Texto 2 - Tese de Doutorado - Cristina Simões Bezerra

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GLOBALIZAÇÃO E CULTURA

CAMINHOS E DESCAMINHOS PARA O NACIONAL-


POPULAR NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
1

CRISTINA SIMÕES BEZERRA

GLOBALIZAÇÃO E CULTURA
Caminhos e descaminhos para o nacional-popular na era da globalização

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de doutor em Serviço Social.

Orientador: Professor Carlos Nelson Coutinho

Rio de Janeiro
2006
2

Resumo

BEZERRA, Cristina Simões. Globalização e Cultura: caminhos e descaminhos para o


nacional-popular na era da globalização. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Serviço
Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2006.

O presente trabalho discute os desafios colocados para a categoria nacional-popular,


elaborada pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci, na sociedade capitalista
contemporânea, de onde se destaca o contexto de mundialização do capital e de reatualização
do imperialismo. Tem por objetivo, portanto, problematizar e criticar a anunciada
“globalização da cultura”, tanto em sua abordagem hegemônica, que anuncia o surgimento de
uma ”cultura global”, capaz de substituir ou, pelo menos, reorientar culturas locais e
nacionais, quanto uma abordagem supostamente “alternativa”, que destaca o momento
contemporâneo como aquele em que se fez possível um “encontro de diferentes culturas”,
surgidas a partir de um cenário de desenvolvimento político e tecnológico que nos coloca em
contato com a diversidade característica desta esfera cultural. Assim, esta tese propõe uma
retomada da categoria gramsciana de nacional-popular como uma possibilidade de crítica e de
superação destas perspectivas anteriores, entendendo que o nacional e o internacional
continuam se constituindo numa relação dialética de afirmação e negação de seus próprios
princípios. Conclui, então, que é necessária a retomada da concepção ampla de cultura em
Gramsci para entender e sustentar a necessidade contemporânea de um novo projeto
societário alternativo e contra-hegemônico ao sistema do capital em sua conformação do
início do século XXI.

Palavras-chave: globalização da cultura, mundialização do capital, nacional-popular,


pensamento social gramsciano.
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Abstract

BEZERRA, Cristina Simões. Globalização e Cultura: caminhos e descaminhos para o


nacional-popular na era da globalização. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Serviço
Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2006.

The present work discusses the challenges placed for the category of national-popular,
elaborated by the Italian Marxist thinker Antonio Gramsci, in the contemporary capitalist
society, from where we can stand out the context of "mundialization" of the capital and
renovation of the imperialism. It has the objective, therefore, to problematize and to criticize
the announced "culture's globalization ", in your hegemonic approach, that announces the
appearance of a " global " culture, capable to substitute or, at least, to position local and
national cultures, and at an approach seemingly " alternative ", that highlights the
contemporary moment as that which was done possible a " encounter of different cultures ",
appeared of a scenery of political and technological development that places us in contact
with the characteristic diversity of this cultural sphere. So that, this thesis proposes a retaking
of the category of national-popular as a critic possibility to these previous perspectives,
understanding that the national and the international continue if constituting in a dialetic
relationship of statement and denial of your own proposes. It ends, then, that is necessary the
retaking of the wide conception of culture in Gramsci to understand and to feed the
contemporary need of a new one alternative project to the system of the capital in the
beginning of the XXI century.

Keywords: culture, globalization, "mundialization" of the capital, national-popular, Antonio


Gramsci's social thought
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Sumário

Introdução................................................................................................................ 11

1 Cultura e Sociedade: aproximações teórico-


conceituais.............................................................................................................. 20

1.1 A contribuição da tradição marxista para o debate acerca da cultura.......... 20


1.2 Cultura e nacional-popular em Gramsci............................................................ 37

2 A dinâmica societária na era da mundialização do capital: desafios e


imposições........................................................................................ 130

2.1 “Não há alternativas”: hegemonia, imperialismo e a ideologia de uma economia


integrada e irrecusável............................................................................ 136
2.2 Os custos sociais da globalização e as novas formas de organização da sociedade
civil............................................................................................................ 169
2.3 Soberania nacional e mundialização do capital: afinal, onde está o poder?. 194

3 Globalização da cultura? Ou cultura da globalização? Os desafios


contemporâneos para a categoria nacional-popular............. 211

3.1 A abordagem hegemônica da cultura na globalização: a homogeneização de


padrões e referências culturais.......................................................................... 216
3.2 Uma perspectiva alternativa da globalização da cultura – o “encontro com o
diferente”................................................................................................................. 240
3.3 Nacional-popular como alternativa de crítica e de superação às perspectivas de
globalização da cultura................................................................. 261
3.3.1 A questão dos intelectuais: a insustentável distância entre o silêncio e o
engajamento............................................................................................................ 267
3.3.2 O nacional e o global: oposição ou construção dialética?............................. 273
3.3.3 A análise do “elemento popular” a partir de uma dimensão classista: o desafio
de reencontro com as “classes trabalhadoras”............................................................ 278
3.3.4 Por uma concepção ampla do termo cultura...................................................... 282
3.3.5 Cultura e sociedade civil: o espaço privilegiado para a construção de uma 285
5

perspectiva nacional-popular.......................................................................................

Considerações finais........................................................................................... 291

Referências............................................................................................................. 297
6

Para a Helena, a Marina, o Thomás, o Thiago, a


Laura, o Rodrigo, o Lucas e o Vitor, os “filhos
deste doutorado”, iluminadas crianças, “herdeiras
do chão como solo plantado, não as ruínas de um
caos...”
7

Agradecimentos

Aos meus pais, Elza e Antônio, que, por ocasião deste doutorado, praticamente me adotaram
novamente, garantindo-me tudo, absolutamente tudo, desde o pão, que eu não tive tempo de
comprar, até o carinho, que eu não tive tempo de pedir, para que eu pudesse concluir esta
tarefa. Amo vocês...

Ao meu orientador, Carlos Nelson Coutinho, com quem sempre aprendo tanto... lições de
Gramsci, lições de política, lições de afeto, lições de paciência histórica...Companheiro de
grandes expectativas e projetos de mudança numa perspectiva nacional-popular, devo a você
praticamente tudo que aprendi em minha vida intelectual... Obrigada, muito obrigada.

Aos professores que compõem esta banca examinadora, meu eterno obrigada, pela
disponibilidade e pela atenção dedicadas ao meu trabalho. Ao professor José Paulo Netto,
constante interlocutor e provocador de minha consciência crítica; à professora Myriam Lins
de Barros, pelo debate tão responsável e, ao mesmo tempo, tão carinhoso; à professora
Virgínia Fontes, “companheira militante” de uma verdadeira “vontade coletiva nacional-
popular”; à professora Lúcia Neves, encontro tardio, mas tão cheio de boas referências e
expectativas.

Ao Robson, meu companheiro, em todos os sentidos que esta palavra possa ter...

A Helena, minha filha, que mesmo sendo tão pequenina, entendeu e “perdoou” este
doutorado. “Filhota, mamãe acabou o dever de casa.”

A Beatriz, minha pequena esperança de felicidade e alegria, que está tão próxima de mim,
mesmo sem conhecê-la. Obrigada, minha florzinha, por me incentivar, da forma mais
inusitada possível, a terminar este “dever de casa”.

Aos meus sobrinhos e sobrinhas que, cada um a seu modo, não se cansaram de me mostrar
que minha vida era maior que este doutorado... Gostaria muito que este meu “passo adiante”
despertasse, em cada um deles, o gosto pelo estudo e a curiosidade intelectual...
8

A minhas colegas do “Lar de Maria”, professoras Sandra, Nair, Ana Amoroso, Ana Lívia,
Alexandra e Cláudia Mônica, porque entre o mar carioca e as montanhas mineiras, um pouco
de nossas vidas ficou por estas estradas. Nós, que nos julgávamos tão perdidas em meio a
nossas ideias e nossos ideais, nos fizemos presentes, PRESENÇA.

Às amigas Mônica Grossi e Verônica Borba, que sempre depositaram tanta confiança em mim
e em meu trabalho. Pessoas inigualáveis, com quem tenho repartido, em toda a minha vida
pessoal e profissional, tantas indignações e tantas esperanças...

Aos amigos, Cláudia Mônica e Rubinho, pelas eternas lições de carinho e de solidariedade
que tenho encontrado em vocês...

A Elisangela, a Meire e a Maria, que com tanta dedicação cuidaram de mim, do Robson, da
minha casa e da minha filha para que eu pudesse me dedicar ao doutorado.

A tantos outros amigos: Luciana, Joelcio, Fernanda, Edwiges, Claiton, Kiko, Karina, Marilda,
Marcus, Cláudia Lúcia, Gabriela, Adriana, Rui, Ana Justo, Pizetta... foram tantos “colos” que
ganhei ao longo destes cinco anos! Sem vocês, eu certamente teria desistido... Obrigada, do
fundo do meu coração!

À Faculdade de Serviço Social e à Universidade Federal de Juiz de Fora, por todo o apoio,
institucional e afetivo, para que chegássemos até este momento. Nestes espaços, temos
aprendido a apostar na emancipação humana e por ela trabalhar, em todas as suas
potencialidades.

Às professoras Leila Yacoub, Marilene Sansão e Sandra Arbex, que administraram a


Faculdade de Serviço Social nestes últimos cinco anos, e que têm, cada uma ao seu modo,
incorporado nosso inegociável projeto coletivo de emancipação humana. Obrigada pelo
exemplo!

Enfim, mas não por uma importância menor, à CAPES, pela bolsa de estudos que viabilizou
materialmente a realização deste trabalho.
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“Amada não me censure, se sou de pouco falar


Nem se esse pouco que falo não faz você suspirar
É tempo de vida feia, de se morrer ou matar
De sonho cortado ao meio, de voz sem poder gritar
De pão que pra nós não chega, de noite sem se acabar
Por isso não me censure, se sou de pouco falar

Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A lua é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
Mas criança chega a homem se a bomba quiser
A mulher só tem seu homem se a bomba quiser
Homem sonha e faz seu sonho se a bomba quiser
Não é tempo de ver lua nem tirar rosa do pé.

Amada minha não chore se nunca falo de amor


Nem se meu beijo é salgado, que é beijo chorado em dor
É tempo de vida triste, de olhar o céu com pavor
De mão pro último gesto, de olhar pra última flor
De verde que era esperança trazer desgraça na cor
Por isso amada não chore se nunca falo de amor.

Amada não vá embora se eu trouxe desilusão


Se aumento sua tristeza, tão triste a minha canção
É tempo de fazer tempo, de pegar tempo na mão
De gente vindo no tempo em passeata ou procissão
No mesmo passo de sonho pra bomba dizendo: não!
Amada não vá embora, mudou a minha canção!

Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A lua é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
Pois criança vai ser homem porque a gente quer
A mulher vai ter seu homem porque a gente quer
Homem vai fazer seu sonho porque a gente quer
Vai ser tempo de ver lua e de tirar rosa do pé”

(Mário Lago)
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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo de responder às exigências do Programa de Pós-


Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro para a conclusão do processo de doutoramento. Foi desenvolvido no interior da área
de concentração intitulada Serviço Social, Cultura e Identidade Social, sob orientação do
Professor Carlos Nelson Coutinho.
A aproximação com esta área de concentração vem acontecendo desde nossa inserção
neste Programa através do Curso de Mestrado, em 1995. Nesta oportunidade, desenvolvemos
a dissertação intitulada “Cultura e democracia no Brasil; uma análise dos anos 70”, onde
problematizamos a perspectiva nacional-popular no Brasil no período de crise do modelo de
autocracia burguesa e de redemocratização, apontando para os caminhos trilhados por esta
perspectiva no cenário capitalista que se redesenhava no país. Deste trabalho, restaram várias
questões que não puderam ser respondidas naquele momento, as quais apontavam para a
necessidade de darmos continuidade aos estudos nesta área. Uma das questões, que naquele
momento nos inquietava de forma especial, era exatamente compreender como o cenário da
mundialização do capital, que já se mostrava plenamente desenvolvido, redimensionava e
redirecionava a categoria nacional-popular. Em outras palavras, que significado tinha
“recuperar o passado nacional sob uma ótica popular” em uma sociedade que se anunciava
“globalizada”.
Um dos objetivos do trabalho que ora apresentamos foi, nesta direção, problematizar e
analisar criticamente a perspectiva de compreensão da cultura enquanto esfera constitutiva do
ser social. A partir deste debate, interessou-nos também, particularmente, conhecer e discutir
a tão anunciada “globalização da cultura”, partindo de sua compreensão como um fenômeno
aparente, passível de um conhecimento imediato, que não responde, nesta imediaticidade, à
realidade da constituição da esfera cultural no momento contemporâneo. Assim, o que
estamos ponderando é que os fenômenos que compõem esta “globalização” precisam ser
polemizados e confrontados com outras perspectivas, com o intuito de compreender as reais
determinações históricas que o constituem.
Neste sentido, a aproximação metodológica com a perspectiva marxiana e marxista
representa uma opção que não está isenta de uma intencionalidade política e ideológica.
Conforme poderemos deixar claro no primeiro capítulo do trabalho, esta tradição representa, a
11

nosso ver, a possibilidade mais coerente e politicamente capaz de compreender criticamente


os fenômenos que se apresentam neste momento e de propor alternativas de mudança. Mesmo
compartilhando com WILLIAMS (1979) da idéia de que a abordagem mais sistematizada
sobre a dimensão cultural foi tardiamente incorporada pela perspectiva marxista e ainda
carece de formulações mais precisas, entendemos que suas premissas já estão colocadas desde
Marx, e que valem os esforços de atualizá-las, problematizando as discussões mais
precisamente contemporâneas.
No interior desta herança marxiana e marxista, foi-nos necessário fazer também um
corte teórico-metodológico que, conforme poderemos apontar, não foi aleatório. A opção pela
perspectiva gramsciana de análise da cultura e da sociedade na contemporaneidade se justifica
por encontrarmos, nesta orientação, categorias e formulações que nos capacitam
qualitativamente para este debate. Em Gramsci, podemos dizer, a cultura encontra seu lugar
privilegiado na tradição marxista. Ela se constitui, aqui, não só enquanto uma esfera ampla
que reflete e que, portanto, contém as relações produtivas que a originaram, mas que também
media estas relações, dando origem a um movimento dinâmico e contraditório de superação
ou de afirmação destas relações produtivas.
A estes elementos, que teremos a oportunidade de aprofundar ao longo do trabalho, se
soma a discussão gramsciana acerca da passagem do senso comum para o bom senso.
Gramsci não só identifica a cultura como este rico elemento de enfrentamento e de
delimitação, mas também como um determinante a mais no processo de conquista da
hegemonia. Em um cenário onde o consenso se define cada vez mais como a estratégia
privilegiada de luta política, onde a rede plural e complexa da sociedade civil coloca e
recoloca as relações e dinâmicas de poder, a cultura se apresenta como uma frente de batalha
a ser visualizada pelos diferentes grupos sociais em luta. Na perspectiva da hegemonia do
projeto societário da classe trabalhadora, Gramsci não deixa de insistir na necessidade de se
“criar uma nova cultura”, base de ações vitais, de reflexão e de questionamento das relações
sociais nas quais estamos inseridos. Neste sentido, coloca a necessidade de se passar do senso
comum para o bom senso, realizando, junto aos setores populares e a partir de suas demandas
mais significativas, o processo de superação da fragmentação característica de sua base
cultural, construída sobre as relações de alienação, exploração e mercantilização próprias da
sociedade capitalista, em direção a uma capacidade crítica e reflexiva, portadora de uma
potencialidade revolucionária.
Neste sentido, Gramsci amplia ainda mais sua contribuição quando postula que esta
passagem não acontece sem uma intencionalidade. Neste sentido, coloca as bases do que ele
12

defende como uma perspectiva nacional popular, ou, em outros momentos, como uma
vontade coletiva nacional-popular. Esta, que representa a categoria-chave para a tese que
iremos defender neste trabalho, significa, acreditamos, a mais ampla concepção gramsciana
para um projeto societário alternativo ao que hoje se apresenta como dominante. Mais do que
uma nova leitura do passado nacional, sob o ponto de vista e a perspectiva dos setores
populares, mais do que uma mera concepção ou orientação artística e/ ou intelectual, Gramsci
dá ao nacional-popular enquanto projeto a potencialidade e a força da transformação, no
sentido da superação material e ideo-cultural das condições de subalternidade nas quais vivem
as classes trabalhadoras.
A questão que tentamos, portanto, responder ao longo deste trabalho não foi acerca da
validade do nacional-popular enquanto categoria histórica no cenário da “globalização”, uma
vez que tal validade nos parece inquestionável. Foi, sim, a de tentar compreender os desafios
contemporâneos que a atual organização do sistema do capital, num cenário mundializado,
coloca para a perspectiva nacional-popular e o projeto societário que ela pretende construir.
Nesta direção, foi-nos necessária uma retomada sócio-histórica sobre o que se convencionou
chamar de “globalização” e, sobretudo, de “globalização da cultura”.
A esta retomada se destina, sobretudo, o segundo capítulo desta tese. Nele, podemos
observar que, após a “euforia globalizante” dos anos 1980 e 1990, surgem importantes
elaborações teóricas que se ocupam de realizar uma análise crítica deste momento da
reorganização do capital. Baseados nas elaborações que julgamos mais responsáveis,
procuramos, portanto, compreender o discurso acerca da “globalização”, bem como sua
materialidade histórica. Partimos, desta forma, da certeza de que o momento de reorganização
do sistema do capital que estamos vivenciando desde meados da década de 1970 foi capaz de
se consolidar e de estender suas determinações históricas ao longo de toda a sociabilidade
burguesa. Neste sentido, fala-se de uma “sociedade global”, onde os aspectos econômicos,
sociais e políticos estariam passando por uma reestruturação de seus espaços políticos e,
sobretudo, deliberativos. Assim, a “globalização” se apresentaria como um “caminho sem
volta”, uma orientação hegemônica da qual não teríamos como escapar ou para a qual
construir uma alternativa.
No entanto, compartilhamos com vários autores da idéia de que este processo de
globalização é marcadamente contraditório. Em outras palavras, a globalização, como foi
alardeada nos anos 1980 e 1990, constitui uma ideologia, no sentido da “falsa consciência” de
que nos falam Marx e Engels. As supostas interação e integração entre as nações, apregoadas
pelos espaços hegemônicos do capital, representam, na verdade, um discurso capaz de
13

ideologicamente justificar um processo de dominação marcadamente capitalista, dando


sustentação às renovações necessárias e desenvolvidas para seu processo de acumulação.
Neste sentido, acreditamos na necessidade de se recuperar, nos dias de hoje, a concepção de
“nação hegemônica” em Gramsci, onde os interesses de Estados mais fortes e
hegemonicamente mais preparados prevalecem sobre outros e se apresentam como universais.
Destacamos, neste segundo capítulo, a retomada da perspectiva de análise do imperialismo, o
qual se renova e se reafirma, com particularidades que teremos a oportunidade de destacar, na
figura da tríade de concentração e centralização do capital, ou seja, Estados Unidos, União
Européia e Japão.
Este debate preliminar coloca as bases para a análise da cultura na contemporaneidade,
objeto de discussão do terceiro capítulo deste trabalho. A produção e a circulação sem
fronteiras de informações, nos moldes das sociedades mercantilizadas, trazem para o universo
cultural um novo desenho e importância na dinâmica societária. Uma indústria cultural cada
vez mais forte e centralizada, com produtos que se colocam para “além das fronteiras”, o
surgimento de questões e debates, a princípio transnacionais, a construção de “referências
culturais globalizadas” são elementos que levam muitos autores a postularem o surgimento de
algo que se assemelhe a uma “aldeia global”1, ou seja, a compartilharem da idéia de que a
cultura, enquanto realização e expressão local e nacional, já não mais se justifica, uma vez
que deu origem a uma “comunidade mundial, concretizada com as realizações e as
possibilidades de comunicação, informação e fabulação abertas pela eletrônica” (IANNI,
1998, p. 16).
A partir desta discussão, constroem-se diferentes versões de uma “globalização da
cultura”, as quais tentamos resumir em duas concepções mais amplas. Na primeira, que
acreditamos ser hegemônica, o mundo caminharia cada vez mais para um universo cultural
homogêneo, onde as pessoas, independente de sua territorialidade, estariam compartilhando
das mesmas referências globais e se compreendendo como “cidadãos do mundo”, posição esta
que se constrói vinculada à possibilidade de se afirmar como consumidor de um mercado, este
sim, cada vez mais globalizado. Por outro lado, encontramos também autores que visualizam
este momento da “globalização da cultura” como um “encontro de diferentes”, ou seja,
através do redimensionamento das noções de tempo e espaço, os homens estariam, pela

1
É de Marshall McLuhan a metáfora da “aldeia global”, ou seja, de que o mundo caminha para uma
superação dos limites nacionais e de que, na verdade, a técnica e a eletrônica constituem hoje
elementos que garantem a organização, o funcionamento e a estrutura da vida social em uma
dimensão globalizada. Cf. IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 5ª ed., Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998.
14

primeira vez, tendo a oportunidade de vivenciar diferentes culturas, conhecer modos de vida
alternativos ao modelo ocidental, deparar-se com diferentes formas de viver e pensar
colocadas no cenário mundial pelos povos antes colonizados. Segunda esta perspectiva,
através de outro “nacionalismo”, agora dos “de baixo”, o imperialismo estaria sendo
questionado e potencialmente superado.
Estas duas concepções, como teremos a oportunidade de observar, nos parecem
limitadas e não apontam para as verdadeiras determinações da sociedade capitalista
contemporânea. Em poucas palavras, poderíamos dizer que partimos da certeza de que a
cultura não é o espaço só do conformismo ou da resistência, mas que está inserida em uma
relação hegemônica onde as lutas políticas e sociais, em sua dimensão mais ampla, são
determinantes para os caminhos que as sociedades contemporâneas irão trilhar.
Discordando, a princípio, destas duas concepções, nossa expectativa é de responder a
este debate recolocando a centralidade da categoria gramsciana de “nacional-popular”, a qual,
para autores como ORTIZ2, já não tem qualquer validade histórica. Neste capítulo, portanto,
interessou-nos particularizar, no momento contemporâneo, as determinações de uma cultura
nacional-popular como uma alternativa política e cultural ao discurso dominante da
“globalização da cultura”, que se apresenta construído, de diferentes formas, naquelas duas
concepções. Entendemos que este discurso oculta a real necessidade de se pensar a dimensão
social contemporânea a partir de premissas nacionais, não as compreendendo como elemento
de limitação do pensamento crítico, mas como o ponto de partida, como primeiro impulso de
compreensão da realidade societária em que estamos inseridos.
Nesta altura, faz-se necessário observar que Gramsci, ao construir sua discussão sobre
nacional-popular, jamais postulou que se deva, nesta perspectiva, abordar o nacional como
objetivo final de compreensão e, portanto, de intervenção. É importante observarmos que
Gramsci nunca abandonou a perspectiva internacionalista que deu o norte ao movimento
comunista desde sua origem. No entanto, acredita ele, nacional e internacional compõem um
todo orgânico e contraditório, necessitando ser abordados nesta orientação dialética.
Assim, procuramos abordar, nesta retomada de uma perspectiva nacional-popular na
cultura, os dois principais elementos apontados por Gramsci em sua crítica da ausência do
nacional-popular na vida cultural italiana. Em primeiro lugar, o fato de que é preciso haver
uma compreensão crítica do nacional e do popular, ou seja, é preciso que se resgate o
nacional de uma abordagem elitista e dominante e que se aproxime dos problemas, questões e

2
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
15

expectativas dos setores populares em suas lutas cotidianas. Assim, segundo Gramsci,
nacional-popular é uma perspectiva que, construída no interior da trama complexa da
sociedade civil, apresenta uma clara opção de classe, indicando caminhos capazes de dar
organicidade aos elementos fragmentados de um “projeto popular” para as classes
trabalhadoras no cenário mundial. Acreditamos que tais elementos, embora dispersos, já
existem e congregam necessidades nacionais e internacionais (ou “globalizadas”).
Em segundo lugar, surge a necessidade de se problematizar a relação, historicamente
frágil e inoperante, entre intelectuais e setores populares no cenário da “globalização”.
Diversos autores, dos quais destacamos CHAUÍ (2006), têm chamado a atenção para o fato de
que o débil engajamento da intelectualidade constitui hoje um grave problema social nas
sociedades contemporâneas, pois contribui para que estratégias neoconservadoras, ou mesmo
meramente reformistas, tomem força no cenário atual. Esta autora afirma que, no cenário de
avanço da pós-modernidade no qual estamos inseridos, os “intelectuais estão em silêncio”.

Assim, desaparece o horizonte histórico do futuro. O presente, desprovido de


força negativa, se fecha sobre si mesmo, a ordem vigente aparece auto-
legitimada e justificada porque nada parece contradizê-la nem a ela se opor,
e os ideólogos podem comprazer-se falando do “fim da história” ou
afirmando o capitalismo como destino final da humanidade. O retraimento
do engajamento ou o silêncio dos intelectuais é, aqui, signo de uma ausência
mais profunda: a ausência de um pensamento capaz de desvendar e de
interpretar as contradições que movem o presente. Não se trata de uma
recusa a proferir um discurso público, e sim da impossibilidade de formulá-
lo. (CHAUÍ, 2006, p. 30)

Neste sentido, o nacional-popular nos parece, ao mesmo tempo, um desafio e uma


necessidade urgentes em nossa sociedade. Ao contrário de sua extinção enquanto categoria de
análise, acreditamos em sua atualidade e sua importância. Diante de um globalismo alienado e
acrítico, onde o capital nos parece, na verdade, o único sujeito livre e desprovido de regras no
interior de um cenário marcado por um “despotismo universalizado”, parece-nos que o
nacional-popular se afirma como diferente não só deste “pensamento único globaltotalitário”
(PIRES, 2001), como também de um nacional-conservador e alienante.
Assim, compartilhamos com ZILBERMAN (2000) das análises e das questões que
coloca sobre o nacional-popular.

Eis por que não mais se pede à arte que seja nacional ou nacional-popular,
pois o sistema que formulou o projeto fundador dessa exigência não tem
mais lugar. Prescreve-se até que ela desterritorialize, intertextualize,
estabeleça o diálogo intercultural para além das fronteiras geográficas. Não
16

será talvez o caso de se agregar a tais reivindicações, outra vez, a proposta


nacional, porque agora talvez seja o momento de ela representar a
discordância e a renovação, a contracorrente ou o avesso da globalização?

É com estas e outras questões que pretendemos dialogar ao longo deste trabalho.
17

1 Cultura e Sociedade: aproximações teórico-conceituais

1.1 – A contribuição da tradição marxista para o debate acerca da cultura

A complexidade e as inúmeras determinações presentes no debate acerca da cultura


demarcam o primeiro desafio ao qual pretendemos responder durante o desenvolvimento
deste trabalho. É preciso, então, compreender as linhas mais amplas de abordagem sobre o
universo cultural, destacando os principais autores e suas mais diversas concepções de
análise.
No entanto, encontramos limites que nos obrigam a realizar um corte teórico-
conceitual. O termo cultura está presente em um cenário bastante amplo de discussão,
perpassando várias áreas de conhecimento e ganhando, em cada uma delas, novas e
importantes determinações que não se constroem de forma isolada e/ ou fragmentada. Faz-se
necessário justificar que nos detivemos no debate acerca da noção de cultura no interior das
Ciências Sociais e, mais precisamente, da tradição marxista. Neste universo, cultura é um
termo que tem a potencialidade de pensar o homem enquanto unidade materializada na
condição de ser social, unidade esta que, contraditoriamente, caracteriza também a
diversidade para além dos termos meramente biológicos. Ao longo deste trabalho, estaremos
preocupados justamente em criar um paralelo entre o trabalho e a cultura enquanto esferas
constitutivas do ser social. A cultura se coloca, diretamente, na intervenção humana sobre a
natureza e a sociedade. Escolhas culturais interferem neste processo, tornando-o mais original
e coerente com as necessidades humanas em diferentes sociedades. O processo que se inicia
com o trabalho encontra na cultura um prolongamento e uma maior complexidade.
A opção pelo estudo desta temática no interior da tradição marxista não é aleatória.
Entendemos que a perspectiva marxiana de totalidade, bem como as demais categorias
centrais do materialismo histórico, constituem elementos diferenciadores para a abordagem
sobre cultura. É só no contexto desta tradição que podemos questionar, por exemplo, alguns
traços historicamente vinculados à noção de cultura, tais como sua autonomia, seu caráter
estático, as trocas e os contatos culturais. Aqui o termo ganha uma atualidade e uma riqueza
de determinações que, em nossa concepção, não estão presentes em outras tradições do
pensamento social. Embora ganhe força a ideia de que a tradição marxista não é, atualmente,
suficiente para compreendermos todos os elementos constitutivos de nossa realidade sócio-
histórica, acreditamos, entretanto, que ela é indispensável para esta análise, potencializando-
18

nos para uma reflexão crítica e revolucionária acerca das características e das contradições
contemporâneas.
Temos clareza, por outro lado, de que, ao falarmos sobre a tradição marxista, não
estamos, de forma alguma, tratando de um bloco homogêneo. Muito pelo contrário,
compartilhamos da ideia de que o que se convencionou chamar de marxismo representa, na
verdade, um conjunto de tendências e formulações teóricas bastante diferenciadas entre si e,
até mesmo, divergentes. Partimos, aqui, da certeza de que não é possível medir qual destas
tendências seja mais ou menos marxista. A riqueza da herança marxiana, bem como os
diferentes contextos sócio-históricos nos quais ela se desenvolveu, deram origem a diversos
“marxismos” que, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, apresentaram-se com
força suficiente para reivindicar legitimidade e reconhecimento teórico.
Assim estão expressos, em NETTO (1989, p. 78-79), os avanços e os limites desta
pluralidade e desta “disputa” de tendências no interior da tradição marxista.

Cabe destacar, ainda, dois pontos importantes. O primeiro remete à gênese


das diferenciações constatáveis na tradição marxista. Elas têm origem menos
nas interpretações que podem ser feitas da obra marxiana e mais nas
exigências colocadas pelos contextos históricos em que se situam os
marxistas. Às próprias demandas práticas que se põem aos marxistas se
debitam boa parte das diferenças: a tendência usual é a de extrair de Marx
aquilo que, num momento histórico preciso, é melhor instrumentalizável. O
passo fatal consiste em, a partir desta escolha, se estabelecer uma
interpretação global de Marx. O segundo, que nos leva a um plano de
discussão bem mais complexo, se relaciona à legitimidade das várias
propostas marxistas em face do pensamento marxiano. A existência factual
de uma pluralidade de propostas inspiradas em Marx é indiscutível, outro
problema é o de sua compatibilidade com a obra de Marx tomada na sua
inteireza. Esta questão não pode ser resolvida recorrendo-se à letra de um ou
outro texto marxiano; só deve ser equacionada considerando-se todo o
projeto teórico e revolucionário de Marx, assentado em hipóteses que se
verificam (ou não) na prática histórico-social.

Atentos a estas questões, e compreendendo a teoria “marxista” não como uma


“concepção de mundo”, mas como uma investigação do movimento real da sociedade
burguesa, como algo em construção, aberto à confrontação com os novos projetos emergentes,
é que nos aproximamos da discussão que vem se construindo em torno do termo cultura no
interior desta tradição. Procuramos, desta forma, recuperar suas principais contribuições,
elencando, assim, categorias que julgamos essenciais para nossos debates posteriores. Dentre
estas diferentes contribuições, destacamos as formulações gramscianas, de onde extraímos os
principais elementos orientadores deste trabalho.
19

Entendemos que abordar a questão específica da cultura no interior da tradição


marxista não pode ser um exercício fragmentário, mas deve estar subordinado ao que
MANDEL (2001, p. 19) chamou de uma “visão de conjunto da sociedade burguesa e da
história humana em seus sucessivos modos de produção”, ou seja, de uma perspectiva de
totalidade que constitui uma das bases inquestionáveis da herança marxiana. Desta forma,
propomos, em um primeiro momento, um retorno às formulações próprias de Marx e Engels,
a fim de compreendermos, nestas fontes, as origens da discussão marxista sobre cultura. Após
este momento, e apoiados em duas obras principais de Raymond Willians (1979, 1992),
procuramos recuperar algumas reflexões principais do que este autor teria chamado de
“materialismo cultural”, ou seja, uma teoria das especificidades da produção cultural e
literária material a partir do materialismo histórico.
Nesta discussão, a referência a um determinado momento histórico se faz necessária.
O marco dos anos 1960 e 1970 caracteriza, sem dúvida, um momento de renovação na
tradição marxista. Embalada pelas primeiras experiências de crítica ao “socialismo real” e ao
chamado “marxismo ortodoxo” da Terceira Internacional, esta tradição experimentou um
renascimento e uma maior abertura e flexibilidade de desenvolvimento teórico. É neste
momento, sem dúvida, que estudos mais aprofundados acerca da teoria cultural puderam vir à
tona no interior de perspectivas marxistas marcadas por uma ampla diferenciação.
Tal colocação não significa que, neste momento, o debate acerca da cultura tenha
ganhado centralidade e/ ou prioridade no contexto do universo marxista. Poderíamos até
mesmo afirmar que ele permanece, mesmo nos dias atuais, compreendido como uma extensão
da discussão política e econômica no interior do marxismo. Como nos afirma WILLIAMS
(1979, p. 8), “dificilmente alguém se torna marxista por motivos principalmente culturais ou
literários, mas por prementes razões políticas e econômicas”. No entanto, não teríamos dúvida
em afirmar que o momento de renovação desta tradição trouxe à tona, com maior clareza, a
perspectiva metodológica de Marx, e a noção de totalidade recupera seu lugar nesta discussão.
Então, outros elementos, tais como a cultura, ganham destaque como um espaço legítimo para
a compreensão da realidade sócio-histórica da sociedade burguesa.
O acesso a trabalhos marxistas mais novos, tais como as obras de Lukács e de
Goldmann, bem como a obras marxianas e marxistas mais antigas, tais como as de Gramsci,
da Escola de Frankfurt e do próprio Marx, agora em nova tradução, representaram um novo
arsenal teórico neste caminho de renovação. Além disso, podemos considerar também
20

determinadas experiências históricas concretas de superação do capitalismo3 que, rompendo o


modelo tradicional clássico do marxismo soviético e da Terceira Internacional, demonstraram
para o mundo que havia um terreno novo no marxismo a ser explorado e que o próprio
marxismo é um fato histórico, com posições altamente variáveis e até mesmo alternativas. Era
preciso, portanto, libertar-se de um modelo das posições marxistas fixas e imutáveis e da
correspondente negação de todos os outros tipos de interpretação que fugissem do modelo de
“marxismo oficial”.
Deste processo de renovação, vital para a história e a continuidade do marxismo,
construiu-se, a partir de uma releitura da obra marxiana, um conjunto de categorias acerca do
ser social que davam, com mais precisão, a dimensão da complexidade e da incompletude que
o caracterizam. A verdade do ser social como um processo e a dinamicidade da realidade
social são, para o marxismo do final do século XX, elementos vitais de compreensão. Nas
palavras de NETTO (1989, p. 70), “o legado de Marx deixa de ser um território nitidamente
demarcado para se colocar como um espectro muito rico em matizes e variações”. Para o
fortalecimento desta perspectiva, foi essencial uma recuperação, acontecida neste momento
histórico, da importância do método em Marx, elemento fundamental para a renovação das
questões propostas por esta tradição.
Podemos, assim, afirmar que, no que diz respeito à discussão por nós proposta, o
marxismo consegue, a partir deste momento de renovação, contribuir efetivamente para o
debate e enriquecer, com diferentes determinações, conceitos como “cultura”, “linguagem”,
“literatura” e “ideologia”. Mais uma vez, não se estabelece aqui uma história isolada, mas, na
teoria literária, o marxismo se combina com e contribui para outros tipos de pensamento
correlato. Desta forma, acreditamos que WILLIANS (1979) nos apresenta um caminho
coerente quando afirma que, no que se refere à produção cultural, é necessário examinar os
usos especificamente marxistas, sem perder de vista um quadro de evolução mais geral do
termo4.
DENNING (2005) afirma, inclusive, que a segunda metade do século XX foi o
período do que ele denominou de “virada cultural”, quando este elemento passa para o
primeiro plano de uma série de estudos e reflexões teóricas que se constroem neste momento,
passando a se constituir como uma parte cada vez central da vida política e intelectual.

3
Dentre os países que vivenciaram estas experiências podemos destacar a Polônia, o Vietnã e a
China.
4
É importante observarmos que WILLIAMS chama atenção para o risco de ecletismo nesta
aproximação e, para isso, a fidelidade às categorias centrais do pensamento marxiano nos parece
essencial.
21

Demarca-se, então, o que ficou conhecido como “estudos culturais” que, originados na
Inglaterra trabalhista, buscavam abordar as diferenças e as diversidades culturais a partir de
uma “era dos três mundos”5. Em um momento de crise da perspectiva socialista e de
reorientação da sociedade capitalista, tais estudos se propunham a agir numa proposta de
reforma interdisciplinar e transdisciplinar das fronteiras acadêmicas. O momento de
reanimação e de renovação no pensamento radical e socialista colocava em cena a
necessidade de se pensar a relação entre a cultura e as demais esferas da vida em sociedade.
Intensificou-se, então, uma “volta às superestruturas”, uma reconsideração da cultura,
buscando-se atentar para as particularidades regionais e nacionais geralmente ignoradas pelo
internacionalismo abstrato do marxismo oficial.
Uma das principais questões que envolvem este momento de apropriação do termo
cultura pela teoria marxista é seu lugar no desenvolvimento do materialismo histórico. É
necessário, assim, retomarmos as bases desta proposta marxiana, a fim de melhor
fundamentarmos nossas análises.
GORENDER (1998) destaca a obra A Ideologia Alemã, escrita por Marx e Engels
entre os anos de 1845 e 1846, como o momento de nascimento do materialismo histórico, ou
seja, como a obra que demarca, pela primeira vez com maior clareza, a superação que tais
autores fizeram com relação à filosofia clássica alemã. Naquele momento, recuperando e
questionando o materialismo sob a forma que lhes apresentava Feuerbach, do humanismo
naturista, Marx e Engels realizam um processo de reelaboração da dialética hegeliana e
buscam integrá-la no corpo do materialismo, o qual se apresenta, a partir de então, como
materialismo histórico-dialético. Tal concepção constituía, naquele momento, uma
abordagem radicalmente nova acerca do desenvolvimento da sociedade, visando sua
transformação radical. A Ideologia Alemã foi, para seus autores, um importante momento de
redefinições e avanços, demonstrando, a partir de seus primeiros envolvimentos com o
movimento operário europeu, que uma proposta de absoluta renovação intelectual estava para
ser gerada.
O primeiro e talvez principal elemento de debate de Marx e Engels nesta obra é a
própria concepção de ideologia e esta nos parece essencial para todo o pensamento marxista
sobre a cultura. Partindo de uma compreensão de ideologia como o “estudo da origem e da
formação das idéias”, sustentada por Destutt de Tracy, em 1804, os autores demonstram sua

5
A denominada “era dos três mundos” diz respeito ao que ficou historicamente conhecido como
Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, numa perspectiva claramente hegemônica do mundo
capitalista.
22

crítica e superação de parte do legado hegeliano, sobretudo quando este sustenta que “a Idéia
é o sujeito, cujo predicado são suas objetivações”. Para eles, a filosofia clássica alemã cai em
um grande equívoco ao postular que a “imaginação” e a “representação” que os homens
fazem de sua práxis real constitui a força realmente determinante e ativa. Tais filósofos se
movem no domínio do “espírito puro”, onde não existem interesses reais, nem interesses
políticos, mas apenas ideias “puras”. Nesta perspectiva, as concepções, os pensamentos, as
ideias, seriam produtos da consciência, com uma existência independente em relação à base
material e com a potencialidade de constituírem verdadeiras cadeias para os homens, cuja
libertação viria através de uma “modificação da consciência”.
Este será, num primeiro momento, o sentido negativo que Marx e Engels vão atribuir
ao termo “ideologia”, ou seja, uma falsa consciência, um conjunto de ilusões através das quais
os homens pensam conhecer sua realidade, mas que, na verdade, os fazem conhecer de forma
enviesada, distorcida. Para Marx e Engels, este conhecimento ideológico da realidade precisa
ser invertido, pois as ideias jamais se desenvolvem por si mesmas, como entidades
substantivas.
Na verdade, estes autores inovam a filosofia alemã ao compreenderem o
desenvolvimento das ideias como subordinado, como dependente; elas seriam, então,
derivadas do substrato material da história. A essência do homem é, assim, o conjunto de suas
relações sociais e seu processo de humanização. Sua elevação de ser natural a ser social só se
dá dentro da sociedade e pela sociedade. Assim, o que funda o materialismo histórico é a
certeza de que os indivíduos são constituídos por suas condições materiais de produção. Na
busca da satisfação de suas necessidades, os homens produzem seus próprios meios de
existência. Assim o que produzem e como produzem são os elementos-chave para a
compreensão da sociabilidade humana em diferentes tempos históricos. O modo de produção
constitui, assim, o elemento fundador das sociedades e dos próprios homens enquanto seres
sociais. Nas palavras dos autores,

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases
reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua
ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já
encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação.
(MARX & ENGELS, 1998, p.10).

O materialismo histórico tem como princípio, desde seu momento originário, esta
compreensão de que o homem se constitui historicamente, primeiro em sua relação com a
natureza, depois em sua relação com os outros homens. É só com este processo de
23

socialização em curso que o homem se torna consciente e capaz de refletir sobre sua vida
material. Assim, é a vida que determina a consciência; a história é a história da natureza e a
história dos homens, que estabelecem suas mais diferentes relações sociais na expectativa de
atenção às suas necessidades materiais. O intercâmbio dos homens entre si, e tudo que está a
ele relacionado, está primeiramente condicionado pelo modo de produção. Este é o sentido da
produção material. Os homens, ao contrário de outros animais, começam a produzir seus
meios de existência e, neste caminho, produzem indiretamente toda a sua própria vida
material. O que os indivíduos são, enquanto seres “viventes e conscientes”, depende das
condições materiais da sua produção.
Esta produção, a cada momento de complexificação das sociedades, caracteriza-se,
cada vez mais, como um processo coletivo, um processo que pressupõe o intercâmbio dos
indivíduos entre si. Assim, os homens produzem em sociedade, em condições sociais
herdadas ou criadas por sua própria ação, se constroem e se organizam em sociedade tendo na
base deste processo as condições e relações de produção.
Ao apresentarem este postulado básico para o materialismo histórico, Marx e Engels
colocam em xeque, desde então, a suposta autonomia dos produtos da consciência, pregada
pelo idealismo clássico alemão. A partir de então, a produção de idéias, de representações, de
símbolos e de referências no plano da consciência passa a ser compreendida como parte do
processo de vida real dos homens, como conseqüência de um determinado desenvolvimento
das forças produtivas e das mais diferentes relações (sociais, econômicas e políticas) que a
elas correspondem. Esses elementos nos parecem indispensáveis para que possamos discutir,
posteriormente, a noção de cultura no interior do marxismo.
Assim, da relação do homem com a natureza, na busca da satisfação de suas
necessidades, podemos extrair os pontos essenciais da discussão marxiana sobre a questão do
trabalho em toda a sua riqueza de determinações. Estão colocadas, então, as premissas da
relação entre trabalho e cultura enquanto esferas constitutivas do ser social. A cultura surge
como esfera determinada pelo trabalho, constrói-se como a manifestação da consciência
social, só é possível se consideramos a imensa rede de relações produtivas que se estabelecem
em um determinado momento histórico. Assim, a cada forma diferenciada de organizar o
trabalho e a vida material corresponde um universo cultural equivalente, o qual se constrói
como algo dinâmico e historicamente referenciado.
Compreender o trabalho como elemento fundante da produção material e,
conseqüentemente, da socialização humana significa abordá-lo como o processo que garante
ao homem superar suas barreiras e limitações naturais e, atendendo às necessidades
24

exclusivamente humanas de sobrevivência, dar um salto de qualidade em seu processo de


socialização. Assim, a natureza é controlada, regulada e transformada pelo trabalho humano.
Neste processo, o homem, ao desenvolver suas próprias potencialidades e submeter as forças
naturais ao domínio de sua racionalidade, se afasta da natureza, se revela superior a ela,
realiza em seus limites o projeto que antes apenas existia idealmente em sua mente.
Construir “utilidades” ou “valores de uso”: este é o objetivo primeiro de qualquer
processo de trabalho, independente da formação sócio-histórica na qual ele possa ser
desenvolvido. Assim, uma intencionalidade comanda e dirige o processo de trabalho:
transformar elementos naturais para atender a necessidades sociais. Nas palavras de
ANTUNES (2000, p. 86), “um fim previamente ideado transforma a realidade material,
introduzindo-lhe algo qualitativa e radicalmente novo em relação à natureza”.
Na concepção marxiana, o trabalho é a condição natural eterna da vida humana.
Portanto, seja qual for a formação sócio-histórica a ser investigada, o trabalho se realizará
como base e fundamento da vida social, como ponto de partida para a sobrevivência do
homem e da comunidade em que vive. Ainda que o movimento histórico introduza no
trabalho enquanto categoria fundante uma série de diferentes determinações, mudando as
formas de produzir e de se apropriar do que foi produzido, jamais se poderá prescindir deste
processo para o atendimento das necessidades sociais. Os elementos componentes do
processo de trabalho sofrem transformações e atualizações, mas jamais esgotam sua
existência.
Nesta discussão acerca do trabalho como elemento fundante do ser social, é importante
observarmos como Marx e Engels compreendem as mudanças na divisão do trabalho e na
forma de propriedade ao longo do desenvolvimento histórico de diferentes sociedades.
Analisando estas mudanças, desde a propriedade tribal até o momento moderno, os autores
identificam este último como aquele em que ocorre a divisão entre trabalho intelectual e
trabalho material e, conseqüentemente, a separação entre campo e cidade. Nesta contínua
superação histórica, os homens, desenvolvendo sua produção material e suas relações
produtivas, transformam sua consciência social e os produtos desta consciência. As diferentes
formas de propriedade, de divisão do trabalho e de modos de produção fazem corresponder,
historicamente, diferentes níveis ou formas de consciência social, uma vez que são produtos
dos homens reais, atuantes, histórica e socialmente determinados. Assim, nas palavras de
MARX & ENGELS (1998, p. 19), “a consciência nunca pode ser mais que o ser consciente, e
o ser dos homens é o seu processo de vida real”. Nesta mesma direção, a cultura corresponde
ao desenvolvimento deste ser consciente. Cada modo de produção produz a sua cultura, que
25

se coloca como reflexo destas relações produtivas, como um universo capaz de conter as
características e as contradições originárias destas relações.
A história da evolução humana tem demonstrado que o trabalho se constitui,
gradativamente, em um processo cada vez mais social, ou seja, que envolve um número cada
vez maior de pessoas em sua constituição e em suas mediações com a natureza. Assim, a
relação homem-natureza se realiza e traz consigo uma relação do homem com outros homens,
do homem em sociedade. Através do trabalho, os homens se socializam, se interrelacionam,
constroem posições intersubjetivas que irão, por sua vez, intervir novamente nos diferentes
processos de trabalho em uma determinada sociedade.
O trabalho, inserido em uma divisão cada vez mais intensa, passa, assim, a depender
da cooperação entre muitas pessoas. Em outras palavras, para atuar sobre a natureza, é preciso
atuar teleologicamente também sobre outros seres sociais, visando o convencimento e a
interrelação com outras práticas. Na concepção lukacsiana, uma práxis social interativa
(ANTUNES, 2000) se constrói a partir do trabalho enquanto momento fundante e, aos
poucos, ganha uma aparente autonomia, que será posteriormente questionada.
É necessário observarmos a afirmação marxiana de que a época do indivíduo isolado é
precisamente aquela na qual as relações sociais alcançaram o mais alto grau de
desenvolvimento. Se hoje é possível pensar que o homem é um ser capaz de se isolar, é
porque ele encontra, na sociedade, o resultado de inúmeros processos de trabalho coletivos
que lhe garantem tais condições de isolamento. Assim, esta práxis social interativa só ganha
esta autonomia aparente porque se desenvolveu em um contexto societário em que o trabalho
humano é amplamente mediado, onde, muitas vezes, os homens não percebem, com clareza, a
importância deste elemento enquanto fundante da vida social. Nesta articulação de uma práxis
social interativa a partir do trabalho, os elementos componentes deste próprio processo de
trabalho se historicizam e se atualizam permanentemente. É porque se produzem valores de
uso em cooperação com outros seres humanos que o objeto, os meios e o próprio trabalho
podem se renovar e se adequar às novas necessidades sociais que se apresentam na sociedade
enquanto coletividade.
Assim, é importante reforçarmos que o processo de “humanização do homem”, em seu
sentido mais amplo, tem como fundamento o trabalho. Através deste processo, o ser humano
se descobre como parte da natureza, mas também como separado dela, uma vez que pode se
apoderar de seus elementos para satisfazer necessidades que só se colocam na vida em
sociedade. Ao mesmo tempo, o homem descobre também que este processo de apoderamento
não é individual, mas coletivo, pois, através do trabalho, a perspectiva de intersubjetividade
26

irá se constituir com mais força e dar origem a formas mais complexificadas da vida humana.
Assim se constrói o ser social, dotado de autonomia, inserido em uma intersubjetividade,
teleologicamente capacitado, enfim, inteiramente diferente de formas de ser anteriores. É este
ser social, que agora possui o controle consciente sobre si mesmo e sobre a natureza, que irá
construir um universo cultural correspondente, um modo de vida próprio a estas relações entre
homem-natureza e homem-homem. Cultura se apresenta, nesta discussão, como um conjunto
de elementos simbólicos, como um modo de sentir, pensar e viver que se constrói e se define
em sociedade, a partir dos enfrentamentos e das soluções que este próprio agrupamento
consegue desenvolver. A cultura seria, então, o outro componente de uma sociabilidade,
necessária enquanto espaço de reprodução de determinadas relações sociais.
Para que possamos aprofundar esta discussão acerca do “mundo da cultura”, é
necessário atentarmos para o fato de que, quanto mais complexas são as sociedades, maior é a
aparência de autonomia destas ações interativas, deste universo cultural, em relação ao
trabalho. Entretanto, problematizar esta autonomia coloca questões relevantes para este
debate. Evidentemente, a vida social não se resume ao trabalho. O ser social se constitui
também através de outras esferas, tais como a política, a arte, os valores morais, a
religiosidade, o lazer, dentre outras que, na verdade, realizam também a mediação com a
natureza e com os outros homens. No entanto, estas esferas são, inquestionavelmente
secundárias, em um sentido ontológico, em relação ao trabalho, que é o locus primeiro de
realização da vida social. Para recorrermos novamente às palavras de ANTUNES (2000, p.
141)

O trabalho, portanto, é a forma fundamental, mais simples e mais elementar


daqueles complexos cuja interação dinâmica constitui-se na especificidade
do ser social. (...) As formas mais avançadas da práxis social encontram no
ato laborativo sua base originária. Por mais complexas, diferenciadas e
distanciadas, elas se constituem em prolongamento e avanço e não em uma
esfera inteiramente autônoma e desvinculada das posições teleológicas
primárias.

O trabalho, então, enquanto atividade de produção, se constitui como o ponto inicial,


como o fundamento ontológico do ser social em seu processo de satisfação das necessidades a
partir do controle e da transformação da natureza. A partir do trabalho, em suas mais
diferentes determinações históricas, se constroem as relações intersubjetivas e, num plano
mais amplo, as relações sociais de uma determinada sociedade. É a partir de determinado
modo de produzir que tais sociedades constroem, também, seus modos de distribuir, de trocar
27

e, enfim, de consumir. O trabalho dá início, portanto, a todo este processo de sociabilidade do


homem.
Entretanto, este não é um caminho de mão única. Ao produzir objetos capazes de
satisfazer suas necessidades humanas, o homem não encontra caminhos apenas para garantir
sua existência física. O homem produz também determinado modo de refletir e de manifestar
sua vida, produz determinado modo de vida, construído a partir da relação com a natureza,
mas também, e principalmente, da relação com outros homens, na constituição daquela práxis
social interativa.
É no âmbito deste “modo de vida específico” que reside uma relação de reciprocidade
entre o momento da produção e os demais momentos, entre o que comumente chamamos de
infra-estrutura e os elementos de caráter superestrutural. As relações vividas pelo homem
nesta esfera irão dialeticamente influenciar e, em muitos casos, redirecionar o trabalho e a
esfera da produção. Sobretudo nas sociedades mais complexas, onde esta esfera da práxis
interativa parece dispor de relativa autonomia, podemos afirmar que os costumes, os valores,
as relações provenientes desta esfera exercem sobre o modo de trabalho e de produção uma
influência que não é mais marginal, direcionando-os conforme a organização deste ou daquele
tipo de sociedade enquanto universo cultural.
É neste sentido, e não de forma negativa, que podemos falar desta práxis social
interativa como uma esfera determinada: indivíduos determinados, com a atividade produtiva
orientada por um modo de produção determinado, entram em relações sociais e políticas
determinadas. É o processo vital de indivíduos em sua existência real, em seu modo de
trabalhar e de produzir materialmente que cria toda uma estrutura social, simbólica moral e
política.
Este nos parece ser o elemento principal do debate sobre a cultura no interior desta
tradição marxista. Estamos afirmando, assim, que a produção de ideias, de representações, da
consciência, do universo simbólico está, num primeiro momento, necessariamente ligada à
atividade material, está condicionada por um determinado desenvolvimento de forças
produtivas e das relações que a elas correspondem.

Não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco


do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na
representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso;
mas, partimos dos homens, em sua atividade real, é a partir de seu processo
de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e
das repercussões ideológicas desse processo vital. (...) Não é a consciência
28

que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. (MARX
& ENGELS, 1998:19-20).

Na verdade, pensar determinada sociedade a partir de sua constituição cultural


significa pensá-la além de seus traços meramente naturais, significa pensar o homem já em
um estágio avançado de seu processo de humanização e de socialização, o qual, iniciado com
o trabalho, nos permitirá problematizar o ser social, que realizou a passagem de uma
adaptação natural a uma adaptação social, interativa, também cultural.
Se o processo de trabalho, como vimos anteriormente, é o processo através do qual o
homem satisfaz suas necessidades, é importante ponderarmos que as diversas sociedades se
diferenciam neste processo, criando soluções originais para os problemas que lhes são
colocados, satisfazem as mesmas necessidades através de objetos diferentes. Em outros
termos, se as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas às necessidades humanas, é
porque tais processos são orientados também por elementos culturais diferenciados que, em
uma relação de reciprocidade, constroem e são construídos pelo processo de trabalho. Como
nos propõe Marx, não existe “produção em geral”, toda produção ocorre em determinadas
condições e sob determinadas orientações que são advindas também deste universo coletivo,
onde o elemento cultural nos chama particular atenção.
O “mundo da cultura” nos remete, necessariamente, à ordem simbólica, refere-se ao
sentido que o homem historicamente atribui aos diversos elementos de sua vida social. A
cultura representa, desta forma, um importante espaço de constituição do ser social, de
reflexão e de crítica de sua vida social, de suas relações com a natureza e com os outros
homens. Neste sentido, valem as palavras de KONDER (1993, p. 159) quando afirma que

(...) atuando sobre a natureza, tanto como atuando uns sobre os outros, os
sujeitos humanos se defrontam sempre com momentos nos quais sentem a
necessidade de rever suas idéias, suas impressões, percebem que lhes
convém reavaliar suas representações, repensar suas convicções. Dão-se
conta de que precisam fazer escolhas, tomar decisões importantes, assumir
riscos. A cultura é esse plano no qual os seres humanos exercem plenamente
seu poder de invenção, sua criatividade maior, sua efetiva liberdade.

Tais colocações são relevantes para que possamos evitar um duplo equívoco em
relação à análise da esfera cultural. O primeiro de, sobrevalorizando a esfera do trabalho, dar
a ela um status de exclusividade, ou seja, de que apenas através do trabalho o homem se
realiza e se constitui enquanto ser social. É evidente, sobretudo em sociedades mais
complexificadas, que nem só do trabalho vive o homem, mas de um conjunto de esferas
29

(cultural, religiosa, política, etc.) que compõem uma totalidade e que dão sentido a sua
existência e da coletividade da qual ele faz parte. Tais esferas, aos poucos, vão se
concretizando como espaços de lutas sociais, de construção de interesses diferenciados, de
correlação de forças nas sociedades, o que acaba por influenciar e, muitas vezes, redirecionar
a esfera da produção. Assim, o ser social é constituído no interior deste todo complexo e onde,
gradativamente, nenhuma esfera tem mais autonomia. Elas são absolutamente
interrelacionadas e mudanças significativas em uma dada sociedade dependem de mudanças
em todo este conjunto. Se todo modo de produção constrói e necessita também de um modo
de garantir sua própria reprodução, entendemos que as duas frentes se constituem como
momentos que comportam as lutas sociais e os projetos que se enfrentam em torno de uma
proposta hegemônica. Em outras palavras, é impossível pensarmos em transformações na
esfera do trabalho sem levarmos em conta, por exemplo, a configuração cultural e política de
uma sociedade.
Outro equívoco, este talvez mais forte e mais contemporâneo, é o de se acreditar que a
esfera cultural é autônoma na dinâmica das sociedades modernas. Parece-nos que boa parte da
discussão contemporânea sobre o multiculturalismo está pautada nesta premissa. Assim,
segundo esta orientação, estaríamos vivendo em sociedades onde, por elementos da
conjuntura histórica, o trabalho enquanto esfera fundante do ser social estaria em crise. O
desemprego, as novas tecnologias, os contratos temporários, o subemprego, e tantos outros
elementos da chamada reestruturação produtiva teriam feito do trabalho (e aqui, muitas vezes,
existe a infeliz confusão entre trabalho e emprego) uma esfera secundária na vida social, o
que teria dado a outras instâncias da esfera cultural, tais como o gênero, a geração, a opção
sexual, a etnia, dentre outras, um peso e uma relevância muito maiores na determinação do ser
social. Com isso, a cultura seria o espaço da identidade, que abortaria ou minimizaria,
conseqüentemente, a identidade de classe.
BIHR (1999), ao analisar o momento de crise do movimento operário europeu desde a
década de 70, nos apresenta importantes colocações acerca desta tendência de autonomização
da esfera cultural. Segundo este autor, ela é característica de um determinado momento do
desenvolvimento da sociedade capitalista e de seu correspondente processo, cada vez mais
acentuado, de alienação política. O capital é capaz de se apropriar de suas condições gerais de
reprodução, fazendo-as tomar a forma de forças sociais desencadeadas, externas e estranhas
ao “corpo social”, de forças sociais autonomizadas e reificadas. Assim, a cultura, enquanto
uma das condições de reprodução do sistema do capital, também estaria passando por este
processo ao ser colocada como uma esfera autônoma e estranha ao mundo do trabalho.
30

Valendo-nos destas contribuições de BIHR, poderíamos afirmar que as condições de


reprodução do capital ultrapassaram seu mero movimento econômico para se estender à
totalidade das condições sociais de existência, onde estaria colocada a questão cultural.
Assim, fica em evidência, nas sociedades capitalistas contemporâneas, que seus processos de
superação ocorrem, também, em terrenos e disputas aparentemente sem relação imediata.
Constrói-se, desta forma, a estreita relação que anteriormente apontamos entre trabalho e
cultura. Nas palavras de BIHR (1999, p. 134), “a luta anticapitalista deve se desenrolar
simultaneamente dentro e fora do trabalho, visando a reapropriação da totalidade das
condições sociais de existência”.
Esta aproximação com as primeiras discussões sobre este universo cultural numa
perspectiva marxista nos possibilita observarmos a gênese social da palavra e da idéia de
cultura, compreendendo sua importância e significação neste processo de constituição do ser
social. WILLIANS (1979) nos chama atenção para a necessidade de analisarmos o termo
cultura através de uma consciência histórica, ou seja, tendo clareza de que as questões e as
contradições através das quais o termo se desenvolveu são historicamente incorporadas no
próprio conceito. Nesta análise, entretanto, é necessário realizarmos cortes e opções teórico-
metodológicas.
Uma abordagem da cultura, como a que pretendemos realizar, no interior da tradição
marxista, é uma formulação histórica relativamente recente. Até o século XVIII, cultura
representava um processo meramente objetivo, como “cultura de alguma coisa”. Tratava,
assim, do cultivo, do crescimento e do cuidado de colheitas e animais. Aos poucos, o termo
foi ganhando maior complexidade e passou a ser usado, no interior das Ciências Sociais, para
tratar do crescimento e dos cuidados com as faculdades humanas. Neste cenário, o conceito de
cultura, assim como os de sociedade e economia, constituem os conceitos modeladores
iniciais do pensamento social moderno.
CUCHE (1999) introduz elementos também relevantes ao construir esta evolução
histórica e semântica da palavra cultura. Segundo ele, o século XVIII demarca um ponto de
inflexão neste debate, sobretudo para a concepção francesa. Em 1700, cultura já era uma
palavra antiga no vocabulário francês e, originária do latim, significava, como apresentamos,
o cuidado dispensado ao campo e ao gado. Designava, assim, uma parcela de terra cultivada
ou correspondia a uma ação: o ato de cultivar a terra.
A partir da metade do século XVIII, tal significado passa a conviver com um sentido
figurado designando a cultura de uma faculdade humana, isto é, o fato de que era possível
trabalhar intelectualmente para desenvolvê-la. É este sentido figurado que irá se impor no
31

século XVIII e que fará parte do vocabulário do Iluminismo, designando a “formação”, a


“educação do espírito humano”. Assim, cultura passa a designar o estado de espírito cultivado
pela instrução, passa a constituir o termo cujo adjetivo é “culto”, e não “cultural”.
Para os pensadores do Iluminismo, cultura é, então, um dos elementos diferenciadores
do ser humano, aquilo que realiza uma oposição conceitual em relação à idéia do homem
enquanto natureza. É o conjunto dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade ao
longo de sua história. É própria do ser humano e está além de qualquer distinção entre os
povos. Por isso, é um termo usado, até então, sempre no singular. Está associada às idéias de
progresso, de evolução, de educação, de razão. É a palavra ideal para um momento de
extrema confiança no projeto de modernidade construído pelo Iluminismo.
Tal conceito moderno de cultura, a partir do século XVIII, terá seu desenvolvimento
paralelo ao de outro termo: civilização. A partir de então, tais termos estarão intrinsecamente
relacionados, com momentos de convergência e de contradição. Civilizar irá designar, a
princípio, um processo de absorção dos homens por uma determinada organização social, a
qual se desenha, nas palavras de WILLIANS (1979), como um Estado realizado, que
contrasta e supera um estágio de barbárie, e/ ou como uma condição realizada de
desenvolvimento humano e social, como um processo histórico de progresso, significando, na
proposta iluminista, refinamento e ordem. Assim, no século XVIII, realizar a civilização
representava um processo secular, evolutivo e histórico.
Neste sentido, cultura e civilização são palavras muito próximas na língua francesa.
Civilização irá evocar os progressos coletivos alcançados por determinada sociedade através
da cultura de seus membros, significando o processo que arranca a humanidade da ignorância
e da irracionalidade. A civilização é, assim, um processo que pode e deve ser estendido a
todos os povos que compõem a humanidade, os quais devem compartilhar do progresso
oriundo da evolução humana.
A acepção alemã do termo cultura terá, por sua vez, um elemento diferenciador
bastante relevante nos debates a partir do século XVIII. A intelligentsia alemã se considera
investida da missão de construir, desenvolver e irradiar certa “cultura alemã”, baseada nos
valores da ciência, da arte, da filosofia e da religião. Para uma nação que ainda não conseguira
sua unificação política, a Alemanha procurava, então, afirmar sua existência glorificando sua
cultura.
O debate contemporâneo herdará da noção alemã de cultura os elementos que se
referem à delimitação e à consolidação das diferenças nacionais, opondo-se, assim, à noção
francesa universalista de civilização. A “nação cultural”, para os alemães, precede a nação
32

política. Cultura significa um “conjunto de conquistas artísticas, intelectuais e morais que


constituem o patrimônio de uma nação considerado como adquirido definitivamente e
fundador de sua unidade.” (CUCHE, 1999, p. 75). Por esta razão, Johann Gottfried Herder irá
utilizar, pela primeira vez, em 1774, a palavra “culturas”, em um plural significativo
construído justamente em nome do gênero nacional de cada povo, que aponta para uma
diversidade de culturas como a riqueza da humanidade e contra o universalismo
uniformizante do Iluminismo, onde cada cultura exprime parte da riqueza de toda a
humanidade.
A partir do século XVIII, as problematizações acerca do conceito de cultura estarão
diretamente marcadas por duas concepções construídas a partir deste embate: uma
universalista, que privilegia a unidade e minimiza as diferenças, e outra particularista, que
reconhece e valoriza a diversidade entre as culturas, procurando, entretanto, demonstrar que
ela não é contraditória com a unidade fundamental da humanidade. Podemos perceber, a partir
do debate em torno destas duas concepções que, com o constante processo de
complexificação da sociedade burguesa no período pós-iluminista, os termos civilização e
cultura começam a sofrer certo distanciamento. Enquanto o primeiro vai se constituindo como
um termo superficial, artificial, como o cultivo de propriedades “externas”, cultura ganha o
sentido alternativo de um desenvolvimento “íntimo”, associado a outras instâncias da
sociedade, tais como a religião, as artes, a família, a vida pessoal e comunitária, etc. Cultura
passa a ser vista, então, como uma classificação geral de instituições e práticas que, embora
sociais, constituíam significados e valores simbólicos de uma dada sociedade. Este é o sentido
de cultura como um “modo de vida”, no interior do qual se constrói a subjetividade e o
processo criativo de resposta às necessidades coletivas.
Assim CUCHE descreve esta oposição

Duas palavras vão lhes permitir definir esta oposição dos dois sistemas de
valores: tudo que é autêntico e que contribui para o enriquecimento
intelectual e espiritual será considerado como vindo da cultura; ao contrário,
o que é somente aparência brilhante, leviandade, refinamento superficial,
pertence à civilização. A cultura se opõe então à civilização como a
profundidade se opõe à superficialidade. (1999, p. 25)

Para WILLIANS (1979), entretanto, as divergências entre os dois termos não são mais
importantes que o seu principal ponto de convergência, qual seja, a de trazer uma nova
possibilidade de interpretação acerca do homem enquanto ser social e de sua vida em
sociedade.
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Cada um deles foi uma idéia moderna no sentido de que ressaltou a


capacidade humana não só de compreender, mas de construir uma ordem
social humana. Foi essa a diferença decisiva entre tais ideias e a derivação
anterior de conceitos sociais e ordens sociais, a partir de estados religiosos
ou metafísicos pressupostos (WILLIANS, 1979, p. 22).

