX. –
São Paulo: Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em História na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1998. P. 74.
144
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo & Esquizofrenia V. I. – Rio de Janeiro:
Edições 34; 1995.
145
WEBER, João Hernesto. A Nação e o Paraíso. A Construção da Nacionalidade na Historiografia
Literária Brasileira. – Florianópolis: EDUFSC; 1997. P. 91.
101
146
WHITE, Hayden. “O Texto Histórico como Artefato Literário”. Tópicos do Disscurso. s/ r. P. 97 – 116.
147
LACAPRA, Dominick. “História & Romance” IN: Revista de História – Dossiê: História/ Narrativa. – s/
r. P. 107 – 124.
148
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: Imago
Editora; 1977.
149
OLIVEIRA, Almir Leal de. Op. Cit. P. 211 e 212.
102
150
Como pode ser constatado em alguns estudos historiográficos, como, por exemplo, em MELO, Josemir
Camillo de. Ceará: Abolição Precoce ou Crise Econômica?. – João Pessoa: MIMEO: s/ d., sabe-se que
fatores estruturais de ordem sócio-econômica, que possuem raízes históricas, apontam para as relações de
trabalho no Ceará que, desde o período de sua colonização, desenvolveram-se a partir de relações de
compadrio e sub-serviência, a desfavorecerem o trabalho escravo. Contudo, este aspecto foi de fato terreno
propício para que as teorias evolucionistas e liberais, a partir da campanha político-moral abolicionista,
tivessem ação catalisadora como máquina produtora de desejos no território social que legitimou a
emancipação dos cativos na província cearense.
151
OLIVEIRA. Op. Cit. P. 121.
103
O atraso da Nação era justificado pela “nódoa” que a Escravidão deixava, vista
como empecilho ao progresso social. O Estado Imperial, aos sopros da decadência
institucional, mantinha-se ainda sustentado pelo escravismo que “impossibilitava o Brasil de
acompanhar o rumo das nações civilizadas”, e o trabalho livre era entendido como importante
conquista para o empreendimento civilizatório, conforme viu-se nas páginas do “Libertador”.
Fictícia ou não, pois, mesmo estando livre do fardo escravista ainda que longe
de ser necessariamente uma terra próspera, a imagem de progresso na pequena província fora
alimentada por outros fatores que também contribuíram para justificar o seu destaque diante
das demais províncias, pelo menos em vias retóricas e discursivas. Conforme já fora em certa
medida vislumbrado, desde a Guerra de Secessão norte-americana (1861 - 1865), o Ceará
passou a ser uma região importante no fornecimento de matéria prima, o algodão, para as
nações européias e seus interesses industriais153. Logo que findou aquela guerra, a sua
importância no rol das nações civilizadas foi estritamente comercial, ou seja, sendo mercado
consumidor dos produtos industrializados, sobretudo, da França, Prússia e Inglaterra, as três
maiores expressões do imperialismo europeu na América154. Isso tornou-se eloqüente para os
beletristas encantados com a imagem do progresso.
Em que pese aos nossos antagonistas, que são os antípodas da
civilização (referindo-se às demais províncias, em geral, e à
política imperial, em particular) – a terra livre do Ceará após
todos os desastres da última secca de cinco annos, e, mesmo, dos
constantes obstáculos que lhe antepõem a política do governo
floresce a olhos vistos diante do extrangeiro e diante do paíz.
Agora mesmo – o seu depósito de algodão, somente em Liverpool,
praça extrangeira com quem commercia em maior escala, cobre o
de todas as outras províncias do Império155.
O discurso intelectual sobre o progresso cearense, que teve a seu favor a “ação
das leis naturais e biológicas” superando a tenebrosa seca de 1877 e as teorias evolucionistas e
152
“Os Quinze Dias”. A Quinzena. . Propriedade do Club Litterário. – Fortaleza: Ano I; Nº 15; 26/ 08/ 1887.
P. 113.
153
TAKEYA, Denise. Europa, França, Ceará. – Natal: HUCITEC; 1995.
154
HOBSBAWN, Eric J. Era dos Impérios (1875 - 1914). – Rio de Janeiro: Paz & Terra; 1988 (3ªed.). P. 95
– 99.
155
“Os Quinze Dias”. A Quinzena. - Fortaleza: Ano I; Nº 01. 15/ 01/ 1887. P. 07.
104
sociológicas para explicar a Abolição feita em 1884, procurou estabelecer uma relação de
discrepância entre a província cearense e o restante do país. Um modelo de nação brasileira
que tivesse como exemplo o Ceará, onde o trabalho livre estava instituído156, mantendo
relações comerciais com os principais mercados europeus, segundo a Mocidade Cearense, era
destaque diante do modelo de nação a que se submetiam as demais províncias, assentadas
sobre a “nódoa” da escravidão e economia centrada no ruralismo. Afinal, para uma elite
letrada ascendente, referendada nos padrões europeus, desde as teorias do liberalismo clássico,
das idéias evolucionistas e cientificistas ao industrialismo e o cosmopolitismo157, o arcaico
modelo romântico de nação, imaginado ainda nos primórdios da Independência, segundo as
relações sócio-culturais fincadas no poderio senhorial e de valores e sentimentos
eminentementes lusitanos como elementos identitários do povo brasileiro158, haveria então de
ser superado pela força evolutiva dos “novos tempos”; das novas relações de trabalho, dos
novos recursos técnicos, formas de produção, modelos políticos e da nova estrutura social com
a inserção dos setores médios urbanos e emergentes. Contudo, não podendo deixar de perceber
as permanências das relações de poder naquele território social, os enunciados do mundo
moderno proferidos pela Mocidade foram utilizados como artifícios meta-lingüísticos e
discursivos de uma nova retórica, uma nova forma de manipulação dos desejos coletivos. Com
o nascimento da “força da palavra”, o poder do discurso visava selecionar interpretações e
transferir o grau de realidade, fazendo 1884 ser lido por aquele segmento da elite local como
sendo “feito de adiantamento moral”, tentando assim apagar a má consciência da “nódoa” que
ela até bem pouco tempo compactuava.
A imagem de progresso profusa no discurso letrado contrastava com os
aspectos estruturais da realidade social cearense, pois, em boa parte da província, práticas
como o mandonismo, a violência, as relações de compadrio eram as que compunham o terreno
das relações sociais que em boa medida eram sustentadas pelos pais dos sujeitos da Mocidade.
Era então dessa forma, que se definiam as instituições na vida prática e cotidiana dos
156
Ainda que o trabalho escravo não fosse essencial para a economia cearense, as relações de compadrio e de
apadrinhamento - que sempre foram predominantes na configuração das relações de trabalho no Ceará -
permaneceram, sobretudo, na pecuária, como principal fonte econômica do estado desde a sua colonização.
Ver: PINHEIRO, Francisco José. Ceará: Relações de Trabalho na Pecuária (1680 - 1790). – Fortaleza:
MIMEO; 1993.
157
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira
República. – São Paulo: Brasiliense; 1995 (4ª ed.). P. 78 e 79.
158
WEBER. Op. Cit. P. 28.
105
159
“Os Quinze Dias”. A Quinzena. – Fortaleza: Ano I; Nº 11; 15/ 06/ 1887. P. 85.
160
“Os Quinze Dias”. A Quinzena. – Fortaleza: Ano I; Nº 18; 15/ 10/1887. P. 141.
106
165
“Os Quinze Dias”. A Quinzena. - Fortaleza: Ano I; Nº 01. 15/ 01/ 1887. P. 08.
166
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. – São
Paulo: Cia das Letras; 1990. P. 35 – 54.
108
pleitos eleitorais167. A evolução positiva do progresso social resultou numa sociedade amorfa,
sem expressão política e, quando contrário, sufocada pela fulminante ação coerciva, seja do
exército ou das milícias estaduais168. O federalismo traduziu-se em discurso legítimo do poder
das oligarquias locais, tradicionalmente ruralista e conservadora, herdeiras de um passado tão
presente do período colonial169. O liberalismo e a democracia deram força e expressão para a
materialização dos interesses econômicos de uma classe social que manteve o seu poderio,
seja manipulando as rendas da Nação em favor da sua repartição às assembléias legislativas,
seja a entregá-la à ação especulativa dos interesses do capital estrangeiro170.
No Ceará, até as vésperas do golpe, no cenário letrado e, sobretudo, no espaço
do Clube Literário, os possíveis indícios do que poderia ser um modelo de Estado após a
queda do Segundo Império, pode subtilmente ser identificado na tônica de um discurso em “A
Quinzena” que tinha como matrizes políticas e intelectuais a missão literária.
Começa o anno (...) das doiradas utopias que vão pelo cérebro da
mocidade cearense, sempre inclinada aos tentamens do progresso
(...).
Distanciada de todos os favores do governo e dos poderes
políticos, a província lucta sempre!
Nenhuma tão prompta nem tão sollicita como ella os alarmas da
civilização e do progresso.
A abolição na província, por exemplo, (...) generosa e pacífica
como um prestígio (...) diante da civilização moderna.
A província ficou odiada dos grandes fazendeiros do Sul (...)
enquanto recebia do mundo civilizado as oblações da humanidade
agradecida e dos grandes homens admirados.
O cearense é, como justifica-se, o povo mais laborioso, mais activo, de toda a
communidade brazileira porque tem por legenda o Liberta quaes
era tamen.
167
A oligarquia de Nogueira Pinto Accioly (1896 - 1912), no Ceará, é um dos exemplos mais expressivos da
máquina do Estado a serviço dos interesses de um determinado grupo político, controlando desde as decisões
legislativas às disputas nos pleitos eleitorais. VER: ANDRADE, João Mendes de. “A Oligarquia Acciolina e a
política dos Governadores” IN: SOUSA, Simone de (Coord.). História do Ceará. – Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha; 1994 (2ª ed.). P. 213 - 233.
168
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi . – São
Paulo: Cia das Letras; 1996 (3ª ed.) e OTTEN, Alexandre. “Só Deus é Grande”: A Mensagem Religiosa de
Antônio Conselheiro. – São Paulo: Edições Loyola; 1990. P. 182 – 189.
169
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. – São Paulo: Cia das Letras; 1995 (26ª ed.). P. 176 –
179 e MONTENEGRO, Abelardo. Os Partidos Políticos do Ceará. – Fortaleza: edições UFC; 1980. P. 94 e
95.
170
SEVCENKO. Op. Cit. P. 26 e 46 – 51.
109
Este tentamen das letras, não é uma chimera nem uma utopia.
Elle tem o seu grande alcance em toda a sua latitude da evolução
do espírito moderno171.
171
“Os Quinze Dias”. A Quinzena. - Fortaleza: Ano I; Nº 01. 15/ 01/ 1887. P. 07 e 08.
172
Em CORDEIRO, Mia. Celeste. Antigos e Modernos: Progressismo e Reação Católica no Ceará
Provincial (Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. –
Fortaleza; 1997), ao ser considerado que desde a campanha intelectual da Academia Francesa (1873 - 1875)
contra as facções do tradicionalismo católico no Ceará já estava pragmaticamente pensando-se em “edificar
uma nova simbólica de poder republicano (P. 300)”, não cabe quando é percebido que o republicanismo
cearense, até 1889, era identificado somente em posicionamentos escassos e distintos. Não houve, portanto,
uma organicidade intelectual e política que acompanhou os letrados cearenses desde às críticas ao sistema de
padroado patrocinado pelo Estado provedor - não tolerante às iniciativas liberais educativas -, ao movimento
abolicionista, até chegar a proposta institucional e literária no final da década de 1880 com o surgimento do
Clube Literário.
110
novo regime. Por sua vez, o Centro Republicano tornou-se um núcleo político-partidário que
passou a congregar boa parte dos homens de letras da capital cearense173.
Ainda quanto a existência de uma organicidade política sobre a consolidação
do republicanismo na produção intelectual da Mocidade Cearense, sobretudo no ínterim das
sociedades literárias, uma leitura das revoluções liberais (1817, 1824) e da campanha
abolicionista174, que teriam contribuído para uma elaboração orgânica e sistemática do regime
republicano no Ceará, anuvia os interesses e as posturas políticas que se diferenciavam
distintamente entre os intelectuais. Bem pouco antes da queda do regime monárquico, o jornal
abolicionista “Libertador”, por exemplo, congregou jornalistas do partido conservador como
Justiniano de Serpa, republicanos moderados como Antônio Bezerra, até os abolicionistas
mais exaltados, no caso João Lopes. Estes, pertencentes ao Clube Literário, bem como o
católico e monarquista constitucional Guilherme Studart, são indícios preclaros que apontam
as diferentes posturas que se congregavam em um mesmo espaço unindo-se, portanto, à causa
letrada. Logo, a referência aos movimentos e revoltas emancipatórias estava sendo pensada
como forma de reforçar o discurso da Mocidade sobre os progressos isolados da sua província,
mais que uma propaganda republicana, anti-monárquica.
Dessa forma, pode-se entender que a preocupação com os modelos de Estado e
Nação brasileiros surgiram, na produção intelectual da Mocidade Cearense, com o abalo da
estrutura centralizadora, patrimonialista e provedora do Segundo Império, e não com a
possível predominância dos ideais republicanos. Contudo, diferentemente da causa ilustrada,
na esfera político-partidária, outros interesses foram empreendidos uma vez que já havia todo
um discurso que deu suporte para a construção de uma “mística republicana” 175. Porém, como
será percebido, ambas as esferas que fizeram uso dos instrumentos letrados tiveram algum
compromisso com a legitimação do poder das facções tradicionalistas no território social
cearense.
Até às vésperas do golpe de 1889, pode-se dizer que, destacando cada
enunciado apontado pela elite letrada cearense, sobretudo nos espaços dos núcleos letrados,
tinha-se um modelo de Estado parlamentar-constitucional (no caso da Monarquia perdurar),
173
SALES, Antônio. Novos Retratos & Lembranças. – Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC; 1995. P. 86
e 87.
174
OLIVEIRA. Op. Cit. P. 124 – 127.
175
WEINE, Walda Mota. Imprensa e Ideologia: O Papel Político dos Jornais Cearenses na Transição
Monarquia/ República. – Fortaleza: NUDOC/ UFC; 1990.
111
176
“A Mulher Cearense”. A Quinzena. Anno I; Nº 02; 30/ 01/ 1887. P. 02
112
social e política da nação pudessem ser apreciadas quando realizou-se a emancipação dos
cativos naquela província. A organicidade e sistemática deste pensamento que teve forte
repercussão ainda na produção periódica, literária e científica, das sociedade literárias na
primeira década do regime republicano, foram as pilastras retóricas que sustentaram o discurso
justificador do poder das idéias, a legitimar a ação da Mocidade Cearense que lançou a sua
pequena província nos rumos eurocêntricos da civilização.
A tônica deste discurso ufanista e legitimador, procurou destacar os feitos desta
elite intelectual como exemplo moral de ação política e de empreitadas institucionais diante
dos outros grupos dominantes que compunham a nação. Daí se compreender que de forma
alguma não houve “elitismo/ exclusivismo” por parte dos intelectuais cearenses nas vésperas
do golpe republicano, ou mesmo depois, estando eles afastados das questões políticas177. Pelo
contrário, percebe-se que na revista do Clube Literário, em relação à política, houve uma
preocupação com os rumos tanto da Nação quanto do Estado brasileiro que se colocou não nos
combates políticos partidários, mas nas vias retóricas e discursivas que propuseram através da
atividade letrada os modelos institucionais elaborados de acordo com suas leituras. Seria,
segundo eles, a ação da “Inteligência” sobre os “provincianismos” de como se fazia a política
no período.
(...) cérebro vazio de idéas e o coração atrophiado por
contemplação mystica, do quietismo oriental de fakir diante do
disforme fetiche – a política; as pretendidas classes dirigentes do
pensamento nacional (...) em realizar o ideal hindu do nirvana
espiritual178.
177
PIMENTEL FILHO, José Ernesto. A Aristocratização Provinciana em Fortaleza/ 1840 – 1890
(Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados da Universidade Federal de
Pernambuco) – Recife: 1995. P. 229 – 233.
178
A Quinzena. Fortaleza: Anno: I; Nº 14. P. 110.
113
acompanhado não com exclusivismo, mas com ação intelectual, possibilitou a construção da
narrativa discursiva dos textos ufanistas que evidenciaram o sujeito inovador possível no
Ceará, “progressista e civilizado”, diante do Brasil “atrasado”. Assim, o trajeto feito neste
tópico procurou mostrar a construção de tal discurso em textos literários e científicos, que
interpretaram o processo histórico-social de acordo com a inserção dos sujeitos que
elaboraram a referida narrativa, consistindo na sua ação política sobre as relações de poder
entre os grupos sociais do território cearense.
Proclamada então a República, o modelo científico-literário de “A Quinzena”
adentrou nas relações de poder do espaço social cearense entre as leituras que se preocuparam
em “reconstruir a nova ordem”. Diante do debate político-institucional colocado para o novo
período, diversos núcleos de atuação letrada imbuíram-se da campanha regeneradora e da
ameaça de “convulsão social” com o desmoronamento das antigas instituições. Daí, a
emergência de várias práticas discursivas e sociais ligadas à atividade intelectual nos espaços
literários, bem como na imprensa. No próximo tópico, a investigação recairá sobre as razões
das sociedades literárias cearenses durante os primeiros anos do regime republicano. Tentar-
se-á identificar e perceber a distinção de suas práticas de discurso conseguinte ao modelo
institucional proposto pelo Clube Literário através das linhas editoriais do seu órgão “A
Quinzena”; suas formas de atuação, práticas discursivas, posturas políticas e as leituras que
fizeram dos segmentos sociais.
179
SEVCENKO. Literatura como Missão. P. 41 – 68.
114
180
JANOTTI, Mia. de Lourdes Mônaco. Os Subversivos da República. – São Paulo: Brasiliense; 1986.
181
O modelo de um Estado Moderno, in stricto sensu, em Sílvio Romero, seria aquele que promovesse o
industrialismo e a imigração européia para o desenvolvimento técnico-econômico do país e o
enbranquecimento da nação; portanto, uma Nação institucionalmente civilizada. ROMERO, Sílvio. Teoria,
Crítica e História Literária. Seleção e Apresentação de Antônio Cândido. – São Paulo: EDUSP; 1978.
182
O modelo científico-jurisprudente de Alberto Salles compreende um Estado regido pelas leis sociológicas
e científicas do Direito Positivo para a garantia da fisiologia social da Nação, que se organiza segundo os
fenômenos biológicos. VITTA, Washington Luis. Alberto Salles: Ideólogo da República. – São Paulo: Cia
Editora Nacional; 1965. P. 126 – 127 e MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira (1877 - 1896)
V. IV. – São Paulo: T. A. Queiróz; 1996. P. 137.
183
CASTRO, Celso. Os Militares e a República. Op. Cit. P. 52 – 84 e CARVALHO, José Murilo. A
Formação das Almas. Op. Cit. 40 – 48.
184
CARVALHO. Op. Cit. P. 50 – 51.
185
Sobretudo na Literatura, alguns dos homens de letras simpatizantes da Monarquia como Afonso Celso,
Eduardo Prado e até mesmo Joaquim Nabuco - que eram radicalmente contra o militarismo republicano dos
jacobinos e o modelo constitucional norte-americano dos republicanos federalistas – são representantes da
corrente ufanista nacionalista que via o Brasil legítimo segundo a manutenção das suas tradições lusitana e
católica. Ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Op. Cit. P. 23 e 102 – 104.
115
191
HOBSBAWM, Eric J. Era das Revoluções. Europa 1789 – 1848. – Rio de Janeiro: Paz & Terra; 1977. P.
275 – 299.
192
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. Gênese e Estrutura do Campo Literário. – São Paulo: Cia das
Letras; 1996. P. 63 –120.
193
BARRETO, Vicente e PAIM, Antônio. “Liberalismo, Autoritarismo e Conservadorismo na República
Velha” IN: Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro. Op. Cit.
118
194
AZEVEDO, Sânzio de. “Os Grêmios Literários do Ceará”. Op. Cit. P. 185. Ver também: GIRÃO.
Geografia Estética de Fortaleza. Op. Cit. P. 68 e BARREIRA. História da Literatura Cearense. Op. Cit. P.
67 – 73.
195
Como bem discorreu Augusto de Lima Júnior, na Europa do século XVIII, sobretudo em França, havia
sociedades secretas, adeptas do Iluminismo e da Maçonaria, em que congregavam-se homens letrados no
sentido de combater o Antigo Regime com idéias emancipatórias: “Em 1784, José Álvares Maciel [que
iniciou Tiradentes na Maçonaria] recebia o grau em Coimbra, partindo para a França e Inglaterra, sendo
certo que se demorou em Montpellier por longo tempo. Andavam em moda as Lojas Iluminadas, centros
secretos de reuniões onde as doutrinas da liberdade e melhoria de condições de vida para a espécie humana,
constituiam a preocupação principal dos espíritos. Entre os postulados mais importantes, estavam a do que o
bem-estar fosse de todas as camadas sociais, libertadas, ainda, pela instrução. Mais tarde, conforme se
verificou, fundiram-se as instituições da maçonaria e dos iluministas que, por volta dos fins do século
dezoito, já constituiam uma e mesma coisa. Em Coimbra, o movimento iluminista ia em franco progresso,
não obstante a atenção [do] chefe das Polícias Régias, que de Lisboa exercia uma severa vigilância sobre os
então mal afamados centros de estudos. Na França, núcleo de expansão do movimento, Maciel ligou-se aos
outros brasileiros que lá estudavam, filiados às lojas maçônicas e que quase todos acabaram figurando nas
páginas das devassas da Inconfidência de Minas Gerais”. LIMA JÚNIOR, Augusto de. História da
Inconfidência de Minas Gerais. P. 73 a 75 APUD D‟ALBUQUERQUE, A. Tenório. A Maçonaria e a
Grandeza do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Espiritualista; 1959. P. 93 e 94.
196
Sobre a repercussão da Literatura cearense no âmbito nacional, ver VERÍSSIMO, José. Que é Literatura
e Outros Escritos. – Rio de Janeiro: Garnier; 1907 e CARVALHO, Aderbal de. Esboços Literários. – Rio de
Janeiro: Garnier; 1907 APUD MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. – Fortaleza: Casa de José de Alencar/
UFC; 1995. P. 26.
119
sociedades, gabinetes, institutos e jornais, dos vários lugares do Brasil e até de outros
países197.
Art. 08 – Para a realisação de seu programma, o Club manterá
um órgam na imprensa, promoverá confferências públicas,
procurará relacionar-se com os vultos da litteratura, das artes,
e da sciência, corresponder-se-á com as corporações
congéneres do Império e do estrangeiro, e intervirá perante os
poderes públicos quando assim for necessário198.
197
Sobre as correspondências, ver a coluna “Correspondência” d‟O Pão (órgão da Padaria Espiritual – 1892/
1896), Revista da Academia Cearense (1894 - 1904) e a revista Iracema do Centro Literário 1895/ 1904.
198
“Estatutos do Club Litterário”. A Quinzena. Anno I; Nº 17; P. 126. – Fortaleza; 17/ 09/ 1887.
120
199
“Estatutos da Academia Cearense, 1894”. GIRÃO, Raimundo. A Academia de 1894. – Fortaleza:
Academia Cearense de Letras (ACL); 1975. P. 219.
200
SEVCENKO. Op. Cit. P. 94 e 95.
201
“Discurso do Dr. José Lino em Homenagem à Memória de José de Alencar”. Iracema – Revista do Centro
Literário. – Fortaleza: Anno II; Nº 07; 1895. P. 11. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/ Setor de
Periódicos e Obras Raras. M. PR. SOR. 4460 – 4494. 1).
121
novos tempos que se definiam conforme as articulações mais tradicionais que pudessem
caracterizar o governo dos “democratas” civis.
No Ceará, a República inaugurou-se em meio a poeira das disputas partidárias
que marcaram os tempos desde 1834202. Até o final do Império, as poderosas famílias
tradicionalistas de senhores de terras e comerciantes que se entrincheiravam nas fileiras dos
partidos liberal e conservador, disputavam o poder administrativo local – que dispunha “da
polícia, do pessoal administrativo, dos magistrados, das mesas eleitorais e das Câmaras
apuradoras”203 – para firmarem, através da política do bacamarte, o seu domínio sobre a
máquina do Estado. Os liberais, divididos entre as famílias “Paula” e “Pompeu”, que ora se
afrontavam ora se uniam à ala conservadora, dividida entre os “Ibiapabas” e os “Aquirázes”,
encontraram a partir da década de 1880, sobretudo com o advento de 1884, um novo segmento
político. Tratava-se tão somente da “nova elite”, “empreendedora do progresso e da ciência”,
sendo que muitos dos seus integrantes, além do estreito grau de parentesco ou de
apadrinhamento, eram egressos ou trabalhavam nas linhas editoriais dos jornais das velhas
famílias que há tempos disputavam o poder local204. Contudo, a sua maneira de fazer política
distinguia-se das disputas na base da violência ou nos pleitos eleitorais, dos atos caluniosos e
das carnificinas promovidas pelas práticas políticas mais retrógradas. Ainda que um tanto
quanto inócua ou indiferente para boa parte da população, era na arena periódica e jornalística,
no circuito das idéias e no debate discursivo, que a distinção se dava, mesmo estando os
interesses dominantes interligados.
202
Nomeado pelo regente Antônio Feijó, José Martiniano de Alencar, em que sua família teve forte
participação nas revoluções emancipatórias de 1817 e 1824, fora nomeado em 1834 como presidente
provincial. Mesmo com o Ato Adicional do referido ano, os chefes políticos locais não seguiram “ao pé-da-
letra” o pacto entre as elites que entrincheiravam-se nas legendas partidárias das alas Liberal e Conservadora.
