Louise Bourgeois e A Fragmentação Fantasmática Do Corpo
Louise Bourgeois e A Fragmentação Fantasmática Do Corpo
Louise Bourgeois e A Fragmentação Fantasmática Do Corpo
“Para mim, a escultura é meu corpo. Meu corpo é minha escultura.”1, afirma
Louise Bourgeois, evidenciando a relação indissociável entre a sua vida e a sua obra. Nas
esculturas que produz, desarticula e deforma o corpo, fazendo de seu ateliê um verdadeiro
laboratório, onde, em suas criações – ou experiências que realiza com o corpo – os padrões
anatômicos são desafiados e subvertidos. Em sua inquietante exploração da anatomia
humana através da arte, o corpo é dissecado, suturado, reordenado, invertido, decapitado
e desmembrado.
por experimentar outros materiais, passando a fazer uso do látex, plástico, borracha,
gesso, bronze e mármore – principalmente o mármore rosa, devido a sua semelhança com
a carne4.
maneira pura e simples no espelho, pois, “mesmo na experiência do espelho, pode surgir
um momento em que a imagem que acreditamos estar contida nele se modifique”.9 Por
isso, o corpo pode se apresentar ao sujeito como estranho, não decodificado.
64
concinnitas | ano 16, volume 01, número 26, julho de 2015
Dito isto, para que o corpo, que é sentido como despedaçado, possa ser
percebido em sua imagem unificada é preciso que um Outro, o Outro da linguagem,
confirme esta imagem. Quando a criança frente ao espelho se volta para o adulto e depois
retorna à imagem refletida “parece pedir a quem a carrega, o grande Outro, que ratifique o
16
valor dessa imagem". Trata-se de uma validação externa e simbólica que possibilita a
primeira percepção de si como um Eu corporal, antecipando no imaginário a unidade de
corpo a partir da identificação com a imagem unificada. Assim, ao reconhecer-se pela
primeira vez na imagem especular, a criança tem uma apreensão global e unificada do seu
corpo.
65
josé maurício teixeira loures | louise bourgeois e a fragmentação fantasmática do corpo
Louise Bourgeois relata que sua grande sorte, a qual deve a sua sobrevivência,
foi ter nascido parecida com o seu pai – argumento que a sua mãe usou para ser perdoada
por ter gerado uma menina. Por isso mesmo lhe foi dado o nome Louise, uma homenagem
ao seu pai, Louis: “Você vê que está escrito Louise, mas na verdade primeiro se lia Louis”20,
diz a artista. Embora posteriormente rejeitada – o que justifica o ressentimento que
expressa pelo pai em diversas entrevistas –, ela fora inicialmente desejada na condição de
cópia de seu pai e, logo, definida por um nome que ratifica este lugar que ocupa no desejo
dos pais.
Neste contexto, o nome próprio, ao provir dos pais, é mais do que uma marca
do desejo do Outro, pois trata-se de uma referência identificatória, que possibilita ao
23
sujeito a sua inscrição no simbólico. Louise Bourgeois é enfática ao afirmar: "Eu não sou
meu pai. Sou definida pelo que não sou". Desta forma, evidencia que, embora dita cópia de
seu pai, conseguiu diferenciar-se.
jubilo infantil pelo reconhecimento da própria imagem. Em cada Célula podemos ver o
horror da fragmentação fantasmática do corpo.
33
Louise Bourgeois, que diz se identificar com tudo o que está em pedaços , nos
mostra o Real do corpo despedaçado, que, como destaca Lacan, pode aparecer nos sonhos
e fantasias, assumindo a forma de um quebra-cabeça, com membros desarticulados com
partes encaixadas desordenadamente, e “troncos cortados em fatias e preenchidos com os
mais díspares enchimentos".34 Em suas esculturas, apesar da frieza e rigidez dos materiais,
há um caráter orgânico em que os limites anatômicos se dissolvem. Neste contexto, suas
criações apontam para uma inconsistência na constituição do Eu e do corpo: uma
identificação fundamentalmente frágil e precária que, marcada por uma instabilidade, está
sempre ameaçada de se romper.
35
Ao afirmar que seu corpo é sua escultura e a sua escultura é o seu corpo ,
Louise Bourgeois nos ensina que a arte assume a função de estrutura-la a partir dos
corpos que esculpe – e com os quais se identifica –, criando, com o seu saber-fazer
artístico, uma espécie de contenção para a angustia de sentir-se inexistente. Deste modo,
considerando a relação entre criação e criador, pode-se dizer que a obra cria o artista, “ela
anuncia a sua existência mais intensamente que a problemática mensagem que pode
36
conter”. O artista é, então, efeito de seu trabalho.
