Manual de Semantica Primeiro Capitulo
Manual de Semantica Primeiro Capitulo
Manual de Semantica Primeiro Capitulo
A investigação linguística
Semântica é o estudo do significado das línguas. Este livro é uma introdução
à teoria e à prática da Semântica na Linguística moderna. Apesar de não ser uma
introdução a qualquer teoria específica, este livro apoia-se na premissa básica de que
a habilidade linguística do ser humano é baseada em um conhecimento específico
que o falante tem sobre a língua e a linguagem. É esse conhecimento que o linguista
busca investigar.
Ao conhecimento da língua, chamaremos de gramática, entendendo-se por
gramática o sistema de regras e/ou princípios que governam o uso dos signos da
língua. A Linguística assume que o falante de qualquer língua possui diferentes tipos
de conhecimento em sua gramática: o vocabulário adquirido, como pronunciar as
palavras, como construir as palavras, como construir as sentenças1, e como entender o
significado das palavras e das sentenças. Refletindo essa divisão, a descrição linguística
tem diferentes níveis de análise: o estudo do léxico, que investiga o conjunto de palavras
de uma língua e sua possível sistematização; o estudo da Fonologia, que focaliza os sons
de uma língua e de como esses sons se combinam para formar as palavras; o estudo da
morfologia, que investiga o processo de construções das palavras; o estudo da sintaxe,
que investiga como as palavras podem ser combinadas em sentenças; e o estudo da
semântica, que focaliza o significado das palavras e das sentenças.
Ao conhecimento da linguagem, associaremos o uso da língua, ou seja,
o emprego da gramática dessa língua nas diferentes situações de fala. A área da
Linguística que descreve a linguagem denomina-se Pragmática. A Pragmática
estuda a maneira pela qual a gramática, como um todo, pode ser usada em situações
comunicativas concretas. Neste livro, veremos noções que ora estão no campo da
língua, ora no campo da linguagem; tentarei, na medida do possível, situá-las em
seus domínios de conhecimento.
18 Manual de Semântica
Semântica e Pragmática
Localizemos, primeiramente, o nosso principal objeto de estudo: a semântica.
O estudo da semântica, repetindo, é o ramo da Linguística voltado para a investigação
do significado das sentenças. Como assumimos que o linguista busca descrever o
conhecimento linguístico que o falante tem de sua língua, assumimos também, mais
especificamente, que o semanticista busca descrever o conhecimento semântico que
o falante tem de sua língua. Por exemplo, esse conhecimento permite que um falante
de português saiba que as duas sentenças a seguir descrevem a mesma situação:
Portanto, são fenômenos dessa natureza que serão o alvo de uma investigação
semântica. Existe um consenso entre os semanticistas de que fatos como esses são
relevantes para qualquer teoria que se proponha a investigar a semântica. Entretanto,
antes de seguirmos com o nosso estudo sobre os fenômenos semânticos, é importante
salientar que a investigação linguística do significado ainda interage com o estudo de
outros processos cognitivos, além dos processos especificamente linguísticos. Parece
bem provável que certos aspectos do significado se encontrem fora do estudo de uma
teoria semântica. Veja (4):
nós provavelmente entendemos. O que faz, então, o falante de (4a) entender o falante
de (4b)? São fatores extralinguísticos, como a entonação que o falante de (4b) usa,
a sua expressão facial e, às vezes, até seus gestos; já entramos, então, no campo da
prosódia, da expressão corporal etc. Portanto, fica claro que nem sempre o sistema
semântico é o único responsável pelo significado; ao contrário, em várias situações, o
sistema semântico tem o seu significado alterado por outros sistemas cognitivos para
uma compreensão final do significado. Por exemplo, vem sendo explorado por alguns
estudiosos que alguns aspectos do significado são explicados em termos das intenções
dos falantes, ou seja, dentro do domínio de teorias pragmáticas. Tais teorias podem
ajudar a explicar como as pessoas fazem para significar mais do que está simplesmente
dito, através da investigação das ações intencionais dos falantes. Repare na sentença:
O que significa essa sentença? Que existe uma determinada situação em que
um objeto denominado porta se encontra em um estado de não fechado (seja não
trancado ou apenas afetado em seu deslocamento). Agora imaginemos o seguinte: um
professor está dando aula e algum estudante para na frente da sala e fica olhando para
dentro; o professor dirige-se a ele, com uma atitude amigável, e profere a sentença em
(5). Certamente, nessa situação, a sentença (5) não será entendida como o estado de
a porta estar aberta ou não, mas, sim, como um convite para que o estudante entre.