Contudo, somente com a instalação da República, sobretudo em 1892, com a formação do Partido
Republicano Federalista, empreendido por Nogueira Pinto Accioly, é que legitima-se, até a queda da sua
oligarquia, o pacto entre as elites locais. VER: ARAÚJO,Mia. Do Carmo R. “O Poder Local no Ceará” IN:
SOUSA, Simone de (Cood.). História do Ceará. Op. Cit. P. 105 – 119 e WEINE, Walda Mota. Imprensa e
Ideologia: O Papel Político dos Jornais Cearenses na Transição Monarquia/ República. Op. Cit. P. 26 –
31.
203
MONTENEGRO, Abelardo F. Os Partidos Políticos no Ceará. – Fortaleza: Edições UFC; 1980. P. 27.
204
Os casos do Dr. Tomás Pompeu de S. Brasil Filho (antigo membro da Academia Francesa, redator chefe
do órgão liberal “Gazeta do Norte”, membro fundador da Instituto do Ceará e Academia Cearense) e de
Justiniano de Serpa (redator do jornal conservador “Pedro II” e durante a campanha abolicionista, do jornal
“O Libertador”, e ainda, nos primeiros anos do golpe, sendo um dos redatores-chefe do órgão republicano “O
Norte”) são típicos, dentre muitos outros, de intelectuais cearenses que transitavam entre o partidarismo
político e o partidarismo ilustrado. VER STUDART, Guilherme. Diccionário Bio-bibliográphico Cearense.
– Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC; 1980. V. I, II e III (edição fac-símile).
122
205
Entre os anos de 1890 e 1891, os governos republicanos provisórios no estado federativo cearense
sofreram diversos golpes e deposições que caracterizaram a embaraçada “República da Espada” dos militares.
Dois exemplos distintos podem ser evidenciados dentre os demais: a demissão, em 04. 04. 1891, do major
Liberato Barroso e do civil João Cordeiro (“republicano histórico” do antigo jornal abolicionista
“Libertador”) pelo governo florianista, nomeando os militares Gal. Clarindo de Queirós e o Cel. Feliciano
Benjamin; e, o mais sanguinário, a deposição destes últimos à bala por uma reação deodorista, liderada pelo
Cel. Bezerril Fontenelle e a Escola Militar do Ceará, em 16. 02. 1892, retomando o cargo o governador
deposto major Liberato Barroso que ao assumir dissolveu o Congresso Cearense. Ver STUDART, Guilherme.
Dactas & Factos para a História do Ceará. – Fortaleza: Typographia Commercial; 1924.
206
Diante das disputas eleitorais, os partidos recém formados, que angariavam prestígio político, explicitavam
à população os seus interesses mais imediatos diante da nova ordem vigente: “Já não vos é estranho (ao
interventor da presidência no Ceará) que estão constituídos ou em via de se constituírem em punjante
aggremiação por toda a República aquelles que desejão defender e zelar os legítimos interesses, os direitos
inauferíveis da Religião e da Pátria” (Manifesto do Partido Católico, 08/ 07/ 1890)“. “(...) pleiteamos umma
eleição no intuito de como as demais classes sociais, - também tomarmos parte nos altos problemas da
Pátria(...)”(Manifesto do Partido Operário do Estado do Ceará, 22/ 08/ 1890). APUD STUDART. Op. Cit. P.
16 18.
207
MONTENEGRO, Abelardo. Op. Cit. P. 73.
123
208
“A Voz da Justiça”. IN: A Voz do Povo. - Fortaleza: Anno I; Nº 01. 05/ 02/ 1893. Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro/ Setor de Obras Raras. PR. SOR – 4460 – 4494 (1).
209
“A Sombra de 93”. A Voz do Povo. – Fortaleza: Anno I; Nº 01; 24/ 02/ 1893. P.02.
124
pacto entre as elites locais garantiram a sua consolidação. Repudiados pelo Centro
Republicano, núcleo dos “republicanos históricos” fundado em 26. 07. 1889 por antigos
abolicionistas e novos intelectuais oriundos dos sertões, os tradicionais chefes políticos
mobilizaram-se, primeiramente, em duas frentes: no Clube Democrático, fundado em 12. 02.
1890 por Rodrigues Jr., da facção liberal “dos Paulas”, e na União Republicana, fundada em
19. 07. 1890, liderada pelo chefe oligarca Nogueira Pinto Accioly. Desta última é que surge o
empreendimento que consolidou o pacto entre as elites cearenses, entre os chefes políticos
tradicionais e os membros da “nova elite”.
As demarches políticas a nível nacional como a renúncia de
Deodoro da Fonseca, repercutem no Ceará, ocasionando
dissidências no Centro Republicano em duas facções: a dos
„cafinfins‟ liderados por João Cordeiro e fiéis ao Deodorismo.
Esta facção ortodoxa veicula suas idéias através d‟O Libertador‟.
A outra facção, os chamados „Maloqueiros‟ tendo por chefe
Martinho Rodrigues e J. de Serpa e outros, fundam o jornal „O
Norte‟(...).
Com a ascensão de Floriano Peixoto à presidência da República,
os „Maloqueiros‟ passam a ser prestigiados e fazem oposição com
o grupo Acciolyno. Era a oportunidade para que os grupos
tradicionais se consolidassem no poder sob a égide da nascente
República.
Nesse contexto, a fusão do Centro Republicano e da União
Republicana propicia a criação do Partido Republicano
Federalista em 1892, que vai divulgar suas propostas político-
partidárias através do jornal „A República‟210.
210
WEYNE, Walda Mota. Op. Cit. P. 28.
211
Idem. P. 29.
125
212
“Política de Paz”. O Norte. ANNO: I; Nº 02. Fortaleza, 15/ 04/ 1891. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/
Setor de Periódicos.
126
baseada na conciliação dos diversos grupos, e, subtilmente, uma leve menção aos
ensinamentos doutrinários da cultura letrada sob um aspecto político-moral. Por fim a crença
religiosa positivista no poder da imprensa como órgão disseminador das novas idéias. Mas,
por outro lado, rompeu naquilo que correspondera à garantia das liberdades individuais, das
alteridades sociais que experimentavam a transição, professando o discurso patriótico e
autoritário da República com o Estado emergente que deveriam prevalecer. Neste sentido, fica
mais evidente que os interesses políticos que, em boa medida, nortearam a Mocidade Cearense
estavam concatenados, no campo das relações sócio-políticas cotidianas, aos mesmos
interesses dos “raposas velhas” que apoiaram o golpe em troca de benefícios jurídico-
políticos. Na verdade, o gerenciamento bem como os benefícios da máquina estatal estavam
sendo disputados no “tiroteio” entre práticas tradicionalistas, mais próximos da realidade
nacional, e retóricas discursivas civilizatórias, referendadas no pensamento eminentemente
europeu, querendo tirar alguma vantagem com a nova ordem.
Por sua vez, assim como pôde ser percebido na inserção de diversos grupos
sociais nas lutas políticas do período – chefes políticos tradicionais, comerciantes, intelectuais,
operários, religiosos – a ação dos letrados cearenses foi caracterizada por distintos
posicionamentos e práticas culturais e discursivas alocadas em diferentes associações
literárias.
Para além de uma organicidade intelectual e político-institucional que já se
elaborava desde o final da década de 1880, sobretudo, nas páginas de “A Quinzena”, ao
ressonar os ecos da República no Ceará, uma nova intelectualidade cearense, os Novos do
Ceará, ganhava notoriedade como o grupo dos letrados que atuaram em Fortaleza formando o
Centro Republicano. Contudo, concernente às posturas distintas dos intelectuais de 1890 a
1900 - que serão analisadas no próximo capítulo – devem, primeiramente, ser levados em
conta os pontos que caracterizaram o conjunto das práticas discursivas presentes em cada
periódico e sua respectiva sociedade literária.
Tanto “O Pão” (periódico da Padaria Espiritual), a “Revista da Academia
Cearense” quanto a revista “Iracema” (órgão do Centro Literário), encontraram-se
devidamente engajados numa ação missionária, ora combativa, ora conciliadora, dos
empreendimentos legados pela cultura letrada cearense daquele período. A índole e o caráter
político-moral construídos na produção literária e periódica das gerações Mocidade Cearense e
127
Novos do Ceará, calcada tanto nas referências teórico-científicas em curso com o ideal do
progresso social e positivo como na preservação da experiência popular, tornaram-se
eloqüentes na medida em que o papel da literatura comprometera-se com a reconstrução das
instituições nacionais.
(...) promettemos nada poupar para que o Ceará figure na
vanguarda do movimento litterário que presentemente se
desenrola no Paiz de par com os generosos esforços para a nossa
regeneração política213.
*
Nos dias agitados, de transição política, que atravessa a nossa
Pátria, não há lazer, nem despreocupação bastante nos corações
patrióticos para se entregarem aos prazeres puramente
intellectuais, às satisfacções refinados do sybaritismo litterário.
Sem desconhecer os mil cuidados que reclama o momento
presente da nossa collectividade social, eu creio que os solitários
dessa thebaida, que se chamma - Sciência -, seggregados as
fascinações políticas, não prestam menos serviços á Pátria do que
os batalhadores activos, incansáveis, que remodelam as suas
instituições214.
*
Assim, o nosso despretensioso apparecimento entre os
combatentes nas luctas da intelligência, quer dizer mais uma
parcella no grande número dos que se esgrimem pela Civilização
e pela Pátria215.
Foi neste momento de emergência que a ação letrada, sob variadas formas e
posturas, adentrou nas relações de poder mediante a distinção das suas práticas discursivas,
frente aos demais exercícios de poder utilizados setores da sociedade comprometidos com
seus interesses de grupo na reorganização da nova ordem política e institucional. Para aqueles
sujeitos, era o momento de legitimar o seu exercício intelectual e definir os seus papéis perante
os novos tempos. Entre eles, era reconhecido que somente às letras caberia o papel de ser a
instituição capaz de direcionar o processo político à plenitude positiva da sociedade. Desta
feita, o significado pelo qual os intelectuais estudados elegeram a literatura como objeto de
213
O Pão... da Padaria Espiritual. – Fortaleza: ACL/ Banco do Nordeste do Brasil (BNB); 1982 (Edição Fac-
Símile).Nº 07; AnnoII; 01/ 01/ 1895. P. 01.
214
“Discurso lido perante a Academia Cearense na Sessão Magna, do 1º Anniversário, pelo seu presidente,
Dr. Tomáz Pompeu de Souza Brasil Filho”. Revista da Academia Cearense. – Fortaleza: Anno: 03; T. II;
1897. P. 03
215
“Só a Arte immortaliza!”. Iracema – Revista do Centro Litterário. – Fortaleza: Anno I; Nº 01; 02/ 04/
1895 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/ Setor de Periódicos e Obras Raras. M. PR. SOR. 4460 – 4494.
1).
128
216
SALIBA. Op. Cit e WEBER, João E. Op. Cit.
217
COSTA, Celso. Os Militares e a República. Op. Cit. P. 64 – 68.
218
“Programa de Instalação da Padaria Espiritual” APUD MOTA. Leonardo. Op. Cit. P. 46.
219
“Estatutos da Academia Cearense, 1894”. GIRÃO, Raimundo. Op. Cit. P. 219.
220
“Estatutos da Lei Orgânica do Centro Literário”. APUD BARREIRA, Dolor. História da Literatura
Cearense. – Fortaleza: Edições do Instituto do Ceará; T. I; 1948. P. 234.
129
221
Ao que nos parece, num primeiro momento, August Comte fora introduzido na cultura letrada cearense
com a Academia Francesa (“Constitui-se perfulgente fulcro dessa associação, tradicionalmente conhecida,
na história das nossa letras, pela significativa designação de Academia Francesa [...], então estrénuo adepto
das doutrinas de August Comte” – BARREIRA, Dolor. Op. Cit. P. 86 e 87). Já no caso de Herbert Spencer,
ainda que lido por Rocha Lima da Academia Francesa, foi na década de 1880 – juntamente com as leituras de
Darwin e Lamarck - que as suas teorias tiveram maior repercussão, sobretudo, como tentativa de explicar a
evolução moral e psicológica do povo cearense através da heterogenia social operando na construção do
caráter dos seres (“Nesse crescendo de aperfeiçoamento moral do povo cearense, accumulou a mulher
principalmente novos capitaes de potência cerebral e flexibilidade de sentimento. Em concurrência com o
homem, nas phases de agitações physico-sociaes por que tem passado esta província (em relação à seca de
1877) a mulher conquistou, por successivas accumulações, hereditárias qualidades superiores d‟espírito, que
habilitaram-n‟a mais tarde a representar uma figura distincta na história da civilisação brazileira. A
approximação mental e moral entre o homem e a mulher na sociedade moderna é um facto excepcional. No
Ceará, onde a mulher revela uma privilegiada organisação psycologica, isso verifica-se de modo admirável”
– “A Mulher Cearense”. A Quinzena. Anno I; Nº 02; Fortaleza, 30/ 01/ 1887. P. 10).
222
VITA, Luís Washington. Alberto Sales, ideólogo da República. Op. Cit. P. 141 – 143.
223
“Estatutos da Academia Cearense, 1894”. GIRÃO, Raimundo. Op. Cit. P. 219.
130
224
“Estatutos da Lei Orgânica do Centro Literário”. APUD BARREIRA, Dolor. Op. Cit. P. 234.
225
“Progrma de Instalação da Padaria Espiritual”. APUD MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. –
Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC; 1995 (2ª ed.). P. 45.
226
AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. Op. Cit. P. 276 – 284.
227
AZEVEDO, Sânzio de. “O Ceará e os Grêmios Literários” IN: Revista da Academia Cearense. –
Fortaleza: ACL; 1982. P. 123 – 126.
131
* * *
228
São da “Mocidade Cearense” alguns dos antigos integrantes da Academia Francesa, empreendedores da
Abolição no Ceará, sócios fundadores do Instituto Histórico-Geográfico e Antropológico do Ceará, Academia
Cearense, e ainda alguns do Centro Literário. Quanto aos “Novos do Ceará”, temos os literatos de origens menos
abastadas, “republicanos de última hora” e, sobretudo, a maioria dos integrantes da Padaria Espiritual, como
Waldemiro Cavalcanti, Lopes Filho, Anto. Salles, Adolfo Caminha e outros. Ver: SALES, Antônio. Trabalhos
(Manuscritos Inéditos). Op. Cit.
132
CAPÍTULO
II
As Repúblicas das Letras Cearenses: A “velha”
Mocidade e a Padaria Espiritual diante das Emergências
Nacionais
“Arte e Sciência, portanto, não nos conduzirão ao sólio de homens civilizados.
Resta indagar si as Lettras poderão servir de aias a este povo infante”(“A Quinzena. Nº 11,
Fortaleza, 31 de Julho de 1887).
229
Como é apontado por Dolor Barreira, Tristão de Athaíde afirmou ter o Ceará três movimentos intelectuais:
“ o movimento filosófico de 1870, a Academia Francesa; o movimento político de 1880, em torno do qual se
fez todo o Movimento Abolicionista (com o jornal „Libertador‟ e com a revista „A Quinzena‟); e o movimento
literário de 1890, com a fundação da Padaria Espiritual e do seu órgão „O Pão‟ (APUD BARREIRA. Op.
Cit. P. 83). Na verdade, se os movimentos intelectuais e literários cearenses foram elencados conforme suas
propostas políticas, literárias e institucionais, tem sua distinção da seguinte forma: a Academia Francesa -
sendo movimento filosófico - na difusão das teorias evolucionistas e cientificistas, encabeçando a campanha
política segundo a iniciativa liberal dos intelectuais cearenses frente o Estado Imperial provedor; o
Movimento Abolicionista na campanha pela emancipação dos cativos no Ceará, em que, diante do curso das
idéias difundidas na década de 1870, o progresso e a civilização seriam empreendimentos legítimos do povo
cearense; o Clube Literário – vertente intelectualizada do Movimento Abolicionista – em que a Literatura
seria eleita como instituição nacional, uma vez que seu empreendimento político-moral e doutrinador
baseava-se na trajetória política e intelectual da “Mocidade Cearense”, justificada pelas teorias científicas e o
curso do progresso em andamento. Por fim, a Academia Cearense, o Centro Literário e a Padaria Espiritual,
134
que no decorrer dessa análise, haverão de ser percebidas as principais hipóteses deste trabalho diante de
estudos já realizados.
135
230
“Discurso do Vice-presidente da Academia Cearense, dr. Pedro de Queiróz”. Revista da Academnia
Cearense. - Revista da Academia Cearense de Letras. – Fortaleza: Typographia Universal; T. II; Nº 03;
1897. P. 12.
231
“Sim. Si nesta vasta extensão do paiz há um abatimento das energias, podemos affirmar a existência,
neste recanto do Norte, de um povo vigoroso, a que falta somente conveniente cultura intellectual para
revelar o seu poder de iniciativa em todos os problemas políticos-sociaes”. – A Quinzena. Anno I; Nº 04;
Fortaleza: 28/ 02/ 1887. P. 26.
136
232
“Discurso lido perante a Academia Cearense na sessão magna do seu primeiro anniversário, pelo seu
presidente Dr. Tomás Pompeu de S. Brasil Filho”. Revista da Academia Cearense de Letras. – Fortaleza:
Typographia Universal; T. II; Nº 03; 1897. P. 03 e 04.
137
233
Sessão “Bibliographia”: “Licções de Geographia Geral” (comentário bibliográfico do Dr. Guilherme
Studart ao livro do seu correligionário de ideal Dr. Tomás P. de S. Brasil Filho). Revista da Academia
Cearense de Letras. – Fortaleza: Typographia Universal; T. II; Nº 03; 1897. P. 213 e 214.
138
234
CARVALHO, Rodrigues de. “Unidade Processual: Memória lida perante a Academia Cearense pelo sócio
Rodrigues de Carvalho”. IN: Revista da Academia Cearense de Letras. – Fortaleza: Typographia Universal;
T. IX; 1904. P.102 - 106.
235
Na carta do então governador do estado do Rio de Janeiro, Nilo Peçanha, para o presidente da República
Rodrigues Alves, é nítida a articulação entre os estados da federação mais interessados que lideraram a
campanha pela unidade processual no país: “Considerando que dia a dia mais se impõe a necessidade de uma
lei commum de processo para todos os Estados do Brazil, submetto ao alto exame de V. Exc. A idéa de um
congresso de representante dos 20 governadores da República, no qual fiquem firmadas as bases do projeto
da unificação que será proposta às legislaturas de cada Estado. Congresso de 20 delegados que se poderá
reunir em B. Horizonte, S. Paulo ou Petrópolis, a escolha de V. Exc., terá a presidência do Sr. Ministro da
Justiça ou procurador da República do Supremo Tribunal (...)”. IN: Revista da Academia Cearense. 1904.
Op. Cit. P. 102.
140
predominaram como discurso legitimador a aclamar o poder ilustrado, detido também pelos
sócios da Academia, a orientar o processo político juntamente com os grupos tradicionais
que definiam os rumos institucionais.
Essa diversidade não afecta só as relações jurídicas,
dissemelhantes de Estado para Estado como se fosse nação a
nação: mas os elos ethnográphicos e sociais. Um povo de uma
mesma origem, crendo pela mesma religião, externando idéas
por uma língua commum, preso pelo mesmo destino, não pode
estabelecer o equilíbrio de seus direitos por essa multiplicidade
de normas processuaes.
E Tocqueville, (...) syntethisou neste juízo tendo quanto em
outros termos constitue o theoria do meio, raça e momento,
expedida por Montesquieu e ampliada por Taine: „Os povos
resentem-se eternamente de sua origem. As circunstâncias que
os acompanharam ao nascer e os ajudaram a desenvolver-se
influem sobre toda a sua existência. – Se fosse possível a todas
as nações remontar á origem de sua história, não duvido que
ahi poderíamos descobrir a causa primaria das prevenções, dos
usos e paixões dominantes, - de tudo em fim quanto compõe e
que se chama de caráter nacional‟.
(... ... ...)
Em syntese: A uniformidade processual no Brazil é uma
necessidade palpitante; mas o meio de praticál-a sem receios e
tiversações futuras da parte de algum Estado, não é aviltado
pelo Illustrado Presidente do Rio de Janeiro (na época Nilo
Peçanha); só o Congresso Nacional pode estabelecel-a
coactivamente, de modo que de dia para dia não tenhamos a
triste decepção de ver um mesmo assumpto tratado no motu
continuo das máchinas legislativas dos Estados236.
236
CARVALHO, Rodrigues de. “Unidade Processual: Memória lida perante a Academia Cearense pelo sócio
Rodrigues de Carvalho”. IN: Revista da Academia Cearense de Letras. – Fortaleza: Typographia Universal;
T. IX; 1904. P.102 - 106.
141
decisões dos chefes oligarcas - modelo que na prática perdura até os dias hodiernos. Afinal, a
idéia de Estado no Brasil durante todo o período imperial sofrera com o impasse jurídico-
político quanto a sua gerência e o poder das decisões políticas, pois, as tensas discussões entre
o centralismo e a autonomia provincial havia gerado há quase sete décadas conflitos internos
que diversas vezes ameaçaram a organização nacional. Não obstante, com a queda do Império
e a formação do regime republicano, os grupos tradicionais articularam-se no sentido de
reconhecer um poder de decisões centrais que, paralelamente, propiciasse a autonomia dos
estados abrindo mão dos aparelhos administrativos locais em favor dos grupos dominantes.
Logo, afirmando o seu espírito de facção, as elites tradicionais passariam a ganhar
legitimidade e reconhecimento jurídico e institucional na montagem do Estado republicano
brasileiro. De fato, percebe-se que esse foi um processo conservador no sentido sócio-político,
pois em momento algum procurou romper com a formação histórica das instituições
brasileiras e sua herança colonial, baseada no poder personalista da elite senhorial.
Compreende-se que o arcabouço científico da produção periódica da Academia
Cearense que se contrapôs à formação do Estado republicano, a organizar-se de acordo com o
que ficou conhecido como “federalismo às avessas”, serviu de instrumento político em dois
sentidos: primeiramente, a reagir ao autoritarismo das elites do eixo centro-sul e, em segundo,
para mobilizar uma opinião pública em favor daqueles que detinham o poder letrado como
capazes de orientar aquele processo com os usos do saber científico. Segundo a leitura daquele
sócio, era a instituição científica, bem mais que a instituição literária empreendida por outras
agremiações contemporâneas, que haveria de orientar a construção de uma nova sociedade,
regida pelos detentores do conhecimento de suas leis naturais. Seria este tipo, conforme
desejavam em sua leitura orgânica, o sujeito inovador pensado pela Mocidade que haveria de
interpretar as elaborações da geografia, história, sociologia, etnografia e outros campos do
conhecimento, servindo ao dogma da ciência em favor da reconstrução nacional.
A completa submissão da nossa épocha ás leis e ás descobertas
scientíficas é a nossa glória.
(...) Todos os meios de anályse, fornecidos pela Physiologia, a
Zoologia, a Chimica, a Phísica, a Medicina, sciências
conquistadoras e inovadoras na expressão de Richet (L’ Homme
et l’Intelligence, 1884) – têm sido postos ao serviço da verdade
na investigação das profundezas mais mysteriosas do espírito
humano (Taine – La Théorie de l’influence du milieu professeé á
l’École des Eaux- Arts). As noções theológicas e metaphysicas
142
Ora, nesta situação emergente, nada mais evidente que duas forças políticas e
seus respectivos modelos institucionais digladiando-se para garantirem o domínio do Estado
brasileiro. De um lado, chefes políticos tradicionais representantes da aristocracia rural
decadente, articulando-se conforme os seus interesses mais imediatos condizentes à própria
estrutura sócio-política do país, moldando o Estado segundo um centralismo político em favor
dos interesses maiores das oligarquias cafeeiras e que, por outro lado, garantia da mesma
forma a autonomia das assembléias legislativas locais a serviço dos “raposas velhas”
regionais. De um outro, uma elite intelectual ascendente, europeizada, que, mesmo oriunda
dos setores tradicionais, alimentava uma idéia de progresso tecnológico e social baseado no
conhecimento científico e nos pressupostos democráticos do liberalismo clássico. Deveras,
tanto a politiquice ruralista e tradicional quanto a retórica filosófica e cientificista
negligenciavam a heterogênea realidade social brasileira que destoava frente aos dois modelos
autoritários. Logo, ambos segmentos ignoravam as diversidades da sociedade, a maioria dos
indivíduos que até os dias hodiernos ainda não tomam parte nas decisões institucionais.
Naqueles tempos, os modelos interpretativos elaborados pelos segmentos dominantes
procuravam uniformizálos conforme seus interesses pragmáticos à manutenção da ordem.
Diante do que pode ser constatado, a Academia Cearense procurou legitimar,
retoricamente, o conhecimento científico como sendo a ferramenta política para a realização
dos empreendimentos nacionais emergentes, durante a formação do regime republicano. Por
sua vez, tais anseios visaram lançar o Brasil no conjunto das nações civilizadas em que as
ciências tornar-se-iam, segundo uma mentalidade imperialista, os instrumentos necessários
para a realização de um Estado empreendedor dos interesses nacionais. Assim, a cientocracia
haveria de reconstruir as novas instituições brasileiras e direcioná-las no curso positivo do
237
“Discurso do Orador oficial da Academia Cearense, Dr. Justiniano de Serpa” – Fortaleza: Typographia
Universal; T. II; Nº 03; 1897. P. 15 e 16.
143
progresso social. A crítica à unidade processual sugerida pelo governador do Rio de Janeiro,
por exemplo, ilustrou perfeitamente a ação política deste modelo cientificista proposto pelos
sócios da Academia frente a formação do pacto das oligarquias que se consolidava de acordo
com os interesses dos tradicionais chefes políticos, o que acabou por atualizar as forças que
perpassavam as relações de poder em favor das classes dominantes. Logo, tal modelo tornou-
se instrumento de contestação política dos acadêmicos cearenses, imbuídos da missão de
sujeitos inovadores, na tentativa de legitimar o conhecimento detido como o exercício de um
poder no seu território social, contrapondo-se aos grupos que lançaram-se na frente das
decisões nacionais.
