Weber Liderança Carismatica

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A Liderança Carismática:

sobre o caráter político do populismo

Carlos Eduardo Sell1

Resumo
Apesar da recorrência e persistência do fenômeno do populismo
na América Latina, a discussão sobre esta categoria tem estado
ausente do centro das atuais análises acadêmicas feitas no Bra-
sil. Indo além das análises clássicas que, a partir do enfoque nas
classes, priorizam, de forma unilateral, seus componentes estru-
turais, o artigo revisa o debate sobre o carisma na teoria políti-
ca de linha weberiana, propondo definir o populismo como um
subtipo da dominação carismática. Por este ângulo, enfatiza-se
a dimensão especificamente política do populismo, apontando o
caráter carismático necessariamente presente na relação emo-
cional entre líder e povo. Com base nesta premissa, sugere-se
ainda um modelo para a compreensão do populismo segundo
os diferentes níveis de manifestação do fenômeno: sociocultural
(histórico-latente), institucional (tipo de regime) e psicossocial
(estilo de liderança).
Palavras-Chave: Populismo, Carisma, Liderança Carismática,
Max Weber, Lulismo, América Latina.

1
Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC (Universidade
Federal de Santa Catarina) com Pós-Doutorado realizado na Ruprecht-Karls-Universität
Heidelberg. É também bolsista de produtividade do CNPQ e autor do livro Max Weber e
a racionalização da vida (Editora Vozes, 2013).
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

Charismatic Leadership: about the political


character of populism
Abstract
Despite the recurrence and persistence of the phenomenon of
populism in Latin America, discussion of this category has been
absent from the center of the current academic analyzes pro-
duced in Brazil. Going beyond the classical analysis that, from
the focus on classes, prioritize, unilaterally, its structural com-
ponents, the article reviews the debate about the charisma in
Weber’s political theory line, proposing to define populism as
a subtype of charismatic domination. From this perspective,
it emphasizes specifically the political dimension of populism,
pointing the charismatic character necessarily present in the
emotional relationship between leader and people. Based on
this premise, it is suggested a model for further understanding
of populism according to different levels of manifestation of the
phenomenon: social-cultural (historical-latent), institutional
(regime type) and psychosocial (leadership style).
Key-words: Populism, Charisma, Max Weber, Latin America, Lu-
lismo

Há quem considere o populismo como um processo transitório,


fruto passageiro de sociedades em rápido processo de moderni-
zação econômica e política (SILVA, 2011). Seus casos modelares,
em se falando de América Latina, como sabemos, são os gover-
nos de Perón na Argentina, Cárdenas no México e Getúlio Var-
gas no Brasil. Eis a narrativa-padrão (CERVI, 2001). No entanto,
descontada a vaga dos regimes burocrático-militares [ao longo
dos anos 60/70], uma nova onda de movimentos e lideranças
populistas voltou a emergir no continente nas décadas seguintes
[e isto já no contexto da redemocratização] e, de diferentes for-
mas, promoveu intensos processos de reformas orientadas para
o mercado, caso dos governos de Collor [Brasil], Menem [Argen-
tina] ou mesmo Alberto Fujimori [Peru]. E, para quem achava
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Carlos Eduardo Sell

que este seria apenas um respiro tardio de um fenômeno extem-


porâneo, longe de encerrar-se, uma terceira vaga de líderes ou re-
gimes populistas,com referências socialistas,emergiu neste início
do século XXI e, com Hugo Chávez [Venezuela] como seu protóti-
po, repete-se em diferentes figuras como Evo Morales [Bolívia],
Rafael Correa [Peru], Néstor e Cristina Kirchner [Argentina], Da-
niel Ortega [Nicarágua], sem esquecer ainda de Lula [Brasil].

Estes diferentes ciclos, portanto, sugerem que o populismo pa-


rece não ser apenas um fenômeno histórico transitório, mas uma
das facetas recorrentes dos processos políticos [e não só dos
hispano-americanos]. Da mesma forma, ao longo deste processo
de continuidade e transmutação, é bom que se frise desde já, o
populismo não se define por uma orientação ideológica unila-
teral: do nacionalismo, passando pelo livre mercado, até chegar
ao bolivarianismo, suas visões de mundo são, de fato, múltiplas
e até contraditórias, passando facilmente da “direita” para a “es-
querda”. O fato é que, assumindo orientações ideológicas que va-
riaram ao longo dos ciclos econômico-políticos que marcaram
esse continente, formas políticas populistas mantiveram-se in-
tactas durante este tempo. Por quê? E como podemos definir o
populismo sob a ótica de uma sociologia política de corte webe-
riano? O que o olhar de Weber pode nos ajudar a entender sobre
o populismo?