37
Também, Freud preconiza que a arte induz o sujeito a uma “suave narcose”
que “não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das
necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição
real”.38 De fato, Louise Bourgeois define o ato de criar como um sedativo que “alivia um
estado de dor momentânea”.39 Em entrevistas e escritos refere-se a toda sua obra como
um retorno à infância, e considera a criação como uma maneira de apaziguar sua
angustia.40
68
concinnitas | ano 16, volume 01, número 26, julho de 2015
1BOURGEOIS, L., Bernadac, M. L. & Obrist, H. U., Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai –
Escritos e entrevistas 1923- 1997, trad. Álvaro Machado & Luis Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Cosac &
Naify, 2000, p. 228.
2 Idem, Ibidem, p. 249 – 251.
3BOURGEOIS, L., O Retorno do Desejo Proibido Volume 2: Escritos Psicanalíticos. São Paulo: Instituto
Tomie Ohtake, 2001, 281 -286.
4 BOURGEOIS, L., BERNADAC, M. L. & OBRIST, H. U., op. cit., p. 238.
5 Idem, Ibidem, p. 76.
6 Idem, Ibidem.
7 Idem, Ibidem, p. 77-78.
8 Idem, Ibidem, p. 255.
9 LACAN, J. (1962 - 63) O seminário, livro 10: A Angustia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 100.
10 BOURGEOIS, L., BERNADAC, M. L. & OBRIST, H. U., op. cit., p. 220.
11 ROUDINESCO, E. (2011) Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 26 – 27.
12LACAN, J. (1949) "O Estádio do Espelho Como formador da Função do Eu". Em: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p. 97.
13LACAN, J. (1954) “A Tópica do Imaginário”. Em: O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1975, p. 96.
14 LACAN, J. (1949), p. 100.
15 LACAN, J. (1954), p 96.
16 LACAN, J. (1962-1963), p 41.
17 Idem, Ibidem, p. 291.
18 LACAN, J (1961-1962), O seminário, livro 9: A Identificação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 290.
19 DOLTO, F., A Imagem Inconsciente do Corpo. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2008, p. 82.
20 BOURGEOIS, L., BERNADAC, M. L. & OBRIST, H. U., op. cit., p. 258.
21 LACAN, J. (1962-1963), p. 290.
22 Idem, Ibidem, p. 290-291.
23 Idem, Ibidem, p. 281.
24Louise Bourgeois, O Retorno do Desejo Proibido Volume 2: Escritos Psicanalíticos, São Paulo: Instituto
Tomie Ohtake, 2011, p. 61.
25 LACAN, J. (1962-1963), p. 98.
26 Idem, Ibidem, p. 49.
27 SOLLER, C (2006-2007) Seminário de Leitura de Texto - A angústia. São Paulo: Escuta, 2012, p. 42.
28 Idem, Ibidem.
29 LACAN, J. (1962-1963), p. 58-59.
30 LACAN, J. (1961-1962), p. 291.
69
josé maurício teixeira loures | louise bourgeois e a fragmentação fantasmática do corpo
31 Idem, Ibidem.
32 BOURGEOIS, L., BERNADAC, M. L. & OBRIST, H. U., op. cit., p. 260.
33 BOURGEOIS, L., O Retorno do Desejo Proibido Volume 1. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2001, p. 64.
34LACAN, J. (1951), “Algumas Reflexões Sobre o Ego”, Em: Letra Freudiana, Psicanálise e Transmissão, n°1,
tradução de Ana Lucia Paiva. Rio de Janeiro, p. 6.
35 BOURGEOIS, L., BERNADAC, M. L. & OBRIST, H. U., op. cit., p. 228.
36 POMMIER, G., O Desenlace de uma Análise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 195.
37Freud, S. (1929). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud Vol. 21, 1974, p. 100.
38 Idem, Ibidem.
39 BOURGEOIS, L., BERNADAC, M. L. & OBRIST, H. U., op. cit., p. 265.
40 Idem, Ibidem, p. 31.
41 Idem, Ibidem, p. 256.
42 Idem, Ibidem, p. 250.
43 Idem, Ibidem, p. 168.
44 Idem, Ibidem, p. 156
45 Idem, Ibidem, p. 250.
70