O que podemos observar ao recuperarmos a gênese social e o desenvolvimento


histórico do termo cultura é que os diferentes significados que ele apresentou não foram
substitutivos, mas se tornaram complementares. Assim, podemos hoje, no interior do debate
das Ciências Sociais, destacar diferentes compreensões do termo, mas um estudo mais
aprofundado nos permite relaciona-las e aborda-las numa perspectiva mais ampla, de
totalidade.

“Cultura” denotava de início um processo completamente material, que foi


depois metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra,
assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da
própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a
Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. No linguajar marxista, ela
reúne em uma única noção tanto a base como a superestrutura.
(EAGLETON, 2005, p. 10).

Primeiramente, teríamos um uso mais amplo do termo, tanto nos domínios da


Antropologia quanto da Sociologia. Cultura significa, neste sentido, um “modo de vida
global” de determinado povo ou grupo social, compreendendo um conjunto de elementos
(valores, costumes, tradições, símbolos, representações e referências) que constroem, em
torno de uma coletividade, um parâmetro dinâmico de identidade. Neste sentido, se fala da
“cultura de diferentes povos ou grupos”, a qual possibilita, entre eles, ao mesmo tempo, um
elemento de inclusão e outro de exclusão, quando se compartilha ou não de uma mesma
cultura. Assim a cultura unifica e separa, identifica e aliena, aproxima e afasta as pessoas.
Neste âmbito de compreensão do universo cultural, faz-se necessária uma discussão acerca
deste elemento de identidade. O que se define, a partir deste “modo de vida global” é uma
norma de vinculação que permite que pessoas e grupos se localizem em uma determinada
ordem societária e que seja, ao mesmo tempo, localizado por grupos e pessoas diferentes.
É importante observarmos, então, que identidade e alteridade se constroem em uma
relação necessariamente dialética, que está em jogo a partir de diferentes enfrentamentos e
embates sociais. Não existe, neste sentido, uma identidade que se construa definitivamente. Se
a cultura é um elemento dinâmico, que contém e acompanha o movimento da vida real, o
34

parâmetro de identidade que dela decorre também se define no interior de contextos sociais
que orientam as representações e as escolhas culturais. É no interior das mais diversas trocas
sociais, viabilizadas pela dinâmica produtiva de cada sociedade, que ocorrem também as
chamadas trocas culturais, que fazem da identidade este elemento em constante
(re)construção.
CUCHE (1999) chama atenção também para o fato de que o homem constrói, em
sociedade, diversas e diferentes vinculações, compondo este todo orgânico que irá caracteriza-
lo como ser social. Desta forma, existe também uma pluralidade de referências
identificatórias, que compõem a cultura e a identidade cultural como algo multidimensional.
Assim, ela pode ser instrumentalizada nas relações entre os grupos sociais, construindo
fronteiras (HANNERZ, 1997) como artifícios de separação e de diferenciação. Este uso
reafirma, como podemos observar em diferentes contextos, relações históricas de dominação,
onde a cultura aparece como algo superior ou inferior, estendendo esta concepção hierárquica
para os povos que compartilham desta ou daquela cultura.
Outra possibilidade de se abordar contemporaneamente o termo cultura mantém
referência com aquela ideia de um “processo íntimo” de refinamento intelectual, de um
“desenvolvimento do espírito” no sentido da aquisição de conhecimentos e de capacidade de
reflexão e crítica. Este uso aponta para uma apreensão mais “individual” de cultura, no
sentido de pessoas mais ou menos “cultas”, que desenvolveram mais ou menos esta
capacidade reflexiva. No entanto, esta capacidade está, mais uma vez, diretamente relacionada
ao conjunto das relações produtivas e das condições sociais nas quais os homens constroem os
diferentes espaços de relações sociais. A cultura, neste segundo sentido, também é uma esfera
coletiva e socialmente determinada. Virá da contribuição gramsciana, como veremos
posteriormente, um importante avanço nesta compreensão de cultura, ao afirmar que a
capacidade de trabalho intelectual é inerente ao homem, que a vivencia e a desenvolve de
diferentes maneiras, de acordo com as condições históricas nas quais vive.
Enfim, é necessário registrar ainda a compreensão de cultura num sentido mais
restrito, qual seja, o da produção artística e intelectual de determinada sociedade. Partindo da
certeza de que a autonomia desta produção é algo extremamente relativo, acreditamos que tal
produção é mais bem apreendida enquanto “manifestação ou expressão cultural”, no sentido
de que apresenta a potencialidade de “trazer à tona”, de tornar manifestas as relações sociais
constitutivas do modo de produção em torno do qual uma sociedade se organiza. A arte e a
vida intelectual explicam e explicitam a cultura, sendo, ao mesmo tempo, determinadas por
ela. Ao longo de toda a história da arte, podemos observar como ela sempre foi um forte
35

instrumento ideológico, respondendo a projetos societários diferenciados e, ao mesmo tempo,


expressando as relações sociais que dão vida a estes projetos. Este uso do termo cultura, longe
de uma perspectiva menos importante, constrói-se na vida social, portanto, como espaço de
reflexo e de mediação. Assim afirma EAGLETON (2005, p. 36-37)

Entretanto, essa idéia minoritária de cultura, embora seja um importante


sintoma de crise histórica, é também uma espécie de solução. Assim como a
cultura como modo de vida, ela confere cor e textura à abstração iluminista
da cultura como civilização. (...) As artes podem refletir a vida refinada, mas
são também a medida dela. Se elas incorporam, também avaliam. Nesse
sentido, unem o real e o desejável à maneira de uma política real.

Como percebemos, uma extrema complexidade caracteriza a compreensão de cultura


no interior das Ciências Sociais, gerando diferentes concepções e relações. Estes três sentidos
do termo cultura, como pudemos perceber, são inseparáveis, e remetem a uma potencialidade
desta esfera não só de explicar, mas também de viabilizar alternativas àquilo que explica.

Nesse sentido, também, a cultura pode unir fato e valor, sendo tanto uma
prestação de contas do real como uma antecipação do desejável. Se o real
contém aquilo que o contradiz, então o termo “cultura” está destinado a olhar
em duas direções opostas. (IBIDEM, p. 37-38).

Observamos, ao longo da produção marxiana, que as manifestações da consciência


social possuem estreita ligação com as relações de produção e com a produção material de
certa sociedade. Afirmam estes autores:

A produção das idéias, das representações e da consciência, está, a princípio,


direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos
homens, ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o
comércio intelectual dos homens aparecem aqui como emanação direta de
seu comportamento material. (MARX & ENGELS, 1998, p. 18).

Segundo esta orientação, podemos perceber um duplo movimento, onde o que Marx e
Engels denominam de “consciência social” exprime e também contribui para a formação das
relações sociais. Através dela, que se constrói como a “linguagem da vida real”, os homens
pensam a si mesmos e aos outros, refletindo em seu interior relações de dependência,
alienação e antagonismo, presentes em sua vida social, assim como de convergência,
identidade e solidariedade. Através da consciência, os homens exercitam a capacidade de
36

pensar a sociedade onde vivem, trabalham e produzem e de questionar, ou dar continuidade,


às relações que nela se estabelecem.
As relações de produção contraídas pelos homens formam, na perspectiva marxiana, a
base material de determinada sociedade, sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e
política. A esta esfera correspondem as formas de consciência social que se manifestam
através de determinada cultura. Assim, ela é resultado da intervenção humana sobre a
natureza e sobre a própria sociedade, e produto de uma apreensão do real que continua
existindo em toda sua autonomia, fora desta esfera simbólica, embora compreendido pelo
homem através dela.
Na opinião de WILLIANS (1979), entretanto, a análise da cultura como elemento
superestrutural não consegue expressar toda a dimensão desta esfera no interior da tradição
marxista. A proposição da relação entre infra-estrutura determinante e superestrutura
determinada foi, sobretudo no início do século XX e no quadro do marxismo ortodoxo,
considerada como sendo a chave de uma possível análise marxista acerca da cultura.
Tal concepção tem por base a seguinte afirmação de Marx, que pondera que

A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da


sociedade, a base real, sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona os processos social, político e
intelectual da vida em geral. (...) com a modificação da base econômica, toda
a imensa superestrutura se transforma mais ou menos rapidamente. (MARX,
1999, p. 52).

No entanto, o contexto real desta interpretação é limitado, afirma WILLIANS, pois


poderíamos encontrar, ao longo da produção marxiana, pelo menos mais dois sentidos de
“superestrutura”: o de formas de consciência que expressam uma determinada ideologia, uma
visão de mundo característica de uma classe e o de um processo no qual os homens se tornam
conscientes de um conflito econômico fundamental e o tentariam solucionar (práticas políticas
e culturais). Assim, este autor nos chama atenção para o fato de que entender os termos infra-
estrutura e superestrutura como categorias separadas e áreas de atividade fechadas é realizar
uma abstração comum e vazia de sentido, própria das formas de pensamento que Marx tanto
condenou.
É, portanto, uma ironia lembrar que a força da crítica original de Marx se voltava
principalmente contra a separação das áreas de pensamento e atividade (como na separação
entre a consciência e a produção material) e contra o esvaziamento correlato do conteúdo
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específico – atividades humanas reais – pela imposição de categorias abstratas. A abstração


comum da infra-estrutura e da superestrutura é, portanto, uma continuação radical dos modos
de pensamento que ele atacou. (WILLIAMS, 1979, p. 82)
O conjunto da produção marxiana nos convida, desta forma, a compreender a
superestrutura como o palco da complexificação de verdadeiras relações sociais. Para
apreendê-la e estudá-la, é preciso estar atentos para os vínculos indissolúveis entre produção
material, instituições, atividades políticas, culturais e consciência. Não se pode pensar em
condições econômicas, regime político e formas culturais como elementos organizados de
forma seqüencial, pois isso seria negar, em seus princípios fundamentais, a proposta marxiana
da totalidade social. Na verdade, estes elementos são inseparáveis. Não constituem e nem
podem se expressar de forma separada, mas como uma totalidade que se caracteriza como
atividades e produtos específicos do homem enquanto ser social.
Engels esclarece que a abstração tão comum da infra-estrutura e/ ou da superestrutura
é um fenômeno característico do processo de complexificação das sociedades modernas,
sobretudo da sociedade capitalista. Neste momento, a interligação absolutamente orgânica
entre formas de consciência e suas condições materiais de existência se torna cada vez mais
obscurecida por elos intermediários, embora exista em toda sua completude.
Afirma ele (apud WILLIANS, 1979, p. 83),

Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante final


na história é a produção e a reprodução da vida real. Mais do que isso, nem
Marx nem eu jamais afirmamos. Portanto, se alguém torce o que dissemos
para afirmar que o elemento econômico é o único elemento determinante,
transforma essa proposição numa frase sem sentido, abstrata, absurda. A
situação econômica é a base, mas os vários elementos da superestrutura (...)
também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em
muitos casos, são preponderantes na determinação de sua forma.

Desta forma, em uma proposta de análise da cultura que tenha por orientação a
perspectiva marxista, é necessário e relevante analisarmos os processos reais específicos e
indissolúveis que se estabelecem entre a base e a superestrutura. Acreditamos que esta
perspectiva marxiana, longe de colocar a cultura numa posição subordinada e passiva, dá a ela
uma extrema dinamicidade e uma capacidade significativa de acompanhar o movimento
histórico do real. O conhecimento do mundo e, portanto, sua significação simbólica só são
possíveis através da ação exercida sobre ele e da transformação sofrida por ele. A consciência
social dos homens se modifica na mesma medida em que contribui para as mudanças
38

ocorridas na natureza e nas formas de intervir sobre ela. Nas palavras de MARX & ENGELS
(apud SAHLINS, 2003, p. 133)

(...) o mundo sensível que o rodeia não é algo diretamente dado desde toda
eternidade e sempre igual a si mesmo, mas o produto da indústria e do estado
da sociedade no sentido em que é um produto histórico, o resultado da
atividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais se apóia nos
ombros da anterior, que desenvolve sua indústria e seu intercâmbio,
modificando sua organização social de acordo com as novas necessidades.

A cultura é, portanto, o espaço dinâmico no qual a consciência social constrói este


conhecimento e esta reflexão acerca da realidade histórica passada, presente e futura, onde o
homem se percebe com novas necessidades e desafios para além da intervenção sobre a
natureza. É um espaço de mediação, de intencionalidade, de construção de novas demandas
coletivas a serem atendidas pela atividade produtiva. Os homens, ao desenvolverem sua
produção e seu intercâmbio material, constroem sua cultura. Ao mesmo tempo, mudam a
natureza, mudam sua constituição enquanto ser social, mudam seu pensamento e os produtos
deste pensamento. Fazem e refazem permanentemente sua cultura e, conseqüentemente, toda
sua vida em sociedade.
SAHLINS (2003) realiza, em relação a esta concepção de Marx acerca da cultura, a
sua crítica antropológica. Segundo ele, Marx apreende apenas o caráter secundário de
simbolização da cultura, modelo de um sistema dado na consciência. Ao lidar com o
significado apenas em sua qualidade de expressão de relações humanas, Marx deixaria
escapar, através das malhas da teoria, a constituição significativa dessas relações.
Nesta crítica, a lógica pragmática da produção material formaria um sistema de
limitações ao qual todas as relações e representações estariam funcionalmente submetidas.
Existiria, assim, uma premissa prático-natural – a de que as necessidades devem ser satisfeitas
– que eliminaria qualquer perspectiva de autonomia da esfera simbólica da cultura. O quadro
conceitual de Marx não teria sido capaz, portanto, de responder à dimensão cultural que
ordena as “necessidades” dos valores de uso.
Tal crítica à teoria marxista é, inclusive, bastante freqüente no pensamento social
moderno. Atribuiu-se a esta teoria as características de ser reducionista e determinista, onde as
atividades referentes à esfera cultural não têm nenhuma significação em si mesma, sendo
sempre reduzida a uma expressão direta ou indireta de um conjunto de fatores econômicos
que a precedem e controlam. É a crítica que se constrói em torno do conceito de
determinação.
39

Entendemos, no entanto, que tal crítica ignora, no interior da perspectiva marxiana, um


de seus elementos vitais, que é a perspectiva de totalidade. Marx não limita o quadro das
necessidades humanas às necessidades físicas, pois é ele próprio quem afirma que “a
mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades,
satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do
estômago ou da fantasia. (MARX, 2003, p. 57)
Parece-nos claro, nas formulações marxianas, que o modo de produção de determinada
sociedade não é apenas a produção de bens materiais, mas de todo um modo de vida, que
contém também uma necessidade de reprodução do ser humano em toda a dinâmica de sua
vida social. Assim, os homens produzem e se reproduzem sob determinadas condições e
dentro de determinadas relações que são criadas e mantidas, também, pelos elementos que
compõem o universo cultural desta sociedade. A produção dá origem também a um
determinado modo de vida, o qual, por sua vez, irá constituir o quadro geral em que esta
produção terá sua continuidade e será permanentemente revolucionada. Tais ideias serão
amplamente desenvolvidas pelo marxismo do século XX, sobretudo na perspectiva
gramsciana. A cultura constitui, assim, a resposta a necessidades e imperativos humanos
não ligados, única e necessariamente, à sua reprodução física. Remete, portanto, ao aspecto da
vida social concretizado no plano da práxis interativa, da relação com os outros homens e das
construções coletivas processadas através desta relação.
Este conjunto de elementos que compõe a cultura não se encontra disperso ou
fragmentado. Ele constitui expressão da totalidade da vida social, apresenta uma coerência na
combinação de diferentes traços. É no interior desta totalidade que determinada cultura deve
ser analisada e questionada, inserida em suas relações com os aspectos sociais, econômicos e
políticos que constituem determinada sociedade. Se a cultura é uma esfera capaz de mediar a
dinâmica das relações sociais de uma sociedade (FEATHERSTONE, 1997), ela deve ser
objeto de análise nesta perspectiva de totalidade, deve ser problematizada como um todo, e
não a partir do isolamento de um de seus elementos. Nossa insistência nesta reflexão se
justifica pelo fato de que ela nos parece extremamente relevante para o debate que se coloca,
nos dias de hoje, em torno da dinâmica do processo de globalização em curso.
A idéia da cultura como um reflexo da realidade social foi, no interior do marxismo, a
explicação mais comum para os fenômenos culturais, altamente influenciada por um viés
positivista, onde a cultura e, sobretudo, a arte, deveriam necessariamente refletir a realidade,
ou seja, a “produção e reprodução da vida real”, deveriam meramente reproduzir o
movimento da vida real. Este tipo de formulação, como vimos, implica em uma compreensão
40

da cultura como algo estático, objetivista, que, por sua vez, se relacionaria com uma
concepção da realidade, da infra-estrutura passível de ser conhecida separadamente, por
critérios de verdade científica.
A partir desta “teoria do reflexo”, constrói-se, na maioria das vezes, uma abordagem
mecanicista do materialismo, onde o mundo real aparece isolado como um objeto em
condição abstrata, com “leis” já definidas e conhecidas deste processo. As diferentes
manifestações culturais seriam apenas o reflexo destas leis, teriam a função apenas de
externar, no plano das idéias e do mundo simbólico, o que já se constituía como a realidade
básica do processo social material. Neste sentido, na esfera cultural, não haveria espaço para a
criatividade e para relações mais dinâmicas, mas apenas para a reprodução ideal desta
realidade externa e estática. Na verdade, esta teoria acaba por eliminar o caráter material e
social da própria atividade artística e cultural. Tal modelo tende a reificar o movimento da
infra-estrutura, compreendendo-a como um objeto acabado. Não consegue apreendê-la como
um processo de vida material, como resultado da atividade humana, como algo dinâmico e
histórico, do qual a produção cultural é parte constitutiva, e não mero reflexo.
No momento mais contemporâneo da evolução do marxismo, sobretudo a partir dos
anos 1980, esta concepção da cultura como mero reflexo foi sendo questionada e, segundo
WILLIANS, desafiada pela idéia de “mediação”. A diferença principal estaria na
compreensão deste processo ativo na relação entre “base material” e “cultura”, entre “infra-
estrutura” e “superestrutura”. A cultura seria, então, uma mediação das diferentes relações
sociais nas quais os homens estão envolvidos, ou seja, um processo positivo e substancial,
onde são produzidos significados e valores compatíveis com e necessários para a produção
material mais ampla. Enquanto mediação, é possível compreender a cultura como algo
intrínseco à produção material, capaz de acompanhar e de redirecionar seu movimento, seus
altos e baixos, bem como, conforme analisaremos mais tarde, sua correlação de forças e seu
contexto de luta de classes. Assim, como propõe WILLIANS (1979, p. 101), “não devemos
esperar encontrar (ou encontrar sempre), realidades sociais “refletidas” diretamente na arte, já
que estas (sempre, ou com freqüência) passam através de um processo de “mediação”, no qual
seu conteúdo original é modificado”.
Vale, ainda, enfatizarmos a dimensão essencialmente coletiva que dá direção ao
universo cultural. Embora uma das questões mais relevantes para a antropologia cultural nos
dias de hoje seja compreender como os indivíduos incorporam e vivem sua cultura, ou seja,
como se adquire certa cultura, esta deve ser sempre problematizada em seu aspecto coletivo,
enquanto uma dimensão da práxis social interativa. Cada cultura comporta, em sua dinâmica
41

social, um conjunto de valores comuns àqueles que dela compartilham e que a torna
específica em relação a outras culturas. É, assim, uma esfera que gera identidade entre seus
membros e que define, portanto, não só categorias para a inclusão ou a exclusão, mas também
a afirmação dos sujeitos sociais enquanto produto e suporte das lutas sociais e políticas de
grupos ou comunidades inteiras. É neste sentido que se fala da cultura dos imigrantes, dos
setores populares, de classes sociais, etc., enquanto elemento da construção social destes
setores no interior de suas diversas relações sociais.
Todas estas questões exigem que reafirmemos a esfera cultural como altamente
dinâmica, estando sujeita a constantes transformações oriundas do quadro social mais amplo
no qual a cultura é gestada. Abordar esta dinamicidade significa questionar os caminhos que
podem contribuir para se modificar uma cultura e os sujeitos destas mudanças, sejam eles
indivíduos, grupos ou sociedades inteiras. É necessário, portanto, afastar o risco de reificação
da cultura, e entendê-la também como o espaço de reflexão acerca dos problemas que
envolvem uma sociedade, das lutas sociais empreendidas em seu interior, da reorganização da
esfera da produção, etc.
As configurações culturais devem ser estudadas no interior de diferentes quadros de
relações sociais, as quais favorecem os elementos de integração, de competição, de conflito,
etc. Os contatos e, sobretudo, as trocas culturais são realizadas a partir destas relações que são
desiguais, uma vez que estabelecem, no domínio cultural, uma mesma situação de hierarquia
e de dominação. Ao mesmo tempo, enquanto um espaço de reflexão (e não meramente como
reflexo), a cultura se constrói como alternativa, como questionamento desta dominação.
Define-se, neste sentido, como um pólo tenso em que convivem elementos de resistência e de
integração, de questionamento e de assimilação.
Percebemos, então, a partir destas formulações, a importância e a significação da
compreensão da cultura no interior da tradição marxista. O homem se constitui enquanto ser
participante de uma sociedade através de suas relações com outros homens, processos que o
potencializam a criar e a se identificar com uma cultura, a qual, por sua vez, dá nova
dinamicidade a estas mesmas relações produtivas e sociais. A partir destas considerações,
acreditamos que o debate acerca da cultura no contexto contemporâneo da globalização fica
enriquecido e, ao mesmo tempo, pode ser realizado numa perspectiva mais ampla de crítica e
de superação. Inserindo a cultura na dinâmica das relações produtivas de uma dada sociedade,
encontramos o espaço privilegiado tanto para a compreensão quanto para o questionamento
da estrutura desta sociedade, sobretudo quando estas se referem ao modo capitalista de
produção. Antes, porém, de realizarmos esta abordagem mais específica sobre a cultura na
42

sociedade capitalista contemporânea, consideramos necessário observar, ainda dentro desta


tradição, as contribuições especificamente gramscianas para este debate, sobretudo no que se
referem à concepção nacional-popular, categoria chave para os estudos que pretendemos
realizar ao longo deste trabalho.

1.2 - Cultura e nacional-popular em Gramsci

Denominado por FORGACS & NOWELL-SMITH (1999, p. 41) como “o maior


escritor marxista sobre cultura”, Antonio Gramsci realmente representa, como veremos, um
divisor de águas para a compreensão da esfera cultural no interior desta tradição. Em sua obra,
esta esfera “encontra seu lugar privilegiado” enquanto elemento constitutivo de relações
sociais e de projetos societários mais amplos.
Em toda a produção gramsciana, desde seus primeiros escritos políticos até os
Cadernos do Cárcere, a temática da cultura está presente e vai, gradativamente, ganhando
maior complexidade, tornando-se mais rica e mais completa, relacionando-se intrinsecamente
com a discussão de outras esferas do ser social, sobretudo aquela que se refere à vida política.
Em um primeiro momento, podemos perceber em Gramsci uma perspectiva tradicional de
cultura, onde esta se refere à educação como atividade do espírito, como unidade de
consciência e auto-conhecimento humano. No decorrer de sua produção, entretanto,
percebemos em Gramsci, não um abandono, mas uma ampliação desta concepção, a qual
passa a ser relacionada com todo o processo histórico, em seus elementos políticos, sociais e
econômicos que, para ele, constituem-se inseparavelmente. Esta nos parece ser a compreensão
hegemônica de cultura na orientação gramsciana e nos parece claramente exposta na
expressão “criar uma nova cultura”, tão freqüente nos Cadernos do Cárcere.
Toda a militância política de Gramsci, sobretudo no período pré-carcerário, pode ser
considerada como o fio condutor desta renovação da noção de cultura. Desde os embates com
os anti-culturalistas, no interior do Partido Socialista Italiano (PSI), no período de 1913 a
1921, passando por toda a experiência dos Conselhos de Fábrica e chegando até sua atuação
no Partido Comunista da Itália (PCI), Gramsci vai encontrando oportunidades de reelaborar
sua compreensão de cultura, ampliando e diversificando suas colocações acerca do tema.
Entendemos que é necessário aprofundarmos estudos sobre este momento da produção
gramsciana.
Desde sua passagem pela Universidade de Turim, nos anos de 1911 a 1913, Gramsci
demonstrava interesse por temas que, mais tarde, lhe foram centrais em sua discussão sobre
43

cultura. Na Faculdade de Letras, interessou-se particularmente por estudos de lingüística


histórica e de literatura italiana, temáticas que voltariam a chamar sua atenção em seus
escritos do cárcere, conforme carta a Tatiana Schucht de 19 de março de 1927. Destes seus
primeiros interesses, teria ficado, para Gramsci, uma compreensão, ainda restrita, de que a
palavra escrita é o centro da formação cultural em indivíduos e em sociedades inteiras.
Devido às suas precárias condições de saúde e à sua situação econômica, Gramsci não
conseguiu avançar qualitativamente nestes estudos. No mesmo período, mais especificamente
em 1913, estabeleceu seus primeiros contatos com o movimento socialista de Turim,
ingressando então no PSI. A preocupação com sua própria formação cultural era evidente. Lia
muito, periódicos, livros, informes em geral. Preocupava-se claramente com a situação
política de sua região, a Sardenha, não se mostrava indiferente a toda a agitação da classe
trabalhadora em Turim. Juntamente com Ângelo Tasca, Palmiro Togliatti e Umberto
Terracini, todos bastante influenciados pelo idealismo historicista de Benedetto Croce,
Gramsci tem clara para si a necessidade de uma formação cultural ampla na sociedade, cujo
objetivo deve ser o de divulgar amplamente as idéias socialistas.
Desde 1912, a cultura se apresentava como uma questão importante no interior do PSI,
quando a seção juvenil, à qual Gramsci pertencia, havia iniciado estes debates nos congressos
do partido. FORGACS & NOWELL-SMITH assim registram este momento

Um debate tomou lugar em seu Congresso então entre “culturalistas” tais


como Angelo Tasca (bastante próximo de Gramsci até 1919) que queriam
dar total prioridade à atividade cultural e à propaganda teórica em seu jornal,
e “anti-culturalistas” (incluindo o jovem Bordiga) que chamava estas
propostas de burguesas e lembrava seus opositores que a crise histórica tem
causas econômicas. (1999, p. 45, tradução nossa)

No interior desde debate, e fazendo parte da chamada “fração da esquerda


revolucionária”, Gramsci se preocupa desde cedo com o que mais tarde denominaria de
“organização da cultura”, ou seja, com os organismos construídos no interior das relações
sociais de uma sociedade com a função ideológica de difundir uma determinada cultura.
Assim, projeta fundar uma revista socialista e, a partir de 1915, passa a ser um intenso
colaborador de Il Grido del Popolo, semanário socialista, e da redação turinense do Avanti!,
periódico diretamente ligado ao PSI, onde publica artigos de crítica teatral, literária e de
debates sobre temas do cotidiano da vida política italiana.
44

Este momento da vida de Gramsci pode ser analisado como o início de uma produção
política mais madura, a qual iria caracterizá-lo como o grande revolucionário do qual a
história teria conhecimento mais tarde.

Agora o jovem, completados os 25 anos, lentamente retomava o gosto pela


vida, pelo debate político, pela atividade de jornalista. (...) Com esta
retomada do trabalho político, a transformação na vida de Gramsci se
acentuava. Não havia ainda tomado a decisão de abandonar definitivamente
os estudos universitários. Todavia, outros interesses já prevaleciam sobre a
escola. O socialismo era a resposta a todos os problemas, inclusive os
pessoais, que o angustiavam; era a solução da crise. De fato, nascia neste
período, entre o final de 1915 e o início de 1916, o “revolucionário
profissional”. (FIORI, G. 1979, p. 125).

Deste primeiro período de elaboração teórica, quando Gramsci ainda era, como ele
próprio afirma, “sobretudo tendencialmente crociano”, podemos destacar alguns textos nos
quais as primeiras formulações de sua compreensão acerca da cultura ficam mais evidentes.
Neste momento, e até 1917, existia para Gramsci uma intrínseca relação entre a educação
formal e a questão da cultura, onde a primeira era um dos caminhos privilegiados para se
alcançar a segunda. Já existia, no entanto, a certeza de que esta educação não poderia ser
desinteressada, ou seja, alheia e desvinculada da perspectiva de um projeto societário mais
amplo. Neste sentido, já existia, segundo Gramsci, uma luta ideológica que envolvia, em
projetos diferenciados, tanto a educação quanto a cultura.
Em “Socialismo e Cultura”, de 29 de janeiro de 1916, Gramsci elabora um paralelo e
uma oposição entre duas concepções de cultura. Uma delas, que poderíamos chamar de
conservadora, aborda a cultura como um “saber enciclopédico”, como uma capacidade de
“acumular dados” que faz com que certas pessoas acreditem ser superiores ao resto da
humanidade, estando elas sustentadas pelo que o autor chama de “intelectualismo deletério”.
Evidentemente, Gramsci se opõe a esta concepção, e defende a compreensão do termo cultura
como “algo a mais”, como um processo de auto-domínio e de autoconhecimento que seria a
base de uma consciência crítica unitária, uma “nova cultura”. Em suas próprias palavras,

A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do próprio eu


interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência
superior: é graças a isso que alguém consegue compreender seu próprio
valor histórico, sua própria função na vida, seus próprios direitos e seus
próprios deveres. (GRAMSCI, 2004, p. 58).
45

A esta concepção de cultura, que alguns autores consideram como extremamente


marcada por um viés idealista, Gramsci já acrescenta um importante elemento, que será
mantido em toda sua compreensão acerca deste universo: a cultura não se forma no homem,
enquanto indivíduo ou coletividade, por uma evolução espontânea, por ações e reações
independentes da própria vontade. O homem é uma criação histórica e só como tal pode
adquirir a mencionada consciência crítica, que é a base de sua cultura. Através deste
conhecimento crítico de si mesmo e dos outros, o homem historicamente se eleva, se
transforma em um “elemento de ordem”, se diferencia daqueles que o precederam e pode,
portanto, propor teleologicamente as ações revolucionárias que tenha necessidade de fazer.
Neste sentido, se compreende a afirmação gramsciana de que toda revolução precisa ser
precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de penetração cultural.
No desenvolvimento desta noção, Gramsci já deixa transparecer também aquela
estreita ligação, que, ao longo de sua obra, ele diversas vezes reafirmou, entre cultura e
educação. Já demonstrando uma acentuada preocupação com o elemento classista na
dimensão de absorção cultural, Gramsci, em Homens ou Máquinas?, de 24 de dezembro de
1916, critica os socialistas na Itália por defenderem um princípio genérico da necessidade da
cultura, mas não se comprometerem com um programa escolar específico, que se diferencie
dos outros.
Para ele, o modo como o sistema educacional é organizado favorece “os filhos da
burguesia” e faz com que a escola e, conseqüentemente, a cultura se transformem em
privilégios, relegando o proletariado a perpetuar sua condição de classe, freqüentando as
escolas técnicas e profissionais. Para que um projeto societário alternativo possa se construir e
desenvolver na sociedade italiana, proposta e expectativa dos socialistas, Gramsci afirma que
o proletariado precisa de uma “escola desinteressada”, humanista, uma escola de liberdade e
de livre iniciativa, onde se possa adquirir critérios gerais que sirvam para o desenvolvimento
daquela consciência crítica unitária por ele defendida. Gramsci, inclusive, se envolve
pessoalmente com esta proposta de uma nova orientação educacional direcionada para o
proletariado, participando de experiências como a educação de adultos no movimento
socialista e fazendo conferências para círculos culturais de trabalhadores.
Podemos assim afirmar que, neste primeiro momento de sua produção, Gramsci já
levanta importantes elementos a serem considerados em sua discussão sobre cultura. É função
do projeto socialista arrancar o privilégio de acesso de uma classe à cultura, é preciso
capacitar criticamente o proletariado, com vistas a prepará-lo culturalmente para realizar as
grandes transformações necessárias em uma sociedade. É preciso que ele possa, através de sua
46

formação cultural, superar e abandonar uma compreensão fragmentada e imediata da


realidade social em que está inserido e alcançar uma dimensão coletiva, unitária e
revolucionária. Acreditamos que aqui está o embrião do que Gramsci, mais tarde, chamará da
passagem do momento econômico-corporativo da classe trabalhadora para o momento ético-
político. Uma transformação cultural, portanto, estaria na base desta passagem.
Estas primeiras formulações gramscianas ganharam contornos bem mais definidos a
partir de 1917, quando Gramsci intensifica suas atividades como jornalista e sua militância no
PSI. Ao mesmo tempo, uma maior aproximação com as discussões da tradição marxista,
sobretudo a partir de Lênin, e com a experiência da Revolução Russa fazem com que Gramsci
acrescente à sua produção, inclusive acerca da esfera cultural, novas e decisivas
determinações sócio-históricas.
Assim, o biênio 1917-1918 representa um momento de importantes definições em toda
a produção gramsciana. Diretamente envolvido com órgãos de divulgação e propaganda
socialista (La Città Futura, em fevereiro de 1917, Il Grido del Popolo, em setembro de 1917 e
Avanti!, em outubro de 1918), Gramsci aponta, com uma clareza cada vez maior, para o
caráter de classe da cultura, ou seja, para os elementos de composição de uma autêntica
cultura proletária e para as relações que deveria estabelecer com a cultura burguesa, buscando
compreendê-la e, conseqüentemente, ter condições de superá-la através da ação política da
classe trabalhadora.
Na expectativa de levar adiante esta proposta de construção de uma cultura proletária,
Gramsci assume um grande debate no interior do PSI. Em oposição aos reformistas e aos
maximalistas, este autor, juntamente com outros membros da juventude socialista, aposta na
necessidade de que o Partido assuma a defesa desta “cultura para o proletariado”, ou seja, na
necessidade de se eliminar, no interior do partido, aquela concepção cultural como um saber
enciclopédico e de se construir outra, capaz de preparar e de capacitar o proletariado para um
real processo revolucionário. Para Gramsci, o PSI em Turim era formado por uma militância
forte, mas essencialmente desorganizada e teoricamente despreparada para uma direção
política concreta. Além disso, esta militância estaria submetida a uma liderança formada por
intelectuais que, na relação com a base, monopolizava a teoria enquanto conhecimento crítico.
Para Bordiga, por exemplo, o que impulsionaria o proletariado a optar pela luta rumo ao
socialismo seriam suas reais condições e necessidades de classe, vivenciadas em seu
cotidiano, e não a maior ou menor consciência crítica que tivesse sobre estas condições.
A seleção de alguns textos escritos no período de 1917 e 1918 demonstra esta
preocupação de Gramsci em orientar o debate em torno do universo cultural no interior do
47

PSI, buscando consolidar a idéia de que uma renovação ideológica e cultural se fazia urgente
no movimento socialista italiano, e de que a ação no âmbito do domínio político e econômico
deveria ser acompanhada pelo trabalho do organismo de atividade cultural. Observe-se que,
desde já, Gramsci associa à cultura a capacidade historicamente construída de reflexão, de
crítica, de superação, por uma atividade consciente, das perspectivas de alienação e de
despolitização. A cultura já se apresenta como uma condição essencial para a emancipação
humana, proposta pela perspectiva socialista.
No único número de “La città futura”, em 11 de fevereiro de 1917, Gramsci, ao se
voltar para o problema do grande número de analfabetos na Itália, coloca a questão da cultura
e do acesso a ela, como o elemento capaz de elevar o indivíduo, preso a um pequeno círculo
de interesses imediatos, à condição de cidadão, aberto a um mundo mais amplo de novas
expectativas e de novos projetos societários alternativos ao capitalismo. Para ele, esta é uma
tarefa socialista: acabar com o analfabetismo e transformar os italianos, através do acesso à
cultura, em cidadãos ativos. A “cidade futura”, enquanto projeto socialista de Gramsci, só irá
se concretizar a partir da “obra inteligente” destes cidadãos, ou seja, das pessoas que, através
do acesso à cultura, conseguem superar a indiferença e a passividade. É neste sentido que
Gramsci propõe a “disciplina socialista”, autônoma e espontânea, construída a partir de uma
rigorosa coerência, alcançada a partir de todo o trabalho cultural proposto pelos socialistas no
sentido de “apressar o futuro”.
Em “Notas sobre a Revolução Russa”, de 29 de abril de 1917, Gramsci deixa clara
esta potencialidade revolucionária do trabalho cultural a ser desenvolvido pelos socialistas.
Ao questionar o caráter proletário da Revolução Russa6, nosso autor propõe que é necessário
que o fato revolucionário se revele, além de um fenômeno de poder, também como um
fenômeno de costumes. Assim, para que uma revolução, nestes termos, se efetive, para que
desemboque realmente na possibilidade de construção de um projeto socialista, é necessário
que novos costumes sejam criados, instaurando assim uma nova consciência moral. Neste
mesmo sentido, em “O Relojoeiro”, de 18 de agosto de 1917, Gramsci nos fala da
necessidade de uma série de “substituições revolucionárias”, onde, acredita ele, a primeira
seria aquela em que a inércia mental dá lugar a uma “vida de pensamento”, a um exercício de
reflexão e crítica que, paralelamente a ações no âmbito sócio-econômico e político,
possibilitariam a criação de uma nova ordem.

6
Gramsci se refere aqui ao primeiro momento da Revolução Russa, em fevereiro de 1917.
48

Este momento nos permite observar uma primeira ampliação na perspectiva de


Gramsci sobre a cultura. Já existe aqui uma relação clara entre uma capacidade crítica e
reflexiva, alcançada pela educação e pela militância política, e um “modo de vida” mais
amplo, um conjunto de valores, de costumes, de práticas que compõem um ponto de
convergência para pessoas e grupos diferenciados. Observe-se que aqui, para Gramsci, o
elemento de identidade é a situação de classe e, mais precisamente, as condições em que esta
classe vive, trabalha, se organiza e, ao mesmo tempo, pensa e problematiza sua vida em
sociedade. A “base material”, a “vida social” determina a cultura desta classe (enquanto
capacidade de crítica e de reflexão) e a faz projetar outro projeto societário, outro “modo de
vida”, outra cultura em seu sentido mais amplo.
Nestas reflexões, Gramsci já questiona a atuação das lideranças do PSI, que vinham se
mostrando incapazes de superar “pregações abstratas” à base do partido. Para ele, a vida
política e econômica na Itália estaria conduzindo o PSI para um campo reformista e
favorecendo um distanciamento entre o proletariado e suas lideranças socialistas,
enfraquecendo as bases daquela cultura socialista a ser ainda construída. Na perspectiva de
Gramsci (2004, p. 111):

Os socialistas não são os oficiais do exército proletário; são uma parte do


próprio proletariado, talvez sejam sua consciência. Mas, assim como a
consciência não pode ser separada do indivíduo, tampouco os socialistas
podem ser separados do proletariado. Formam com ele uma unidade, sempre
uma unidade, e não comandam, mas vivem com o proletariado (...). Vivem
no proletariado, e sua força está na força do proletariado, o seu poder reside
nesta perfeita aderência.

Desta forma, podemos afirmar que, após 1917, Gramsci intensifica seu debate em
torno da questão cultural, passando a denunciar uma liderança partidária que monopolizava o
conhecimento crítico e a cultura, comprometendo, assim, a luta social do conjunto da classe
trabalhadora. Na concepção de Gramsci, então, era preciso favorecer, no interior do partido,
um processo de educação em massa, para que se formasse uma base militante culturalmente
preparada e capaz de, coletivamente, elaborar estratégias e encaminhar deliberações por si
mesma.
Esta discussão já aponta para as questões que Gramsci irá aprofundar nos Cadernos
acerca do “novo tipo de intelectual” e do partido político como o grande “intelectual coletivo”
da classe trabalhadora. Está minimamente colocada, desde então, a necessidade de se eliminar
a perspectiva de exclusividade, de uma camada burocrática teórica e culturalmente preparada,
49

propondo uma formação ampla a todo o conjunto da classe trabalhadora, preparando-a para a
atividade deliberativa e revolucionária. Como se pode perceber, a defesa gramsciana de um
intelectual que “educa e organiza”, impulsionando a base para uma ação política consciente e
unitária já se apresenta nestes primeiros elementos de crítica ao PSI.
Gramsci demonstra constante preocupação com o caráter coletivo desta formação
crítica. Em “Intransigência, tolerância, intolerância, transigência”, de 8 de dezembro de
1917, o autor pondera que as deliberações tomadas coletivamente devem ter como base a
razão, devem ser resultado de um amplo, e tolerante, processo de debate, de discussões, onde
a síntese seja uma verdade global e integral porque resultado de um processo coletivo de
avanço cultural. Decisões e deliberações assim tomadas, coletivamente, justificam, para
Gramsci, ações intransigentes.
Outro elemento que podemos particularizar da concepção gramsciana sobre cultura
neste período pós-1917 é que a ênfase em um caráter de classe se torna cada vez mais
marcante, bem como a idéia de uma “cultura proletária”, que, em alguns momentos, Gramsci
também chama de “cultura popular”. Em “Para uma associação de cultura”, de 18 de
dezembro de 1917, Gramsci defende que tal associação, promovida pelos socialistas, deve ter
finalidade e limites de classe. Em Turim, o proletariado vivenciaria um elevado grau de
organização e desenvolvimento, entretanto, nem todos os que participam do movimento em
prol do socialismo assimilam o conjunto de questões que os envolvem da mesma forma. Por
isso, uma associação de cultura teria esta finalidade, de ampliar, ao proletariado enquanto
classe, esta preparação cultural, de discutir os problemas da construção do socialismo,
esclarecendo-o, propagando-o e fazendo dele a cultura a ser defendida pela classe
trabalhadora. Só assim os socialistas poderiam questionar, em igualdade de condições, a
mentalidade dogmática e intolerante dos setores populares na Itália, bastante influenciados
por uma formação católica, jesuítica e burguesa. Tal associação, ao construir as bases de uma
cultura proletária e socialista, instituiria, no interior da classe trabalhadora, novos costumes e
valores, mais livres, despreconceituosos e, portanto, revolucionários.
Ter vivenciado todo o desenvolvimento do processo revolucionário na Rússia
certamente favoreceu esta abordagem classista na concepção gramsciana de cultura e
impulsionou uma virada na abordagem “tendencialmente crociana” dos primeiros escritos de
Gramsci. Se, em 1916, existia uma vaga e questionável noção de como a mudança histórica
necessária seria culturalmente preparada (FORGACS & NOWELL-SMITH, 1999), a partir do
final de 1917, o contato mais próximo com o marxismo e com o trabalho político-prático traz
para Gramsci uma maior fundamentação para se incluir a luta ideo-cultural como uma frente
50

necessária e imprescindível para a conquista do poder em torno de um novo projeto societário.


Em “A revolução contra O Capital”, de 24 de dezembro de 1917, o autor exalta o fato de
que, na Rússia, o proletariado tenha sido capaz de “apressar o futuro” e de desenvolver uma
vontade social, crítica e coletiva, instaurando assim as bases de um socialismo que tenha
condições sócio-históricas de se desenvolver plenamente.
Acreditando que, naquele país, “os fatos superaram as ideologias”, Gramsci defende
que os bolcheviques absorveram a proposta marxiana como um elemento cultural vivo e
dinâmico, e não como uma “doutrina de afirmações dogmáticas e indiscutíveis”. Ao
reconhecer esta dimensão cultural na Revolução Russa, Gramsci reconhece o marxismo como
uma forma de pensamento que

(...) põe sempre como o máximo fator da história não os fatos econômicos,
brutos, mas o homem, a sociedade dos homens, dos homens que se
aproximam uns dos outros, entendem-se entre si, desenvolvem através destes
contatos (civilização) uma vontade social, coletiva, e compreendem os fatos
econômicos, e os julgam, e os adequam à sua vontade, até que essa vontade
se torne o motor da economia, a plasmadora da realidade objetiva, a qual
vive, e se move, e adquire o caráter de matéria telúrica em ebulição, que
pode ser dirigida para onde a vontade quiser, do modo como a vontade
quiser. (GRAMSCI, 2004, p. 127)

Assim, em “Filosofia, boa vontade e organização”, de 24 de dezembro de 1917, o


próprio Gramsci descreve sua concepção de cultura neste momento:

Dou à cultura este significado: exercício de pensamento, aquisição de idéias


gerais, hábito de conectar causas e efeitos. Para mim, todos já são cultos
porque todos pensam, todos relacionam causas e efeitos. Mas o são
empiricamente, primordialmente cultos, não organicamente.
Conseqüentemente, hesitam, desorganizam-se tornam-se violentos,
intolerantes, briguentos, de acordo com a ocasião e as circunstâncias. Vou
me fazer mais claro: tenho uma idéia socrática de cultura, acredito que ela
significa pensar bem, em qualquer coisa que se pense, e conseqüentemente,
agir bem, em qualquer coisa que se faça. (apud FORGACS & NOWELL-
SMITH, 1999, p. 57, tradução nossa)

Por isso, Gramsci afirma que a cultura é um conceito básico para o socialismo, que
deve ser organizada, como qualquer outro elemento, a partir da perspectiva socialista. Deve
possuir sua própria institucionalidade, através de associações de cultura que, ligadas ao
movimento socialista enquanto um projeto de totalidade, constituam em si uma necessidade
mais ampla para um projeto alternativo. Cultura se faz, assim, através do processo em que se
discutem e se investigam os problemas, onde se permite a participação e a contribuição de
51

todos, onde uma alternativa societária é gestada e assumida como projeto de uma
coletividade. Em torno desta idéia mais ampla de cultura, Gramsci particulariza algumas
questões, que nos interessarão particularmente no trato do objeto deste trabalho.
Em alguns textos do início de 1918 (“A crítica crítica”, “A Liga das Nações” e
“Individualismo e coletivismo”), percebemos uma primeira preocupação de Gramsci com a
questão nacional e o nacionalismo. Gramsci faz, nesta oportunidade, uma crítica às primeiras
formulações do movimento socialista italiano, as quais negligenciaram o estudo, o debate e a
solução dos grandes problemas nacionais que, segundo ele, interessavam a todo o proletariado
italiano. Posteriormente, Gramsci se preocupa em discutir e compreender o capitalismo como
um sistema de bases e leis internacionais e supranacionais, como o mercado externo e a livre
concorrência, mas que só conseguiu se construir como tal porque se desenvolveu, de forma
mais ou menos intensa, conforme as particularidades naturais e históricas oferecidas por cada
país. Na verdade, teríamos aqui o embrião de algo que posteriormente será central na obra
mais madura de Gramsci: a concepção de nacional-popular, ou, em outras palavras, a
necessidade de compreensão, por parte do proletariado, das questões específicas do
desenvolvimento capitalista em cada nação e da orientação que este fato acaba dando às
diferentes experiências do movimento socialista.
Neste debate em torno de uma “questão nacional” se coloca para Gramsci, por
exemplo, a questão de uma língua nacional que, enquanto construção histórica, está
diretamente vinculada à complexidade das atividades sociais das pessoas que a falam. Por
isso, pondera Gramsci, não é possível criar uma língua universal, como era a proposta do
Esperanto, no início do século XX, nem mesmo uma língua nacional que seja fixa no tempo e
no espaço. Novas correntes e novos usos da língua são introduzidos pela dinâmica das
relações sociais entre as diferentes classes, que surgem na história de forma politicamente
organizada e fazem com que

(...) novas curiosidades morais e intelectuais provocam o espírito e o


obrigam a se renovar, a se aperfeiçoar, a mudar as formas lingüísticas de
expressão, tirando-as de línguas estrangeiras, revivendo formas mortas e
mudando significados e funções gramaticais. (GRAMSCI apud FORGACS
& NOWELL-SMITH, 1999, p. 66, tradução nossa)

A partir destas ideias, Gramsci estará preocupado em desenvolver, com maior clareza,
os elementos que, segundo ele, deveriam caracterizar uma “cultura socialista”. Para ele, o
princípio orientador da ação do proletariado deveria ser a organização que, substituindo
diretamente o individualismo, deveria garantir à cultura proletária o “sentido de
52

responsabilidade, o espírito de iniciativa e o respeito pelos outros”. Assim, uma associação da


cultura vinculada ao movimento socialista deveria “educar para o desinteresse, para a
iniciativa do „indivíduo coletivo‟, sem objetivos imediatos de lucro pessoal” (2004, p. 125).
Em “Cultura e luta de classes”, de 25 de maio de 1918, Gramsci enfatiza que esta
preocupação com uma “nova cultura”, de bases socialistas, não é uma mera questão retórica,
mas uma necessidade urgente. Segundo ele, Turim constituiu-se como uma cidade moderna,
que conta com um movimento socialista complexo, mas com sérias carências culturais e
intelectuais. A classe operária, crescente, absorvia gradativamente novos indivíduos que, no
entanto, não compreendiam plenamente a luta de classes e a conseqüente exploração à qual
estavam submetidos. Neste sentido, Gramsci reafirmava a urgência do trabalho e da
organização cultural e propunha que, nos espaços onde a atividade intelectual (de escritores e
propagandistas) fosse de difícil acesso, o proletariado deveria promover uma educação mútua
acerca dos princípios da crítica socialista.
É com esta orientação, de uma educação e de uma cultura que se constroem na
coletividade, que Gramsci afirma, em “Livre pensamento e pensamento livre”, de 15 de junho
de 1918, que os socialistas querem o “pensamento livre”, ou seja, condicionado pelas
condições históricas, mas, ao mesmo tempo, livre de convenções, estreitezas e preconceitos.
Este pensamento seria, portanto, resultado de uma cultura mais sólida, ampla e crítica, onde a
verdade não deveria ser apresentada de forma dogmática e absoluta, mas seria oriunda de um
processo marcado por uma ampla tolerância nas discussões e nas polêmicas e enriquecido
pela possibilidade de divergências e, até mesmo, de contradições.
O socialismo se apresenta, então, neste momento da produção gramsciana, como um
projeto societário a ser construído não só pela organização política e econômica, mas também
por uma intensa atividade cultural, capaz de revolucionar também o saber e a vontade,
aprofundando uma consciência de liberdade e de ação. Nesta ampla atividade cultural,
Gramsci inclui elementos como a escola e o programa educacional, que devem ter a tarefa de
educar e de construir novas gerações para a vida social no socialismo e em sua perspectiva
democrática. Inclui também a arte, principalmente a literatura e o teatro, que devem
apresentar-se como instâncias de reflexão e de debate, de reconhecimento e de propostas,
onde as classes trabalhadoras possam exercitar sua função de classe fundamental na
sociedade. Mais uma vez, como podemos perceber, Gramsci amplia sua concepção em torno
deste termo, incluindo agora elementos de manifestação e de expressão cultural, tais como as
artes e a produção intelectual.
53

Além do contato e da exaltação da experiência soviética, que, segundo Gramsci, criou


condições de uma nova cultura e de uma nova organização, uma aproximação mais radical
com o marxismo, sobretudo com a produção de Lênin, está na base desta ampliação da noção
gramsciana de cultura. Em “O nosso Marx”, de 5 de maio de 1818, nosso autor identifica que

Com Marx, a história continua a ser domínio das ideias, do espírito, da


atividade consciente dos indivíduos isolados ou associados. Mas as ideias, o
espírito, ganham substância, perdem sua arbitrariedade, não são mais
fictícias abstrações religiosas ou sociológicas. A substância está na
economia, na atividade prática, nos sistemas e nas relações de produção e
troca. (GRAMSCI, 2004, p. 162).

O denominado “Biênio Vermelho” (1919-1920), na Itália, trouxe novas e significantes


inquietações para a produção gramsciana, a qual inova não só no que se refere à ação política
do proletariado, mas também com relação às suas formulações sobre cultura. Um período de
grande efervescência militante estava se apresentando para Gramsci naquele momento e o
desafia a novas formulações teóricas e posições práticas.
Já no início de 1919, juntamente com Ângelo Tasca, Palmiro Togliatti e Umberto
Terracini, Gramsci dá continuidade ao seu projeto de fortalecer os organismos de difusão da
cultura socialista. O grupo resolve criar uma “resenha semanal de cultura socialista”,
intitulada L’Ordine Nuovo, que será a partir de maio deste ano, o principal órgão de
elaboração teórica das ideias de Gramsci e do seu grupo, principalmente no que se refere à
atuação dos Conselhos de Fábrica, à crise interna do PSI e, posteriormente, já em 1921, às
formulações do recém criado Partido Comunista da Itália (PCI).
Ainda bastante envolvido pelos acontecimentos na URSS e procurando acompanhar a
passagem de um momento revolucionário para a construção de uma sociedade socialista,
Gramsci se volta, em suas formulações, para especificar os mecanismos de construção da
revolução proletária e para buscar, na realidade italiana, os caminhos para que ela
efetivamente se colocasse como desafio para a classe trabalhadora.
Para Gramsci, a especificidade da revolução proletária, o que faz dela “a maior das
revoluções”, é sua proposta de instaurar uma nova ordem e uma nova disciplina e não apenas
de corrigir a forma da propriedade privada ou da figura do Estado. Em sua opinião, os
bolcheviques souberam dar uma nova organicidade ao povo russo, desagregado e
desorganizado, em torno de outra vontade coletiva, capaz de romper com a cultura atrasada e
dominante, vigentes até a Revolução, e de desenvolver e enriquecer outra cultura, construída
em relação direta com a inserção diferenciada da classe trabalhadora no mundo da produção.
54

Esta “outra cultura”, revolucionária, deveria se expressar a partir da instauração de um


novo Estado, proletário, capaz de garantir a permanência e o êxito de toda atividade social
levada adiante pelos bolcheviques. Neste sentido, Gramsci exalta a figura dos “soviets”,
entendidos por ele como uma forma constitutiva da nova sociedade organizada, como o
espaço capaz de substituir a burguesia em todas as suas funções essenciais de administração e
de controle da produção. Os soviets teriam, também, uma dimensão cultural, viabilizada pela
realização de uma obra de propaganda, de esclarecimento e de educação entre o proletariado,
acerca dos princípios revolucionários a serem fortalecidos.
Em “Questões de Cultura”, de 14 de junho de 1920, Gramsci procura resumir estas
ideias. Afirma que a revolução proletária pressupõe um novo conjunto de normas, novas
maneiras de sentir, pensar e viver que, construídas a partir do modo de vida das classes
trabalhadoras, deverão se tornar dominantes em uma sociedade pós-revolucionária. Assim,
paralelamente à questão de conquistar o poder econômico e político, o proletariado deve se
colocar também o problema de conquistar o poder intelectual, organizando-se culturalmente
para a produção de novos valores, de uma nova “concepção de mundo”. Neste sentido,
Gramsci invoca os Proletkult, organizações culturais da URSS, como exemplo de organização
cultural autônoma da classe trabalhadora.

Para Gramsci, a noção de “cultura proletária” está relacionada a sua defesa


de uma moral proletária historicamente superior, baseada no trabalho
produtivo, na colaboração e nas relações pessoais responsáveis, assim como
em sua crença em um novo tipo de sistema educacional na qual a divisão
entre trabalho manual e intelectual esteja superada (FORGACS &
NOWELL-SMITH, 1999, p. 47, tradução nossa).

Bastante influenciado por esta experiência na URSS, Gramsci procurou identificar, na


sociedade italiana, as organizações que pudessem ter esta mesma função dos soviets, ou seja,
conter potencialmente o Estado socialista, organizar culturalmente e dar poder ao proletariado
na construção das bases de uma nova sociedade. Assim, ele atribui às comissões internas o
papel de um “embrião dos soviets”7.

A idéia central de Gramsci era que todos os operários, todos os empregados,


todos os técnicos e mais tarde todos os camponeses e logo todos os
elementos ativos da sociedade deveriam tornar-se, fossem ou não inscritos
no sindicato e independente do partido a que pertencessem, e mesmo que
não militassem em um partido, mas apenas, pelo fato de serem operários,
camponeses, etc., de simples executores a dirigentes do processo produtivo,

7
GOODE (In BOTTOMORE, 2001: 78) afirma que esta concepção gramsciana beirava o “utopismo”.
55

de peças a um mecanismo regulado pelo capitalista a sujeitos; em essência,


que os órgãos democraticamente eleitos pelos trabalhadores (os Conselhos
de fábrica, de fazenda, de bairro) fossem investidos debaixo do poder
tradicionalmente exercido na fábrica e no campo pela classe proprietária e
nas administrações públicas pelo delegado do capitalista. (FIORI, G. 1979,
p. 150).

Em “Democracia operária”, de 21 de junho de 1919, artigo que o próprio autor


definiu posteriormente como “um golpe de Estado redacional”, estão colocadas as bases desta
assimilação gramsciana entre os soviets e os conselhos de fábrica, que, em sua opinião, já
contém potencialmente o Estado socialista. Tais instituições estariam, entretanto, dispersas e
desordenadas, e existiria a necessidade de dar-lhes organicidade e coerência, potencializando-
as como os órgãos do poder proletário que substituiria o capitalista na direção e na
administração das fábricas. Por isso, ele propõe uma organização de toda a classe trabalhadora
nos conselhos (de fábrica, de bairro), numa perspectiva de experimentação política e
administrativa e de preparação para o exercício do poder. Para Gramsci, a ação dos Conselhos
é mais ampla e mais efetiva do que a dos sindicatos, pois estes últimos trabalhariam nos
limites do período histórico dominado pelo capital, enquanto os primeiros teriam como
orientação justamente a superação desta sociedade. A natureza do sindicato é, segundo
Gramsci, concorrencial, e não comunista, e a razão de ser dos Conselhos está no trabalho e na
produção, e não mais no salário.
Gramsci acredita que os conselhos constituíam o momento de instauração de um novo
Estado, tipicamente proletário. Tem-se notícia de que, em setembro de 1919, os operários da
Fiat-Brevetti elegeram os comissários de seção e nasceu, então, o primeiro Conselho de
Fábrica. O movimento se tornou crescente na Itália, somando-se a experiências de conselhos
em outros países, e Gramsci ficará, durante o biênio 1919-1920, bastante envolvido com a
função de garantir uma fundamentação teórica e cultural aos Conselhos e de convencer os
membros do PSI de que o partido deveria assumir definitivamente esta lógica conselhista.
Para este autor, o PSI deveria ter como meta a unidade da classe operária em um único
comitê, capaz de agregar instituições urbanas, com trabalhadores de todas as atividades da
vida moderna, chegando a unidades cada vez mais amplas, que incluíssem também os
camponeses. Gramsci pensa, assim, em uma grande frente de organização política e
econômica da classe trabalhadora, que deveria basear suas ações na realidade do trabalho, da
produção, conciliando exigências do momento atual com as expectativas e perspectivas do
futuro.
56

A aproximação de Gramsci com esta discussão acerca dos conselhos o teria afastado
da temática específica da cultura? Poderíamos certamente afirmar que não. Muito pelo
contrário, Gramsci parece ter somado a esta discussão outras importantes determinações. Se
antes poderíamos afirmar que o binômio educação/ formação política resume bem a primeira
concepção gramsciana de cultura, agora o autor parece somar outros elementos, quais sejam, a
organização e a militância. Para ele, os Conselhos de Fábrica teriam também uma importante
função cultural, entendida como a de materializar, de tornar real, num primeiro momento,
aquela que ele mesmo denominou de uma “cultura socialista”. Nos Conselhos, o proletariado
teria a oportunidade de exercitar esta cultura, através da resistência à herança do capitalismo e
da afirmação de princípios e valores orientadores de uma prática socialista: o autogoverno, a
lealdade e a disciplina, a participação ativa e permanente, o sentimento rigoroso de
responsabilidade, o coletivismo e a experiência associativa, a solidariedade operária como
algo positivo e permanente. Os Conselhos seriam, assim, um órgão de educação recíproca e
de desenvolvimento de um novo espírito social, de uma nova cultura, enfim, capaz de garantir
uma unificação orgânica de toda a classe trabalhadora.
Gramsci reconhece, então, que, numa perspectiva radicalmente marxista, as mudanças
operadas pelos Conselhos na esfera da produção são determinantes na configuração desta
nova cultura.

E estas condições objetivas [de produção] se modificam, modifica-se


também a soma das relações que regulam e informam a sociedade humana,
altera-se o grau de consciência dos homens, a configuração social se
transforma, as instituições tradicionais se debilitam, deixam de cumprir suas
funções, tornando-se gravosas e destrutivas. (GRAMSCI, 2004, p. 260).