O descontentamento é uma grande força, que precisa ser
aproveitada, poupada, accumulada para certas crises sociaes,
[que] representa na política o que a dúvida faz na sciência238.
238
“Discurso lido perante a Academia Cearense na sessão magna do seu primeiro anniversário, pelo seu
presidente Dr. Tomás Pompeu de S. Brasil Filho”. Revista da Academia Cearense de Letras. – Fortaleza:
Typographia Universal; T. II; Nº 03; 1897. P. 05.
144
239
Idem. P. 07 e 08.
240
Na revista de 1900 – Nº 05; P. 02 e 03 – encontramos na “Lista de Associações e Estabelecimentos donde
são enviadas as revistas da Academia Cearense” os principais núcleos letrados e seus respectivos estados,
capitais e países receptores dos artigos publicados por seus sócios: “ CE: Instituto do Ceará, Centro
Literário, Phénix Caixeiral, Iracema Litterária, Bibliotheca Pública; PA: Museu Paraense, Instituto do Pará;
PE: Instituto Archeológico de PE; Academia de Direito do Recife; BA: Academia de Medicina, Instituto
Geog. e Histórico da BA; Escola de Livre Direito; RJ: Biblioteca Nacional, Archivo Público, Academia de
Medicina, Escola de Livre Direito, Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro, Instituto Polytéchinico
145
Brasileiro, Sociedade Promotora de Instrução; SC: Instituto Histórico e Geog. De SC; SP: Academia de
Direito, Instituto Histórico e Geog. de SP, Bibliotheca Pública, Museu Paulista; Lisboa: Academia Real das
Sciências, Sociedade de Geographia; Paris: Societé Bibliographique de France; Washington: Smithsonian
Institution”. Quanto aos jornais e revistas, temos na “Lista das Revistas e Jornais das quais é remetida a
Revista da Academia Cearense”: “CE: A República, O Jornal e o Século XX; AM: Federação, Commércio do
Amazonal; PA: O Jornal, Folha do Norte, Gazetta de Belém; AL: Guttemberg; RJ: Jornal do Commércio, O
Paíz, Diário do Brazil, A Notícia, Gazetta de Notícias, Cidade do Rio, O Dia, A Imprensa e Revista
Brazileira; PE: Estandarte Cathólico, Diário de PE, Jornal do Recife, Era Nova; SP: Cidade de Santos,
Correio Paulistano, Revista do Brazil; Paris: Revue des Deux Mondes; London: The Review of Reviews”. E,
porfim, dentre os sócios-correspondentes, temos as seguintes personalidades nacionais do período: Cons.
Tristão Alencar Araripe, Visconde de Taunay, Capistrano de Abreu e Clóvis Beviláqua, dentre outros
viscondes, cônegos e homens de letras na Capital Federal.
241
A partir da Revista da Academia Cearense de 1904, percebe-se que os artigos e discursos que dantes
faziam alusão às empreitadas civilizatórias de 1870 e, sobretudo, 1880 vão cedendo espaço a outra natureza
de textos e estudos, conforme pode-se constatar pelo índice da revista: “Criminologia. Cifras Criminaes do
Ceará; Pequeno Diccionário Bio-bibliográphico Cearense; Irrigação no Ceará; Unidade Processual; A
Primeira Occupação Holandesa no Ceará; Duas Memmórias do Jesuíta Mel. Pinheiro; A Secca do Norte”.
242
ANDRADE, João Mendes de. “A Oligarquia Acciolina e a Política dos Governadores” IN: SOUSA,
Simone de (Cood.). História do Ceará. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha: 1994 (2ª ed.). P. 218 – 222.
146
cientificistas a fim de legitimar a ação política e discursiva dos acadêmicos cearenses frente
às articulações das oligarquias regionais na consolidação do novo regime. Na retórica da
Academia, era a ciência a razão moral que deveria direcionar os projetos institucionais da
nova ordem nacional. Logo, era preciso identificar as leis morais da civilização, através do
conhecimento científico, para colocar a sociedade no curso do progresso. Essa distinção
cientocrática foi herdada tão somente da antiga retórica e práticas discursivas que se
fizeram presente na Academia Francesa, aprimorando-se no final década de 1880,
sobretudo, nas páginas da revista “A Quinzena” do Clube Literário.
Enquanto a Academia Cearense apegava-se à matriz cientificista do Clube
Literário, o veio que elegera a literatura como a instituição regeneradora da nova sociedade
foi herdado por outras agremiações literárias cearenses contemporâneas. Dessa forma,
foram o Centro Literário e a Padaria Espiritual que distanciaram-se da ciência para
legitimar suas práticas discursivas e políticas de acordo com a função regeneradora da
instituição literária diante das emergências nacionais. A distinção de suas propostas que
tinham como empreendimento a literatura, caberá na discussão dos tópicos a seguir.
243
Dos militantes do Centro Republicano Cearense, temos os padeiros Antônio Sales, Jovino Guedes, Adolfo
Caminha, Waldemiro Cavalcante, Antônio Bezerra; e os centristas João Lopes, Justiniano de Serpa, Álvaro
Martins (padeiro dissidente), dentre outros. Ver SALES, Antônio. Novos Retratos & Lembranças. Op. Cit. P.
63 e 86 – 87.
147
244
A divergência entre padeiros e centristas deu-se, sobretudo, no ano de 1895, período em que ressurgiu na
arena jornalística e literária “O Pão”, periódico da Padaria Espiritual, e publicou-se o primeiro número da
revista do Centro Literário, “Iracema”. Apesar da dissidência de Álvaro Martins e Themístocles Machado da
Padaria - que logo em seguida fundaram o Centro - a crítica em relação aos padeiros remeteu-se, dentre outras
cousas, a tentativa de divulgar “O Pão” e tornar sócios-correspondentes diversas personalidades do cenário
letrado nacional (“‟Padaria Universal‟: não acceitamos annúncios; uma folha meramente litterária illude a
boa fé dos leitores, impingindo-lhes um cartapácio de annúncios. Basta a outra parte, ou faça como certa
„padaria‟ que conhecemos: annuncie suas brôas pelo correio: isto é, mande cartas, cartas, mais cartas (...)”
Iracema – Revista do Centro Litterário. – Fortaleza; Anno I; Nº 01, 02/ 04/ 1895; P. 06). Quanto a crítica dos
padeiros em relação aos centristas, a proposta de alguns integrantes do Centro Literário em mudar o nome da
capital cearense – Fortaleza para “Iracema” – foi jocosamente ridicularizada e interpretada pela Padaria como
um desaforo às tradições cearenses (“Os Quinze Dias: (...) Dissemos – Fortaleza – e não Iracema, como se
quer algures, porque não nos conformamos com a idéa de mudança do nome da nossa ex-salubre capital. O
nome - Fortaleza - vae muito bem a esta cidade – cabeça de um Estado, cuja energia e resistência são
proverbiais. (...) No estandarte da Câmara Municipal seria o forte symbólico substituido pela figura da
lendária cabocla, e em vez da legenda Fortitudine análoga aquelle symbolo, se escreveria Fragilitate, a única
palavra que pode acompanhar a effigie de uma mulher, - a incarnação das fraquezas humanas”. O Pão... da
Padaria Espiritual. – Fortaleza: Anno: II; Nº 10; 15/ 02/ 1895. P. 01). Na verdade, essas intrigas não
deveram-se às rivalidades pessoais, já que padeiros e centristas transitaram de um para o outro grêmio.
Tratavam-se tão somente das práticas letradas que se distigüiam de uma em relação à outra. Ver ainda:
MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Op. Cit. P. 62; BARREIRA, Dolor. História da Literatura
Cearense. Op. Cit. P. 229 e 230; AZEVEDO, Sânzio de. “Grêmios Literários do Ceará”. IN: SOUSA, Simone
de (Coord.). Op. Cit. P. 193 – 195, “O Ceará e os Grêmios Literários” IN: Revista da Academia Cearense.
Op. Cit. P. 124 e 125, e A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. – Fortaleza: Casa de José de
Alencar; 1996 (2ª ed.) P. 142.
148
245
“Homenagem a José de Alencar (palavras proferidas pelo Dr. Guilherme Studart – presidente do Centro
litterário – ao abrir a sessão do Centro Litterário commemorativa do 18º anniversário do passamento de José
de Alencar )”. Iracema – Revista do Centro Litterário. – Fortaleza: Anno II; Nº 07; 1896. P. 04.
246
Sabe-se que José de Alencar foi nas vias retóricas e discursivas da Literatura Nacional um dos romancistas
mais comprometidos com a formação da nacionalidade brasileira. Alguns de seus romances como O Guarani
(1857), Iracema (1865), O Sertanejo (1875) e O Gaúcho (1870), procuram através do seu nacionalismo
literário exaltar as paisagens naturais e os tipos nacionais brasileiros como os senhores de terras, índios,
sertanejos, capitães, donzelas casadoiras etc, com personagens e seus respectivos cotidianos tipicamente
representados conforme a estrutura social do Império. Os traços conservadores de seu romantismo indianista/
sertanista reforçavam a estratificação social imperial, assim como procuravam construir um caráter nacional
baseado nas tradições, lendas e costumes da nossa composição social e étnica. Ver: CÂNDIDO, Antônio.
Formação da Literatura Brasileira. – Belo Horizonte: Editora Itatiaia; 1993. V. II (2ª ed.). P. 200 – 211 e
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. – São Paulo: Cultrix; 1994 (33ª ed.). P. 134 – 140.
149
247
“Só a Arte Immortaliza!”. Iracema – Revista do Centro Litterário. Fortaleza: Anno I; Nº 01. 02/ 04/ 1895.
P. 03 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/ Setor de Periódicos e Obras Raras. M. PR SOR 4460 – 4494. 1).
248
Guilherme Studart, Farias Brito, Justiniano de Serpa e Antônio Bezerra foram membros simultaneamente
da Academia Cearense e do Centro Literário, assim como estamparam nas campanhas de 1880 no Movimento
Abolicionista e no Clube Literário. Ver: GIRÃO, Raimundo. A Academia de 1894. Op. Cit. 219 – 225 e
AZEVEDO, Sânzio de. O Centro Literário (1894 - 1904). Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC; 1972. P.
12 e 13.
150
sólida a regeneração das instituições sociais durante a formação da ordem republicana, e, desta
feita, seria o princípio moral do sujeito inovador naquele espaço letrado. Pois, segundo as
teorias que eloqüentemente difundiram-se nos espaços letrados cearenses desde 1873, o Ceará
estaria caminhando a largos passos no curso positivo do progresso social e humano. “Exemplo
que deveria ser seguido por toda a nação”, conforme já identificado na retórica da Mocidade
Cearense, o conhecimento das leis naturais e sociológicas que atuaram no Ceará deveriam ser
disseminadas por toda a sociedade brasileira. Este sentimento de “descoberta” e “realização
plena”, assim como ocorrera na Academia Cearense em relação à ciência, motivou o Centro
Literário a difundir através da literatura o desejo para o progresso material e moral, ou seja a
identificação com os ícones nacionais que a leitura dos seus sócios pregava. Logo, seria mais
um atributo ao sujeito inovador operando em favor de um sentimento pátrio que viesse atender
o processo político-institucional brasileiro na consolidação da República.
Ora, diante de tal situação, nada mais coerente com as suas pretensões
patrióticas que instituir um ícone de civilização na literatura. Com um forte sentimento
nacional-regionalista, os centristas elegeram a obra de um antigo conterrâneo, que
empreendera nos primórdios do Império a tentativa de construir uma identidade para a
nação, como sendo a referência dos traços nacionais que haveriam de lançar a sociedade
nos rumos da civilização, preservando o sentimento que definiria o caráter moral do povo
brasileiro. E “Iracema”, de José de Alencar, foi a obra eleita por estes sujeitos em sua
campanha para representar o caráter que deveria expressar a nacionalidade brasileira, bem
como definir naquele território os seus espaços de atuação e seus usos de poder.
A escolha do romance “Iracema” para os centristas não foi aleatória.
Representou, de fato, uma etapa da leitura que se fez sobre a constituição do sujeito
nacional durante a aceitação da República, agora apropriada pelas pretensões corporativas e
facciosas de cunho moral-doutrinador pelos sócios do Centro. A eleição do respectivo
poema epopéico possuiu interesses claros e evidentes para reportarem-se à origem da
própria história nacional, segundo o caráter ideológico que a vertente mais pragmática do
indianismo romântico trouxe em sua retórica249. No romance, a mitologizada história da
249
Araripe Júnior nos conta como José de Alencar resolveu em “Iracema” o conflito entre o chautebrianismo
indigenista e os laivos do romantismo iluminista civilizador que atormentaram o autor em sua auto-crítica na
obra “O Guarani”: “Por vezes, ouvi-o manifestar as vacilações em que o punham os cantos inacabados, logo
que os tentava corrigir; e recordo-me bem de que a dúvida principal consistia em fixar uma das duas
hipóteses, - se o verso deveria soltar-se dos lábios de um bardo civilizado, ou se da boca de um tupi. No
151
colonização do Ceará pelo lusitano Martins Soares Moreno, que ao apaixonar-se por
Iracema, a “virgem dos lábios de mel”, vem apaziguar os conflitos entre as tribos indígenas,
a retratar o traço civilizador que fora incorporado do indianismo pelos centristas. O branco
europeu, ao desbravar as plagas cearenses, encanta-se com o tipo feminino indígena, dócil e
apto para a civilização. Desposando Iracema, Martim Soares iniciava no Ceará o processo
civilizador, facilitado pelo caráter do índio formoso, pacato. O branco perseverante no
curso do progresso, haveria de encontrar “solo fértil” para o seu empreendimento250.
É interessante como a narrativa do romance influenciou a produção
intelectual cearense. Desde a década de 1880, dos textos etnográficos sobre a origem do
caráter cearense251 até as primeiras décadas do regime republicano, a produção periódica
primeiro caso, ele dizia, todos os sentimentos indígenas teriam de desaparecer da tela, pois que seria
estranho que a estesia guaranítica penetrasse na alma do português comtemplativo: racionalmente, não
poderia aproveitar o fundo das crenças indígenas e encarnar legenda dos piagas na estrofe bárbara dos
„nheengaraçaras‟; no segundo, corriam-se da vista todas as belezas que assombravam o colono: nem as lutas
truculentas dos selvagens, nem o brado das cascatas, nem o urro do jaguar, nem a sombra da floresta, nem o
convulsionar dos grandes rios, nem os encantos da flora e da fauna conseguiriam desferir as cordas do
instrumento indígena; indiferente a tudo isto, por hábito e conformação, o selvagem, desconhecendo todo o
segredo da arte descritiva, concentrar-se-ia nos seus rudes sentimentos, nas suas vinganças guerreiras, nas
suas paixões sanguinárias, na admiração brutal pelo trovão, que domina o animal apenas humanizado. E a
esta crítica, com razão, o esbarrava; era o instintivo reconhecimento da impossibilidade de construir-se,
hoje, um poema cíclico. Da fusão, entretanto, destas duas hipóteses, nasceu „Iracema‟, para cuja apreciação
forçoso é tomar o único ponto de vista razoável, que, sem decapitar a obra, reconheça o que possa haver aí
de falho e insuficiente”. ARARIPE JR, Tristão Alencar. Luizinha/ Perfil Literário de José de Alencar. –
Fortaleza: ACL/ José Olympio Editora; 1980. P. 187.
250
A historiografia tradicional não deixou de considerar o período da colonização cearense com alusão
epopéica, sobretudo, ao “feito heróico” de Martins Soares Moreno como bem fez o romancista José de
Alencar: “A História de Moreno edifica-nos pela bravura do moço luso, pelo engenho e arte com que soube
conquistar a simpatia e a colaboração dos índios e pelos seus feitos valorosos nas lutas em que se empenhou
até a velhice, em benefício do seu país e do seu rei. Não foi senão com absoluta justeza, em relação aos fatos
da vida gentil e gloriosa de Martim, que o genial Alencar fê-lo o Guerreiro Branco, amante da virgem
Iracema, numa admirável simbolização a traduzir, com as filigranas da ficção, o encontro das duas
civilizações tão díspares, nesta parte ardente do Mundo Americano”. GIRÃO. Geografia Estética de
Fortaleza. P. 39 e 40.
251
A narrativa do romance indigenista alencariano exerceu considerável influência na produção intelectual do
segundo oitocentismo cearense. A saga mitologizada de Martim Soares e Iracema, interpretada metaforicamente
como a fusão étnica do branco europeu com o índio americano, em que é ausente a presença do indivíduo negro,
reflete-se no discurso civilizador do estudo etnográfico sobre o caráter da mulher cearense, de Abel Garcia, nas
páginas de “A Quinzena”, alicerçado nas leis evolutivas da sociologia: “Um notável anthropologista, o Dr. Le
Bon, em interessante estudo de craneologia, affirma que „no estudo dos cérebros femininos, mostra que nas raças
mais civilizadas (...) o crâneo se approxima mais do gorilla que do sexo masculino‟. Conclui que (...) a
capacidade das mulheres das raças superiores (européia) é quase nullo. Numa raça inferior, porem, numa tribu
de índios das margens dos nossos rios (...), a mulher mostra-se, sinão supperior, ao menos igual ao homem; pois
(..) deixa-lhe a tarefa de curar da pequena agricultura, a fabricação dos utensilhos domésticos e guerreiros, os
delicadíssimos trabalhos da tecelagem e da arte da cerâmica, em que avigora a potência intellectual. Poderosos
fatores do desenvolvimento social (...), intervieram no caráter cearense: o meio, a lucta pela existência e, (...), a
seleção natural. A mulher cearense compartilhando do modus vivendis do homem, (...) adquiriu esse exagero de
sensibilidade, (...) vivacidade de sentimento e vigor mental que deu-lhe direito de occupar saliente posição nos
152
das agremiações letradas atualizaram em suas narrativas discursivas o veio moral referente
ao sujeito inovador, um bio-tipo nacional, que caracterizaria o indivíduo correspondente à
imagem do progresso naquela sociedade. Os artigos da revista “A Quinzena” que outrora
elegeram a literatura sendo a instituição regeneradora, teriam justificado na ciência
etnográfica o que os centristas levariam a cabo em meados da década de 1890 através do
veio literário. O progresso e a civilização haveriam de ser alcançados com a leitura da obra
que seria “a legítima apreensão da formação da nacionalidade brasileira”. Uma vez ciente
da sua origem européia, civilizada, e indígena, apta à civilização, excluindo a mácula do
negro que era sinônimo de atraso, a sociedade brasileira haveria de conduzir-se segundo os
parâmetros apontados pela literatura em prol da formação das novas instituições, a fim de
propiciar o seu crescimento moral de acordo com as leis evolutivas. Logo, estando a nação
representada no poema epopéico que tão bem a entendeu, de acordo com os sócios do
Centro, o doutrinamento via instituição literária seria a forma de conduzir a sociedade à
nova ordem, a despertar um desejo de referência nacional.
Desta feita, explica-se o título da revista do Centro Literário. O seu caráter
político-ideológico comportava um elemento doutrinador que almejava empreender através
da instituição literária a legitimação do sujeito inovador, o tipo nacional modelar pregado
pela leitura da Mocidade Cearense. E, uma vez justificado nas formulações científicas o
pendor do Ceará para a civilização, a nação brasileira estaria representada no romance
alencariano que fez apologia à origem daquela sociedade do “adiantamento” moral,
material e intelectual, segundo os anseios daquela geração que se proclamava a
empreendedora do progresso. Por sua vez, esse ufanismo nacional-regionalesco haveria de
exaltar-se na idéia de promover, além de textos literários e dogmas nacionais, uma frustrada
campanha que é fato inédito na historiografia cearense, a título da devida notoriedade que
possuiu no circuito do imprensa literária. A proposta de mudar o nome da capital do Ceará,
de Fortaleza para “Iracema”. Se fosse realizada, haveria de ser retomada a euforia das
campanhas de 1880 que deixaram concentrados laivos de “febre” intelectual
empreendedora naqueles letrados cearenses.
Resta agora que ao nome de Fortaleza, que lembra ainda o
domínio ferrenho da prepotência e arrogância dos
ousados commentimentos que convulsionaram a província e repercutiram em todo paiz”. GARCIA, Abel. “A
Mulher Cearense” IN: A Quinzena. ANNO I; Nº 03; Fortaleza, 15/ 02/ 1887. P. 24.
153
252
BEZERRA, Antônio. “Iracema” IN: Iracema – Revista do Centro Litterário. Fortaleza: Anno I; Nº 01. 02/
04/ 1895. P. 01 e 02.
154
campanha em prol da exaltação dos ícones alencarianos, traria numa data especial, num
determinado espaço de poder, a ocasião oportuna para a legitimação e notoriedade dos desejos
nacionalistas e patrióticos, comprometidos com aquelas Repúblicas das Letras Cearenses.
No dia 12 de dezembro último (1895), o Centro Litterário
rendendo homenagem ao mais bello e grandioso vulto da
litteratura brazileira, reuniu-se em sessão extraordinária, no
palacete da Assembléia Estadoal, para solemnisar o 18º
anniversário de morte de José de Alencar.
O salão achava-se ornado (...) com bandeiras e escudos em que se
liam os nomes de „Minas de Prata‟, „Senhora‟, „Viuvinha‟,
„Lucíola Diva‟, „O Sertanejo‟, „Sonhos de Ouro‟, „Guarany‟,
„Iracema‟ e outros de obras do immortal patrício.
Por cima da cabeça do presidente estava collocado um retrato de
José de Alencar.
(... ... ...)
Fizeram-se representar a Academia Cearense, Padaria Espiritual,
Phenix Caixeiral, Escola Militar, 2º Batalhão de Infantaria, Club
Floriano Peixoto, Congresso de Sciências Práticas, Imprensa,
Tribunal da Relação e Instituto do Ceará253.
253
“Homenagem a José de Alencar”. Iracema – Revista do Centro Litterário. – Anno II; Nº 07; Fortaleza:
1896.
155
255
Idem. P. 162.
157
256
É demasiada a produção historiográfica do Barão de Studart sobre o Ceará. Em sua trajetória intelectual de
historiador, fez viagens para a Europa e outros pontos do Brasil, como a Capital Federal, em busca incessante
por documentos e registros sobre a colonização e os primórdios da província cearense. À sua “obsessão” em
historizar tudo o que poderia tornar-se histórico deve-se à existência de boa parte dos documentos de sua
época e, sobretudo, da sua geração, a Mocidade Cearense, de quem escreveu um esmiuçado dicionário bio-
bibliográfico, inúmeros ensaios e estudos historiográficos apelando para a memória histórica dos sujeitos
pertencentes às elites de Fortaleza. Dr. Guilherme Studart – que participou do Centro Abolicionista e do
Clube Literário na década de 1880 – foi ainda fundador Instituto (Histórico, Geográfico e Antropológico) do
Ceará, da Academia Cearense e do Centro Literário, onde foi presidente. Dentre alguns dos seus
intermináveis trabalhos históricos, são estes os mais conhecidos: Diccionário Bio-Bibliográphico Cearense –
Fortaleza: Typogrphia Minerva; 1915; Dactas & Factos para a História do Ceará (1603 - 1889) e Dactas &
Factos para a História do Ceará/ Em commemoração ao centenário do Jornalismo Cearense e à
participação do Ceará na Confederação do Equador (1889 – 1924) – Fortaleza: Typographia Commercial;
1924 e Para a História do Jornalismo Cearense (1890 - 1924) – Fortaleza: Typographia do Instituto do
Ceará; 1925.
257
Sem mencionar as reuniões conjuntas ou visitas feitas entre sócios de um ou outro núcleo letrado, eram
centristas e acadêmicos ao mesmo tempo: Justiniano de Serpa, Antônio Bezerra, Guilherme Studart – estes
dois últimos, também do Instituto do Ceará. Por sua vez, Tomás Pompeu de S. Brasil Filho pertenceu à
Academia e ao Instituto.
258
Sobretudo, Joaquim Catunda, João Cordeiro, Martinho Rodrigues, Justiniano de Serpa, João Lopes, Abel
Garcia e até Antônio Sales, que pertenceu ao grupo dos “Novos do Ceará”, ocuparam cargos públicos e
158
260
Art. 01. § 1º - “O Instituto do Ceará tem por fim tornar conhecidas a história e a geographia da Provincia
e concorrer para o desenvolvimento das lettras e das sciencias”. “Estatutos do Instituto do Ceará”. IN:
Revista Trimestral do Instituto do Ceará. Anno: I; T. I. – Fortaleza: Typographia do Cearense; 1887. P. 09.
261
AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. O Templo do Saber: O Instituto do Ceará e a Construção da
História e Identidade Cearenses. – Fortaleza: PET-História/ UFC; MIMEO; 1997.
160
instituição científica e disseminar seus usos para toda nação brasileira. Logo, era a
cientocracia a instituição nacional que haveria de orientar o Estado para lançar o novo
Brasil no curso das nações civilizadas, através do industrialismo, do conhecimento das leis
sociológicas e da produção técnico-científica.
263
RAMA, Angel. Op. Cit. P. 52.
162
distinto, oriundo dos setores médios e baixos tanto da capital quanto do interior cearense -
pequenos agricultores, profissionais liberais e funcionários do comércio - congratularam seus
desejos coletivos e pretensões institucionais na primeira década do regime republicano. Seus
anseios, diante da construção da nova ordem, resultariam na elaboração de um modelo menos
orgânico, porém, bastante condizente à sua origem social, ainda que alicerçado em posturas
variadas, desde a ortodoxia comtista, o romantismo nacional-conservador, o cosmopolitismo
culturalista ou ainda chegando a ser influenciada por estéticas da “ressaca” da modernidade,
como o pessimismo finissecular do nefelibatismo e do decadismo/ simbolismo. Dessa geração,
em que a maioria havia iniciado a carreira pública com a fundação do Centro Republicano
Cearense264, surgiram novas posturas intelectuais e políticas oscilantes entre os anseios
emergentes daqueles tempos e uma produção periódica literária de retórica boêmia e jocosa.