Orientando-se por esta pergunta, este texto busca apresentar


elementos teóricos que nos permitam entender o populismo
enquanto um subtipo da dominação carismática. A partir deste
enfoque desdobram-sesubsídios para caracterizar o populismo
na América Latina à luz do conceito de carisma em diferentes
níveis ou unidades de análise, a saber: 1) cultural, 2) social, 3)
político-institucional [tipo de regime] e, 4) psicossociológico [li-
derança]. Nesta direção, o trabalho está organizado da seguin-
te forma. O primeiro tópico discute o tema do populismo e, a
partir de algumas de suas lacunas, avança para nossa principal
hipótese de trabalho: a interpretação do populismo enquanto
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

um fenômeno político de tipo carismático. Colocando o carisma


no centro da análise, a segunda parte do trabalho revisa alguns
momentos chaves na trajetória dos estudos sobre este concei-
to na sociologia política e identifica três ondas de discussão. Na
terceira parte, sugere-se um quadro teórico capaz de servir de
guia para os estudos empíricos sobre o fenômeno. Os contornos
de uma sociologia weberiana do populismo são definidos, com
mais clareza, no quarto tópico. Seguem, então, os comentários
finais.

1 As dimensões do populismo

No Brasil,os estudos clássicos sobre o populismo (IANNI, 1968;


WEFFORT, 2003) foram orientados, em regra, pelo uso predo-
minante da categoria classe social2. De matriz marxista, tais pes-
quisas se defrontaram com o seguinte desafio analítico: como
explicar o fato de que, na América Latina, no contexto da passa-
gem para o capitalismo, o jogo da luta de classes desenvolveu-se
sob o signo da relação entre líderes populistas e povo, ambos
unificados contra as elitese o Império?Tendo como referência
histórica o getulismo esta ótica privilegiou como unidade em-
pírica de análise a base da pirâmide ou, seja, tentou-se explicar
como o imenso proletariado [classe em si] oriundo dos proces-
sos de industrialização assumiu a identidade política de“povo”,
mas não de “classe” [para si]. O sujeito histórico, no Brasil, foi
outro, eis a questão. Epistemologicamente, portanto, trata-se de
uma teoria do desvio, pois o que se intenta éentender como a
rota latino-americana de revolução burguesa [que acompanha a
revolução industrial] seguiu uma via diferente do padrão euro-
peu clássico [liberal-democrático].

2
Já a clássica análise de Gino Germani (1973) sobre o populismo, na matriz das teorias
da modernização, teve impacto apenas secundário no conjunto das análises feitas no
Brasil.
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Carlos Eduardo Sell

Embora esta vertente, surpreendentemente, tenha estado quase


ausente das discussões mais recentes realizadas no Brasil [pelo
menos em comparação com outros países latino-americanos]3,
ela informa, em suas premissas, um dos poucos trabalhos atu-
ais que procura entender a essência do populismo em sua face
brasileira: o chamado lulismo. Sem pretender resumir adequa-
damente todas as nuances da obra, refiro-me aqui ao estudo de
André Singer(2010) que desenvolve a hipótese de que o lulismo
é antes de tudo um fenômeno de alinhamento eleitoral entre ca-
madas de baixa renda [“subproletariado”] e o governo petista
que, passando por Lula e estendendo-se até o primeiro mandato
de Dilma Rousseff, já possui mais de 10 anos de história. Seu elo
mediador é o programa “Bolsa Família”, política social de distri-
buição de renda que já atinge mais de 13 milhões de brasileiros
das camadas sociais de baixa-renda [aspecto socioeconômico].
O lulismo é definido justamente como este processo de ligação
entre “pobres” e “governo” contrapostas às “classes médias” e a
“oposição”, com Lula no papel de Luís Bonaparte. Eis o resumo
da ópera.