Neste sentido, a conquista do Estado proletário constitui, segundo Gramsci, um


processo de desenvolvimento que pressupõe um trabalho preparatório de organização e de
propaganda que, neste caso, é desenvolvido e construído também culturalmente, através da
participação do proletariado na lógica dos conselhos.
Como já ponderamos, Gramsci estava, desde 1917, bastante preocupado com o caráter
reformista que vinha ganhando força no interior do socialismo italiano. Segundo suas
análises, elaboradas ao longo de todo o ano de 1920, o crescimento repentino vivenciado pelo
Partido o havia desvitalizado, ao invés de fortalecê-lo, e isso em decorrência da perda de
contato da direção com as massas em movimento, levando o partido a uma crise de marasmo
e de letargia.
57

Existia, no interior do PSI, uma forte resistência à proposta dos Conselhos. Para
Bordiga, por exemplo, era um equívoco acreditar que o proletariado poderia ganhar terreno e
emancipar-se no plano das relações econômicas enquanto o capitalismo ainda detinha a figura
do Estado e o poder político. Para Serrati, por outro lado, havia na elaboração de Gramsci,
uma confusão entre os soviets, que já atuavam no contexto de uma revolução vitoriosa, e os
conselhos, que trabalhavam no âmbito da ordenação industrial na sociedade capitalista.
Apesar da proposta de Gramsci obter minimamente um consenso, esta resistência do PSI
ficou evidente por ocasião da Greve de Abril8, em 1920, quando os industriais reagiram ao
movimento dos conselhos, crescente na Itália, e a classe trabalhadora não recebeu o apoio
esperado de seus dirigentes partidários e sindicais. Assim avalia Gramsci esta derrota

(...) é certo que a classe operária de Turim foi derrotada porque não existem,
porque ainda não amadureceram na Itália as condições necessárias e
suficientes para um movimento orgânico e disciplinado do conjunto da
classe operária e camponesa. Um indício desta imaturidade, dessa
insuficiência do povo trabalhador italiano é, sem dúvida, a “superstição” e a
mentalidade estreita dos responsáveis do movimento organizado do povo
trabalhador italiano (GRAMSCI, 2004, p. 346).

Gramsci conclui então que, embora o partido político e os sindicatos sejam co-
responsáveis pelos atos de libertação da classe trabalhadora no desenvolver revolucionário, na
Itália estes instrumentos não encarnaram este processo e, conseqüentemente, não superaram o
Estado burguês. A classe operária na Itália teria, então, adquirido consciência da necessidade
de uma unidade orgânica e da volta do poder industrial à fábrica sob a forma do Estado
operário no sistema dos conselhos. No entanto, faltava-lhe organização e direção. Faltava, e
isso ficou evidente após a Greve de abril, a capacidade organizativa de fazer da revolução um
ato contínuo, de reconstrução a partir de um sentido comunista, de introduzir uma nova ordem
e construir um novo Estado.
O PSI teria falhado, então, exatamente em sua função cultural de educar, formar
politicamente e capacitar as massas a se organizarem em classe dirigente e dominante. A
classe operária deveria estar preparada para uma gestão social diferente, com “a cultura e a
psicologia de uma classe dominante” capaz de debater e de se educar reciprocamente. Neste
sentido, então, o PSI não tinha contribuído na construção de uma verdadeira “cultura

8
A “Greve de abril” foi um movimento de greve geral, em abril de 1920, que chegou a reunir mais de
200 mil trabalhadores em Turim, Esgotou-se num prazo de dez dias, com a vitória substancial dos
patrões.
58

socialista”, estando tomado por uma retórica vazia e impotente no aspecto político, com uma
atuação meramente parlamentar.
Por isso, torna-se urgente para Gramsci, a partir deste momento, uma renovação do
Partido Socialista. Era preciso abandonar a atuação meramente parlamentar e os estreitos
limites da democracia burguesa, atuando diretamente no cotidiano das lutas empreendidas, no
caso, pelo sistema dos conselhos. Era preciso desenvolver um trabalho intensivo de educação
política das massas no sentido de uma orientação comunista, afastando o risco do reformismo
que pairava sobre todo o movimento socialista naquele momento.
É neste sentido de um reencontro do movimento socialista italiano com as questões
concretas da vida da classe trabalhadora, com vistas à criação de uma nova cultura que
Gramsci propõe a renovação do PSI na direção de um partido revolucionário, homogêneo e
coeso, com doutrina, tática e disciplina rígidas e com um importante trabalho de educação de
“consciências revolucionárias”. No entanto, esta posição de Gramsci começava a perder força
dentro do PSI. Havia uma crise interna no partido e se configurava com mais clareza uma
irreconciabilidade entre suas várias tendências. Começavam a se formar, com mais
organicidade, grupos comunistas no interior do partido, que, funcionando com mais
vitalidade, assumiam, em algumas fábricas, o governo de classes. Gramsci acreditava que a
tendência era que estes grupos iriam se expandir no interior do partido até conquistarem sua
direção, transformando sua figura histórica e eliminando, de vez, seus restos reformistas.
Este debate no interior do PSI tornou-se mais intenso após o movimento que, em
agosto e setembro de 1920, ficou conhecido como a “ocupação das fábricas”, com todos os
poderes sendo assumidos pelos Conselhos nas fábricas de Turim. Os trabalhadores assumem a
produção nos locais de trabalho, sendo disciplinados pelos Conselhos. Tal movimento, que
durou apenas 30 dias, aproximadamente, foi reconhecido, inclusive internacionalmente, como
uma “verdadeira revolução”, como uma primeira experiência de poder da classe trabalhadora
na Itália.
Gramsci, que participou ativamente do movimento de ocupação das fábricas, estava
também bastante envolvido com a preocupação de fazer avançar, no interior do partido, a
cultura e os grupos comunistas, fazendo-os conquistar a direção do PSI e de todo o
movimento da classe trabalhadora italiana naquele momento. No entanto, a ocupação das
fábricas não se expande como um grande movimento nacional e, ao fracassar em Turim,
recoloca o problema da ação reformista e parlamentar do Partido Socialista, trazendo, com
mais clareza, a intenção de ruptura dos grupos comunistas e de fundação de um novo partido.
59

Além disso, o fracasso do movimento turinense coloca em pauta outra questão, que
será central no debate gramsciano pré-cárcere: a restauração do Estado na Itália pela reação
neoconservadora do fascismo. O primeiro artigo de Gramsci que aponta mais diretamente
para esta questão data do final de 1920. Em “O que é a reação?”, ao fazer uma crítica à
atuação de Giolitti durante o movimento de ocupação das fábricas, Gramsci reconhece que o
capitalismo se torna reacionário quando não consegue mais dominar as forças produtivas.
Neste momento, Gramsci dá maior destaque à intervenção direta e violenta do Estado burguês
reacionário sobre a luta de classes, reprimindo as tentativas e iniciativas da classe
trabalhadora. No momento seguinte, sobretudo nos anos de 1921 e 1922, este autor estará
reconhecendo, no avanço e no fortalecimento do fascismo enquanto um movimento
internacional, o surgimento de um elemento de consenso, de apoio de massas, que demarcará
todo o Estado italiano entre as décadas de 20 e 40.
Compõe-se, assim o novo quadro de questões demarcadas por Gramsci neste período.
Em primeiro lugar, a ruptura com o PSI e a formação do PCI. Em segundo lugar, a reação
capitalista e o fascismo na Itália. Vejamos, portanto, os principais elementos deste debate e
sua contribuição específica para a noção gramsciana de cultura.
A partir da crise interna do PSI e da fundação do PCI, Gramsci reconhecia, neste
último, a necessidade de assumir uma postura de defesa do Estado operário, devendo retomar
o trabalho de orientação e de educação política abandonado pelos socialistas, refundando, em
bases inclusive culturais, a perspectiva revolucionária mais ampla, capaz de ultrapassar a
orientação parlamentar.
Ao pensar e questionar o papel que o recém-criado PCI deveria ter junto à classe
trabalhadora, Gramsci não hesita em atribuir a esta classe a função de “classe nacional”, ou
seja, daquela que deveria arrancar o poder econômico e político e resolver, com base em seus
princípios e em sua cultura, o problema central da vida nacional italiana, unificando
econômica e espiritualmente o povo italiano. Dialeticamente, Gramsci será enfático em
ponderar que tal recuperação da vida nacional italiana pelo projeto da classe trabalhadora só
será possível “nos quadros da revolução mundial” e, por isso, ele defende como
imprescindíveis a disciplina e a fidelidade à experiência soviética. Era necessário, assim, um
poder internacional fortemente centralizado, capaz de, atento às particularidades da vida
nacional, orientar as forças revolucionárias mundiais para o mesmo objetivo. Observamos
que, desde então, nacional e internacional se constituem, no pensamento gramsciano, a partir
de um movimento dialético, onde o primeiro aponta para os problemas e questões específicos
vivenciados pelas classes trabalhadoras em seu cotidiano e o segundo aponta para o espaço de
60

intervenção, para a perspectiva revolucionária mais ampla, sem a qual não se resolvem os
problemas em âmbito nacional. Como teremos a oportunidade de discutir, esta conclusão
gramsciana nos parece absolutamente contemporânea para as discussões que pretendemos
realizar.
Entre as expectativas gramscianas para a atuação do PCI, está a tentativa de se
recuperar a importância dos conselhos de fábrica como o organismo de poder operário sobre
os meios de produção. Segundo Gramsci, é no terreno deste controle que burguesia e
proletariado lutam para conquistar a posição de classe dirigente das grandes massas populares.
Ao assumir esta posição, a classe operária encontra bases concretas para iniciar o trabalho
positivo de organização do novo sistema econômico e social. Esta luta, portanto, é
revolucionária e só será levada adiante quando a classe operária conseguir elevar sua
consciência em torno de sua autonomia e de sua personalidade histórica. Desta forma,
Gramsci expõe, claramente, a relação intrínseca entre cultura e política que, de forma tão
intensa, caracteriza sua produção teórica, sobretudo no período do cárcere.
Neste sentido, o Partido Comunista incorpora, para Gramsci, o instrumento capaz de
congregar as inúmeras lutas particulares da classe operária em uma luta, mais ampla,
iluminada por um grande objetivo final. Assim, através da ação do PCI, Gramsci visualiza
uma maturidade material e moral do proletariado, capacitando-o a assumir concretamente um
novo poder, que não será conquistado e exercido através dos organismos do Estado burguês.

É preciso que os operários, os camponeses, os trabalhadores de todas as


categorias tornem-se dominadores de toda a sociedade, que tenham o poder e
o exerçam através de novas instituições, capazes de dar à sociedade uma
nova forma e uma férrea disciplina de ordem e de trabalho para todos. É
preciso que todas as demais lutas se subordinem àquela que visa à conquista
do poder, à criação do novo Estado, do Estado dos operários e dos
camponeses. (GRAMSCI, 2004, p. 62).

Ao mesmo tempo em que se preocupa com a necessidade de desenvolver e consolidar


as primeiras teses do PCI junto à classe trabalhadora italiana, Gramsci estará neste momento
voltado, também, para elaborar uma crítica aos elementos fascistas que começam a ganhar
força na sociedade italiana. Ele reforça o caráter de classe do fascismo italiano, reconhecendo
nele um elemento de “imaturidade humana na Itália”, onde a luta de classes assume um
caráter extremamente violento e anti-social. O fascismo seria, então, a prova de que não se
teve a experiência de um Estado bem organizado e administrado e de que apenas nas mãos do
proletariado este Estado poderia viver uma fase mais “amadurecida” com uma reorganização
61

da produção e de todas as relações sociais a ela vinculadas. Em oposição aos socialistas,


Gramsci reconhece o risco de um golpe de Estado pelos fascistas e propõe que os comunistas
respondam a ele com a insurreição, com a condução do povo em armas até a criação do
Estado operário.
Fortalecido pelo uso “caótico” da violência privada, por fazer da ilegalidade a “única
coisa legal”, o fascismo se torna gradativamente mais agressivo contra as classes
trabalhadoras e as ações de governos locais socialistas. Gramsci reconhece, desde então, o
fascismo como um movimento em escala internacional que, diante da guerra imperialista que
arruinou as forças produtivas, buscava, através da coerção, solucionar a unidade de crises
nacionais que se construíam.
Gramsci reconhece, também no fascismo, um marcante elemento cultural. Para ele,
esta experiência política revela a decomposição da sociedade italiana, expressa costumes e
tradições que se identificam com a psicologia bárbara e anti-social de alguns estratos do povo
italiano, que sempre deram à luta de classes um caráter extremamente violento. Assim, para o
autor, a luta contra o fascismo é uma luta também cultural, a ser levada adiante pelo
comunismo, garantindo a estes estratos populares a convivência com uma nova tradição, com
uma nova educação, com um Estado, bem organizado e bem administrado, sustentado por
outras relações, princípios e valores.
Assim afirma Gramsci,

(...) o fascismo enquanto fenômeno geral, enquanto flagelo que supera a


vontade e os meios disciplinares de seus líderes, com sua violência, com
seus monstruosos arbítrios, com suas destruições tão sistemáticas quanto
irracionais, só pode ser extirpado por um novo poder de Estado, por um
Estado “restaurado” tal como o entendem os comunistas, ou seja, por um
Estado cujo poder esteja nas mãos do proletariado, a única classe capaz de
reorganizar a produção e, em conseqüência, todas as relações sociais que
dependem das relações de produção. (2004, p. 58)

Desta forma, a produção de Gramsci neste momento estará construída em torno deste
grande enfrentamento, qual seja, entre diferentes projetos que se pretendem dominantes e
dirigentes da classe trabalhadora italiana. Por um lado, o debate com o PSI, do qual os
comunistas haviam se desligado e que aderia, cada vez mais, a uma perspectiva reformista,
enxergando o inimigo não mais na burguesia, mas nos comunistas e na possível concorrência
em torno da conquista da classe trabalhadora. O principal elemento de polarização será a
organização do proletariado em sindicatos ou em conselhos, sendo que Gramsci reafirmará
que os últimos são os grandes parlamentos operários, com a função de transformar as velhas
62

relações organizativas rompendo com o seu burocratismo. Para ele, nos conselhos, triunfam as
teses e os homens da revolução, organicamente formados no Partido Comunista, enquanto no
velho organismo sindical sustentam-se as teses do reformismo, uma vez que não questionam o
controle sobre a produção.
Em “Os partidos e a massa”, de 25 de setembro de 1921, Gramsci reconhece que,
orgânica e culturalmente, o PSI, desde sua formação, era um partido politicamente frágil.
Constituído principalmente por pequeno burgueses e camponeses, não podia deixar de ser
hesitante, carente de um programa claro e preciso, destituído de orientação e de consciência
revolucionária internacionalista. Assim se justificava, portanto, o nascimento do PCI,
reconhecido pelos seus fundadores como a primeira organização autônoma e consciente do
proletariado industrial revolucionário, que não se deixou iludir pela aparência forte e
conciliadora do Estado burguês. Gramsci apostava na necessidade de o PCI realizar um amplo
e efetivo trabalho cultural e político junto ao proletariado para efetivamente fazer dele um
partido das mais amplas massas, o que ainda não havia acontecido devido à grande
desmoralização e abatimento, após o fracasso da ocupação das fábricas.
Já em 1922, Gramsci visualiza que um acordo entre o Partido Socialista, o Partido
Popular e o fascismo, vivendo uma crise originária de sua ação coercitiva e repressiva, estaria
preparando a base de um futuro Estado social-democrata italiano, onde seria mantido, com
novos traços, o tradicional predomínio, no Estado italiano, de uma classe dirigente que tem
interesses opostos aos das classes populares e que quer exercer sobre elas uma dominação de
violência e engano. Este acordo e, principalmente, a participação dos socialistas neste Estado
teria um forte componente ideológico e cultural, uma vez que impediria as massas de tomar
consciência da verdadeira intencionalidade capitalista e burguesa de um Estado social-
democrata. Assim se estrutura a crítica gramsciana à social-democracia, como um caminho de
reconstrução de um organismo que historicamente priva o proletariado da liberdade e do bem-
estar.
Aos comunistas caberia, então, o papel de criticamente afastar as ilusões das massas
populares, realizando um trabalho de reorganização e de desenvolvimento que ia desde a
formação política e cultural, no sentido do questionamento e do enfrentamento de ideias até a
criação de uma força armada proletária capaz de derrotar a burguesia. Para Gramsci, os
comunistas deveriam aproveitar a fragilidade política dos socialistas e dos fascistas, bem
como a crise política vivida pelos fascistas, para divulgar, entre operários e camponeses, uma
consciência crítica da real situação da luta de classes e dos meios adequados para se derrotar a
reação capitalista.
63

Percebemos, então, que, neste biênio (1921-1922), é grande a preocupação de Gramsci


em demonstrar a diferença e a superioridade das propostas comunistas em face das iniciativas
políticas até então levadas adiante pelas realizações históricas do Estado burguês na Itália.
Gramsci está atento também neste período para a relação dialética que virá se estabelecer
entre as particularidades nacionais do desenvolvimento capitalista na Itália e o compromisso
com uma proposta internacionalista do comunismo. Reconhece, assim, que a “democracia”
italiana carece de uma sólida estrutura de classes, uma vez que não há predominância de
nenhuma das duas classes proprietárias, os capitalistas e os latifundiários. Na Itália, segundo
Gramsci, este fato se agrava por uma séria questão territorial, qual seja, a subordinação das
regiões centrais e meridionais do país, habitadas pelas classes rurais, às regiões setentrionais,
onde prevalece o capital industrial e financeiro. Assim, esta “questão meridional” vai gerar,
entre as classes trabalhadoras de ambas as regiões (camponeses no norte e operários no sul)
uma grande dificuldade de atuação conjunta, resultante, muitas vezes, de diferentes padrões
culturais e organizativos. Desta dificuldade se aproveita a burguesia, que faz triunfar o
capitalismo e que tenta criar um sistema de alianças com o proletariado urbano, para que
possa se desenvolver uma democracia parlamentar. Diante deste quadro, os comunistas devem
assumir uma posição precisa, não só atentando e buscando intervir nesta questão meridional,
mas também demonstrando a insuficiência desta democracia parlamentar para a solução da
crise econômica e política italiana.
Esta atenção dos comunistas às particularidades da realidade italiana não pode
acontecer, na perspectiva gramsciana, sem um fiel compromisso com a proposta da revolução
mundial. Gramsci enxerga esta carência na compreensão do operariado italiano acerca da
experiência soviética: ela não se transformou em uma concepção universal, não determinou a
germinação de uma nova cultura operária, baseada nas experiências concretas de luta e de
mobilização. Afirma-se aqui uma das maiores preocupações gramscianas ao longo de toda a
sua militância: a fidelidade dos comunistas à perspectiva internacionalista de revolução. Nas
suas palavras,

(...) a esperança deste proletariado (e de todos os outros proletariados) de que


os conflitos e as crises que hoje dilaceram a sociedade sejam resolvidos, a
esperança de que poderão se salvar da ruína extrema, residem tão somente na
revolução mundial e na solidariedade da Internacional operária elevada à
condição de árbitro das forças produtivas. (2004, p. 52).

Nos anos 1923 e 1924, na liderança do PCI, Gramsci vive um período de experiência
internacional, como representante italiano junto a Terceira Internacional, que irá demarcar
64

questões relevantes em sua posição política e cultural. A primeira preocupação será de


fortalecer o Partido Comunista, recém criado, em torno de uma proposta revolucionária que,
ao mesmo tempo, enfrentasse a consolidação do fascismo na Itália e congregasse forças para a
revolução mundial. Pensando neste duplo desafio, Gramsci propõe várias iniciativas ao PCI,
insistindo na necessidade de uma preparação ideológica e cultural do proletariado em torno
destas causas, principalmente na situação de ilegalidade em que o movimento operário
revolucionário italiano havia sido colocado pelo fascismo. Em suas palavras,

Para que o Partido viva e esteja em contato com as massas, é preciso que
todo membro do Partido seja um elemento político ativo, um dirigente.
Precisamente porque o Partido é fortemente centralizado, deve haver uma
ampla obra de propaganda e de agitação em suas fileiras; é preciso que o
Partido, de modo organizado, eduque seus membros e eleve seu nível
ideológico. Centralização significa, sobretudo, que – em qualquer situação,
mesmo sob um duro estado de sítio, mesmo quando os comitês dirigentes
não puderem funcionar por um determinado período ou não tiverem
condições de se ligar à periferia – todos os membros do Partido, cada qual
em seu ambiente, sejam capazes de se orientar, de saber extrair da realidade
os elementos para estabelecer uma diretriz, a fim de que a classe operária
não se abata, mas sinta que continua sendo dirigida e ainda pode lutar.
Portanto, a preparação ideológica de massa é uma necessidade da luta
revolucionária, uma das condições indispensáveis para a vitória.
(GRAMSCI, 2004, p. 297).

Mais uma vez está presente a percepção gramsciana de que o partido político é o
grande intelectual orgânico, responsável pela condução de uma luta econômica e política que
não pode estar desvinculada da luta ideológica e cultural. Esta perspectiva será desenvolvida
ao longo de todos os Cadernos do Cárcere e, com base nela, Gramsci já começa, pouco antes
de ser preso, seu exercício de crítica aos rumos que o Partido Comunista Russo vinha dando
para o movimento revolucionário internacional, ao assumir uma visão autoritária e
vanguardista do partido, confundindo centralização com obediência e submissão.
Em outras palavras, seus últimos anos de liberdade constituem um momento em que
Gramsci, precocemente, percebe a degeneração da experiência russa. Além da crítica à
condução política do “Estado dos soviets” e às contradições nas novas medidas econômicas
implementadas na URSS, Gramsci manifesta seu descontentamento com o que poderíamos
chamar de “orientação cultural da Revolução Russa”: a unidade e a disciplina tornaram-se
mecânicas, diante de um cenário onde a adesão das massas tornou-se um processo imediato,
não confirmado a cada nova ação política. A unidade do Partido Comunista, na Rússia e em
65

todo o mundo, estaria ameaçada. Afirma GRAMSCI (2004, p. 400), em carta a Palmiro
Togliatti,

A linha leninista consiste em lutar pela unidade do Partido, e não apenas por
uma unidade de fachada, mas por uma íntima unidade, que consiste em não
existir no Partido duas linhas políticas completamente divergentes em todas
as questões. A unidade do partido é condição existencial não só em nossos
países, no que se refere à direção ideológica e política da Internacional, mas
também na Rússia, no que diz respeito à hegemonia do proletariado, ou seja,
ao conteúdo social do Estado.

Sendo assim, parece-nos claro que Gramsci encerra seu momento de militância
política mais direta com questões essenciais para sua produção mais madura, as quais
envolvem uma compreensão da cultura como elemento de crítica e de organização. Este será o
grande legado gramsciano neste período pré-carcerário, para o debate acerca da cultura no
interior da tradição marxista: a certeza de que este elemento é fundamental para o processo de
organização revolucionária, para a instauração de um novo modo de viver, de pensar e de
agir, vinculado ao projeto societário de emancipação da classe trabalhadora.
Todo o universo militante e reflexivo vivenciado por Gramsci neste período
anteriormente traçado será objeto de uma abordagem mais sistematizada a partir de 1929,
quando este pensador recebe autorização para escrever no cárcere de Turi 9. A partir de então,
terá início uma produção mais complexa e “fur ewig” do pensamento gramsciano, o qual será
responsável por uma das mais ricas abordagens acerca da política no interior das Ciências
Sociais contemporâneas. Desde já, vale observarmos que Gramsci vai para a prisão com uma
clara lição de toda sua militância no período anterior: a necessidade de construir uma proposta
contra hegemônica. Sua grande preocupação não é apenas compreender o fracasso do
movimento comunista na Itália, mas contribuir para a retomada deste movimento, para a
capacitação e o fortalecimento das classes trabalhadoras em seu processo de conquista da
hegemonia.
Que significação e que importância terá a cultura neste momento da elaboração
gramsciana? Em primeiro lugar, podemos ponderar que não existe, nesta abordagem, uma
ruptura com os elementos anteriormente trabalhados. No cárcere, Gramsci reafirmou e
aprofundou análises e conclusões acerca da esfera cultural, resituando a batalha de idéias e a
construção de uma nova cultura como passos decisivos para a luta hegemônica e para os
projetos de conquista de poder. Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci será responsável, por
9
Os primeiros elementos de reflexão no Cárcere estão organizados nas Cartas do Cárcere, única
produção permitida a Gramsci nos seus primeiros anos de prisão.
66

exemplo, por uma retomada positiva da noção de “ideologia” no interior da perspectiva


marxista, onde este termo compreende agora um conjunto de idéias, valores e propostas de
ação comuns a uma determinada classe ou grupo em seu processo de constituição enquanto
sujeito político. Ser dirigente, nos termos de Gramsci, inclui, portanto, um definitivo
momento de conquista ideológica no contexto de definição e redefinição da hegemonia.
Desde 1927, quando Gramsci, em carta a Tatiana Schucht, expressa a vontade de
elaborar um trabalho intelectual mais consistente, o interesse pela continuidade de estudos e
elaborações acerca da cultura permanece presente: Gramsci menciona estudos sobre o espírito
público na Itália (abordando a constituição dos intelectuais italianos, suas origens, correntes
intelectuais e modos de pensar), a lingüística comparativa, o gosto teatral italiano e o gosto
popular em literatura. Posteriormente, quando, em 1929, começa a escrever seu primeiro
caderno, elabora uma lista onde, dos dezesseis tópicos apresentados, oito estão relacionados
diretamente com a cultura e sua difusão. São eles:
a) Formação dos grupos intelectuais italianos;
b) A literatura popular dos romances de folhetim e as razões de sua permanente
influência;
c) Cavalcante Cavalcanti: a sua posição na estrutura e na arte da Divina Comédia;
d) O conceito de folclore;
e) A questão da língua na Itália (Manzoni e G. I. Ascoli);
f) Tipos de revista: teórica, crítico-histórica, de cultura geral;
g) Neogramáticos e neolinguistas.
h) Os filhotes do Padre Bresciani.
Se, num primeiro momento, Gramsci pensa em abordar estes temas separadamente,
talvez numa expectativa de retomar os estudos humanistas abandonados pela sua dedicação ao
jornalismo político e à militância, com o desenvolvimento de sua produção, percebemos que a
complexidade de suas elaborações sobre cultura advém, justamente, de sua recusa em separar
estas questões das abordagens relativas aos aspectos econômico, político e social. FORGACS
& NOWELL-SMITH (1999) afirmam que, ao contrário de seus escritos pré-cárcere, os
Cadernos do Cárcere não apresentam um conceito de cultura teoricamente definido por
Gramsci10, o que lhe dá certa flexibilidade para abordá-lo no interior da análise de toda a
dinâmica societária, tornando-o mais rico e completo.

10
FORGACS & NOWELL-SMITH acreditam que cultura, para Gramsci, tem a palavra escrita como o
centro da formação cultural em indivíduos e na sociedade. Discordamos, a princípio, desta
formulação, pois Gramsci chama a atenção, repetidas vezes, para o fato de que todo homem,
67

Quais são as estruturas societárias nas quais a cultura é construída? De que forma a
cultura pode influenciar a consciência e o engajamento políticos? Que tipo de atitudes e de
compromissos intelectuais impedem ou favorecem a formação de uma “nova cultura”? Como
esta nova cultura se relaciona com as mudanças econômicas e políticas e como ela pode ser
racionalmente organizada e acelerada? Questões como estas parecem orientar a produção
gramsciana a partir deste momento e demonstram a preocupação deste autor em problematizar
esta esfera cultural no contexto das “superestruturas complexas”, nas mais diversas formações
societárias. Gramsci realiza, então, com relação à compreensão da cultura, no interior da
tradição marxista, um duplo movimento, profundamente dialético: em primeiro lugar,
reconhece-a como uma esfera determinada, superestrutural, com uma limitada autonomia com
relação a outras esferas menos “flexíveis” e mais sistematicamente relatadas. Em outras
palavras, não cabe a leitura da produção de Gramsci sobre cultura alheia à abordagem de
outras categorias de seu pensamento político, entre as quais destacamos as de intelectuais, de
hegemonia, do Estado ampliado e da sociedade civil. Por outro lado, para Gramsci, a cultura
não é meramente um reflexo desta estrutura mais ampla, mas também um elemento
constitutivo de suas relações e de seus embates mais profundos, demarcando, ela própria,
instâncias de luta política e de hegemonia. “Criar uma nova cultura” faz parte, portanto, da
proposta de uma “sociedade regulada” na orientação gramsciana.
Esta observação nos parece relevante para evitarmos a falsa impressão de que, a partir
de um determinado momento na produção carcerária gramsciana, a discussão sobre as
questões relativas à cultura tenha se tornado escassa ou mesmo desaparecido, dando lugar a
abordagens mais diretamente ligadas à dimensão da política. Nosso autor recorre
constantemente à complexidade desta esfera para orientar e fundamentar seu pensamento
político, enriquecendo-o e renovando-o substantivamente.
No momento de sua produção carcerária, Gramsci está se defrontando com grandes
embates nacionais e internacionais, os quais redimensionam este universo cultural e sua
importância na dinâmica societária: a experiência da revolução socialista ficou isolada em
poucos e diferenciados países, o nazi-fascismo se instalou com força em importantes países da
Europa, imprimindo uma orientação conservadora no enfrentamento político daquele
momento, o capitalismo internacional passou a se estruturar com novas características e novos
suportes ideológicos. Era preciso que as forças comunistas em todo o mundo reconstruíssem

independente de seu acesso à educação formal, é culto, pelo fato de que pensa e reflete sobre a
constituição de sua vida social.
68

suas estratégias políticas e, neste movimento, redefinissem a cultura como um momento


privilegiado da crítica e da organização da classe trabalhadora.
Gramsci indica claramente sua concepção de cultura como uma “concepção da vida e
do homem”, unitária e coletivamente defendida, capaz de gerar uma ética, um modo de viver,
uma nova atitude face às contradições e aos enfrentamentos vivenciados pelas classes sociais
enquanto fundamentais ao modo de produção capitalista. É neste sentido que, para ele, se
constroem os elementos próprios do marxismo neste âmbito: lutar por uma nova cultura,
enquanto este “novo humanismo”, capaz de criticar e superar criticamente costumes,
sentimentos e concepções de mundo.
Os diferentes “modos de vida”, segundo a perspectiva gramsciana, aparecem, para
quem os vive, como algo absoluto, “natural”, imutável. Para uma perspectiva contra-
hegemônica, revolucionária, é preciso introduzir um “modo de pensar historicista”
(GRAMSCI, 1999, p. 257), capaz de demonstrar que uma estrutura cultural só se justifica na
medida em que existem certas condições e que se modifica na medida em que estas condições
também se revolucionam. A cultura é, portanto, este elemento histórico, que compõe e que
transforma uma dada estrutura.

Com efeito, a verdade é esta: toda coisa que existe é “racional”, isto é, teve
ou tem uma função útil. O fato de que aquilo que existe tenha existido, isto
é, tenha tido sua razão de ser enquanto “conforme” ao modo de vida, de
pensar, de operar da classe dirigente, não significa que se tenha tornado
“irracional” porque a classe dominante foi privada do poder e de sua força de
dar impulso a toda a sociedade. Uma verdade que se esquece é esta: aquilo
que existe teve sua razão de existir, serviu, foi racional, “facilitou” o
desenvolvimento histórico e a vida. (IBIDEM, 1999, p. 257).

As questões referentes à língua e à lingüística, por exemplo, têm um lugar


fundamental na construção teórica de Gramsci no cárcere. Para ele, as relações lingüísticas se
inserem diretamente neste “modo de pensar e viver”, pois não constituem apenas
representações e traços históricos das relações entre as forças do passado e do presente, mas
são também referências, nas trocas de influência e prestígio cultural11. Assim, tais relações se
inserem diretamente na luta pela hegemonia em um determinado contexto histórico, neste
complexo processo de “reforma intelectual e moral”.

11
Neste debate, Gramsci se dedica ao estudo sobre a língua na Itália, vendo o italiano e os dialetos
como diferentes concepções do mundo”, que apontavam para uma diferença entre ambiente cultural
e político-moral.
69

A história das línguas é história das inovações lingüísticas, mas estas


inovações não são individuais (como ocorre na arte): são de toda uma
comunidade social que inovou sua cultura, que “progrediu” historicamente.
Naturalmente, também elas se tornam individuais, mas não do indivíduo-
artista, e sim do indivíduo elemento histórico-cultural completo,
determinado. (GRAMSCI, 2002, p. 197).

Desde a apropriação gramsciana do debate sobre Oriente e Ocidente, podemos


observar a relação intrinsecamente estabelecida, por este autor, entre cultura e política, ou, em
outras palavras, da dimensão cultural que o enfrentamento político apresenta nas sociedades
ocidentais. A “justa relação” entre sociedade civil e Estado, que se constrói no Ocidente, não
se estabelece somente em termos materiais. O conjunto de “fortalezas e casamatas” que dá
sustentação e legitimação ao Estado, nestas sociedades, está completamente demarcado por
um forte traço cultural, ou seja, por uma concepção de mundo, por um leque de valores e
significados simbólicos que orientam o equilíbrio de forças e o consenso. Assim, ser dirigente
em uma sociedade, condição elementar para que uma classe se torne dominante, é uma tarefa
que está ligada à capacidade desta classe em difundir e solidificar uma posição e uma
proposta cultural, composta de filosofias, valores, gostos e opções organizativas.
A ação política não se faz, neste sentido, de uma forma imediata. As classes sociais,
formadas e coletivamente construídas na esfera que Gramsci chamaria de “sociedade
econômica”, organizam seus aparelhos “privados” de hegemonia na sociedade civil a partir de
um processo de conscientização e de auto-conhecimento possibilitado e garantido, também,
pela dimensão cultural. Através dela, os homens se reconhecem no processo produtivo,
conscientizam-se de suas possibilidades e de seus limites, ampliam sua dimensão reflexiva
enquanto ser social e, conseqüentemente, potencializam-se coletivamente para a luta política.
É neste sentido que WILLIAMS (1979) afirma que a cultura extrapola a dimensão
superestrutural, uma vez que seus elementos constitutivos estão também na base de formação
e de consolidação de relações sociais particulares.
Encontramo-nos, assim, diante de uma consideração definitiva para a compreensão da
hegemonia no pensamento gramsciano. A hegemonia tem sua base na estrutura econômica,
nasce “no chão da fábrica”, define-se a partir da “função decisiva que o grupo dirigente
exerce no núcleo essencial da atividade econômica” (PORTELLI, 1977, p. 64). No entanto,
esta posição não é suficiente para a conquista da hegemonia, embora seja necessária. Gramsci
é enfático ao afirmar que a “direção ideológica e cultural” concretiza e consolida a posição
hegemônica de uma determinada classe. Na perspectiva de se formar um “bloco
hegemônico”, ou seja, na medida em que a classe fundamental precisa se apoiar em grupos
70

aliados para consolidar sua hegemonia, a “batalha de idéias”, o confronto cultural constrói
uma frente indispensável, ao lado daquelas meramente econômica e política. Em direção à
conquista da hegemonia, a luta política é sempre um processo de convencimento, de busca de
consenso, de alianças que se constroem em torno de um projeto societário que tem uma de
suas bases fundamentais no elemento cultural.
LIGUORI (2003) afirma, nesta direção, que o conceito fundamental dos Cadernos do
Cárcere não é o de sociedade civil, mas o de Estado ampliado. Sociedade política e sociedade
civil compõem um todo orgânico e a distinção é “puramente metodológica”. A hegemonia,
que se constrói no interior da sociedade civil, se estende até a sociedade política,
revitalizando-a com enfrentamentos políticos e ideo-culturais entre os grupos e as classes que
a definem. Assim, o consenso, base estrutural da hegemonia, se materializa na sociedade
política e se estende, através dela, por toda a sociedade nacional. As classes sociais
demonstram sua real capacidade hegemônica na medida em que podem “tornar-se Estado”,
atravessado sempre por embates cotidianos, cuja solução, imediata ou em longo prazo,
confirma ou redefine esta posição hegemônica.
A compreensão deste Estado ampliado está contida no que COUTINHO (2003) chama
de uma acepção mais ampla de política presente nos Cadernos do Cárcere. Para que ela se
realize, é necessário um movimento catártico, ou seja, uma passagem, por parte da classe que
se pretende hegemônica, do momento de determinismo econômico (ou econômico-
corporativo), para o momento de liberdade política (ou ético-político). Neste último, esta
classe não mais se reconhece apenas como um fenômeno econômico, mas se coloca agora
como um “sujeito consciente da história”, capaz de elaborar uma “vontade coletiva”, de se
tornar uma “classe nacional”, de representar interesses que tendem a ser universais. Este
momento, no qual se toma consciência da dimensão de totalidade, da possibilidade de
transformação ativa do mundo social é, sem dúvida, o contexto de maior materialidade
cultural de uma determinada classe. A cultura é, assim, um dos elementos que possibilita este
salto qualitativo para uma proposta hegemônica (ou contra-hegemônica), em direção a um
bloco histórico organicamente estabelecido.
O bloco histórico, neste sentido da perspectiva gramsciana, é a noção que supera,
dialeticamente, qualquer orientação determinista no interior da proposta marxista. Ao
contrário da idéia de “reflexo” que, como já observamos, é insuficiente, Gramsci propõe que
estrutura e superestrutura formam um bloco histórico que, na verdade, é o momento fundante
de uma sociedade. Nesta unidade orgânica, Gramsci aponta para relações e propostas que,
mais uma vez, recolocam o debate ideo-cultural em posição de destaque ao longo do seu
71

pensamento político. A primeira colocação é de que a estrutura necessita deste elemento


ideológico, cultural, que nunca é, portanto, totalmente autônomo. É ele o responsável por
organizar e orientar os grupos sociais, sobretudo os “grupos aliados”, unificando-os em torno
de determinadas condições sócio-econômicas. A base material precisa se reproduzir e, para
isso, não pode dispensar caminhos e orientações que só os espaços da superestrutura são
capazes de criar. Isto nos leva a ponderar, portanto, que discutir a primazia, no bloco
histórico, de uma ou de outra esfera é colocar um problema sem solução. Na verdade, dada a
complexificação cada vez maior das sociedades, a relação entre estrutura e superestrutura
tornou-se orgânica, indissolúvel, pois é no plano superestrutural que não só se toma
consciência e se critica as relações produtivas estruturais, mas também, muitas vezes, se
constroem respostas para as contradições surgidas em seu interior.
A análise gramsciana sobre o jornalismo na Itália demonstra esta preocupação do autor
em pensar, nesta lógica, a composição de um bloco histórico. Nas notas em que trata deste
assunto, ele está preocupado em ver como é organizada, na Itália do início do século, a
estrutura ideológica da classe dominante, no interior da qual destaca a imprensa como a parte
mais dinâmica e proeminente. Nas palavras de Gramsci, esta rede de instituições compõe,
para o capitalismo, um “formidável complexo de trincheiras e fortificações”, com a função
crucial de articulação política e de organização do consenso em torno de interesses
particulares que, no entanto, se pretendem como universais. No contexto específico do início
do século XX na Itália, a imprensa estava completamente controlada pelo fascismo e pelos
interesses do grande capital que o sustentavam e se constituía, portanto, em outro campo de
luta e de enfrentamentos políticos, no sentido da conquista ideológica como etapa
imprescindível para se chegar à direção hegemônica.
Com este objetivo, Gramsci pretende dar orientações, a partir do Cárcere, para que o
Partido Comunista possa planejar a organização de sua imprensa, que deve funcionar como
um elemento de articulação dos interesses do movimento democrático de massas e chegar ao
mais amplo número de leitores. Sua preocupação, neste debate, vai desde o formato preciso e
o nível lingüístico até o conteúdo, as necessidades do grupo de compradores e os elementos
“econômicos”, que permitam a aquisição e a divulgação do aparato cultural defendido pelo
grupo que dirige esta imprensa.
Em suas palavras,

(...) um organismo unitário de cultura (...) satisfaria as exigências de uma


certa massa de público, que é mais ativa intelectualmente, mas apenas em
72

estado potencial, e que é a que mais importa elaborar, fazer pensar


concretamente, transformar, homogeneizar, de acordo com um processo de
desenvolvimento orgânico que conduza do simples senso comum ao
pensamento coerente e sistemático. (GRAMSCI, 2000, p. 201).

Estas notas gramscianas acerca do jornalismo demonstram, mais uma vez, a relação
intrínseca que este autor estabelece entre o partido político e as classes, trabalhadoras e
aliadas, na dinâmica revolucionária que ele sempre defendeu. A imprensa é, assim, um meio
crucial pelo qual a informação é transmitida à base do partido e a partir da qual novos
membros são conquistados. É, portanto, uma das estruturas da organização da cultura, capaz
de materializar a “reforma intelectual e moral” construída pelo materialismo histórico. Uma
“concepção de mundo” integral e uma “norma de conduta” constituem, portanto, os dois
aspectos desta reforma.
Em Gramsci, portanto, a esfera cultural, na mais ampla de suas conceituações, ganha
visibilidade e, muitas vezes, centralidade. A política se constrói a partir de uma dimensão
cultural e a cultura, por sua vez, não se constrói alheia às relações políticas e econômicas de
uma dada realidade social. Forças materiais e ideológicas, neste contexto, são diferenciadas e
complementares, representando espaços igualmente importantes de poder. Lutar por uma
nova cultura é, em Gramsci, mais um dos desafios das diferentes classes sociais na busca pela
hegemonia. Este debate nos será de absoluta importância para compreendermos o momento
contemporâneo ao longo deste trabalho.
Neste sentido, Gramsci se preocupa constantemente em distinguir e relacionar, ao
mesmo tempo, cultura e arte. Para ele, cultura é algo muito mais amplo e complexo do que
simplesmente o conjunto de manifestações artísticas e intelectuais, mas estas últimas não
estão isoladas na dinâmica societária.
Dentre as manifestações artísticas e intelectuais mais dinâmicas no início do século
XX, Gramsci dá importância destacada à literatura, mas suas conclusões podem orientar
reflexões mais generalizadas. Uma nova literatura ou arte não pode, portanto, ser criada “por
decreto”, mas só pode ser compreendida como efeito de uma nova cultura, através de um
processo que implica, como veremos, a criação de uma nova camada de intelectuais, capaz de
construir uma nova relação educativa com os setores populares, nesta oportunidade, na
condição de leitores. Assim, Gramsci está menos preocupado com o sentido artístico restrito,
e mais com o motivo pelo qual determinada manifestação artística é absorvida, os sentimentos
que ela desperta e sua capacidade de agir como instrumento de consenso. A premissa de toda
arte deve ser, portanto, histórico-política, popular, em seu sentido mais complexo.
73

Assim Gramsci pensa a relação orgânica entre arte e cultura:

A literatura não gera literatura, etc. as ideologias não criam ideologias, as


superestruturas não geram superestruturas a não ser como herança de inércia
e passividade: elas são geradas não por “partenogênese”, mas pela
intervenção do elemento “masculino” – a história – a atividade
revolucionária que cria o “novo homem”, isto é, novas relações sociais.
(GRAMSCI, 2002, p. 195).

A cultura, por sua vez, é o ordenamento de uma concepção de mundo, é um elemento


de organização de ideias e de propostas de ação, é o fio que costura, ao longo de todo o bloco
histórico, movimentos, valores, sentimentos, expectativas, etc. em torno de um mesmo projeto
societário. Retomando ideias presentes já em seus textos da juventude, a cultura é um
elemento unitário, identitário, que dá coesão e organiza a capacidade crítica e propositiva de
uma sociedade.
A cultura, no entanto, não opera no vazio. Sua constituição está sustentada, como já
mencionamos, por toda a sociabilidade engendrada em uma dada realidade. Portanto, a cultura
também é um processo no sentido de que está em construção a partir da dinâmica na qual está
inserida. Por isso, Gramsci é claro ao propor “criar uma cultura”, e não uma nova arte.
Significa potencializá-la com elementos constitutivos da realidade das “classes subalternas”,
fazer dela um instrumento de conhecimento, de reconhecimento e de impulso para novas
ações desta classe. Em uma das notas em que propõe um “retorno a De Sanctis”, Gramsci
deixa clara não só sua concepção de cultura no período mais maduro de sua produção, mas
também rechaça a perspectiva de uma cultura “neutra”, “descompromissada”, alheia e isolada
das definitivas identidades de classe. Afirma ele que, neste caso, cultura significa

(...) uma coerente, unitária e nacionalmente difundida “concepção da vida e


do homem”, uma “religião laica”, uma filosofia que tenha se transformado
precisamente em “cultura”, isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de
viver, um comportamento cívico e individual. (...) Isto exigia, antes de mais
nada, a unificação da “classe culta” (...) mas exigia, sobretudo, uma nova
atitude em face das classes populares, um novo conceito do que é
“nacional”, diverso daquele da direita histórica, mais amplo, menos
exclusivista, menos “policial”, por assim dizer. (GRAMSCI, 2002, p. 63-64).

Não se pode dizer, portanto, que se luta por um novo “conteúdo da arte”, pois este não
se manifesta abstratamente. Um novo “mundo cultural” gera, neste sentido, um novo modo de
sentir e de ver a realidade, o qual suscita a formação de um novo grupo de artistas, enquanto
nova intelectualidade, capaz de “historicizar suas fantasias”. Por isso, “também o artista e
74

toda sua atividade não podem ser pensados fora da sociedade, de uma determinada sociedade”
(GRAMSCI, 2002, p. 240).
Mais uma vez, percebemos a preocupação gramsciana em enfatizar a dimensão
cultural das lutas em torno de sua posição hegemônica, em torno da “capacidade de ser uma
época”. Por isso, toda classe que se torna dirigente e conquista, assim, este bloco hegemônico,
produz, necessariamente, a sua intelectualidade, inclusive artística.

Um novo grupo social que ingressa na vida histórica com postura


hegemônica, com uma segurança de si que antes não possuía, não pode
deixar de gerar, a partir de seu interior, personalidades que, antes, não teriam
encontrado força suficiente para se expressar completamente num certo
sentido. (IDEM, 2002, p. 70).

Percebemos, então que um duplo movimento de delimitação deste debate em torno da


cultura está presente ao longo dos Cadernos. Gramsci não deixa de afirmar a cultura como um
amplo “modo de vida”, um conjunto de elementos que dão identidade e que orientam uma
prática e uma forma de intervenção na realidade. No entanto, ele também afirma que este
“modo de viver, pensar e sentir” não pode ser construído apenas por uma dinâmica
involuntária e espontânea, mas deve ser orientado, motivado, definido a partir de projetos
societários e classistas mais amplos. Existe, neste sentido, uma formação cultural, que deve
ser responsabilidade de um conjunto de espaços e pessoas na dinâmica desta sociedade.
Vale observarmos que

Os dois significados do termo em Gramsci não constituem inovações do


ponto de vista semiológico, pois, já entre os gregos e os latinos, as palavras
Paidéia e humanitas assumiam essas significações. A meu ver, o que
podemos destacar inicialmente, no uso gramsciano do termo, é a
compreensão unitária dos dois significados, ou seja, cultura significa um
modo de viver que se produz e se reproduz por meio de um projeto de
formação. (VIEIRA, 1999, n. p.)

Não existe uma formação cultural neutra, abstrata, alheia à luta de classes que se
realiza em determinada sociedade. Isso nos parece claro, por exemplo, quando analisamos a
sociedade capitalista e toda a estrutura cultural construída em torno desta relação social que é
o capital. Esta reflexão nos orienta, também, para projetarmos a materialidade contra-
hegemônica que se define em seu interior. Formar uma cultura, como fato vivo e necessário, é
um ato educativo a ser levado adiante por aqueles que Gramsci chamará de intelectuais
orgânicos, sejam eles individuais ou coletivos, como os partidos políticos.
75

Quem seriam, portanto, estes intelectuais que têm, entre outras funções, a de garantir
organicidade à cultura? Para Gramsci, “todo homem é intelectual”, no sentido de que toda
atividade humana prevê uma elaboração intelectual, todo homem participa de uma concepção
do mundo, de uma determinada maneira de pensar. Criar novos intelectuais, portanto, é uma
iniciativa que consiste em elaborar criticamente esta capacidade intelectual que já existe em
cada um, embora em graus de desenvolvimento determinados. Por isso, as escolas, afirma
Gramsci, têm fundamental importância na formação de intelectuais em diversos níveis.
Desta forma, se todos os homens são intelectuais, a diferença entre eles não deve ser
buscada em atividades específicas.

O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é ter buscado este


critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, em vez de
busca-lo no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e,
portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto geral das
relações sociais. (GRAMSCI, 2000, p. 18).

Por este motivo, uma das principais preocupações de Gramsci está justamente em
diferenciar os intelectuais orgânicos dos tradicionais, ou seja, aqueles que “criados” por um
determinado grupo social, lhe dão “homogeneidade e consciência da própria função”
essencial no mundo da produção econômica, e aqueles que este mesmo grupo social já
encontra formados a partir da estrutura econômica anterior, os quais “se põem a si mesmos
como autônomos e independentes” de quaisquer grupos sociais. No que se refere aos embates
no universo cultural, Gramsci realiza importantes reflexões sobre a participação e o
envolvimento destes dois tipos.
Aos intelectuais tradicionais, nosso autor atribui um sério problema histórico. Ao se
posicionarem como alheios e autônomos em relação aos projetos incorporados pelas classes
fundamentais no modo de produção contemporâneo, estes intelectuais acabam por reforçar
uma perspectiva elitista e restrita da cultura. Em suas mãos, a cultura se torna privilégio de
alguns grupos na sociedade, detentores de um “saber enciclopédico” e de um “modo de vida
global” distanciado das reais necessidades e dos embates mais significativos de uma
sociedade. Tais intelectuais não surgem organicamente ligados à estrutura desta sociedade e
se mantêm distantes do “povo-nação”, desconhecendo seus problemas e suas potencialidades,
ligando-se a embates e confrontos alheios à realidade em que vivem. Assumem, muitas vezes,
uma posição cosmopolita e reacionária, fortalecendo uma cultura conformista, alienada e
politicamente inepta.
76

É esta, aliás, a crítica que Gramsci desenvolve, ao longo de todos os Cadernos, à


intelectualidade e à cultura italianas. O Humanismo italiano, ao contrário de outros países,
teria sido um movimento culturalmente reacionário, dando origem a um grupo ativo de
intelectuais, mas que não foi responsável por uma renovação política e ideológica na Itália.
Este projeto, apesar de seus aspectos inovadores no cenário europeu, foi incapaz, na Itália, de
dirigir e de capacitar as massas populares em direção a uma verdadeira renovação política e
moral, uma vez que não foi resultado de um movimento popular e nacional pela emancipação
da sociedade italiana. Assim, esta vinculação tradicional e conservadora dos intelectuais
italianos contribui para esta cultura contemplativa e politicamente “desinteressada”, sem
“nenhum contato com o universo dos conhecimentos que perpassam o mundo imediato da
produção e do trabalho produtivo” (VIEIRA, 1999).
É importante observarmos que, para Gramsci, esta posição supostamente neutra e
contemplativa dos intelectuais tradicionais não é imutável. Pelo contrário, a dinâmica da
correlação de forças em uma sociedade impõe a necessidade de que estes intelectuais se
redefinam e se reposicionem, aderindo organicamente a um dos projetos societários que se
defrontam em determinado contexto histórico. Conquistar intelectuais tradicionais constitui,
desta forma, mais uma tarefa desta batalha cultural.

Uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no


sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica”
dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais
rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar
simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos. (GRAMSCI, 2000, p.
19).

Gramsci se dedica principalmente em destacar a importância dos intelectuais


orgânicos neste cenário de batalha cultural ideológica, aos quais cabem o enriquecimento e o
amadurecimento deste embate. Estando intrinsecamente ligados às classes fundamentais do
modo de produção contemporâneo, estes intelectuais têm a função de direcionar culturalmente
estas classes, de lhes impulsionar a um movimento de (auto) conhecimento, de organização e
de preparação para o enfrentamento político na luta pela posição hegemônica na sociedade.
Estes intelectuais, individuais ou coletivos, seriam então os responsáveis por fazer da cultura,
como o próprio Gramsci afirma, a “base de ações vitais”, reafirmando o projeto societário
mais amplo que esta classe difunde e procura viabilizar.
As funções destes intelectuais orgânicos se referem, sobretudo, à explicitação e à
elaboração, cultural e filosoficamente, da concepção de mundo que está na base das práticas
77

econômicas e sociais da classe fundamental que os originou. Um duplo movimento se


constitui nesta relação entre os intelectuais e as massas: os primeiros dão esta organização
cultural às segundas, enquanto estas, por sua vez, alimentam a capacidade reflexiva daqueles
com a dinamicidade de suas lutas cotidianas. Assim se unifica, em Gramsci, a dialética teoria-
prática, com um processo complexo de determinação.

O processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-


massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa e
qualitativamente, mas todo progresso para uma nova “amplitude” e
complexidade do estrato dos intelectuais está ligado a um movimento
análogo da massa dos simples, que se eleva a níveis superiores de cultura e
amplia simultaneamente o seu círculo de influência, com a passagem de
indivíduos, ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o estrato
dos intelectuais especializados. (GRAMSCI, 2000, p. 143)

Os intelectuais orgânicos se constituem, enquanto bloco altamente heterogêneo, na


dinamicidade dos projetos das mais diferentes classes sociais. No entanto, a ênfase
gramsciana recai, obviamente, na necessidade de se garantir a organicidade dos intelectuais
com os problemas e os projetos daquelas que ele denomina de “classes subalternas”, de
“simples”, de “povo-nação”12. Nesta orientação contra hegemônica frente às sociedades
capitalistas, Gramsci se preocupa com a elaboração cultural destas classes, com seu processo
educativo e formativo, com sua superação do momento econômico-corporativo em direção ao
ético-político.
Em boa parte das notas mais propositivas de Gramsci nos Cadernos, ele está voltado a
denunciar aquele histórico distanciamento, na realidade italiana, entre os intelectuais e o povo.
No entanto, ele também reconhece que estas classes subalternas possuem sua filosofia, sua
própria cultura, enquanto modo de viver, pensar, sentir e principalmente, agir. A esta cultura,
Gramsci dá o nome de “senso comum” e reconhece nela componentes culturais acríticos, não
questionados, carentes de um movimento maior de reflexão e de ação. No âmbito deste senso
comum, onde as classes subalternas guardam traços desorganizados de conformismo e de
resistência, encontra-se a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos para que
uma filosofia possa se tornar histórica, depurando-se “dos elementos intelectualistas de
natureza individual” e se transformando em “vida”.

12
Defendemos que esta múltipla denominação de Gramsci se dá em razão do processo de censura
que sua produção sofria no Cárcere, e não por uma diferença teórico-metodológica na compreensão
destes termos. Ao falar de “classes subalternas”, “povo-nação”, “simples”, Gramsci está se referindo,
indubitavelmente, ao conjunto das classes trabalhadoras em seu processo de constituição na
sociedade capitalista, sobretudo a italiana.
78

O senso comum, então, para Gramsci, não é uma “mentira” ou um “equívoco” dos
setores populares, mas uma concepção desagregada, incoerente, inconseqüente. Através dele,
pertencemos a uma “multiplicidade de homens-massa”, onde reunimos elementos de
diferentes momentos históricos, onde empregamos o princípio da causalidade, do
experimentalismo e da observação direta da realidade, mas de forma empírica e limitada.
Assim como toda concepção de mundo, o senso comum conduz necessariamente a uma ação,
a uma intervenção direta sobre a realidade, mas que também se apresenta de forma
fragmentada e, muitas vezes, inoperante.
Em sua perspectiva histórica e dialética, Gramsci defende, portanto, a necessidade de
um verdadeiro “trabalho intelectual”, que é função não de um grupo seleto de pessoas
“intelectualmente mais desenvolvidas”, mas de todo aquele que, organicamente vinculado ao
contexto histórico de desenvolvimento destas classes subalternas e ao compromisso de
emancipá-las, possa contribuir em seu processo de educação e de organização. A cultura,
conforme descrevemos anteriormente, é o mecanismo que permite esta superação, este salto
qualitativo em direção à crítica e a reflexão emancipatórias.
Para Gramsci, a relação entre uma “filosofia superior”, que coincide com o “bom
senso” e o senso comum só pode ser assegurada pela política, ou seja, a escolha e a crítica de
uma concepção de mundo são, necessariamente, fatos políticos, no sentido de que se observa
uma “luta de hegemonias” em torno da elaboração superior da própria concepção do real.

A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica é a


primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e
prática finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e
prática não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico.
(GRAMSCI, 1999, p. 103-104).

Recuperando aquilo que Engels chama de um “trabalho técnico do pensamento”,


Gramsci propõe a dialética como um novo modo de pensar, uma nova filosofia, capaz de
afirmar a possibilidade e a necessidade de uma nova cultura que vá de encontro ao senso
comum, vulgar e dogmático. A “filosofia da práxis” entra, portanto, nesta “luta de
hegemonias”, e se propõe a “difundir criticamente verdades já descobertas” para responder a
determinados problemas colocados historicamente pela realidade.
Gramsci apresenta, assim, uma visão altamente dinâmica e histórica do elemento
cultural. Ele denuncia, em sua produção carcerária, tanto a cultura elitista que demarca a
história dos intelectuais italianos, quanto o senso comum que, abandonado a uma condição de
“segunda natureza” dos setores populares, os conduz a uma prática política historicamente
79

não fundamentada. Por isso, Gramsci enfatiza a necessidade deste trabalho intelectual que,
superando a desagregação histórica deste universo cultural popular, possa se apropriar de seus
elementos de crítica, de reflexão e de enfrentamento que, dispersos e fragmentados, devem
ganhar um perfil unitário e coerente.
Toda elaboração política de um grupo social homogêneo elabora, também, uma
filosofia homogênea, coerente e sistemática. Assim se forma o “homem coletivo”, que
pressupõe uma unidade conquistada também numa dimensão sócio-cultural. O momento da
crítica e da consciência é capaz de “soldar” uma multiplicidade de vontades desagregadas,
heterogêneas, em torno de um mesmo fim, de uma concepção de mundo “idêntica e comum”.
O desenvolvimento desta “renovação cultural e moral”, na perspectiva gramsciana, não é
simultâneo e homogêneo em todos os estratos sociais, o que pressupõe um longo trabalho de
construção desta crítica em torno de uma concepção de mundo primária e superficialmente
construída. Assim, não se substitui o senso comum pelo bom senso, negando, a priori, o
universo cultural destes setores, mas se organizam os elementos fragmentados do primeiro em
direção ao segundo.

Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e


coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais
evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje
existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na
filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é
realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo
histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços
acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise.
(GRAMSCI, 1999, p. 94).

Revolucionar as relações entre os intelectuais e o povo-nação na perspectiva de


reorganizar o senso comum, constitui, no pensamento gramsciano, a frente cultural a ser
assumida por aqueles que se propõem a construir o que ele denomina por uma vontade
coletiva nacional-popular no interior da sociedade civil. Lembrando, mais uma vez, a
proposta contra-hegemônica de Antonio Gramsci ao longo de toda sua produção, torna-se
necessário um retorno a suas principais formulações acerca desta expressão, que guarda, em
nossa opinião, idéias centrais para a compreensão do momento contemporâneo.
A dimensão coletiva representa, para Gramsci, um valor superior em toda e qualquer
realidade social. Ele insiste em denunciar, em inúmeros momentos de seus Cadernos, tanto o
individualismo quanto a pulverização de movimentos que, em última instância, são
igualmente fragmentários. Tal dimensão é apresentada, por ele, como um produto, social e
80

histórico, da vontade (consciência da necessidade histórica) e do pensamento coletivos que se


realizam através do esforço individual concreto, e não como “resultado de um processo fatal
estranho aos indivíduos singulares” (2000, p. 232). Assim, o que ele observa como vontades
coletivas (e, neste caso, o plural é significativo) não constituem um fato natural, capaz de se
desenvolver espontaneamente, por razões inerentes às pessoas e às coisas. Tais vontades são
construídas historicamente, em processos de longo prazo, que dependem de elementos como a
disciplina interior e que enfrentam polêmicas e cisões, inevitáveis para o seu próprio
desenvolvimento. Elas podem, inclusive, deixar de existir, pulverizando-se em infinitas
vontades singulares, com direções diversas e contrastantes. Assim, afirma-se a ampla
dinamicidade de qualquer vontade coletiva (que é diferente da “vontade de todos” e da
“vontade de cada um”), que não se constrói de uma vez para sempre, mas que é
profundamente marcada pela luta ideológica e pelo enfretamento político mais amplo de uma
sociedade.
Para Gramsci, no contexto das sociedades capitalistas, o ponto de referência para o
“homem coletivo” é o mundo da produção, do trabalho, é a posição ocupada por esta
coletividade neste mundo. Neste sentido, só pode haver uma reforma cultural, entendida como
a “elevação civil das camadas mais baixas da sociedade” (GRAMSCI, 2000, p. 19), se
acontecer, simultânea e paralelamente, mudanças também na posição social que estas classes
ocupam na sociedade econômica. Em suas palavras, o “programa de reforma econômica é
exatamente o modo concreto através da qual se apresenta toda reforma intelectual e moral”
(IBIDEM, p. 19). A vontade coletiva tem origem, portanto, na base material, no universo
econômico, mas deve, justamente, ser o elemento capaz de superar este âmbito meramente
econômico-corporativo, estando sempre vinculada a determinado fim ético-político.
Na lógica gramsciana, são os espaços coletivos e plurais da sociedade civil, orientados,
em especial, pelos grandes aparelhos “privados” de hegemonia que são os partidos políticos,
que incorporam uma ideologia política e, atuando sobre um “povo disperso e pulverizado”,
restrito ao espaço da vida econômica, procuram despertar e organizar sua vontade coletiva.
Neste processo, marcado hegemonicamente por um princípio educativo13, se fortalece e se
expande o nível cultural histórico-político que atuará coletivamente sobre a realidade
concreta. A vontade coletiva pressupõe, portanto, certo grau de homogeneidade e
organicidade, a ser permanentemente conquistado, renovado e fortalecido.

13
Para Gramsci, toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica.
81

A preocupação gramsciana não se limita a determinar o alcance ético-político da(s)


vontade(s) coletiva(s), mas se dispõe a propor qual delas poderá capacitar os setores populares
para o enfrentamento político que poderá conduzi-las em direção à posição de classe
hegemônica. Aqui se apresenta, mais diretamente, o debate acerca do “nacional-popular”, o
qual julgamos central para as discussões que pretendemos empreender ao longo deste
trabalho.
Dentre as categorias gramscianas dos Cadernos, nacional-popular nos parece ser uma
das mais dinâmicas, sendo amplamente utilizada. O autor a relaciona com diversificados
elementos, tais como a cultura, a literatura, a vontade coletiva, a orientação política, etc.,
estando preocupado, portanto, em estruturar, ao redor desta expressão, toda uma proposta
contra-hegemônica, capaz de reorientar e redimensionar a luta política na realidade italiana.
FORGACS & NOWELL-SMITH (1999, p. 333) se preocupam, desde o início de suas
reflexões sobre os escritos culturais de Gramsci, em afirmar que

A aparência puramente “cultural” de muitas notas de Gramsci sobre o


nacional-popular não deve obscurecer o fato de que as mesmas preocupações
políticas e históricas estão trabalhadas nelas. Os aspectos culturais da
questão nacional-popular não são simples “reflexos”, cópias culturais de
seus aspectos políticos, mas indicam que a questão está organicamente
enraizada na história italiana com ramificações em vários níveis. (...) Eles
também indicam que o terreno ideológico da sociedade civil é precisamente
onde um amplo movimento nacional-popular deve ser construído.