No seio dos “Novos do Ceará”, nasceu a Padaria Espiritual, a sociedade literária cearense da
década de 1890 de traços peculiares dentre as demais contemporâneas. E por conta da sua
distinção, bem como do campo de tensões de idéias que se inseriram no seu periódico, este
estudo dedicou um capítulo exclusivo à Padaria, no esforço de melhor compreender
complexidade da sua produção intelectual como dobras discursivas diante do pensamento
orgânico da Mocidade Cearense que foi elaborado, aproximadamente, ao longo de três
décadas.
Sendo mais original e inusitada, porém, também estando comprometidos com
as transformações políticas do período, seus apontamentos para um modelo institucional foi
elaborado segundo fluxos da experiência cotidiana dos seus sócios, bem mais que das leituras
e pressupostos teóricos eurocêntricos como fora então com a geração estudada. A partir do
próximo tópico, necessariamente, a análise deste estudo recairá de forma mais detida sobre a
natureza da atividade periódica e literária da Padaria Espiritual diante da reconstrução da nova
ordem social e política brasileira nos primeiros anos do regime republicano.
264
Dentre os Novos do Ceará que participaram do Centro Republicano, têm-se as respectivas personalidades
que fundaram a Padaria Espiritual: Jovino Guedes, Antônio Sales, Adolfo Caminha, Waldemiro Cavalcante,
Themístocles Machado e Álvaro Martins (estes dois últimos, padeiros dissidentes e fundadores do Centro
Literário). Ver: SALES. Op. Cit. P. 63 e 86 – 87.
163
265
SALES, Antônio. Retratos & Lembranças. – Fortaleza: Waldemar de Castro e Silva Editor; 1938 APUD
AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Op. Cit. P. 54.
266
MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Op. Cit. P. 16; BARREIRA, Dolor. Op. Cit. P. 138 e 139;
AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Op. Cit. P. 58, “O Ceará e os
Grêmios Literários” IN: Revista da Academia Cearense de Letras; 1982. Op. Cit. P. 124 e “Grêmios
Literários do Ceará” IN: SOUSA, Simone de (Coord.). História do Ceará. Op. Cit. P. 189; FIÚZA, Regina
Cláudia Pamplona. O Pão... da Padaria Espiritual. – Fortaleza: s/ r. 1992. P. 18.; PONTE, Sebastião Rogério
(Org.) O Pão e a Cidade: Cotidiano e Contexto Urbano da Padaria Espiritual (1892 - 1898). – Fortaleza:
1992. P. 07.
164
267
Dentre alguns integrantes dos Novos do Ceará, tem-se notícia dos seguintes padeiros e seus respectivos
municípios de origem: Antônio Sales, Paracuru; Lívio Barreto e Waldemiro Cavalcante, Granja; Adolfo
Caminha, Aracati; Cabral de Alencar, Baturité; Themístocles Machado, Limoeiro; Ulisses Bezerra, Arreiros,
na Chapada dos Inhamúns. Ver STUDART. Diccionário Bio-Bibliográphico Cearnese. Op. Cit. Vols. I, II e
III.
268
“(...), dentro da própria sociedade livre, em que coexistiam os mais diversos estágios de civilização, a
classe dirigente distingüia-se excessivamente do resto da população do país, não só do ponto de vista do
aspecto exterior, do nível e estilo de vida e dos interesses essenciais, mas sobretudo da cultura. Uma minoria
de letrados e eruditos e uma enorme massa de analfabetos. (...) mantinha-se, no Brasil, extremamente
acentuados, os desníveis culturais entre as elites e o resto da população. Esse desnível, que já é um efeito
normal da civilização agrária e escravocrata, foi notavelmente elevado pelo desenvolvimento que
adquiriram, no sistema escolar em formação, as escolas destinadas às profissões liberais, sem um
desenvolvimento paralelo da educação das camadas populares (...) ”. AZEVEDO, Fernando de. A Cultura
Brasileira. Op. Cit. P. 563.
269
Leonardo Mota listou em número de oitenta e cinco os gabinetes, clubes, associações e bibliotecas
filantrópicas espalhadas pelos diversos lugares do estado do Ceará. MOTA, Leonardo. Op. Cit. P. 27 - 29.
270
Lívio Barreto – filho de pequenos agricultores do município de Granja/ CE – e Antônio Sales – filho de um
pequeno chefe político do município de Açoures/ CE – exerceram a atividade de caixeiro ao residirem em
Fortaleza, dentre as diversas profissões exercidas por outros membros da Padaria em jornais de pequeno
porte, prestação de serviço nos órgãos militares, na alfândega etc. Ver: MOTA. Op. Cit.; SALES. Op. Cit. e
MONTENEGRO, Braga. “Lívio Barreto – Centenário em 1970” IN: Revista da Academia Cearense de
Letras. – Fortaleza: Ano: LXXV; Nº 35; 1971. P. 149 – 152.
165
angariarem prestígio político, social e intelectual. Para eles, a República seria o regime pleno
de oportunidades em que haveriam de sobressair os mais aptos para as transformações do
período271. E o mundo das letras, parecia ser o meio de alcançar a realização dos seus ideais
mais imediatos272. Dessa forma, as premissas que subsidiaram a formação de um grupo de
rapazes em sua maioria de origem pobre, residentes na capital do estado, abarcadores da
recente causa republicana e inseridos no mundo das letras teriam, de certa forma, contribuído
para o surgimento da Padaria Espiritual no seio da cultura das belas letras cearenses.
O empreendimento literário levado adiante pela Padaria esteve ligado aos
anseios políticos daquele grupo social menos privilegiado para sua inserção na vida pública,
bem como nas decisões institucionais. Motivados por seus dotes intelectuais, os padeiros
organizaram a sua associação regida pela funcionalidade do inusitado “Programma de
Instalação da Padaria Espiritual” que ficou conhecido em boa parte do cenário literário
nacional273. Dentre outras cousas, seu programa trouxe propostas regimentais que
condicionaram a produção periódica do grupo, determinando as suas relações com outros
setores da sociedade fortalezense, sua principal esfera de atuação, além de caracterizar a
Padaria nos seus aspectos mais distintos.
O seu programma é muito simples: transmittir ao leitor com a
maior exactidão o que sente e o que pensa a Padaria Espiritual
sobre tudo e sobre todos.
Não obedece absolutamente a sugestões extranhas, nem tão pouco
toma a si o compromisso de agradar; em compensação, de modo
algum ameaça hostilisar.
Promette apenas uma cousa: dizer sempre a verdade, doa esta a
quem doer274.
271
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Op. Cit. P. 146 – 150.
272
Sobre a difícil carreira de escritor, em que muitos dos rapazes pertencentes à geração dos Novos do Ceará
ansiaram em ter prestígio na capital, Rodolfo Teófilo discorre em seu livro de memórias sobre a sua
experimentação na vida cotidiana: “Eu tinha herdado do meu pai um nome imaculado, mas também uma
grande pobreza (...) Mas, como sahir da minha obscuridade e collocar-me? Só o livro podia livrar-me do
captiveiro. Mas como chegar ao livro, se os meus patrões entendiam que para vencer na vida não precisava
saber ler?”. THEÓPHILO, Rodolpho. Scenas & Typos. – Fortaleza: Ed. Agssis Bezerra; 1919. P. 68.
273
A repercussão do programa de instalação da Padaria teve considerável notoriedade no cenário letrado
nacional: “(...) esse Programa de Instalação da Padaria Espiritual, que transpôs fronteiras, reproduzido por
vários jornais em todo o País, e que foi seguramente a chave que abriu as portas da Capital Federal à fama
da Associação provinciana”. AZEVEDO, Sânzio. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará.Op. Cit. P.
59.
274
O Pão... da Padaria Espiritual. Fortaleza: Anno: I; nº 01; 10/ 07/ 1892. P. 01.
166
De fato, o único compromisso dos padeiros parecia ser com a sua causa
própria. Isso valeria o que foi sempre atribuído à Padaria como sendo um grupo de jovens
letrados boêmios. Mas, por trás da boemia e do jocoso sarcasmo que lançavam à sua principal
adversária, a “burguesia”275, havia uma crítica social de caráter político que expressava a
postura dos padeiros em relação ao mérito que deveriam ter diante de outros segmentos da
sociedade, sobretudo, os que se empenharam em prol da nova ordem emergente.
Neste sentido, o combate da Padaria Espiritual à burguesia refletiu, além da
origem social e dos anseios meritórios ansiados pelos padeiros, a contestação política sobre
aqueles que definiam o avanço da ordem burguesa na capital, bem como os rumos
institucionais que lançavam as cartas para as decisões nacionais. O aparecimento de “O Pão”
na arena jornalística e literária de Fortaleza, por exemplo, refletiu o quanto a rivalidade
existente entre os padeiros e a sociedade ávida por consumo dos valores burgueses e produtos
industrializados europeus. Aquilo que se evidenciava como a “causa nobre” do grupo, tinha
implicações inerentes ao aspecto social que distinguia os valores e desejos dos segmentos
burgueses de Fortaleza.
A pequena capital cearense, habituada ao aluá, à secca e à
política, e celebrisada pelo irreprehensível alinhamento de suas
ruas, estremeceu como alguém que accorda de um pesadelo
enorme.
A burguesia damnou: que éramos uns idiotas sem eira nem beira,
uns pilintras sem lettras nem: que isso de Padaria Espiritual é
uma especulação como outra qualquer (...)
Aquelles que, duvidando das nossas boas intenções, julgarem-nos
uma sucia de estouvados, uns estroínas, sem responsabilidade e
sem critério, ouçam:
A capital do Ceará, encantadora como uma pérola do Oriente,
bella como conheceis, é, entretanto, uma cidadesinha
soffrivelmente atrasada com laivos de civilisação. Si temos duas
livrarias, em compensação não lemos livros que prestem. Para
matar o tédio que nos mina e consome a existência, somos
obrigados a ir, às quintas-feiras e aos domingos, alli ao Passeio
275
Deve ser entendido que a burguesia, para os padeiros, referia-se aos grupos sociais beneficiados com a
proclamação da República e com a política do encilhamento, conforme podem ser identificados dessa
maneira:“Se os conflitos políticos tendiam a decantar os agentes cuja qualidade maior fosse a moderação no
anseio das reformas, as agitações econômicas por seu lado apuravam os elementos predispostos à „fome do
ouro, à sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo‟. Conciliando essas duas
características, o conservadorismo arejado e a culpidez material, pode-se conceber a imagem acabada do
tipo social representativo por excelência do novo regime” SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. P. 26.
167
276
O Pão... da Padaria Espiritual. Anno: I; Nº 02. Fortaleza, 16/ 07/ 1892. P. 01 - 02.
277
Caráter que evidenciou a Padaria diante das demais agremiações literárias do período, foi a sua distinção e
labor em prol da Literatura e Artes conforme atesta no primeiro artigo do seu Programa de Instalação: “1º -
Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da „Terra da Luz‟, antigo Siará Grande, uma sociedade
de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual, cujo o fim é fornecer pão de espírito aos
sócios, em particular, e aos povos, em geral”. APUD MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Op. Cit. P.
42. Esta característica a distancia da produção científica que na maioria das vezes era prioritária em outras
associações cearenses como a Academia Francesa, Clube Literário, Instituto do Ceará e Academia Cearense.
168
segmento letrado que angariava prestígio público sem o apadrinhamento familiar e que usava
“luvas de pelica”, distinto por não absorver os valores de consumo e das práticas políticas
retrógradas dos que se digladiavam nas trincheiras partidárias pelas fatiotas do poder. Em boa
medida este enunciado teve suas matrizes intelectuais na ortodoxia comtiana em que, através
dos pressupostos sociocráticos, aquela agremiação preocupou-se em seu programa com a
sociedade regida por aqueles que detivessem o conhecimento de sua cultura.
Durante toda a produção periódica da Padaria Espiritual (1892 - 1896), o
combate à burguesia esteve presente nas colunas editoriais de “O Pão”. Sobretudo, foi na sua
primeira fase (1892) que o caráter mais combativo destacou-se mediante o aspecto boêmio e
sarcástico, a diferenciar-se do modelo retórico, acadêmico, bacharelesco e científico, utilizado
pela Mocidade Cearense em suas agremiações (Academia Francesa, Clube Literário, Instituto
do Ceará, Academia Cearense e Centro Literário). Foi durante esse período que “O Pão”
apresentou um caráter de pasquim literário com críticas jocosas ao cotidiano de Fortaleza, seus
habitantes, as novidades e acontecimentos inusitados, com doses excessivas de humor e
pilhéria. Na segunda fase (1895 - 1896), porém, a Padaria haveria de incorporar um caráter
bastante diferente daquilo que ela fora nos seus primórdios. Com a inserção de novos
sócios278, o grupo tomaria uma postura menos boêmia e mais comprometida com a causa
letrada. Até mesmo artigos científicos como “As manchas do sol e as seccas” de Rodolfo
Teófilo, por exemplo, em que ele critica as conclusões astronômicas do Barão de Capanema, e
outros como “Criminologia do Direito” do sócio-correspondente Clóvis Bevilaqua, expressam
um novo caráter que é afigurado nas linhas editoriais do periódico a partir de 1895. A
distinção entre as duas fases do grupo será discutida no próximo capítulo.
Mas, se na primeira fase a Padaria Espiritual teceu críticas sobre o cotidiano de
Fortaleza com pilhéria e boemia, na segunda suas práticas letradas expressavam na sua
máquina discursiva a preocupação com empreendimentos maiores relacionados ao cenário
nacional. A ser mencionada a avidez de manter contato com personalidades de outras capitais,
na atribuição de sócios correspondentes que estampavam uma coluna especial as suas
remetências, além de homenagear na coluna “Medalhas” diversos literatos e intelectuais, pela
iniciativa de Antônio Sales a Padaria passou a criar uma teia de contatos na República das
278
Dentre os quatorze padeiros que vieram compor o grupo em 1894, temos Antônio de Castro, Rodolfo
Teóphilo, Antônio Bezerra, Artur Theófilo, Xavier de Castro, José Nava e Cabral de Alencar. MOTA. Op.
Cit. P. 38.
169
Letras nacionais a fim de tornar ressonante a sua produção literária, sua leitura social,
sobretudo, as preocupações que possuía em relação às emergências institucionais diante da
formação da nova ordem política.
Robustecida pela acquisição de novos obreiros, estimulada pelos
applausos que tem conquistado em todo o Paiz, espera a Padaria
Espiritual prosseguir honradamente na sua missão, juntando
novos triumphos aos que já assignalam a sua trajectória.
(... ...)
Certos de que outro tanto nos desejam, promettemos nada poupar
para que o Ceará figure na vanguarda do movimento litterário
que presentemente se desenrola no Paíz de par com os generosos
esforços para a nossa regeneração política279.
279
O Pão... da Padaria Espiritual. Fortaleza: Anno: II; Nº 07; 01/ 01/ 1895. P. 01.
170
280
AZEVEDO, Sânzio. “Grêmios Literários do Ceará”. Op. Cit. P. 189 e 190.
281
APUD MOTA. Op. Cit. P. 43 e 44.
171
científicas ou valores morais contidos na literatura cearense, para representar o seu modelo
institucional à nação. Algumas prerrogativas do seu programa podem dar indícios quanto a
este aspecto discursivo que se encontrou nas páginas de “O Pão”, referente à cultura
popular cearense e a ação letrada para os modelos nacionais.
282
Idem. P. 45.
283
O Pão. Anno III; Nº 33 – Fortaleza; 15/ 09/ 1896. P. 08.
172
própria Capital Federal. Ciente de que à literatura caberia naquele momento a regeneração
das instituições nacionais, Antônio Sales, em nome da Padaria, divulgara um tipo nacional
especifico, diferente do sujeito inovador da Mocidade Cearense, à nova ordem através das
vias editoriais do periódico que fora profusamente distribuído pelas principais cidades do
Brasil.
284
Dos números 07 ao 15 de “O Pão”, estão registrados os versos de Augusto Xavier de Castro – da segunda
fase da padaria – que retrataram o cotidiano popular cearense. Estes versos haverão de ser analisados no
tópico 01 do capítulo III desta tese (“Tipos Sociais... Modelos Institucionais”).
285
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. - São
Paulo: Cia das Letras; 1996. P. 26 a 32.
173
288
Bruno Jaci. “Carta à Padaria”. O Pão. Anno: II. Nº 11. Fortaleza, 01/03/1895. P. 04.
289
Conforme estampa no artigo de número seis do seu respectivo programa de instalação (“Art. 06 – Todos os
padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de
suas árduas e humanitárias funções“ ), cada padeiro possuía um pseudônimo tipicamente popular: Antônio
Sales, “Moacir Jurema”; Lopes Filho, “Anatólio Gerval”; Henrique Jorge, “Sarasate Mirim”; Gastão de
Castro, “Inácio Mongubeira”; Tibúrcio de Freitas, “Lúcio Jaguar”; José Carvalho, “Cariri Braúna”; Xavier de
Castro, “Bento Pesqueiro”; Eduardo Sabóia, “Brás Tubiba”, etc. MOTA. Op. Cit. P. 36 e 38.
290
“Art. 30 – A Avenida Caio Prado („point‟ de encontro da sociedade fortalezense, onde a burguesia local
desfilava exibindo as novidades da Europa) é considerada a mais útil e a mais civilizadora das instituições
que felizmente nos regem, e, por isso, ficará sobre patrocínio da Padaria”. APUD MOTA. Op. Cit. P. 43.
175
novas” da civilização eram aludidas como forma de contribuir para o progresso e bem-estar
social.
291
Moacir Jurema. “A Rampa”. O Pão. Nº 01; Anno: I. Fortaleza: 10/07/1892. P. 05.
292
Satyro Alegrete. “Livra!”. O Pão. Nº 02; Anno: I. Fortaleza: 17/ 07/ 1892. P. 04.
176
o avanço da ordem capitalista, o que não impediu que a maioria dos padeiros emigrassem
do interior para a cidade. Na verdade, ainda que mantendo as especificidades de cada
território social, essas tensões fizeram parte de um mesmo movimento da sociedade
ocidental, em que o crescimento urbano fez com que os sujeitos letrados buscassem
melhores condições de vida nas cidades293, onde aqueles narraram em suas práticas letradas
as inquietações experimentadas com o avanço da ordem capitalista.
293
DARNTON, Robert. Boemia Literária & Revolução. O Submundo das Letras no Antigo Regime. – São
Paulo: Cia das Letras; 1987 e WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. –
São Paulo: Cia das Letras; 1989.
294
“A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contigente, é a metade da Arte, sendo a outra metade o
eterno e o imutável”. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz & Terra; 1996
(Coleção Leitura).
295
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Op. Cit.
177
da nova ordem, segundo uma leitura dos modos de vida popular. Logo, a sua origem social
contribuiu para a ação intelectual da máquina discursiva de “O Pão” diante das emergências
nacionais, o que deveras repercutiu na sua produção periódica literária a crítica ao cotidiano
da sua esfera de atuação, a cidade de Fortaleza. E ainda que distintas posturas estivessem
presentes no seio daquela agremiação, a possibilidade empreendedora de um modelo
institucional condizente à sua realidade social foi o que determinou o caráter identitário das
diversas posturas intelectuais presentes no mesmo grupo.
Como pode ser percebido neste capítulo, a ação missionária para construir uma
referência de Estado e Nação para o Brasil foi incorporada pelas práticas letradas das três
principais sociedades literárias cearenses na década de 1890. Diante das emergências
institucionais, um tipo nacional modelar à imagem da sociedade cearense, em que se leu a
construção de um sujeito inovador a partir da interpretação dos acontecimentos daquela
realidade sócio-política, destacou-se nas práticas discursivas da produção periódica dessas
agremiações literárias. Na Academia Cearense, a resistência à seca de 1877 bem como a
abolição dos cativos em 1884 teriam evidenciado o Ceará da comunhão brasileira pela força
das leis naturais e morais que supostamente atuaram no seu desenvolvimento positivo. No
Centro Literário, a obra “Iracema”, de José de Alencar, comportaria os traços morais de um
caráter que condicionaria a regeneração das instituições nacionais. Na Padaria Espiritual, os
aspectos da vida popular haveriam de moldar as formas viáveis para a composição do tipo
nacional, ainda que referendada de forma exclusiva no cotidiano do povo cearense.
Em maior ou menor escala, os anseios políticos do Clube Literário tiveram
repercussão nas práticas letradas e posturas intelectuais das agremiações literárias e científicas
durante a década de 1890. O modelo institucional segundo o perfil de um sujeito inovador,
protótipo nacional, à imagem do povo cearense, prescrito nas páginas da revista “A
Quinzena”, foi transmitido às leituras feitas pela Academia Cearense, Centro Literário e
Padaria Espiritual. Sejam as suas posturas intelectuais e máquinas discursivas referendadas no
conhecimento das leis naturais e sociológicas, seja no doutrinamento moral do Brasil via
Literatura, seja identificando os tipos sociais para implementar as instituições nacionais. Logo,
às considerações feitas no início deste capítulo, quanto à produção historiográfica literária
nacional sobre os movimentos letrados ou intelectuais cearenses, sobretudo no que tange às
178
considerações de Tristão de Athaíde, cabe dizer que a sua complexidade é superior ao que
foi estipulado somente às três décadas, ou movimentos intelectuais do Ceará.
Influenciadas pelos princípios retóricos das idéias do pensamento europeu,
justificando seu discurso nas leituras cientificistas e evolucionistas, confeccionando
narrativas segundo as intensidades experimentadas nas relações sociais e cotidianas dos
seus integrantes, as agremiações literárias cearenses da década de 1890 estiveram
comprometidas com os anseios de regeneração social, moral, política e institucional,
durante os primórdios do golpe republicano. Mesmo considerando a sua realidade social,
tão malograda alhures quanto no restante do país, e a sua trajetória política como
referências para os rumos intitucionais da nação, ao elegerem a literatura e o conhecimento
das leis científicas como instituições empreendedoras da regeneração nacional, esses
espaços letrados tomaram em suas práticas discursivas posturas distintas daqueles setores
que acabaram por estruturar o modelo de Estado e de Nação da República no Brasil. Na
verdade, esses sujeitos fizeram uso do instrumental letrado como mecanismo a legitimar
uma linguagem, um campo de experimentação desejante comprometido com a ordem
burguesa, ao qual viesse favorecer uma relação de poder em que o saber viria agir como
instrumento político na vida moderna.
À “Ordem e Progresso” que representa o poder dos tradicionais chefes
políticos, senhores de terras, barões do café, conselheiros, enfim, dos beneficiados com o
“federalismo centralizado”, as respectivas legendas da Academia Cearense (“Forti niili
difficile”296), Centro Literário (“Só a Arte Imortaliza”) e Padaria Espiritual (“Amor e
Trabalho”), opuseram-se ou aproximaram-se, com seus avanços e retrocessos, da política
das oligarquias. Quando em 1898 deixou de existir a Padaria e em 1904 viu-se também o
fim do Centro, percebe-se que, passo a passo, formada a opinião nos sujeitos sobre a
adoção da República como regime vigente e legítimo, encerrou-se as atividades das
máquinas discursivas das respectivas sociedades literárias e gerações de intelectuais no
Ceará, ressonante desde 1873. A leitura do sujeito inovador que foi elaborada por estes
espaços letrados ao longo das transformações sociais, políticas e institucionais naquele
período, foi satisfatória aos desejos daqueles sujeitos sociais quando deu-se o avanço da
ordem capitalista naquela realidade, que se afirmou com a legitimação dos grupos
296
“Ao Forte nada é difícil”.
179
* * *
297
No Brasil a ilustração legitimou a autoridade do projeto republicano à serviço das elites. Como a maioria
da população era iletrada, coube aos filhos e apadrinhados pela elite senhorial conservar a força e a autoridade
do Estado diante do desenvolvimento e da transformação da sociedade, da nação. “É a empresa a que se
propõe com a Política Republicana, „apadrinhando-se com a autoridade‟ de nomes ilustres, como Comte e
Littré, Spencer e Stuart Mill, Guizot e Lastarria, H. Passy e Naquet, Tocqueville e Bluntschli, Laboulaye e Pi
y Margal, Teófilo Braga e Tavares Bastos, Melo Morais e o Visconde do Uruguai, Zacarias e o Marquês de
S. Vicente, Luís F. da Veiga e Xavier Pinheiro, Abreu e Lima e Américo Brasiliense (...). Antecipando-se a
idéias que, no século XX, seriam retomadas por Oliveira Viana, ele (Alberto Salles) assinala, para começar,
„o contraste admirável que se observa entre a tendência evolutiva das sociedades e o espírito de conservação
do Estado: a evolução social não acompanha o Estado, e nem obedece àquela. São duas forças em constante
antagonismo‟”. MARTINS. História da Inteligência Brasileira. Op. Cit. P. 138.
180
CAPÍTULO
III
Pão d’Espírito, Fornadas Políticas e Leituras Sociais
“Devemos mais uma vez
Fazer um protesto forte:
- Votar a todo o burguês
O nosso ódio de morte!”
(Sátiro Alegrette, na Ocasião do primeiro aniversário da Padaria Espiritual, maio de
1893).
298
“A medida da força (a vontade) total é determinada, não é nada de „infinito‟ (no sentido teológico);
guardemo-nos de tais desvios do conceito! Consequentemente, o número das situações, alterações,
combinações e desenvolvimentos dessa força é, decerto, descomunalmente grande e praticamente
„imensurável‟, mas, em todo caso, também determinado e não infinito. O tempo, sim, em que o todo exerce
sua força, é infinito, isto é, a força é eternamente igual e eternamente ativa: - até este instante já transcorreu
uma infinidade, isto é, é necessário que todos os desenvolvimentos possíveis já tenham estado ai.