Vejamos ainda essa mesma sentença em outra situação: um estudante muito agitado
está atrapalhando a aula; o professor diz a mesma sentença, só que agora sua intenção
é repreender esse aluno. A sentença (5) será entendida como uma ordem para que o
estudante saia. Portanto, nos exemplos dados, vemos que o significado vai além do
sentido do que é dito. Como entendemos esse significado? Esse conhecimento tem
relação com a nossa experiência sobre comportamentos em salas de aula, intenções,
boas maneiras, isto é, com o nosso conhecimento sobre o mundo.
Entender o que o professor falou em cada contexto específico parece envolver
dois tipos de conhecimento. Por um lado, devemos entender o que o professor falou
explicitamente, o que a sentença em português A porta está aberta significa; a esse
tipo de conhecimento, chamamos de semântica. A semântica pode ser pensada como
a explicação de aspectos da interpretação que dependem exclusivamente do sistema
da língua, e não de como as pessoas a colocam em uso; em outros termos, podemos
dizer que a semântica lida com a interpretação das expressões linguísticas, com o
que permanece constante quando certa expressão é proferida. Por outro lado, não
conseguiríamos entender o que o professor falou, se não entendêssemos também qual
era a intenção dele ao falar aquela expressão para determinada pessoa em determinado
contexto; a esse tipo de conhecimento, chamamos de pragmática. O estudo da
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pragmática tem relação com os usos situados da língua e com certos tipos de efeitos
intencionais. Entretanto, o leitor verá, ao longo do livro, que nem sempre é tão clara
essa divisão e que nem sempre conseguimos precisar o que está no terreno da semântica
e o que está no terreno da pragmática.2
cães perseguem gatos não significam a mesma coisa, embora as palavras das duas sentenças
sejam as mesmas. Portanto, uma teoria semântica deve não só apreender a natureza
exata da relação entre o significado de palavras e o significado de sentenças, mas deve
ser capaz de enunciar de que modo essa relação depende da ordem das palavras ou de
outros aspectos da estrutura gramatical da sentença. Observe que as infinitas expressões
sintáticas, altamente complexas ou não, têm associadas a elas significados que nós não
temos nenhum problema para entender, mesmo se nunca tivermos ouvido a expressão
anteriormente. Por exemplo:
Provavelmente, você nunca ouviu essa sentença antes, mas, ainda assim, você
pode facilmente entender seu conteúdo. Como isso é possível? A experiência de se
entender frases nunca escutadas antes parece muito com a experiência de se somar
números que você nunca somou antes:
Das sentenças anteriores, pode-se dizer que qualquer falante deduz, a partir da
verdade da sentença (10a), a verdade da sentença (10b); diz-se, pois, que (10a) acarreta
(10b). Também se pode inferir que o sentido da expressão alguma coisa está contido
no sentido da palavra carro; diz-se, então, que carro é hipônimo da expressão alguma
coisa. Em relação ao exemplo (11), percebe-se que, para se afirmar a sentença (a),
tem-se que tomar (b) como verdade; tem-se, então, que (11a) pressupõe (11b). De
(12), pode-se dizer que a sentença (a) sugere uma possível interpretação como a de
(b). Estudaremos essas relações de implicação nos capítulos “Implicações” e “Atos de
fala e implicaturas conversacionais”, que são propriedades que estão no âmbito da
Semântica e também da Pragmática.
Nesse par de sentenças, podemos perceber que a palavra menino pode ser
trocada por garoto sem que haja nenhuma interferência do conteúdo informacional
da sentença; temos, então, uma relação de sinonímia entre essas palavras. Também as
sentenças anteriores passam a mesma informação, ou seja, se a sentença (a) é verdadeira,
a sentença (b) também é verdadeira; e se (b) é verdadeira, (a) também o é. Diz-se,
então, que (13a) é paráfrase de (13b). Essas relações serão vistas no capítulo “Outras
propriedades semânticas”.