Como já mencionamos, o interesse de Gramsci pela questão nacional surgiu ainda em


seu período de militância no Partido Comunista, mais especificamente no momento em que as
tentativas revolucionárias deste partido haviam recuado e o fascismo, enquanto reação
conservadora, havia chegado ao poder (1924-1926). Buscando identificar as características
italianas que teriam permitido este quadro de crise, e a partir de sua experiência internacional,
Gramsci afirma, repetidamente, que a Itália era, historicamente, carente de uma orientação
econômico-política que lhe garantisse um perfil nacional e popular. Esta parecia ser, portanto,
a tarefa do proletariado italiano, através de uma aliança hegemônica com o campesinato, em
direção ao objetivo internacionalista do comunismo. Já nos Cadernos, esta aliança recebe o
nome de nacional-popular e contribui significativamente para a ampliação da noção de
hegemonia, passando a abarcar um consenso ativo, na forma de uma “vontade coletiva”, que
as classes tradicionalmente dominantes sempre tentaram evitar que se formasse.
Uma série de determinações históricas dava à Itália, naquele momento, uma
configuração ideo-cultural conservadora, elitista e cosmopolita. Para Gramsci, o Império
82

Romano e a força política do papado na Itália teriam criado, desde muito cedo, a ilusão da
existência de uma “nação italiana”, quando, na verdade, o que se tinha era uma dominação
cultural de intelectuais tradicionais orientados por uma perspectiva clássica de dominação.
Neste processo, as classes dominantes buscaram prevenir a formação de uma orientação
ideológica e de uma vontade coletiva que, de alguma forma, pudesse potencializar os setores
populares (proletariado e campesinato) para uma luta política de emancipação e de
reorientação de suas propostas societárias. Temia-se que tal formação pudesse trazer “perigos
vitais para a vida nacional unitária” (GRAMSCI, 2002, p. 33) da forma como estava
tradicionalmente organizada, ou seja, em torno do modo de produção capitalista.
O que se observa, na realidade italiana do início do século XX, é a ausência
permanente de um movimento popular organizado em torno de uma proposta verdadeiramente
“nacional”, capaz de superar um interesse meramente “econômico-corporativo” em direção a
uma perspectiva “ético-política”. Constantes experiências de “revolução passiva” na história
italiana, dentre as quais Gramsci destaca o Risorgimento, fortaleceram a aliança defensiva
entre os industriais do norte e os latifundiários do sul, constituindo um consenso burguês que
garantiu, entre outras coisas, a reação conservadora que instituiu, anos mais tarde, o poder
fascista. A formação da “nação italiana” e a luta pela unidade política e territorial jamais
foram problematizadas, no sentido de que as questões vitais que as envolveram foram tratadas
por interesses polêmicos imediatos e, portanto, sem vontade de aprofunda-las. Daí resultou
que, para o elemento popular, tais questões receberam um tratamento “abstratamente cultural,
intelectualista, sem perspectiva histórica exata e, portanto, sem que se formulasse para eles
uma solução político-social concreta e coerente” (GRAMSCI, 2002, p. 33). Dentre este
conjunto de problemas, Gramsci menciona, por exemplo, a indiferença popular no período das
lutas pela independência e pela unidade nacional e o apolitiscismo do povo italiano,
elementos que nos auxiliam sobremaneira na análise da realidade contemporânea.
Desta forma, a unificação italiana não se constituiu a partir de uma perspectiva
popular, onde este elemento pudesse apresentar suas demandas e expectativas, suas
potencialidades e seus limites. Por outro lado, a burguesia, enquanto classe dominante,
também não se estabeleceu como “classe nacional” ou seja, não foi capaz de agregar em torno
de si e de seu projeto as principais questões de constituição econômica, política e social da
realidade italiana. Portanto, afirma Gramsci, a Itália era órfã de um projeto nacional e popular
que a fizesse conhecer e criticar sua própria existência e, portanto, se afirmar em torno de seus
principais dilemas. Nas palavras do próprio autor, para manter intacta uma orientação
83

dominante conservadora, a Itália “apaixona-se por um passado que não é seu”, ou seja, nutriu-
se política e culturalmente de um cosmopolitismo inepto e alienante.
É importante destacarmos, desde já, que Gramsci jamais perdeu de vista o
internacionalismo comunista. No entanto, para ele, este caráter internacional das lutas das
classes trabalhadoras não pode ser construído sem uma mediação viva e dinâmica do
elemento nacional. Em sua crítica, o fato de que o povo italiano tenha sofrido a hegemonia
cultural e política de intelectuais estrangeiros serviu para consolidar, nesta realidade, uma
posição de subalternidade e de dominação. A Itália viveria o paradoxo de, ao mesmo tempo,
construir grandiosos planos de hegemonia internamente e não se perceber como objeto de
hegemonias estrangeiras, sustentadas, inclusive, por elementos “intelectuais e morais”
(GRAMSCI, 2002, p. 127). Neste sentido, Gramsci reforça ainda mais sua preocupação com a
histórica separação entre “intelectuais e povo-nação”.

(...) não existe no país um bloco nacional intelectual e moral, nem


hierárquico nem (muito menos) igualitário. Os intelectuais não saem do
povo, ainda que acidentalmente algum deles seja de origem popular; não se
sentem ligados ao povo (à parte a retórica), não o conhecem e não sentem
suas necessidades, suas aspirações e seus sentimentos difusos; mas são, em
face do povo, algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta e não uma
articulação (com funções orgânicas) do próprio povo. (IDEM, 2002, p. 42-
43).

Neste processo, acredita Gramsci, a esfera cultural, em sua dimensão mais ampla, teve
um papel fundamental. A ausência deste alinhamento cultural e político entre os intelectuais e
o elemento popular fez com que as contradições inerentes à formação italiana não fossem
conhecidas ou problematizadas pelos setores populares e que, portanto, a orientação
dominante se apresentasse sustentada por um aparente consenso. Teríamos, portanto, no
âmbito cultural, ramificações de uma questão organicamente enraizada na história política
italiana: a falta de uma língua comum no passado, a ausência de um verdadeiro movimento
romântico no século XIX, a falta de popularidade da literatura italiana, o desprezo por temas e
questões da dinâmica italiana nas suas mais diversas manifestações artísticas e intelectuais, os
diferentes preconceitos que caracterizam o tratamento dispensado ao elemento popular nestas
manifestações, etc. Em poucas palavras, a Itália é carente desta orientação nacional-popular e
somente uma aliança orgânica dos setores populares pode suprir esta lacuna histórica.
Nesta tarefa histórica, as diferentes classes sociais falharam ao longo da vida política
italiana, não sendo capazes de satisfazer as exigências intelectuais do povo ou de elaborar um
“humanismo” moderno, que pudesse ser difundido junto às camadas populares. Nem mesmo
84

os católicos tiveram esta capacidade, pois garantiram uma razoável difusão de suas
orientações culturais e morais não por uma expansividade e coerência interna, mas pela
poderosa organização da Igreja. Assim, não existe uma “identidade de concepção do mundo”
entre intelectuais e povo, sendo que os primeiros não se propõem a elaborar os sentimentos e
as expectativas do segundo após tê-los revivido e deles se apropriado.
É necessário ponderarmos, neste ponto, duas questões essenciais, que qualificam
nossos debates para compreendermos com mais clareza a importância e a contemporaneidade
desta categoria.
Em primeiro lugar, Gramsci não restringe esta perspectiva nacional-popular
meramente à dinâmica da esfera cultural. Apesar de a maioria das referências a este termo nos
Cadernos dizer respeito a uma “literatura nacional-popular”, esta constitui, sem dúvidas, uma
abordagem bem mais ampla, que envolve uma extensa frente de luta econômica, social e
política. Como já observamos, a cultura em Gramsci não constitui uma esfera autônoma,
estando, sim, diretamente vinculada a estes elementos estruturais e superestruturais que
compõem a totalidade dinâmica da vida social.
Portanto, o nacional-popular se afirma como o ponto de partida e de chegada de uma
grande estratégia de construção contra-hegemônica. Em diferentes aspectos desta totalidade,
ficava demarcada, para Gramsci, a necessidade de um movimento de recuperação, de
retomada, pelos setores populares, de sua história e de seu destino. Esta “reapropriação”, se
tinha uma evidente face cultural, não se limitava a ela. Construir uma “cultura nacional-
popular” significa, então, para as classes subalternas, apoderar-se de uma cultura
historicamente determinada e orientada pelos interesses e pela ideologia burgueses e
reestruturá-la segundo objetivos e expectativas dos setores dominados, capacitando-os,
conscientizando-os e reorientando suas ações vitais a partir de novas bases. Neste caminho,
um duplo movimento se constrói, onde a cultura, naquela acepção mais ampla de Gramsci, se
apresenta como um elemento de mediação, de interface com outros momentos estruturais da
constituição do ser social. Em outras palavras, o nacional-popular se constrói, na cultura,
como impulsionador e como resultado de uma perspectiva revolucionária mais ampla, jamais
abandonada por Gramsci, mesmo em seus períodos de maior desalento no cárcere.
Assim como a cultura é capaz de manifestar as contradições e os enfrentamentos
presentes em uma sociedade, ela também constitui um espaço privilegiado para gestar
propostas diferenciadas e organizar outros elementos de consenso. O mundo cultural,
enquanto universo de luta, “é um fato vivo e necessário” (GRAMSCI, 2002, p. 260), que
aponta e faz a intermediação com as demais esferas da vida social, reorganizando a
85

hegemonia em torno de consensos diferenciados, neste caso, ligados à questão nacional e


popular. Existe, portanto, uma intrínseca relação entre arte, cultura e formação humana, uma
vez que o “homem inteiro é modificado na medida em que são modificados seus sentimentos,
suas concepções e as relações das quais o homem é a expressão necessária” (GRAMSCI,
2002, p. 35).
O nacional-popular se afirma, então, como a orientação que, construída profundamente
no interior das lutas políticas das classes subalternas, poderia prepará-las para influenciar e
obter um “consenso espontâneo e vivo”, através de um processo de autoconhecimento,
autocontrole e emancipação política. Gramsci observa, inclusive, que estas transformações
culturais são produto de uma complexa elaboração, que ocorre de maneira lenta e gradual, já
que é resultado de mudanças em toda a vida social. Uma série de “combinações sucessivas”,
nas mais diferentes instâncias de enfrentamento político e econômico numa sociedade, se faz
necessária para a construção desta “perspectiva nacional-popular”.
Uma segunda questão a ser destacada no estudo desta categoria diz respeito à
concepção de nação por ela sustentada e, neste sentido, sua validade histórica. Embora
construída a partir dos estudos gramscianos sobre a realidade italiana do início do século XX,
não teríamos dúvida em afirmar que a importância de tal categoria não se restringe a este
cenário. Uma primeira leitura das notas que definem a categoria de nacional-popular nos
Cadernos do Cárcere pode nos dar a impressão de que ela se desenha com determinantes
geográficos e históricos bem delineados: ao falar de nacional, Gramsci estaria se limitando a
pensar a especificidade da nação italiana e, ao falar de popular, Gramsci faria menção à
configuração social, política e cultural do conjunto das classes trabalhadoras, sobretudo o
operariado fabril italiano, com as quais havia trabalhado em seu período de militância
partidária. No entanto, alguns elementos nos fazem questionar esta aparente verdade.
No conjunto destas notas, está claro que a perspectiva gramsciana sobre nação não é a-
histórica, a-política ou, sobretudo, a-classista. Não existe a concepção de uma nação
abstratamente construída, capaz de se colocar acima das contradições e dos enfrentamentos
entre as diferentes classes sociais. A nação é, assim, atravessada pelos elementos de
hegemonia que se configuram no interior da dinâmica societária. É por isso que Gramsci se
preocupa justamente em contrapor, à idéia de nacional até então hegemônica na Itália, a
perspectiva de um outro nacional, ligado à proposta, às necessidades e às potencialidades das
classes trabalhadoras em seu processo de luta e de constituição enquanto classe social.
Preocupa-o, sobretudo, problematizar o fato de que a Itália se tornou uma nação, na
concepção mais imediata do termo, através de um processo “pelo alto”, na expectativa de que
86

esta constituição nacional pudesse reorganizar as forças políticas dominantes até então
existentes. Estas classes, organicamente frágeis, encontravam-se restritas a interesses
econômico-corporativos, e com base nestes interesses, unificaram-se e buscaram construir um
fictício “passado italiano”, onde já se encontrassem elementos de uma unidade nacional
constitutiva. Em sua análise, entretanto, tudo isso se fez pelo receio de que pudesse ocorrer
uma intervenção, ainda que restrita, das “massas populares” na vida política italiana e na
estrutura do Estado.
Em suas palavras,

Realmente, a unidade nacional é sentida como precária, porque forças


“selvagens”, não conhecidas com precisão, elementarmente destrutivas, se
agitam continuamente em sua base. A ditadura férrea dos intelectuais e de
alguns grupos urbanos, mais a propriedade fundiária, só mantém sua solidez
superexcitando seus elementos militantes com este mito de fatalidade
histórica, mais forte do que qualquer deficiência e incapacidade política e
militar. É neste terreno que a adesão orgânica das massas nacional-populares
ao Estado é substituída por uma seleção de “voluntários” da “nação”
concebida abstratamente (GRAMSCI, 2002, p. 33)

Desta forma, buscando conter uma construção popular de nação, não deixando que
forças políticas efetivas pudessem emergir deste processo, o conjunto das classes dominantes
conseguiu, incluindo, em sua linha de frente, uma luta também intelectual, transformar a
unidade nacional em uma “dádiva”, e não em uma “conquista merecida dos italianos”. Fica
ausente, portanto, uma possibilidade de desenvolvimento permanente e contínuo desta
“unidade nacional”, a qual é dada de forma absoluta e acabada, sem possíveis reorientações
em torno de um movimento de caráter popular. Assim, segundo a crítica gramsciana, o termo
nação, na Itália, sempre esteve ligado a uma tradição intelectual e livresca, não tendo se
construído a partir de uma luta hegemônica em torno de diferentes projetos classistas. A
cultura italiana apresenta um sentimento nacional (e não popular-nacional), no sentido de que
é algo puramente subjetivo, não ligado a fatores e instituições objetivos. Este sentimento e
reconhecimento nacional são algo que fica restrito aos intelectuais enquanto camadas estreitas
e pequenas. O resultado seria, então, a marca constante do fatalismo e da expectativa passiva
por um futuro que chegará para o elemento popular, visto paternalisticamente, ausente da
dinâmica societária mais ampla.
Dois elementos são apontados por Gramsci como resíduos medievais e feudais na
Itália, e que contribuem na efetivação deste “nacional” despolitizado e amorfo: um
particularismo municipal, que demarca uma concepção de mundo restrita e vazia e, por outro
87

lado, um cosmopolitismo católico que “inventava”, desde muito cedo, uma nação italiana com
vocação internacional. Ambos devem ser superados, pondera Gramsci, por relações de
hegemonia que envolvem uma transformação cultural global.
Diante destas constatações, o conjunto das classes trabalhadoras deve ser o herdeiro
histórico de um novo projeto de nação, onde os caminhos para sua construção estejam
orientados não por uma perspectiva burguesa e conservadora, mas popular e revolucionária.
Nasce então, na construção gramsciana, uma unidade indissociável: o nacional-popular.

(...) O que importa é o fato de que se busque uma ligação com o povo, com a
nação, que se considere necessária não uma unidade servil, devida a uma
obediência passiva, mas uma unidade ativa, viva, qualquer que seja o
conteúdo desta vida. Esta unidade viva, independentemente de qualquer
conteúdo, não ocorreu na Itália ou, pelo menos, não ocorreu em medida
suficiente para convertê-la num fato histórico (...). (GRAMSCI, 2002, p.
254).

No caminho de construção desta perspectiva, Gramsci insiste na necessidade de se


“recuperar a história”, agora nas mãos do elemento popular, de suas demandas e de suas
potencialidades de luta. A “história duradoura”, diz Gramsci, se constrói a partir de um duplo
movimento, de continuidade e de superação. Para isso, são necessárias “energias nacional-
populares amplas e numerosas”, onde os momentos potencialmente coletivos são de extrema
importância para um novo sentimento nacional que ainda está em processo de formação.
Recuperar a história pode significar, nesta orientação, tornar-se consciente da importância
histórica da classe trabalhadora enquanto tal, fazer do passado, agora questionado e renovado,
um “elemento de vida” para ações presentes e futuras.
Podemos ponderar que a perspectiva gramsciana reinterpreta o conceito de nação no
interior do marxismo, uma vez que o “preenche” com uma série de determinações históricas e
classistas, reorientando o debate em torno das lutas e das perspectivas revolucionárias. É
impossível, para a emancipação da classe trabalhadora, saltar um estágio nacional, que se
manifesta em combinações e composições diversas e heterogêneas, mas que se coloca,
necessariamente, como um ponto de partida. Para ele, no cenário nacional, o que temos é uma
“combinação original e única” de forças e relações sociais. Neste cenário, assumem
particularidades tanto as esferas da sociedade política e da sociedade civil quanto os processos
de luta hegemônica e de conformação de forças entre as diferentes classes sociais. Portanto,
para qualquer classe que se pretenda dirigente, estas originalidade e unicidade devem ser
88

compreendidas e consideradas no que se refere ao seu processo de constituição enquanto


classe política.
Nesta nova construção do nacional, a esfera cultural constitui um elemento
determinante. Neste caminho, Gramsci pondera a importância dos intelectuais, os quais
desafia a superar o “espírito de casta”, a desconfiança e o medo em relação ao povo, buscando
tornar-se aderente às suas necessidades mais profundas e elementares. A cultura precisa,
assim, compor uma “vida nacional efetiva”, construindo com os setores historicamente
afastados da “nação” um amplo exercício de hegemonia.
Assim ele expõe, por exemplo, a questão de que, no que se refere à literatura,

(...) uma obra de arte é tão mais “artisticamente popular” quanto mais seu
conteúdo moral, cultural e sentimental for aderente à moralidade, à cultura,
aos sentimentos nacionais, e não entendidos como algo estático, mas como
uma atividade em contínuo desenvolvimento. A imediata tomada de contato
entre leitor e escritor ocorre quando a unidade de conteúdo e forma no leitor
tem como premissa a unidade do mundo poético e sentimental; se não for
assim, o leitor deve começar por traduzir a “língua” do conteúdo em sua
própria língua. (GRAMSCI, 2002, p. 194).

Para nosso autor, fica evidente que é necessário superar o que ele denomina de um
conceito “puramente livresco” de cultura, onde se está alheio às profundas correntes de
orientação da vida nacional-popular. Na análise dos elementos de organização da cultura
italiana, Gramsci exemplifica:

(...) os jornais literários se ocupam de livros e de quem escreve livros. Eles


jamais publicam artigos de impressões sobre a vida coletiva, sobre os modos
de pensar, sobre os “sinais dos tempos”, sobre as modificações que ocorrem
nos costumes, etc. (...) Inexiste o interesse pelo homem vivo, pela vida
vivida. (GRAMSCI, 2002, p. 184).

No lugar de uma descrição satírica e caricatural do elemento popular, como muitas


vezes se apresenta no teatro e na literatura italianos, Gramsci propõe que o movimento
intelectual se torne ou volte a ser nacional a partir de uma “ida ao povo”, de um encontro com
as questões mais significativas do seu modo de pensar e de agir, no sentido de preencher um
“vazio histórico e moral” com um debate que expresse as expectativas e orientações políticas
do povo-nação, que o organize em torno de um projeto societário hegemônico, que faça dele a
nova classe dirigente.
Quando colocamos esta necessidade de “ida ao povo”, apresentada por Gramsci,
fazemos referência também ao fato de que, para ele, o “povo” não constitui uma coletividade
89

homogênea, mas se apresenta através de numerosas estratificações, muitas vezes


contraditória, em que uma concepção de mundo não elaborada, assistemática e múltipla pode
vir à tona e desafiar esta nova perspectiva nacional-popular. Em seus estudos sobre o folclore,
por exemplo, Gramsci insiste em dizer que ele deve ser compreendido como um reflexo das
condições de vida cultural deste elemento popular, como um “modo de conceber o mundo e a
vida, em contraste com a sociedade oficial” (GRAMSCI, 2002, p. 181). Este universo
cultural, todavia, deve ser observado e valorizado na dinâmica de um novo projeto societário.

Portanto, conhecer o folclore significa, para o professor, conhecer quais são


as outras concepções do mundo e da vida que atuam de fato na formação
intelectual e moral das gerações mais jovens, a fim de extirpa-las e substituí-
las por concepções consideradas superiores. (...) O folclore não deve ser
concebido como uma bizarria, mas como algo muito sério e que deve ser
levado a sério. Somente assim o ensino será mais eficiente e determinará
realmente o nascimento de uma nova cultura entre as grandes massas
populares, isto é, desaparecerá a separação entre cultura moderna e cultura
popular ou folclore. (GRAMSCI, 2002, p. 136).

A militância política de Gramsci junto aos Conselhos de Fábrica e ao PCI o levou a


ponderar, já nos Cadernos, que as condições para se superar este estado de coisas já existem
na Itália. Sobretudo antes da Primeira Guerra Mundial, muitos movimentos intelectuais,
ligados principalmente aos grupos comunistas, estavam empenhados no sentido de
“rejuvenescer a cultura” e aproximá-la das necessidades e expectativas populares,
“nacionalizando-a”, no sentido gramsciano. No entanto, afirma ele, tais movimentos
constituíram o que, em outro momento, ele denominou de “subversivismo esporádico”, ou
seja, foram frágeis e não exploraram devidamente estas condições, fazendo com que voltasse
a predominar a “nação retórica”.
Gramsci se preocupa também em exemplificar que esta perspectiva nacional-popular é
não só possível, mas também historicamente já realizada. Para isso, recorre constantemente à
realidade francesa para afirmar que, neste país, o povo-nação se constituiu como o
protagonista da história, como o “elemento permanente das variações políticas” (GRAMSCI,
2002, p. 161). Esta constituição não se deu de forma voluntária e espontânea, mas foi
resultado de uma ligação estreita entre este protagonista e seus intelectuais, em um exercício
de se formar organicamente para dirigir, para influenciar politicamente e obter um consenso
ativo e consciente em torno de seu projeto societário.
90

Esta referência constante de Gramsci à realidade e à experiência francesas, bem como


à dinâmica cultural de outros países14, demonstra que, em seu pensamento, a noção de
nacional-popular não está restrita, ou menos ainda, submetida unicamente aos espaços e às
fronteiras nacionais. Esta, aliás, nos parece uma distinção central a ser feita neste debate
gramsciano, a fim de que possamos tê-lo como referência para a análise do momento
contemporâneo. Para Gramsci, o nacionalismo é um grande equívoco, uma vez que prega o
particularismo, reafirmando elementos de segregação e de superioridade que são
extremamente prejudiciais a uma perspectiva verdadeiramente nacional-popular. Baseada no
nacionalismo, a guerra, por exemplo, ganha “características de profundidade passional e de
ferocidade”, eliminando, desde seus princípios, qualquer possibilidade de que uma classe ou
grupo possa se tornar universal.
Da mesma forma, não se deve confundir popular, em Gramsci, com populismo, ou
com uma exaltação acrítica e naturalista do elemento popular, como se o simples
pertencimento a uma classe fosse suficiente para uma orientação superadora ou não da
realidade societária em que se vive. Assim BARATTA descreve a dinamicidade e a
historicidade que determinam, em Gramsci, o binômio nacional-popular.

Por “povo”, Gramsci entende o conjunto das classes ou grupos sociais


subalternos. Mas a noção apresenta uma dialética interna, ligada à sua
própria explicitação numa rede de relações que chega até o vínculo, ainda
que problemático, com a totalidade social. É evidente que “povo”, associado
a “nação”, não remete a uma parte separada da sociedade, mas a uma parte
que põe em questão a sua relação (positiva ou negativa, orgânica ou
desagregada) com a totalidade social-nacional. Não se trata de uma relação
estática, mas dinâmica. E a parte popular de uma nação supera a própria
dimensão nacional e se põe como membro da “classe internacional”.

É neste sentido que COUTINHO (2000) vai chamar o nacionalismo e/ ou o populismo


de as “doenças infantis” do nacional-popular. Segundo este autor, o nacionalismo representa
não só um empobrecimento da expressão estética e cultural, mas também a “limitação das
potencialidades críticas da consciência ideológica das forças populares” (2000, p. 61),
encontrando afinidades com forças conservadoras em uma dada realidade social. O
populismo, por sua vez, reforça uma atitude paternalista da intelectualidade, que passa a
estabelecer uma relação “apenas retórica” com o elemento popular e com seu universo
societário, atribuindo-lhe valores idealizados e românticos.

14
Cf. Cadernos do Cárcere, 6, 124; 2, 159; 6, 161; 4, 301.
91

No intelectual italiano, a expressão “humildes” indica uma relação de


proteção paterna e divina, o sentimento “auto-suficiente” de uma indiscutível
superioridade, a relação como entre duas raças, uma considerada superior e
outra inferior, a relação que se dá entre adulto e criança na velha pedagogia
(...). (GRAMSCI, 2002, p. 38).

Ao contrário, o nacional-popular em Gramsci se manifesta a partir de um conteúdo


intelectual e moral15, como “expressão elaborada e completa das aspirações mais profundas de
um determinado público, isto é, da nação-povo numa certa fase de seu desenvolvimento
histórico” (IBIDEM, p. 39). Esta expressão inclusive justifica para Gramsci o interesse
popular por esta ou aquela manifestação artística. Para ele, a beleza de uma obra é sempre
subordinada à sua capacidade de expressar uma unidade na vida cultural nacional. Mais uma
vez se referindo à Itália, nosso autor acredita que é este o motivo pelo qual a literatura
francesa, por exemplo, é sucesso popular na realidade italiana. A literatura italiana não é
“nacional” porque não é “popular”, o que permite, culturalmente, que o povo italiano sofra
uma “hegemonia estrangeira”.
Como podemos perceber, a relação entre o que Gramsci determinava como “situação
internacional” e as “referências nacionais” se apresenta de forma extremamente dinâmica.
Para ele, a nação é um resultado, condicionado, em larga medida, pelo equilíbrio de forças
internas e externas, onde o contexto internacional é elemento determinante das configurações
econômicas, sociais, políticas e culturais que se combinam como nacionais.
Por isso, acredita Gramsci, o nacional-popular não dispensa uma dimensão
internacional, uma vez que é nas relações externas que encontramos muitas das questões-
chave para problematizarmos a realidade nacional a partir de uma perspectiva das classes
trabalhadoras. Da mesma forma, inserido como esteve na dimensão internacionalista do
movimento comunista do início do século XX, Gramsci defende a necessidade de uma
articulação mais ampla das demandas e das lutas sociais dos setores populares, onde o
nacional seja o ponto de partida, o primeiro impulso, a primeira determinação para uma luta
que tem por objetivo alcançar a dimensão transnacional.
O nacional não limita ou restringe o conjunto de lutas e de enfrentamentos sociais
vivenciados pelo elemento popular. O desenvolvimento deve ser no sentido do
internacionalismo, e não pode deixar de sê-lo. Em outras palavras, poderíamos afirmar que o
nacional não tem capacidade de absorver e de encaminhar, em sua plenitude, um projeto
hegemônico mais amplo. Mas, por outro lado, sem levar em conta a particularidade que esta

15
É importante observarmos que, para Gramsci, conteúdo é diferente de tema. Não existe um tema
nacional-popular.
92

realidade impõe, não se alcança ou se materializa este projeto, não se faz dele algo
potencialmente capaz de se impor em um cenário internacional. A hegemonia reúne, em si, as
exigências de caráter nacional, embora não se limite a elas. Portanto, uma perspectiva
internacional não se constrói sem se levar em consideração a combinação de forças nacionais
que a classe que pretende se tornar internacionalmente dirigente deverá dirigir e desenvolver.
A defesa do projeto societário desta classe deve ter como meta o cenário internacional, mas
não pode deixar de levar em conta os diferentes contextos nacionais, os quais absorvem e
encaminham este projeto a partir de orientações diferenciadas.
Não é possível, portanto, interpretar, numa perspectiva gramsciana, nacional e
internacional como esferas separadas, ou mesmo pensar que o segundo tem a possibilidade de
superar ou de substituir o primeiro. Uma relação dinâmica demarca a construção destas duas
esferas e uma determinada classe só pode se tornar hegemônica se interpretar exatamente esta
combinação, o que significa dar ao movimento de conquista da hegemonia, com uma
amplitude internacional, uma orientação política realista, de acordo com determinadas
perspectivas e particularidades nacionais.
Sem estar atento a estas questões e a esta relação dinâmica, qualquer movimento que
se pretenda internacional acaba se tornando vago e puramente ideológico, não se
instrumentalizando com um conteúdo de política realista e efetiva. Uma classe que se
pretenda internacionalmente hegemônica deve, desta forma, se “nacionalizar”, num certo
sentido, atravessando fases múltiplas em que as combinações regionais e nacionais,
estabelecidas em estruturas variadas, impõem um curso e um direcionamento específicos para
as diferentes lutas internacionais.
Neste sentido, Gramsci nos capacita para problematizar várias questões que, colocadas
hoje no cenário da globalização como “supranacionais”, se constroem de forma equivocada e
pejorativamente ideológica. Quando não se referem a nenhum país determinado, a nenhuma
realidade concreta de correlação de forças e de disputas políticas, estes conceitos e debates
não passam de “previsões genéricas”, que não se manifestam efetivamente.
Um globalismo inepto e alienado parece tomar conta de diferentes discursos, inclusive
de grupos historicamente vinculados a um projeto alternativo de sociedade. Na expectativa de
uma “identidade global”, que espera que todos se mobilizem simultaneamente, mas que não
se materializa a partir de nenhuma questão específica, vivenciamos uma imobilidade
generalizada, onde ninguém se impulsiona verdadeiramente para organizar movimentos mais
significativos de questionamento e de superação da ordem estabelecida. Por outro lado, o
renascimento de um “nacionalismo radical” tende a realizar um corte na realidade societária
93

que não mais se sustenta. Enquanto espaço de resistência, o nacional só se justifica se


conduzir a perspectivas mais amplas, mais dinâmicas, onde o momento supra-nacional
contém, verdadeiramente, a potencialidade de significativas transformações societárias.
A retomada de uma perspectiva nacional-popular no contexto da globalização nos
parece, portanto, necessária e, ao mesmo tempo, contrária a estes dois posicionamentos
específicos. É o que pretendemos comprovar a partir do segundo capítulo deste trabalho.
94

2 A dinâmica societária na era da mundialização do capital:


desafios e imposições
Compreender o debate que se apresenta em torno da expressão “globalização da
cultura” requer, primeiramente, que possamos abordá-la a partir da compreensão das relações
societárias que, desde meados da década de 1970, vêm se conformando no cenário
internacional. Quaisquer modificações que possam estar caracterizando a esfera cultural desde
então só se justificam e se tornam criticamente manifestas se, à luz do que discutimos
anteriormente, forem problematizadas como reflexo, mas, ao mesmo tempo, como momento
constitutivo da sociedade capitalista em seu perfil contemporâneo.
Entendemos que o termo “globalização”, que hoje se tornou uma constante no
discurso político e econômico, representa o fio condutor para estas reflexões. Vale
observarmos que ele apresenta, desde sua introdução no debate específico das Ciências
Sociais, uma ampla ambivalência ou imprecisão, ao se relacionar com uma grande variedade
de fenômenos nas mais diversas esferas constitutivas da vida social. O início dos anos 1980
demarca este uso mais freqüente do termo, passando de uma assimilação primária das escolas
americanas de administração de empresas, popularizando-se através dos consultores de
estratégia e marketing internacional, expandindo-se pela imprensa econômica e financeira e
chegando, final e rapidamente, ao discurso hegemônico neoliberal16. É importante
demarcarmos, portanto, que, desde seu primeiro movimento de expansão, o termo
“globalização” sempre esteve vinculado às instituições voltadas para o movimento do capital,
buscando formas de gestão e de atuação estratégicas para a sua supervalorização em escala
planetária.
O debate que iremos minimamente abordar a partir de agora busca apresentar os
elementos principais que se constroem em torno deste termo, mas parte da certeza de que
“globalização” é uma noção intrinsecamente ligada a,

(...) uma linguagem e um projeto dominante de globalização econômica que


termina por se identificar com uma receita de alcance universal – ou melhor,
uma política econômica das relações internacionais ou um “novo
constitucionalismo” – correspondente a um capitalismo globalizado, que tem
por espaço natural o próprio mundo e que pretende auto-regular-se sem
interferências políticas nacionais, regionais ou internacionais, com o fim de

16
Sobre esta evolução do termo “globalização”, remetemos a GOMEZ (2000, p. 18-19). Neste
momento, o autor afirma que “o alvo da argumentação desliza de imediato do domínio micro da
gestão interna das firmas para o interesse da macroeconomia (redefinição das políticas econômicas e
das instituições econômicas nacionais) e da arquitetura do sistema internacional.”
95

gerar benefícios para todas as nações que nele se inserem competitivamente


(GOMEZ, 2000, p. 130).

Se o termo ganhou popularidade, sobretudo a partir da década de 1980, como um


processo de crescente integração das economias e das sociedades, através da circulação de
mercadorias, serviços, pessoas e informações17, enquanto termo cientificamente referenciado,
“globalização” ainda é vago e impreciso, marcado pela dificuldade de formulação e de
reconhecimento. Importantes autores contemporâneos se preocupam em delimitá-lo,
demarcando as diferentes esferas da vida social nas quais este fenômeno se manifesta.
CHOMSKY (1999, apud SIQUEIRA et al., 2003) se preocupa em afirmar que o termo
“globalização” é ainda marcado por uma grande indefinição, uma vez que pode ser “sinônimo
de qualquer coisa”. De forma neutra, o termo não tem qualquer compreensão que ultrapasse a
de “integração internacional”, mas o que a particulariza é que esta integração se faz a partir de
uma configuração específica, vinculada diretamente aos princípios e às propostas societárias
do modelo neoliberal. Na mesma direção parece apontar HERMAN (1999, apud SIQUEIRA
et al., 2003), que se soma a outros autores para afirmar que a globalização é, na verdade, uma
ideologia, no sentido de que tende a ocultar sua vinculação político-ideológica por trás da
lógica formal de facilidade em se superar fronteiras e relações econômicas. Na verdade,
afirma este autor, a função desta “onda globalizante”, que marcou o discurso científico no
final dos anos 1980 e início dos anos 1990, é a de reduzir qualquer resistência ao processo de
expansão da acumulação capitalista, fazendo com que ele pareça positivo e insuperável. A
lógica de que “there is no alternative” para além da globalização capitalista parece ter
conquistado os quatro cantos do mundo no final do século XX.
LIMOEIRO-CARDOSO (apud GENTILI, 2000, p. 97) concorda com esta
ponderação, afirmando que esta concepção não pertence ao campo teórico-científico, pois se
estrutura alheia a quaisquer possibilidades mais fundamentadas de questionamento e
refutação. Seus principais argumentos, afirma esta autora, não resistem ao enfrentamento com
outras formulações ou com informações históricas mais concretas. Esta perspectiva
“globalizante” das sociedades contemporâneas encontra-se, na verdade, no “campo próprio
das ideologias”, buscando produzir convencimento e adesão às idéias que difunde, garantindo
“consistência ideológica à dominação”.

17
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, globalização representa o “processo típico da segunda metade
do séc. XX que conduz a crescente integração das economias e das sociedades dos vários países,
especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros e à
difusão de informações.”
96

A acepção dominante de “globalização” é, pois, uma ideologia. Expressa


posições e interesses de forças econômicas extremamente poderosas e vem
comandando intensa luta ideológica – luta essa que passa pela mídia e pela
universidade – para tornar-se dominante mundo afora. (LIMOEIRO-
CARDOSO, apud GENTILI, 2000, p. 98).

Nesta orientação, afirma MARCUSE (2000, apud SIQUEIRA et al., 2003), a


globalização parece ter ganhado “vida própria”, cuja existência transcende e dispensa a
vontade dos seres humanos, tornando-a inevitável e irresistível. A partir dela, o capitalismo
conseguiu reatualizar sua perspectiva de se expandir e de se aprofundar, atingindo cada vez
mais aspectos da vida humana. Neste sentido, afirma FIORI (1997, p. 26)

A globalização, apesar de ser um neologismo muito pouco preciso, aponta


para um processo de transformações cujas origens e conseqüências são
muito mais complexas, por envolver inúmeras dimensões não-econômicas
num intrincado processo de decisões privadas e públicas tomadas na forma
de sucessivos e inacabados desafios e ajustes. Neste sentido, a globalização é
sem dúvida uma realidade política, cultural e econômica que vai nascendo às
costas dos produtores e dos governos, mas é também o resultado de decisões
políticas e econômicas tomadas de forma cada vez mais concentrada por
alguns oligopólios e bancos globais e alguns poucos governos nacionais.

Neste sentido, a globalização nos parece representar, em poucas palavras, o modelo


hegemônico do capitalismo do final do século XX para atualizar e dar continuidade à
sociabilidade burguesa, agora a partir de outras determinações, com novas formas de
articulação entre centro e periferia e a penetração, pelo capital financeiro transnacional, dos
países em desenvolvimento. Neste padrão societário, CASTELLS (1997, apud SIQUEIRA et
al., 2003) destaca o que ele denominou de “sociedade informacional”, onde a geração, o
processamento e a transmissão de informações se convertem nas fontes fundamentais da
produtividade e, conseqüentemente, do poder.
Como podemos perceber a partir destas primeiras considerações, um amplo leque de
abordagens se ocupou, desde finais da década de 1980, do debate acerca da globalização.
Apesar de se encontrar hegemonicamente direcionado pelo discurso da irrecusabilidade e da
inevitabilidade, este debate tem recebido, no entanto, no início do século XXI, um forte
aparato crítico. A idéia de que fora da globalização não existe qualquer possibilidade de
realização e desenvolvimento societários se fortaleceu no cenário político internacional dos
anos 1980 e 1990, reafirmando valores, conceitos e preconceitos. Na base desta versão,
encontramos, sem dúvidas, a perspectiva de um “mercado globalizado”, demarcando toda a
liberdade e a flexibilidade alcançadas pelo grande capital após a diminuição marcante das
97

restrições impostas pelo Estado nacional. A perspectiva hegemônica da globalização se ocupa


em promover a idéia de que somente a adoção das regras do neoliberalismo e do mercado
pode garantir a uma sociedade sobreviver em um cenário de concorrência com dimensões
planetárias. Tal globalização, sinônimo quase perfeito de “modernidade”, dita os padrões de
democracia e de cidadania das mais diversas sociedades, e o cidadão, agora identificado com
o consumidor, é aquele que está finalmente livre para participar do mercado enquanto espaço
democrático e autônomo, capaz de atender às suas mais diversas necessidades.
Este caráter ideológico das formulações acerca da globalização vem continuamente
desafiando a produção científica, a qual questiona a possível referência desta ideologia a
algum processo significativo na realidade e apresenta novas teorizações e interpretações. O
que podemos observar, ao longo das últimas décadas, é um rico processo de debate teórico e
de crítica acerca desta problemática, envolvendo autores inseridos em diferentes vertentes e
levantando questões mais ou menos abrangentes sobre o processo societário contemporâneo.
A compreensão do capital como uma relação social necessariamente
“internacionalizada” está presente desde o próprio pensamento marxiano. Já no Manifesto do
Partido Comunista, seus autores reconhecem que é vocação da burguesia e do modo de
produção capitalista ultrapassar qualquer limite nacional que porventura se imponha e conferir
uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Neste sentido, o
capitalismo é “internacional”, o “capital não tem pátria”, superar nacionalidades e
regionalismos é uma necessidade e uma imposição para este modo de produção se expandir e
se fortalecer, atualizando-se constantemente. Este traço, que MARX & ENGELS já
reconhecem na sociedade capitalista de meados do século XIX, se renova a partir de bases
contemporâneas, e se recoloca como um desafio extremamente atual.

A mundialização das relações capitalistas, a mercantilização universal das


relações sociais, o assalariamento generalizado, a insegurança social
institucionalizada, a constituição de um mercado global, a gravitação urbana,
o significado das comunicações velozes, o desenvolvimento científico e
tecnológico – todo este complexo aparece sintetizado na apreciação do
mundo burguês, caracterizado pela “contínua subversão da produção, o
ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a permanente incerteza e a
constante agitação”. Não é preciso nenhum grau de simpatia para com o
Manifesto para reconhecer aí o nosso mundo de 1998 (NETTO, 1998, p.
LXIX-LXX).

Parece-nos consensual, entretanto, que o momento contemporâneo deste


desenvolvimento trouxe novas características e particularidades, que levaram diversos autores
a acreditarem no “alvorecer de uma nova era”, no surgimento de uma “aldeia global”, uma
98

“fábrica global”, uma “modernidade-mundo”, apenas para citar algumas das metáforas18 de
que nos fala IANNI (1998).
Passada esta “euforia globalizante”, ganhou força, sobretudo a partir do início do
século XXI, a perspectiva de crítica a este discurso. As promessas de uma sociedade mais
harmoniosa porque interligada por uma extensa rede de relações e de tecnologias mostravam-
se irrealizadas e irrealizáveis, nos limites do sistema do capital. Discursos e práticas
alternativos foram se construindo e demonstrando a face negativa e contraditória do processo
de inserção de economias periféricas neste cenário globalizado, as quais agravaram, cada vez
mais, as contradições já existentes. Em diferentes e diversos aspectos da vida social, a
globalização foi sendo colocada em xeque. É sobre eles, portanto, que pretendemos nos
debruçar ao longo deste capítulo.

2.1 – “Não há alternativas”: hegemonia, imperialismo e a ideologia de uma


economia integrada e irrecusável
Um dos movimentos mais relevantes do aparato crítico que se formou a partir do final
da década de 1990 é o de questionar e problematizar a identidade construída entre
“globalização” e “internacionalização de mercados”. Tal questionamento, característico de um
“globalismo crítico”, teoriza a globalização considerando “não somente as forças de mercado,
mas também as relações entre os estados, as agências internacionais e a sociedade civil, tanto
em suas manifestações internas quanto internacionais”. (PIETERSE In LIMOEIRO-
CARDOSO, 2000, p. 99). Uma variedade de fenômenos e uma diferenciação de impactos
parecem caracterizar o que se convencionou denominar, simplesmente, como “globalização”,
envolvendo aspectos referentes a diferentes esferas da vida social como a financeira,
comercial, produtiva, tecnológica, cultural, etc. Se partirmos desta certeza, é possível
observarmos as quatro últimas décadas como um novo momento de decomposição, de
incerteza e de crise universal ou global, que atinge e redireciona o sistema de organização do
capital. Em outras palavras, neste período, o capitalismo, agora sob a égide dos “mercados
globalizados”, mais uma vez não cumpriu suas promessas de desenvolvimento e de
emancipação humana, agravando ainda mais o quadro social que sempre o caracterizou e
demarcando o aprofundamento da crise econômica, política, social e moral que, em seu
18
IANNI (1998) afirma que as metáforas surgem e ganham força em um determinado discurso porque
tentam dar conta de realidades que ainda não foram totalmente codificadas. Esta é a situação, afirma
ele, das “metáforas da globalização”. Neste caso, elas suscitam ângulos diversos de análise para este
fenômeno, desvendando traços fundamentais das configurações e movimentos da sociedade global,
combinando reflexão e imaginação. Tais metáforas entram em diálogo umas com as outras,
desafiando-se e enriquecendo-se mutuamente.
99

interior, já se tornou estrutural. Vale analisarmos cada um dos aspectos desta crise, norteados,
é importante destacar, pela certeza de que a “globalização”, apesar de suas evidentes
referências a um processo efetivo na realidade, guarda determinações e conseqüências que são
aparentes, e que, portanto, devem ser objeto de um desvelamento crítico rigoroso e
responsável.
Não é possível ponderarmos acerca da globalização enquanto momento de
reorganização do sistema do capital sem discursarmos acerca de um conjunto de
determinações históricas que envolvem, em sua origem, os elementos referentes à regulação
fordista e, principalmente, à sua crise. A estrutura de organização internacional do capital
vivia, então, uma fase relativamente estável, com a paridade fixa entre as moedas e com a
base produtiva estabelecida em torno do modelo fordista de inovações tecnológicas e
organizacionais e do consumo de massas19. Neste cenário, acomoda-se uma acumulação de
capital essencialmente ligada à economia regulada pelo Estado nacional, embora o fluxo de
investimento externo direto20 já se apresentasse como um elemento significativo para o
desenvolvimento econômico.
Uma série de legislações e mecanismos políticos passou a demarcar, no período pós
Segunda Guerra Mundial, um grau de efetiva autonomia para os Estados nacionais limitarem,
de certa forma, a ação de multinacionais cujo investimento estava subordinado a certas
convenções e a uma relação salarial fordista. Esta regulação era caracterizada, assim, por uma
certa rigidez no processo de acumulação de capital, rigidez esta que, resultante de uma
configuração específica na correlação de forças e na luta de classes naquele momento, pode
instaurar

Uma série de compromissos e reposicionamentos por parte dos principais


atores dos processos de desenvolvimento capitalista. O Estado teve de
assumir novos (keynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais,
o capital corporativo teve de ajustar as velas de certos aspectos para seguir
com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado
teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos

19
HARVEY (1999, p. 121) deixa claro que é esta relação entre produção de massa e consumo de
massa o elemento chave para a compreensão do fordismo e de sua especificidade no processo de
acumulação capitalista e de constituição societária mais ampla. “A separação entre gerência,
concepção, controle e execução também já estava bem avançada em muitas indústrias. O que havia
de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão,
seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo
sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho,
uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática,
racionalizada, modernista e populista.”
20
CHESNAIS esclarece que um investimento estrangeiro é considerado direto quando o investidor
detém 10% ou mais das ações ordinárias ou do direito de voto de uma empresa.
100

mercados de trabalho e nos processos de produção. O equilíbrio de poder,


tenso, mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o trabalho organizado, o
grande capital corporativo e a nação-Estado, e que formou a base de poder
da expansão de pós-guerra, não foi alcançado por acaso – resultou de anos
de luta. (HARVEY, 1999, p. 125).

CHESNAIS (1999, p. 300) apresenta o debate acerca da existência de três formas


institucionais que deram sustentação a esta regulação fordista, capacitando-a para assegurar a
estabilidade e expansão da acumulação capitalista naquele determinado momento:
a) Trabalho assalariado como forma absolutamente predominante de inserção
social e de acesso à renda;
b) Ambiente monetário internacional estável, com instituições e mecanismos que
instituíam as finanças como elementos subordinados às necessidades da esfera
produtiva;
c) Existência de Estados com instituições fortes para regular e disciplinar o
funcionamento do capital privado.
Não é verdade, entretanto, que este modo fordista de uma acumulação regulada e
rígida constituiu um processo de bases puramente nacionais, pois muito de uma “questão
internacional” já se observava neste momento. A expansão do pós-guerra, cenário em que esta
regulação fordista se instaurou e se desenvolveu, dependia, desde então, de uma ampliação
dos fluxos de comércio mundial e de investimento internacional que já demarcava um
desenvolvimento desigual da economia mundial. Desde então, já se observava o quadro
hegemônico do poder econômico e financeiro dos Estados Unidos, que agiam “como
banqueiro do mundo em troca de uma abertura dos mercados de capital e de mercadorias ao
poder das grandes corporações.” (HARVEY, 1999, p.131)
Este quadro parece vivenciar, já a partir de metade dos anos 60, uma crise do próprio
sistema de regulação, que se insere, como já afirmamos, em mais uma crise estrutural do
capital. Este, para mais uma vez garantir seu processo de superacumulação, precisava quebrar
os elementos daquele padrão de regulação fordista, derrubando as formas tradicionais da
economia do Estado nacional, agora em um contexto de internacionalização. Nas palavras de
CHESNAIS (1999, p. 306)

(...) as grandes companhias buscavam uma saída para a queda de


rentabilidade do capital, para a saturação da demanda de bens de consumo
duráveis e para a contestação dos trabalhadores, na deslocalização acelerada
de suas operações.
101

Em outras palavras, o que podemos ponderar é que, a partir deste período, um


conjunto de fatores deixa claro que o modelo fordista é incapaz de conter e administrar as
contradições inerentes ao capitalismo. Dentre estes fatores, poderíamos destacar:
a) A recuperação financeira e produtiva do capitalismo na Europa Ocidental e no
Japão, que vivencia, ao mesmo tempo, a saturação de seus mercados internos e
o impulso para garantir mercados de exportação para seus excedentes;
b) A falta de flexibilidade para os investimentos de capital fixo de larga escala e
de longo prazo em sistemas de produção de massa;
c) O “poder excessivo” conquistado pela classe trabalhadora durante o momento
de regulação fordista, que direcionava, de forma negativa para o capital, os
mercados, a alocação e os contratos de trabalho;
d) A intensificação dos compromissos do Estado que, diante de demandas cada
vez mais amplas e da restrição da base fiscal para os gastos públicos, cria uma
profunda crise de legitimidade;
e) A profunda recessão de 1973, acelerada pela alta dos preços do petróleo em
todo o mundo.
Assim, o modo de produção capitalista, a partir do último terço do século XX, passou
a criar formas alternativas a esta institucionalização fordista, dando início a um período de
reestruturação econômica e de reajuste social e político. A relação salarial foi diretamente
afetada, passando a formas mais flexíveis e instáveis de pagamento pela força de trabalho,
quando não pelo desemprego estrutural, mesmo em países capitalistas centrais. Ao mesmo
tempo, a capacidade de regulamentação dos Estados nacionais ficou bastante reduzida,
deixando que o capital-dinheiro se configurasse como uma força quase incontrolável. Nas
palavras de HARVEY (1999, p. 140)

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto


direito com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos
processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões
de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção
inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros,
novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve
rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre
setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto
movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então
subdesenvolvidas (...). Ela também envolve um novo movimento que
chamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os
horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram,
102

enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte


possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço
cada vez mais amplo e variegado.

Diante de todo este quadro de reestruturação capitalista é que podemos analisar, com
mais rigor, este conjunto de novas determinações que se convencionou chamar de
globalização. Valendo-nos das observações de CHESNAIS, que prefere a expressão
“mundialização do capital”, veremos que ela se refere, enquanto constituição da base material,
a uma nova configuração do capitalismo em escala mundial e a novos mecanismos que
comandam seu desempenho e sua regulação, remodelando a vida social em todas as suas
dimensões21. Apesar de constituir-se como um avanço e um prolongamento do processo de
internacionalização do capital de que nos falavam Marx e Engels já no Manifesto do Partido
Comunista, a atual fase guarda particularidades que a tornam diferente de etapas anteriores do
desenvolvimento capitalista.
IANNI (1998) observa que BRAUDEL e WALLERSTEIN constroem,
respectivamente, as discussões acerca da “economia-mundo” e do “sistema-mundo”, onde
cada um, com suas devidas particularidades, tende a dar primazia, neste processo de
globalização, ao aspecto econômico em seu sentido mais amplo22. Esta capacidade de se
expandir geograficamente, conquistando espaços os mais variados, é um dos elementos que
garantem, segundo estes autores, a sobrevivência do capitalismo e a superação de suas
sucessivas crises. A construção de uma rede de processos produtivos interligados permite que
este sistema, em seus repetitivos quadros críticos, “se recupere” em alguma parte do mundo e
possa, através de economias-mundo regionais, situadas em diferentes estágios de organização
e dinamização, manter sua lógica de acumulação e de reprodução societária.
Para estes autores, o Estado-nação ainda permanece como agente “real ou ilusório”, a
nação é um fato histórico e geográfico, um processo que se cria e recria continuamente, mas,
no que se refere à economia, tais realidades vivenciam um declínio através da emergência de
novos e poderosos centros mundiais de poder, soberania e hegemonia. A “economia-mundo”
transcende o local, o nacional e mesmo o regional, e se apresenta como um “todo em
movimento” atravessado por movimentos de integração e fragmentação.

21
Chesnais nos chama atenção para o fato de que a internacionalização do capital, em todas as suas
fases, sempre incluiu o comércio exterior, o investimento exterior direto e os fluxos internacionais do
capital que mantém a forma monetária. É necessário abordar estas três estratégias como um todo
hierárquico, que assume diferentes configurações ao longo da história do modo de produção
capitalista.
22
Para IANNI, Braudel está marcadamente influenciado pelo funcionalismo de Durkheim e
Wallerstein, por outro lado, demonstra clara aproximação com o estruturalismo marxista na análise do
capitalismo moderno.
103

Para Wallerstein, a “economia-mundo” é agora universal, no sentido de que


todos os Estados nacionais estão, em diferentes graus, integrados em sua
estrutura central. (...) Uma característica importante do sistema unificado de
Wallerstein é o padrão de estratificação global, que divide a economia
mundial em áreas centrais (beneficiárias da acumulação de capital) e áreas
periféricas (em constante desvantagem pelo processo de intercâmbio
desigual). O sistema de Estados nacionais, que institucionaliza e legitima a
divisão centro-periferia, também concretiza, por meio de uma intrincada rede
de relações legais, diplomáticas e militares, a distribuição do poder no
centro. (CAMILLERI & FALK, In IANNI, 1998, p. 36-37).

Parece unânime, entre os autores preocupados em desvendar as particularidades deste


momento da acumulação de capital, a certeza de que a financeirização constitui o grande
elemento diferenciador da contemporaneidade de desenvolvimento capitalista. Se a riqueza
continua sendo criada na produção, como bem nos ensinara Marx, a esfera financeira se
tornou, no momento atual, o pólo de repartição e de destinação desta riqueza, com uma
dinâmica e um crescimento aparente e praticamente incontroláveis. Como nos propõe
CHESNAIS (1999, p. 14-15)

O estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centralização de


gigantescos capitais financeiros (ou fundos mútuos e fundos de pensão), cuja
função é frutificar principalmente no interior da esfera financeira. (...) Não é
mais uma Henry Ford ou um Carnegie, e sim o administrador praticamente
anônimo (e que faz questão de permanecer anônimo) de um fundo de pensão
com ativos financeiros de várias dezenas de bilhões de dólares, quem
personifica o “novo capitalismo” de fins do século XX.

Desde fases anteriores da história capitalista, o setor financeiro já se constituía como


um elemento de fundamental importância para a reprodução deste sistema. No momento
atual, entretanto, ele não só cresce em proporções significativas, dando origem a uma
explosão de novos instrumentos e mercados financeiros, como também passa a concentrar
muito mais poder, dinamizando e flexibilizando a produção, os mercados de trabalho e o
consumo. “O sistema financeiro alcançou um grau de autonomia diante da produção real sem
precedentes na história do capitalismo, levando este último a uma era de riscos financeiros
igualmente inéditos” (HARVEY, 1999, p. 181). Chesnais nos aponta dois mecanismos
característicos para o desenvolvimento e o fortalecimento desta esfera: a “inflação do valor
dos ativos”, com a formação de um “capital fictício” e, principalmente, as transferências
efetivas de riqueza para a esfera financeira, através prioritariamente, do serviço de dívida
pública e das políticas monetárias a ele vinculadas.
104

Este capital financeiro tornou-se, então, o grande impulsionador da economia mundial,


e os Estados nacionais periféricos, “seus grandes reféns”, contribuem para este novo quadro
através de um endividamento cada vez maior. Não são questionadas, de forma sistemática, as
propostas e as exigências deste novo perfil do liberalismo e, pelo contrário, as maiores
potências do globo se voltam para a defesa intransigente deste capital monetário,
independente dos custos políticos e sociais que esta opção possa acarretar. Além dos Estados,
esta esfera financeira também consegue subordinar o investimento dos grandes grupos
industriais com prioridades que tendem a reduzir o tempo necessário para a valorização do
capital industrial, atingindo, de forma direta, as classes trabalhadoras, suas relações de
trabalho e seu processo de organização na esfera produtiva.
Como nos propõe SAMPAIO JÚNIOR (1999, p. 18)

A extrema mobilidade do capital internacional comprometeu o controle das


sociedades nacionais sobre as empresas transnacionais. Os aumentos nas
escalas mínimas de produção fizeram com que os novos processos
produtivos exigissem um espaço econômico de referência mais amplo, que
tendia a ultrapassar os limites das fronteiras dos Estados nacionais. A
integração do sistema financeiro internacional levou ao paroxismo a
liberdade de movimento de capitais, generalizando, para as economias
centrais, um problema que até então se restringia aos países
subdesenvolvidos: a incapacidade de circunscrever o circuito de valorização
do capital ao espaço econômico nacional.

O debate contemporâneo acerca deste cenário afirma que o capital perde, neste
sentido, as determinações de suas formas particulares e singulares de desenvolvimento,
subordinando-se às formas do capital em geral. Não bastam, neste momento, as formas
tradicionais de reprodução em âmbito nacional, que ainda existem, mas que não são mais
determinantes. As transnacionais precisam redesenhar o mapa geoeconômico e geopolítico,
libertando-se das amarras que antes eram colocadas pelos Estados nacionais e por suas
demandas mais específicas. As exigências de instituições, organizações e corporações
transnacionais, ou propriamente mundiais, parecem dar o novo tom deste momento
contemporâneo.
Segundo uma parte dos autores contemporâneos que trabalham esta temática, dentre os
quais destacamos IANNI (1998), uma das provas mais concretas desta internacionalização
está colocada justamente pelo fato de que o principal opositor do sistema do capital, que
historicamente ficamos conhecendo pela expressão “socialismo real”, vai, aos poucos
demandando a presença do capital como elemento essencial para a sua organização e
dinâmica. Aos poucos, as economias centralmente planificadas demonstram-se estimuladas e
105

desafiadas pelas oportunidades de participar das oportunidades de mercado oferecidas. Nas


palavras deste autor,

Quando termina a Guerra Fria, inclusive como decorrência do modo pelo


qual o capitalismo estava bloqueando e penetrando o mundo socialista, o
“Segundo Mundo”, são outros espaços que se abrem. Sob vários aspectos, é
como se o mundo todo se tornasse o cenário das forças produtivas acionadas
e generalizadas pelas corporações transnacionais, conjugadas com ou
apoiadas pelos governos dos países capitalistas dominantes. (1998, p. 50)

Está decretado, para autores que defendem esta perspectiva, o “fim da geografia”, no
sentido de que a localização geográfica não importa mais em matéria de finanças e de
desenvolvimento capitalista. O “mundo”, enquanto uma concretude e uma determinação antes
não manifestadas, aparece como o caminho privilegiado para a definição, a gestão e a
realização dos interesses do capital, ou seja, para o processo de acumulação global de riqueza.
Entretanto, quando discutimos os caminhos da “mundialização do capital”, estamos
tratando de um fenômeno resultante não só da liberalização e da desregulamentação que
garantiram a abertura dos mercados nacionais. Também podemos afirmar que operações
altamente seletivas direcionam a finalidade lucrativa, dando aos grandes grupos do capital
internacional total liberdade para decidir quanto, como, onde e até quando investir. O livre
acesso às economias periféricas e, mais ainda, a crescente dependência destas últimas
garantem ao capital internacional a possibilidade de optar pela exploração dos diferentes
mercados através dos produtos importados, da produção local, ou meramente da especulação
financeira. Assim, consegue aproveitar as potencialidades lucrativas de cada região,
procurando aquelas que possam oferecer, em cada realidade específica, melhores
oportunidades de acumulação e reprodução23. Assim, podemos compreender que os vínculos
deste capital internacional com as diversas realidades nacionais dependem da importância
destas últimas na concorrência intercapitalista em escala mundial.
Esta constatação, de que o mercado globalizado busca se expandir através dos mais
diferentes caminhos, de acordo com a “vocação” de cada região para o desenvolvimento
capitalista, traz elementos que fortalecem a perspectiva de uma possível “interdependência
entre as nações”. Na verdade, para esta teoria, que se estrutura, segundo IANNI (1998),
enquanto uma análise sistêmica, a sociedade mundial já compõe um sistema econômico e
unitário, onde as potências mundiais estabelecem as condições de ordem neste sistema global.

23
IANNI (1998) chama a atenção para o fato de que as facilidades geradas pelo processo de
desterritorialização do capital acabam por facilitar também a confusão entre o dinheiro com origem
legal e aquele que se formou por atividades ilícitas, tais como o narcotráfico e a corrupção.
106

Assim, neste cenário, deve ser valorizada e privilegiada a funcionalidade sincrônica, a


articulação eficaz e produtiva. Neste sistema global, já estabelecido e do qual as nações são
interdependentes, prevalecem a estabilidade, a normalidade, a harmonia, o equilíbrio, a
eficácia, a produtividade, a ordem e a evolução. O mundo é uma totalidade harmônica,
contendo partes e atores que estabelecem uma interdependência negociada, administrada,
pacífica.
A teoria da interdependência das nações se apresenta relacionada com a perspectiva de
“ocidentalização”, de modernização e de “racionalização” do mundo. Observa-se uma
sedimentação dos padrões e valores sócio-culturais predominantes na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos, traduzindo a idéia de que o capitalismo é um processo civilizatório superior e
inexorável, que tende a se desenvolver pelos quatro cantos do mundo, sobrepondo-se a
quaisquer outras formas de organização da vida e do trabalho. Nesta direção, é vital que as
diferentes sociedades compartilhem de uma mesma orientação macro-econômica, através da
vigência e da generalização das forças do mercado capitalista, em âmbito global, com pólos
dominantes e centros decisórios em alguns poucos Estados nacionais mais fortes.
A globalização aparece, desta forma, como um padrão de modernização que dissolve e
ultrapassa fronteiras de todo tipo. Neste padrão, moderno é sinônimo de prático, técnico e
instrumental, permeando as mais diversas esferas da vida social. Generaliza-se um
pensamento pragmático e tecnocrático, que apresenta tarefas fundamentais para as elites
intelectuais: é preciso que este grupo assuma a tarefa de viabilizar a execução e a dinamização
dos objetivos e meios desta mundialização do capital, possibilitando que as coisas, as gentes e
as idéias passem a ser atravessados pela desterritorialização. Teremos a oportunidade de
problematizar melhor esta função das elites intelectuais24 neste processo de “modernização
capitalista” quando estivermos problematizando o que denominaremos de “cultura da
globalização”. A ela cabe construir e divulgar ideologicamente a proposta de que chegou ao
fim a era conturbada do capitalismo e a mundialização é, agora, um processo possível,
necessário, equânime e inevitável. Ainda que esta modernização não se dê de modo abrupto e
monolítico, convivendo, portanto, com diferentes padrões, valores e instituições, ela tende a
predominar, inaugurando tendências no sentido da individuação e do individualismo, da
mercantilização e da acumulação capitalista em todas as instâncias da vida social. O
parâmetro de modernização contemporânea é dado pelas sociedades mais desenvolvidas, ou

24
IANNI (1998) nos fala, inclusive, em tecno-estruturas, que reúnem profissionais diversificados, de
todas as qualificações, com o objetivo de diagnosticar, planejar e implementar diretrizes gerais em
conformidade com os interesses predominantes nas estruturas de dominação política e apropriação
econômica.
107

simplesmente dominantes, e deve ser seguido e almejado pelas que se encontram em uma
posição secundária e dominada.
Assim, se inaugura um padrão de racionalidade capitalista, onde são criados
parâmetros de organização das diversas ações sociais. Numa dimensão expansionista, o
mundo foi sendo permeado por valores, instituições e organizações característicos do
capitalismo enquanto modo de produção, que, como vimos, desde o seu início, já tinha uma
orientação internacionalizada. O direito, por exemplo, aparece como uma parte fundamental
desta racionalização da sociedade, traduzindo estes padrões e valores para o formato de um
aparato jurídico-administrativo que se une àquele universo de modernização capitalista.
Entretanto, o pensamento social crítico tem nos possibilitado compreender que uma
forte dose de idealização demarca esta tese da interdependência das nações, da modernização
e da racionalização das sociedades contemporâneas. A mundialização do capital não se
desenha como um momento de integração ou de igualdade nas condições de participação no
grande mercado mundial. Muito pelo contrário, apesar de todo o discurso da “crise do Estado-
nação”, vivemos em um cenário extremamente marcado por relações econômicas e políticas
de competição, de dominação e de dependência, acentuando elementos de hierarquização e de
hegemonia entre os países. A distância entre “países ricos e pobres” é cada vez maior, sendo
que os últimos permanecem em uma posição acentuadamente subordinada.
É diante de toda esta configuração crítica da base material do capitalismo
contemporâneo que J. L. FIORI (1999) recupera e dá nova significação ao tema da “riqueza
de algumas nações”. O que podemos perceber, neste início de século, é que o cenário de
internacionalização acima descrito aponta para um horizonte de incertezas e de
incontrolabilidade do livre movimento do capital, perpetuando, para os países de capitalismo
periférico, uma situação de “verdadeira tirania financeira”. Assim, em um contexto de
internacionalização, de flexibilização das fronteiras econômicas nacionais e da anunciada
“crise do Estado-nação”, a simples competição intercapitalista em mercados desregulados e
globalizados não assegura o desenvolvimento nem muito menos a convergência entre as
economias nacionais do centro e da periferia do sistema capitalista mundial. A “questão
nacional” permanece em voga, nesta perspectiva crítica, ganhando visibilidade e significação,
sob novos parâmetros de discussão. A lógica perversa dos mercados auto-regulados,
estabelecida agora em um quadro de hegemonia imperialista recomposta, demonstra ser a
responsável por uma gigantesca concentração empresarial e territorial da riqueza, com uma
subordinação cada vez maior dos países periféricos que
108

Quando optam pela alternativa de atrelar suas moedas à da potência


dominante mundial ou regional, condenam-se a ciclos curtos de modesto
crescimento (na média do ciclo), altas taxas de desemprego e
ingovernabilidade, sustentável só durante os períodos de disponibilidade de
capitais e créditos internacionais abundantes e baratos. (FIORI, J. L., 1999,
p. 39).