Consequentemente, o desenvolvimento deste instante tem de ser uma repetição, e também o que gerou e o que
nasce dele, e assim por diante, para a frente e para trás! Tudo esteve ai inúmeras vezes, na medida em que a
situação global de todas as forças sempre retorna. Se alguma vez, sem levar isso em conta, algo igual esteve
ai, é inteiramente indemonstrável. Parece que a situação global (do poder) forma as propriedades (as
linguagens) de modo novo, até nas mínimas coisas, de modo que as duas situações globais diferentes não
podem ter nada de igual (... ... ...) Outrora se pensava que a atividade infinita no tempo requer uma força
infinita, que nenhum consumo (tempo teológico). Agora pensa-se a força constantemente igual, e ela não
precisa mais tornar-se infinitamente grande (pois o poder está diluído no cotidiano, onde são comportados
181
infinitos desejos). Ela é eternamente ativa, mas não pode mais criar infinitos casos, tem de se repetir... (grifos
do autor)”. “O Eterno Retorno” IN: NIETZSCHE, Friederich. V. II. Os Pensadores. – São Paulo: Nova
Cultural; 1991 (5ª ed.). P. 167.
182
300
Raimundo Girão fez a seguinte nota sobre o extinto quiosque: “Foi o Java o primeiro (café) a funcionar,
ocupando o ângulo nordeste da Praça, a olhar para o prédio da Intendência e para o do Quartel da Guarda
Cívica. O seu dono era o Manuel Coco, quiça, àqueles tempos o tipo mais singular de Fortaleza, alvo de
imensa popularidade (...) Gorguducho, rosto bexigoso e imberbe, gostava de trajar-se bem, mas sem nunca
usar gravata, exibindo a lapela, espalhafatosamente, um indefectível girassol, ou uma rosa palmeirão”.
Geografia Estética de Fortaleza. Op. Cit. P. 127.
301
Ao contrário de outros periódicos como o “Fraternidade”, financiado pelos maçons, em que escreveram os
membros da Academia Francesa, ou de “A Quinzena”, do Clube Literário, em que fizeram parte
personalidades da campanha abolicionista de Fortaleza, desde os seus primeiros números “O Pão” passou
tanto por dificuldades financeiras quanto problemas em relação ao convívio de seus integrantes, refletindo
diretamente sobre a sua edição e periodização. Entre os anos de 1893 e 1894, por exemplo, o periódico não
circulou, se não por carência de maiores recursos para a sua publicação, deveu-se, em boa medida, pelo
desligamento de fundadores como Adolfo Caminha, Temístocles Machado e Álvaro Martins.
302
“Não devemos fugir o corpo á responsabilidade deste luminoso qualificativo. Precisamos proceder de tal
forma que por ahi se pense que vivemos dentro da lettra do axioma positivista, vivendo absolutamente ás
184
Padaria Espiritual empenhou-se por apresentar ao público sua leitura da realidade social
brasileira a partir do campo de experimentação onde estavam inseridos seus sócios. Os fluxos,
matérias desejantes e intensidades experimentadas ao longo das trajetórias de vida dos seus
membros, seja oriundos dos sertões cearenses ou dos subúrbios da capital, interferiram na
confecção das narrativas literárias e discursivas de “O Pão” que se posicionavam
politicamente no campo das idéias da época. Diferentemente do que fora protestado pelas
agremiações literárias da velha Mocidade, no que se refere ao combate às estruturas de
“atraso”, em alusão às convenções modernas, a Padaria satirizou os valores da nova ordem por
estes não corresponderem às expectativas da vontade maior, coletiva e popular, dos sujeitos
remanescentes dos indígenas, caboclos, retirantes, negros emancipados e pobres.
O deboche aos valores e hábitos dos grupos de ascensão sócio-econômica
em Fortaleza, que se esforçavam para incorporar os ditames da hegemonia burguesa, foi
presente em todas as publicação de “O Pão”. Sobretudo na primeira fase, quando a Padaria
alimentou mais intensamente total ojeriza aos seus principais inimigos 303, como pode ser
vislumbrado na coluna “Celebridades Contemporâneas”, os cavalos de corrida do Prado,
espaço de entretenimento das elites da capital304, tomaram destaque em paródia ao que seria
na época uma coluna social. Esta pilhéria do personalismo, um traço da cultura brasileira,
pode também ser entendida como uma decodificação ao poder personalista (bem
característico de uma esfera axiológica tradicional) que procurava se adequar ao avanço da
ordem capitalista naquele espaço.
claras. E não há como a Imprensa para levar a luz a todos os reconditos. Cada jornal fará o effeito, si me
permittem a phrase, de um holophote moral a jorrar myriades de raios sobre a alma da população. Será um
deslumbramento com todas as suas consequencias. Si parecermos povo de vista curta, surgirá logo a
explicação – é do excesso de luz, excesso que nos obrigará tambem a andar de feições contrahidas sem que
aliás sofframos de callos ou achemos a vida menos suave. A consciencia publica terá a claridade crua do
pino do dia, e todas as acções se patentearão como uma nitidez inilludivel. Pela parte que nos toca, cá
estamos de archote em punho para as luminarias. Podem dizer os maldizentes que O Pão não é tal um
archote, mas uma pobre vela de carnauba: não importa, cumprimos o nosso dever concorrendo para que isto
fulgure, flammeje, arda, fulja e resplenda e nós nos revolvamos nesse diluvio de luz como as salamandras
luciphagas. E quando um dia o povo cearense desfillar ante o olhar do historiador, este terá a impressão de
quem contempla uma resplendente marche aux flambeaux. Haja luz, portanto, e... chova arroz!”. JUREMA,
Moacyr. (Antônio Salles). “Os Quinze Dias” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 20. – Fortaleza: 15/ 06/ 1895. P. 01.
303
“Art. 26 - São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros: o Clero, os alfaiates e a polícia.
Nenhum Padeiro deve perder ocasião para patentear o seu desagrado a essa gente”. APUD MOTA. A
Padaria Espiritual. Op. Cit. P. 44.
304
“Pessoas da alta sociedade participam das corridas, quais árbitros de partida ou de chegada, como para
as disputas anunciadas para o 1º de fevereiro de 1895 pelo jornal A República, em que se viam os nomes de
Alfredo Salgado, Oswaldo Studart, Dr. Tomáz Pompeu de Souza Brasil, Carlos Studart, etc, figurando
igualmente por juízes de arquibancada o senador Antônio Pinto Nogueira Accioly, o Cel Guilherme César da
Rocha, etc.”. CAMPOS. Capítulos de História de Fortaleza. Op. Cit. P. 58 e 59.
185
305
“Celebridades Contemporaneas”. O Pão. Anno: I; Nº: 02. – Fortaleza: 30/ 10/ 1892. P. 04.
186
306
GUANABARINO, Félix (CAMINHA, Adolpho). “Sabbatina”. IN: O Pão. Anno: I; Nº: 04. – Fortaleza:
13/ 11/ 1892. P. 03.
307
Em outro artigo, o mesmo cronista, o autor de “A Normalista”, teceu o seguinte comentário em relação ao
tipo de sujeito dos grupos dominantes emergentes que se afirmavam no Brasil com o avanço da ordem
capitalista: “A Burguezia. Aqui têm os analystas da moderna escola, os dissecadores de viceras sociaes [os
naturalistas], um titulo interessante para um livro de effeito em que se fisesse a autopsia escandalosa e
implacavel d‟essa porção da sociedade que tem a coragem inaudita de nos perseguir, a nós, argonautas
intrepidos, revolucionarios do Bem, amigos da Verdade, que, trocamos desassombradamente todas as
vaidades e todas as grandesas d‟este – mundo inclusive o crachá de commendador – pela delicia
incomparavel de dizermos o que muito bem sentimos, pensamos e observamos. Porque, convençam-se os que
vêm, tudo – ceos e terras – pelo prisma falso do interesse pessoal e do preconceito, si a humanidade ainda
soffre e geme, a culpa é d‟ella, da Burguezia, esses flagello de todas as grandes virtudes, esse algóz da
esthetica e do bom gosto, cujas aspirações, em summa, resumem-se n‟este preceito ignobil: - encher bem a
pança e ganhar dinheiro”. CAMINHA, Adolpho. “Sabbatina”. IN: O Pão. – Fortaleza: 06/ 11/ 1892. P. 03.
187
“espiritual” para designar a postura daquele grupo em relação aos novos desejos produzidos
naqueles tempos308.
O sujeito da sociedade que o cronista lia naquele momento, não deveria
esforçar-se para atender a demanda dos desejos conforme exigia a velocidade daqueles
tempos. O cearense, oriundo de uma sociedade tradicional, naturalizado em um mundo
ruralista, sem preocupação imediata com a emergência de acumular e consumir, deveria
preservar-se como um sujeito popular, habituado ao aluá e às prosas jocosas com os
amigos. Não que Adolfo Caminha estivesse a discriminar a candura do povo e o
malevolência do burguês. Mas, como ele bem ilustrou em “A Normalista”, a “maledicente
sociedade” de Fortaleza tornar-se-ia mais “degradada e promíscua” com os valores que
nasciam a partir da disputa pelo mérito e a competição por melhores posições sociais
naquele “cortiço de vespas”. Assim como os seus mestres Flaubert, Balzac e Eça de
Queirós na escola literária do Naturalismo, Caminha partia do mesmo princípio de que a
sociedade caminhava para a degradação moral e física naqueles tempos do advento da
urbanidade como suporte ideológico e material da ordem burguesa309. Levando em conta a
ironia estética utilizada pelo autor, a experimentação do tédio seria o saldo do modo de vida
propiciado pela sociedade de consumo que se afirmava. É válida a lembrança que, em boa
medida, o tédio já era denunciado por alguns artistas do final do Oitocentismo, em algumas
sociedades que já experimentavam a ressaca dos tempos modernos310.
Quando a Padaria Espiritual comemorou o seu primeiro aniversário em
1893, no Café Java, na Praça do Ferreira, centro de Fortaleza, Sabino Batista, o Sátiro
Alegrete dos padeiros, compôs uma trova que denunciou alguns dos motivos pelos quais o
grupo odiava a burguesia.
Padeiros! O calendário
Do tempo marca afinal
O primeiro aniversário
Da nossa mãe esp‟ritual.
308
PONTE, Sebastião & SABOYA, Caterina Ma. O Pão e a Cidade. Cotidiano e Contexto Urbano da
Padaria Espiritual. – Fortaleza: NUDOC/ UFC; 1992.
309
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. O Realismo. V. III. – São Paulo: Cultrix; 1985. P.
P. 61 – 71 e BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Op. Cit. P. 193 e 194.
310
No prefácio ao romance À Rebours de Joris Karl Huysmans, José Paulo Paes faz o seguinte comentário em
relação ao protagonista da estória, des Esseintes, sobre o sujeito que procurava a qualquer custo fugir do
tédio: “Mas se o preço da abundância é a saciedade, o preço da saciedade é o tédio. Para fugir do tédio, des
Esseintes se vê forçado a refinar cada vez mais os seus prazeres”. PAES, José Paulo. “Huysmans ou a
Nevrose de Novo”. Prefaciando o livro Às Avessas. – São Paulo: Cia das Letras; 1987. P. 10.
188
E a Padaria, do alto
Do Forno, á rua Formosa,
Trazia em contínuo assalto
Toda essa corja raivosa.
(... ...)
O grande indiferentismo
Dos ignaros banqueiros
Nunca causou prejuízo
A nenhum de nós, padeiros.
(... ...)
311
APUD BARREIRA, Dolor. Op. Cit. P. 147 e 148.
189
Neste poema que declara o ódio mortal ao tipo burguês, o autor deixa
evidente a sua ojeriza em relação às transformações pelas quais a sociedade brasileira
atravessava com a emergência daqueles tempos. Primeiramente, reportou-se à burguesia
como àquela esfera da sociedade que cultua mais os valores materiais, do consumo, do luxo
e da ostentação material, que os valores do espírito, como as letras e as artes. Em seguida,
depreciou esta parcela fazendo alusão aos banqueiros, os agenciadores das especulações
monetárias, que naquela época deixava grande parte da população brasileira odiosa com as
políticas cambiais do encilhamento sobre os cofres da nação. Por fim, reconhece o poeta
que prejuízo algum causou a burguesia ao grupo, pois este resistia no campo da arte e da
literatura aos seus modos de captura da vontade, como a introjeção de hábitos, condutas,
valores e desejos ligados à lógica da sociedade de mercado. Pode-se afirmar que em boa
medida a Padaria Espiritual resistiu ao modo de subjetivação da cultura burguesa, assim
como autores de outros territórios sociais já experimentavam este violento processo de
captura da vontade empreendido nos tempos modernos312. O espaço físico da cidade bem
como os sujeitos que nela circulavam (o território, o corpo e as subjetividades) eram
afetados e transformados por enunciados daquela ordem emergente. Se dantes a literatura
havia servido à ordem burguesa no sentido de expandir a matéria desejante nos indivíduos
com as agitações emancipatórias, produzindo sentimentos identitários e ideários nacionais
na era romântica, assim como os autores “malditos” (Baudelaire, Huysmans, Flaubert e
Nerval) os padeiros apelaram no final do século para fazer da literatura e das artes não mais
um agenciamento do modo burguês de subjetivação, mas sim uma máquina literária que
viesse combater os anseios materiais do capitalismo. Por outro lado, estes sujeitos não
deixaram de ser positivistas quando reconheciam que a eles caberia o papel de norteadores
da sociedade, por deterem o instrumental letrado e a comunicação impressa.
Espaço de entretenimento dos citadinos que passavam a atender aos encantados
da emergência burguesa, afetados pelos seus agenciamentos de recodificação de enunciados, o
Prado não deixou de incorporar-se ao cotidiano popular, segundo a leitura dos padeiros. Como
bem pode ser visto neste poema de Álvaro Martins, autor do livro de poesias populares “Os
312
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. Gênese e Estrutura do Campo Literário. – São Paulo: Cia das
Letras; 1996. P. 79.
190
313
Álvaro Martins, um dos fundadores do Centro Literário quando desvencilhou-se dos padeiros, voltou a sua
verve poética para as imagens e os tipos do cotidiano popular cearense, como pode ser percebido nos trechos
do poema a seguir: “É um caboclo repelente,/ Mal-encarado e fouveiro,/ Olhar baixo e traiçoeiro,/ Onde a
perfídia se trai,// Os beiços arrebitados,/ Nariz chato e curiboca,/ Grosso cacho em maçaroca/ Sobre a larga
testa cai...// De gibão e guarda-peito,/ Chapéu caído pra frente,/ Brilha o cabo reluzente/ Da faca, no
cinturão!/ Tem uns modos arrogantes,/ Fala com voz arrastada,/ Trata a todos „camarada‟,/ Com ares de
proteção”. APUD MOTA, Leonardo. Op. Cit. P. 127 e 128.
314
ESTOURO, Polycarpo. (MARTINS, Álvaro). “Bolachinhas”. O Pão. Anno: I; Nº: 04. – Fortaleza: 13/ 11/
1892. P. 02.
315
A história do bode Yôyô pode ilustrar um forte traço de resistência popular em relação aos anseios
burgueses em Fortaleza entre 1915 e 1931. Trazido para a cidade por um retirante, o bode Yôyô fora vendido
para uma companhia que situava-se na antiga Praia do Peixe, atual Praia de Iracema. Passando então a
transitar pelo centro de Fortaleza, este inusitado personagem passou a conquistar o carisma e o respeito dos
cidadãos, sobretudo, pelas levantadas de saias das moçoilas que passeavam pela Praça do Ferreira. Quando
morreu em 1931, o bode foi empalhado e atualmente encontra-se em exposição no Museu Histórico do Ceará,
como sendo uma figura histórica. VER: PONTE, Sebastião Rogério. 1993. Op. Cit. P. 181.
191
emergente, relacionados com os cavalos que eram a atração principal do Prado, o regozijo da
burguesia local.
Conforme é dado a se perceber, havia em comum entre os padeiros um
sentimento popular que fazia oposição à estética da vida burguesa. Mas o que haveria de ser
o popular ou a cultura do povo segundo a leitura do grupo? De onde trouxeram essa
inquietação? Pelo que pode ser analisado em suas narrativas literárias, os padeiros
relataram em “O Pão” as suas experiências cotidianas, antes experimentadas nos sertões,
territórios de origem que não foram até então afetados pelos processos da ordem capitalista.
Quando emigraram para a cidade na expectativa de angariar prestígio público, econômico e
social, buscando novas oportunidades de sobrevivência através das letras, foram
surpreendidos pelas relações de força e de poder que favoreceram a posse dos recursos
econômicos e capitais materiais e simbólicos em benefício das oligarquias formadas pelos
segmentos sociais emergentes e tradicionais. A cidade era requisitada pelos grupos
dominantes, segmentos político-administrativos, militares, comerciantes e o alto clero, para
ser o seu território de sobrevivência. O próprio enunciado “Fortaleza”, que se reporta à
origem militar da sua história colonial, denuncia as experiências históricas e tensões sociais
que corroboraram para a configuração de sua hegemonia político-administrativa316. Para
afirmar o seu poder sobre aquele espaço, estes setores utilizaram-se das formas de violência
material e simbólica a impedir qualquer manifestação dos segmentos que resistissem ao
avanço da nova ordem. Em “A Normalista”, boa parte da sua narrativa foi reservada para a
descrição minuciosa da cartografia social desse espaço que se destinava a ser das elites
tradicionais e emergentes, bem como a exclusão social sofrida por retirantes e pobres317.
316
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Op. Cit. & CEARÀ, Universidade Federal/ Depto.
de História e NUDOC. Fortaleza: A Gestão de uma Cidade (Uma História Político-Administrativa). –
Fortaleza: Fundação Cultural de Fortaleza; 1995.
317
Os movimentos migratórios em que levas de cearenses saíram de sua terra natal em busca de melhores
oportunidades de vida na região da Amazônia ou no sudeste do país, deveram-se, em boa medida, às
restrições feitas pelos chefes políticos dos sertões e os setores emergentes de Fortaleza em relação detenção
dos recursos públicos em benefício próprio, conforme pode ser percebido neste trecho da narrativa do
romance “A Normalista”: “(...) A vida no Ceará não valia coisíssima alguma. O Pará, sim, aquilo é que é
terra de fartura e de dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com uma pouca
experiência, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais? Eram uma mina da
Califórnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão no bolso e cabeça erguida. E o Ceará? Fome
e miséria somente. Num mês morriam três mil pessoas, eram mortos a dar com o pé, morria gente até
defronte do palácio do governo, uma lástima! E acrescentou que o Ceará era boa terra para os políticos e
ricaços, que o pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas de honradez, era sempre o pobre,
maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o indivíduo mais ou menos endinheirado
192
podia contar amplamente, largamente (e abria os braços) com a simpatia geral: tinha ingresso em todos os
salões, em toda parte, até no „santuário da família‟, fosse ele, embora, um patife, um grandíssimo canalha.
Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um título de bacharel? Não fizesse cerimônia, podia entrar onde
quisesse”. CAMINHA, Adolfo. A Normalista. – São Paulo: Editora Três; 1973. P. 38.
193
318
ALEGRETE, Sátiro (BATISTA, Sabino). “Noite de Festa”. IN: O Pão. Anno: I; Nº: V. – Fortaleza: 24/
12/ 1892. P. 05.
319
MARTINS, Wilson. Op. Cit.
194
320
CAMPOS, Eduardo. Capítulos de História da Fortaleza do Século XIX. O Social e o Urbano. –
Fortaleza: EUFC; 1985.
195
324
“É nobre e sublime a acção do Partido Operario; emquanto o governo trata de sobrecarregar de
impostos a instrucção entre nós, o partido operario, composto na sua totalidade de homens sem instrucção,
de artistas rusticos, angaria donativos para uma kermesse, faz um leilão de objectos offerecidos por
particulares e em favor das aulas nocturnas que o mesmo partido fundou e sustenta há mais de um anno.O
operario, filho do povo tambem precisa de instrucções, portanto o partido operario que lança mão de todos
os meios para semear a instrucção no seio da indigencia não pode deixar de merecer o nosso apoio. Imitem
as mais sociedades que existem n‟esta capital a idéa grandiosa do partido operario que terão sempre os
nossos applausos”. “Carteira”. O Pão. Anno: I; Nº: 05. – Fortaleza: 24/ 12/ 1892. P. 08.
325
Hão de concordar os dous illustres e distinctissimos agitadores (Afonso Celso e Eduardo Prado) que o
defeito capital do regimen monarchico é o direito de heretariedade. (... ... ...) Não fosse isto, seria tolice
fazer questão de forma de governo. Que importa que o soberano se chame rei ou presidente sendo elle um
escolhido pelo povo? Gerarem os ventres reaes individuos que tenham de fatalmente governar os povos,
possuam ou não intelligencia, honestidade e bom senso – é que não é compativel com o estado da
humanidade de hoje. (...) Não senhores monarchistas, confessem que estão brincando. Voltar ao antigo
regimen é remar contra a corrente da Democracia, que, como todas as correntes sociaes, vem de longe e
para longe vae – cada vez mais larga e mais impetuosa. (... ...) E a nossa Republica. – bem mal começada,
valha a verdade – guerreada e fiscalisada, entrará nos eixos, e será obrigada enveredar pelo caminho de
onde a tem desviado a indisciplina e a falta de patriotismo dos seus proprios soldados. A França talvez não
fosse hoje a formidavel potencia que todo o mundo respeita si os fieis do Duque de Orleans não lhe
movessem a guerra surda e constante em que se empenham com uma pertinencia digna de melhor emprego.
(... ...) Mas por Deus não fechem os olhos ás conquistas das novas instituições, não queiram negar que o
povo brazileiro já não é mais a multidão passiva e inconsciente domesticada pelas sabias e manhosas mãos
do senhor D. Pedro de Alcantra. Os brazileiros são hoje um povo que briga, mas que pensa e trabalha”.
JUREMA, Moacyr. “Os Quinze Dias” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 28. – Fortaleza: 15/ 11/ 1895. P. 01.
197
326
CARONE, Edgard. A República Velha (Evolução Política). Op. Cit.
198
o Bruno Jacy, no que pode ser vislumbrado quanto às relações de força e a violência
simbólica presentes no cotidiano nacional em relação ao quadro político que afetava os
sujeitos sociais brasileiros.
I
Depois que a Realeza fez naufragio,
A mão do Estado segue falsa rôta.
O credito se extingue, augmenta o agio,
Medonha se aproxima a bancarrota.
327
JACY, Bruno. (José Carlos Júnior). “Ordem e Progresso”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 14. – Fortaleza: 15/
04/ 1895. P. 04.
199
328
SILVA, Marcos. A Caricata República. Zé Povo e o Brasil. – São Paulo: Marco Zero; 1990.
200
329
JUREMA, Moacyr (SALLES, Antônio). “Os Quinze Dias” IN: O Pão. Anno: II, Nº: 11. – Fortaleza: 01/
03/ 1892. P. 01.
330
“Debalde o collega d‟ A Verdade [órgão do Partido Católico] profiga estes divertimentos, que têm muitos
pontos de antinomia com os preceitos catholicos e cheiram soffrivelmente a enxofre. É que não basta ao
povo o espetaculo tocante das procissões; elle precisa tambem do espetaculo hilariante destas romarias
mais ou menos pagãs. Deixal-o, collega! Que tem?”. Idem.
331
Em “O Pão”, Nº 17, de 30 de maio de 1895, todo dedicado à memória do autor da coluna “Chromos”, um
breve histórico da vida de Xavier de Castro perfaz a trajetória de sua vida que, em boa medida, ilustra o tipo
social que fez parte da Padaria Espiritual: “Filho legitimo de José Xavier de Castro e Silva e D. Antonia
Josephina de Castro, nasceu nesta cidade a 30 de janeiro de 1858. A pobreza de seus paes, que já era um
embaraço nos estudos, para os quaes manifestava notavel aptidão, veio chamal-o muito cêdo, ao cuidado de
prover a subsistencia, não lhe permitindo mais que um preparo elementar, apenas sufficiente para o habilitar
201
- Tu deixa de atrevimento...
Moleque, tem fundamento...
Sae d‟ahi, negro! – charuto!
-
A noite lá fora encanta!
a uma collocação no commercio ou no funcionalismo”. “Augusto Xavier de Castro” IN: O Pão. Anno: II. P.
02.
332
“Ninguem melhor do que elle comprehendia os sentimentos de nosso povo e tambem são bem poucos os
que se apaixonam tanto pelas festas ruidosas em que o caboclo cearense faz vibrar nas cordas da viola todas
as magoas pungentes que lhe dilaceram a alma. Sua bizarra e travessa musa tinha prazer em partilhar das
alegrias do povo e muitas vezes elle escreveu versos ao som do queixoso violão, acompanhado de uma
dulcissima flauta”. BEZERRA, Ulisses (Frivolino Catavento). “Á Memoria de Xavier de Castro” IN: O Pão.
Idem P. 03.
333
A bodega é um estabelecimento comercial que mais parece um pequeno armazém, onde são vendidos
produtos como cereais, aguardente, carnes secas, doces caseiros, utensilhos de couro etc.
202
334
CASTRO, Xavier de. “A Lavadeira” e “Um Desafio”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 10. – Fortaleza: 15/ 02/
1895. P. 03.
335
CASTRO, Xavier. “Bocca de Forno” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 11. – Fortaleza: 01/ 03/ 1895. P. 01.