Em (14), qualquer falante tem a intuição de que as duas sentenças não podem
ocorrer ao mesmo tempo e, por isso, diz-se que são sentenças contraditórias. O que
leva as sentenças a serem contraditórias são as palavras feliz e triste, que têm sentidos
opostos e são, assim, chamadas de antônimos. Também essas noções serão investigadas
no capítulo “Outras propriedades semânticas”.
f ) Os papéis temáticos:
g) Os protótipos e as metáforas:
diferenciar, por exemplo, quando uma xícara passa a ser uma tigela: será xícara quando
seu diâmetro for 5 cm, 7 cm, 10 cm... Mas e 15 cm? Já será uma tigela? Ou ainda será
uma xícara, mas com características de tigela? Ou será uma tigela com características
de xícara? Portanto, existem certos objetos que estão no limiar da divisão de duas ou
mais categorias; outros são mais prototípicos, ou seja, possuem um maior número de
traços de uma determinada categoria. A proposta da teoria dos protótipos é conceber
os conceitos como estruturados de forma gradual, existindo um membro típico ou
central das categorias e outros menos típicos ou mais periféricos. Veremos a noção
dos protótipos no capítulo “Protótipos e metáforas”.
Outro ponto a ser investigado neste manual é a metáfora. As metáforas
são entendidas, geralmente, como uma comparação que envolve identificação de
semelhanças e transferência dessas semelhanças de um conceito para o outro. Como
ilustra o exemplo em (18):
(18) Este problema está sem solução: não consigo achar o fio da meada.
h) Os atos de fala:
Referência e representação
Um terceiro ponto a ser estudado por uma teoria semântica diz respeito à
natureza do significado. Existe uma divisão sobre essa questão: para alguns linguistas,
o significado é associado a uma noção de referência, ou seja, da ligação entre as
expressões linguísticas e o mundo; para outros, o significado está associado a uma
representação mental.
As teorias que tratam do significado sob o ponto de vista da referência são
chamadas de Semântica Formal, ou Semântica Lógica, ou Semântica Referencial,
ou ainda Semântica de Valor de Verdade. Os fenômenos semânticos que serão
tratados dentro dessa perspectiva teórica estão nos capítulos “Implicações”, “Outras
propriedades semânticas”, “Ambiguidade e vagueza” e “Referência e sentido”. Portanto,
um ponto relevante a ser investigado por uma teoria linguística é a relação entre a
língua e o mundo: o significado externo da língua, segundo Barwise e Perry (1983).
Por exemplo, certas palavras fazem referência a determinados objetos, e aprender o
que significam essas palavras é conhecer a referência delas no mundo:
Exercícios
i. Exemplifique linguisticamente e explique os dois tipos de conhecimento que estão
envolvidos no significado do que é dito.
ii. Faça uma relação entre seus exemplos e as noções de menção, uso, língua-objeto
e metalinguagem.
iii. Explique as propriedades básicas da linguagem que teorias semânticas devem
abordar.
Indicações bibliográficas
Em português: Chierchia (2003, cap. 1) e Pires de Oliveira (2001, cap. 1).
Em inglês: Saeed (1997, cap. 1), Chierchia e McConnell-Ginet (1990, cap. 1), Larson e Segal (1995, cap. 1), Hurford
e Heasley (1983, cap. 1), Cann (1993, cap. 1), Lyons (1977, cap. 1) e Kempson (1977, cap. 1).
Notas
1
“Sentença (S) pode ser definida, sintaticamente, pela presença de um verbo principal conjugado e, semanticamente,
pela expressão de um pensamento completo” (Pires de Oliveira, 2001: 99).
2
Existem algumas correntes teóricas que não acreditam em tal divisão, ou fazem essa divisão de uma maneira distinta
(Lakoff, 1987; Langacker, 1987). Veja discussão mais detalhada em Levinson (1983) e Mey (1993).
3
Quando a expressão aparece entre aspas simples ou em itálico (geralmente dentro do texto), isso significa que é a
menção da expressão que está sendo utilizada. A utilização de aspas duplas indica o proferimento da sentença, ou
seja, a ação realizada, o uso da sentença.