Podemos perceber, neste contexto, a continuidade de uma ordem hierárquica


internacional, com claras perspectivas hegemônicas, onde parece impensável o
desenvolvimento e a mobilidade ascendente de todas as economias nacionais. O mundo do
“capital globalizado” é, cada vez mais, um mundo de amplas desigualdades econômicas, cujos
custos sociais, como poderemos observar, nos parecem cada vez mais graves e reivindicam
intervenções cada vez mais urgentes.
Neste debate acerca da hegemonia e da hierarquia entre nações, há que se
problematizar a presença dos Estados Unidos, que, embora frágeis industrialmente, destacam-
se no cenário de expansão e de nova significação do capital financeiro, o qual aumenta,
consideravelmente, seu poderio nos planos político e militar. Durante as décadas de 80 e 90, a
imensa diferenciação entre países credores e devedores e o sobreendividamento externo dos
países de capitalismo periférico, confirmaram a presença dos Estados Unidos como o pólo
propulsor do crescimento econômico destes países, através de uma série de “concessões”
unilaterais antecipadas e da adoção do receituário neoliberal proposto pelo Consenso de
Washington. A hegemonia norte-americana se construiu, entretanto, no interior de um
“mundo triádico”25, composto ainda pelo poder econômico e político do Japão e da União
Européia.
O que se percebe é que, se a afirmação destes outros dois grandes grupos econômicos
pode ameaçar a hegemonia norte-americana, isto não abala e, pelo contrário, fortalece
imensamente as estruturas da mundialização do capital. Estes três “pólos” concentram, então,
o grande volume do capital financeiro investido em todo o mundo e demarcam sua existência
e seu poderio através desta base de financeirização. Dados apresentados por CHESNAIS
(1999, p. 63) demonstram que, ao longo da década de 80, tais grupos econômicos
movimentavam entre si mais de 80% do investimento externo direto (num movimento de
investimento internacional cruzado), o que ocorria através principalmente, de aquisições e
fusões de empresas já existentes, com vistas a uma maior capitalização das mesmas. Assim, o

25
CHESNAIS afirma que o poderio econômico, político e social no contexto da mundialização do
capital esta construído em torno de uma tríade, que também é denominada de “imperialismo coletivo”.
Compõem esta tríade os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, sendo que o primeiro
apresenta posição hegemônica.
109

desenvolvimento e a acumulação capitalistas sustentam e mantêm a si mesmos, configurando


e fortalecendo a estrutura de hegemonia que se forma no contexto internacional. Nesta lógica,
a Tríade atua com plena liberdade no interior de suas fronteiras e busca estabelecer com rigor
os caminhos e os passos que demarcarão a “integração” dos países em desenvolvimento neste
cenário.

Na lógica da ordem internacional hoje emergente, o desenvolvimento


nacional fica excluído do horizonte de possibilidades dos países periféricos.
Cabem-lhes, agora, basicamente, três funções na economia mundial:
franquear o espaço econômico à penetração do capital internacional; coibir o
êxodo de correntes migratórias que possam gerar instabilidade nos países
centrais; e aliviar o estresse produzido pelas regiões altamente
industrializadas no ecossistema mundial, aceitando o triste e paradoxal papel
de pulmão e lixo da civilização ocidental. (SAMPAIO JÚNIOR, 1999, p.
24).

O que vai demarcar esta “inevitável” globalização e ditar as normas da “adaptação”


necessária é o investimento internacional, muito mais do que o comércio exterior. Este
investimento, do qual a maioria dos países periféricos se tornou absolutamente dependente,
passa a determinar a produção de bens e serviços, numa inversão significativa no processo de
acumulação capitalista contemporâneo.

As estratégias internacionais do passado, baseadas nas exportações, ou as


estratégias multidomésticas, assentadas na produção e venda no exterior, dão
lugar a novas estratégias, que combinam uma série de atividades
transfronteiras: exportações e suprimentos externos, investimentos
estrangeiros e alianças internacionais. As empresas que adotam essas
estratégias podem tirar proveito de um alto grau de coordenação, da
diversificação de operações e de sua implantação local. (OCDE apud
CHESNAIS, 1999, p. 27)

A globalização, assim desenvolvida a partir desta supremacia do capital financeiro,


pode garantir, também ao capital produtivo, uma intensa mobilidade, caracterizada pela maior
flexibilidade dos processos de produção, pela deslocalização de tarefas, pela fragmentação
dos processos de trabalho e pela busca de melhores preços da força de trabalho. No entanto,
este quadro se torna ainda mais acentuado quando ponderamos que este capital produtivo
encontra, na aliança com o capital financeiro, oportunidades ainda mais amplas de
sobrevalorização, aliando flexibilidade e diversidade de operações através dos mecanismos de
investimento externo direto. Aprofunda-se, em decorrência disso, uma concorrência ainda
mais acirrada entre os paises dependentes, em torno da atração de maiores e melhores
110

investimentos externos, independentemente de quaisquer políticas que antes faziam sentido


através da lógica de “soberania nacional”.
A globalização não atua sobre estes países, portanto, meramente como um processo
externo e coercitivo. Ela conta com a preciosa e definitiva “colaboração” dos Estados que,
responsáveis pela condução deste processo em âmbito nacional, impulsionaram o avanço
aparentemente incontrolável das estruturas do capital financeiro. Em outras palavras, para nos
apropriarmos, mais uma vez, das discussões anteriores acerca da perspectiva gramsciana, a
globalização possui uma clara dimensão hegemônica, no sentido da obtenção do consenso e
da legitimidade, e os Estados nacionais recolocam agora sua importância, a partir do momento
em que moldam suas realidades internas para garantir maior adaptabilidade a este capital
“mundializado”.

Sem a intervenção política ativa dos governos Tatcher e Reagan, e também


do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a eles, e sem a
implementação de políticas de desregulamentação, de privatização e de
liberalização do comércio, o capital financeiro internacional e os grandes
grupos multinacionais não teriam podido destruir tão depressa e tão
radicalmente os entraves e freios à liberdade deles de se expandirem à
vontade e de explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde
lhes for conveniente. (CHESNAIS, 1999, p. 34).

As estratégias de investimentos externos configuram-se como globais para os


interesses dos grandes oligopólios mundiais, concentrados nos poucos países que compõem a
Tríade. Para os demais atores, elas são sinônimo de um quadro cada vez mais acentuado de
dependência e de inclusão periférica no cenário capitalista contemporâneo, extremamente
polarizado, com um recuo dos investimentos e das transferências de tecnologia para o interior
dos próprios países em desenvolvimento. Neste cenário, observamos, inclusive, uma
marginalização de áreas inteiras dos continentes. Dados apresentados por HOBSBAWN
(1997, p. 412) afirmam que, no início da década de 90, 26 das 42 “economias de baixa renda”
não representavam qualquer interesse para os investimentos do grande capital mundializado.
Elaborar uma análise do processo de globalização em curso nestes termos significa
reafirmar importantes elementos de continuidade e de aprofundamento de relações próprias da
fase imperialista, compreendida como uma ampla teoria acerca do funcionamento da
economia mundial no estágio do capitalismo monopolista. Tem origem, desta forma, um
“sistema global do capital”, enquanto uma poderosa realidade independente e o imperialismo,
enquanto teoria explicativa da realidade, se recoloca, já não se limitando mais à esfera do
111

intercâmbio comercial, mas também ao movimento do capital produtivo de valor e de mais-


valia e do capital financeiro.
LÊNIN (2002), no início do século XX, já demarcava um conjunto de características
que nos parecem orientadoras para analisarmos o momento contemporâneo da “globalização”.
Seriam elas:
a) Concentração e centralização do capital industrial e formação de grandes
grupos industriais, designados como monopólios;
b) Movimento de concentração e centralização do capital monetário, verificado
no setor bancário e originário do capitalismo financeiro;
c) Importância adquirida pela exportação de capitais, em contraposição às
exportações de mercadorias, desencadeando mecanismos de centralização do
valor e da riqueza (capital rentista, com acentuado caráter parasitário).
Estes elementos nos levam a considerar que é necessário recuperar e atualizar esta
teoria do imperialismo, com vistas a buscar a compreensão da base material que explica
outras dimensões da vida social. Consideramos que este exercício é de fundamental
importância para que possamos problematizar, posteriormente, a tão anunciada “globalização
da cultura”.
Valendo-nos, assim, das contribuições de ALMEIDA (2003), podemos retomar cinco
pontos a serem considerados neste movimento de recuperação e atualização do paradigma do
imperialismo para a compreensão da realidade atual, a saber:
a) Podemos observar uma expansão da centralidade das relações entre capital e
trabalho, onde a industrialização crescente e específica de um grande número
de países de capitalismo periférico fortalece ainda mais a compreensão do
capital como uma relação social, em sua fase expansionista.
b) Constrói-se, nesta “periferia do capitalismo”, um sistema que não só repete as
bases desta relação social, mas também as diferencia, aprofunda e particulariza.
Desta forma, a partir de meados da década de 80, não se pode mais analisar as
transformações ocorridas no centro do capitalismo desenvolvido sem analisar
suas conexões com o que se constitui como relações sociais nas formações
dependentes.
c) No momento clássico do imperialismo, somente as formações sociais
hegemônicas eram estatais-nacionais. Hoje este tipo de formação atinge
praticamente todo o mundo, com a proliferação de Estados burgueses
nacionais, o que muitas vezes cria a necessidade de
112

(...) encenar a representação do povo-nação como uma coletividade soberana


e, neste mesmo processo, reproduzir ou redefinir as relações de dependência
desta formação social em relação aos centros do capitalismo hegemônico.
(ALMEIDA, 2003, p. 65).

d) Como já mencionamos, a configuração contemporânea do sistema do capital


estabelece mudanças até mesmo no centro dos países hegemônicos com a
formação e o fortalecimento da Tríade, onde se destaca o poderio norte-
americano.
e) Também perde força a hegemonia do capital produtivo, o qual, a partir de
agora, fica subordinado, econômica e politicamente, ao capital financeiro,
dando um caráter de instabilidade crescente ao sistema internacional e seus
“mercados financeiros emergentes”.
Estaríamos diante, sobretudo a partir do final do século XX, de uma nova etapa desta
internacionalização do capital que se complexificou e passou a formar um todo articulado,
envolvendo o movimento do capital financeiro, o investimento do capital produtivo e o
intercâmbio comercial. Estas seriam três estratégias de desenvolvimento e acumulação do
capital, agora em uma dimensão global, que compõem ciclos diferenciados de
internacionalização do capital em cada época histórica. É importante realizarmos
considerações mais aprofundadas sobre cada um destes elementos.
O salto e a importância adquirida pelo investimento externo direto nos anos 80
demonstram as particularidades do movimento do capital financeiro, o qual parece adquirir
uma significativa autonomia diante do capital industrial. Este último, embora ainda comande
a criação de valor e de riqueza, fica subordinado ao primeiro, a cujas exigências deve se
submeter. Em outras palavras, a produção não está mais prioritariamente orientada pela
produção de mercadorias que satisfazem necessidades humanas, mas para mecanismos que
acelerem o crescimento, a reprodução e a acumulação do capital financeiro.
A configuração contemporânea das empresas multinacionais exemplifica com bastante
clareza estas afirmações, pois estas empresas vêm passando por um processo de
diversificação que intensifica e facilita sua internacionalização. Elas permanecem com uma
base nacional, que não apenas garante seu crescimento como também define sua estratégia e
sua competitividade, através da ação e da “ajuda” do “seu” Estado. Além disso, apresentam-se
atualmente como um grupo altamente diversificado, envolvido em múltiplas atividades,
buscando uma valorização do capital diferenciada e multiforme. Dentre estas atividades,
destacam-se estratégias predominantemente financeiras, operando e intervindo em mercados
113

financeiros mundializados. São, assim, denominadas “multinacionais de novo tipo”


(DUNNING In CHESNAIS, 1999, p. 77) e ganham extrema representatividade no momento
atual porque

O grupo multinacional, então, precisa ser eminentemente rentável, mas


atualmente essa rentabilidade não pode mais ser baseada unicamente na
produção e comercialização próprias do grupo e de suas filiais. Precisa
basear-se também no que Dunning chama, de forma vaga e um tanto
eufemística, de suas “relações com outras empresas”. (IBIDEM, p. 77-78).

Estas “relações com outras empresas” acontecem tendo como centro, mais uma vez, a
lógica da financeirização ou da especulação, através de novas formas de investimento, onde a
multinacional disponibiliza uma fração de capital e, portanto, conquista o direito de conhecer
a conduta de outra empresa não através de um aporte de capital, mas de um investimento sob
a forma de ativos imateriais. Tais investimentos apresentam, conseqüentemente, um caráter
altamente flexível e rentista, desligando-se da maioria dos riscos, e/ ou dos custos vivenciados
por estas empresas.
Assim se formam os chamados “oligopólios mundiais”, grupos que demarcam a
absoluta interdependência entre companhias, como espaços não só de concorrência e
rivalidade, mas também de colaboração, criando barreiras à entrada de outros grupos ou
empresas. Tais oligopólios se definem pela capacidade de se sustentar num cenário de
concorrência global, uma vez que atuam simultaneamente em mercados variados e
redesenham, inclusive, a questão da localização produtiva industrial. Identificar as “vantagens
de cada país” significa algo além de buscar mão-de-obra mais barata. Na verdade, tal
localização envolve demandas maiores, mercados mais promissores e, sobretudo, benefícios
fiscais que tornem determinados países “mais atraentes” para o grande capital mundial.
Torna-se muito mais ampla e definida, então, a noção de “concorrência mundializada”.
Em um primeiro plano, temos uma perspectiva mais direta desta concorrência, onde empresas,
em todo o mundo, que antes estavam limitadas, mas também “protegidas”, pelos freios e
entraves colocados pelos Estados-nação ao livre jogo do mercado, agora se enfrentam de uma
forma mais direta e radical, oriunda das políticas de liberalização e de desregulamentação das
economias nacionais. No entanto, em um contexto oligopolista mundial, esta concorrência
não é mais anônima. Estes grandes grupos não só conhecem seus rivais, como também
controlam suas estratégias de acumulação e seus graus de interdependência.
Entretanto, não podemos desprezar um outro nível de concorrência neste cenário
mundializado. Trata-se da disputa pelos próprios investimentos dos “oligopólios mundiais”, o
114

que atinge sobretudo a estrutura econômica, política e social dos chamados países em
desenvolvimento. Nesta questão, os Estados nacionais têm um papel fundamental, de
aumentar as “vantagens de seu país de origem”, tornando-o mais atrativo. Teremos a
oportunidade de analisar as conseqüências desta disputa para a configuração das classes
trabalhadoras nestes países, bem como para sua organização política.
Assim, esta “globalização”, longe de garantir uma maior integração ou equidade entre
economias nacionais de diferente porte, institui uma concorrência e uma rivalidade ainda mais
acirradas nesta arena, agora global, exigindo dos grupos oligopolistas novas estratégias e
novos modos de coordenação e controle, que sempre significa, em última instância, uma
maior exploração das desigualdades e das “vantagens” nacionais, mesmo dentro dos países
que compõem a Tríade. Como já tivemos a oportunidade de mencionar, com relação a estas
estratégias, as multinacionais norte-americanas gozam de melhores e maiores condições de
afirmação no cenário oligopolista mundial. São fatores de diferenciação para estas
multinacionais: a posição dos EUA no sistema financeiro mundial, com mercados
inigualáveis em suas dimensões e em sua diversidade, o poderio político e militar, que
estabelece uma total dependência de outros países com relação às decisões tomadas pelos
EUA e, finalmente, sua penetração cultural, com uma produção planetária de imagens e mitos
mercantilizados, tais como o inglês como “língua mundialmente dominante”, a influência
norte-americana nas indústrias de comunicação de massas e “o „sonho‟ projetado pela
indústria cultural do capitalismo e da mercantilização total das atividades e das dimensões da
vida social” (CHESNAIS, 1999, p. 24).
GUIMARÃES (1999) enumera, ainda sobre este debate, os principais objetivos a
serem alcançados pela estratégia norte-americana de afirmação e de sustentação de sua
posição hegemônica:
a) Implantar um sistema econômico internacional cujas normas garantam a mais
livre circulação de bens, serviços e capital;
b) Manter a capacidade de proteção de setores da economia americana ameaçados
pela competição estrangeira;
c) Induzir terceiros Estados a adotar instituições, normas de atividade e políticas
econômicas semelhantes às americanas;
d) Garantir o acesso americano direto às fontes de matéria-prima essenciais à
economia americana, em especial à energia;
e) Garantir a mais ampla liberdade de ação às empresas americanas que atuam em
terceiros países;
115

f) Impedir a transferência de tecnologia que permita o surgimento de


competidores efetivos nos mercados de ponta mais lucrativos.
Os grupos originários de países que, mesmo com uma posição econômica dominante,
não dispõem dos fatores hegemônicos norte-americanos, constituem e determinam o que
CHESNAIS (1999, p. 121) denominou de “competitividade estrutural”, ou seja, deriva da
“expressão dos atributos do contexto produtivo, social e institucional do país”. Entre estes
atributos, podemos chamar atenção para:
a) A competitividade intrínseca do setor de bens de capital ou de bens de
investimento;
b) As relações dos bancos e do sistema financeiro com a indústria, pois a
capacidade de proteger e de salvaguardar o investimento está nas mãos do
sistema financeiro;
c) As “externalidades”, dentre as quais podemos incluir as infra-estruturas e os
serviços públicos, o nível de qualificação da mão-de-obra, a qualidade do
sistema de pesquisa e das infra-estruturas científicas.
No que se refere à deslocalização da produção e à afirmação mundial destas
multinacionais, destaca-se ainda como fator importante a proximidade dos centros produtivos
com as principais bases das empresas. É até possível, para os grandes grupos multinacionais,
suportar um custo maior com a força de trabalho de média ou baixa qualificação, desde que
possam voltar a centralizar o conjunto de suas operações perto de suas bases principais. Além
do mais, o contexto de mundialização do capital se torna tão acentuado que a ameaça do
desemprego, as políticas e teorias governamentais sobre salário e emprego e os acordos com
dirigentes sindicais garantem aos monopólios mundializados a possibilidade de encontrar
mão-de-obra qualificada barata em praticamente todo o mundo.
Sobre a deslocalização da produção, percebemos que

A mobilidade intrínseca do capital, combinada com a variedade de soluções


técnicas oferecidas e a atratividade do suprimento das proximidades (o “just-
in-time”), vai levar necessariamente a uma variedade de esquemas de
localização bem maior do que no passado. (CHESNAIS, 1999, p. 133).

Este contexto de economia globalizada apresenta ao capital, então, múltiplas e amplas


formas de reprodução e de acumulação, demonstrando uma flexibilidade e uma dinamicidade
de difícil controle para os Estados nacionais e suas populações. Este quadro é assim
caracterizado por POCHMANN (2001, p. 15)
116

Nos dias de hoje, a versão mais sofisticada dessa visão teórica renovada
pode ser encontrada nas publicações de importantes agências multilaterais
que definem as possibilidades de expansão nacional como diretamente
associadas à maior integração do mercado mundial. A desregulamentação
dos mercados financeiros, de produtos e do trabalho constitui peça
fundamental no roteiro de medidas necessárias para o melhor acesso ao
desenvolvimento econômico e à ampliação dos postos de trabalho.

Os avanços, o desenvolvimento e as opções de investimento na área de tecnologia se


afirmam como um outro fator ativo de competitividade, muitas vezes decisivo. Neste cenário
mundializado, ela se caracteriza por uma alta difusão intersetorial, ou seja, pela capacidade de
renovar a concepção de muitos produtos e de inventar novos. Tal avanço tecnológico se
constrói através de múltiplos acordos entre diversas empresas, inclusive em âmbito
intertriádico, as quais contam com a figura imprescindível do Estado para manter sua
competitividade através da elaboração e do financiamento de amplos programas. A tecnologia
e os investimentos em pesquisa e desenvolvimento transformam-se, então, em elementos-
chave no processo de internacionalização, deixando claro o poderio econômico destas
economias. O desenvolvimento de novas tecnologias e o seu posterior reconhecimento são
elementos capazes de definir importantes espaços no cenário globalizado, onde, mais uma
vez, a hegemonia norte-americana ganha destaque. Aos países em desenvolvimento, no que se
refere a esta questão, cabe o papel de meramente absorver uma tecnologia internacionalizada,
produzida em outra realidade societária, perpetuando, também por este caminho, uma posição
de subalternidade e de dependência.

[A internacionalização da tecnologia] inclui as medidas tomadas pelos


grupos para proteger suas tecnologias privadas e impedir que sejam imitadas
ou utilizadas sem a concordância dos proprietários, conforme as leis de
patentes e instrumentos jurídicos internacionais, recentemente reforçados. E
abrange ainda a formação de “alianças estratégicas” internacionais entre os
grandes grupos, bem como a elaboração de normas industriais, através de
cooperação que, às vezes, começa desde a fase de desenvolvimento
tecnológico. (CHESNAIS, 1999, p. 163).

Posteriormente, teremos a oportunidade de verificar como este elemento de


internacionalização da tecnologia apresenta elementos orientadores para o grande enigma da
“globalização da cultura”.
É importante apresentarmos, ainda nesta caracterização do processo de
internacionalização do capital, reflexões acerca do crescimento e da diversificação do setor de
117

serviços, considerado como uma “nova fronteira” para a expansão capitalista. Algumas
atividades deste setor vivem uma internacionalização mais antiga, como o transporte marítimo
e a atividade mercantil. No entanto, as multinacionais industriais no período contemporâneo
criaram as condições e as exigências de novos serviços internacionalizados, como a auditoria,
a publicidade, a consultoria, o marketing, etc., tendo em vista, sobretudo, o atendimento a
uma demanda aparentemente homogeneizada em torno das expectativas de consumo do
capitalismo avançado.
Esta expansão do setor de serviços num quadro globalizado encontrou incentivo
também na contenção dos serviços públicos que, em uma fase anterior, eram os garantidores
da infra-estrutura necessária para o desenvolvimento do capitalismo. Assim, o movimento de
liberalização e de desregulamentação, levado adiante pelos mais diversos Estados nacionais
comprometidos com a proposta neoliberal, permitiu o avanço destes serviços privados,
chegando a muitas áreas antes orientadas pelos monopólios estatais, tais como as
telecomunicações, os grandes meios de comunicação de massas e os serviços sociais. Abre-se,
portanto, um novo campo para o investimento externo direto, oferecendo oportunidades de
expansão para indústrias que buscam diversificar suas ações em direção àquela
superacumulação de que falávamos anteriormente.
CHESNAIS aponta dois elementos orientadores desta diversificação:

1) o domínio que esses grupos querem manter sobre aspectos


complementares dos quais depende parte da rentabilidade de suas operações;
2) o lugar que certos serviços continuam ocupando, em relação ao
movimento total de valorização do capital. (1999, p. 188)

Este crescimento do setor de serviços no âmbito globalizado se identifica, então, com a


necessidade de responder às novas exigências de mercado das indústrias multinacionais. Um
bom exemplo é o grande crescimento dos gastos com publicidade, tentando atender à
concorrência oligopolista e à diferenciação de produtos, selecionando melhor a demanda e
buscando condições de oferecer serviços aparentemente personalizados.
O debate relativo ao investimento externo direto representa, portanto, na
contemporaneidade da internacionalização do capital, o principal elemento de um quadro
hierárquico que envolve, também, o comércio exterior e o fluxo internacional do capital em
seu padrão monetário. Estes dois elementos completam, portanto, o cenário de
desenvolvimento capitalista, que determinará nossos estudos sobre a cultura.
118

Quando ao comércio exterior, percebemos que este constitui uma esfera com
acentuada polarização, criando um quadro de total marginalização de muito países. O sistema
mundial do comércio exterior continua altamente hierarquizado, o que decorre de fatores
econômicos, de mudanças científicas e tecnológicas e de configurações políticas, onde pesa,
sobretudo, a intensidade da intervenção estatal nos quadros da economia nos países centrais e
periféricos, através de incentivos fiscais e do controle de taxas de importação e exportação.
O sistema mundial de intercâmbio parece reforçar alguns elementos dos quais já
tratamos anteriormente. Em primeiro lugar, as zonas mais intensas de comércio exterior se
formam em torno dos países que compõem a Tríade, caracterizando um fenômeno de
regionalização que se combina com uma crescente marginalização dos demais países.
Compõe-se então um paradigma de concorrência ou competição, onde a competitividade de
cada país designa, de antemão, “ganhadores” e “perdedores”. Neste cenário, o sucesso de uma
empresa significa, muitas vezes, a falência ou a absorção de outras que não se sustentaram
neste quadro de competitividade e cujos países de origem, tornados devedores externos, são
diretamente afetados na relação importação/ exportação.
As multinacionais dominam, sem maiores riscos, o comércio exterior mundial, sendo
responsáveis, segundo dados da OCDE, por 40% do total de produtos manufaturados. Entre
estas multinacionais, cresce um importante comércio “intracorporativo” ou “intragrupo”,
resultante de modalidades de integração industrial transnacional. Chesnais nos apresenta
dados que afirmam que 99% do comércio exterior dos EUA envolviam a participação de uma
multinacional americana ou estrangeira, como parte da transação.
O crescimento do comércio mundial, mas também sua subordinação à intensidade do
investimento externo direto, fizeram com que se acelerasse a formação de intercâmbios intra-
regionais e de blocos econômicos, com a crescente criação das áreas de livre comércio.
Alguns comentaristas afirmam que esta regionalização do mundo é contraditória com uma
“verdadeira” globalização, chegando a ameaçar as propostas dominantes. Na verdade, esta
ameaça não nos parece real, uma vez que a regionalização, para os países em
desenvolvimento, tem, no máximo, um objetivo defensivo, no sentido de se configurar como
um acúmulo de forças na tentativa de se inserir, em melhores condições, no cenário
globalizado hegemônico, que anteriormente descrevemos. Ainda que, politicamente, a
formação destas regiões traga algumas particularidades relevantes no enfrentamento aos
modelos dominantes de globalização, isso não se desenha no cenário econômico. Acreditamos
que a Tabela 1, abaixo apresentada, demonstra com clareza esta desigualdade nos processos
119

de regionalização em todo o mundo, onde se percebe a prevalência da América do Norte, da


Europa e da Ásia em termos de exportações intra-regionais no cenário mundial.
120

Tabela 1
Intercâmbios inter-regionais
(em % do intercâmbio total da zona e em % do comércio mundial)

Zonas Exportações intra-regionais no total Exportações intra-regionais no total


da zona mundial
1986 1991 1979 1989
América do 39,1 33,0 4,6 5,3
Norte
América Latina 14,0 16,0 1,1 0,5
Europa 68,4 72,4 28,8 31,1
Ocidental
Europa Central e 53,3 22,4 4,3 3,5
ex-URSS
Ásia 37,0 46,7 6,3 10,0
África 5,9 6,6 0,3 0,2
Oriente Médio 7,7 5,1 0,4 0,3
Fonte: GATT apud CHESNAIS, 1999, p. 231.

Como mais um elemento a ser analisado no desenvolvimento deste processo de


mundialização do capital, temos o movimento específico da esfera financeira restrita, do
capital em sua forma monetária que, na verdade, representa o encaminhamento mais imediato
para o montante acumulado através do investimento externo direto e do comércio mundial.
Tal esfera conta, no mundo contemporâneo, com uma mobilidade e uma flexibilidade
surpreendentes, construindo-se como o campo mais avançado da mundialização.

As instituições financeiras, bem como os “mercados financeiros” (cujos


operadores são mais fáceis de identificar do que faz supor essa expressão tão
vaga), erguem-se hoje como força independente todo-poderosa perante os
Estados (que os deixaram adquirir essa posição, quando não os ajudaram),
perante as empresas de menores dimensões e perante as classes e grupos
sociais despossuídos, que arcam com o peso das “exigências dos mercados”
(financeiros) (CHESNAIS, 1999, p. 239).

Desta forma, o processo contemporâneo de acumulação do capital vivencia uma


estreita imbricação entre as dimensões produtivas e financeiras, o que se manifesta através de
121

diversas estratégias, onde cresce a importância das operações exclusivamente financeiras dos
grupos industriais. Nestas operações, o capital acumulado atua livremente, com poucos
controles ou freios, numa reprodução permanente e ilimitada.
A força econômica e mesmo política alcançada por este setor fica assim expressa, nas
palavras de SANTOS (2000, p. 101).

Antes, o território continha o dinheiro, em uma dupla acepção: o dinheiro


sendo representativo do território que o abrigava e sendo, em parte, regulado
pelo território, considerado como território usado. Hoje, sob influência do
dinheiro global, o conteúdo do território escapa a toda regulação interna,
objeto que ele é de uma permanente instabilidade, da qual os diversos
agentes constituem testemunhas passivas. A ação territorial do dinheiro
global em estado puro acaba por ser uma ação cega, gerando
ingovernabilidades, em virtude dos seus efeitos sobre a vida econômica, mas
também, sobre a vida administrativa. No território, a finança global instala-
se como a regra das regras, um conjunto de normas que escorre, imperioso,
sobre a totalidade do edifício social, ignorando as estruturas vigentes, para
melhor poder contrariá-las, impondo outras estruturas.

É importante ponderarmos que o capital valorizado no setor financeiro, embora


encarado como atividade transnacional competitiva, tem uma origem pré-determinada: ele é
resultado de transferências, oriundas da esfera produtiva, onde são criados os salários e os
lucros como valor e rendimentos fundamentais. Este setor se estabelece sempre com uma
autonomia aparente e relativa, uma vez que os capitais que nela se valorizam nasceram e
continuam nascendo no setor produtivo. “A esfera financeira alimenta-se da riqueza criada
pelo investimento e pela mobilização de uma força de trabalho de múltiplos níveis de
qualificação. Ela mesma não cria nada” (CHESNAIS, 1999, p. 241).
Este elemento absolutamente parasitário da esfera financeira se torna ainda mais
acentuado com inovações no mercado que lhes foram garantidas pela eliminação das
regulamentações e dos controles nacionais. Assim, registram-se altos índices de um
crescimento, a princípio, incontrolável, subjugando, mais uma vez, os números relativos à
esfera produtiva, da qual capta uma parte cada vez mais elevada da riqueza. Nas palavras de
MARX (2003), como podemos confirmar, este capital monetário representa “a forma mais
alienada, mais fetichizada da relação capitalista”. É um capital que se reproduz sem passar por
um investimento no cenário produtivo, embora tenha nele suas raízes. É um valor que tem o
único objetivo de valorizar a si mesmo.
Não é possível deixarmos de observar que este capital financeiro tem como um de seus
principais dependentes e retroalimentadores os serviços de dívida pública, sobretudo dos
122

países em desenvolvimento. O próprio FMI afirma que estes títulos públicos representam o
centro deste processo de financeirização. “Seu volume de transações supera, de longe, o de
qualquer outro segmento dos mercados financeiros, com exceção dos mercados de câmbio”
(FMI apud CHESNAIS, 1999, p. 248). Tem início, a partir daí, uma “economia de
endividamento”, que tem seus sustentáculos tanto na economia norte-americana quanto
européia e que colocou todo o sistema mundial à mercê do capital rentista e de seu poder
opressivo.
Os vários elementos que envolvem o aspecto econômico da globalização revelam uma
reorganização que atinge o conjunto da sociedade em seus mais diferentes encaminhamentos.
Neste sentido, é importante ponderarmos os aspectos ou “custos sociais” deste processo de
globalização, tendo em vista alcançar, no próximo capítulo, o debate em torno do aparato
cultural.

2.2 – Os custos sociais da globalização e as novas formas de organização da


sociedade civil
Quando se considera o processo contemporâneo de internacionalização do capital,
parece-nos evidente a necessidade de situarmos, primeiramente, o quadro da luta de classes
que então se concretiza, com suas particularidades e novas determinações, uma vez que é este
quadro que define e determina a configuração da questão social. Para tanto, é necessário
compreendermos as características e a contemporaneidade do contexto que envolve a classe
trabalhadora, apreendendo sua processualidade e sua concretude, dado o seu papel central no
modo de produção capitalista. Desde então, partimos da certeza de que, apesar da relativa
autonomização da esfera financeira, como anteriormente descrevemos, e de todos os discursos
sobre “a crise da sociedade do trabalho”26, o capital continua absolutamente dependente do
trabalho humano para que se realize seu processo de valorização. Se quantitativamente menor
e qualitativamente diferenciada, a classe trabalhadora não perdeu, nesta sociedade, a sua
centralidade.
Segundo POCHMANN (2001), estamos diante de uma nova fase da “divisão
internacional do trabalho”27, onde podemos perceber, como características mais amplas, a

26
Sobre a anunciada “crise da sociedade do trabalho”, vale acompanharmos o debate apresentado
por ANTUNES, 1997, p. 75-97.
27
POCHMANN (2001) nos fala de três fases da divisão internacional do trabalho, onde a primeira se
caracteriza pela introdução da grande indústria, que possibilitou a divisão do trabalho, atribuindo a
cada parte do globo papel determinado. A segunda fase, por sua vez, já no início do século XX, é
123

expansão mundial do desemprego estrutural, a participação decrescente do emprego


assalariado no total da ocupação e a expansão de postos de trabalho precários e mal-
remunerados. Na verdade, a financeirização da economia global e o avanço, no setor
produtivo, dos grandes oligopólios mundiais realizaram uma redefinição da produção e do
padrão de uso e remuneração da força de trabalho, rebaixando-os consideravelmente. Nesta
nova fase, as atividades de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico estariam concentradas
nos países de origem das grandes corporações transnacionais, as quais assumiriam,
principalmente, as funções de comando e planejamento. Conseqüentemente, as atividades de
execução e produção, com operações mais simples e rotineiras, e também com remunerações
mais baixas, seriam deslocadas para os países mais pobres, reforçando uma posição
subordinada e passiva à política de atração de investimentos externos.
O cenário contemporâneo reforça, portanto, a afirmação deste autor de que a
capacidade de absorção de um número maior de trabalhadores não depende apenas do grau de
expansão de cada país, mas do padrão de desenvolvimento alcançado nacionalmente e de sua
forma de inserção na economia mundial. É assim que a economia mundial encontra-se
estruturada nas relações entre centro, semiperiferia e periferia capitalista.

Entretanto, nas duas últimas décadas, o centro capitalista passou a concentrar


maior participação relativa no total do emprego qualificado devido à difusão
de uma nova Divisão Internacional do Trabalho. Em 1997, quase 72% do
total dos postos de trabalho qualificados eram de responsabilidade dos países
de maior renda, ao mesmo tempo em que continuavam a perder participação
relativa nas ocupações não-qualificadas. Na periferia e na semiperiferia, a
nova Divisão Internacional do Trabalho tem representado uma oportunidade
adicional para maior concentração dos postos de trabalho não-qualificados,
com diminuição relativa dos empregos de qualidade. Em 1997, por exemplo,
de cada 10 ocupações não-qualificadas do mundo, 8 eram de
responsabilidade dos países de menor renda, enquanto de cada 10 postos de
trabalho qualificados, apenas 3 pertenciam aos países periféricos. Em 1980,
os países periféricos e semiperiféricos eram responsáveis por 32% dos
postos de trabalho qualificados e 84% das vagas não qualificadas.
(POCHMANN, 2001, p. 35)

A partir da década de 80, podemos então considerar que esta terceira fase da divisão
internacional do trabalho ganha seus contornos mais definidos. Não só se reafirma o poder
econômico das corporações transnacionais, em números que demonstram cada vez mais a

marcada pela posição de nação hegemônica sendo assumida pelos Estados Unidos e pela
reformulação do próprio centro capitalista mundial.
124

concentração de capital28, como também se intensifica a racionalização do trabalho, através


daquela divisão de que tratamos. Neste contexto, reafirma-se a hegemonia dos países de
capitalismo central, que encaminham a formação de redes de subcontratação, através do
transplante de partes da cadeia produtiva para os países periféricos e semiperiféricos. Estes, ao
aceitarem o programa destas agências multilaterais, acabam acarretando o rebaixamento ainda
maior do custo do trabalho e aceitando a quase completa desregulamentação dos mercados de
trabalho. Para estes países, diante de um cenário marcado por uma força de trabalho de menor
custo, por condições de trabalho mais flexíveis e precárias e por uma diminuição relativa dos
empregos mais qualificados, os custos sociais da mundialização do capital se tornam ainda
maiores, elevando cada vez mais o grau de desigualdade na distribuição de renda entre as
populações dos distintos grupos de países.
A estas características da nova divisão internacional do trabalho se somam outros
elementos próprios do momento contemporâneo de reorientação do sistema do capital, tais
como a reformulação das políticas sociais e trabalhistas, a descentralização e a focalização
dos gastos sociais, a flexibilização dos contratos de trabalho, a redução do poder sindical e o
esvaziamento do quadro de direitos sociais. Isso tudo faz com que os países de economia
periférica ou semiperiférica sofram, cada vez com maior rigor, os efeitos deletérios desta
globalização. Parece-nos desnecessário ponderar que o principal destes efeitos é o acentuado
desemprego estrutural daí resultante. Com esta configuração da divisão internacional do
trabalho, os países de centro se tornam menos vulneráveis a este desemprego, com apenas
30% de suas ocupações mais expostas à concorrência internacional. Por outro lado, países
semiperiféricos e periféricos, ao concentrarem suas atividades produtivas em operações de
montagem mais simples e rotineiras, ficam mais expostos à transferência destas operações e,
segundo dados de POCHMANN (2001), 70% de suas atividades são objeto de competição
mundial. Assim, temos um quadro em que, em 1999, apenas no Brasil, já tivéssemos 5,61%
do total do desemprego mundial.
Diante de dados como estes, é inegável afirmar que o “mundo do trabalho” vem
passando, neste contexto de capital mundializado, por profundas mutações, que atingem sua
configuração, sua correlação de forças e suas formas de lutas sociais29. A financeirização da

28
Segundo dados apresentados por POCHMANN (2001), no setor de produção de computadores, 10
empresas concentram 70% da produção mundial. Quanto ao ramo de material de saúde, 7 empresas
concentram 92% da produção.
29
ANTUNES (2000) é enfático ao afirmar que, neste cenário, alterou-se profundamente o sentido
atual da compreensão da classe trabalhadora. Marcada por dimensões de diversidade,
heterogeneidade e complexidade, esta compreensão deve incluir, agora, a totalidade daqueles que
vendem sua força de trabalho, ou seja, desde os trabalhadores produtivos (diretamente ligados à
125

economia mundial e a conseqüente subordinação do setor produtivo aos seus interesses


rentistas têm gerado uma redução do “proletariado tradicional”, aquele caracterizado pela
estabilidade e pela especialização. Em contrapartida, aumenta o número de pessoas
submetidas a um trabalho precarizado (subproletariado moderno, part time, economia
informal, etc.) ou mesmo desempregadas.

(...) de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial,


fabril, nos países de capitalismo avançado. Em outras palavras, houve uma
diminuição da classe operária industrial tradicional. Mas, paralelamente,
efetivou-se uma significativa subproletarização do trabalho, decorrência das
formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado,
vinculado à economia informal, ao setor de serviços, etc. Verificou-se,
portanto, uma significativa heterogeneização, complexificação e
fragmentação do trabalho. (ANTUNES, 2000, p. 209, grifos do autor).

A estrutura ocupacional no contexto da economia mundializada se alterou


significativamente. Acentuou-se uma perda de participação relativa das ocupações industriais,
que tem ocorrido mesmo em países do centro capitalista, dando espaço ao crescimento do
setor terciário. Analisando-se com mais rigor, percebemos, a partir das análises de ANTUNES
(2000), que estas mudanças operadas na estrutura ocupacional vieram agravar, ou mesmo
recolocar em cena, antigas questões no que se refere à configuração e às condições de
trabalho: o trabalho feminino vivencia uma exploração ainda mais intensificada, com a
precarização, a informalidade e os desníveis salariais; jovens e “velhos” (diante do intenso
desenvolvimento das forças produtivas, sobretudo no aspecto tecnológico, pessoas com 45
anos, e sem a “devida qualificação”, já estão sendo consideradas “velhas” para o desempenho
exigido nos diferentes postos de trabalho) são excluídos do mercado de trabalho, ampliando
cada vez mais os contingentes do mercado informal, do exército industrial de reserva e do
desemprego estrutural; crianças e adolescentes ainda são submetidos a uma inclusão precoce e
criminosa, sobretudo nos países asiáticos e latino-americanos. Este autor destaca ainda a
expansão do trabalho em domicílio, facilitada pela fragmentação do processo produtivo que
vem expandir pequenas e médias unidades produtivas, em uma situação de completa
subordinação ao capital, em condições absolutamente precárias e ultrapassadas. O

produção de mais-valia e à valorização do capital), que encontram no proletariado industrial o seu


núcleo, até os trabalhadores improdutivos, que através de formas de trabalho utilizadas como serviço,
pelo setor público ou pelo próprio capitalista, garantem a dinamicidade e a sobrevivência do sistema,
como um segmento em plena expansão. O autor se preocupa, ainda, em incluir nesta “noção
ampliada de classe trabalhadora”, o proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital
nas mais diversas atividades.
126

desenvolvimento capitalista contemporâneo, no cenário globalizado, não só não resolveu seus


antigos dilemas, como também os atualizou, tornando-os mais perversos e excludentes.
No entanto, este desenvolvimento trouxe novas determinações, complexificando o
contexto sócio-político que podemos delinear. Uma destas alterações é o crescimento e a
diversificação do setor de serviços, aproximando seus assalariados, cada vez mais, da lógica
da racionalidade do mundo produtivo. O setor terciário vem, assim, compensando a queda dos
setores industriais e agropecuário, nos âmbitos público e privado, mas não se desenvolve sem
contradições, pois o Estado tem reduzido seus serviços à população, sobretudo no que tange
ao aspecto social. O que se percebe, então, é o fortalecimento desta esfera enquanto essencial
para a sobrevivência do sistema capitalista em escala mundial, e a sua privatização acelerada,
ou seja, o seu crescimento enquanto espaço de reprodução e acumulação do capital.
Como resposta a esta redução da intervenção do Estado no âmbito social é que
podemos compreender a expansão do trabalho no denominado “terceiro setor”30. Abrangendo
uma gama bastante diferenciada de organizações, este setor, com um perfil mais comunitário,
apresenta-se voltado, majoritariamente, para atividades assistenciais, em um sentido “público,
porém não estatal”, sem fins diretamente lucrativos e funcionando à margem do mercado.
Estas organizações têm absorvido parcela significativa de trabalhadores desempregados pelo
capital e apresentam uma clara funcionalidade em relação ao sistema, desobrigando-o de uma
preocupação pública e social. Estes trabalhadores, no entanto, vivenciam uma inserção
precária e instável, muitas vezes não lhes garantindo a atenção de suas necessidades sociais.
Esta caracterização contemporânea acerca da constituição da classe trabalhadora,
embora bastante complexificada, parece apontar para alguns traços em comum entre os
diferentes segmentos. O capital, em escala mundial, deu continuidade e até mesmo ampliou as
formas de exploração e de precarização, além da intensificação do tempo e do ritmo de
trabalho. Se a ideologia de um aparente “fim do trabalho” ganha forças até mesmo no meio
intelectualizado, não nos parece restar dúvidas acerca da intensidade do processo de
valorização do capital, que só pode ser resultado de um “trabalho social concentrado”, cada
vez mais central na sociedade.
ANTUNES (2000, p. 205) retrata, assim, esta condição da classe trabalhadora no
mundo globalizado

30
Uma ampla bibliografia se ocupa, hoje, de descrever e de analisar o desenvolvimento deste
“terceiro setor”. Apenas na intenção de exemplifica-la, citamos MONTANO (2002).
127

A classe trabalhadora, os “trabalhadores do mundo na virada do século”, é


mais explorada, mais fragmentada, mais heterogênea, mais complexificada,
também no que se refere a sua atividade produtiva: é um operário, ou uma
operária trabalhando em média com quatro, com cinco, ou mais máquinas.
São desprovidos de direito, o seu trabalho é desprovido de sentido, em
conformidade com o caráter destrutivo do capital, pelo qual relações
metabólicas sob controle do capital não só degradam a natureza, levando o
mundo à beira da catástrofe ambiental, como também precarizam a força
humana que trabalha, desempregando ou subempregando-a, além de
intensificar os níveis de exploração.

O caráter transnacionalizado do capital e de seu sistema produtivo, principalmente


com as estratégias de deslocalização e de financeirização, tem colocado as formas particulares
do trabalho numa condição de subsunção e de estranhamento ainda mais acentuada. Com a
crescente desterritorialização, a luta de classes, num patamar mais internacionalizado, fica
mais “velada” e desafia o “mundo do trabalho” a gerar respostas, estratégias de luta e
consensos “globais”, o que, até agora, parece-nos constituir um grande desafio para o
conjunto da classe trabalhadora.

E nesse terreno, como sabemos, a solidariedade e a ação de classe do capital


está bem à frente da ação dos trabalhadores. Muitas vezes a vitória ou
derrota de uma greve em um ou mais países depende do apoio, da
solidariedade e ação de trabalhadores em outras unidades produtivas da
mesma empresa. (ANTUNES, 2000, p. 115)

Em outras palavras, poderíamos afirmar que, em um cenário de mundialização do


capital, questões como a identidade de classe, o seu pertencimento e a sua ação coletiva ficam
mediados e enfraquecidos por uma série de elementos, que acabam tendo um caráter
desmobilizador. Se vivemos em um “mundo do trabalho” cada vez mais “proletarizado” e
“assalariado”, vivemos, contraditoriamente, em um estágio mais avançado de alienação e de
estranhamento em relação ao capital, com “patrões invisíveis”, transnacionalizados, com os
quais temos os mínimos contatos e, portanto, os mínimos embates. Parece-nos cada vez mais
verdadeira a afirmação de que os espaços de organização da classe trabalhadora e de
construção (ou reconstrução?) de seus projetos societários ainda apresentam uma estruturação
enfraquecida para oferecer uma alternativa global à lógica do capital.
Valendo-nos nas análises que fizemos, no primeiro capítulo, poderíamos afirmar que
as condições materiais em que as classes trabalhadoras vêm hoje se constituindo, enquanto
classe, desafiam e, ao mesmo tempo, dificultam a construção de uma vontade coletiva, capaz
de impulsionar propostas e ações alternativas. Apesar de o internacionalismo sempre ter sido
128

uma bandeira do movimento operário, na prática, sobretudo sob a perspectiva social-


democrata, este movimento se limitou, em termos organizativos e mesmo reivindicativos, ao
espaço nacional e nele, na maioria das vezes, realizou sua ação. Embora tenhamos
conhecimento, historicamente, de importantes iniciativas internacionais, elas não constituíram
a orientação hegemônica da organização dos trabalhadores. Com o quadro que anteriormente
traçamos de transnacionalização do capital e, ao mesmo tempo, de “heterogeneização,
complexificação e fragmentação” da classe trabalhadora, chega-se a afirmar que qualquer
ação política e reivindicativa que esteja reduzida aos limites nacionais parecem, neste
momento, insuficientes, fazendo com que muitos teóricos recuperem a idéia de que “uma
autêntica ruptura revolucionária com o capitalismo é impossível no quadro do Estado-nação”
(BIHR, 1998, p. 118). É justamente neste contexto que acreditamos na extrema necessidade
de recuperação da perspectiva “nacional-popular” elaborada por Gramsci, a qual, de forma
alguma, se limita ao nacional ou se confunde com o nacionalismo.
Esta falta de elementos coesionadores mais amplos no interior da classe trabalhadora
parece ficar evidente quando surgem, no contexto atual, as principais críticas ao movimento
operário, no que se refere aos seus modelos organizacionais e ações reivindicativas. Estas
críticas, oriundas dos mais diferentes setores da sociedade, levantam como um dos primeiros
elementos o estatismo característico do modelo social-democrata. Afirma-se que, no momento
em que o Estado nacional parece ter perdido sua capacidade regulatória sobre o capital e sobre
a formação social nacional, não faria mais sentido a proposta de exercício do poder de Estado
pela classe trabalhadora, a qual deveria se voltar para ações mais imediatas e efetivas de
conquista no interior da sociedade capitalista.
Também em termos ideológicos, o movimento operário é criticado. Com o avanço e o
fortalecimento do sistema do capital em âmbito global e, principalmente, com o “fim do
socialismo real”, o que poderia ser conhecido como uma possível “cultura operária”, enquanto
finalidade de um projeto societário alternativo, é duramente combatida, ficando o conjunto
das ações políticas das classes trabalhadoras reduzidas a uma orientação meramente
reformista e compensatória.

(...) as organizações internacionais que subsistem (...) na maioria das vezes


de internacional só têm o nome. Seus congressos geralmente não têm poder
algum de decisão relativamente às ações conduzidas pelas diferentes seções
nacionais, que conservam então uma total liberdade estratégica. E, por isso,
elas se apresentam como estruturas burocráticas da luta de classes ainda mais
divididas do que suas seções nacionais. (...) O proletariado está, então,
atualmente, quase desarmado para enfrentar as novas condições materiais e
129

institucionais de sua luta de classe, em relação à transnacionalização do


capital. (BIHR, 1998, p. 120).

Sem uma orientação política e ideológica alternativa e propositiva para enfrentar os


novos desafios da mundialização do capital, o movimento operário encontra, portanto, limites
efetivos quanto às suas práticas reivindicativas. Diante do crescimento acentuado do
desemprego, sobretudo estrutural, do subemprego, da terceirização, do mercado informal, os
sindicatos, enquanto instâncias organizativas da força de trabalho empregada, vêem-se
enfraquecidos em suas capacidades de negociação, seja em torno de questões salariais ou
mesmo de melhores condições de trabalho. Pode-se afirmar que o movimento operário entra,
então, numa fase de ações defensivas, no sentido de tentar manter e garantir mínimas
condições e direitos trabalhistas, e não de reivindicar algo além do que já foi estabelecido no
contexto da social-democracia. Neste sentido, os sindicatos se modificam, tentando “se
adaptar” à nova reestruturação do capital.
Analisando o caso específico do sindicalismo inglês, ANTUNES (2000) contribui com
importantes elementos para esta discussão. Passando de um momento em que sempre esteve
associado à idéia de força e de estabilidade para outro em que ficou conhecido como “inimigo
central” do neoliberalismo, o movimento operário inglês, sob as investidas do governo
Thatcher, viu-se profundamente atacado e reformulado. Primeiramente, verificou-se um
declínio dos índices de sindicalização, sobretudo no setor fabril, chegando-se a perceber que
“a fusão dos sindicatos tem sido uma das mais freqüentes respostas do sindicalismo inglês, em
face da desmontagem e da diminuição de seu número de associados” (ANTUNES, 2000, p.
74). Foi drasticamente retraído, também, o número de greves na Inglaterra, passando de uma
média de 2412 greves em 1970 para 205 em 1994, as quais envolviam um número cada vez
menor de trabalhadores. Em termos de representatividade, percebemos também uma
diminuição dos espaços de reconhecimento dos sindicatos nos locais de trabalho. “Somente
30% das novas empresas reconheciam os sindicatos, sendo 23% no âmbito das empresas
privadas” (IBIDEM, p. 75). Além disso, decresce significativamente a amplitude das
negociações coletivas e percebemos, ainda, um processo de isolamento do movimento
sindical, ou de uma maior aproximação com o projeto neoliberal, quando se verifica um
crescente distanciamento destas organizações em relação à estrutura partidária.
ANTUNES menciona ainda algumas deliberações do Trades Union Congress (TUC),
em 1997, que demonstram a reorientação ocorrida nas propostas práticas do sindicalismo
inglês:
130

a) qualificar a força de trabalho;


b) dar-lhe maior empregabilidade;
c) manter parceria com a Confederação das Indústrias Britânicas e com empresas no
âmbito local;
d) colaborar com o “novo” ideário patronal, marcado pelas novas técnicas de
gerenciamento, pela aceitação das privatizações e pelo reconhecimento da
necessidade de flexibilizar o mercado de trabalho.
Tais deliberações seriam necessárias, neste encaminhamento, para garantir uma
“modernização do sindicalismo inglês”, de forma a “somar-se” à proposta de hegemonia do
capital.
Desta forma, num contexto de mundialização do capital, a necessidade de uma
unificação das classes trabalhadoras em âmbito global parece não ter encontrado um
direcionamento capaz de orientar, de uma forma geral, o movimento operário contemporâneo,
que ainda enfrenta especificidades culturais e políticas que dificultam esta unificação. BIHR
(1998, p. 121) nos indica, inclusive, a importância destes limites para a própria dominação
capitalista que

(...) lucra (em todos os sentidos do termo) com isso, e então esforça-se para
manter e até reforçar essas divisões nacionais e regionais. Enfim, a DIT
[divisão internacional do trabalho] hierarquiza severamente os diferentes
espaços econômicos mundiais, coloca-os em concorrência e pode, em certos
casos, tornar contraditórios os interesses imediatos de diferentes partes do
proletariado mundial.

Como podemos perceber, a mundialização do capital trouxe consigo uma estrutura de


crise no mundo do trabalho e, conseqüentemente, no movimento de organização das classes
trabalhadoras, as quais se encontram afetadas não só em sua formação e materialidade, mas
também em “sua esfera mais propriamente subjetiva, política, ideológica, dos valores e do
ideário que pautam suas ações e práticas concretas” (ANTUNES, 2000, p. 188). Enquanto
crise de uma classe central na produção e na reprodução da sociedade, esta acaba por se
expandir por toda a diversidade de esferas desta constituição, chegando a caracterizar uma
“crise de sociabilidade”.
Dialeticamente, portanto, esta mesma crise, que afeta o conjunto da classe
trabalhadora, faz surgir um amplo e diversificado ativismo societário, principalmente em
âmbito nacional, mas também internacional. Multiplicam-se, como resposta às mais diversas
131

manifestações da questão social, as experiências de associativismo, complexificando e


diversificando os aparelhos “privados” de hegemonia da sociedade civil.
Neste momento, vale um parêntese para questionarmos alguns elementos referentes a
esta esfera da sociedade civil. Para isso, as observações de COUTINHO (1992) nos parecem
essenciais. Teríamos, segundo este autor, dois projetos societários, para esta esfera, no
conjunto das sociedades “ocidentais”, ou seja, daquelas que, para Gramsci, apresentam uma
“relação equilibrada” entre sociedade política e sociedade civil, tendo o elemento do consenso
como base de obtenção da legitimidade. Um primeiro projeto, que o autor denomina de
“democracia de massas”, se constrói a partir de uma proliferação de movimentos sociais de
base, de um “sindicalismo combativo e politizado” e de uma “mediação política de partidos
programaticamente estruturados e socialmente hegemônicos”. Neste projeto, ter-se-ia como
objetivo a participação política organizada, reconhecendo-se o pluralismo de interesses, mas
buscando construir, a partir dele, uma vontade coletiva majoritária, um efetivo interesse
público. Em oposição a um Estado baseado na privatização, buscar-se-ia a base em uma
democratização radical de sua estrutura, necessitando, assim, de reformas substantivas na
direção do predomínio do interesse público.
Em pólo oposto, teríamos o projeto “liberal-corporativo” (ou, simplesmente
neoliberal), onde o estímulo para a auto-organização da sociedade civil estaria orientado para
a defesa de interesses puramente corporativos, privatistas, que, em última instância,
favoreceriam a reprodução da ordem capitalista vigente. Em uma sociedade civil deste tipo,
poderíamos verificar partidos políticos ideologicamente frágeis, com uma base social
heterogênea, e sindicatos que se anunciam como apolíticos, voltados para alcançar resultados
imediatos para as corporações profissionais que representam. Este projeto prima pela atuação
do mercado na solução dos conflitos de interesse e na atenção às demandas sociais, reduzindo
o papel do Estado como interventor econômico e “benfeitor” social. Este projeto pressupõe
uma participação social e política baixa, voltada para a atenção de interesses personalistas e
corporativos.
Esta explicação nos parece necessária para que possamos compreender aquele impulso
no ativismo social a partir dos anos 70, mas, sobretudo nos anos 90, em todo o mundo. Uma
grande quantidade de diferentes associações se faz presente nas mais diversas composições da
sociedade civil, propondo práticas alternativas que possibilitem uma intervenção sobre a
ordem existente, o que não significa, necessária e imediatamente, uma proposta de ruptura. É
importante demarcarmos, desde já, a imensa heterogeneidade que caracteriza este movimento
associativista, não apenas com relação a sua organização, mas também quanto aos projetos
132

societários que o constituem. Poderíamos afirmar que o momento contemporâneo se


caracteriza, em diversos países, por um avanço de sociedades civis de tipo “liberal-
corporativo”, em detrimento do projeto de democracia de massas. Isso acontece,
principalmente, pela crise de sociabilidade que anteriormente demarcamos, onde pesa,
sobretudo, o enfraquecimento político e ideológico do projeto societário antes incorporado
pelo conjunto das classes trabalhadoras.
BIHR (1998) atribui, a estes que ele chama de “novos movimentos sociais”, duas
características mais gerais:

Por um lado, seu terreno de mobilização e as questões em jogo de suas lutas


situam-se geralmente fora da esfera imediata do trabalho e da produção, para
concernir a aspectos da vida social que não parecem diretamente
determinados pelas relações capitalistas de produção. Por outro, seus
protagonistas mantém, em geral, uma relação de indiferença, ou mesmo de
hostilidade em relação às formas organizacionais e às referências políticas e
ideológicas do movimento operário sob hegemonia social-democrata (BIHR,
1998, p. 143).

O principal impulso para o surgimento destes “movimentos sociais” seria o


aprofundamento de uma série de “crises sociais”, a partir das transformações processadas no
sistema do capital enquanto relação social, conforme descrevemos anteriormente.
Manifestando-se em diferentes aspectos da questão social (realidade urbana, identidades
locais, relações familiares e comunitárias, relações de gênero, conflitos geracionais, modelos
educativos, questão ambiental, e tantas outras), uma mesma orientação fundamental estaria,
portanto, conduzindo este processo: “a maneira como essa relação social central que é o
capital informa, organiza, orienta, produz o vínculo social” na contemporaneidade (IBIDEM,
p. 147).
Estas crises, já presentes na ordem capitalista desde a fase fordista, vêm se agravando
e se complexificando com a reestruturação do capitalismo em sua fase globalizada. Se, num
primeiro momento, a intervenção estatal nestas manifestações e, portanto, seu controle, eram
mais diretos e imediatos (fase keynesiana), com o avanço da mundialização e a crise do
Estado de Bem Estar Social, a anunciada “sobrecarga prejudicial do Estado” fez com que se
modificassem os caminhos para a solução destes problemas e para o restabelecimento de um
consenso mínimo. Assim, “o desenvolvimento e o aprofundamento dessas crises sociais
crônicas, de um lado, o fracasso de sua tentativa de solução por intermédio de gestão estatal,
de outro”, favoreceram um maior desenvolvimento e uma ampliação destes novos organismos
133

da sociedade civil, os quais passaram, também, por uma refuncionalização, muitas vezes
orientada para a própria perspectiva neoliberal.
Estes movimentos e instituições, aparentemente situados fora da esfera do trabalho e
da produção31, apresentam, em geral, uma desconfiança (ou uma descrença) para com o
Estado enquanto gestor de ações públicas para o enfrentamento dos problemas oriundos
destas crises. Assim, passaram de uma fase de ação reivindicativa em relação ao Estado, para
uma fase quase “substitutiva”, buscando garantir a reapropriação, para grupos e segmentos
particularmente atingidos por estas crises, de melhores condições gerais de sobrevivência.
Independentemente daquela heterogeneidade que demarcamos, estes movimentos
passaram a ser considerados, em uma ampla bibliografia, como representantes de uma nova
“força progressista, se não revolucionária, do futuro”. No entanto, verifica-se o surgimento e a
ascensão de um grande número de movimentos que acabam por assumir e reproduzir uma
orientação conservadora (liberal) ou, no máximo, reformista (neo-social-democrata), com
ações que visam, no máximo, uma simples adequação social e cultural da sociedade ao
movimento do sistema do capital. Estes movimentos buscam se particularizar por propostas
de “parcerias responsáveis” com o poder público, fornecendo “elementos originais” não para
a solução, mas para o contorno temporário das diferentes crises sociais crônicas. Percebemos,
também, que justamente estes movimentos mais “funcionais” ao sistema do capital se
caracterizam por um alto grau de particularismo, ou seja, de isolamento dos interesses e das
ações de um grupo com problemas específicos, aparentemente sem conexão de uns com os
outros, favorecendo o desenvolvimento de práticas estreitamente localizadas e, na maioria das
vezes, paliativas e imediatistas.
Entretanto, é impossível negar que o surgimento destes movimentos, mesmo quando
voltados para terrenos de intervenção considerados “periféricos” quanto à relação social
restrita do capital, apresentam, também, elementos positivos que desafiam a compreensão e a
luta política contextuais. Em primeiro lugar, é importante demarcarmos que a existência
destes movimentos tende a ampliar as noções de luta de classes e de embate político, uma vez
que revela que as condições de reprodução do capital não se restringem ao econômico, mas se
estendem à totalidade das condições sociais de existência. Assim, movimentos e instituições
voltados para questões étnicas, culturais, de gênero, ambientais, dentre outras, quando
devidamente abordadas no interior de uma perspectiva de totalidade social, demonstram que

31
Para BIHR (1998), existe um amplo processo de apropriação capitalista da práxis social. Por isso,
estes movimentos estão apenas aparentemente fora do trabalho e da produção.
134

a luta contra a exploração e a dominação capitalistas atinge terrenos e disputas que


aparentemente não tem uma relação imediata com elas.
Esta problematização também desafia e deixa claro o conjunto de limites do
movimento operário diante desta crise de sociabilidade contemporaneamente engendrada. O
capital, enquanto relação social, tem demonstrado que seu poder se encontra difundido em
várias esferas da sociedade e que a perspectiva estratégica para superá-lo não pode estar
reduzida à tomada do poder de Estado nem à conquista restrita de melhores condições
salariais ou de trabalho. Para tanto, é preciso uma articulação dos objetivos, dos interesses e
das estratégias de atuação de diferentes “aparelhos privados” de hegemonia da sociedade civil
em torno daquele projeto de “democracia de massas” de que COUTINHO (1992) nos falava
anteriormente. Tais ponderações são necessárias porque, como já observamos, a sociedade
civil não constitui um bloco homogêneo orientado por um mesmo projeto societário, nem do
ponto de vista classista nem ideológico. Ela é, na verdade, a esfera do pluralismo, do
confronto político e ideológico, do enfrentamento político mais amadurecido. Assim, não
basta pensarmos nos espaços de organização desta sociedade civil para compreendermos sua
complexidade, mas nos projetos que, em seu interior, se confrontam, pois são eles que,
efetivamente, definem o perfil e a configuração hegemônica desta esfera.
A partir destas considerações, vale observarmos que importantes autores, dos quais
destacamos GÓMEZ (2001), chamam a atenção, neste momento de avanço e reconfiguração
da sociedade civil, para um inédito ativismo transnacional, que tentaria se organizar em torno
de uma complexa proposta de globalização contra-hegemônica. Assim, desde o final dos anos
90, estamos presenciando a mobilizações organizadas por uma diversidade de forças sociais e
políticas que buscaria repensar alternativas para a globalização do capital e seus perversos
efeitos sociais32. Estas forças estariam propondo uma redefinição das fronteiras e do sentido
da política, através de um debate mais amplo do conteúdo e das conseqüências do processo de
mundialização do capital.
Este ativismo transnacional, apesar de sua evidente heterogeneidade, tem como alvo
principal de suas críticas a extensão e a profundidade das conseqüências negativas das
políticas econômicas neoliberais sobre o conjunto da população, não só no terreno econômico,
mas também político, cultural, etc. Procura questionar e propor a reorientação, sobretudo, do
poder conquistado pelas instituições internacionais ligadas ao grande capital, tais como o

32
No estudo sobre este ativismo, é referência o Fórum Social Mundial, já em sua quarta experiência,
e cuja dinâmica, estrutura e conformações políticas podem ser analisadas a partir das informações
presentes em www.fsm.com.br.
135

FMI, o Banco Mundial e a OMC, enquanto setores amplos de regulação, pressão e controle
dos Estados e das economias nacionais. Esta mobilização social de âmbito transnacional, pelo
menos em suas propostas originárias, coloca-se contra estas agências, seja para combatê-las
frontalmente, seja para influir nas suas estruturas organizacionais e/ou em suas políticas
concretas.
Assim coloca GÓMEZ (2001, p.18)

O movimento transnacional emerge, então, durante a segunda metade dos


anos 90, num contexto marcado pelas transformações estruturais do
capitalismo e da política mundial e pelas múltiplas manifestações de
descontentamento e resistência social que geram as políticas econômicas
dominantes. No entanto, ele é o resultado de um processo de convergências
progressivas e precárias, alimentado tanto por experiências setoriais de lutas
passadas quanto pelas novas iniciativas de questionamento político aberto à
governança global neoliberal e seu núcleo institucional mais visível.