203
336
Boa parte da historiografia cearense que se empenhou a estudar Fortaleza no século XIX deixou-se levar
pelo campo de enunciação que os documentos de época trazem, em relação as condições da cidade como
sendo um espaço harmônico, bucólico e elegante onde as famílias viviam em puro deleite. Cabe dizer que
muito tem a ser dito sobre as tensões sociais neste território onde as elites locais primaram por privilegiá-lo
aos seus interesses de grupo. Eduardo Campos, por exemplo, em seu feliz trabalho sobre as elites
fortalezenses primou pelo detrimento da cultura popular que resistia ao avanço da estética burguesa, a belle
époque, sugerindo ao leitor que o povo recebia as manifestações da burguesia local como mero espectador,
como exemplificou na atitude do sereno: “(...) jamais as manifestações tituladas por elegantes, ou pelo menos
socialmente importantes, deixaram de atrair a atenção das classes inferiores. A tal feição é de se ver o
interesse popular, principalmente no século passado, e a começo deste, acudindo à rua como platéia não
convocada (ou menos grata), a participar de casamentos, bailes e outras ocorrências da sociedade,
comprimida nas proximidades dos eventos, procedimento de tal modo generalizado, e marcante, que
acabaria tornando muito importante a formação do sereno, (...) que quer significar a situação de uma récua
de pessoas empolgada à curiosidade de ato social, ainda que mantida à distância, mas a usufruir-lhe
indiretamente os momentos de seu aguardo realce. (...) não obstante refratário às cerimônias mundanas da
gente de melhor status econômico, o povo sempre se colocou, no Ceará, na posição de espectador
espontâneo, sem deixar de manifestar-se nessas ocasiões com espírito crítico, muita vez de mordente
irreverência. Colhe-se então ao que dito fica: apesar da hostilidade em que é tida nas camadas mais baixas
da comunidade a vida dos abandonados, integrantes de sociedade pretensamente burguesa, jamais escapam
os atos desta atenção do público”. CAMPOS. Op. Cit. P. 15 – 16.
337
Qualificativo do dialeto local para designar pilhéria e chacotas.
204
Desta feita, conforme foi dado a ser percebido, boa parte dos sócios da
Padaria teve como preocupação a preservação dos modos de vida popular em reação ao
avanço da ordem burguesa, bem como opôs-se à legitimação do Estado republicano que era
manipulado para atender à demanda social em favor dos interesses das elites regionais
dominantes. Para a maioria dos padeiros, as alteridades sociais deveriam ser mantidas a
expressarem a legítima face daquilo que se queria fazer entender por Nação. Contudo,
como bem apontou José Murilo de Carvalho ao reportar-se à definição política de povo em
Silva Jardim, para os padeiros tinha-se a mesma “visão (...) como entidade homogênea,
falando com uma só voz”339. O que diferenciava ambas leituras era que aqueles intelectuais
cearenses davam uma ênfase maior aos aspectos culturais trazidos dos sertões, suas
referências simbólicas experimentadas no território urbano de Fortaleza, como crítica aos
processos sócio-políticos daquela ordem que conigurava-se com a implantação da
República. Quanto ao Estado, preocupações pedagogicamente spencerianas levadas a
diante pelo grupo, ainda que em aspectos formais como, por exemplo, relativos à educação
da sociedade, à instrução340 e ao acesso do público à leitura, deveriam ser garantidas pelo
órgão gerenciador dos recursos públicos que, assim como nos dias hodiernos, tem as suas
338
“E a igreja a encher-se... O relógio da Sé annunciava 8, 9, 10 horas, e o casamento da Esther nada. – Isto
não pode ser, gritava o sachristão; saia meu povo, que eu quero fechar a igreja. – Que fechar igreja,
responderam as filhas do Valdevino, e o casamento da filha do Coronel Salomão?... – Qual casamento, qual
nada! respondeu o sachristão, já se realisou hoje na missa das dez horas. As filhas do Valdevino gritaram,
espumaram, fallaram, ficaram verdes, amarellas, de todas as cores e sahiram da igreja a chamar toda a
gente sem educação, canalha, povo sem brio, etc. E os serenistas não lograram em ver os noivos que... já
dormiam pacificamente”. NAVARRA, Gil (André Nava). “O Sereno” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 12. –
Fortaleza: 15/ 03/ 1895. P. 06.
339
CARVALHO. Op. Cit. P. 47.
340
Conforme prescreveu-se no artigo 33 do seu “Programma de Instalação”, “Nomear-se-ão comissões para
apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução pública e particular da Capital, relatórios
que serão publicados”, a instrução dos citadinos foi uma das preocupações que mais empenhou-se a Padaria
Espiritual: “Nosso collega que exerce as funcções de Olho da Providencia anda verificando o estado das
escolas públicas, das quaes nos occuparemos nestas columnas logo que elle termine as suas observações”.
“Escolas”. O Pão. Anno: I; Nº: 01. – Fortaleza: 10/ 07/ 1892. P. 03.
205
prioridades voltadas para atender os interesses tanto das oligarquias regionais quanto do
capital estrangeiro341.
Em boa medida, uma leitura mais ou menos definida da sociedade brasileira o
grupo já possuía; rousseauniana na definição do povo como Nação e spenceriana para
conceber um Estado que promove a evolução da sociedade. É o que pode ao menos ser
identificado sobretudo na segunda fase de “O Pão” (1895 - 1896). A saber que o processo de
instituição da nova ordem deu-se amplamente no campo das idéias, com a mobilização da
opinião pública e a produção desejos nos leitores pelos órgãos de imprensa da época, a Padaria
Espiritual não hesitou em travar luta no âmbito da imprensa literária nacional. Concomitante
às tensões existentes no cenário político-institucional brasileiro, o circuito literário nacional
encontrava-se agitado com uma série interminável de debates promovidos por escritores,
letrados e intelectuais de todas as capitais e regiões do país que procuravam levar suas leituras
sobre a atual situação política ao ambiente da Capital Federal, o palco de maior agitação342.
Sendo comum entre a maioria dos intelectuais da Capital Federal a tentativa de
tornar o Brasil uma nação homogênea, a condensar todas as diversidades regionais em um
mesmo platô343, a reação por parte de alguns literatos de outros estados não custou a se
manifestar. Assim, no próximo tópico caberá a análise das estratégias políticas e publicitárias
de Antônio Sales, o idealizador da Padaria, quando se empenhou em promover a leitura feita
pela agremiação na arena de debates intelectuais frente as demais leituras para a sociedade
brasileira.
341
Como bem prescreveu o artigo 32 do seu Programa, “A Padaria representará ao Governo do Estado
contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos
famintos de idéias”, o acesso à leitura foi uma campanha pela qual se empenhou a Padaria: “Concitamos o
cidadão Governador do Estado a dar execução á petição que lhe dirigimos a respeito do horario da
Bibliotecha Publica. Este estabelecimento abre-se ás 10 horas da manhã e fecha-se ás 3 da tarde, como
qualquer outra repartição. Quem escreve estas linhas nunca transpoz o humbral da Bibliotecha, apezar do
grande desejo e necessidade que tem de fazel-o, porque está aferrado ás suas obrigações justamente ao
tempo em que está ella aberta ao publico. Vamos cidadão Governador, seja rasoavel, faça isto: mande abrir
a Bibliotecha das 7 ás 9 da manhã e das 6 ás 9 da noute, e garantimos que ella será frequentada por muita
gente que, á falta de occupação melhor, vai jogar bilhar na Maison e dominó no Java. Faça o nosso pedido,
sim?”. “Bibliotecha Publica”. Idem. P. 04.
342
OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A Questão Nacional na Primeira República. Op. Cit. P. 77 – 94.
343
“Somos uma grande nação. E a essa vastidão territorial se aliam a identidade de língua, de costumes, de
religião, de interesses. Nenhum antagonismo separa os grupos componentes da população. Não nutrem eles
aspirações antinômicas, nem conhecem tradições hostis. Nada justifica o receio de que apareçam motivos
sérios de dissensão, de modo que o imenso todo se fragmente”.. CELSO, Afonso. Porque me ufano do meu
país. – Rio de Janeiro: Expressâo e Cultura; 1997. P. 36 – 37.
206
344
STUDART. “Catalogo dos Jornaes de Grande e Pequeno formato Publicados em Ceará”. Op. Cit.
345
SALES. Novos Retratos e Lembranças. Op. Cit. P. 33.
346
Desde muito cedo, Antônio Sales manteve certa afetividade com os espaços de sociabilidades e hábitos
dos grupos emergentes de Fortaleza, como pode ser percebido neste trecho do seu livro de memórias:
“Fundou-se, no entanto, uma biblioteca no ano acima mencionado (1876) e de forma que em 1882 ela se
instalava solenemente no magnífico prédio para ela especialmente construído (...). Foi um acontecimento
solene a inauguração do prédio, que continha estantes repletas de livros oferecidos pelos sócios. Ao centro
do edifício havia num vasto salão, várias mesas para leitura, onde as senhoras de nossa sociedade se
sentavam para ler ou para palestrar enquanto esperavam os livros que haviam pedido (...). Os associados
que serviam de bibliotecários, forneciam solicitamente os livros pedidos e era um encanto aquela reunião de
famílias congregadas pelo interesse intelectual. Menino metódico e já curioso de coisas intelectuais eu ia à
noite para o Reform Club, contentando-me em assistir ao movimento da Biblioteca, sem ousar pedir um livro
que tanto cobiçava. Mas eu não conhecia ali ninguém, os livros só se davam às famílias dos sócios” SALES,
Antônio. Novos Retratos & Lembranças. - Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC; 1995. P. 210. Neste
artigo de “O Pão”, por exemplo, pode-se visualizar o seu regozijo por ter sido convidado, juntamente com
outros padeiros, ao Ernani Club, em um momento de sua vida em que ele já usufruía de certo prestígio
público na capital: “Deliciosa a festa do Ernani Club realisada esta noute nos salões do Club Iracema.
Gentilmente convidados pela respectiva Directoria, lá estivemos, inundando-nos de olhares tepidos e
fulgurantes, ouvindo vozes cariciosas, sentindo o contacto de mãos macias como arminho, embriagando-nos
emfim dos effluvios que jorram da alma da mocidade como o aroma de um botão que desabrocha...”.
“Ernani Club”. O Pão. Anno: I; Nº: 01. – Fortaleza: 10/ 07/ 1892. Sobre os bailes promovidos pelos grupos
emergentes de Fortaleza, “freqüentados por famílias e pessoas de bom grado”, bem como a “curiosidade
popular pelas manifestações sociais”, ver: CAMPOS, Eduardo. Capítulos de História da Fortaleza do
Século XIX. O Social e o Urbano. – Fortaleza: EUFC; 1985. P. 15 – 48. Quanto aos dias de penúria em que
Sales fora caixeiro desde os quatorze anos de idade ver: MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Op. Cit. P.
158.
347
MOTA. Op. Cit. P. 159.
207
348
“Mas, auxiliar do comércio, Sales enfronhava-se na literatura e, quando perfazia os vinte anos,
compreendeu que o burocrata dispõe de mais tempo para cuidar de coisas da inteligência. Fez-se, pois,
funcionário público estadual e chegou a ser Secretário do Interior. (...) Na legislatura de 1893/ 1896, deram-
lhe uma cadeira de deputado na Assembléia”. Idem. P. 158.
349
“Na metrópole, todas as portas se abriram alvissareiramente ao Moacir Jurema, de Fortaleza, a quem as
rodas intelectuais tinham curiosidade de conhecer e ouvir. Á vez primeira que se aproximou de Afonso Celso,
este lhe pediu, com todas as minúcias, a história da Padaria, cuja originalidade e atividade deveras
impressionavam o vigoroso cronista de Oito Anos de Parlamento. Assim, pode-se dizer que, se Moacir fez a
glória da Padaria Espiritual no Ceará, esta lhe facilitou os primeiros triunfos no maior centro de cultura do
Brasil”. Idem. Ibdem. P. 159.
350
BOSI, Alfredo. História da Literatura Brasileira. Op. Cit. P. 263.
351
AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. Op. Cit.
352
Expressão latina para designar “uma mão lava a outra”.
353
“O ingresso de Antônio Salles no funcionalismo federal, como empregado do Tesouro, foi funesto para as
letras cearenses, porquanto a sua transferência para o Rio teve como resultado a morte da Padaria
Espiritual”. MOTA. Op. Cit. P. 158.
208
fincadas nas atividades letradas e de difusão cultural, Antônio Sales empenhou-se por tornar
aceitável perante o seu público a leitura que fizera da sociedade brasileira e dos processos
políticos em voga.
Conectando material desejante de outros sujeitos que tiveram semelhantes níveis
de experimentação no território social cearense, Sales viu no espaço da Padaria Espiritual e
sobretudo em “O Pão” estratégicos porta-vozes do seu grupo social letrado. A inserir-se nas
relações de poder em que os diferentes setores da sociedade brasileira procuravam a sua
representatividade com o desenrolar da nova ordem, a leitura social dos padeiros passaria a
fazer parte do debate intelectual corrente, em que os homens de letras procuravam dar uma
imagem à nova nação que nascia sob a poeira de 1889.
O período desta intensa publicidade da leitura dos padeiros deu-se sobretudo
durante a segunda fase do grupo. Naquele momento, com a admissão de antigos colabores da
revista “A Quinzena”, como Rodolfo Teófilo e Antônio Bezerra, aquela experiência de 1887
da qual Sales havia também participado, seria de certa forma retomada pelas atividades de “O
Pão”. Contudo, com a diferença de que a Padaria fez o movimento contrário ao dos sócios do
Clube Literário: antes preocupou-se em tornar cosmopolita e nacional aquela realidade local, a
preservar as características culturais da vida popular brasileira, e não a recodificar a imagem
do particular para ser cosmopolita, conforme exigia a racionalidade burguesa e dessa forma
empenhara-se a Mocidade Cearense em meados de 1880.
Naquilo que Alfredo Bosi denominou de “regionalismo como programa”354, “O
Pão” já havia em certa medida antecipado a discussão levantada pelo homem euclidiano, só
que enfatizando mais os traços culturais do sertanejo que os fatores do meio natural, a debater
com as demais leituras feitas no circuito literário brasileiro na década de 1890, sobre quais
aspectos teria o tipo que identificava a imagem da nação, o desafio de muitos intelectuais da
época. Neste tópico portanto serão analisadas as estratégias pelas quais Antônio Sales
354
O homem que Euclides de Cunha leu no início do século XX como sendo o verdadeiro tipo nacional,
descrito nos “Sertões”, já havia sido apontado, em certa medida, no que concerne ao meio natural do sertão
configurando o seu modo de vida, na ficção de alguns autores regionalistas como Simões de Lopes Neto,
Valdomiro Silveira e Hugo de Carvalho Ramos. Lamentavelmente, o crítico literário e historiador da
literatura brasileira não se testificou de que há uma década antes um periódico do Ceará já havia apontado
semelhantes aspectos, porém, enfatizando mais a cultura popular que a ação do meio natural para definir o
tipo brasileiro, em que seus autores também contribuíram longamente para a idéia de Bosi que é “(...) o fato
de terem pensado a terra e o homem do interior já era um sintoma de que nem tudo tinha virado belle époque
no Brasil de 1900”. BOSI. Op. Cit. P. 207.
209
procurou afirmar os apontamentos da leitura da Padaria frente as demais que fizeram parte do
debate intelectual da época.
A campanha publicitária de Antônio Sales pode ser percebida já na primeira fase
de “O Pão”. Após redigir e publicar em folheto o “Programma de Instalação da Padaria
Espiritual”, em 1892 passou a enviá-lo para boa parte dos intelectuais mais conhecidos na
Capital Federal e nas principais cidades do país, dentre eles Afonso Celso, Aluísio Azevedo,
Augusto de Lima, Raimundo Corrêa, Olavo Bilac, Coelho Neto e tantos outros. Como era de
praxe, ao receberem a correspondência do “inusitado amigo do Norte”, os autores que tinham
destaque na arena nacional respondiam ao Sr. Sales agradecendo a gentileza do colega de
letras. O Nº 01 de “O Pão”, por exemplo, mostra que essa prática do idealizador da Padaria já
era realizada. Ao receber a resposta de Clóvis Beviláqua, um intelectual cearense que após o
seu prestígio na Escola do Recife foi para a Capital Federal, o periódico publicou a carta de
agradecimento e os votos de admiração que o reconhecido jurista reportou ao grupo.
Clóvis Beviláqua teve a gentileza de dirigir-nos a seguinte carta:
Cidadão Moacyr Jurema
Agradeço-lhe cordialmente a remessa dos estatutos da Padaria
Espiritual e affirmo-lhe que estou prompto a concorrer para o
desenvolvimento dessa intelligente associação, cujo nascimento
annuncia as phosphorescencias de um espirito fino e causticante.
Brevemente farei a remessa das obras e folhetos que tenho
publicado.
Do P. e amigo
Clovis Bevilaqua355
O “P” era de “padeiro”, pois Antônio Sales, como de costume, havia nomeado
Clóvis Beviláqua como sócio honorário e correspondente, conforme estipulado no seu
programa356. Esta prática amigável que foi tornando-se habitual, além de ser uma forma de
estreitar os laços de afeto entre os padeiros e os intelectuais atuantes na Capital Federal, pode
também ser interpretada como a tentativa de tornar pouco a pouco aceita a leitura da
agremiação cearense junto aos interlocutores que também liam aquele período de adaptação à
nova ordem política. Surpreendente é que a prática do padeiro inseriu-se na lógica do mesmo
“espírito de facção”, caracterizado sobretudo pelos laços de amizade e afeto, que havia
355
“Por Quem São”. O Pão. Anno: I; Nº: 01. – Fortaleza: 10/ 07/ 1892. P. 02.
356
“Art. 38 - A Padaria terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se para
isso literatos de primeira água”. APUD MOTA. Op. Cit. P. 45.
210
contribuído para o surgimento das agremiações literárias cearenses. Sales tentou transferir para
seus correspondentes a mesma intensidade subjetiva já experimentada. Na realidade, era uma
tentativa de alargar a leitura daquela república das letras cearense ao centro do debate
intelectual no Brasil.
Esta nota publicada em “O Pão” Nº 09, que poderia ter deixado em segundo plano
a Semana de Arte de 1922357, proibindo “o uso de palavras estranhas à lingua vernácula”,
conforme apontou o artigo XIV do seu programa de instalação, mostra que a preocupação da
Padaria em admitir sócios correspondentes serviria como mecanismo para cobrar deles certa
coerência com a estética do grupo.
Prevenimos aos nossos consocios nos Estados que, segundo os
nossos estatutos, é vedado aos Padeiros empregar nos seus
escriptos palavras extranhas á lingua vernacula, e desde já
pedimos autorisação a todos para substituir por vocábulo
portuguez qualquer vocabulo estrangeiro que porventura
encontremos nas producções que nos mandem.
Precisamos affirmar definitivamente este ponto: a lingua
portugueza não precisa de favores de nenhuma outra358.
357
AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Op. Cit. P. 69.
358
“Lembrete”. O Pão. Anno: II; Nº: 09. – Fortaleza: 01/ 02/ 1895. P. 06.
211
359
“Affonso Celso”. O Pão. Anno: II; Nº: 08. – Fortaleza: 15/ 01/ 1895. P. 02. Em seguida, “Eis a
Dedicatória: Á Padaria Espiritual do Ceará, não tenho a fortuna de pessoalmente um só dos moços, que
compõem este gremio litterario. Dedico-lhes, entretanto, o presente estudo, em signal assim de
reconhecimento pelas muitas provas de immerecida consideração com que me têm distinguido, como de
sincero apreço que tributa aos intelligentes esforços por elles feitos em prol das lettras patrias, inspirados na
bela e fecunda divisa que adoparam Amor e Trabalho”.
360
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Op. Cit. e NEEDEL. Jeffrey D. Belle Époque Tropical. – São Paulo: Cia das
Letras; 1993.
212
361
“Por Quem São”. O Pão. Anno: I; Nº: 02. – Fortaleza: 17/ 07/ 1892. P. 03.
362
CAVALCANTE, Waldemiro. “Voltando” IN: O Pão. Anno: II; Nº 07. – Fortaleza: 01/ 01/ 1895. P. 01.
213
363
“A Nossa Recepção”. O Pão. Anno: II; Nº: 10. - Fortaleza: 15/ 02/ 1895. P. 06.
364
NEEDEL. Op. Cit.
365
“Se pensassem assim os membros do Instituto não sustentariam a influencia das manchas solares sobre as
seccas, quando no periodo de 166 annos só duas vezes coincidiram os dois phenomenos! (... ... ...) Chegou
o anno de 1880, e maus foram os prodromos de inverno em sua entrada. Os mesmos ventos leste e sudeste a
varrer o espaço! Nem um cumulo se acastellava no horisonte. Tudo fazia crer na continuação do flagello. Á
noite seccavam-se os olhos de horisonte a fora procurando ver um relampago (...) Os partidarios da
influencia das manchas do sol sobre as seccas (Barão de Capanema e o Instituto Politécnico do Rio de
Janeiro) agouravam mal do inverno, pois o numero das manchas do sol era ainda muito baixo. No
chromosphero contavam-se 416 manchas e por isso pouco poderia chover. Nessa angustiosa espectativa
estavam os habitantes do Ceará, quando no dia 14 de março os ventos reinantes mudaram de rumo, fuzilou o
relampago, ribombou o trovão e começou copioso inverno sem que as manchas do sol tivessem augmentado
de numero. Estava acabada a calamidade que durante trez annos esphacelou a familia cearense cobrindo-a
de miseria e até de opprobrio! Uma vez regada a terra abundantemente, a população deslocada voltou aos
214
lares, aos labores da vida campezina e em breve os fructos das searas davam-lhe a abastança e a
independencia do trabalho. Embora fossem as manchas do sol em numero limitado em 1880, contudo a
altura do pluviometro chegou a 1, 539 mill.(... ... ...) Em face de todos estes dados, de todas essas
observações não se pode admittir a influencia das manchas do sol sobre a quantidade d‟agua que cahe sobre
a terra nas regiões flagelladas pelo phenomeno climaterico chamado secca”. TEÓFILO, Rodolfo
(SERRANO, Marcos). “As Manchas do Sol e as Seccas III” IN: O Pão. – Anno: II; Nº: 12. – Fortaleza: 15/
03/ 1895. P. 03.
215
Esta prática bastante comum entre os homens de letras, ajudava a estreitar os laços
de amizade. E, mais que homenagens, com estes elogios Antônio Sales ajudou a ganhar para o
grêmio certa simpatia e notoriedade entre alguns autores da Capital Federal, a facilitar o
acesso da máquina literária do periódico nos círculos intelectuais, não mais isolando-se nas
questões cotidianas da realidade cearense. Houve ainda quem reprovasse tais atitudes da
Padaria, em relação aos contatos mantidos Ceará a fora, como pode ser visto no início do
tópico II. 2 deste estudo, quando o Centro Literário denunciou o “anuncio de suas brôas pelo
correio”. Contudo, conforme foi dado a se perceber, boa parte dos centristas pertenciam às
classes mais abastadas de Fortaleza – militares, membros da Mocidade, bacharéis de renome –
o que demonstra que esta república das letras tinha interesses mais locais, visando angariar
favores com a montagem da máquina republicana e a acomodação da ordem burguesa naquele
território social.
Na sessão “A Nossa Correspondência”, era publicado no periódico as respostas
enviadas à agremiação, após o contato já estabelecido através de Sales. Olavo Bilac, por
exemplo, um dos expoentes literários da Capital Federal, defensor do regime republicano e do
advento do progresso e da civilização no Brasil, recebera o convite do grupo para ser sócio
correspondente, que foi para ele deveras benquisto.
Rio de Janeiro, 15/ 12/ 1894.
366
JUREMA, Moacyr (SALLES, Antônio). “Medalhas”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 07. – Fortaleza: 01/ 01/
1895. P. 05.
216
367
“A Nossa Correspondência”. O Pão. Anno: II; Nº: 10. – Fortaleza: 15/ 02/ 1895. P. 03.
368
BATISTA, Sabino. (Sátiro Alegrette). “Imprensa Litteraria”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 14. – Fortaleza: 15/
04/ 1895. P. 06.
217
Sales. Além da imprensa do Rio interpretar seu território como o centro intelectual a conceber
a leitura fiel do Brasil, boa parte das produções literárias de época haviam incorporado a aura
da belle époque. Em boa medida isso pode ser interpretado como sendo a tentativa dos
intelectuais na Capital de aclimatar as diferenças regionais do país a uma estética que visava
inserir a nova nação no cosmopolitismo europeizante, sobretudo francês, conforme
demandava à lógica burguesa. Esse fato pode ser melhor compreendido quando se vê os
padeiros combatendo vorazmente a literatura diletante produzida na Capital Federal, sobretudo
quando alguns literatos procuravam adequar na sua produção os problemas nacionais segundo
as modas literárias de fin-de-siècle.
O ataque que Antônio Sales fez ao grupo “Estrada de S. Thiago” e à revista
“Thebaida”, liderados pelo autor simbolista Alves de Farias, por exemplo, ilustra em certa
medida a preocupação da agremiação cearense em relação a certas posturas intelectuais em
relação às questões e aos dilemas nacionais.
Nos tempos que correm, assolados de pessimismo e de crua
positividade, um livro como as “Caricias” – tão azul e tão suave –
é um mimo inapreciavel.
Lêl-o, é passar algumas horas de emoções dulcissimas, é repousar
o espirito das bruscas e enervantes sensações que nos
proporciona a leitura dos doentios productos do espirito
moderno, tão propenso a desnudar miserias, a apresentar a vida
pela sua face mais triste e desconsoladora.
Maeterlink, Rollinat, Strimdberg, Nordan, Tolstoi e tantos outros
allucinados apostaram-se para fazer da Penna uma arma de
destruição e de terror.
E o tédio e a desesperança são as notas dominantes das
producções de hoje.
Alguns abrigam-se a um mysticismo bisarro e refalsado, a
esbravejar preces emquanto baixinho cochicham imprecações,
como Verlaine, na sua vesga compuncção de quem procura crer á
viva força.