Este autor ainda nos chama a atenção para algumas condições sócio-históricas que
teriam contribuído para o surgimento e para o desenvolvimento deste ativismo:
a) Evolução da tecnologia de informação e comunicação, permitindo o uso destes
meios na mobilização política e na dinâmica democratizante de contrapoder,
b) Configuração de novos centros de autoridade e de regulação para além dos
Estados nacionais, estimulando as populações de diferentes países a influenciar
em suas decisões;
c) Transformação do clima ideológico entre as elites internacionais e
transnacionais do centro, que passam a propor, diante dos custos sociais e da
fragilidade política do processo de mundialização do capital, fórmulas mais
atenuadas de liberalismo, políticas públicas mais interventivas e maior
receptividade às questões sociais reivindicadas.
É importante observarmos que as diversas mobilizações que compõem este ativismo
transnacional não são um movimento “antiglobalização em geral”, mas surgem e fazem parte
do que se convencionou chamar de um fenômeno “mais amplo da globalização”,
compartilhando de seus problemas e demonstrando as contradições estruturais deste
fenômeno. Portanto, estas mobilizações apresentam um potencial e, ao mesmo tempo, uma
limitação que se inscrevem “na dialética de antagonismos e conflitos inerente à configuração
de um espaço social global de poder e contrapoder em formação” (GOMEZ, 2001, p 20) e
marcado por imensas incompletudes. Assim, embora apresente um caráter abertamente
contra-hegemônico, está encoberto por grandes contradições.
136

(...) não são fáceis de superar os problemas analíticos, nem muito menos os
políticos, na abordagem da diversidade e do pluralismo irredutível de
identidades, formas organizacionais, níveis de recursos, interesses, táticas e
objetivos de movimentos sociais, ONGs e grupos de ação cívica que,
fazendo parte do ativismo transnacional, não são originários de uma mesma
sociedade ou região. (IBIDEM, p. 22).

Assim, a pretensa “sociedade civil global”, além de não ter, para equilibrar suas forças,
algo equivalente a um Estado global ou uma comunidade política global, também se constrói
como uma arena muito mais ampla de conflitos, como um espaço social marcado pela
dialética histórica de combinações e relações de forças hegemônicas e contra-hegemônicas.
Portanto, antes de qualquer perspectiva otimista acerca deste ativismo transnacional, é
importante analisar precisamente quais são as forças sociais que conduzem ou pretendem
conduzir o rumo desta proposta alternativa de globalização. Valem, pois, os questionamentos
de GOMEZ (2001, p. 13).

[Este ativismo] é uma manifestação inequívoca de crescimento da


consciência democrática e cidadã para além das fronteiras territoriais, com
implicações diretas na ascensão de uma arquitetura alternativa de
governância na política mundial? Ou se está diante de processos de
afirmação de identidades e interesses políticos particulares que, com não
poucos componentes antiglobalizadores em geral (e não apenas
antineoliberais) orientam-se com freqüência para os próprios âmbitos
domésticos e produzem resultados que podem até reforçar práticas não
democráticas e estruturas de desigualdade da economia política global que
dizem combater?

Estas abordagens, embora tratadas de forma preliminar, nos parecem fundamentais


para compreendermos o quanto este reordenamento capitalista, em direção a uma economia
transnacional tem significado uma maior desigualdade social para parcela significativa dos
países nele inseridos. O que podemos certamente afirmar é que, apesar de todo o
desenvolvimento tecnológico, produtivo e financeiro garantido pelo modelo contemporâneo
de acumulação do capital, “a globalização do mercado não revela nenhuma tendência de
igualização econômica para a humanidade como um todo” (THERBORN, 2000, p. 79).
Em se tratando deste aspecto social em seu sentido mais restrito, o debate mais
rigoroso sobre o momento contemporâneo de desenvolvimento capitalista num cenário
globalizado insiste em chamar atenção para a contradição essencial deste processo: um
movimento que deveria minimamente remeter à noção de integridade, de totalidade, tem
significado, no conjunto da sociedade, exatamente o seu oposto, ou seja, a divisão, a
137

marginalização e a exclusão, com realidades de extrema fragmentação e desintegração. Nas


palavras de CHESNAIS, o que está em desenvolvimento, no contexto global, é cada vez mais
uma polarização, que ocorre através de um duplo movimento:

A polarização é, em primeiro lugar, interna a cada país. Os efeitos do


desemprego são indissociáveis daqueles resultantes do distanciamento entre
os mais altos e os mais baixos rendimentos, em função da ascensão do
capital monetário e da destruição das relações salariais estabelecidas entre
1950 e 1970. Em segundo lugar, há uma polarização internacional,
aprofundando brutalmente a distância entre os países situados no âmago do
oligopólio mundial e os países da periferia (CHESNAIS, 1999, p. 37).

Esta polarização revela, dentre outras coisas, que existe hoje uma integração altamente
seletiva, ou seja, o investimento direto dos países que compõem a Tríade não ocorre na
mesma proporção quando o alvo é o conjunto dos países periféricos ou semiperiféricos. O
capitalismo mundializado continua, desta forma, a ampliar, numa escala cada vez maior, a
desigualdade e a heterogeneidade social entre países ricos e pobres, que, durante décadas,
sustentou a teoria de uma “era dos três mundos” (DENNING, 2005). O que antes
representava, no cenário capitalista, uma marginalização temporária e definida, transforma-se
agora em uma regra, uma condição, uma desigualdade social tão drasticamente acentuada que
se apresenta, muitas vezes, como inquestionável, impossível de ser resolvida.
LIMOEIRO-CARDOSO (2000, p. 111) destaca outro elemento importante deste
cenário:

A desigualdade social acentuou-se drasticamente nas últimas décadas.


Milhares de pessoas lutam para sobreviver sob condições extremamente
precárias, não só nos confins do mundo e entre as legiões de perseguidos e
de refugiados, mas também onde o capitalismo se apresenta como mais
próspero.

Estes efeitos negativos da nova reestruturação capitalista se prolongam mesmo sobre


os países de economia avançada, trazendo-lhes um quadro de conflitos e de problemas sociais
que anteriormente eram julgados como “controlados” no contexto social destes países. Esta
exclusão, produzida pelo grande impacto do capital rentista no cenário internacional, não
apenas cria “zonas de pobreza”, mas, de uma forma geral, acelera uma “disseminação” e,
muitas vezes, recoloca populações inteiras num cenário de pobreza, que agora, evidentemente,
encontra-se desvinculada da questão do desenvolvimento que demarcou o cenário econômico
dos países de capitalismo periférico na segunda metade do século XX.
138

Destaca-se, como já ponderamos, o desemprego estrutural como o mais grave


elemento desencadeador deste quadro. Não se fala mais de um desemprego conjuntural e
temporário, mas de algo que se prolonga por longos intervalos de tempo e que atinge a uma
parcela cada vez mais determinada das diferentes populações. Este fenômeno, resultado
evidente das novas tecnologias e das novas formas de organização do trabalho, ocorre
paralelo à precarização das condições de trabalho e de vida daqueles que, mesmo
permanecendo inseridos no mercado, são atingidos pelo processo de flexibilização da
legislação trabalhista e social.

Para aqueles que logram permanecer empregados, a situação também se


complica. O crescimento tão significativo da mão-de-obra excedente atua
clara e eficazmente no sentido do rebaixamento dos salários duma maneira
geral. E todo esse processo se faz presente também no nível da formulação
política, dando forma às propostas de precarização das relações de trabalho,
por meio das quais se pretende reduzir ao limite mínimo e, se possível, abolir
direitos e garantias que o trabalho havia conquistado no momento anterior do
desenvolvimento capitalista, em que as relações de forças eram outras.
(LIMOEIRO-CARDOSO, 2000, p. 115).

Neste contexto, a dicotomia norte/ sul ameaça ambos os pólos com a “condição de
pobreza” para os que não conseguem, pelos mais diferentes caminhos, se integrar à economia
mundial”. Ações emergenciais são esperadas e propostas por parte do poder público, com
vistas a criar estratégias de enfrentamento da pobreza que sejam capazes de reordenar a
estrutura societária mais ampla e amenizar conflitos ainda compostos no âmbito nacional. O
Estado, em seu modelo neoliberal, acaba por se defrontar com uma parcela da população que,
a cada dia, depende mais das políticas sociais por ele oferecidas, ainda que precárias e
insuficientes. A necessidade de manter uma “clientela política” que lhe garanta um consenso
mínimo será um dos principais motivos para a permanência destas intervenções públicas
(LAURELL, 1995).
O redimensionamento dos negócios internacionais e mesmo a intensificação do fluxo
de capitais desde meados dos anos 80 não têm gerado, para os países de capitalismo periférico
e semiperiférico, profundas e significativas mudanças na diversidade de seus
desenvolvimentos. O que podemos observar é que a desigualdade global entre países, e
139

mesmo dentro de cada país, tem aumentado consideravelmente33, neste cenário de capital
globalizado.
Nos países periféricos ou semi-periféricos, observa-se, portanto, uma preocupante
contradição entre a homogeneidade na produção e a heterogeneidade nas condições sociais.
Graças às inovações tecnológicas, organizacionais e gerenciais, estes países podem produzir
bens e serviços absolutamente compatíveis com as exigências e orientações do capital
globalizado, garantindo, portanto, o pleno desenvolvimento do comércio exterior e do
investimento externo direito. No entanto, a força de trabalho, formal ou informalmente
empregada34, vivencia um quadro social cada vez mais comprometedor, onde a condição de
pobreza se desenvolve e se aprofunda.
Esta situação é assim descrita por GÓMEZ (2000, p. 154):

As conseqüências negativas que daí decorrem são hoje amplamente


reconhecidas, indo desde o aumento do fenômeno da exclusão social e
espacial (grupos e categorias sociais, zonas, países e até continentes que,
rapidamente, tornam-se irrelevantes porque não conseguem integrar-se à
dinâmica da economia mundial), passando pela brutal concentração de
renda, o achatamento salarial, o desemprego estrutural, a flexibilização dos
direitos sociais e o sentimento generalizado de insegurança no trabalho, o
debilitamento das antigas identidades e formas de solidariedade de classe, e
chegando até o crescimento das correntes migratórias internacionais, a
intensificação da degradação ambiental, o consumismo desenfreado e o
fundamentalismo reativo de afirmação de identidade dos não-incluídos.

Diante deste quadro, as recomendações dominantes, feitas pelas instituições


internacionais, insistem, ainda hoje, nos elementos básicos do ideário neoliberal: a
necessidade de se apostar no papel (auto) regulador do mercado e nos aspectos nocivos da
intervenção do Estado. Este último deve, portanto, ter uma intervenção limitada à produção de
externalidades para o pleno desenvolvimento capitalista do mercado e a uma atuação
puramente emergencial no que tange ao enfrentamento da pobreza. SALAMA (2000) insiste
em apontar para o equívoco inerente a estas recomendações, uma vez que um crescimento
durável, capaz de modificar profundamente o desenvolvimento de uma sociedade não é
“naturalmente” o produto de uma liberalização forte e repentina da economia.

33
Autores afirmam que o caso do desenvolvimento econômico do Leste Asiático é um fenômeno
totalmente marginal por determinações econômicas e políticas que não teremos, infelizmente, a
oportunidade de tratar aqui.
34
Salama (2000) nos chama a atenção para o crescimento do número de pessoas nos empregos
informais de estrita sobrevivência.
140

Muito pelo contrário, o que podemos perceber com mais clareza é que a profunda
deterioração de toda uma série de serviços públicos, sobretudo nos países periféricos e
semiperiféricos, contribuiu para o agravamento do quadro de degradação social e de pobreza.
Por outro lado, verificamos que, nos países com uma maior capacidade estatal para assegurar
um padrão de igualdade, de segurança e de estabilidade social, os índices de desigualdade
tendem a ser menores.

Entre as economias desenvolvidas ou em desenvolvimento há uma


correlação positiva entre intervencionismo do Estado e a igualdade de renda
(...). E a capacidade dos Estados em fazer o que seus cidadãos ou seus
dirigentes desejam, diante da crescente interdependência global, é talvez a
questão mais acalorada de todos os debates acerca da globalização.
(THERBORN, 2000, p. 83).

Discutir esta controvérsia acerca da “crise do Estado-nação” e a “globalização da


política” é o desafio ao qual nos propomos no próximo item deste capítulo.

2.3 – Soberania nacional e mundialização do capital: afinal, onde está o poder?


Uma das idéias mais difundidas no debate político contemporâneo é aquela que
apresenta os mercados financeiros internacionais e as corporações transnacionais como as
instâncias mais capacitadas para a regulação social, construindo-se como mais fortes e mais
eficazes do que os mais poderosos Estados. Em outras palavras, parece ganhar força um
movimento prático e intelectual que torna sinônimos a “globalização da política” e a “crise do
Estado-nação”. Este último passa a ser apresentado como uma organização territorial
ultrapassada e ineficaz para a regulação das atividades econômicas nacionais e deve assumir
um papel cada vez mais periférico, tornando-se “simples autoridades locais do sistema global,
encarregadas da proteção, da infra-estrutura e dos bens públicos considerados essenciais pelo
capital internacional” (GOMEZ, 2000, p. 130).
Este debate parece apontar para uma crescente perda de importância de unidades
políticas territorializadas e “soberanas”, onde a configuração do poder decisório mundial teria
se autonomizado e perdido as referências a um território específico. O cenário internacional
estaria politicamente demarcado por diferentes sujeitos sociais coletivos, não se podendo mais
dar exclusividade ou prioridade aos Estados nacionais, uma vez que estaríamos diante de uma
141

realidade de “soberania transnacional” que teria a capacidade de dissociar nacionalidade de


cidadania35.
ALMEIDA (2003, p. 67) reconhece um certo eurocentrismo nestas afirmações,
demarcadas, ademais, por um forte caráter ideológico. Em suas palavras,

Talvez estes reparos ao paradigma “realista” no estudo das relações


internacionais se centrem – e de modo exageradamente otimista – no
processo europeu ocidental. É também provável que esta unilateralidade
tenha contribuído para que os teóricos do “fim da soberania” e do “declínio
do Estado-nação” não levem em conta a extraordinária performance do
Estado nacional norte-americano no cenário internacional.

Assim, compartilhamos com este autor as afirmações de que, para realizarmos uma
análise deste momento histórico capaz de superar a perspectiva de um “mundo do imediato”,
é preciso um retorno, a partir de novas determinações, ao paradigma do imperialismo. O
mesmo movimento que fizemos, na análise do campo econômico, nos parece necessário
agora, na abordagem da esfera política.
Este paradigma nos parece vital para que possamos evitar tanto concepções
estatocêntricas quanto globalistas acerca das sociedades contemporâneas. As primeiras
tendem a fecundar nacionalismos que se sustentam em uma concepção acrítica e fortemente
ideológica de soberania, relacionando-a com o “Estado soberano”, representante de uma
“nação” de onde se pode abstrair a diferença e a luta de classes. As últimas, por outro lado, se
dirigem a pensar, como já afirmamos, a reconfiguração do Estado sob a hegemonia do grande
capital mundializado e das propostas neoliberais, tendendo a visualizar a soberania e o Estado
nacionais em uma fase terminal, que dará lugar a um plano mais amplo de “política”, agora
em bases transnacionais. Evitar estas duas concepções significa, portanto, evitar o erro
primário e simplório de, para se opor à idéia da “globalização da política”, propor o retorno a
um nacionalismo sem ponderações ou críticas, como se este guardasse as perspectivas mais
desenvolvidas de conformação societária. Uma experiência muito mais ampla de
desvelamento crítico precisa ser, então, encaminhada.
O principal alvo de crítica do capital globalizado para a intervenção estatal é o modelo
construído sob a égide do Estado de Bem Estar Social, em sua versão socialdemocrata,
entendido como o mandatário da regulação econômica nacional, do pleno emprego, do
crescimento sustentado, da produção e do consumo de massas e do compromisso de classes

35
LADISLAU DOWBOR (2003), ao questionar se “os EUA preocupam?”, chega a afirmar que, neste
momento, todo o mundo nos preocupa, pois, “na era global, somos todos cidadãos do planeta”.
142

através de acordos tripartites (empresários, sindicatos e Estado), compondo o que OFFE


(1989) chamou de “capitalismo organizado”. Para fazer frente a esta estrutura de regulação e
intervencionismo estatal, o conjunto de reformas econômicas e políticas neoliberais é
estruturado para reorganizar e reproduzir o sistema do capital, de forma que este possa se
afirmar, agora, no contexto globalizado, sem interferências ou controles políticos nacionais
mais diretos.
Se esta refuncionalização do Estado é hoje apresentada, ideologicamente, como um
processo irreversível, não se pode, de forma alguma, como já afirmamos, acreditar num
movimento unívoco, cujos resultados sejam necessariamente positivos. O mesmo movimento
que garante um fluxo crescente de capitais, mercadorias, tecnologias, pessoas, idéias e valores
garante também, orientado pela lógica do sistema do capital, uma fragmentação que dá
origem a nacionalismos étnicos, fundamentalismos religiosos, guerras, desigualdades
crescentes entre países, xenofobia, racismo e pobreza. Para esta contradição entre
globalização e fragmentação, os Estados não podem continuar apresentando uma mera
atuação residual, sob pena de contribuírem ainda mais para a “fenomenal desordem” mundial,
da qual os recentes conflitos internacionais são apenas a ponta do iceberg.
Desta forma, ambas as concepções são limitadas para a compreensão do cenário
político contemporâneo e acreditamos que, para superá-las, é preciso recuperar uma
abordagem do Estado, na sociedade capitalista, como “organizador, inclusive no plano
ideológico, da dominação burguesa de classe”. Com este objetivo, o Estado, seja em sua
versão nacional ou em sua perspectiva “globalizada”, se construiu a partir de uma estrutura
hegemônica onde sempre tiveram papel fundamental as frações ligadas ao denominado
“capital internacional”.
É preciso, então, questionar esta configuração neoliberal do Estado a partir de
elementos históricos e conjunturais que problematizam a questão do Estado-nação e de seu
compromisso ou vinculação com bases territoriais e nacionais. A primeira constatação a fazer
é que o próprio sistema de Estados nacionais veio “de fora”, a partir de acordos mútuos que
“consagraram o princípio da não interferência externa entre os Estados” (GOMEZ, 2000, p.
142). Assim, a própria “doutrina da soberania” dependeu de acordos que criaram, desde cedo,
uma dimensão internacional para o poder político e para o desenvolvimento econômico que
ele buscava sustentar. Tendo em vista o caráter de classe do Estado capitalista, ele sempre se
valeu desta dimensão para fazer prevalecer os interesses do capital, este sim, conforme
estudamos, sempre internacionalizado.
143

A sociedade anárquica de inter-relações externas entre os estados (esse


mundo de entidades auto-suficientes, em que cada uma age sob sua própria
vontade, mas ficam todas limitadas pelo mútuo reconhecimento e pela
obrigação de não interferir nos assuntos internos das outras) foi, assim, a
pré-condição para um efetivo monopólio de poder interno (IBIDEM, p. 143).

Da mesma forma como este “estatismo” é profundamente marcado por traços


ideológicos, também o é a própria idéia conservadora de nação, que sempre foi uma idéia
construída, com a pretensão de atender a objetivos de classe bastante específicos. O que
demarca esta idéia, sob uma perspectiva conservadora, é uma pretensa homogeneidade
cultural, uma nação apolítica, anterior à formação do próprio Estado, e que delimitaria os que
compartilham de um mesmo “conjunto comum de significados e entendimentos políticos
historicamente específicos” (GOMEZ, 2000, p. 144). Daí constrói, portanto, uma comunidade
imaginária que, na maioria das vezes, se estabelece de forma conservadora, buscando
desqualificar ou mesmo ocultar a diferença e a luta de classes em seu interior. Assim,
considerar a “nação” como o sujeito exclusivo da soberania é ignorar a dimensão ideológica
que demarca esta própria idéia.
O moderno Estado nacional, instituído a partir de um pacto internacional claramente
orientado pelos interesses capitalistas em expansão, seria constituído a partir de princípios
normativos centrais, a saber: territorialidade, onde o poder do Estado atuaria sobre um espaço
territorial fixo e exclusivo; soberania, onde ficaria estabelecido o direito incontestado e
exclusivo de supremacia para governar; autonomia, que tornava os Estados modernos livres
de qualquer intervenção ou controle externos para conduzirem e decidirem seus assuntos
internos e externos e legalidade, que estabelecia um direito internacional para orientar a
relação entre os diferentes Estados. É interessante observarmos que tais princípios foram
estabelecidos por um pacto internacional, que pressupunha, desde o início, uma relação entre
diferentes nações que determinasse o grau de poder e de soberania de cada Estado em
particular. É preciso observar também como estes princípios normativos são construídos a
partir de uma perspectiva linear da esfera política, como se ela não se estruturasse em razão de
uma base material especifica e heterogênea. Em outras palavras, a territorialidade, a
soberania, a autonomia e a legalidade nunca foram as mesmas para os mais diversos Estados
nacionais, relacionados, desde então, com um conjunto de relações econômicas
historicamente desiguais.
No entanto, a instituição de um Estado territorial, administrado por um poder central,
foi apenas o primeiro passo para a constituição do aparato administrativo que hoje
conhecemos e que vem sendo tão questionado pelos processos políticos hoje em curso. Para
144

garantir a legitimidade das ações deste Estado, era necessária a construção de uma idéia
homogeneizadora, uma base de integração social capaz de acelerar os processos de destruição
das relações pré-capitalistas e de consolidação da burguesia como classe politicamente
dominante. Assim é que, no final do século XVIII, o Estado moderno e a nação moderna se
fundem para formar o Estado-nação. Inaugura-se aí toda a força política, social e ideológica
que o nacionalismo terá nos séculos XIX e XX. Neste sentido, é importante recuperarmos o
que afirma HABERMAS (1997, p. 281):

A consciência política da pertença nacional surge de uma dinâmica que só


atingiu a população a partir do momento em que esta foi mobilizada e
individualizada através de processos de modernização econômica e social
que a libertaram dos laços sociais corporativos.

Para uma melhor compreensão da importância desta perspectiva nacional a partir do


século XIX, vale observarmos que ela representa, inclusive, um ponto de inflexão no próprio
sentido do termo nação. No vocabulário romano, “nação” significava apenas um grupo de
descendência comum e era um termo com sentido negativo, usado para se referir aos pagãos,
aos estrangeiros e a grupos de indivíduos que não possuíam um estatuto civil e político, “sem
rei e sem lei”. Sua oposição era o termo “povo”, o qual se referia a grupos de indivíduos
organizados institucionalmente e que, sob esta condição, obedeciam a normas, regras e leis
comuns (CHAUÍ, 2000). Assim, enfatiza-se neste momento uma concepção pré-política de
nação, referindo-se a comunidades organizadas apenas por relações de parentesco. Atribui-se
ao termo uma naturalidade imaginária e, de certa forma, inevitável e inquestionável. O
indivíduo possui uma nacionalidade herdada através da pertença a uma comunidade pré-
política, integrada através da descendência, da linguagem comum e das tradições comuns.
É esta a concepção de nação recuperada pelo Estado moderno e convenientemente
modificada pelo contexto de desenvolvimento das sociedades modernas nos séculos XIX e
XX. A partir de então, nação passou a significar a fonte de soberania do Estado, a comunidade
democrática intencional, a fonte de identidade política dos sujeitos, o espaço onde ocorre a
“passagem do status de súdito para o de cidadão”, o palco da participação política efetiva. O
Estado recém formado precisava do consentimento prático da população e foi, aos poucos,
incorporando o termo nação ao vocabulário político com este outro significado: a nação
construída através da responsabilidade, do trabalho, do envolvimento de todos com a sua
145

36
prosperidade. Do “princípio da nacionalidade” aos dilemas da “questão nacional” , fica
claro que

Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado,


incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal; de
outro, obter a lealdade dos habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a
luta de classes, a luta no interior de cada classe social, as tendências políticas
antagônicas e as crenças religiosas disputavam essa lealdade. (CHAUÍ,
2000, p. 17).

É no contexto desta redefinição da questão nacional que a perspectiva da cidadania é


definitivamente incorporada como condição daqueles que compartilham de um sentido de
nacionalidade e de pertença a um Estado. Posteriormente, a este sentido somou-se o status de
pessoas dotadas de direitos e de deveres ou de responsabilidades cívicas para com sua
comunidade.
Um “nacionalismo adquirido”, nos termos de HABERMAS (1997) passa a ser o
principal elemento de uma identidade coletiva propícia ao papel de cidadão. Tal nacionalismo
vai encaminhar a prática das pessoas no processo de participação na vida pública e de luta
pela conquista de seus direitos civis, políticos e sociais. É no interior das nações, no
desenvolvimento destes dois séculos, que os diferentes grupos, classes e movimentos sociais
procurarão alcançar melhores condições sociais de vida, maior participação política,
liberdades individuais, garantias democráticas de autonomia e controle sobre suas próprias
vidas e das coletividades nas quais estão inseridos. Nas palavras de GOMÉZ (2000, p. 53)

(...) a democracia como forma de governo e a cidadania democrática como


meio privilegiado de integração social na comunidade política estão
inexoravelmente, “territorializadas” em virtude de sua vinculação histórica e
teórica com a figura do Estado-nação, e conseqüentemente, com a ordem
internacional baseada nos princípios e normas de Vestfália.

Questões como a ampliação ou a redução de direitos sociais, a extensão do sufrágio, as


virtudes cívicas necessárias ao cidadão, a construção de uma esfera pública, a noção de bem
público, a existência de grupos oprimidos a demandarem um tratamento diferenciado, tudo
isso e outros tantos dilemas das diferentes concepções de cidadania surgem e se constituem

36
Valendo-se das observações de HOBSBAWN, CHAUÍ (2000, p. 16) mostra que a incorporação do
debate sobre nação no vocabulário político foi sendo feita gradativamente a partir de 1830. Assim, ela
estabelece três períodos deste processo: 1) 1830 a 1880, quando se fala em “princípio de
nacionalidade”; 2) de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional” e 3) de 1918 a 1950, quando a ênfase
é na “questão nacional”.
146

como problematizações no interior do Estado-nação e, até as últimas décadas do século XX,


serão por ele enfrentadas.
A possibilidade e a necessidade de retomarmos os elementos-chave do debate sobre o
imperialismo se colocam neste momento e apresentam, desde então, uma contradição
substancial. Por um lado, a idéia construída de um nacionalismo ocidental, que fortalece laços
pré-políticos, mas que, ao mesmo tempo, estabelece elementos de pertença e de exclusão em
limites territoriais e políticos absolutamente rígidos. Por outro, a rigorosa proposta do
imperialismo enquanto processo de acumulação capitalista em escala mundial, dividindo o
mundo em esferas de influência e de dominação das grandes potências da Europa em uma
característica luta intercapitalista. O capitalismo, mesmo no momento de hegemonia da
perspectiva do Estado-nação, se sustentou por relações internacionais de dominação
econômica e a atenção aos seus interesses sempre foi prioridade no cenário marcado pela
orientação e pela prática imperialistas.
A própria perspectiva do Estado-nação, somada aos elementos do nacionalismo e da
democracia participativa, que a lógica do capital globalizado insiste em desqualificar é, em si,
uma perspectiva absolutamente questionável. Em primeiro lugar, porque tal comunidade
política é um ideal que nunca se realizou completamente, pois o trinômio soberania/
nacionalismo/ democracia foi repleto de momentos ambíguos, em que se combinaram
elementos de coerção, persuasão ideológica, limites à participação e prevalência de interesses
imperialistas. Em segundo lugar, porque, de fato, construiu-se historicamente um sistema
internacional que definiu, ainda que de maneira velada, as orientações políticas, econômicas e
sociais nos mais diversos territórios, fazendo com que a soberania e a autonomia dos Estados
nacionais fossem constantemente relativizadas. Este sistema internacional, como podemos
ponderar, foi construído e se encontra sustentado pela lógica do capital e a partir dela é que se
desenvolveram os consensos, os dissensos e as correlações de forças que orientaram até
mesmo todo o período do “capitalismo organizado”.
Portanto, falar da “crise do Estado-nação” é um risco, uma vez que oculta estas
assimetrias e estes embates hegemônicos que acompanharam as relações capitalistas
internacionais. É preciso, assim, recuperar a idéia de que uma série de determinações externas
às formações sociais nacionais sempre orientou os Estados nacionais e que isto persiste até os
dias atuais. É uma ilusão pensar que, diante deste novo momento de um velho imperialismo,
todos os Estados perderam soberania e todos os territórios se desmancharam na onda da
globalização. Valem os questionamentos de ALMEIDA (2003, p. 72)
147

Um mundo sem soberania na época da hegemonia do “império” americano?


(...) Fim dos territórios quando existe um muro nada virtual para controlar o
ingresso de proletários, ou, na expressão de Michael Löwy, “pobretários”, no
território da maior potência planetária? Fim da soberania do Estado nacional,
quando os próprios dirigentes da política externa norte-americana explicitam
que lhes cabe decidir quando ou não atuar segundo deliberações tomadas no
interior da ONU?

O momento do Estado nacional foi, portanto, o momento em que a dominação


burguesa necessitou se apoiar na ideologia da “soberania do povo-nação”. Da mesma forma,
quando esta ideologia não mais responde aos interesses do grande capital, cabe apresentá-la
como algo anacrônico e ultrapassado, onde soberania deve estar, portanto, subordinada a
proposta de “modernização” e “atratividade para o mercado”. Assim, estatismo e globalismo
são duas faces de uma mesma moeda, disposta a dar sustentação política ao pleno
desenvolvimento do sistema do capital. A partir destas idéias, ALMEIDA (2003) nos chama a
atenção para o risco de “surtos acríticos de estatismo” que pode atingir, inclusive, os setores
mais progressistas de uma sociedade.
Diante destas considerações, quais seriam, então, as verdadeiras particularidades
contemporâneas da tão divulgada “globalização da política”? Até que ponto ela demarca,
realmente, uma nova fase nas relações políticas em todo o mundo ou até que ponto ela é
apenas mais um momento de reorientação ideológica da política sob a hegemonia do sistema
do grande capital?
Neste que preferimos chamar de “novo cenário imperialista”, pensar a configuração do
Estado e da política, sem cair naquele risco de “estatismo”, significa, acreditamos,
problematizar estas diferentes relações hegemônicas, intra e entre nações, configurando-as no
contexto de desenvolvimento capitalista que anteriormente demarcamos: Estado, sociedade
civil e política estão, agora, mais vivos do que nunca, embora reconfigurados, e constroem
novos e constantes enfrentamentos.
Um elemento relevante que podemos observar neste cenário é a expansão de padrões
de internacionalização dos processos decisórios e de mundialização das atividades políticas.
Da mesma forma como orientam as economias nacionais, as organizações e instituições
internacionais têm assumido, com muito mais freqüência e intensidade do que no período
anterior, o poder de decisão sobre as regras e os princípios políticos de cada país. Constituem
verdadeiros “diretórios globais” que, tendo em vista o acirramento da interdependência
econômica, impõem suas condições, principalmente aos países de capitalismo periférico e
semiperiférico.
148

Assim explica GOMEZ (2000, p. 160)

(...) emergiram novas formas de política multilateral e transnacional, com


diferentes estruturas decisórias envolvendo governos, organizações
intergovernamentais e uma vasta gama de grupos de pressão transnacional e
organizações não-governamentais. (...) Nesse universo heterogêneo de
formas associativas destacam-se aquelas organizações e agências que, pela
centralidade das questões estratégico-militares e econômicas abordadas,
revelam uma clara estrutura e exercício assimétrico de poder sobre o
controle das regras, recursos e políticas de alcance global.

Como um dos fatores fundamentais neste processo de internacionalização dos padrões


políticos decisórios, destaca-se o fortalecimento do chamado “direito internacional”. Este se
caracteriza por um sistema de regulação que reconhece poderes, direitos e deveres que se
colocam acima da configuração nacional de cada Estado, tendo conseqüências diretas sobre a
ação dos indivíduos e da própria sociedade civil. GOMEZ (2000) destaca três áreas que
teriam hoje este alcance global: direitos humanos, democracia política e meio ambiente.
Se o reconhecimento destes “direitos internacionais” pode indicar um ponto positivo
no processo de globalização em curso, apontando para a possibilidade de uma emergente
“sociedade civil internacional” e uma “política global a partir de baixo”, isto não ocorre sem
contradições. Parece-nos ainda extremamente frágil falar de uma internacionalização de
direitos quando estes ainda estão submetidos e limitados pela lógica do capital. Assim, ainda
vivemos um momento em que não se alcançaram, em nenhuma das três áreas, mas sobretudo
no que tange aos direitos humanos, condições mínimas para uma efetiva tutela internacional,
faltando não só uma institucionalização destes direitos, como também uma orientação unívoca
do que realmente possa compô-los. Assim, também acontece com a noção de uma “verdadeira
democracia política” internacionalizada, onde percebemos não só governos abertamente
antidemocráticos, mas também defesas não consensuais em torno do que seria uma “nação
democrática” e relações marcadamente ditatoriais nas relações entre os Estados. No caso do
respeito ao meio ambiente, isto se torna ainda mais evidente, uma vez que, apesar de toda a
movimentação planetária em torno de sua defesa, vivemos uma verdadeira “crise ecológica”
(BIHR, 1999), com a exploração cada vez mais acelerada dos recursos naturais, os constantes
riscos de desastres ambientais, ameaças de utilização de armas nucleares e relações, também
neste sentido, orientadas pelo padrão imperialista.
Desta forma, se muito vale a mobilização internacional em torno destas questões, ela
ainda está longe de produzir efeitos significativos no cotidiano da vida social nos mais
diferentes países, sobretudo quando não se unifica em torno de um projeto societário
149

alternativo ao sistema do capital. Poderíamos inclusive afirmar que esta mobilização ainda se
localiza no âmbito do que Gramsci chamaria de um “subversivismo esporádico”, carecendo
de significativos elementos para alcançar uma necessária organicidade.
Este debate conduz a questionamentos relativos à configuração e à defesa da
democracia política no quadro deste capitalismo globalizado. Em outras palavras, quais
seriam hoje os centros de poder e que classes ou segmentos teriam, democraticamente,
participação e força política em sua dinâmica? Este processo de mundialização do capital,
como tivemos a oportunidade de observar, se estabelece sobre um suposto distanciamento
entre o poder econômico e o espaço político. O primeiro se expande e se fortalece com um
alcance planetário cada vez mais intenso, onde as grandes corporações financeiras conquistam
poderes cada vez maiores e mais amplos. Por outro lado, os principais jogos e recursos de
poder político ainda continuam restritos às fronteiras territoriais, e a democracia só se sustenta
como forma de governo legítima nos limites do Estado-nação.
O que se questiona, portanto, é que alcance efetivo tem a democracia quando está
condicionada à posição que os Estados ocupam na hierarquia política e econômica global,
quando a maioria dos Estados se encontra reduzida em sua capacidade de ação em torno de
políticas autônomas. Assim questiona BORON (1999, p. 34)

Como compreender, à luz das normas democráticas, que há alguns


[mercados] que votam todos os dias, ao passo que a esmagadora maioria da
sociedade o faz uma vez a cada dois anos? Até que ponto pode ser
considerado democrático um Estado que consente com tamanha
desigualdade no exercício dos direitos políticos. No melhor dos casos, se
trataria de uma democracia sumamente defeituosa, apenas uma tanga para
dissimular a vigência de um regime fortemente oligárquico em sua estrutura
e funcionamento.

Desta forma, apesar da grande multiplicidade de sujeitos coletivos que se organizam


contemporaneamente “para além do Estado” e apesar de uma reestruturação da agenda
política internacional, caracterizada por novas tensões, contradições e articulações,
percebemos o risco de um esvaziamento efetivo do debate e da ação política, mesmo num
contexto de aparente tendência à universalização da democracia. Constrói-se, neste cenário
político,

(...) um poder sem sociedade, que tende a engendrar sociedades sem poder e
Estados em crise, e que desacredita a política submetendo-a às exigências de
mobilidade, flexibilidade, privatização, desregulação, redução dos gastos
públicos, sociais e salários, vale dizer, tudo aquilo que é considerado
150

indispensável para o livre jogo da lei do mercado. (GORZ, apud GOMEZ,


2000, p. 122-123)

Esta reorientação estrutural da política, em âmbito internacional, questiona as bases


tradicionais sobre as quais estávamos acostumados a pensar o Estado, a sociedade civil e a
estrutura societária mais complexa. Se for verdade que o capitalismo, mesmo quando alcança
sua configuração mundializada, não dispensa a figura do Estado, ele o rearticula com
fronteiras cada vez mais porosas. Estes Estados, que guardam, mesmo assim, imensos
poderes, encontram-se submetidos a uma multiplicidade de demandas, questionamentos e
condicionamentos, com normas e compromissos internacionais, com novas competências,
recursos de poder e modos de coordenação. Além disso, ao se constituírem como o locus onde
se revelam os efeitos sociais perversos da globalização, são desafiados, por diferentes sujeitos
coletivos, a apresentarem respostas que estejam além das práticas meramente emergenciais e
apontem para a construção de efetivos projetos societários alternativos.
A política se recoloca, então, como a esfera da representação de interesses e, na análise
de diversos autores, o desafio é reconstruí-la na perspectiva de uma “outra globalização”.

Ora, rejeitar a globalização, pretender resistir a ela nacionalmente, conduz


infalivelmente a capitular frente a esta globalização. Não é contra a
globalização que tem que se lutar para procurar sair dela, é no contexto da
globalização em curso que é preciso lutar por uma globalização diferente. A
resistência ao capital transnacional só pode ser ela mesma transnacional; a
resistência aos atores desta globalização exige, ante tudo, atores de outra
globalização, guiados por uma visão, uma solidariedade, um projeto de
civilização planetária. (GORZ apud GOMEZ, 2000, p. 125-126)

É nesta orientação que se insere, organizada em torno do que se denominou de uma


perspectiva “republicana cosmopolita”, parcela significativa daquela “sociedade civil global”
de que falávamos anteriormente, que defende a necessidade de “civilizar e democratizar a
globalização”, criando-se estratégias de autoridade, legitimidade e participação política
capazes de se sobrepor e, até mesmo, regular a estrutura do capital mundializado.
Esta perspectiva, na análise de GOMEZ (2000), recupera a idéia de uma comunidade
política coletivamente autodeterminada, porém não mais a identifica como localizada
exclusivamente nas fronteiras nacionais. A emergência de vários “lugares de poder” e a
politização crescente de uma série de “questões-chave supranacionais” apresentaria, assim, a
necessidade de um duplo processo de democratização, que atingisse, ao mesmo tempo, o
âmbito nacional e os âmbitos regional e global. Trata-se, portanto, de potencializar estes
diversificados “espaços de poder”, garantindo representação, participação e poder de
151

deliberação para assegurar a expansão de uma “nova esfera pública”, que possa envolver as
questões relevantes em âmbitos ampliados. No entanto, a potencialização de amplos setores
desta “sociedade civil global” não pode estar restrita ao que Gramsci denominou de “pequena
política”, ou seja, a questões “parciais e cotidianas” que pouco ou nada interferem no
direcionamento mais amplo, na “grande política”, que, exercida exclusivamente pelos grupos
e classes dominantes, possibilitam as macro orientações de uma sociedade. Nas palavras de
CAMPIONE (2003, p. 61)

A dispersão, a falta de articulação com outros espaços que não os do próprio


setor ou “tema”, o isolamento e a inorganicidade – coisas que muitos saúdam
em nome da diferença ou da “tolerância” – só podem levar à conservação da
sociedade existente. (...) As organizações populares precisam reagir em face
das fortes pressões em favor de sua “domesticação”, de seu enquadramento
nos limites de uma “governabilidade” entendida basicamente como um
sistema em que as classes subalternas podem exercer sua liberdade de
organização e mobilização, mas desde que se abstenham de tudo aquilo que
possa perturbar as relações de poder existentes.

A formação e o fortalecimento desta “sociedade civil global” teriam como orientação,


em primeiro lugar, uma crítica à ordem hegemônica global e a defesa da ampliação das
fronteiras políticas, superando as “percepções de estranhamento com outros povos”. Assim,
estariam colocadas as bases para a constituição de cidadãos e de instâncias de autoridade
política capazes de transcender as fronteiras e desencadear processos de democratização e de
controle dos centros mundializados de poder econômico, financeiro e político. Seria colocada,
aqui, a necessidade de se compreender, com Gramsci, que “a história é sempre a história
mundial”, ou seja, de que existe, entre e acima das diferentes nações, um marco comum, um
terreno político, econômico e cultural compartilhado que deve ser recuperado, no momento
atual, a partir de um empenho histórico-crítico que, acreditamos, permanece ausente.
Após a “euforia globalizante dos anos 80” e suas primeiras críticas mais estruturadas
na década de 90, podemos afirmar que esta “democracia cosmopolita” ainda permanece como
um projeto, carente de espaços mais efetivos de controle e de propostas concretas para a
realização de uma “globalização alternativa”. Entendemos também que recolocar o debate
acerca do nacional-popular, nos termos da análise gramsciana, pode representar um
importante movimento de reencontro com esta “história mundial”, que, partindo do nacional
enquanto particularidade, não se limita a ele, mas pensa em supera-lo dialeticamente.
Entendemos que, para o fortalecimento desta proposta, as questões e os desafios próprios da
152

esfera cultural são de extrema relevância. Sobre eles é que iremos tratar no próximo capítulo
deste trabalho.
153

3 Globalização da cultura? Ou cultura da globalização? Os


desafios contemporâneos para a categoria nacional-popular
Os elementos anteriormente analisados acerca do movimento contemporâneo de
acumulação do capital nos aproximam do debate relativo à esfera cultural e nos fazem
recuperar, da perspectiva gramsciana, a concepção de bloco histórico, ou seja, a idéia de que
uma estrutura sócio-econômica determinada desenvolve, em seu interior, a necessidade de
uma superestrutura político-ideológica, capaz de garantir à classe hegemônica os elementos
de domínio e direção que lhe dão sustentação. Afirmamos que este desenvolvimento se dá em
seu interior porque este aparato ideológico já se constitui como inseparável da base sócio-
econômica. A partir da constituição da sociedade como uma totalidade, estrutura e
superestrutura se mostram como elementos indissociáveis.
Em Gramsci, portanto, percebemos uma superação concreta da visão dicotômica entre
estrutura e superestrutura, onde esta última seria apenas um reflexo e/ ou um efeito da
primeira. Para este autor, um todo orgânico se configura a partir da articulação destas duas
esferas, definindo, sobremaneira, a prática política das sociedades que ele denomina como
ocidentais.
Por isso, Gramsci é, muitas vezes, reconhecido como um “teórico das
superestruturas”, pois se preocupa continuamente em chamar a atenção para o fato de que é
preciso analisar, no contexto de desenvolvimento de uma sociedade, a “maneira como um
sistema de valores culturais impregna, penetra, socializa e integra um sistema social”
(PIZZORNO, apud PORTELLI, 1977, p. 16). Este momento tem relação direta com as
estratégias de luta hegemônica, pois nele se pode compreender como se desagrega a
hegemonia de uma determinada classe e como se edifica um novo sistema, capaz de dar
origem e sustentação a outro bloco histórico.
A concepção gramsciana de bloco histórico nos parece relevante, portanto, para
compreendermos que o cenário sócio-econômico da “globalização” dispõe e necessita de um
momento superestrutural, ou seja, de um universo ideológico que, pelos mais diferentes
caminhos, garanta a continuidade do quadro hegemônico que então se desenha. Este conjunto
de ideologias está, portanto, diretamente vinculado às classes sociais em luta no cenário
contemporâneo, organizando os diferentes grupos sociais e dirigindo-os de acordo com as
condições sócio-econômicas que tomam lugar nos dias de hoje. É através deste aparato
ideológico, como podemos observar, que os homens podem adquirir consciência das relações
sociais que os envolvem e, ao mesmo tempo, se posicionar com relação a elas, conformando-
154

se ou desenvolvendo alternativas ao que está colocado. É neste sentido que afirmamos, desde
já, a existência de uma “cultura da globalização”, mais que uma “globalização da cultura”.

Estabelecido seu vínculo com a estrutura, as ideologias e atividades políticas


tornam-se assim o verdadeiro terreno onde os homens tomam consciência
dos conflitos que se desenvolvem no nível da estrutura, o que lhes confere
um valor “estrutural” e confirma a noção de bloco histórico em que
justamente as forças materiais são o conteúdo e as ideologias, a forma.
(PORTELLI, 1977, p. 32)

É no interior deste debate que podemos compreender os elementos constitutivos do


que se convencionou chamar de “globalização da cultura”. A expressão, e suas principais
variantes, como “cultura global” e “cultura mundo”, guardam inúmeras problematizações que
são determinantes para que possamos analisar, com elementos mais precisos, o contexto
societário no qual estamos contemporaneamente inseridos. A cultura, como já observamos
anteriormente, em seus mais diferentes níveis de compreensão, constitui um elemento
ideológico de extrema importância para as lutas sociais que se desenrolam
contemporaneamente.
O debate sobre este tema está, portanto, longe de se construir em uma direção unívoca.
Muito pelo contrário, ele envolve amplas e contraditórias ponderações, que lhe dão um caráter
mais dinâmico e nos permitem compreender com mais precisão as determinações históricas
que o compõem. O que pretendemos neste capítulo é, desta forma, apresentar os principais
elementos deste debate, conduzindo-os para problematizar nosso objeto mais específico, qual
seja, a contemporaneidade da categoria nacional-popular envolvida pelo cenário da
globalização.
Antes, porém, de entrarmos mais diretamente nestas discussões, vale realizarmos
algumas observações preliminares sobre a temática que nos desafia. Não restam dúvidas de
que a cultura representa, no cenário contemporâneo, um elemento de extrema significação
para as lutas e os embates que hoje se desenvolvem.
CANCLINI (2003) observa que a cultura constitui a esfera que, na constituição do ser
social, lhe permite um duplo e essencial movimento. Em primeiro lugar, como esfera do
conhecimento, a cultura se apresenta como um espaço privilegiado para se “entender o real”
com alguma objetividade, traçando uma contextualização mais ampla da realidade e dos
elementos que a compõem. Em outras palavras, é através da cultura que podemos conhecer e
problematizar o processo de globalização em curso. No entanto, a importância da cultura não
se limita a esta capacidade. Ela é, também, esfera de transformação, ou seja, de uma
155

insatisfação, gerada pelo conhecimento, com o quadro que se constrói, despertando o interesse
pela inovação e pela mudança. Num contexto de “mundo globalizado”, a cultura permanece
com uma capacidade de estranhamento e, portanto, de reflexão crítica, que expressa e traz à
tona o que este cenário tem de fratura e de segregação.
Daí advêm as dificuldades e os embates que envolvem esta esfera da cultura no
cenário da globalização. Por inúmeras razões, que iremos abordar ao longo deste capítulo, é
difícil hoje tanto conhecer quanto transformar:

Para saber o que se pode conhecer e administrar, ou o que tem sentido


modificar e criar, cientistas e artistas têm de negociar não só com mecenas,
políticos ou instituições, mas também com um poder disseminado que se
oculta sob o nome de globalização. Costuma-se dizer que a globalização atua
por meio de estruturas institucionais, organismos de toda escala e mercados
de bens materiais e simbólicos mais difíceis de identificar e controlar que no
tempo em que as economias, as comunicações e as artes operavam sempre
dentro de um horizonte nacional. Hoje, Davi não sabe onde está Golias.
(CANCLINI, 2003, p. 9).

Criar uma “cultura da globalização” ou, por outro lado, uma “cultura global” se
apresentou, desde o princípio, portanto, como uma necessidade para o capital mundializado.
Esta esfera representava a possibilidade de imprimir, ideologicamente, uma orientação
dominante ao que os diversos grupos e classes sociais poderiam imaginar, defender e esperar
da “globalização” em curso. Assim, “muitos globalizadores vão pelo mundo simulando a
globalização” (IBIDEM, p. 11) e buscando redirecionar, sob uma ótica dominante, os
conflitos culturais advindos da desigualdade de acesso à “economia global”. Daí se
compreende elementos como o avanço e a aceleração dos intercâmbios midiáticos, o
incremento e o desenvolvimento incontrolável da indústria cultural, agora com padrões
transnacionais de competência, o vazio político e informativo dos meios de comunicação de
massas e o acirramento da dependência cultural, como demonstram os dados abaixo:

A concentração nos Estados Unidos, Europa e Japão da pesquisa científica e


das inovações em informação e entretenimento aumenta a distância entre o
Primeiro Mundo e a produção raquítica e desatualizada das nações
periféricas. Mesmo em relação à Europa, tem-se agravado a desvantagem da
América Latina, como se verifica em relação ao desenvolvimento
demográfico: nosso continente é responsável por 0,8% das exportações
mundiais de bens culturais, tendo 9% da população do planeta, ao passo que
a União Européia, com 7% da população mundial, exporta 37,5% e importa
43,6% de todos os bens culturais comercializados. (CANCLINI, 2003, p.
22).
156

Este processo não se constrói, no entanto, em uma única direção. Sendo a globalização
um processo diversificado e desigual, como já tivemos a oportunidade de demonstrar, a
existência de uma possível “cultura global” também encontra fortes e importantes
resistências. Esta esfera, sobretudo no que se refere a valores simbólicos e significações, traz à
tona o que a globalização tem de utopia e o que ela, sendo desenvolvida sob o jugo do capital,
não tem capacidade de integrar.
O exemplo concreto da União Européia ilustra com clareza estas afirmações. Apesar
do grande número de programas educativos e culturais que abrangem os países membros e
que buscam criar uma identidade simbólica “européia”, os diferentes governos ainda não
conseguiram trabalhar de forma satisfatória com a heterogeneidade, as diferenças e os
conflitos que parecem irredutíveis a esta identidade homogênea.
A cultura deixa claro, portanto, que persiste uma fração de dimensões significativas
entre a globalização que os mercados e os governos entendem e divulgam e aquela que os
cidadãos vivenciam em seu cotidiano. As diferenças culturais não se dissolvem com meros
acordos econômicos de integração, sobretudo quando estes reafirmam e aprofundam um
quadro de tantas disparidades sociais e econômicas. Muito pelo contrário, estas diferenças
culturais não só se afirmam, como também colocam em cena críticas e interesses que se unem
àqueles de ordem política, econômica ou social no momento de construção de esferas públicas
supranacionais.
Assim, por caminhos e motivos bastante diferenciados, a cultura não se manteve alheia
ao processo de globalização em curso, servindo, muitas vezes, como elemento de reorientação
e de reordenamento das forças hegemônicas neste processo.

Um dos principais obstáculos para que os cidadãos acreditem nos projetos de


integração supranacional são os efeitos negativos dessas transformações nas
sociedades nacionais e locais. É difícil obter consenso popular para
mudanças nas relações de produção, comércio e consumo que tendem a
depreciar os vínculos das pessoas com seu território nativo, a suprimir postos
de trabalho e a achatar os preços dos produtos locais. O imaginário de um
futuro econômico próspero eventualmente suscitado pelos processos de
globalização e integração regional é muito frágil se não se leva em conta a
unidade ou diversidade de línguas, comportamentos e bens culturais que dão
sentido à continuidade das relações sociais. (CANCLINI, 2003, p. 24)

Partindo desta compreensão mais dinâmica acerca da dimensão cultural dos processos
de globalização hoje em curso, podemos identificar diferentes posições acerca deste debate.
Tentamos organizá-las em dois grandes blocos, a partir da compreensão mais ampla ou mais
157

restrita do que podemos chamar de “globalização da cultura”. Vale observarmos cada uma
destas abordagens.

3.1 – A abordagem hegemônica da cultura na globalização: a homogeneização


de padrões e referências culturais
Uma primeira perspectiva acerca dos determinantes culturais do processo de
globalização em curso trabalha com a idéia de que o contexto contemporâneo e os “avanços”
percebidos nos mais diferentes campos do universo cultural têm construído a possibilidade de
a uma crescente homogeneização dos elementos culturais dos diversos grupos e classes
sociais, nas mais diversificadas realidades nacionais. A orientação-chave desta perspectiva é
aquela emergência de uma “sociedade global”, da qual tratamos anteriormente, resultante de
processos globais que ultrapassam as vivências nacionais e locais de grupos e classes sociais e
que as superam em termos qualitativos. Independentemente de suas vontades, os homens se
tornaram “cidadãos do mundo”, a perspectiva global penetrou o cotidiano de todos e
reorientou a organização cultural das sociedades atuais, as quais se encontram, agora,
perpassadas por uma “vivência mundializada”. Afirma ORTIZ (1994, p. 8)

Marlboro, Euro Disney, fast-food, Hollywood, chocolates, aviões,


computadores, são os traços evidentes de sua presença envolvente. Eles
invadem nossas vidas, nos constrangem, ou nos libertam, e fazem parte da
mobília de nosso dia-a-dia. O planeta, que no início se anunciava tão
longínquo, se encarna assim em nossa existência, modificando nossos
hábitos, nossos comportamentos, nossos valores.

Segundo esta perspectiva, o “mundo” se apresenta agora como uma nova categoria
analítica, com uma nova dimensão. Ele não representa mais apenas a “soma de realidades
nacionais”, onde cada uma delas tinha sua autonomia e independência, embora estivessem
interligadas por um amplo leque de relações. Ele se apresenta como um “sistema mundo”, um
elemento constitutivo de vivência e de reflexão que impõe novos desafios teóricos e práticos.
No que tange ao universo cultural, esta nova categoria traria elementos significativos
de reorientação. As novas relações econômicas e sociais nas quais estamos inseridos, agora
em uma escala global, materializariam a possibilidade de emergência de uma “cultura global”
ou de uma “globalização da cultura”. Em outras palavras, o homem, enquanto “cidadão do
mundo” teria, pela primeira vez na história da humanidade, a oportunidade de construir
valores, hábitos, representações, costumes, reflexões, críticas e questionamentos que seriam
oriundos de sua inserção não em um espaço local ou nacional, mas de uma suposta integração
158

cada vez maior da “sociedade global”. No interior desta discussão, esta perspectiva
aponta para um conjunto de transformações societárias que estariam criando, para a
humanidade em geral, o que poderíamos chamar de “referências culturais globais”. É
importante observarmos minimamente o debate acerca destas transformações no universo
cultural.
A própria idéia de globalização já aponta para reorientações e novas determinações no
que se refere às noções de espaço e de tempo, agora materialmente menores. Por diferentes
caminhos, ouvimos as posições que reconhecem um processo de “compressão-aceleração do
mundo”, onde o conjunto das novas tecnologias disponíveis incide diretamente sobre estas
noções, criando a expectativa da integração e da sincronia. As pessoas estariam, então, mais
próximas, convivendo em um mundo que, em termo simbólicos, estaria cada vez menor e
mais parecido, o que facilitaria os contatos, a mobilidade das fronteiras e a diluição da
oposição entre o autóctone e o estrangeiro.
A desterritorialização da produção, bem como o maior fluxo de mercadorias e de
pessoas, estabelece uma aparente dinâmica onde o espaço se esvazia de seus conteúdos
particulares, os lugares se globalizam e constroem um universo habitado por referências
compartilhadas: corporações transnacionais, produtos mundializados, marcas facilmente
identificáveis. Neste processo em que cada local é capaz de revelar o mundo, o mercado
parece ser o elemento homogeneizador, capitalizando determinados signos e padrões de
consumo mundialmente reconhecidos e aceitos.
Esta experiência de coabitar um mundo mais parecido traria para os homens, pela
primeira vez, a possibilidade de compartilhar também de uma mesma cultura, desta vez,
mundializada. ORTIZ é um dos autores que acredita nesta possibilidade e afirma, inclusive,
que o mais importante, para esta cultura, é a sua especificidade, é a sua capacidade de fundar
uma nova maneira de “estar no mundo”, a partir de novos valores e de novas legitimações.
Não só os objetos, mas também as referências culturais devem se desenraizar, tornando-se
mundialmente inteligíveis.

O processo de mundialização é um fenômeno social total que permeia o


conjunto das manifestações culturais. Para existir, ele deve se localizar,
enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens, sem o que seria uma
expressão abstrata das relações sociais. Com a emergência de uma sociedade
globalizada, a totalidade cultural remodela, portanto, sem a necessidade de
raciocinarmos em termos sistêmicos, a “situação” na qual se encontravam as
múltiplas particularidades. (ORTIZ, 1994, p. 30-31).
159

No conjunto destas transformações contemporâneas, vale destacar o


redimensionamento conquistado pelos meios de comunicação de massa. Surgidos já em um
período de desenvolvimento capitalista avançado, estes meios ganharam, a partir do final do
século XX, um perfil muito mais dinâmico, realizando um exercício de articulação das
informações e dos bens culturais a serem transmitidos ao público em um ritmo
verdadeiramente “globalizado”. Assim, estes meios conseguem fortalecer sua capacidade de
processar as mais diferentes dimensões da vida humana, desde a informação até o lazer, e se
transformam em um veículo privilegiado para difundir, no mundo todo, “referências globais”
com as quais as pessoas passaram a se relacionar em seu cotidiano. Este poder dos meios de
comunicação de massas será utilizado ao extremo pelos grandes grupos econômicos em todo
o mundo, seja através da publicidade, divulgando e criando as “necessidades” dos produtos do
mercado global, seja através da manipulação das informações que preparam o cenário
político-ideológico para o avanço desta mundialização do capital.
A expansão e o fortalecimento dos meios de comunicação de massas no cenário
globalizado apresentam importantes questões desafiadoras para esta perspectiva de
compreensão do processo de globalização em curso. Paralelamente ao reconhecimento de que
o mundo se tornou “mais próximo” pelo incremento destes meios de comunicação e pela
ampla difusão da informação, constrói-se a crítica de que a mídia, ainda que aparentemente se
coloque como o espaço democrático onde todos são, ao mesmo tempo, produtores e
receptores de informação37, está cada vez mais convertida em agente de difusão de discursos
específicos, legitimadores da falsa consciência de um “mundo sem fronteiras”.
Graças ao dinamismo deste campo da informação, os meios tecnológicos permitem
divulgar e legitimar signos sociais que se colocam como “mundialmente reconhecidos”, sem
uma procedência territorial nitidamente identificada. Assim, fortalecem-se como
propagadores de um modo de existência e de pensamento que acaba por deslegitimar qualquer
formulação que possa contestar suas premissas, sobretudo no que se refere a alternativas de
esquerda. Seriam, portanto, os elementos que verdadeiramente favoreceriam uma vida
desterritorializada, tendo a capacidade de congregar simbolicamente partes de uma totalidade
que está em expansão e em redefinição. O que antes seria papel, por exemplo, dos projetos
societários de diferentes classes sociais, ou de organizações que tivessem por desafio
internacionalizar lutas e expectativas, estaria agora sendo facilmente desenvolvido por estes
meios de comunicação e de produção de informações materializados pelo novo modo de

36
A Internet, por exemplo, é apontada contemporaneamente como espaço constante de
democratização e de livre acesso a informações, propostas e descobertas científicas.
160

acumulação capitalista. O mercado surge, nestes meios, como o grande regulador das
demandas coletivas, inserindo mudanças cada vez mais rígidas no cotidiano da vida social, as
quais se manifestam também nos processos de sociabilidade e de trabalho.
O debate que então se coloca visa a questionar até que ponto esta comunicação
tecnológica estaria se convertendo em agente privilegiado na formação e na fixação de
identidades culturais que desprezam ou dispensam os horizontes historicamente reconhecidos
do local e do nacional. Em outras palavras, até que ponto as informações de abrangência
ilimitada como as que são hoje produzidas poderiam redimensionar culturalmente os povos de
diferentes espaços territoriais, a partir do momento em que tornam próximos e presentes
diferentes acontecimentos.
Algumas características destes meios de comunicação e das informações por eles
produzidas se colocam como elementos norteadores para uma avaliação das questões
anteriormente colocadas. Em primeiro lugar, pesa a sua temporalidade. O mercado precisa
constantemente de inovações tecnológicas que renovem e garantam a chegada de novas
informações e de novos padrões de divulgação desta. A fugacidade e a efemeridade que as
particularizam tornaram-se constantes desafiadores e, ao mesmo tempo, impulsionadores da
expansão capitalista nesta área. Dados apresentados por MORAES (1997) sobre a década de
90 demonstram, comparados aos atuais, a magnífica capacidade de expansão desta fatia do
mercado e, principalmente, sua vinculação ideológica cada vez mais bem definida.
Esta inovação constante traz, para o universo da informação e da comunicação, o traço
também da diferenciação. Com vistas a negar quaisquer estratégias que recuperem o
consumidor indiferenciado e perdido na massa, característico do mmomento fordista de
produção, o modelo atual prima pela atenção cada vez mais específica, buscando chegar a
padrões extremos de comportamento e de preferências. Uma rede mundializada de
informações sobre vendas permite analisar os diferentes comportamentos dos mercados,
permitindo inclusive concluir quais produtos devem ser retirados de circulação ou
modificados, definindo, portanto, o desenvolvimento de novos produtos. Para cada segmento
do mercado consumidor, um produto, uma mídia e uma informação adequados, reconstruindo,
em outros parâmetros, a fragmentação e a diversidade culturais. É preciso, desde já, criticar
esta perspectiva de diferenciação, partindo da certeza de que o fato de estar materialmente
diversificado não significa, necessariamente, que esta parcela do mercado garanta a
diversidade e o pluralismo em torno das questões culturais, uma vez que estas se encontram
igualmente concebidas e desenvolvidas nos limites do sistema do capital. O mercado se
161

diversifica para, em última instância, continuar homogêneo na dimensão da mercadoria e da


indústria cultural.
Em consonância com esta diferenciação, surge com força, no momento
contemporâneo, o timbre da interatividade. Esta vem também ideologicamente carregada da
possibilidade de atenção a públicos segmentados, que podem, através destes amplos e
diferenciados “espaços de participação”, opinar livremente e impulsionar trocas com base em
interesses compartilhados. Assim sendo, a interatividade cria a expectativa e a possibilidade
de formação de novos hábitos de consumo cultural e de novos processos de significação, onde
participar, agora, se tornou um ato tecnologicamente facilitado e acessível a qualquer cidadão,
desde que compartilhe das inovações disponibilizadas pelo mercado capitalista. A tecnologia
com a qual convivemos hoje teria, portanto, a potencialidade de, através principalmente das
redes de computadores, viabilizar uma “presença cidadã autônoma”, desvinculada de uma
institucionalidade pública que, na crítica de vários sujeitos coletivos, estaria comprometida
pelos elementos da corrupção, do comprometimento ideológico e da inépcia política. As TVs
pagas, onde cada um escolhe a programação que quer assistir, as comunidades virtuais na
Internet, as múltiplas pesquisas de opinião das quais podemos participar ao mesmo tempo,
tudo isso estrutura, portanto, importantes conjuntos de afinidades e de aspirações, dos quais
participam múltiplos “sujeitos” receptores, advindos de coletividades desterritorializadas.
Esta interatividade, em casos extremos, tende a subtrair verdadeiras fontes de
informação que favoreçam a opinião pública e a participação nos processos decisórios. O
risco de uma aparente e absoluta uniformidade na produção do consentimento cresce e se
coloca em confronto com a intransparência das contradições sociais existentes e a própria
importância da democratização do poder político institucional.
A diferenciação e a interatividade do momento atual convivem, contraditoriamente,
com a necessidade de generalização e de uniformização de produtos, instrumentos,
informações e meios à disposição das parcelas da população mundial que se inter-relacionam
e “se desvendam”. O acelerado fluxo de pessoas no contexto mundial38 cria a necessidade de
que o mercado desenvolva o sentido de “pertencimento”, disponibilizando “produtos
mundiais”, que atendam, em lugares indiscriminadamente distantes, a diferentes estilos de
vida e padrões de consumo. Num mundo em que a indústria de turismo e de viagens responde
por 10,9% do PIB global e emprega 10% da população economicamente ativa mundial (dados

38
DREIFUSS (1997) menciona que, em 1996, apenas o tráfego aéreo respondia pelo deslocamento
de 1,3 bilhão de passageiros por ano, sem contar os “viajantes virtuais”, 2 bilhões de pessoas que,
através das redes informáticas de consumo, buscavam este duplo movimento de uniformização e de
diversidade de produtos.
162

apresentados por MORAES, 1997, tendo como referência o ano de 1996), o elemento de uma
“identidade planetária” também precisa ser garantido pelo mercado.
Diferentes debates se travam em torno destas características. MUNIZ SODRÉ (1997),
juntamente com outros tantos autores, se preocupa em destacar que estas tecnologias da
informação criam, portanto, a ideologia de uma comunicação universal, a ser medida e
avaliada pelos elementos da velocidade, da probabilidade e da instabilidade. Os meios de
comunicação, nesta compreensão, desempenham papéis estratégicos ao possibilitarem uma
naturalização ideológica da economia neoliberal de mercado, da qual a sociedade humana
aparece apenas como um acessório. As diferentes configurações societárias, compartilhando
do mesmo tempo e do mesmo espaço, devem agora trabalhar para se desenvolver e para
evoluir rumo a uma perfeita integração ao desenvolvimento mundial, modelo único e
inquestionável da sociedade de mercado.
Tais meios de comunicação e de produção de informações contribuem para a forte
operação ideológica que busca reforçar o sentido universalista da globalização. Tal sentido se
constrói, na verdade, como abstrato e superficial, uma vez que o que assistimos é a
“universalização do particular”. Como já tivemos a oportunidade de observar, o controle do
processo de globalização se restringe a poucos países e tende a excluir, das instâncias de
deliberação e de decisão, a maior parte da população mundial. A força com que se desenvolve
a multimídia39 contribui, então, para a produção retórica de um real compatível com a lógica
do mercado e com a ideologia da globalização.
Diante deste cenário e das discussões que o interpenetram, um duplo desafio se coloca
para os diferentes padrões de cidadania e de políticas públicas de gestão das comunicações.
Em primeiro lugar, a técnica, ou o universo material destes meios de comunicação, uma vez
que o desenvolvimento tecnológico continua restrito a poucas corporações econômicas, que
ditam padrões de consumo destas tecnologias e monopolizam sua produção, dando início ao
que poderíamos caracterizar como um novo processo de colonialismo, agora garantido pelos
meios de comunicação e de produção de informações. Além disso, desafia-nos também a
questão dos conteúdos veiculados, os quais, num momento em que se põe em xeque a relação
cultura/ nacionalidade, encontram-se ligados a uma nova “armadilha teórica”, qual seja a de
uma globalização informativo-cultural que não se mostra desvinculada de fortes interesses de

39
RAMOS (1997) afirma que a multimídia representa a convergência de três elementos principais, a
saber: as telecomunicações (infra-estrutura e serviços básicos), os meios de comunicação de massa
e a informática. Neste sentido, podemos afirmar que estes veículos se caracterizam, no cenário
neoliberal, pelos processos de privatização, de concentração de capital e de centralização ideológica,
agora em um cenário mundial.
163

classe. Acreditamos que, nos dias atuais, o debate sobre a democratização da cultura não pode
se furtar a responder a este duplo desafio, que BRASIL (1997) define como “saber quem
decide e realiza a enunciação de valor univocal”.
Nas palavras de GALEANO (apud BRASIL, 1997, p. 248-249)

Nunca tantos foram tão comunicados por tão poucos. Cada vez são mais os
que têm o direito de escutar e de olhar, mas cada vez são menos os que têm o
privilégio de informar, opinar e criar. A ditadura da palavra única e da
imagem única está impondo um modo de vida que tem por cidadão exemplar
o consumidor dócil e o espectador passivo, que se fabricam em série, escala
planetária, segundo o modelo norte-americano da televisão comercial.

Parece-nos, portanto, que, a exemplo do que propõe SCHILLER (apud MORAES,


1997), a idéia de um “imperialismo cultural” ainda é válida nos dias de hoje, sobretudo no que
diz respeito aos meios de comunicação e de produção de informações. Inseridos na dinâmica
da política internacional contemporânea, teriam a dupla função de consolidar e garantir o
sistema capitalista empresarial das multinacionais e de intensificar a dependência cultural pela
consolidação, a nível subalterno, de sistemas de decodificação, definindo a multimídia como
um campo privilegiado para a valorização do capital mundializado. Reafirma-se, nos dias
atuais, a concentração da produção de informações nas regiões do mundo industrializado40 e a
subalternidade, por parte dos países periféricos, para os quais a transferência destas
informações é condição vital para que possam se integrar no ciclo internacional da produção e
do desenvolvimento econômico.
DANTAS (1996) chama a atenção, neste cenário acima descrito, para um momento de
privatização da informação, que reduz, ou até mesmo elimina, seu caráter social, redefinindo
as redes informacionais como instrumentos de dominação e de exclusão no contexto
internacional. A renovação constante nestes meios técnicos de comunicações e de produção
de informação aponta para novas frentes de acumulação do capital, servindo à ampla
articulação da produção social geral.
Soma-se a esta capitalização crescente do setor a ausência, quase absoluta, das
possibilidades de intervenção democrática no processo de desenvolvimento e de consolidação
destes meios multimídia, Como nas mais variadas frentes de desenvolvimento capitalista,
também no que se refere aos meios de comunicação, percebemos aquela clara distinção entre
os que discutem e produzem cultura e aqueles que a consomem, sendo que estes últimos

40
BRASIL (1997) contribui para este debate com dados sobre os índices de concentração dos meios
audiovisuais: 90% na Irlanda; 75% no Reino Unido; 65% na Itália e 50% na Bélgica, Dinamarca e
Holanda, no ano de 1996.
164

pouco ou nada sabem acerca do funcionamento das comunicações. Nas palavras de DANTAS
(1996, p. 15)

Uma vez que a grande maioria das lideranças, quadros e militantes


comprometidos com os movimentos sociais ignora ou não se dá conta dos
problemas sociais (políticos, econômicos, culturais) envolvidos e articulados
nas comunicações, somos cada vez mais moldados, mesmo sem o sentir ou
saber, pelos arranjos capitalistas dos sistemas de informação. Estes nos
parecem naturais e espontâneos, e não o resultado de construções sociais e
históricas concretas. Assim, nos são apresentados pelos discursos
economicistas e tecnicistas, traduzidos para o senso comum pelo fait-divers
jornalístico.

O que demarcaria o momento contemporâneo de expansão deste setor teria suas raízes
em um movimento iniciado na passagem do século XIX para o século XX, justamente
quando, através dos recursos garantidos pelo capital financeiro, teriam surgido indústrias
tipicamente produtoras de tecnologias de informação, a qual, a partir daí, se tornou o objeto
imediato de trabalho da maioria dos indivíduos. A informação se transforma, a cada dia, em
um elemento necessário para que o capital possa se desenvolver e a importância das diferentes
formas de trabalho humano nesta sociedade se mede a partir da quantidade e da qualidade da
informação com a qual se desenvolve. A principal atividade das pessoas, no universo do
mundo do trabalho, é tornar disponíveis diferentes dados, e o valor da informação, neste
processo, é o de poupar tempo de trabalho, o que interfere diretamente nos processos de
produção de mais-valia nas sociedades capitalistas contemporâneas.
A partir de então, a produção cultural, neste sentido, torna-se indistinguível da
produção material, no que se refere aos processos de trabalho e à necessidade que apresentam
para o desenvolvimento da sociedade. Tal produção passa a ser integrada à produção material
capitalista geral através de dois caminhos: como meio de acumulação direta, através da venda
de equipamentos e de difusão de tecnologia, e indireta, formando e redefinindo hábitos de
consumo para a expansão de mercados cada vez mais amplos e diversificados.
Questões objetivas, assim como decisões políticas e empresariais, acabam criando um
sistema de monopólios também nesta área, onde a indústria que produzia equipamentos para
registrar e comunicar informação torna-se, a partir do final do século XX, produtora da
própria informação a ser registrada e comunicada. No âmbito exclusivo do capital, percebe-se
a constante tendência à cooperação, no sentido de que há um intercâmbio de soluções e de
produtos que estejam sendo desenvolvidos pelas corporações transnacionais, através de
alianças cada vez mais estreitas e economicamente fortes. Nos países de capitalismo central,
165

detentores destes monopólios, isto acontece sem uma maior intervenção política de cunho
público por parte de outros atores, e, por outro lado, nos países periféricos, não houve
qualquer incentivo para o desenvolvimento de sistemas próprios e autônomos de produção de
informação ou de tecnologias para este setor, sendo que esta ficou, desde o século passado,
sob o controle de empresas estrangeiras, especializadas nas comunicações internacionais. Os
grandes blocos tendem a segmentar e fragmentar a geração e a comunicação das informações
estratégicas para o conjunto da sociedade, as quais podemos chamar de “informação-valor”.
Tais blocos se especializam no atendimento a esta ou aquela região, disponibilizando a
tecnologia específica. Um mundo redividido em novos grupos de poder econômico significa
também um novo mundo informacional, o qual redefine relações políticas, sociais e,
principalmente, culturais.
Verifica-se uma enorme disparidade na distribuição mundial destes recursos
informacionais, o que torna os países periféricos despreparados para as mudanças neste
campo e transforma a articulação da informação no mundo todo em um movimento de mão
única, dos países centrais para os países periféricos, onde estes últimos importam não só os
conjuntos técnicos, mas também os conteúdos culturais neles embutidos. Podemos inclusive
configurar este processo como uma “expropriação simbólica de outras culturas”, que acabam
substituídas por padrões de racionalidade, representação, identidade, premiações e punições
próprios dos países de capitalismo central. Cópias perfeitas de programas e de padrões de
produção cultural são trazidos de forma avassaladora para a realidade dos países periféricos,
sendo apresentados como “modas culturais” que devem ser mundialmente reconhecidas. Mais
uma vez está colocada a perspectiva de uma homogeneização da cultura, com todo o mundo
compartilhando, pela intervenção da “mão nada invisível do mercado” de um mesmo padrão
cultural
Portanto, o que se forma a partir daí é o que poderíamos chamar de um sistema de
informações globalizado, nas mãos de grupos cada vez mais concentrados e centralizados,
consolidando, através de suas ações em escala mundial os laços de dependência política e
cultural já amplamente desenvolvidos. Emerge, neste momento, o problema da
“subinformação” de regiões inteiras do globo terrestre, assim descritas:

Sociedades que não desenvolvem tecnologias de informação tendem não só


a ser subinformadas em relação aos países capitalistas centrais, como
também a erigir, dentro de suas fronteiras, divisões ainda mais fundas entre
suas minorias ricas-informadas e suas maiorias pobres-desinformadas.
Aquelas minorias buscarão um modo de ingressar na “sociedade da
informação” global, ainda que vestindo grotescas fantasias de “primeiro
166

mundo”. Quanto às maiorias, não lhes restará muito mais do que uma
violenta exclusão social. Subinformação: eis o novo nome para o
subdesenvolvimento nesta nova etapa histórica da evolução capitalista.
(DANTAS, 1996, p. 95)

Segundo este autor, as “agências de notícias”, principalmente no padrão de


desregulamentação norte-americano, que se expandiram por todo o mundo a partir do final do
século XX, internacionalizaram um tipo específico de jornalismo e veiculação de informações
que “dá importância ao imediato, ao extraordinário, ao sensacional, ao superficial, ao bizarro,
ignorando as articulações dos fatos, os processos sociais, as diferenças culturais e históricas
entre os povos” (1996, p. 42). Em outras palavras, construíram uma única imagem do mundo,
a qual os diferentes países deveriam aspirar no sentido de parecerem “desenvolvidos”.
O final do século XX foi palco de uma terceira revolução tecnológica nas
comunicações, que ofereceu ao capital novos meios para processar e transmitir informação,
tornando cada vez mais rápido, eficiente e barato o transporte dos dados necessários e
interessantes ao desenvolvimento do capital. Tanto nos países de capitalismo central quanto
nos países periféricos, o que se percebeu foi que, neste ramo, o Estado continuou com sua
antiga função de “gerente dos interesses do capital”, uma vez que incentivou a expansão
privada do setor, fomentou o processo a partir da destinação de recursos públicos e utilizou
destas informações para o encaminhamento dos interesses políticos, militares e econômicos
do cenário internacional. Reproduziram-se, neste setor, as relações de dominação e de
segregação social já características do desenvolvimento histórico capitalista, pois este
desenvolvimento tecnológico e esta oferta de sistemas cada vez mais inovadores
concentraram-se no atendimento às corporações e usuários de alta renda, em detrimento do
conjunto da população e dos interesses públicos sobre elas. Como elemento adicional, este
setor se fortalece cada vez mais como uma fatia do setor produtivo que não pode conviver
com legislações e práticas regulatórias mais rígidas, dada sua dinamicidade e, muitas vezes,
sua necessidade de intervenções sigilosas.
Mais uma vez, no que se refere ao universo da cultura, vemos prevalecer o movimento
que incorpora o indivíduo à imagem alienada e reducionista do “consumidor”. No que se
refere ao acesso, à configuração, à produção e à utilização da mega-informação produzida em
nossa sociedade, não tem lugar, ou ocupam um lugar profundamente reduzido, o indivíduo-
cidadão, seus espaços societários de organização e mobilização, bem como a multidão
massificada pelos diferentes processos de constituição social. Tem continuidade, no momento
atual de evolução do sistema capitalista, um padrão de comunicação e de cultura que
167

prossegue determinado pelas exigências exclusivas (ou quase) da acumulação de capital, e


não do atendimento das carências ou direitos maiores do conjunto da sociedade.
Com este conjunto de alterações tecnológicas empreendidas nos meios de
comunicação de massa e de produção de informações, vivemos, portanto, uma verdadeira
"violência da informação" (SANTOS, 2000). Temos acesso, a cada instante, a um grande
volume de informações, que nos chega cada vez mais rapidamente e que nos traz dados de
pessoas, grupos e sociedades que julgávamos absolutamente distantes de nós. É neste sentido
que se afirma que os espaços que antes separavam as pessoas se comprimiram, pois o
"mundo" se faz cada vez mais presente em nosso cotidiano através das informações às quais
temos ou não acesso. Em um número cada vez maior, com dados cada vez mais recentes e
inéditos para a maioria da população, com conteúdos anteriormente inimagináveis sobre os
avanços da humanidade e com um forte elemento político-ideológico, estas informações
acabam sendo realmente violentas, principalmente porque, conforme observamos, estão
marcadas por um crescente elemento de desigualdade em seu processo de apreensão: não há
tempo hábil ou oportunidades coletivas para refletir sobre todas elas, e elas acabam por,
indiscriminadamente e acriticamente, questionar as relações e as referências que, durante
tanto tempo, fizeram parte de nosso cotidiano “nacional”.
Outra discussão bastante relevante nesta compreensão da cultura no contexto de
“globalização do capital” diz respeito ao processo já devidamente analisado como o
crescimento e o redimensionamento da chamada “cultura de consumo”. Esta se refere,
primeiramente, ao avanço da acumulação, na sociedade capitalista, de uma cultura material na
forma de bens e locais que se destinam, prioritariamente, ao lazer e às atividades de consumo
nas sociedades contemporâneas. Tais mercadorias, inseridas desta vez em um movimento
mundializado de crescimento e de afirmação, são utilizadas e fortalecidas como elementos
capazes de criar vínculos e de estabelecer distinções sociais marcantes, criando bases
materiais para um imaginário cultural cada vez mais consumista. A lógica de que “somos
aquilo que podemos consumir” se fortalece e ganha dimensões significativas em nossas
sociedades, pois o fluxo constantemente renovado de mercadorias traria novas determinações
para compreendermos o problema da leitura do status ou da posição do portador das
mercadorias.
ADORNO & HORKHEIMER (1985) já apontavam, no início do século XX, para este
redimensionamento das atividades de lazer, arte e cultura neste contexto de capitalismo
avançado, onde a indústria cultural tem a potencialidade de filtrar aquilo que poderia compor
o elemento ideológico nesta sociedade. Uma orientação baseada no valor de troca seria a
168

tônica, com valores e propósitos que sucumbem à lógica do processo de produção e de


mercantilização. Para estes autores, numa perspectiva eminentemente negativa, o capitalismo
estaria dando início a um momento em que as diferenças essenciais, as tradições culturais e a
qualidade das manifestações culturais estariam sendo transformadas em elementos que
estariam se diferenciando apenas no aspecto quantitativo. Os estudiosos da Escola de
Frankfurt foram enfáticos ao afirmar que a indústria cultural produz uma homogeneidade que
acaba colocando em risco elementos de subjetividade e de criatividade nesta esfera. Para
Adorno, a perspectiva de uma “mercadoria livre” significa, no contexto da sociedade
capitalista, dizer que ela pode adquirir uma ampla variedade de associações e ilusões
culturais, as quais, entretanto, poderíamos complementar, não estão alheias aos processos de
dominação e hegemonia presentes em uma sociedade. O que se configura, então, é uma
aparente liberdade, que significa, na verdade, um forte aprisionamento ideológico para a
produção cultural a partir de então.
Se tomarmos estas considerações como ponto de partida para compreendermos a
contemporaneidade do debate sobre a “cultura de consumo”, poderemos observar que a
infinidade de signos, imagens e simulações que nos chegam por meio da mídia não aponta,
necessariamente, para ricos e essenciais elementos de pluralismo e de diversidade, mas sim
para uma diferenciação superficial com vistas a atender às especificidades de consumo. Na
verdade, estaríamos vivendo em uma sociedade sob forte ênfase cultural, mas de uma “cultura
sem profundidade”, condizente com uma vida social desregulada e relações sociais
extremamente variáveis, próprias do que ficou conhecido como a “lógica cultural do
capitalismo tardio” (JAMESON, 2002)
A indústria cultural se configura, no momento da globalização, como uma importante
elemento de transmissão dos possíveis vínculos existentes entre as diferentes sociedades hoje
contemporâneas. Portanto, na análise desta primeira perspectiva, ela poderia ser considerada
como o que mais contribui para sua homogeneização, a partir do momento em que possibilita
a formação de “públicos-mundo” (CANCLINI, 2003), com gostos e identidades culturais cada
vez mais semelhantes. Postula-se, assim, uma tendência dominante nas empresas deste setor:
globalizar a cultura na perspectiva de criação de uma “cultura global” através da partilha dos
mesmos produtos e bens culturais.
Argumenta-se que este movimento é facilitado pela possibilidade de desenraizamento
dos produtos culturais com relação ao patrimônio das nações. Em sua maioria, os bens e
mensagens editoriais, audiovisuais e informáticos são produzidos em formatos
industrializados, fabricados por empresas que, de âmbito transnacional, fazem circular seus
169

produtos por canais controlados pelo grande capital. Aqui também se afirma o “imperialismo
coletivo”, uma vez que estas empresas estão concentradas nos Estados Unidos, na União
Européia e no Japão, com produções marcadamente transnacionalizadas. Esta ação
oligopolista reconfigura a comunicação social, a informação e o entretenimento, os quais se
encontram cada vez mais distribuídos de maneira desigual.
Assim afirma CANCLINI (2003, p. 135)

As grandes massas esbarram em limitações na sua incorporação à cultura


globalizada, pois somente têm acesso à informação e ao entretenimento
veiculados no rádio e na televisão aberta. Enquanto as classes alta e média, e
pequenos setores populares, têm acesso à televisão a cabo e certos circuitos
informáticos, restringindo-se às elites empresariais, universitárias e políticas,
o uso de computadores, fax, antenas parabólicas, em suma, os circuitos de
inovação e interatividade nas redes eletrônicas.

Estas questões recolocam, em outro patamar, as abordagens acerca das políticas


culturais, as quais hoje devem problematizar uma orientação de alcance mais nacional ou
mais globalizado. Infelizmente, não teremos a oportunidade de discutir, nos limites deste
trabalho, esta dimensão das políticas culturais e de sua importância no cenário apresentado
como de “globalização da cultura”. No entanto, gostaríamos de reforçar aqui a importância
deste debate, sobretudo no que se refere a países de capitalismo periférico como os da
América Latina.
Nos dias de hoje, dois processos parecem orientar, portanto, a produção e o consumo
cultural de uma forma mais geral. Em primeiro lugar, vemos uma reordenação dos mercados
sob uma lógica globalizadora, o que atinge, inclusive, os imaginários nacionais. Se antes, o
que tínhamos eram tendências artísticas com “sobrenome nacional” (como, por exemplo, nas
artes plásticas, o “barroco francês” ou o “pop americano”), delimitando uma “arte
estrangeira” que era usada como referência para se pensar o patrimônio cultural próprio, hoje
a escala de criação, difusão e recepção da arte se faz em um universo muito mais amplo, que
ultrapassa, sobremaneira, os limites da sociedade em que as obras são produzidas. Por conta
disso, o nacional ganhou um outro elemento de determinação, ou seja, a sua capacidade de
ultrapassar suas fronteiras naturais e de se tornar referência em outro universo cultural.
Além deste processo, percebemos também um avanço cada vez mais agressivo de
instituições e empresários globalizados que, no que se refere às produções artísticas em geral,
se apresentam como lideranças no cenário internacional, substituindo, muitas vezes, as
vanguardas artísticas que davam o tom de determinadas manifestações artísticas e intelectuais.
170

Hoje se instaura um sistema de concorrência transnacional, que controla o mercado mundial


de forma concentrada e que define padrões e estilos artísticos, voltados para atender diferentes
gostos e contornos culturais. No que diz respeito às artes plásticas, por exemplo, fortalecem-
se galerias com uma estrutura e uma organização multinacionais, com escritórios em vários
países, e que não expõem trabalhos de artistas com uma “baixa cotação” neste mercado. Isto
atinge, inclusive, países como a França e a Inglaterra, que antes apresentavam uma liderança
estética reconhecida e que hoje, segundo dados de CANCLINI (2003), não superam 15% das
operações públicas no mercado mundial.
Entretanto, este estreitamento não se torna evidente, uma vez que dispomos nos dias
contemporâneos de oportunidades antes nunca imaginadas no que se refere à circulação de
exposições, feiras, bienais que reduzem o caráter nacional das produções estéticas, mas, por
outro lado, abrem a possibilidade de conhecimento de obras do patrimônio artístico universal
que estavam anteriormente restritas a um público bastante reduzido. O que temos, então, é
uma aparente democratização do acesso à arte, uma vez que viabiliza-se através do mercado,
o contato com este patrimônio, ainda que de maneira imediata e sem que isso problematize as
relações de poder que o mercado consegue impor neste cenário. Neste contexto, as relações
transfronteiras tornam-se mais decisivas do que a representatividade nacional, e o lugar do
artista passa a ser definido não a partir de uma visão interna a cada cultura em particular, mas
no trânsito desta com outras culturas.
CANCLINI (2003) avalia, ainda, que as dificuldades de acesso a este mercado global
são mais evidentes quando se trata de produtos visuais que, por questões de várias ordens, não
conseguem transcender as culturas regionais. Em sua avaliação, existem excelentes artistas e
produtores culturais que, entretanto, não conseguem se envolver em exposições
metropolitanas, dada a rigorosa especificidade de sua produção, ligada, por exemplo, a
questões regionais mais específicas. Estas últimas são vistas como questões menores, menos
envolventes, que atingem um público mais restrito e que, portanto, não interessam o mercado
de uma forma mais ampla. Não está ausente, neste momento, um importante elemento de
dominação: as estéticas originárias das metrópoles, quando se interessam pela periferia, quase
sempre esperam uma marginalidade folclórica, um exótico sem possibilidade de maiores
abrangências.
O que se verifica, desde os anos 90, é que, também no que se refere ao campo artístico
mais especificamente, constrói-se um cenário de tensão entre estas tendências
homogeneizadoras e comerciais da globalização e, por outro lado, a valoração deste campo
como uma instância em que se conservam e mesmo se renovam importantes diferenças
171

simbólicas. Deste desencontro, temos assistido importantes movimentos de experimentação e


de inovação, mas que ainda não se constituíram como um movimento mais amplo de
questionamento dos processos de mercantilização e padronização que atingem os bens e as
mensagens culturais.
Neste sentido, poderíamos afirmar que nesta abordagem sobre a “globalização da
cultura”, o nacional, enquanto especificidade, parece ter perdido a capacidade de explicar os
fenômenos sociais. Assim, os elementos de uma possível “identidade nacional”, construída e
manifestada através da cultura, teriam perdido sua validade, uma vez que as nações e as
nacionalidades estão hoje atravessadas por questões e relações de poder produzidas em escala
mundial, cuja relação com um único e determinado território não seria mais possível. Desta
forma, as referências para a construção de uma identidade entre as pessoas e as sociedades
estariam localizadas não em um ou em outro território nacional específico, mas em elementos
globais, desterritorializados.
Destas afirmações, poderíamos avaliar que o que estaríamos assistindo seria, então,
uma aceleração dos fluxos de pessoas, mercadorias, capital e informações por todo o mundo,
permitindo, a priori, um maior intercâmbio e uma maior integração mundiais. No entanto, a
aproximação crítica com esta perspectiva nos conduz a pensar que estes elementos não
significam uma maior democratização da cultura, uma vez que as relações de dominação e de
dependência econômicas, acentuadas com o contexto de mundialização do capital, dariam a
estes fluxos, no que se refere ao universo cultural, um caráter unidirecional, ou seja, as
influências e referências culturais viriam dos países de capitalismo central e seriam absorvidas
pelos países periféricos através de mecanismos como os da indústria cultural em direção,
prioritariamente, à cultura de consumo.
Em outros termos, trabalha-se com a idéia de que é possível a extensão de uma
determinada cultura até o limite global. Assim, culturas heterogêneas tornar-se-iam
incorporadas e integradas a uma cultura dominante, através de um processo de conquista e
unificação do espaço global, onde diferentes povos e nações poderiam ser assimilados a uma
cultura comum. Esta desterritorialização representaria o desenraizamento territorial de
elementos que permitiam, em outro contexto histórico, pensar a possibilidade de uma cultura
nacional, única e coesa. Os grupos e as comunidades nacionais se encontrariam envolvidos
pelas “referências culturais globais”, ou seja, elementos que, nas artes, no pensamento
científico, nos espaços públicos, nos mais diferentes aspectos da vida social, permitiriam a
construção de valores ou de visões de mundo, mas que não estão mais vinculados,
necessariamente, a um ou outro território nacional. Evidentemente, estas referências globais
172

não são as únicas que existem nos dias atuais, mas, na análise sobre a desterritorialização, elas
ganham força e se divulgam com tamanha rapidez, que poderiam conquistar uma perspectiva
realmente hegemônica no cotidiano das mais diferentes realidades nacionais.
A citação abaixo exemplifica esta perspectiva:

O conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional não é suficiente para


esclarecer as configurações e os movimentos de uma realidade que já é
sempre internacional, multinacional, transnacional, mundial ou propriamente
global. É óbvio que a sociedade nacional continua a ter vigência (...). Mas a
sociedade nacional não dá conta, nem empírica nem metodologicamente,
nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual se inserem
indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e civilizações.
(IANNI, 1999, p. 239)

Entendemos que esta perspectiva não pode ser absorvida sem contestações. No que se
refere especificamente ao estudo das relações e das identidades culturais, constata-se que não
existe uma completa oposição entre local, nacional e global, uma vez que os dois primeiros,
se aparentemente perderam o status de espaço para a construção da cultura (argumento que
posteriormente, pretendemos desconstruir), ganharam a condição de locus onde o global se
realiza, ou seja, onde se manifestam as relações de identidade dos grupos com estas
referências globais. Neste encaminhamento, a idéia de globalização como homogeneização
poderia ser relativizada, uma vez que, ao se reterritorializar, ao ser absorvida em diferentes
locais e nações, esta globalização é também alterada pelas particularidades dos grupos. Desta
forma, longe de ser uma fatalidade, a globalização também está atravessada pelas lutas sociais
presentes na história e, portanto, marcada pelas contradições inerentes ao próprio sistema que
a criou. Assim, esta relação entre local, nacional e global na esfera cultural não é um processo
livre de hierarquias e distinções.
Entender estes vetores de dominação e, ao mesmo tempo, as possibilidades e as
formas de conflito que atravessam as sociedades neste contexto de sociedade global nos
parece um desafio marcante para as Ciências Sociais hoje. Parece-nos que este conhecimento
é a única possibilidade de afastar o risco de imaginarmos a globalização como algo harmônico
e incontrolável, ignorando, assim, o movimento de crítica e de questionamento,
principalmente dos setores populares. Este nos parece ser o ponto fraco desta perspectiva de
análise acerca da globalização, ou seja, a idéia de que os processos de integração,
homogeneização e unificação pretendidos pelo capital em seu momento mundializado não
seriam elementos de contestação e de resistência.
173

3.2 – Uma perspectiva alternativa da globalização da cultura – o “encontro


com o diferente”
Uma segunda abordagem sobre o processo de globalização contemporâneo parece
apontar, no que se refere à cultura, para uma conseqüência paradoxal: ao mesmo tempo em
que aponta para uma “possibilidade de homogeneidade”, também encaminharia um maior
contato com a diversidade que demarca esta esfera. Segundo esta perspectiva, a intensificação
dos fluxos de informação, conhecimento, capital, mercadorias, pessoas e imagens parece ter
reorientado o senso que, anteriormente, separava e “isolava” as pessoas.
SAID (1995) nos chama a atenção para o fato de que existiu sempre uma relação
intrínseca entre o imperialismo (europeu e, agora, norte-americano) e a cultura dos “povos
dominados”. Tal relação, sustentada pelo Ocidente metropolitano, resumia-se, a princípio, na
dicotomia “nós/ eles”, onde o “objetivo” ocidental seria de “levar a civilização a povos
bárbaros ou primitivos”, que tinham a necessidade de dominação, pois “o que „eles‟ melhor
entendiam era a força e a violência”.
O imperialismo europeu sustentava, assim, uma relação que era, sem dúvida, de
subordinação, expulsando as identidades “primitivas” da cultura e da própria idéia da Europa.
A modernidade ocidental postulava que as regiões colonizadas, em decorrência de seu
histórico atraso, sobretudo econômico e tecnológico, não possuíam vida, história ou cultura
dignas de menção ou de representação sem a referência ao Ocidente. Sob esta relação clara de
dominação imperialista, foram construídas e sustentadas, até a metade do século XX, imagens
unitárias, coerentes e ordenadas do que seria a modernidade, projetadas a partir dos centros
ocidentais.
Nas palavras de FEATHERSTONE (1997, p. 105)

Partia-se do pressuposto de que as estruturas do mundo natural e social


podiam ser desvendadas por meio da razão e da ciência. Estas últimas
detinham um conhecimento tecnologicamente útil que lhes permitira domar
a natureza, mas também levaria a uma tecnologia social paralela, destinada a
aperfeiçoar a vida social e a introduzir “a boa sociedade”. Juntamente com o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a expansão do capitalismo
industrial, a administração pública e o desenvolvimento dos direitos da
cidadania eram vistos como uma prova convincente da superioridade
fundamental e da aplicabilidade universal do projeto da modernidade.
Presumia-se que as nações ocidentais, as primeiras a desenvolver e aplicar
tal conhecimento, estavam muito adiante no processo de desenvolvimento
social e poderiam manter confiantemente sua liderança, na medida em que
povos de outras partes do mundo procuravam, com muito empenho, seguir e
colher os benefícios da modernização.
174

Na orientação imperialista clássica, entendia-se que a separação das sociedades no


espaço representava, também, uma separação fundamental no tempo. As sociedades
tradicionais passariam ao status de sociedades modernas através de um conjunto de processos
específicos de expansão do modo de produção capitalista que tomariam lugar nestas
sociedades: industrialização, urbanização, mercantilização, racionalização, diferenciação,
burocratização, expansão da divisão do trabalho, crescimento do individualismo e processos
de formação do Estado-nação.
O contexto do imperialismo sustentava, portanto, uma noção exclusiva e vigorosa de
identidade nacional enquanto elemento de interação, como parte de um processo de formação
dos Estados-nação, que se entregavam cada vez mais a uma configuração competitiva
acirrada. A emergência e a consolidação da consciência nacional constituiu, a partir deste
momento, o principal elemento de integração cultural incentivado pelo Estado moderno para a
sua constituição enquanto agente do desenvolvimento do sistema econômico capitalista.
O processo de pós-colonialismo e antiimperialismo teve, como uma das bases de sua
orientação, a constituição específica da esfera cultural, entendida como a possibilidade de se
expor e refletir sobre as lutas econômicas, políticas e ideológicas de uma sociedade. O contato
cada vez mais intenso entre europeus, norte americanos e os antigos povos colonizados trouxe
à tona uma série de questões culturais que gradativamente parecem alterar, segundo alguns
autores, o jogo de poder construído no cenário mundial. O pós-colonialismo teria sido, assim,
o período de emergência de novas narrativas, de vozes recém-assumidas que, pela primeira
vez, tinham a oportunidade de questionar e reinterpretar a história e a cultura do imperialismo,
buscando uma argumentação elaborada sem o peso da dominação. Nas palavras de SAID
(1995, p. 250)

Os ocidentais vieram a perceber que o que eles têm a dizer sobre a história e
as culturas dos povos “subordinados” é questionável para esses mesmos
povos, os quais, até poucos anos atrás, estavam simplesmente incorporados,
com cultura, terras, história e tudo, nos grandes impérios ocidentais e seus
discursos disciplinares.

Em outras palavras, o império ocidental, que sempre sustentou uma reflexão sobre o contato
cultural baseada na dominação e na apropriação pela força, passou por um processo em que se
criavam condições para que ele fosse minimamente enfrentado e questionado.

Pela primeira vez, os ocidentais foram compelidos a se encarar não


simplesmente como o governo colonial, mas como representantes de uma
175

cultura e mesmo de raças acusadas de crimes – crimes de violência, crimes


de eliminação, crimes de consciência. (IBIDEM: 250)

Para o mundo ocidental, sobretudo a Europa, a sensação de mudança de perspectiva na


relação Ocidente e não–Ocidente era inteiramente nova. A idéia de que o domínio europeu
havia proporcionado modernidade às colônias foi substituída pela ponderação oposta de que,
na verdade, o progresso e o bem estar da Europa foram construídos através de um violento
processo de dominação. Desta crítica à dominação ocidental, teve início o que poderíamos
denominar como uma emergente “cultura de resistência”, onde uma complexa relação de
integração e separação da cultura ocidental colocava para os povos, agora independentes, a
possibilidade de redescobrir e reafirmar o que fora culturalmente suprimido pelos processos
de dominação.
Segundo SAID (1995), a cultura pode favorecer, nestes casos, tanto a resistência
quanto o conformismo com a condição de dominado. Em sua opinião, construir uma cultura
de resistência requer compreendê-la como apenas um dos aspectos da vida social em toda a
sua complexidade. Em outras palavras, uma cultura de resistência só pode ocorrer quando,
dentre outros fatores, instala-se, também, internamente uma exaustão política e econômica
que questione o custo do domínio colonial e, em decorrência disso, as representações do
imperialismo comecem a perder justificação e legitimidade.
É neste sentido que se afirma que o esforço pela restauração da comunidade pré-
colonial e pela retomada da cultura não é um processo imediato. Ele permanece por muito
tempo após o estabelecimento político dos Estados-nação independentes, fazendo da
resistência e da descolonização um processo contínuo e permanente.

As narrativas de emancipação e esclarecimento em sua forma mais vigorosa


também foram narrativas de integração, não de separação, história de povos
que tinham sido excluídos do grupo principal, mas que agora estavam
lutando por um lugar dentro dele. (SAID, 1995, p. 29)

Nesta cultura de resistência, existiria a preocupação de se realizar um remapeamento do


território cultural, buscando reconstituir o passado da comunidade, resguardando-a contra as
pressões do sistema colonial. Uma “redescoberta cultural” apresentaria a necessidade de
encontrar uma base ideológica capaz de dar a sustentação e a unidade que aquelas
comunidades, em seu período de vivência colonial, jamais haviam experimentado.
É esta a investida de estudiosos e artistas não europeus, que, revendo e repensando o
terreno comum a europeus e colonizados, reconhecem a necessidade de uma autoconsciência
176

dos antigos povos colonizados, que tenham por princípio superar a consciência de um Outro
designado historicamente como inferior. As experiências do pós-colonialismo se mostram,
assim, reinterpretáveis e revivíveis, pois o “nativo” agora poderia falar e agir em seu próprio
território, reconstruindo as interpretações nativas sobre si mesmos, que não poderiam agora
ser apenas descartadas ou silenciadas. Tais povos buscam ver a vida de suas comunidades
como passíveis de desenvolvimento, como parte de um processo de trabalho, crescimento e
maturidade a que anteriormente apenas os europeus pareciam ter direito.
As perspectivas de análise desta “cultura de resistência” reconhecem que sua
construção não se faz, entretanto, sem profundas contradições. O imperialismo foi função
tanto da expansão dominante européia quanto de uma relativa “colaboração” por parte dos
povos colonizados que, em certa medida, viam nesta experiência a possibilidade de acesso a
um “mundo desenvolvido” que lhes parecia inalcançável por seus próprios esforços. Assim,
no momento de independência, não faltou, junto a estes povos, uma tendência a se “imitar” o
estilo europeu moderno, procurando se modernizar segundo aqueles padrões de progresso.
SAID (1995) nos fala, inclusive, de missões nativas enviadas a países do Ocidente com o
objetivo de “aprender” os usos e os hábitos do “homem desenvolvido”.
Uma das questões que exemplificam estas contradições no processo de resistência
cultural é a própria idéia de nacionalismo. Neste sentido, cresce junto a estas populações o
que poderíamos chamar de um “nacionalismo antiimperialista”. Este é um ponto altamente
polêmico no debate acerca do pós-colonialismo, pois, em muitos casos, este nacionalismo
significou apenas uma substituição de autoridades e de burocratas imperialistas por
equivalentes nativos, aumentando, assim, os perigos de chauvinismo e da xenofobia. Para
parte dos autores que analisam este fenômeno41, este nacionalismo, herdado da cultura
ocidental, não levou estes povos à consciência da própria história como um aspecto da
história de todos os homens e mulheres subjugados.
Constrói-se como uma necessidade para estes povos reencontrar e construir uma
“nação”, em seu sentido mais específico, onde elementos como a língua e a cultura nacionais
eram formas de se organizar e sustentar uma nova memória, com narrativas locais,
autobiografias, memórias que procuravam fazer um contraponto às histórias monumentais e
aos discursos oficiais reproduzidos pelo imperialismo em sua fase expansiva. Assim, uma das
primeiras tarefas da cultura de resistência foi a busca de uma origem nacional mais adequada,
tentando reivindicar a retomada da terra e da cultura colocadas sob dominação imperialista.

41
SAID avalia estas posições através das formulações de Elie Kedourie, Eric Hobsbawn,
Ernest Gellner e Partha Chatterjee.
177

Neste processo, a contradição de um nativismo nascente vem à tona, a partir do momento em


que é reforçada a distinção hierárquica estabelecida pelo imperialismo, mesmo quando se
valoriza o lado mais fraco ou servil. Por outro lado, em meio a uma expectativa de reencontro
com as origens pré-coloniais como as bases autênticas dos povos recém descolonizados, a
nacionalidade, o nacionalismo e o nativismo são conduzidos como uma força mobilizadora de
resistência contra o império.
SAID (1995) resume bem esta contradição ao afirmar que, em um primeiro momento,
o nacionalismo é o caminho encontrado pelos povos colonizados no sentido de fazer avançar
a luta contra o domínio ocidental, na medida em que possibilita uma restauração da
comunidade e o surgimento de novas práticas culturais, buscando construir uma nova
identidade. No entanto, recuperando categorias gramscianas de análise, este autor pondera que
este nacionalismo é necessário, mas não é suficiente, pois a proposta de libertação destes
povos deve ser muito mais ampla, necessitando da articulação de suas lutas e demandas com
as de outros povos dominados. O limite à realidade nacionalmente restrita pode conduzir a
velhas ortodoxias, injustiças e pensamentos autoritários incapazes, no final das contas, de
questionar e de superar as bases do poder imperialista. Neste caso, libertação não se limita à
independência nacionalista, pois envolve a transformação da consciência social para além da
consciência nacional.
É em meio a este contraditório processo de independência e de emancipação dos
antigos povos colonizados que podemos ver surgir as bases de uma diferente concepção de
“globalização da cultura”. Assim, o século XX, sobretudo o período pós-anos 40, foi palco de
uma enorme difusão de culturas não européias no centro metropolitano, culturas estas que,
embora situadas em fases diferenciadas de desenvolvimento, comungavam de uma
inquestionável experiência antiimperialista. Autores que abordam este processo de “viagem
para dentro” arriscam afirmar que tais culturas periféricas, trazidas para o interior dos países
ocidentais, conseguiram transformar as disciplinas e dar voz a novas idéias que modificaram a
estrutura de atitudes e referências da cultura européia.
Esta lógica sustentaria a idéia de que, nas palavras de SAID (1995, p. 28), “todas as
culturas estão mutuamente imbricadas, nenhuma é pura, todas são híbridas, heterogêneas,
extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo”. Teria acontecido, assim, uma troca
cultural que permitiria hoje, às culturas periféricas, dialogar e mesmo se contrapor à cultura
metropolitana utilizando as técnicas, os discursos e armas do saber e da crítica antes
reservados somente aos europeus. Por outro lado, WILLIAMS (1992) argumenta que ainda
não é certo se tais contatos geram rupturas agudas e até violentas com práticas tradicionais ou
178

se eles acabam sendo absorvidos e se tornam parte da cultura dominante de um período


metropolitano subseqüente. Segundo ele, o que existe agora é uma sobreposição e
interdependência que não pode ser imediatamente resumida à reação de uma identidade nativa
ocidental separada.
Este movimento antiimperialista daria início a uma variedade da obra cultural híbrida.
Estaria, assim, se constituindo uma internacionalização adversária capaz de questionar a
manutenção das estruturas imperialistas e de comprovar que a história não corre
unilateralmente. Tendo por base toda esta estrutura histórica do pós-colonialismo, a
abordagem diferenciada de globalização vai reconhecer, no mundo todo, uma multipolaridade
e uma emergência de novos centros competitivos que vêm, nos dias de hoje, colocando em
xeque o pressuposto de que os países economicamente dominantes são o centro a partir de
onde tudo flui em direção a uma periferia absolutamente dependente.
Um elemento marcante para a construção deste questionamento relaciona-se com a
movimentação cada vez mais intensa de pessoas no mundo, entre culturas e fronteiras, que
deslocam a perspectiva de uma exclusiva e vigorosa identidade nacional para o
reconhecimento, cada vez maior, de que estamos lidando com sociedades multiculturais. Isto
acaba por redimensionar, quando não desconsiderar, as antigas imagens unitárias coerentes e
ordenadas de uma modernidade que, advinda dos grandes centros ocidentais, permitiu a
europeus e norte-americanos projetarem a sua civilização, sua história e seus conhecimentos
como se eles fossem universais.
O que se sugere, neste sentido, é que vivemos em um mundo culturalmente
globalizado não porque estamos submetidos a uma homogeneização cada vez mais evidente.
No universo das questões culturais, o que estaríamos vivenciando, desde meados do século
XX, seria justamente o contrário, ou seja, uma relativização espacial do Ocidente. Nas
palavras de FEATHERSTONE (1997, p. 29)

A auto-imagem ocidental e a do outro passivo sofrem uma contestação cada


vez mais intensa. (...) já não é mais possível conceber os processos globais
em termos da dominação de um centro único sobre periferias. Ao contrário,
existem inúmeros centros competitivos que estão causando modificações no
equilíbrio global do poder entre os Estados-nação e os blocos e forjando
novos conjuntos de interdependências. Com isso, não se pretende sugerir
uma condição de igualdade entre os participantes, mas um processo que está
vendo mais parceiros admitidos ao jogo, os quais exigem acesso aos meios
de comunicação e ao direito de serem ouvidos.
179

O processo de globalização em curso teria, portanto, permitido um tamanho fluxo


global de informações, tecnologias, debates e questionamentos que teria propiciado, na
verdade, um novo estágio para as diferenças globais, uma “vitrine mundial das culturas”, um
entrechoque cada vez mais discordante das culturas. A diferença agora é que não existiria
mais um único centro civilizatório em relação ao resto do mundo. A globalização teria nos
tornado conscientes de novos e indissolúveis níveis de diversidade cultural.
O resultado das lutas e questões econômicas, sociais e políticas nos séculos XIX e XX
foi a prioridade para se criar uma “cultura nacional”. Esta expressão supunha a formação de
concepções unitárias de culturas, muitas vezes concepções altamente reificadas, onde a
integração e a inclusão, como objetivos expressos, conduziam, necessariamente, ao seu
oposto, à rigidez e à exclusão. A partir do final do século XX, a conceituação de uma “des-
ordem cultural” e de sincretismos cada vez mais complexos deixa de ser algo excepcional,
passando a considerar como objetivo a inclusão de perspectivas culturais desintegradas. Um
“outro” cada vez mais próximo no tempo e no espaço procura dialogar e desafiar qualquer
descrição particular de seu mundo, apresentando-se como um interlocutor impossível de ser
ignorado.
Nesta perspectiva do processo de globalização, o sentimento de que “somos o mundo”
parece estar cada vez mais evidente. No entanto, isto não significa homogeneização, como
propõe a primeira perspectiva, mas sim um maior intercâmbio e colisão de diferentes
narrativas históricas. Ocorre o reconhecimento de que povos do mundo não-Ocidental têm
histórias próprias e de que uma percepção histórica linear interminável de unificação do
mundo se torna difícil de sustentar. A história só pode ser compreendida em relação com
outras temporalidades coexistentes e espacialmente distintas. Em outras palavras, quaisquer
termos e expressões que possam traduzir um inquestionável senso de unidade e universalidade
tornam-se agora problemáticos e limitados.

O senso de que para o mundo existem histórias plurais, de que existem


culturas e particularidades diversas que foram excluídas do projeto
universalista da modernidade ocidental, mas que agora afloram, a ponto de
lançarem dúvidas sobre a viabilidade do projeto, é um desfecho particular da
atual fase do processo de globalização. Ele assinala uma avaliação mais
positiva do Ocidente em relação à alteridade e às diferenças resultantes da
mudança no equilíbrio do poder entre nações que, progressivamente, se
vêem unidas em uma configuração global, em que se torna cada vez mais
difícil optar por sair. (FEATHERSTONE, 1997, p. 127)
180

Neste processo, redefine-se o que vemos ser denominado por cultura global. Ao
contrário da idéia de que uma única nação predominante poderia desenvolver uma cultura
global comum, como anteriormente especificamos, nesta abordagem tal cultura seria
caracterizada por uma maior diversidade de intercâmbios, onde encontros transculturais e
transnacionais se tornam freqüentes, principalmente a partir de imagens e informações
socializadas a partir da mídia. Estes contatos e trocas culturais não ocorrem, entretanto, sem
conflitos e sem enfrentamentos. Falar de uma cultura global, neste sentido, significa incluir
diferentes formas de conformação cultural, onde a idéia da “tolerância” ainda é a
determinante e uma perspectiva cosmopolita ainda esta por se construir e afirmar.
A atual fase de globalização teria, então, apresentado para os países dominantes, a
necessidade de “aprender a tolerar” uma maior diversidade cultural no interior de suas
fronteiras, manifestada pelo multiculturalismo e pela polietnicidade. Isso aumentaria a
demanda por uma igual participação, pela expansão de direitos de cidadania e por maior
autonomia para minorias regionais e étnicas.
É neste sentido, de uma maior interação e de um maior envolvimento de diferentes
processos culturais em todo o mundo que um outro conceito de “cultura global” estaria
ganhando força e se tornando tão significativo quanto o anterior conceito de uma cultura
nacional ou local. Esta perspectiva tenta relativizar a idéia de que existe uma ameaça à cultura
local a partir do momento em que ela se integra a redes regionais, nacionais e transnacionais
mais amplas, por meio do desenvolvimento de uma alta tecnologia em termos dos meios de
comunicação. Longe de perder sua particularidade e sua força referencial, as culturas locais se
tornariam mais imediatas e enfrentariam a necessidade urgente de se fazerem inteligíveis, uma
vez que suas fronteiras tornaram-se algo mais permeável e difícil de manter. Neste caminho,
uma série de reações nacionalistas, étnicas e fundamentalistas à globalização em curso foi se
construindo no mundo todo, mas, segundo FEATHERSTONE (1997), este não seria o
caminho mais apropriado para se pensar as relações culturais no mundo contemporâneo, às
quais deveriam ser pensadas a partir da lógica da interação e do intercâmbio capazes de
compor esta cultura global marcada, principalmente, pela diversidade. Reage-se, assim, a uma
forma de globalização, propondo-se outra, onde se reconstituam identidades coletivas locais
dentro de uma linha pluralística e multicultural, onde as diferenças étnicas e regionais sejam
levadas em conta. O mundo agora seria um “espaço dialógico”, embora com discordâncias,
colisão de perspectivas e conflito.
Para os autores que defendem esta concepção, encarar o global e o nacional (ou local)
como dicotomias separadas no espaço e no tempo não seria, contemporaneamente, o caminho
181

para se pensar o universo cultural. Na verdade, os processos de globalização e de localização


estariam inevitavelmente ligados na atual fase.

Experimentamos aqui, a sensação de que o mundo contemporâneo não


presenciou um empobrecimento cultural, uma atenuação dos recursos
culturais. Tem havido, na verdade, uma ampliação dos repertórios culturais e
uma intensificação da engenhosidade de vários grupos no sentido de criar
novos modos simbólicos de afiliação e de pertença (...). (IBIDEM: 154)

Assim, o processo de globalização levaria à colisão de diferentes interpretações sobre


o significado do mundo, construídas por diferentes tradições nacionais e civilizatórias, e não
poderia ser visto como o produtor de uma cultura comum, integrada e unificada. A
diversidade cultural, bem como diferentes elementos de identidade (étnicos ou nacionais, mas
também de geração, gênero, sexo e classe, entre outros) estariam não só presentes, mas
absolutamente fortalecidos no mundo globalizado em que vivemos. Diferentes universos
culturais não se ignoram. São até mesmo capazes de manter certo grau de impermeabilidade,
mas também procuram realizar importantes trocas culturais sempre que isso se mostre
possível. Tais trocas não foram necessariamente para melhor, nem vêm sendo capazes, como
podemos perceber nos conflitos internacionais que estamos vivenciando, de criar um ponto de
convergência entre eles, mas criam, inevitavelmente, oportunidades de mistura entre seus
elementos.
O estudo destas trocas e desta perspectiva multicultural no mundo contemporâneo vem
sendo realizado por diversos autores e o debate construído entre eles nos parece importante
para as discussões que estamos realizando.
SAHLINS (1997), em seu artigo O “pessimismo sentimental” e a experiência
etnográfica, inicia suas formulações afirmando que, apesar dos processos de globalização em
curso, “a cultura não é um objeto em extinção”. Em sua abordagem, “a cultura nomeia e
distingue a organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos” e isso
jamais será abandonado.
Este autor reconhece que, em razão do processo de desenvolvimento da nova ordem
capitalista mundial, as então chamadas “culturas exóticas” estão certamente passando por um
momento de reformulação ou mesmo de redefinição. O que antes, no interior da
Antropologia, serviria como instrumento de demarcação da diferença como tal, chegando até
mesmo a servir à subordinação e à exploração, estaria agora se transformando radicalmente,
através de um intercâmbio cada vez maior e mais amplo com outras culturas e civilizações.
182

No entanto, esta mesma cultura estaria reaparecendo como um elemento de


reafirmação desta diferença, mas agora numa posição de contraponto às forças do
imperialismo ocidental. SAHLINS pondera que a cultura é, assim, a antítese de um projeto
colonialista de estabilização, e os mais diferentes povos, nas mais diferentes partes do mundo,
se utilizariam de suas culturas não apenas para remarcar e reconstruir sua identidade, mas
também para, como diz o autor, “retomar o controle do próprio destino”.
O autor continua suas reflexões afirmando que o “pessimismo sentimental” que ronda
os estudos culturais, ou seja, a convicção de que “a vida dos outros povos do planeta estaria
desmoronando em visões globais da hegemonia ocidental”, não daria conta dos vários tipos de
“resistência cultural” que estariam se construindo em todo o mundo. Estas diferenças
culturais, silenciadas e dominadas durante os anos do colonialismo, estariam retornando,
“pela porta dos fundos”, e construindo novos projetos de identidade coletiva. A cultura destes
povos permanece porque sua consciência e sua capacidade de construir significados também
estão intactas.
Desenvolvem-se, assim, simultaneamente, uma integração global e uma diferenciação
local.

As semelhanças culturais da globalização se relacionam dialeticamente com


as exigências de indigenização. (...) Justamente por participarem de um
processo global de aculturação, os povos “locais” continuam a se distinguir
entre si pelos modos específicos como o fazem. (SAHLINS, 1997, p. 57)

Este autor nos propõe a análise do momento contemporâneo, então, como uma
“cultura mundial da(s) cultura(s)”, o que, em sua essência, seria radicalmente distinto de uma
“cultura global”. O que estaria em jogo neste novo esquema seria uma organização e uma
compreensão racional da diversidade, e não uma replicação da uniformidade. As formas de
adaptação dos povos locais ao sistema mundial não devem ser compreendidas como
“inautênticas”, mas como parte integrante desta diversidade cultural, que se constrói em um
intercâmbio dialético do global e do local. Para citar novamente o autor, “o imperialismo não
está lidando com amadores nesse negócio de construção de alteridades ou de produção de
identidades” (1997, p. 133).
Outro autor que também se preocupa em determinar com maior precisão as formas
contemporâneas de contatos e trocas culturais originados do processo de globalização é Ulf
Hannerz. Ele reconhece que, durante muito tempo, o tema das interconexões culturais no
espaço não constituía uma área de grande interesse para a Antropologia, que, ao contrário,
183

dava mais valor àquilo que caracterizava a “pureza” e a “originalidade” das culturas nativas.
Para ele, somente nos anos 90, a globalização e a transnacionalização tornaram-se um novo
objeto de pesquisas para esta área.
Frente a isso, HANNERZ (1997) se propõe a dimensionar termos e expressões que, no
contexto contemporâneo, aparecem associados à problemática da globalização e dos contatos
e trocas culturais. Detendo-se, sobretudo, em três termos, quais sejam, fluxos, limites e
híbridos, o autor não deixa de afirmar que tais termos constituem, na verdade, metáforas que
se encontram sujeitas a oscilações e contestações. Vale observarmos o que ele compreende
por cada um destes termos.
O termo fluxos se relaciona, em sua acepção mais imediata, a “coisas que não
permanecem no seu lugar, a mobilidades e expansões variadas”. No estudo da globalização,
este termo parece essencial, pois o que vivenciamos nos dias atuais é a intensificação dos
fluxos do capital, de trabalho, de pessoas, de mercadorias, de informações e de imagens. A
noção de fluxo nos capacita, no que se refere à cultura, a pensá-la em termos processuais,
evitando o risco da reificação. Assim, esta noção sustenta dimensões espacial e temporal. Esta
última implica em pensar nos elementos culturais em constante movimento, capazes de serem
sempre recriados, o que os torna, na verdade, passíveis de permanecerem duradouros. É o
fluxo cultural, numa dimensão temporal, que faz com que as pessoas possam refletir e
transmitir uma cultura, mantendo-a viva. No entanto, para as discussões referentes à questão
da globalização, é a dimensão espacial que dá à noção dos fluxos um papel relevante.
Segundo HANNERZ, os fluxos têm direções e o que acontece é uma reorganização da cultura
no espaço mundial. Este processo, no entanto, não acontece sem conflitos ou contradições,
pois se deve sempre observar, no cenário global de fluxos, um centro no qual eles se originam
e uma “periferia” para a qual se destinam. O autor duvida que tenhamos chegado a um ponto
onde seja impossível distinguir os centros das periferias. Este é, aliás, o ponto crítico para o
debate atual, pois o que se observa é uma tendência a que se dê maior atenção à
multicentralidade, aos fluxos entrecruzados, à descentralização. Para estas formulações, a
dicotomia centro/ periferia coloca a questão dos fluxos como uma questão de simples
transposição, simples transmissão unilateral de significados, o que parece ser um equívoco
diante das mudanças contemporâneas em nossa sociedade.
Em oposição à idéia de fluxo, fronteira (ou limite) vai indicar descontinuidades e
obstáculos, ou seja, a linha em relação à qual se está dentro ou fora de determinados limites.
A partir dos nos 50, afirma HANNERZ, a cultura passou a ser considerada como um
“marcador de grupos”, implicando, ao mesmo tempo, pertencimentos e exclusões, o que está
184

diretamente associado tanto a questões econômicas quanto políticas. No que se refere à


globalização a partir do final do século XX, entretanto, estes limites estão cada vez mais
tênues e difíceis de serem demarcados. As experiências vivenciadas pelas pessoas através das
diversas formas de fluxos fazem com que elas sejam envolvidas nas diversificadas correntes
de cultura que se fazem presentes em seu cotidiano, construindo diferentes oportunidades de
identidade que não, especificamente, a grupal. Em outras palavras, outras maneiras e outros
pontos de referência se afirmam no momento de fixar limites, os quais, por sua vez, são
transcendidos com maior rapidez, facilidade e, ao mesmo tempo, racionalidade. Assim,
segundo o autor, uma compreensão suficientemente pluralista é necessária para se dar conta
das variações na forma cultural em questão. Isso não significa, entretanto, que estes limites e
estas fronteiras não existam, muitas vezes como claros elementos de “resistência cultural”,
sobretudo para povos antes colonizados.
Seu terceiro termo, hibridez, sugere, no interior dos estudos culturais, a idéia de
mistura, de miscelânea, de algo novo que ingressa em determinada cultura como “um pouco
disto e um pouco daquilo”, em uma clara possibilidade de renovação e de adaptação cultural.
É como se surgisse, através de um processo de fusão, um terceiro sistema sociocultural novo.
Assim como outros termos que também vão expressar, como afirma HANNERZ,
possibilidades de mistura, tais como sinergia, transculturação, criolização e sincretismo, a
idéia de hibridez se transforma em um dos elementos-chave para compreendermos os contatos
e as trocas culturais próprios do momento contemporâneo, onde os elementos de dominação
estariam sendo, ao mesmo tempo, questionados e assimilados por povos anteriormente
subordinados.
Aliás, é sobre esta questão da hibridação que se debruça um outro autor bastante
presente nos debates contemporâneos acerca da globalização e da cultura. Néstor Garcia
Canclini, pensando sobretudo o contexto latino-americano, vai afirmar que a hibridação foi o
elemento-chave para compreendermos a latinidade, para a qual contribuíram, em sua origem,
os elementos dos países da Europa, do indígena americano e das migrações africanas. Este
processo de mistura continuaria nos dias atuais em relação aos Estados Unidos, à Europa e à
Ásia. Ao final do século XX, afirma o autor, fatores como os processos interétnicos e de
descolonização, globalizadores, viagens e fronteiras, cruzamentos artísticos, literários e
comunicacionais tornam a idéia da hibridação indispensável para a análise das culturas.
O autor define hibridação como as oportunidades de processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas que existiam em forma separada, combinam-se para gerar novas
estruturas, objetos e práticas. Assim, pensar em hibridação significa colocar em evidência a
185

produtividade e o poder inovador de experiências interculturais, quando se busca reconverter


determinado patrimônio para reinseri-lo em novas condições de produção e de mercado.
Segundo CANCLINI (2000, p. 69), o objeto de estudos e de discussão nos dias de hoje
deve ser os processos de hibridação, os quais acabam por relativizar a noção de identidade,
antes compreendida como algo “puro” ou “autêntico”, o que acabava por limitar a
possibilidade de se modificar a cultura e a política. Os processos de hibridação demonstram
que não é possível falar de identidade como se fosse um conjunto de traços fixos, ou como a
essência de uma etnia ou nação. No contexto da globalização em curso, a hibridação
demonstra sua força, uma vez que, para os mais diferentes autores situados nesta linha de
análise, as identidades se reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e
transnacionais e procuram se situar e se afirmar em meio a uma heterogeneidade cada vez
mais marcante.
Ao defender a noção de hibridação como capaz de explicar a constituição cultural
latino-americana, CANCLINI (2000) não deixa de afirmar, no entanto, que a hibridação se
constrói em meio a contradições e resistência, ou seja, existe aquilo “que não se deixa
hibridar”. A proposta é de se entender a hibridação como um processo ao qual se pode
ascender e que se pode abandonar, do qual se pode ser excluído ou ao qual se pode
subordinar, e não como uma “harmonização de mundos desgarrados e beligerantes”. Esta
noção é importante para que possamos compreender o espaço do sujeito nestas relações
interculturais, capaz de estabelecer o que é possível harmonizar e o que se constitui como
inconciliável. Apesar de o momento contemporâneo da globalização nos desafiar cada vez
mais com oportunidades de mestiçagem e de hibridação, persistem os confrontos, os conflitos
e as demandas de diálogo.
Este autor acredita na hibridação, portanto, como o recurso através do qual se torna
possível que a multiculturalidade supere os elementos de segregação e de discriminação e
possa converter-se em reais experiências de interculturalidade. Através dos momentos de
hibridação, é possível trabalhar democraticamente com as divergências culturais, evitando que
elas se reduzam a guerras e contradições. Os movimentos contemporâneos de globalização, ao
criarem mercados mundiais de bens materiais e simbólicos, multiplicam as oportunidades de
hibridação. As fronteiras e os limites antes rígidos dos Estados-nacionais e de suas culturas se
tornaram mais flexíveis e parece praticamente impossível pensar em unidades estáveis, com
limites precisos.
No entanto, este mesmo contexto condiciona os formatos, estilos e contradições da
hibridação, que ocorrem em condições históricas e sociais específicas, orientadas por sistemas
186

de produção e de consumo que, muitas vezes, demarcam de forma coercitiva estes momentos.
Neste sentido, tal mecanismo nem sempre é um momento de adaptação e de acomodação aos
novos contextos globalizados, mas muitas vezes funciona como recurso para resistir ou
modificar a globalização através de alianças entre atores sociais marginalizados ou excluídos
deste contexto. CANCLINI (2000) nos adverte para o que ele considera “uma visão
simplificada da hibridação”, ou seja, a sedução de um mercado globalizante que tende a
reduzir a arte a um discurso de reconciliação planetária, que, na maioria das vezes, oculta
estes movimentos como campos conflitivos, instáveis e de tradução.
Em Culturas Híbridas, CANCLINI (1998) chama a atenção, ainda, para a necessidade
de um “olhar transdisciplinar” sobre estes circuitos culturais híbridos, pois os mesmos não
podem mais ser estudados com ferramentas das disciplinas que anteriormente os estudavam
separadamente. Problematizando a questão da diferença entre culto, popular e massivo, o
autor observa que as Ciências Sociais estabeleciam diferentes escalas de observação, fazendo
com que cada uma construísse uma visão diferente e, portanto, parcial. Assim, a história da
arte, a literatura e o conhecimento científico dominariam conteúdos cultos; a antropologia e o
folclore teriam como objeto de estudos o universo do popular e as indústrias culturais
gerariam o sistema de mensagens massivas. Assim, nesta busca de se construir objetos puros,
também estariam organizados de forma diferenciada os bens e as instituições responsáveis por
cada um deles, tais como as feiras populares, os museus e os meios de comunicação de massa.
Hoje, postula CANCLINI (1998), assistimos a processos de hibridação que fazem com
que esta divisão maniqueísta dê lugar a uma visão mais complexa sobre as relações entre
tradição e modernidade. Ao contrário do que se imaginava, o culto tradicional não foi
apagado pela industrialização de bens simbólicos, mas sim, muitas vezes, incorporado por ela.
O que parece estar se desvanecendo não são os bens conhecidos como cultos ou populares,
mas a pretensão de uns e de outros de constituir um universo auto-suficiente e de que as obras
produzidas em cada campo sejam unicamente “expressão” de seus criadores.