É este o espetaculo que nos offerece a intellectualidade européa,
que nós começamos a macaquear como si estivessemos nas
mesmas desgraçadas condições psychologicas e sociaes a que
chegaram povos gastos pelo attrito de tantos annos de civilisação
crescente e devoradora.
Não há duvida que a molestia do seculo começa a minar a
intellectualidade brazileira, molestia que não appareceu
219
371
JUREMA, Moacyr (SALLES, Antônio). “Bibliographia” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 13. – Fortaleza: 15/ 04/
1895. P. 05.
372
MORETTO, Fúlvia M. L. Caminhos do Decadentismo Francês. – São Paulo: EDUSP/ Perspectiva; 1989
e BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. Gênese e Estrutura do Campo Literário. – São Paulo: Cia das
Letras; 1996.
373
SALLES, Antônio. (Moacyr Jurema) “Uma Aggressão” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 18. – Fortaleza: 15/ 06/
1895. P. 02.
220
A crítica tecida certamente toma conotação estética, o que não quer dizer que não
possua uma preocupação política. Para os padeiros que se contrapuseram à vertente literária do
nefelibatismo e do decadismo, o escritor brasileiro não deveria incorporar tal indiferença com
o presente, ocupando-se de uma escrita aristocrática e mística374. Pois, inserido em um campo
de tensões onde as leituras questionavam os processos institucionais daquele período, para o
escritor o momento era de fazer ressonar a imagem de um Brasil renovado no tipo popular, e
por isso não carecia que os autores brasileiros experimentassem algo que não fizesse parte da
sua realidade cotidiana. Se a Europa sofria a ressaca daquilo que sua sociedade havia
produzido - modernidade, industrialismo, reformas urbanas, positivismo, ciência - a leitura dos
padeiros apontava que, segundo as suas experiências cotidianas, os territórios sociais
brasileiros, as regiões da comunhão nacional, teriam outras necessidades como, por exemplo,
reconhecer suas especificidades culturais a partir das manifestações do seu povo, criar
instituições que viessem atender as necessidades da sociedade, preservar os modos de vida do
homem comum. O que a Padaria acabou pregando foi que enquanto a imagem da Europa era a
moderna lógica burguesa deixando os indivíduos entediados e tristes, a imagem do Brasil
deveria ser a da alegria encontrada no povo e na sua cultura, que em boa medida havia sido
preservada nos sertões, não mais a existir na cidade o território do capitalismo e da cultura
burguesa375.
374
“Os estradeiros de S. Thiago continuam a divertir-nos com a sua má vontade a nosso respeito. No ultimo
nº da Thebaida, Pedro Celeste (santo e feliz pseudonymo conquistado sem duvida pela sua pobreza de
espirito) fala de nós – cousa admiravel, inexplicavel... Como é que essas transcendentes almas em meio de
suas meditações altamente espirituaes rebaixam-se a pensar em nós e atacar-nos, a nós, terrenissimas
pessoas, que em vez de nos encurralarmos numa Thebaida qualquer, vivemos a larga vida commum,
inspirando-nos directamente na Natureza, que cada um de nós vê através do seu temperamento, e sem os
atavios baratos e equivocos de symbolismo?!”. JUREMA, Moacyr. “Recados” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 21. –
Fortaleza: 01/ 08/ 1895. P. 05.
375
Como pode ser percebido nesta carta publicada em “O Pão” de 15/ 07/ 1895, Nº: 20, Sabino Batista
reconstrói cenas do cotidiano do campo dando à narrativa uma potência de harmonia da qual não podia ser
experimentada na cidade, território da ordem burguesa e da cultura capitalista: “Não sei porque me invadiu
hoje um desejo irresistivel de descrever a vocês a scena mais encantadora e pittoresca que os meus olhos de
mortal têm, nestes ultimos tempos, contemplado. E foi o desejo, tão forte a tentação, que só me livrei della
depois que rabisquei as linhas abaixo, que são as mais do que a reproducção da risonha festividade
campestre, que acabo de assistir em homenagem ao mais popular dos thaumaturgos – S. João Baptista. (...)
Ás 6 horas da manhã já eu estava de pé, no vasto salão de centro, abrangendo n‟um olhar investigador a
multidão que chegava n‟uma exhibição de trajes simples, sem requintes de moda, de uma singeleza
esquipatica. Grupos de homens se formavam pelo patéo, á sombra protectora dos cajueiros seculares, a
conversar, ora rindo, ora gesticulando, fazendo commentarios sobre os episodios da vespera passada ao lado
da fogueira, embalados por um suggestivo baião de gemedora viola. A casa ostentava um ar festivo de
lapinha enfeitada. Arcadas de palha verde emolduravam as portas e bouquete de flôres naturaes pululavam
suspensos das paredes. Em frente á capellinha pendiam alvas cortinas entrelaçadas de palmas verdes cadeias
de papel de cor. No altar ardiam velas entre os jarros de flôres muito brancas, e a Virgem da Bonança toda
221
terna, toda risonha, de mãos postas, parecia contemplar os fieis entre uma Imagem do Carmo e outra do
Sagrado Coração: Tudo alli reçumava alegria, contentamento, simpleza e doçura. (...) Fora o sol doirava o
vasto ambiente, reluzindo na pelucia velludosa da folhagem opulenta. Apenas as serras ao longe, para o
ocidente, pareciam dormir ainda entre lençoes de nevoa, numa quietude bucolica de remanso e de calma. (...
... ...) Depois terminou a missa e o povo começou a se dispersar por toda a casa, accumulando-se na
varanda, dividindo-se em pequenos grupos pelo terreiro. O Marcos Serrano [Rodolfo Teófilo] – dono da
casa e promotor da festa – chamava a minha attenção agora para certas scenas mais pittorescas
representadas, ao ar livre por conhecidos que se encontram e se cumprimentam amigavelmente. E havia em
tudo uma alegria limpida e franca, desprendida da alma d‟aquelle povo rustico e expansivo (... ... ...)”.
ALEGRETE, Sátiro. “No Campo” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 20. – Fortaleza: 20/ 07/ 1895. P. 04.
376
“Da pequenina palhoça ao lado do leito da Estrada, quando o trem de ferro passava, altaneiro como uma
aguia que fosse rastejando a superficie da terra, uma creança de oito annos, si tanto, olhava o monstro
sumir-se sibilando pela encosta da serra, além, até perdel-o de vista. Então quedava-se silenciosa e triste, e
logo a expansão do seu pesar e odio de coração infantil se traduzia nas duas lagrimas que lhe corriam pela
face rosada e pequenina, que ella enxugava com a manga da camisa muito alva, sagitada de leve pelo vento...
Era um ódio mortal, incomprehensivel n‟um coração tão pequeno ainda, esse que aquella creança
consagrava ao trem de ferro, que passava defronte da humilde palhoça de sua mãe. (...) Dous annos antes
aquelles logares eram quasi desertos. Apenas se ouviam ali os tiros das pedreiras e o malhar das picaretas
dos trabalhadores da linha. Agora quem passasse no trem por aquellas paragens, olhando pelas portinholas,
veria um mundo de casas de palha, rodopiando como phantasmas de um lado e d‟outro da Estrada. Uma
d‟essas casas pertencia pertencia á mãi d‟aquella creança de oito annos e de um irmãosinho menor, filhos do
feitor Anselmo, sepultado não se sabe bem em que logar a 25 de março de quasi dous annos atraz. (... ...
...) Uma manhã, o feitor que ia sempre adeante, não teve tempo de desviar-se, quando o cachimbo mais mais
alta da ribanceira á direita ameaçou cahir, e o montão de terra pegou-o em cheio e a tres homens mais que
ficava ao pé d‟elle. Estes, porém, a custo resurgiram mutilados d‟aquelles escombros e predispunham-se de
novo para o trabalho, sem consciencia de que alguem tivesse sido victima n‟aquella catastrophe. Quando
começaram a remover todo aquelle montão de terra para o aterro que ficava perto, no descambar do alto,
restos desaggregados de corpo humano e a terra humida de sangue, trouxeram aos trabalhadores mais que
um pressentimento – a prova da morte de um companheiro. E estavam ali só onze, faltando o feitor que d‟esta
vez não teria ido, com certeza, como de costume, tomar café na sua palhoça defronte. Era sim, um morto sem
sepultura, tendo por descanso eterno toda aquella extensão de terra ensanguentada, por onde passava agora
orgulhosa a machina de ferro. Do morto alguns ossos apenas foram enterrados no matto, a poucos mettros
da Estrada, debaixo de uma latada encimados por uma cruz, como uma illusão para a pobre viuva, que ia ali
222
resar, as vezes, ao toque d‟Ave Maria... E eis porque aquella creança de oito annos de idade chorava quando
via passar o trem e soluçava quando a machina de ferro enfrentava a sua humilde palhoça, passando altiva
pelo terreno, que era na verdade a sepultura de seu pobre pae....” SABOYA, Eduardo. (TUBIBA, Brás). “O
Trem de Ferro” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 12. – Fortaleza: 15/ 03/ 1895. P. 04.
377
JUREMA, Moacyr (Ant. Salles). “Carta” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 18. – Fortaleza: 15/ 06/ 1895. P. 04.
223
leitura sobre uma dada realidade brasileira, como forma de conectar material desejante nas
leituras do órgão, a refletir boa parte do campo de experimentação predominantes nos
territórios sociais do país.
Em uma outra carta publicada no periódico, o padeiro Ivan d‟Azoff, o Waldemiro
Cavalcante, professou ressentida oposição à potência estética da ordem burguesa, a belle
époque, que naquele tempo configurava em seu campo de enunciação o uso de artefatos e
modos de vida ligados à idéia de luxo, ostentação e requinte, produzindo desejos condizentes à
noção de mundo civilizado.
Cavalheirosamente recebidos á porta do solar sertanejo, apeámo-
nos e tivemos ensejo de palestrar algum tempo com os donos
d‟aqulla feliz mansão, onde o requinte da civilisação ainda não
foi pertubar o sossego378.
378
CAVALCANTE, Waldemiro. “Da Cidade ao Sertão(Carta á Padaria)” IN: O Pão. Anno: II; Nº: 19. –
Fortaleza: 01/ 07/ 1895. P. 02.
224
do homem do campo e dos valores do espírito no langor de suas narrativas, definhados com o
avanço da ordem burguesa e seu modo de subjetivação no espaço social cearense.
Como é bem percebido no texto acima, nem todos os sujeitos que participaram
das campanhas em prol das mudanças políticas e institucionais durante as décadas de 1870
e 1880 regozijaram-se com o desabrochar do regime republicano no Brasil. Antes de ser um
panfleto anti-republicano, monarquista, o que de fato não foi, o texto Júlio César evoca a
experimentação de um sentimento rancoroso, magoado e profundamente triste em relação
aos ideais que outrora mobilizaram a sua geração. Sobretudo, a Mocidade Cearense, que
empreendeu campanhas e agitações intelectuais e políticas nas décadas de 1870, 1880,
1890, segundo suas leituras sociais, em prol da emancipação do indivíduo, do seu
aperfeiçoamento moral, a lançar a sociedade brasileira nos rumos do progresso conforme os
379
FONSECA FILHO, Júlio César da. “O Ceará e a Proclamação da República”. IN: Revista Trimestral do
Instituto Histórico. Anno: XXXVIII; T. XXXVIII. – Fortaleza: Typographia Minerva; 1924. P. 343 e 344.
226
380
Quando exerceu o seu mandato de deputado federal, João Lopes, antigo redator-chefe do jornal
abolicionista “Libertador” e fundador do Clube Literário, manifestou-se quanto a não emissão imediata de
recursos garantidos pelo Art. 5 da Constituição Federal, que garantia o envio de verbas aos cofres dos estados
do norte sacrificados com o flagelo da seca. Como nunca foi novidade, as oligarquias do Nordeste sempre
foram beneficiadas com os recursos federais para combater os períodos de estiagem, o que de fato jamais
houve, pois o que se conhece é a famosa “indústria da seca”. Bom, em discurso que fora publicado no jornal
pertencente à sua facção político-partidária, “A República”, do grupo Pompeu-Accioly, o deputado deixou
evidente que, segundo queria o chefe Nogueira Accioly, após esgotar todos os recursos dos cofres do Estado
do Ceará a solicitação de verbas haveria de ser feita, de qualquer forma. Na realidade, tratava-se de uma
estratégia política, tipicamente de um “raposa velha”, em que transmuda-se a imagem de um estelionatário
corrupto, agenciador dos benefícios públicos em favor da construção de recursos técnicos nas propriedades
dos seus correligionários, a um líder democrata e consciente que não quer explorar os cofres federais em
nome do benefício nacional. Como será percebido, cabia a imprensa, ao seu órgão partidário fazer a sua
imagem de um líder sério, ou melhor, manipular enunciados, em favor da legitimação do poder de seu grupo
através da opinião pública. “(... ...) O illustre presidente do Ceará [Nogueira Accioly], desde o começo do
corrente anno, declarou que tinha apprehenções de estarmos a braços, quando não com uma verdadeira
secca, pelo menos com um anno de colheitas insignificantes, com um anno de penuria, e começou a tomar
cautellas que lhe careceram mais convenientes para assegurar a sorte da população, prescindindo, porém, de
recorrer ao governo federal, pára lhe pedir auxilio. Agora mesmo, com o congresso estadoal aberto, foi
apresentado um projecto, que realisa a idéa dominante no meu Estado – a de construcção de açudes. E, em
quanto trata da adopção desta e outras medidas, prescinde de appellar para outros recursos, tanto mais
quanto S. Ex. pretende, acompanhando o desejo de todos os brasileiros, fazer com que o Ceará atravesse esta
calamitosa quadra, sem agravar mais ainda os compromettidos cofres da União, que estão a exigir do
Congresso o mais meticuloso cuidado. (... ...) O governo applicaria essa somma com extrema parcimonia,
teria o maximo cuidado em não esgotal-a, e então, quando isso se desse, quando os cofres do Estado já não
tivessem forças para occorrer aos soccorros, então sim, viria o pressuroso solicitar os meios extremos que a
Constituição assegura. (... ... ...) Si amanhã tivermos a infelicidade de reconhecer, pelo desenrolar dos
acontecimentos, que é chegado o momento terrivel de appellar para a Nação, não duvidem os nobres
deputados, havemos de cumprir o nosso dever. E então, sr. Presidente, eu, que falo á Camara neste momento
a linguagem da maxima franqueza, virei pedir com insistencia que attendam as necessidades daquelle povo
sofredor e abnegado que, com tamanha altivez, resiste ás hostilidades do meio physico (...)”. “Congresso
227
Contudo, tendo uma postura política e intelectual bem mais desiludida que o
próprio autor da carta acima transcrita, sobretudo em relação à esfera local, outros homens
de letras abandonaram a terra natal já sensibilizados com os rumores nauseabundos da nova
ordem política. Dentre eles, podem ser citados o próprio Justiniano de Serpa381 que, logo no
início da legitimação do golpe bem como da montagem da máquina acciolina, exilou-se no
Pará, e Adolfo Caminha, exilado na então Capital Federal, que em “O Pão” já professava
todo o seu desafeto diante da política local, como bem pode ser percebido no Nº 02, de 17/
07/ 1892. Este último, que não fazia parte da Mocidade, mas dos Novos do Ceará,
conforme já observado, chegou aos extremos da ojeriza, chegando a comprar briga com
seus comparsas letrados, sobretudo, os membros da Padaria Espiritual e em especial
Antônio Sales.
Toda essa experimentação pessimista em relação à República, fora propiciada
com a atmosfera de desilusão por boa parte desses homens de letras não verem
consolidados seus ideais outrora professos; seja das campanhas em prol da apreensão do
conhecimento positivo na sociedade, das lutas emancipatórias pela democracia na
campanha abolicionista, por ansiarem uma economia brasileira direcionada para o
industrialismo, ou ainda por formar um público leitor que deveras absorvesse o sentimento
nacional e a leitura social que professaram em seus periódicos e associações literárias. Na
verdade, o desencanto foi com o ideal desvanecido da conhecida geração de 1870, em que
todos esses intelectuais durante a transição política, de uma forma ou de outra,
empenharam-se por formarem um novo Estado e uma nova Nação segundo o que
apreenderam com as suas leituras fincadas no pensamento eurocêntrico.
É bem verdade que, pertencentes em sua maioria ao grupo da velha elite
ruralista e senhorial, estes sujeitos letrados contribuíram muito para estender os domínios
tradicionais da sociedade brasileira que se sacrificava por acompanhar o desenvolvimento
do mundo burguês e do capitalismo industrial no Ocidente. Contudo, pelo fato de
acreditarem nas utopias comtianas quanto ao domínio do conhecimento científico (em
longa medida o mecanismo de poder dessa elite letrada), na conjuntura em que atravessava
Nacional, Camara dos Deputados – Discurso pronunciado na sessão de 25 de outubro de 1898”. IN: A
República. Anno: VII; Nº: 255. – Fortaleza: 08/ 11/ 1898. P. 01.
381
SALES, Antônio. Novos Retratos & Lembranças. – Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC; 1995. P.
63.
228
382
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Op. Cit. P. 25 – 77.
229
poder, somente por deleite próprio, e mesmo assim adentrou na carreira literária? O que
escreveram, e para quem?
A estes homens de letras que se abrigaram nas catacumbas de seus sonhos e
rumaram em busca do Lost Paradise de uma realização imaterial, restaram-lhes o sabor
fugidio da graça inconcebível, do desejo castrado, do éden perdido. Em lamento profundo,
voltaram-se para os seus desejos escondidos por entre os recônditos mais remotos das suas
cartografias subjetivas, onde puderam experimentar não a sorte no campo das relações
materiais, mas, a plenitude de um gozo perene no campo artístico. Ou seja, a evocação de
um espaço atemporal como subterfúgio de algo que pode ser realizado, ganhar brilho e ter a
potência da vida sem ser capturado pelos interesses e forças que atuam nas relações
humanas, de forma material, simbólica e discursiva.
O objetivo deste derradeiro tópico é mostrar essa postura política e
intelectual, bem como a leitura peculiar sobre as experimentações cotidianas dos chamados
“nephelibatas”, os poetas decadistas e simbolistas da Padaria Espiritual, sobretudo, Lopes
Filho, Lívio Barreto e Cabral de Alencar, no sentido de que eles utilizaram-se da Literatura,
como campo de expansão subjetiva, para produzir linhas de fuga e de
383
desterritorialização , a não se deixarem ser capturados, em suas narrativas, pelos
agenciamentos maquínicos e modos de subjetivação do poder, com o avanço da ordem
capitalista naquela realidade. Por ser uma “Literatura Menor”, aquela que produz
modificação na língua por um coeficiente de desterritorialização e por suas ações no
conteúdo narrativo estarem diretamente ligadas ao campo político, bem como por ser
aquela produção literária que procura preencher condições de um enunciado coletivo384, a
ação rizomática da produção literária dos respectivos padeiros comportou intensidades das
experiências cotidianas, linhas de fuga e de desterritorialização que sofreram a ação das
relações de forças e dos agenciamentos do poder; porém, não se deixando capturar, através
da produção de uma narrativa que evadia às condições de submissão da vontade individual,
da experimentação subjetiva.
383
A considerar que toda produção de enunciados, bem como de conteúdos semânticos, dá-se em uma relação
de poder, Deleuze e Guattari expõem como seria a atuação de uma “linha de fuga, de desterritorialização” em
uma narrativa literária: “(...) não importa onde, ainda que no mesmo lugar, intensamente; não se trata de
„liberdade‟ em oposição a submissão, mas apenas uma linha de fuga, ou melhor, de uma simples „saída‟, à
direita, à esquerda, onde quer que seja, a menos significante possível (...)”. DELEUZE, Gilles &
GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma Literatura Menor. – Rio de Janeiro: Imago Editora; 1977. P. 12.
384
Op. Cit. P. 25 – 42.
230
385
“O Decadentismo (...) não é uma escola mas um „espírito de revolta‟ em que cada autor cria a sua língua
e seu estilo. Ele é de fato uma atmosfera comum de desconfiança dentro da interrogação do que será este
mundo que a ciência tanto promete. Ultrapassando a „arte em sua extrema maturidade‟ de que nos fala
Gautier, o Decadentismo torna-se uma nova época primitiva quando, tendo o artista renegado seus valores
atuais, ele está à procura de uma nova forma (...)”. MORETTO, Fulvia M. L. Caminhos do Decadentismo
Francês. – São Paulo: EDUSP/ Perspectiva; 1989. P. 31. “O simbolismo, em geral, se funda numa concepção
espiritualista, idealista. Tem mais pendor pela religião que pela ciência. Não se entusiasma com a técnica e o
progresso. Confia mais na intuição que na discursividade, cultivando o pensamento analógico. Em última
análise, busca o infinito qualquer que seja seu aspecto”. TRINGALI, Dante. Escolas Literárias. - São
Paulo: Musa Editora; 1994. P. 157.
386
WEBER, Eugen. França Fin-de-Siècle. – São Paulo: Cia. Das Letras; 1988.
387
Nefelibata é originário de “Néphilis”, a deusa etrusca dos que vivem divagando na esfera do sonho, da
fantasia e da alucinação. Sobre as polêmicas surgidas com decadistas e simbolistas do cenário literário
nacional, é conhecida a desavença entre a Padaria Espiritual e a Revista “Thebaida”, comparsa da revista
também de autores simbolistas “Os Romeiros da Estrada de San-Thiago”, do grupo de Alves de Farias, que
circulavam na Capital Federal e atacaram autores cearenses como Antônio Sales, Rodrigues de Carvalho e até
o simbolista Lopes Filho, da Padaria. Segue aqui alguns trechos da polêmica: “A „Padaria Espiritual‟ e o
„Centro [Literário] do mesmo nome são fábricas de roscas colossais, manejadas no grande forno do espírito
Cearense pela pá do Sr. Antônio Salles, um padeiro de avental e cafurinha branca na cabeça, muito suado
pelo calor do seu talento, enquanto o Sr. Lopes Filho agarra-se ao badalo colossal dos „Phantos‟ e dobra-o e
redobra-o pavorosamente, de tal modo que o som se espalha pelo Norte até a extrema latitude setentrional do
Brasil e desce Sul abaixo até as fronteiras com o Rio da Prata, como se fosse um Quasímodo das Letras,
disforme, anguloso, corcunda, endemasiado, cheio da „grimace‟ fantástica do „Som‟. Não bastava isto.
Aparece agora o Sr. Rodrigues de Carvalho, autor do „Coração‟. Achamos que o Sr. Carvalho devia ser
231
nomeado o sacristão do „Centro Literário‟ do mesmo modo que o Sr. Lopes é o da „Padaria‟ por que em
versos de sino, não há nenhum, como os desse „Coração‟ malfadado. (... ...) A Arte é a Arte! E nunca essa
filial do Ceará no grande meio, a „Semana‟, farmacêutica da prosa e agente dos produtos das duas fábricas
cearenses; não é tão pouco, atualmente, o parnasianismo lírico e desbocado dos cantadores de serenta, a
clorose anímica de meia dúzia de indivíduos sonhadores e beócios que invadem e estragam como filoxeras, a
vinha sagrada do Senhor! É preciso reação e como tal, a „Thebaida‟, aceitando todo o produto de talento e
de nervos, terá sempre a sua recusa e a sua janela gótica fechada para esses bárbaros da atualidade,
trazidos de um vento perverso, assolando as planícies nevadas da Arte, semeando má das suas celebrações e
aguerrindo o Norte contra o Sul pela palavra de desbocados padeiros do Ceará”. Pedro, o Eremita.
“Bárbaros”. IN: Tebaida. Anno: I; Nº: 07. – Rio de Janeiro: maio de 1895. APUD. CAROLLO, Cassiana
Lacerda. Decadismo e Simbolismo no Brasil. Crítica & Poética. – Rio de Janeiro/ Brasília: Livros Técnicos e
Científicos/ INL; 1980. P. 392 e 393. A resposta da Padaria é a seguinte: “Li a pouco tempo em uma revista
de psychiatria que n‟um hospital de doidos na Inglaterra acabava de ser montada uma officina typographica,
onde era impresso por doidos um jornal redigido por doidos. (...) Ultimamente pensei tel-o conseguido
quando me veio ás mãos o 1º numero da „Thebaida‟. Era engano. A „Thebaida‟ não é precisamente o mesmo
periodico referido na revista psychiatrica: é porém do mesmissimo genero, e por um bem se pode fazer idéa
do que seja outra. A differença entre elles é que os redactores de um estão recolhidos ao hospicio, os do
outro andam soltos. Exceptuadas duas ou tres composições em que na „Thebaida‟ há senso commum, o mais
é tudo cousa de nephelibatas, symbolistas, „estradeiros‟ de San-tiago, etc. (...) „Barbaros‟ é o titulo de um...
artigo (?) no qual uma pobre alma que dá pelo tolos nome de „Pedro, o eremita‟, com uma logorrhéa de
phrases desconnexas, caracteristicas de cerebração atrophiada, arrumou meia duzia de desaforos á Padaria
Espiritual, ao Centro Litterario e ao Ceará. Insultos à Padaria fazem-nos sorrir. Quando ella se installou (...)
foi fazendo escandalo e alvorotando os pacificos burguezes, e desde essa dacta muita descompostura tem
levado dos „nullos‟ (...). E por isso é mister significar a esse „Pedro, o eremita‟, seja elle mentecapto ou
simplesmente tolo, que, para se pegar com a gente do Ceará vantajosamente, são precisos muitos requisitos
que lhe faltam”. CARLOS JÚNIOR, José Carlos (Bruno Jacy). “Com a „Thebaida‟”. IN: O Pão. Anno: II; Nº:
20. – Fortaleza: 20/ 07/ 1895. P. 01- 02.