O que é a arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em


conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem
os jornalistas, e os críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands,
os colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se
define por uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas,
com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também
pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular
para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os
partidos, os comunicólogos, para a mídia. (CANCLINI, 1997, p. 23)
187

Neste novo momento de reorganização do universo cultural, a crença de que a cultura


segue um processo ascendente, ou que certos modos de pintar, simbolizar ou refletir sejam
superiores parece perder força. Embora ainda seja necessário para o mercado sustentar certas
hierarquias para renovar a distinção entre os grupos e as classes próprias da sociedade
capitalista, a hibridação faz com que, em geral, todos reformulem suas formas e seus capitais
simbólicos em meio a cruzamentos e intercâmbios, levando-nos a participar de forma
intermitente de grupos cultos e populares, tradicionais e modernos.
Como nos foi possível observar, o debate acerca das relações entre o processo de
globalização e o universo cultural guarda diferentes e divergentes posições teóricas, que nos
desafiam a pensar nossa realidade sócio-cultural e a contemporaneidade de nossos
enfrentamentos nesta realidade. Acreditamos, no entanto, que uma perspectiva de totalidade
tem se mostrado ausente neste debate, tornando insuficiente cada uma das abordagens aqui
dimensionadas. Por isso, faz-se necessário, neste momento, recuperar o debate sobre nacional-
popular em Gramsci, a qual, defendemos, nos potencializa para um debate responsável e
verdadeiramente alternativo à insuficiência das duas abordagens anteriores. É o que
pretendemos detalhar na última seção deste trabalho.

3.3 – Nacional-popular como alternativa de crítica e de superação às


perspectivas de globalização da cultura
Um importante embate teórico se faz perfeitamente visível na discussão acerca da
globalização e do universo cultural. Este parece estar presente, na verdade, na compreensão
de toda a nova ordem mundial, pois aqui os movimentos das esferas econômica, política e
cultural se sobrepõem e se complementam reciprocamente. A partir daí se constroem as duas
perspectivas de análise que anteriormente tentamos apresentar. De um lado, uma formulação
que acredita que um “mundo globalizado” significa, nos dias atuais, uma realidade cultural
homogeneizada, numa lógica de dominação paralela e integrada às questões econômicas e
políticas. Nesta direção, a cultura seria o caminho para se construir uma visão universal da
realidade social que, sob orientação dos países que vivenciam o cenário do capitalismo
central, garantiria, em parte significativa da “sociedade global”, a internalização de um
conjunto de normas e valores “globalizados” que passam, a partir de então, a constituir um
novo senso comum inquestionado e inquestionável pelos povos historicamente subordinados à
lógica do capital. Por outro lado, e, em certa medida, como resposta a uma possível visão
determinista desta primeira perspectiva, vemos surgir e ganhar força a idéia de que
globalização, na verdade, significa diversidade, heterogeneidade, contatos diferenciados,
188

forças periféricas que, anteriormente dominadas e silenciadas, teriam encontrado agora, no


contexto globalizado, a oportunidade de se auto-recuperarem e de se afirmarem, fazendo
frente ao processo de dominação imperialista e colonialista que anteriormente vivenciaram.
Nossa perspectiva de análise busca compreender estas duas abordagens sob uma
orientação crítica que não se limita a justificá-las ou a simplesmente negá-las. Entendendo
que a cultura, conforme caracterizamos no primeiro capítulo, é uma esfera de dimensões
determinadas, ou seja, sujeitas às oscilações, crises e correlações de forças da estrutura
econômica e política de uma sociedade, afirmamos que ela não pode se manter suspensa a
todos os aspectos contemporâneos do desenvolvimento capitalista. Assim, compreendemos o
crescimento e a monopolização da indústria cultural em âmbito mundial, a despolitização e a
fragmentação constantes das manifestações culturais, a intensificação de uma cultura de
consumo cada vez mais especializada e localizada e outros tantos elementos culturais que hoje
nos desafiam porque compreendemos também que o resultado econômico e político dos
embates ocorridos no final do século XX foi a afirmação de uma nova hegemonia burguesa,
base para um novo bloco histórico que, até os dias de hoje, não nos parece superado ou
suficientemente enfrentado por grupos organizados que proponham uma contra-hegemonia.
Como bem ilustra SIMIONATTO (2003, p. 283), as formulações gramscianas
apresentam-se como essenciais para discutirmos este processo.

As superestruturas ganham materialidade e a classe dominante reatualiza a


sua “estrutura ideológica”, a fim de defender e manter um certo tipo de
consenso dos aparelhos de hegemonia em relação a seus projetos,
legitimados por via democrática. A transformação da objetividade burguesa
em subjetividade e sua naturalização na sociedade expressam-se através de
um “movimento molecular” que, conforme indica Badaloni, “envolve
indivíduos e grupos, modificando-os insensivelmente, no curso do tempo, de
modo tal que o quadro de conjunto se modifica sem a aparente participação
dos atores sociais”.

Entretanto, entender que esta relação de dominação, que produz uma cultura de
passividade e de conformismo atingindo, sobretudo, as classes subalternas é a única via em
que se processam os contatos e as trocas culturais também nos parece um posicionamento
limitado. Compartilhamos da idéia de que tal dominação burguesa não acontece sem conflitos
e resistências.
Assim, as discussões e afirmações realizadas no âmbito da segunda perspectiva
contribuem para o debate contemporâneo ao alertarem para as formas como os grupos, as
classes e, até mesmo, os povos historicamente subalternos tentam encontrar espaço para fazer
189

da cultura uma esfera de auto-conhecimento e de auto-afirmação, possibilitando refletir sobre


as contradições e os enfrentamentos presentes em seu cotidiano. A partir de diferentes
estratégias, os contatos e as trocas culturais, nesta direção, passam a se apresentar como
oportunidades de reflexão e de enfrentamento diante dos contextos de exploração e de
dominação vivenciadas por estes grupos.
Tais colocações são importantes quando se pensa, particularmente, na idéia de que,
contrariamente aos seus objetivos fundamentais, o desenvolvimento globalizado do
capitalismo teria criado as oportunidades para “uma nova globalização”, a partir “de baixo”,
onde povos e setores excluídos dos avanços da nova ordem mundial poderiam “se encontrar”
e se articular para buscar novas conquistas e novos enfrentamentos econômicos, políticos e
sociais. Neste caminho, a cultura teria uma importância fundamental enquanto elemento que,
segundo Gramsci, permite ao homem, no interior da sociedade e das relações em que vive,
uma concepção unitária de suas condições de vida social, garantindo, portanto, a reflexão e a
ação humanas conscientes.
Esta potencialidade contida no processo de globalização em curso é assim expressa
por SANTOS (2000, p. 172-173)

Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica mais perto


de cada um, não importa onde esteja. O outro, isto é, o resto da humanidade,
parece estar próximo. Criam-se, para todos, a certeza e, logo depois, a
consciência de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda não o
alcançamos em plenitude material ou intelectual. (...) Assim, o cotidiano de
cada um se enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas
realizações atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida
nos lugares, ainda mais enriquecidas, são paralelamente, o caldo de cultura
necessário à proposição e ao exercício de uma nova política.

A cultura tem a possibilidade de se construir, neste caminho, como uma esfera de


auto-conhecimento para os “de baixo”. Ao encontrarem condições propícias para
recuperarem, através de suas mais diversas manifestações culturais (arte, folclore, hábitos,
costumes, princípios religiosos, etc.), uma parte de suas histórias, numa perspectiva “nacional
e popular”, estes grupos, classes e povos podem refletir, criticamente, sobre as relações
sociais nas quais estão inseridos, compreendendo os contextos de dominação e de exploração
que vivenciaram. Nos dias atuais, tal compreensão significa, principalmente, abarcar as
implicações de uma inserção marginalizada no processo de desenvolvimento global do
capitalismo em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.
190

No atual contexto de globalização, onde as possibilidades de contatos e trocas


culturais são cada vez mais intensos, este auto-conhecimento proporcionado pela esfera
cultural nos parece um caminho privilegiado para pensarmos, em meio à fragmentada
realidade na qual vivemos, as possibilidades de construção de uma “contra-hegemonia”, ou
seja, de um movimento que possa levar “à formação de uma ordem sociopolítica nova e mais
universal”. Se é possível pensarmos em “uma outra globalização”, onde os “de baixo” possam
se conhecer e se “reconhecer” tendo como ponto em comum os processos de dominação e de
exploração por eles vivenciados e as tentativas de superação desta realidade, então a cultura se
constitui, efetivamente, como um domínio essencial para estas “guerras de posição”, para
estas lutas em torno de uma nova hegemonia.
É importante reforçarmos esta perspectiva de que estamos refletindo sobre uma
possibilidade de reação contra-hegemônica. Tal colocação é essencial para, a princípio,
afastarmos um entendimento excessivamente otimista que vemos se afirmar no interior desta
discussão acerca do culturalismo. Se a cultura pode se constituir, para estes setores, como uma
esfera de auto-afirmação, é importante que não a isolemos de outras esferas, que, no contexto
contemporâneo, definem e redefinem as atuais forças hegemônicas. Não hesitaríamos em
afirmar que, apesar de todos os movimentos e tentativas de reação dos povos dominados,
permanece, no interior das estruturas internacionais, um bloco global de poder que envolve,
além de instituições políticas e estruturas socioeconômicas, uma série de mecanismos morais,
ideológicos e culturais que visam garantir o consentimento e o apoio de grupos subalternos.
Tal bloco, podemos afirmar, tem garantido sua hegemonia, no cenário internacional, a partir
do momento em que demonstra a capacidade de fazer com que seus interesses particulares,
sobretudo na esfera econômica, tomem a aparência de interesses gerais ou universais. Nos
dias atuais, fica cada vez mais evidente que o exercício da hegemonia vai tornando possível
minimizar o uso da coerção e da dominação explícita e disseminar outros sistemas de
legitimação, capazes de mobilizar o apoio e de garantir a direção.
Neste sentido, acreditamos que a segunda perspectiva de análise da globalização e da
cultura, que apresentamos ao longo deste trabalho, ainda carece de importantes elementos de
crítica: estaríamos, realmente, diante de um mundo mais “democrático” no que se refere à
esfera cultural? Estaríamos, concretamente, vivendo em uma “sociedade globalizada”, no
sentido de pluralista e com condições mais igualitárias de manifestação das diferentes
expressões culturais? Seriam os contatos e as trocas culturais, hoje intensificados,
possibilidades reais de conhecimento de alternativas para “ambos os lados”? Os conflitos
191

étnicos, nacionais ou mesmo culturais ocorridos neste início de século não parecem apontar
para respostas muito positivas a este tipo de questão.
Assim, reforçamos a idéia que anteriormente buscamos sustentar: a globalização em
curso coloca a necessidade e abre a possibilidade para a busca de uma contra-hegemonia,
potencializa grupos, classes, ou mesmo povos inteiros, para, numa perspectiva transnacional,
construir um novo bloco de forças capaz de superar as contradições e fragilidades de nossa
realidade social. Todavia, este processo ainda nos parece algo absolutamente embrionário.
Não nos parece constituída, ou mesmo em vias concretas de constituição, a tão anunciada
“sociedade civil global”, enquanto um espaço real de construção de consensos e de projetos
para a humanidade, numa perspectiva transnacional. Neste contexto, a cultura ainda guarda
fortes elementos de subordinação, de dominação e de conformismo, os quais precisam ser
questionados e superados para que possamos realmente compreender uma outra perspectiva,
de uma situação globalizada das manifestações culturais, enquanto elementos de emancipação
e de conhecimento de todos os povos.
É neste momento que a recuperação da categoria nacional-popular se faz necessária e
urgente. Como tivemos a oportunidade de detalhar, no primeiro capítulo deste trabalho, tal
perspectiva se constrói, no pensamento gramsciano, como claramente contra-hegemônica, ou
seja, como capaz de potencializar um projeto alternativo da classe trabalhadora, como sempre
imaginou Gramsci, onde o auto-conhecimento e o conhecimento da realidade societária em
que se vive se faz com uma orientação crítica e reflexiva, cultural, em seu sentido mais pleno.
Neste momento, em Gramsci, nacional e transnacional se constroem mutuamente,
determinando-se enquanto particularidade e totalidade.
Para melhor fundamentarmos esta reatualização do nacional-popular diante dos
desafios contemporâneos, caberia refletirmos sobre elementos que estão presentes na acepção
gramsciana e que precisam ser, no atual cenário, criticamente problematizados.

3.3.1 – A questão dos intelectuais: a insustentável distância entre o silêncio e o


engajamento
Em uma de suas primeiras tentativas de demarcar a compreensão de nacional-popular,
conforme já discutimos, Gramsci critica o histórico distanciamento, existente na realidade
italiana, entre os intelectuais e os setores populares. Para ele, o resultado desta condição, em
que os primeiros não se sentem ligados organicamente aos segundos, seria uma visão elitista
de cultura, em que os interesses e os problemas vivenciados pelas denominadas “classes
192

subalternas” não encontrariam visibilidade ou não seriam politicamente problematizados por


parte das camadas intelectuais.
Como poderíamos compreender, nos dias atuais, esta aproximação (ou a ausência dela)
entre os intelectuais e os setores populares? Que interesses a redimensionam e que propostas
os primeiros apresentam? Em outras palavras, teria vida hoje, no cenário globalizado, o
“intelectual engajado”, ou ele, verdadeiramente, seria uma “figura em extinção”?
CHAUÍ (2006) apresenta importantes colocações acerca desta discussão. Refletindo
exatamente sobre a composição e o engajamento desta intelectualidade, a autora afirma que o
percurso histórico dos intelectuais comporta uma difícil bidimensionalidade. Os intelectuais,
sobretudo na contemporaneidade, oscilam entre o recolhimento e o engajamento, o silêncio e
a intervenção pública, de acordo com a forma como sua autonomia racional42 é tratada pelos
projetos societários em luta pela hegemonia. Quando tal autonomia é respeitada, os
intelectuais tendem a se recolher e assumir uma posição de neutralidade e de silêncio. Por
outro lado, quando a mesma autonomia é ameaçada pelos poderes instituídos, a tendência é de
que os intelectuais venham à cena pública para defendê-la. Esta fala e esta ação pública dos
intelectuais estariam orientadas por dois traços principais, quais sejam, a transgressão com
relação à ordem vigente e a defesa de causas universais, distantes de interesses particulares
imediatos.
Entretanto, o que observamos é que o modo de produção capitalista apresenta,
contemporaneamente, novos desafios e novas demandas para uma possível “intelectualidade
engajada”. Sobretudo no período pós-Guerra Fria, quando a ideologia burguesa parece ter
encontrado sua perfeita configuração através da lógica de que a ordem obteve vitória sobre a
transformação, a autonomia racional não pôde se manter alheia a todas estas influências.
Assim, fortaleceu-se, nos dias atuais, a idéia clássica, já denunciada por Marx e Engels n‟A
ideologia alemã, de que é possível uma separação entre o trabalho intelectual e o trabalho
manual, e de que o primeiro tem primazia sobre o segundo. Reafirma-se, por este caminho, a
histórica separação entre os intelectuais, enquanto camada que se imagina autônoma, e a
realidade social mais dinâmica, as classes sociais em luta, o conjunto das relações sociais que
compõem o modo de produção no qual estamos envolvidos.

42
É de Boaventura de Souza Santos a discussão sobre esta “autonomia racional” na sociedade
contemporânea, quando ele reconhece o momento de crise do projeto societário da modernidade e o
avanço do que ficou denominado como “pós-modernidade”. Cf. SANTOS, Boaventura S. Pela mão
de Alice; o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
193

Desta forma, percebemos um cenário em que o engajamento dos intelectuais encontra


cada vez mais desafios. Por inúmeros processos societários, está cada vez mais mediada a
necessidade de tomada de posição contra a ordem vigente e contra as classes dominantes, e
está cada vez mais ausente a figura do intelectual como aquele que intervém criticamente na
esfera pública, procurando exprimir e dar organicidade a uma perspectiva societária
alternativa. Assim, CHAUÍ (2006) busca enumerar possíveis causas para este atual “silêncio
dos intelectuais”.
Primeiramente, poderíamos mencionar “o amargo abandono das utopias
revolucionárias, a rejeição da política, um ceticismo desencantado”. A derrota histórica de
experiências que se propunham alternativas ao capitalismo e o avanço deste último pelos
“quatro cantos do mundo”, sobretudo sob o formato da mundialização do capital, anunciam o
desaparecimento do “horizonte histórico do futuro” e decretam o “fim da história”. O presente
se coloca agora como o único universo possível e se fecha sobre si mesmo. “Morre o sujeito
revolucionário” e, com ele, a expectativa de que o engajamento dos intelectuais poderia
garantir a consolidação de uma proposta alternativa.
Segundo SANTOS (1995), parecia haver, na lógica do projeto da modernidade, uma
profunda relação entre a capacidade e a intencionalidade. Se o sujeito revolucionário tinha
interesses em uma transformação, também tinha capacidade para realizá-la. A história,
entretanto, parece ter demonstrado que esta relação não era tão verdadeira assim. Segundo
este mesmo autor, parece existir hoje uma dúvida sobre a capacidade ou sobre a
intencionalidade revolucionária da classe operária, considerada como o sujeito revolucionário
por excelência. Se o proletariado deseja fazer uma mudança radical de superação do
capitalismo, parece não ter capacidade para tanto. Ou, em outra situação, se o proletariado
tem capacidade para fazer tal mudança, parece não ter mais interesse. A crítica parece ainda
mais contundente: não existe nem mesmo uma única identidade que possa criar o sujeito
revolucionário. Este agora parece estar diluído em inúmeras identidades, as quais o
possibilitam fazer apenas pequenas mudanças e transformações na organização social de seu
cotidiano.
Além de vivenciarem esta ausência de um “sujeito revolucionário” ao qual educar e
organizar, os intelectuais, na expectativa do engajamento, parecem se confrontar também com
um encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado, favorecidos pelo
desenvolvimento de novas formas de acumulação do capital impulsionadas pelo
neoliberalismo. Diante de um novo conjunto de valores burgueses, onde o cidadão é
194

transformado em consumidor, até mesmo de serviços sociais que são agora, abraçados pela
lógica de mercado, parece desnecessária a figura do intelectual.

O recuo da cidadania e a despolitização produzem a substituição do


intelectual engajado pela figura do especialista competente, cujo suposto
saber lhe confere o poder para, em todas as esferas da vida social, dizer aos
demais o que se deve pensar, sentir, fazer e esperar. A crítica do existente é
silenciada pela proliferação ideológica competente dos receituários para bem
viver. (CHAUÍ, 2006, p. 30)

Neste sentido, mudou o modo de inserção de pensadores e técnicos na sociedade. O


saber e a tecnologia, no modo de produção capitalista contemporâneo, não se configuram
mais como meros elementos de suporte do capital, mas se converteram em agentes diretos da
acumulação capitalista. Vivemos a “sociedade do conhecimento”, mas nela o que se observa é
o uso competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos processos
produtivos. Neste cenário, onde a lógica de mercado para ter dominado o conhecimento, que
funções e que participação se espera do “intelectual”, no sentido gramsciano?

O conhecimento contemporâneo se caracteriza pelo crescimento acelerado e


pela tendência a uma rápida obsolescência. Neste contexto, como falar em
autonomia racional? Se as artes já haviam sido devoradas pela indústria
cultural, agora são as ciências e as técnicas que se encontram submetidas à
lógica empresarial. Não só a pesquisa se transformou em survey e posse de
instrumentos para intervir e controlar alguma coisa, mas também depende
diretamente dos investimentos empresariais, os quais são determinados pelo
jogo estratégico da competição no mercado, de maneira que os
pesquisadores são mantidos e se firmam se forem capazes de propor
obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos
problemas em novíssimos microproblemas, sobre os quais o controle parece
ser cada vez menor. Os produtores de conhecimento e tecnologias absorvem
a lógica da competição empresarial e dão a ela sua adesão, negando,
portanto, a autonomia racional, que dava autonomia à intervenção pública
crítica dos intelectuais. (IBIDEM, p. 32)

Como podemos observar, a noção de intelectual e a função atribuída a esta camada por
Gramsci ao longo de toda a sua produção, se fazem cada vez mais necessárias e urgentes. O
intelectual que “educa e organiza”, sobretudo a partir de um projeto de classe, ou seja, o
intelectual orgânico, reforça neste cenário a sua importância, no sentido de potencializar o
movimento das classes em luta e de problematizar criticamente este aparato ideológico
burguês. Os “tempos pós-modernos” necessitam, cada vez mais, do intelectual enquanto
impulsionador de uma “verdadeira revolução de idéias”, capaz de alimentar os elementos de
195

crítica e de resistência que, embora dominados, não se encontram completamente ausentes de


nossa sociedade.
Assim, estes intelectuais, inseridos numa orientação nacional-popular, devem manter
sua função cultural em seu sentido mais amplo, ou seja, de um movimento de conhecimento e
de auto-conhecimento crítico capaz de garantir ao conjunto das classes subalternas, ao mesmo
tempo, a compreensão de sua inserção na sociedade “globalizada” e os caminhos pelos quais
ela pode ser superada. Coloca-se, dentre outras, a questão da linguagem, como um desafio
para projetos que se pretendam alternativos ao que hoje se apresenta como hegemônico. Ao
falarmos sobre linguagem, lembramos a formulação gramsciana, onde ela se constrói como
fato histórico, através da qual intelectuais e “povo-nação” se compreendam para lutar por uma
nova cultura. Coloca-se também a necessidade de comunicação e compreensão de
experiências diversas, ligadas ao cotidiano das classes trabalhadoras, e de novas associações
de cultura, como as que Gramsci pensara em seu período pré-cárcere.
Retomar a perspectiva nacional-popular se afirma, então, como uma tarefa intelectual,
principalmente no sentido de, numa proposta contra-hegemônica, reatualizar a tradição
marxista, retomando seus elementos de continuidade e, ao mesmo tempo, problematizando-a
diante dos novos desafios socioeconômicos e culturais da contemporaneidade.

Ser gramsciano hoje implica, entre outras coisas, reconhecer que os


intelectuais orgânicos do presente se defrontam com novas realidades e,
portanto, que surgem novos conteúdos em sua união e aliança com as forças
subalternas, como parte do necessário processo conjunto de esclarecimento,
amadurecimento da consciência, responsabilidade internacionalista e ação
autônoma e concertada. É por meio desse esforço que os subalternos chegam
a fazer parte do sujeito histórico, ou seja, do sujeito empenhado na
transformação radical do sistema. (MONAL, 2003, p. 198-9)

Na necessária presença dos intelectuais orgânicos na contemporaneidade, se afirma a


orientação gramsciana do “pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”43, onde a
segunda não é suficiente para sustentar, sobretudo nos dias atuais, uma nova proposta
revolucionária. Exige-se uma reciprocidade dos dois elementos, onde a renovação esteja
dialeticamente combinada com o realismo, que os intelectuais devem ser capazes de construir.
Nas formulações de LESTER (2003, p. 161)

43
Literalmente, a formulação do “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” é de Romain
Rolland, embora tenha ganhado, com Gramsci, a visibilidade que hoje conhecemos.
196

(...) em nenhum lugar as próprias massas estão tão pessimistas quanto os


intelectuais. Mas aquilo de que mais precisam, e que buscam
desesperadamente, é um ponto de referência e um centro em torno do qual
convergirem. Trata-se de algo que os intelectuais podem lhes dar e o
fracasso nesta tarefa seria a pior de todas as traições. Um sentimento de
otimismo tinha de ser mantido vivo, enquanto prosseguia a busca de um
terreno mais fértil, no qual se pudessem lançar suas sementes.

Este seria, em nossa opinião, o primeiro desafio contemporâneo de uma perspectiva


nacional-popular, a necessidade de uma verdadeira unidade entre o conhecimento, a
compreensão e o sentimento. Este desafio, evidentemente, não se constrói isoladamente.

3.3.2 – O nacional e o global: oposição ou construção dialética?


O centro das discussões gramscianas sobre a perspectiva nacional-popular está,
indubitavelmente, no seu debate em torno da importância do elemento nacional na construção
de um projeto alternativo à sociedade capitalista. Se, num primeiro momento, poderíamos
pensar que esta preocupação de Gramsci com o nacional se dá por sua inserção sócio-histórica
da “era do Estado-nação” e nas particularidades da realidade italiana, podemos observar que
está é uma conclusão aparente, pois ainda hoje o nacional se apresenta como questão-chave
do pensamento social contemporâneo e como desafio para a construção de propostas
alternativas.
Desde o início, é preciso lembrarmos que Gramsci é um pensador organicamente
internacionalista, mas de um internacionalismo real, que só o comunismo poderia garantir,
através de um engajamento constitutivo entre nação e povo. Em suas formulações, nacional e
internacional compõem sempre um todo dialético, onde o primeiro é o ponto de partida, o
espaço das manifestações mais imediatas das contradições e dos embates vivenciados pelas
classes sociais em luta e que, portanto, não pode ser, de forma nenhuma desprezado. O
segundo, por outro lado, é o espaço da determinação e da intervenção revolucionárias, é o
horizonte ao qual devem almejar os diferentes projetos societários na luta hegemônica.
Não há, portanto, qualquer possibilidade de se separar, ou mesmo de negar qualquer
um destes elementos, sob pena de perdermos a riqueza histórica da dialética entre
particularidade e universalidade, pois as “histórias particulares vivem somente no quadro da
história mundial”44. A partir das análises feitas por BARATTA (2003, p. 15), podemos
perceber que Gramsci é enfático na “afirmação do status de nação como pressuposto para a

44
É interessante observarmos que Gramsci sempre menciona, como exemplos de uma literatura
nacional-popular, obras de Shakespeare, Goethe, Tolstoi, dentre outros. Em outras palavras, o que
caracterizaria esta literatura não é a nacionalidade dos autores, mas a realização orgânica e
verdadeira da relação entre intelectuais, povo e nação.
197

plena participação de um povo ou de uma cultura no „quadro da história mundial‟”. O


nacional-popular é sempre uma combinação entre consciência nacional, internacionalismo e
perspectiva de classe, e é neste sentido que deve impulsionar as mais diversas formas de
manifestação da cultura. Diante do avanço capitalista contemporâneo, conforme discutimos
anteriormente, o avassalador desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte não
nos permite pensar mais em alternativas societárias que se construam no espaço nacional de
forma isolada.
Parece-nos que é este sentido e esta significação da “questão nacional” que precisa ser
recuperada pelo pensamento social crítico na contemporaneidade, com a finalidade de deixar
claro o conteúdo ideológico da anunciada “sociedade global”. Recuperar o nacional neste
“mundo globalizado” significa conhecer suas especificidades, seus dilemas e suas
potencialidades, não para se limitar a eles, mas para, a partir deles, compreender a inserção no
cenário globalizado, entendendo a correlação de forças que se desenha neste contexto
contemporâneo. Em outras palavras, uma perspectiva nacional-popular se sustenta hoje a
partir da capacidade de se garantir, nas mais diversas realidades nacionais, o conhecimento e a
crítica do processo de mundialização do capital em curso, bem como de seus efeitos
econômicos, políticos e sociais, nas dimensões nacional e internacional.
Pelo contrário, no discurso hegemônico, sempre que se chama atenção para a questão
nacional e popular, existe uma tendência a identificar estes dois elementos com
regionalismos, nacionalismos e independentismos, em uma visão restrita desta dualidade. Em
outras palavras, existe uma falta de identidade entre povo e nação e são sempre valorizados os
elementos que tendem a fortalecer esta dicotomia. O resultado deste imediatismo é que se
acentuam as diferenças nacionais e se particulariza o elemento popular, cortando na raiz a
dialética relação, proposta por Gramsci, entre estes dois elementos.

É expressiva a analogia que Gramsci estabelece, neste caso, entre linguagens


científicas e culturas nacionais. Ele argumenta que, da mesma maneira que
dois cientistas formados no terreno de uma mesma cultura fundamental
acreditam sustentar “verdades” distintas somente porque empregam
linguagens diferentes ao expor suas idéias, assim também duas culturas
nacionais, que são expressão de civilizações profundamente parecidas,
acreditam ser distintas e se apresentam como opostas e até antagônicas
apenas porque empregam linguagens de tradição distinta. (BUEY, 2003, p.
32-33)

Neste sentido, podemos observar que um dos grandes obstáculos para a construção de
uma concepção de mundo “alternativamente globalizada” hoje é esta dificuldade de se
198

trabalhar com a identidade e a diferenciação de uma forma dialética. Na análise desta questão
nacional, vale lembrar a formulação gramsciana de que

Descobrir a identidade real sob a aparente diferenciação e contradição, e


descobrir a substancial diversidade sob a aparente identidade, eis o mais
delicado, incompreendido e, não obstante, essencial dom do crítico das
idéias e do historiador do desenvolvimento histórico. (GRAMSCI, 2000, p.
206)

Neste sentido, a cultura apresenta uma potencialidade indiscutível, naqueles três níveis
de compreensão que construímos no primeiro capítulo do trabalho. Enquanto “modo de vida
global”, a cultura deixa manifesto o conjunto de valores, tradições, conceitos e representações
que, histórica e socialmente determinados, dão a dimensão do que seja uma “cultura nacional”
e, ao mesmo tempo, situam esta cultura num plano mais amplo, enquanto parte constitutiva de
uma cultura mundial marcada por relações de dominação e de consenso.
Assim também estão caracterizadas as manifestações artísticas e intelectuais, que
expressam estas relações e, portanto, são envolvidas por elementos desta identidade e desta
diferenciação. Estas manifestações, quando orientadas por uma lógica nacional-popular, têm a
potencialidade de promover o debate, de tornar evidente as relações de dominação capitalista
nas quais estamos envolvidos e de articular a experiência nacional e a consciência da
necessidade internacionalista, de expressar o próprio lugar e, ao mesmo tempo, o mundo em
seu conjunto.
Neste momento, é importante lembrarmos também que, para Gramsci, as relações
hegemônicas não ocorrem somente em nível nacional, mas também internacional. É neste
sentido que ele constrói sua idéia de nação hegemônica, que tem, entre seus elementos
constitutivos enquanto potência internacional, o elemento ideológico, ou cultural em seu
sentido mais pleno, que tende a minimizar o uso do poder coercitivo, fortalecendo e dando
novas determinações ao domínio, também cultural e ideológico. Em suas próprias palavras,

O modo através do qual se exprime a condição de grande potência é dado


pela possibilidade de imprimir à atividade estatal uma direção autônoma, que
influa e repercuta sobre os outros Estados: a grande potência é potência
hegemônica, líder e guia de um sistema de alianças e de pactos com maior
ou menos extensão. (...) Um elemento “imponderável” é a posição
“ideológica” que um país ocupa no mundo em cada momento determinado,
enquanto considerado representante das forças progressistas da história. (...)
Dispor de todos os elementos que, nos limites do previsível, dão segurança
de vitória significa dispor de um potencial de pressão diplomática de grande
potência, isto é, significa obter uma parte dos resultados de uma guerra
vitoriosa sem necessidade de combater. (GRAMSCI, 2000, p. 55)
199

A nação hegemônica (ou, as nações hegemônicas), nos dias de hoje, tem, portanto, a
necessidade de criar uma “cultura da globalização”, ou seja, um aparato cultural,
principalmente no campo das artes e das manifestações intelectuais, que dê “vida” e, ao
mesmo tempo, justifique a lógica da globalização em suas dimensões econômica, política e
social. A produção de Gramsci nos capacita a acentuar, assim, o papel ideológico da
globalização, ou seja, a necessidade de elementos culturais que afirmem a hegemonia do
grande capital nos dias de hoje. O capital mundializado retira suas forças, também, dos seus
poderes e mecanismos de persuasão. Neste cenário, uma perspectiva “nacional-popular”,
criticamente recolocada, tem por proposta garantir o conhecimento deste processo como um
momento de renovação da lógica imperialista, destacando a ênfase contemporânea às
estratégias de conquista de hegemonia, e buscar, nas dimensões nacional e supranacional, o
caminho para, capacitando, também culturalmente, o conjunto das classes trabalhadoras,
buscar reais alternativas de superação desta nova ordem do capital. Este nos parece ser um
importante exercício a ser levado adiante pelas forças contra-hegemônicas em nossa
sociedade, em especial por intelectuais coletivos, tais como os partidos políticos.

3.3.3 – A análise do “elemento popular” a partir de uma dimensão classista: o desafio


de reencontro com as “classes trabalhadoras”
Um terceiro desafio na tentativa de recuperar, no cenário contemporâneo, a
perspectiva nacional-popular diz respeito, justamente, ao segundo termo que compõe esta
totalidade. Em outras palavras, o que Gramsci entende, ao longo de toda a sua produção, por
“elemento popular”? Estaríamos diante de um abandono, por parte deste autor, de uma
perspectiva de classe, onde sua adesão sempre se referiu à classe trabalhadora?
MONAL (2003) afirma que Gramsci, ao longo dos Cadernos do Cárcere, vai
gradativamente abandonando o termo “classes trabalhadoras”, ou “classes subalternas” e
substituindo-o por “grupos subalternos”. Na opinião da autora, isso representa mais que uma
opção lingüística. Significa que Gramsci vai se dando conta, no cárcere, de que as classes
trabalhadoras estariam passando por um complexo processo de fragmentação, dispersão e
heterogeneidade que daria origem a uma nova categoria, a de grupos, os quais não se
compõem, necessariamente, enquanto classes sociais fundamentais ao modo de produção
capitalista. Assim, segundo esta autora esta “categoria” grupos subalternos seria de grande
significação nos dias atuais para pensarmos a dinamicidade e a multiplicidade de espaços
organizativos, que dão vida às diversas sociedades civis em todo o mundo.
200

Discordando, a princípio, desta formulação, acreditamos que ela representa uma leitura
muito imediatista da obra de Gramsci. A utilização de termos “alternativos” nesta produção,
tais como “grupos subalternos”, nos parece fruto da censura e da autocensura a que Gramsci
esteve submetido, e não uma diferenciação teórico-conceitual significativa. A análise do
conjunto desta produção nos faz afirmar que Gramsci nunca abandonou, ou mesmo
relativizou, a perspectiva de classe que o orientava desde seus escritos políticos, quando a
militância nos partidos socialista e comunista da Itália o aproximou definitivamente do
cotidiano da classe operária italiana e da perspectiva marxista.
Esta análise feita por MONAL (2003) nos parece, entretanto, justificada por uma
configuração contemporânea. Durante as décadas de 80 e 90, ou seja, no momento de auge da
redefinição do processo contemporâneo de acumulação de capital, ganharam força as análises
teóricas que passaram a compreender o “povo” e a “classe trabalhadora” como agrupamentos
complexos de múltiplos atores que se entrecruzam e se renovam continuamente. Da mesma
forma, cresceu, neste momento, a proposta de análise, nos marcos do que se convencionou
chamar de “pós-modernidade”, de que estaríamos vivenciando uma verdadeira disputa de
diferentes formas de subjetividades. Seríamos, assim, constituídos por uma rede de sujeitos
com estas diferentes subjetividades, as quais correspondem às várias formas de poder que
circulam na sociedade. Desta forma, dependendo das múltiplas circunstâncias pessoais e
coletivas, uma de nossas subjetividades poderia se destacar, tais como etnia, gênero, classe,
cultura, etc. Assim, esta subjetividade é que daria o tom, naquela circunstância específica, das
perspectivas de transformação social que se apresentam para o sujeito. Assim, este seria, ao
mesmo tempo, livre, porque não estaria orientado por um único elemento de sua vida social, e
determinado, porque estas múltiplas subjetividades o colocariam, a cada momento, dentro de
comportamentos e valores específicos.
Parece-nos claro que a proposta pós-moderna tem, assim, uma explícita intenção
substitutiva. Ao privilegiar tópicos como a sexualidade, o corpo, o gênero, a etnicidade, entre
outros, a lógica pós-moderna coloca uma nova pauta política, onde antes vigoravam questões
como classe, Estado, ideologia, revolução, modos de produção, etc. As questões mais
imediatas para a compreensão do cotidiano vêm à tona, são politizadas e mobilizam a
população em torno de novos e diversificados movimentos sociais. Enquanto isso, as
chamadas “formas clássicas” são desqualificadas e negadas, diante de um processo evidente
de naturalização do capitalismo. Assim, o que vigora hoje seria um “paradigma da diferença”,
quando uma grande variedade de conflitos parece substituir a luta de classes.
201

Diante deste cenário “pós-moderno”, percebemos a recuperação de uma perspectiva


individualista e aclassista, onde a identidade humana não se coloca como algo dado, mas
como uma “tarefa”, uma possibilidade, diante das inúmeras subjetividades que se encontram
em disputa no cenário político. A sociologia contemporânea estaria marcada pela lógica do
fim da sociedade dividida em “burgueses e proletários” e nela não existe a possibilidade de
uma vontade coletiva que conduza e construa uma ação coletiva daqueles que vendem sua
força de trabalho.
Esta não nos parece, de forma alguma, a posição gramsciana. No que se refere
especificamente à sua orientação nacional-popular, acreditamos que recuperá-la significa,
necessariamente, repensar a sua noção acerca das classes subalternas, retomando a
centralidade histórica das classes trabalhadoras em toda a sua complexidade. Acreditamos,
sim, que a constituição desta classe hoje coloca novos desafios que devem envolver a
problematização da questão territorial e os novos instrumentos de luta política, mas nunca a
sua centralidade.
Para Gramsci, indubitavelmente, “popular” está diretamente relacionado à constituição
das “classes trabalhadoras”. A hegemonia, categoria central para o pensamento gramsciano,
nasce “no chão da fábrica”, ou seja, tem suas raízes na esfera da produção, e só a partir da
definição das classes sociais na dinâmica desta esfera é que se pode falar de uma dimensão
societária mais ampla. Em Americanismo e Fordismo, por exemplo, Gramsci delimita com
clareza o fato de que o capital se constrói, enquanto relação social, numa perspectiva de
totalidade, ou seja, ao mesmo tempo, ele produz mercadorias, produz suas classes em luta e
produz também formas de consciência moral que são determinadas por esta estrutura de
classe. O plano ideológico-cultural é, portanto, parte constitutiva das relações produtivas
colocadas em movimento pelas formas históricas que o capitalismo vem apresentando.
Desta forma, recuperar a noção de nacional-popular hoje significa recuperar a
potencialidade das classes trabalhadoras contemporâneas para a conquista de uma nova
hegemonia capaz de, conforme afirma SIMIONATTO (2003), recompor um novo modo de
pensar e de conhecer o mundo. Supõe a capacidade destas classes, apesar de toda sua
heterogeneidade, para mudar não só as relações de dominação e de exploração na esfera
econômica, mas também a formação de novos padrões culturais. Significa pensar, enfim, os
caminhos para que tais classes se tornem dirigentes, sejam capazes de “tornar-se Estado”,
costurando interesses e perspectivas altamente diferenciadas da sociedade capitalista
contemporânea em torno de um novo “sujeito histórico”, coletivo, formado pelas classes
exploradas em seu diversificado conjunto.
202

Os “novos dirigentes”, como se pode deduzir da visão de Gramsci, são


considerados em sua singularidade, mas não coagulados em seu
individualismo; são livres, mas não anárquicos e pulverizados, são
organizados em torno de um projeto de democracia popular, não
“socialmente entrosados” para auferir interesses corporativos, são formados
e não apenas informados, transformadores e não apenas “eficientes”,
anseiam pela arte e não por modismos, são populares e não populistas,
solidários e não assistencialistas. (SEMERARO, 2003, p. 272).

Tal desafio recoloca, em outra dimensão, as tarefas de natureza cultural que o


movimento de organização das classes trabalhadoras precisa recuperar nos dias de hoje. Para
isso, acreditamos que uma nova compreensão de cultura se faz extremamente necessária.

3.3.4 – Por uma concepção ampla do termo cultura


Para que possamos levar adiante este debate acerca dos desafios contemporâneos para
a perspectiva nacional-popular, é preciso reforçar a idéia de que, em Gramsci, existe uma
compreensão mais abrangente do termo cultura, que ultrapassa, ao mesmo tempo, uma
abordagem meramente artística e intelectual do termo e outra meramente antropológica, onde
cultura seja entendida apenas como um elemento que reforça e prega a convivência e a
tolerância com as “diferenças”.
Cultura em Gramsci está relacionada, como vimos, a uma consciência plenamente
desenvolvida, um modo de pensar e de compreender a inserção de determinada classe, e do
projeto por ela incorporado, na dinâmica da vida social. Nosso autor reforça também que esta
consciência precisa se superar, tornando-se a “base de ações vitais”, que se materializa na
sociedade através de uma “reforma intelectual e moral”. Lembrando as formulações presentes
em Socialismo e Cultura, ainda em sua fase “tendencialmente crociana”, Gramsci já construía
a proposta de que cultura é a obtenção do autoconhecimento e da autodisciplina, é o espaço de
reflexão e de consciência superior, é a oportunidade de conhecer seu próprio valor histórico e
sua “própria função na vida” social. Devemos destacar, nesta compreensão de cultura, a idéia
de que é através dela que as classes subalternas conhecem “os outros” e que, ao mesmo
tempo, se forma enquanto sujeito de uma alternativa a este processo.
A própria compreensão de nacional-popular se insere nesta concepção mais ampla de
cultura em Gramsci. Tal perspectiva não aponta meramente para uma posição artística ou
intelectual, mas é o horizonte de uma nova consciência, é um objetivo político e político-
cultural absolutamente amplo do conjunto das demandas das classes trabalhadoras. Em seu
desenvolvimento, ela envolve também questões econômicas, políticas e sociais. O que
203

teríamos de nacional-popular na esfera das artes e da vida intelectual seria, portanto, o


resultado de uma perspectiva mais ampla, a orientar e impulsionar diferentes movimentos na
sociedade.
Por isso, cultura e educação são, em Gramsci, termos absolutamente dependentes, pois
remetem a um trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de idéias novas que
acontece como momento constitutivo de um processo revolucionário, e não anterior ou
posterior a ele. Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci supera definitivamente sua fase idealista
na abordagem sobre a cultura, e o faz a partir do momento em que reconhece a luta cultural
como parte de uma luta pela hegemonia, que se dá no conjunto da sociedade, a partir de um
ponto de vista classista. É a hegemonia que dá direção a uma sociedade, e ela prevê um
momento ideológico e persuasivo que Gramsci não hesitaria em chamar de “cultural”.

A civilização burguesa moderna, na visão de Gramsci, se perpetua através de


operações de hegemonia – isto é, através das atividades e iniciativas de uma
ampla rede de organizações culturais, movimentos políticos e instituições
educacionais que difundem sua concepção do mundo e seus valores
capilarmente pela sociedade. Mas – deve-se logo acrescentar – Gramsci não
compreende as operações hegemônicas como unidirecionais; elas não
consistem somente na transmissão e disseminação de idéias e opiniões dos
grupos dominantes para os estratos subordinados. A atividade cultural, no
sentido mais amplo do termo, também estimula novas idéias nos setores
privilegiados da sociedade, permite-lhes enfrentar novos problemas e
permanecerem sintonizados com as demandas e aspirações de todos os
setores da sociedade; em poucas palavras, ela reforça a capacidade dos
grupos dominantes para olhar além do próprio interesse corporativo e
estreito e, portanto, ampliar sua ação e influência sobre o resto da sociedade.
A hegemonia, tal como Gramsci a concebe, é uma relação educacional.
(BUTTIGIEG, 2003, p. 46-47, grifos nossos)

Para este nosso autor, a revolução é um processo constante e permanente, que


comporta um importante momento de renovação cultural. A cultura é este elemento que,
paralelamente aos demais, dá persistência à revolução enquanto esfera da consciência e da
existência com determinados valores, socialmente construídos e referendados. Por isso, a
revolução é um processo também longo e incerto, pois prevê “momentos de destruição”, não
só de coisas materiais, mas de “relações invisíveis, impalpáveis”, que se constroem e se
afirmam em nosso cotidiano. Para que ela se concretize, é preciso contar com uma coesão e
uma consciência coletiva que se constituem em pressupostos de um novo poder hegemônico.
Neste sentido, nacional-popular é uma nova “vontade coletiva”, uma nova consciência
de “necessidades objetivas históricas”. Ela só pode se vincular, nos dias atuais, a um novo
projeto de hegemonia, com raízes nacionais e articulações internacionais, fundado naquela
204

interação dialética de que nos fala BUTTIGIEG (2003), entre o “saber” de uma nova
intelectualidade e o “sentir” do “povo”, não enquanto elemento abstrato e a-histórico, mas
como materialidade construída a partir das relações sociais nas quais estão envolvidas as
classes trabalhadoras contemporâneas em toda a sua complexidade e heterogeneidade, como
nos propunha ANTUNES (2000).
Desta forma, se o nacional-popular é um projeto alternativo das classes trabalhadoras,
ele pode se afirmar a partir do que SEMERARO (2003) chamou de outras “armas” para a luta
hegemônica, armas estas que devem ser “entregues” e, ao mesmo tempo, construídas pelas
classes subalternas em luta:

(...) distanciamento crítico da realidade, formação da sua autonomia pela


ação política, representação de si pela criação de uma cultura própria,
participação ativa na construção de um projeto popular de democracia
articulado com forças nacionais e internacionais. Sem socializar o poder e
criar uma nova cultura em que os excluídos tenham lugar na construção do
conhecimento, na produção e na distribuição das riquezas planetárias, não é
mais possível falar plenamente em democracia. (2003, p. 262)

Acreditamos que é esta perspectiva mais ampla de “cultura” que está absolutamente
ausente do debate contemporâneo, e esta ausência acaba por permitir a vitória ideológica de
propostas de “globalização da cultura” pelas mãos do grande capital mundializado. Mais uma
vez, também neste aspecto, ler Gramsci tem se mostrado como um importante exercício para
não só entender, mas também intervir e transformar a realidade.

3.3.5 – Cultura e sociedade civil: o espaço privilegiado para a construção de uma


perspectiva nacional-popular
Enfim, teríamos a acrescentar ainda que todo este processo não se faz sem um “local”
específico de luta. É aqui que acreditamos na necessidade de se recuperar o debate acerca da
sociedade civil e, mais propriamente, da noção de “Estado ampliado” em Gramsci.
Como já tivemos a oportunidade de observar, hegemonia é um tema freqüente nos
Cadernos, mas que não se apresenta completamente construído desde um primeiro momento.
Ele vai sendo gradualmente enriquecido e trabalhado por Gramsci, em conexão com seu
tratamento de temas e fenômenos cada vez mais diversos. Podemos ponderar que a
maturidade gramsciana acerca da hegemonia acontece a partir do reconhecimento da esfera da
sociedade civil como o espaço da luta política, do confronto entre diferentes e plurais projetos
societários, da superação do momento econômico-corporativo pelas diferentes classes sociais
205

em luta na sociedade. A sociedade civil deixa evidente, em sua constituição, a validade


histórica da guerra de posição como estratégia revolucionária, ou seja, de uma revolução
prolongada no tempo, com várias frentes simultâneas, sujeitas a avanços e retrocessos
parciais. Neste caminho, a revolução se coloca como um processo de laboriosa gestação, que
inclui, dentre outras, uma dimensão cultural.
Assim, é na sociedade civil que se constrói, segundo Gramsci, a expectativa e a
possibilidade de uma verdadeira “reforma cultural e moral” ou do que preferimos chamar de
uma revolução cultural. Na trama pluralista e dinâmica desta esfera, diferentes projetos,
inclusive o das classes trabalhadoras, podem investir na geração de várias formas de
consciência coletiva e de consenso, viabilizando uma organização ético-cultural da vida
social. Naquele sentido da hegemonia, podemos afirmar que a sociedade viabiliza a produção,
não só material, mas também cultural de uma classe hegemônica.
Por esta análise, a sociedade civil se afirma como a esfera do conflito, do confronto,
do embate político que demonstram a dimensão cultural da luta política, e vice- versa. A
classe dominante constrói, na sociedade civil, estruturas e instituições (escolas, associações
culturais, dentre outras) que tendem a garantir suas reservas políticas e ideológicas, fazendo
do trinômio economia, política e cultura um todo orgânico e complexo, onde estes elementos
se determinam mutuamente. É daí que o Estado, na versão ampliada de que nos fala Gramsci,
retira sua força material e moral, quando consegue assimilar a atividade e o enfrentamento
cultural e ideológico e consegue transformá-los em base de legitimação no interior da
sociedade.
Se compreendermos a sociedade civil como este espaço dinâmico para a construção de
uma perspectiva nacional-popular, percebemos que esta última encontra novos e complexos
desafios no cenário contemporâneo. Neste momento, o que parece evidente é a tentativa das
classes dominantes de promover a neutralidade e o enfraquecimento político-ideológico da
sociedade civil, retirando permanentemente as classes subalternas da esfera pública. Neste
quadro, a sociedade civil é esvaziada de seu potencial pluralista e conflituoso, e transformada
em um todo acrítico e apolítico, que existe apenas para reproduzir o discurso e a prática
dominantes. É a primazia da “pequena política”, poderíamos dizer, e de tudo de imediatismo
que ela pode construir.

A dispersão, a falta de articulação com outros espaços que não os do próprio


setor ou “tema”, o isolamento e a inorganicidade – coisas que muitos saúdam
em nome da diferença ou da “tolerância” – só podem levar à conservação da
sociedade existente. Os atuais pensadores da dominação deixam com prazer
206

às organizações das classes subalternas, o terreno da “pequena política”, no


qual apenas se disputam questões “parciais e cotidianas”, para disfarçar
assim a renúncia à “grande política”, que se abandona com exclusividade às
classes dominantes. As organizações populares precisam reagir em face das
fortes pressões em favor de sua “domesticação”, de seu enquadramento nos
limites de uma “governabilidade” entendida basicamente como um sistema
em que as classes subalternas podem exercer sua liberdade de organização e
mobilização, mas desde que se abstenham de tudo aquilo que possa perturbar
as relações de poder existentes. (CAMPIONE, 2003, p. 61)

A sociedade globalizada seria, a partir desta despolitização, o cenário de avanço de


uma proposta pós-moderna de mini-racionalidades. O capitalismo, enquanto modo de
produção “natural” busca subordinar ao seu domínio toda a realidade, apresentando-se como
um sujeito abstrato, não imediatamente perceptível, num mundo superficial e harmonioso.
Diante da fragmentação resultante do desenvolvimento do projeto de modernidade no interior
da sociedade capitalista, a saída pós-moderna seria partir para racionalidades e necessidades
locais múltiplas, construídas e enfrentadas nos espaços micro, sem uma necessária relação de
totalidade.

Desorganizar, fragmentar, reforçar o privado, “seduzir” pela crescente oferta


de bens de consumo são caminhos de busca de passividade das massas, em
nada coincidentes com a geração do consenso “ativo e organizado” a que faz
referência Gramsci. Trata-se muito mais de um consentimento à própria
despolitização, persuadido daquilo que Therborn chama de “sentimento de
inevitabilidade” (IBIDEM, p. 58-59)

Neste contexto, NOGUEIRA (2003) nos aponta uma série de questões que precisam
ser abordadas criticamente a fim de que possamos fortalecer o desafio de construir uma
“vontade coletiva nacional-popular”. Dentre elas poderíamos citar:
a) A investida neoliberal, com sua proposta conservadora de redução do Estado,
sobretudo em suas antigas funções, tem fortalecido o que este autor denominou
de uma “sociedade civil liberal”, com novas feições e novos encargos.
b) Com o enfraquecimento da dimensão e das instituições públicas, assim como
da capacidade de influenciar decisivamente nas grandes questões da sociedade,
esta esfera vem, a cada dia, substituindo o Estado em suas funções e
enfraquecendo-se em termos de projetos societários, compondo-se cada vez
mais como uma estrutura de mera reprodução e legitimação do poder
dominante.
207

c) Percebemos um duplo movimento de expansão e fragmentação da sociedade


civil, pois apesar de inúmeras ações e movimentos, próprios de um rico
processo de pluralização, ela se esvazia de macro projetos societários,
consistentes e capazes de propor alternativas reais ao conjunto das classes
sociais em luta pela hegemonia.
d) Na ausência destes projetos, o que ganha força é uma fragilidade das bases de
contestação, com movimentos antes reivindicativos e politicamente definidos
partindo para “caminhos pós-modernos”, nos quais ficam claros o bloqueio da
democracia e o incentivo à improdutividade dos governos.
Diante desta investida neoconservadora nas sociedades contemporâneas, é preciso
recuperar a perspectiva gramsciana de que a sociedade civil, apesar de ser o espaço de
consenso e de hegemonia, não é o lugar de uma “harmonia” ou de um apoliticismo que tende
a eliminar o enfrentamento entre as diversas classes sociais em luta. Faz-se urgente, neste
contexto, valer-se da cultura como um elemento de redefinição de projetos societários, os
quais devem se contrapor, na trama pluralista da sociedade civil, em torno das questões da
“grande política”, tão ausentes e, ao mesmo tempo, tão necessárias para as verdadeiras
disputas que tomam lugar em nossa sociedade.
Em um cenário como este, afirmamos, mais uma vez, que a proposta de “recuperar o
nacional sob uma perspectiva popular”, pelos caminhos que anteriormente propusemos,
significa, claramente, uma opção contra-hegemônica, tarefa “nacional e internacional”, de
movimentos realmente convencidos da efemeridade e da limitação histórica da sociedade
construída sobre o sistema do capital.
208

Considerações finais

Como tivemos a oportunidade de perceber, o processo de globalização que estamos


vivenciando é amplo e diversificado, atingindo as mais diferentes esferas da vida social.
Entretanto, apesar desta diversidade, parece-nos inquestionável o caráter excludente e
desigual deste processo em todas as suas manifestações. Os resultados econômicos, políticos e
sociais de sua dinâmica acabaram por reforçar e por agravar a diferença e a desigualdade entre
as nações, intensificando a parcela de excluídos não só do mercado de trabalho e da riqueza
social, mas também das decisões políticas e dos principais espaços de manifestação e de
participação coletivas da sociedade civil. No mundo globalizado da anunciada “vitória do
capitalismo”, do “fim da história”, da soberania do sistema financeiro, do “desaparecimento
dos grandes sujeitos sociais”, da incapacidade interpretativa das antigas metanarrativas, as
eufóricas promessas de uma humanidade mais próxima, mais solidária e mais desenvolvida
encontram-se cada vez mais esvaziadas de uma objetividade histórica.
Por outro lado, o contexto construído por tal globalização tem sido o movimento
propulsor de um novo questionamento sobre a realidade mundial. Sobretudo neste início de
século, quando os efeitos perversos deste processo ficaram evidentes, uma orientação contra-
hegemônica desta globalização dá sinais de que começou a ser gestada, desencadeando, como
propõe GOMÉZ (2000), processos de auto-identificação e de solidariedades coletivas
subnacionais e supranacionais. Começa a ser pensada, assim, uma “outra globalização”,
orientada no sentido de buscar interações capazes de socializar e de democratizar o acesso aos
possíveis benefícios desta “modernidade-mundo”. É no interior deste debate que vemos se
construir e ganhar força a perspectiva de uma “cidadania planetária” ou “cidadania global”.
No entanto, a referência histórica da cidadania e da democracia com o Estado-nação
coloca alguns desafios importantes para esta proposta transnacional. No processo vigente, fica
claro que os Estados nacionais estão cada vez mais debilitados em sua capacidade de
controlar e regular seus próprios assuntos nacionais, sendo que muitas das identidades
tradicionais encontram-se enfraquecidas. Por outro lado, o peso destes mesmos Estados na
condução dos processos democráticos e das lutas pela cidadania ainda é bastante significativo.
Sobretudo nas sociedades onde a construção desta “idéia nacional” ou desta “questão
nacional” ainda é uma etapa inconclusa, como o Brasil, por exemplo, a idéia de organizações
supranacionais que possam conduzir suas lutas democráticas ainda é bastante frágil. Nestas
realidades, fenômenos de localismo e renacionalização, muitas vezes, se sobrepõem ao
209

processo de globalização e se mostram extremamente importantes. Como exemplo, podemos


citar os processos de descentralização e municipalização das políticas sociais no Brasil,
quando, em um cenário de economia globalizada e mercado financeiro, onde as decisões
macroeconômicas são conduzidas pelas grandes agências internacionais de financiamento, os
estados e municípios são chamados a assumir a responsabilidade sobre as políticas sociais,
contando, para isso, com parcos recursos e com pouca influência nos processos de destinação
de recursos para estes instrumentos de institucionalização dos direitos sociais.
Assim, sem querer aderir a um ceticismo com relação a esta globalização “por baixo”,
visualizamos que ainda persiste uma tensão acentuada entre os espaços nacionais, locais e
regionais, por um lado, e o espaço global, por outro. SANTOS (2000, p. 113) é um dos que
recupera esta tensão ao afirmar que

Nas condições atuais, o cidadão do lugar pretende instalar-se também como


cidadão do mundo. A verdade, porém é que o “mundo” não tem como
regular os lugares. Em conseqüência, a expressão cidadão do mundo torna-se
um voto, uma promessa, uma possibilidade distante. Como os atores globais
eficazes são, em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de
existência de um cidadão do mundo é condicionada pelas realidades
nacionais. Na verdade, o cidadão só o é (ou não o é) como cidadão de um
país.

Eis, em nossa opinião, um desafio crescente para a construção de uma suposta


“cidadania planetária”. Como ultrapassar os limites e as fronteiras nacionais, em todos os
aspectos, desde o econômico até o cultural, e direcionar expectativas e demandas para
questões que se colocam acima das nações? Como falar de “direitos humanos supranacionais”
em sociedades como a nossa, onde as condições de desigualdade e de exclusão social são cada
vez mais marcantes? Como propor um ativismo internacional para uma população que sempre
foi silenciada e imobilizada, através de práticas de coerção ou de assistencialismo, e que
historicamente não ocupou seus espaços de participação nem mesmo nos limites da sociedade
civil nacional?
Desta forma, visualizamos a cidadania global como um projeto político de longo
prazo, que desafia e inova a teoria e a prática acerca desta temática. Destacamos sua
importância ao buscar responsabilizar os Estados e o sistema internacional de Estados por
suas ações e omissões, desafiando o domínio desta “globalização pelo alto” e recolocando a
necessidade de valores que redefinam a relação entre os homens no século que se inicia.
É neste sentido que reafirmamos a perspectiva nacional-popular, elaborada por
Gramsci, como a oportunidade de recolocarmos, sobre outras bases, a possibilidade de crítica
210

e de superação do processo de globalização em curso. Entendendo esta perspectiva como


orientada por uma lógica cultural que não é, no entanto, exclusiva, insistimos no fato de que
ela nos capacita para pensar a sociedade como um todo, envolta dialeticamente em relações
nacionais e internacionais, a partir de uma posição classista bem definida, e que tem, no
conjunto das mais diversas relações sociais, seu espaço de realização e de responsabilização.
Assim, a partir de nossas elaborações anteriores, não hesitaríamos em afirmar que nacional-
popular não representa um retrocesso a um “nacionalismo” e a um “populismo” exacerbados e
apolíticos, mas uma verdadeira “tomada de posição”, uma orientação contra-hegemônica que
tem por objetivo capacitar os setores subalternos desta sociedade para novos enfrentamentos
políticos, a partir de novas bases societárias. Com isso, retomamos o projeto da “sociedade
regulada” em Gramsci, onde significativos elementos culturais, em seu sentido mais amplo,
apontam para relações e lutas políticas renovadas, a serem verdadeiramente colocadas nas
sociedades contemporâneas por aqueles que, coletivamente, se afirmam contrários e
alternativos ao sistema de controle do capital.
Esta retomada da perspectiva nacional-popular não se faz, entretanto, sem novos
desafios. Como tivemos a oportunidade de discutir ao longo deste trabalho, a sociedade
capitalista se renova, neste cenário globalizado, construindo também um forte aparato ideo-
cultural, sustentado, principalmente, por uma orientação pós-moderna que, por vários
caminhos, busca negar esta perspectiva de superação de suas contradições. Neste caminho, a
luta se faz em dimensões cada vez mais bem definidas. É preciso termos clareza de que, nos
termos em que é colocada, a pós-modernidade se apresenta muito mais como uma “anti-
modernidade”, onde o que se afirma é que já que não podemos transformar e revolucionar o
quadro que está colocado, é melhor aderirmos e nos conformarmos com ele, contentando-nos
com as pequenas reformas que se apresentam como possíveis.
O nacional-popular hoje se refere, portanto, a diversos movimentos de crítica e de
superação da ordem desta sociedade, que vão desde aqueles mais diretamente relacionados
com a base material, com as relações produtivas em sua dimensão mais restrita, até os grandes
embates culturais e ideológicos, envolvendo artistas e Intelectuais, movimentos sociais,
partidos políticos e tantas outras esferas da sociedade civil que tem o desafio de recolocar, na
agenda política, questões subjugadas pelo sistema do capital, em sua constituição mais
extrema. Aqui se recoloca a cultura como uma dimensão vital da constituição do ser social,
como aquela que nos permite “conhecer e transformar”, como a que nos mostra o tamanho e a
força de uma proposta alternativa ao que hoje se apresenta como hegemônico, “imutável e
211

inquestionável”. Nas palavras de SIMIONATTO (2003: p. 275-276), esta relação é assim


apresentada,

Permeado por crises, o momento presente continua proclamando a aparente


vitória do capitalismo, assentado na supremacia do sistema financeiro, no
espectro do fim da história e das ideologias, no desaparecimento dos grandes
sujeitos sociais, na ênfase exacerbada em comportamentos individualistas,
fundamentalistas e nacionalistas – enfim, a ausência de sonhos e o
“desencantamento utópico” são as marcas indeléveis dos esfumaçados dias
atuais.

É preciso, portanto, a construção e o fortalecimento de um projeto societário que


demonstre os limites desta ordem, que não se restrinja à produção de riquezas em outra lógica,
mas que aponte para a produção de toda uma vida social, com novos padrões de sociabilidade
e novos valores que sejam capazes de redimensionar as expectativas de emancipação humana
tão caras para outros momentos societários. Para esta tarefa, uma proposta nacional-popular
nos parece essencial, necessária e possível.
212

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