388
FILHO, Lopes (“Anatólio Gerval”). “Musa Nephelibata”. IN: O Pão. Anno: I; Nº 03. - Fortaleza: 06/ 11/
1892. P. 06.
232
389
AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. – Fortaleza: Casa de José de
Alencar/ UFC; 1996. P. 161.
233
tensões cotidianas, encontrando na evasão a forma de não ver o ideal de sua geração
sentenciado em meio aos interesses maiores de quem dava as cartas definitivas no jogo
político.
Na narrativa poética de Lopes Filho, o “Anatólio Gerval” da Padaria, a
confecção de uma linha de fuga chega inclusive a construir uma outra relação com o
tempo. Uma espécie de saudosismo quimérico encontra na Arte a plenitude de um desejo
castrado, impossibilitado pelas atualizações das relações de força e agenciamentos de
poder colocados no cotidiano. Esta estratégia narrativa cria a possibilidade da existência de
um campo de experimentação onde os modos de subjetivação do poder institucional não
poderia capturá-lo, de forma que nesta linha de fuga seja dada a atualização de um desejo
em uma temporalidade experimentada só por aquele que a potencializou, podendo ser
entendida como um devir que escapa à lógica do tempo burguês.
O Passado! Eis o Campo-Santo aonde
Nosso espirito vae, de vez em quando.
Beijar a cinza fria em que se esconde
A illusão que nos vae abandonando:
390
FILHO, Lopes. “O Passado”. IN: O Pão. Anno: II; Nº 22. – Fortaleza: 15/ 08/ 1892. P. 05.
234
391
Em aulas lecionadas durante o semestre 99. 1 no Núcleo de Subjetividade do Programa de Psicologia
Clínica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a Profª. Drª. Suely Rolnik, ao trabalhar com a obra
da escultora e pintora Lígia Clark, aproveitou a ocasião em que se mencionou a obra de Deleuze e Guattari na
compreensão da criação literária, e reportou-se ao desdobramento de um novo devir na obra de Lígia, o devir-
mulher, no sentido da artista ter criado um refúgio subjetivo em sua obra, ou um “abrigo poético”, na
experimentação de um desejo num recôndito da subjetividade que escapasse às práticas de controle do corpo
feminino.
235
392
CAMINHA, Adolpho (Félix Guanabarino). “Sabbatina”. O Pão. Anno: I; Nº: 02. - Fortaleza: 17/ 07/ 1892.
P. 02 e 03.
393
NOGUEIRA, João. Fortaleza Velha. – Fortaleza: Edições UFC; 1980 (2ª ed.) P. 15 – 26 e PONTE,
Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. P.
394
“A Avenida Caio Prado é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que felizmente nos
regem, e, por isso, ficará sobre patrocínio da Padaria”. “Programa de Instalação da Padaria Espiritual”.
APUD MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Op. Cit. P. 45.
395
“O „Estado‟ está fazendo um esforço extraordinario para dizer graçólas e se mostrar despreoccupado
com o que a polícia vae apurando: teve ante-hontem um romponte de riso turbido, ao tratar das felicitações
que tem recebido o honrado sr. Dr. Nogueira Accioly, por ter escapado á sanha e ao phrenesi assassino dos
seus directores”. “Por Carambola”. IN: A República. Anno: VII; Nº: 253. – Fortaleza: 05/ 11/ 1898. P. 01.
236
Na trova “A Lucta pela Vida”, de Lopes Filho, pode-se identificar este campo de tensões
experimentado no cotidiano político cearense, através de um potencial estético darwinista e,
sobretudo, schopenhaueriano396.
Estupida lei da Vida,
Cruel destino fatal:
Onde sangra uma ferida,
Alegra-se um animal!
396
“Este moralista, este budista ocidental, inimigo de qualquer dialética, também não foi logo conhecido na
Alemanha. Discípulo de Platão e de Kant, Schopenhauer toma como realidade suprema, como Absoluto, a
Vontade, impulso cego, força inconsciente, instinto de vida. Esta vontade é o mal, é o desejo que nunca será
saciado. A única saída será então o não-desejo e sobretudo a libertação através da Arte. Solução que não
podia deixar de atrair os jovens idealistas de 1880. É impossível negar a influência de Schopenhauer na
estética „fin-de-siècle‟. Ela é o substrato de um pessimismo total e absoluto, baseado no mal que é a vontade
de viver, mas que traz também a resolução do impasse no estado estético, na contemplação desinteressada da
arte, prazer puro, liberto das paixões, o único capaz de trazer felicidade”. MORETTO. Op. Cit. P. 19. Ver
também SCHOPENHAUER, Artur. O Mundo como Vontade e Representação/ Crítica da Filosofia
Kantiana (Coleção “Os Pensadores”). – São Paulo: Editora Nova Cultural; 1991 e Dores do Mundo. – Rio
de Janeiro: Ediouro; 1990 (Coleção Clássicos de Bolso).
397
FILHO, Lopes. “A lucta pela vida”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 11. – Fortaleza: 01/ 03/ 1895. P. 05.
398
AZEVEDO. Op. Cit. P. 166.
237
modo geral bem negou diante dos processos institucionalizantes, também tiveram a sua
parcela de contribuição no universo de leituras.
Diante dos rumores que a nova ordem política, econômica e institucional
alardeava no espaço social cearense daquele período, o desencanto causado por ver
desvanecendo os valores e as posturas que outrora mobilizaram campanhas em prol da
emancipação do indivíduo, em nome dos novos tempos, tornou-se presente nos textos
decadistas de época. A moral que, conforme foi visto no início deste estudo, relacionada
naquele tempo com o compromisso do indivíduo em dar-se ao conhecimento das leis e aos
valores da nova ordem emergente a colaborar com o progresso material e espiritual da
sociedade rumo à civilização, caiu por terra diante do que foi experimentado com a
extensão dos domínios tradicionais na sociedade brasileira. Mais uma vez é Lopes Filho
quem dá testemunho desse universo desiludido.
Conheci certo mendigo,
Um pregador de Moral
Que era maior inimigo
De tudo o que nos faz mal...
399
FILHO, Lopes. “Trovas”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 14. – Fortaleza: 15/ 04/ 1895. P. 03.
238
400
THEOPHILO, Rodolpho. “Misanthropia”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 09. – Fortaleza: 01/ 02/ 1895. P. 04.
239
Este precioso soneto de Lívio Barreto, por exemplo, poderia passar aos
olhos da crítica literária, que se baseia no método científico, como uma canção de tristeza
401
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: A Teoria do Romance. Op. Cit.
402
BARRETO, Lívio. “Mal Intimo”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 23. – Fortaleza: 01/ 09/ 1895. P. 03.
240
por estar o autor em um lugar ermo, longe da mulher amada; o que na verdade pode ser,
mas não resume-se apenas nisso. Pois, como é dado à análise historiográfica, possível de
topografar a experiência de vida do autor, as suas relações com o meio (a sua participação
em uma congregata literária, por exemplo) os seus desejos como sujeito dotado de vontade
individual e coletiva, muitos aspectos da sua narrativa podem ser resgatados e entrarem em
atividade potencial, produzindo sentidos para a sua vida. Ora, bem poderia ser o seu ideal
de mulher amada, ou cousa que o valha, a busca por um subterfúgio nos recônditos da sua
subjetividade, onde nem as instituições burguesas, nem o autoritarismo ideológico e
simbólico republicano, e nem mesmo a coerção física da máquina acciolina poderiam
capturá-lo. Um lugar onde o seu desejo poderia atingir a sua plenitude, livre de qualquer
ação do poder.
Para Lívio Barreto o encontro com a dor era forma de experimentar a
mortificação mais intensa dos acontecimentos cotidianos. A sua estética potencial fazia o
enredo de sua narrativa semelhante ao sacrifício cristão, do mártir que após o suplício
encontraria a realização do gozo. Por outro lado, contagiado pela estética filosófica
schopenhareana, na poética de Lívio a dolência da vida, a experimentação da dor,
encontrava na mortificação do corpo a plenitude do desejo em um nirvana espiritual, um
éden artístico, o seu abrigo poético.
Cerro os olhos de noite emquanto o somno
Não chega, e deixo-me ficar sonhando,
Nesse abstracto e languido abandono
De quem com o coração vae conversando.
403
BARRETO, Lívio. “Através do Sonho”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 24. – Fortaleza: 15/ 09/ 1895. P. 05.
241
404
MONTENEGRO, Braga. “Centenários – 1970: Lívio Barreto”. IN: Revista da Academia Cearense de
Letras. Anno: LXXV; Nº: 35. – Fortaleza; 1971. P. 149 – 152.
405
DELEUZE, Gilles. Crítica & Clínica. – São Paulo: Editora 34; 1997. P. 11 – 16.
242
Mártir da Dor!... era isso que o poeta sentia. A sua geração, os seus ideais
mortos, exaustos pelas transformações e agenciamentos que favoreceram a morte dos seus
408
BARRETO, Lívio. “Doente”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 15. – Fortaleza: 01/ 05/ 1895. P. 04.
244
desejos. A penumbra que o ronda e não o deixa destinguir a razão das cousas, senão a
imagem que o inquieta e o faz ver velhas que anunciam e aceleram o fim próximo. Uma
luz que gélida pranteia, os sonhos, ideais, abrigados na sua cartografia subjetiva, seu
campo desejante, inquieta e turbulenta. Enfim, o presságio do fim de um devaneio coletivo,
que o poeta já experimentava no seio dos seus comparsas, procurou estabelecer aquilo que
Baudelaire definiu como sendo Correspondances409, as transformações humanas na
clarividência das coisas ainda não ditas, ou o território da desconstrução da linguagem, das
intensidades subjetivas experimentadas, o “corpo sem órgãos” que sofre “as operações da
tropologia que anima e volatiza a matéria”410. Porém, como bem observou Sânzio de
Azevedo, não pode ser considerado o autor de “Fleurs du Mal” influência direta de Lívio
Barreto, bem como de Lopes Filho. Estes, estariam sendo influenciado diretamente pelo
autor do “Só”, ainda que não fosse impossível o fluxo da leitura baudelaireana
atravessando o autor lusitano. Ao contrário do caso de Cabral de Alencar, que pertenceu à
segunda fase da Padaria, Lívio e Lopes Filho compuseram o “simbolismo singular”,
anterior à obra de Cruz e Souza, surgido no Ceará, de influência diretamente lusitana411.
Sumir, esvair-se sob forma de éter, desprender-se como um sonho
crepuscular, libertar-se das amarras da existência, do campo de tensões da vida cotidiana
marcada por sangrentas lutas políticas promovidas pelas facções partidárias, ou não ser
capturado pelos modos de subjetivação da sociedade burguesa que já operava no sentido de
disciplinar o corpo para o trabalho e controlar a mente para a sanidade social. Este tipo de
estratégia estética, que é produzir devires, impulsos e intensidades de vida, caracteriza a
literatura menor, seja ela decadista, nefelibata, simbolista, maldita, finissecular, de
409
No período marcado pelo avanço do Capitalismo em que a técnica (com o advento da imprensa em massa
e da fotografia em movimento, o cinema) primando na recodificação dos conteúdos lingüísticos, Baudelaire
manifestou-se em sua poética clarividente no sentido de mostrar que há nas relações humanas multiplicidades,
e não discursos acabados como bem apelaram as produzidas pelo homem ao longo da sua trajetória histórica.
“La Nature est un temple où de vivants piliers/ Laissent parfois sortir de confuses paroles;/ L‟‟homme y
passe à travers des forêts de symboles/ Qui l‟observent avec des regards familiers.// Comme de longs échos
qui de loins se confondent/ Dans une ténébreuse et pronfonde unité,/ Vaste comme la nuit et comme la clarté,/
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.// Il est des parfums frais comme des chairs d‟enfants,/
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,/ - Et d‟autres, corrompus, riches et triomphants,// Ayant
l‟expansion des choses infinies,/ Comme l‟ambre, le musc, le benjoin et l‟encens,/ Qui chantent les transports
de l‟esprit et des sens”. “Correspondances”. Les Fleurs du Mal. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1995 (6ª
ed.). P. 114.
410
RAMA, Angel. A Cidade das Letras. Op. Cit. P. 50.
411
AZEVEDO, Sânzio. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. – Fortaleza: Casa de José de
Alencar/ UFC; 1996 (2ª ed.).
245
412
Como é dado a se perceber, a sensibilidade aguçada foi um tema muito explorado pelos autores do fim de
século que viveram intensamente o spleen causado pela velocidade violenta com que os símbolos e
enunciados passaram a circular nos centros urbanos, com o advento da cidade moderna: “Baudelaire
admirara o caráter nervoso da escrita de Edgar Allan Poe e a intensidade nervosa da música de Wagnar. Os
admiradores de Baudelaire veneravam na sua obra „a magnífica queixa nervosa que afetaria todas as almas
sensíveis depois dele‟; procuravam, como ele, „exasperar suas aflições‟. Félician Rops, o grande
aquafortista, garantia trabalhar com seus nervos. Os poemas de Maurice Rollinat, Les Névroses, datam de
1883. Para Zola, a obra dos irmãos Goncourt era “uma espécie de imensa neurose”, e Taine „ajusta-se bem
em nossa sociedade de nervos‟. Edmond Goncourt considerava Degas um neurótico. Art Modern, de
Huysmans (1883) descrevia Berthe Morisot uma colorista nervosa, Guillemet como um „pacote de nervos sob
controle‟ e Gauguin como „uma pele embaixo da qual nervos vibram‟, enquanto Mary Cassatt oferece „um
redemoinho de nervos femininos transpondo para seus quadros‟”. WEBER. Op. Cit. P. 22 – 23.
246
413
ALENCAR, Cabral de. “A Nevrose de Claudio (Notas Psychologicas)”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 07. –
Fortaleza: 01/ 01/ 1895. P. 03.
247
414
ALENCAR, Cabral de. “Mystica”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 11. – Fortaleza: 01/ 03/ 1895. P. 04.
415
SÂNZIO. Op. Cit. P. 212.
416
PONTE. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. P. 91 a 97.
248
417
ALENCAR, Cabral de. “A Rival”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 09. – Fortaleza: 01/ 02/ 1895. P. 04.
418
PRAZ, Mário. A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica. – Campinas: Editora da
UNICAMP; 1996. P. 179 – 264.
249
419
ALENCAR, Cabral de. “A Lucia”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 14. – Fortaleza: 15/ 04/ 1895. P. 03.
420
OEHLER. O Velho Mundo desce aos Infernos: Auto-análise da Modernidade após o trauma de Paris
em junho de 1848. – São Paulo: Cia das Letras; 1999, WEBER. Op. Cit e SHORSKE, Carl. Viêna Fin-de-
Siècle. Política & Cultura. – São Paulo: Cia das Letras; 1988.
421
“Hoje, porem, que o enthusiasmo pelas conquistas do liberalismo e da sciencia vão se arrefecendo
consideravelmente ante o espetaculo das miserias humanas que se perpetuam e se multiplicam a despeito de
todas essas conquistas, o sopro de pessimismo tem invadido todas as litteraturas e ao passo que vão
desapparecendo os vates das gerações passadas, vão se lhe substituindo na predilecção do publico aquelles
250
Argumentu Finale:
Uma discussão aproximada do presente seria a melhor maneira de finalizar
este estudo.
Como outrora, a sociedade brasileira continua experimentando nos seus
cotidianos as velhas formas de dominação política do passado, cada vez mais atreladas aos
interesses dos grupos maiores que ditam as velocidades e as emergências da ordem
capitalista. Boa parte dos sujeitos deste território social não conseguem identificar-se com
as instituições que foram produzidas pelas forças intempestivas da História, as tramas de
desejos humanos silentes à maioria. Restou uma sociedade cada vez mais distante e
alienada das suas sombrias origens. O Estado brasileiro, suas máquinas político-
administrativas e aparelhos jurídicos, não tem como finalidade atender os desejos dos seus
“cidadãos”. A Nação só é definida como algo provido de identidade quando os aparelhos de
imprensa e órgãos publicitários, comprometidos com os interesses mercadológicos, a
reclamam e evocam seus sentimentos. De fato, neste país as coisas estão fora do lugar, nada
parece ser o que de fato é, ou definitivamente somos o que não fomos e éramos o que não
sabiamos.
Esta análise histórica sobre o território social cearense daqueles anos de
transição política, período que não foi aleatoriamente escolhido, insere-se em um campo de
angústias e inquietações que se assomam na atual vida cotidiana da maioria dos brasileiros.
Composto por sujeitos que foram e são desprovidos de educação e informação ao longo da
sua história, o povo foi ausente de todo o “patrimônio cultural” que as “elites cultas”
elaboraram para representar as suas identidades, experiências, memórias e modos de vida.
Como em boa parte do Brasil, todo patrimônio simbólico e material dos cearenses foi na
verdade definido pelos mesmos grupos que manipularam os instrumentos de violência
física (a polícia, o Exército, as milícias), bem como os mecanismos de manipulação
simbólica (a imprensa, a cultura letrada, as “belas artes”). Tudo mais que fora produzido
pelas diferentes experiências sociais e subjetivas foi enterrado pelas vontades de uma
verdade que se impôs como dominante... virou pó e sombra...
A realidade senhorial de outrora, o mesmo poder que dantes aliou os desejos
dos chefes políticos locais (poderosos fazendeiros, coronéis dos sertões) aos das elites
que mais se coadunam com as tendencias da epocha”. IN: O Pão. Anno: II; Nº: 07. – Fortaleza: 01/ 01/ 1895.
P. 03.
251
urbanas (comerciantes, publicitários, burocratas) faz do atual Estado do Ceará uma versão
renovada do imobilismo político e social daqueles tempos. Pelo menos é o que se reflete em
um “governo de mudanças” que se mantém hegemonicamente há mais de quinze anos no
poder, sem expressivos adversários políticos, com uma popularidade de quase cem por
cento, já que quase 35 % do orçamento público é empregado em sua publicidade. Na
cidade, um novo segmento de poder patenteado por ele (empresários locais e cartéis ligados
ao capital internacional) faz a sua campanha dentro e fora do Ceará, onde as máquinas
administrativas retribuem com favoritismos político-financeiros e benefícios fiscais. Por
outro lado, os seus representantes nos municípios dos sertões (prefeitos, vereadores,
deputados, delegados e secretários) reafirmam a tese de que as mesmas formas de exercício
de poder dos grupos oligárquicos e famílias tradicionais do passado (sobretudo o
clientelismo) permanecem vivas e acesas, uma vez que os desvios de verbas públicas (ver
caso FUNDEF), práticas ligadas ao crime organizado (pistolagem, extorsão, tráfico de
drogas repercutidos nas CPIs) e apropriação dos usos jurídicos da nação (propinas dos
funcionários da Receita Federal) compõem a real dinâmica dessas instituições
personificadas, manipuladas por desejos particulares e facciosos.
Se por um lado há uma discrepância entre as vontades sociais e o Estado, por
outro há uma intensa campanha que trabalha a identidade local e o campo desejante dos
sujeitos deste território. Por exemplo, se dantes as secas, as luzes e a abolição foram
intensidades manipuladas que ajudaram a criar o mito da “Terra da Luz”, hoje este mito se
renova com uma outra intensidade: belas praias, aeroportos futuristas, atividades turísticas,
a verticalização da “nova metrópole” (que tenta apagar o “centro velho”, antigo espaço das
elites locais) – o mesmo discurso moderno que sempre trouxe a última novidade. São novas
“luzes” que procuram ofuscar a memória histórica de uma cidade que passou a ter sua
hegemonia política graças à expressiva força dos comerciantes locais, favorecidos pela base
senhorial dos sertões, como se viu nos primórdios da República. O enunciado “Fortaleza”
revela na verdade autoritarismo, oligarquia e a capital do estado brasileiro de maior
concentração de renda no país, a esquecer os verdadeiros sujeitos sociais vítimas da
abolição, da indústria da seca e ainda do massacre colonizador, onde nos aglomerados
suburbanos concentraram-se seus descendentes, as áreas de maior índice de crime e
violência patrocinados por facções da Polícia Militar.
252
forma orgânica com os desejos de uma cultura capitalista, não há identidade alguma do
povo com as instituições que foram criadas pelos grupos dominantes, como foi durante a
implantação da República. Por mais que se queira negar, a história mostra: o Brasil é um
país popular.
Pelo que foi analisado a partir do que se viu naqueles tempos no Ceará,
cultura e política estavam cada vez mais interligadas. Antes, com os intelectuais a fazerem
uso dos instrumentos de manipulação dos bens simbólicos (literatura, imprensa, ciências
humanas) para legitimarem uma ordem política dominante. Hoje, com os grupos políticos
emergentes ligados aos cartéis financeiros do capital internacional, a fazerem uso das novas
máquinas de dominação simbólica (o cinema, o rádio, a televisão, os sistemas de
comunicação, a mass-media). Por mais que os clichês neo-liberais (“aldeia global”, “livre-
mercado”, “mundo sem fronteiras”) tentem despolitizar a ação dos grupos sociais
constituídos de diferenças e individualidades, ocultando os conflitos sociais das relações
cotidianas, tem que se suspeitar quando manifestam-se bardos de uma prosperidade irreal,
otimismo religioso filosófico e progesso técnico-científico como sendo campos de
experimentações salvacionistas de uma “nova era”.
Diante dessas inquietações históricas, conclui-se que paralelo aos processos
políticos que visavam a emancipação do indivíduo, as inovações técnicas do Ocidente
possibilitaram o desenvolvimento de um exercício de poder que se sofisticou ao longo da
história – o poder simbólico, virtual, dos signos que despertam desejos nos sujeitos sociais.
Porém, como bem apontou Michel Foucault, os homens sofisticaram as formas de
dominação com a aprimoração das relações de poder a nível das linguagens cotidianas.
Autores deste século, como Kafka, George Orwell, Lewis Carrol, dentre outros, também
denunciaram a sofisticação do controle da vontade e da produção dos desejos humanos, que
tiveram como modus concipere as instituições coletivas do mundo moderno como os
nacionalismos, a burocracia e a jurisprudência. No século XX complexificaram-se cada vez
mais os domínios do Estado e do mercado no controle do corpo e da mente dos sujeitos/
indivíduos (a exemplo dos panópticos, shopping centers e fast-foods). O capitalismo é
agora virtual e micrométrico.
Assim, o presente estudo propôs-se a colaborar com a discussão que se
estabelece na historiografia cearense e brasileira sobre cultura e política, linguagens e
255
Ao longo da sua história, que necessidade teria o homem de elaborar e fazer uso das mais
sofisticadas formas de poder para afirmar a sua existência?
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256
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Cearense. Órgão do Partido Liberal (1877 - 1889): órgão fundado em 1846 pelo antigo Partido
Liberal do Ceará, liderado pela oligarquia Paula Pessoa e Rodrigues (Biblioteca Pública do Ceará
Menezes Pimentel/ BPCMP, M. 29).
Pedro II. Órgão do Partido Conservador (1880 - 1889): jornal do antigo Partido Conservador da
província cearense, liderado pelo chefe oligárquico Dr. Gonçalo Batista Vieira, o Barão de Aquiráz.
Até a posse do Segundo Imperador o órgão chamava-se “Dezesseis de Dezembro” (BPCMP,
M.167).
A Constituição (1886 - 1889): órgão do “partido conservador adiantado”, da da facção dissidente
liderada pelo rico comerciante Joaquim da Cunha Freire, o Barão de Ibiapaba (BPCMP, M. 95).
O Retirante. Órgam das Victimas da Secca (1877): jornal que se dizia contra a administração do
presidente da província cearense o Cons. João José Ferreira de Aguiar (BPCMP, M. 36).
Gazeta do Norte. Órgám Liberal (1877 - 1889): órgão da facção oligárquica Pompeu Accioly,
dissedente do antigo Partido Liberal da província cearense que era liderado pela família Paula
Rodrigues (BPCMP).
Libertador. Órgão da Sociedade Cearense Libertadora (1881 - 1889): jornal abolicionista de quem
fizeram parte João Lopes, Antônio Bezerra, Justiniano de Serpa, Antônio Martins, João Cordeiro,
dentre outros (Edição Fac-Símile).
O Norte (1891): órgão fundado por Justiniano de Serpa e outros dissidentes do Centro Republicano
Cearense (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/ Setor de Obras Raras - BNRJ/ SOBR).
A República - Órgão da Sociedade Anonyma Ceará-Libertador (1892 - 1900): órgão de propagação
do regime republicano no Ceará, surgido com a fusão dos jornais “Estado do Ceará” e “Libertador”.
257
* Documentos Oficiais:
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- Relatório do Presidente de Província do Ceará, Dr. Enéas de Araújo Torreão, ao passar a
administração local ao Dr. Caio da Silva Prado em 21 de abril de 1888 (Arquivo Público do Ceará).
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- __________________________. Para a História do Jornalismo Cearense (1890 - 1924).
- Fortaleza: Typographia do Instituto do Ceará; 1925.
* Dicionários:
- STUDART, Guilherme (Barão de). Diccionario Bio-Bibliographico Cearense. -
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263
ANEXOS:
265
Imagem 03– Foto da Av. Caio Prado, por onde desfilavam as elites urbanas de Fortaleza
que freqüentavam o Passeio Público em 1880 (Acervo Nirez).
268
Imagem 04 – Café Java, o antigo quiosque onde foi fundada a Padaria Espiritual em 30 de
maio de 1892, na Praça do Ferreira (foto reproduzida do livro “Fortaleza de Ontem e
Hoje”).
269
Imagem 06 – Foto de parte dos integrantes da Padaria Espiritual na Segunda fase. Antônio
Sales, juntamente com Rodolfo Teófilo, estão em posição central (Acervo Nirez).
271
Imagem 07 – Foto dos integrantes do Centro Literário, rival da Padaria Espiritual. Percebe-
se que dentre eles há um que traja uniforme militar, típico daquels anos de República
(Acervo Nirez).
272