O modelo de Singer, ainda que tributário da tradição marxista


de análise do populismo,precisa enfrentar um ambiente históri-
co diferente das teorias clássicas, afinal, não se trata de explicar
a rota desviante de revolução burguesa [caso do getulismo] e
nem sua instrumentalização neoliberal [caso de Collor]. O que
se busca é legitimar ideologicamente um projeto de superação
do capitalismo neoliberal que, na visão do autor, teria sido per-
dida, dada a acomodação do lulismo ao papel de condutor de
um reformismo fraco [redistributivo]. Sob tal prisma político, a
análise evita cuidadosamente a categoria populismo, termo que,
escorregando para o campo da retórica utilizada na disputa po-
lítica prática, acabaria repercutindo negativamente sobre seu
objeto de análise.

3
Uma interessante exceção é o texto de Ab’Saber (Lulismo, carisma pop e cultura an-
ticrítica, 2012), ainda que se trate de um ensaio com caráter engajado.
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

Não é objetivo de meu trabalho discutir em pormenores os mé-


ritos e limites da tese de Singer, aqui apenas esboçada. Ele é lem-
brado aqui como recurso para demarcar a diferença de ponto de
vista que adoto em relação ao mesmo fenômeno. Analiticamen-
te, o ponto frágil desta análise reside na subtematização do ca-
ráter especificamente político do lulismo que, por conta de viés
excessivamente estruturalista do marxismo,fica praticamente
reduzido à emanação da classe e, no máximo, é pensado como
adesão eleitoral dos eleitores [novamente, na base da pirâmide4]
e variação do bonapartismo. Neste trabalho a análise do líder ca-
rismático ficou totalmente na sombra, escondido das suas lentes
analíticas5. O lulismo, em si mesmo,não chega a ser devidamente
explicado, pois, para capturá-lo analiticamente não basta inseri-
-lo no jogo da luta de classes e indagar pelo seu sentido [orienta-
ção ideológica]. O que falta é definir sua natureza política.

Partindo de um enfoque weberiano, busco lançar luzes justa-


mente sobre esta outra ponta do fenômeno até o presente mo-
mento ainda praticamente inexplorada. Nesse caso, trata-se de
privilegiar como unidade de análise não a dimensão socioeco-
nômica do populismo, a saber, as camadas de baixa renda e suas
escolhas eleitorais, mas sua ponta política, ou seja, o líder ca-
rismático [populista] enquanto tal. Para definir este fenômeno
a partir deste ângulo, entendo que a sociologia política webe-
riana, por focada no sentido dos atores sociais, é a que está me-
lhor aparelhada para nos fornecer elementos explicativos para a
compreensão do surgimento e das características de lideranças,
e detalhe importante, também das estruturas carismáticas de
tipo populista. Daí recorrermos à noção weberiana de carisma

4
Nas palavras do autor: “é original apenas a sugestão de que o deslocamento do subpro-
letariado, uma fração de classe com importante peso eleitoral, provocou o surgimento
do lulismo” (2010, p.28, negrito meu).
5
Ainda que, em raro momento, o autor chegue a afirmar: “o resultado é que o PT, ofere-
ceria, depois, em 2006, um canal partidário sólido ao lulismo, afastando o risco populista
de se projetar uma liderança carismática “solta”, sem partido” (2010, p.74).
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Carlos Eduardo Sell

no intuito de que ela nos forneça chaves analíticas de acesso a


este aspecto do fenômeno. Mas, qual é a relação entre populis-
mo e carisma? O que um tem a ver com o outro? Para respon-
der a esta questão, uma breve retrospectiva do debate sobre o
neopopulismo na América Latina do século XXI será necessária.
Somente depois chegaremos ao tema do carisma para, ao final,
juntar as duas pontas novamente.

No debate a respeito dos atuais rumos da conjuntura política


latino-americana, três abordagens têm se destacado. Estudos
de orientação sociológica privilegiaram a orientação ideológica
dos governos atuais e indagaram sobre o caráter de esquerda
dos movimentos no poder, oscilando em torno de diferentes
terminologias sobre o caráter mais ou menos “radical” ou “mo-
derado” (CASTANEDA, 2006; REID, 2008) de seus líderes e de
seus projetos políticos. Na perspectiva da ciência política, o
elemento privilegiado foi o institucional e a literatura indagou
sobre caráter mais ou menos “liberal” ou “iliberal” (ZAKARIA,
2007)dos regimes representativos do continente. Por fim, as
pesquisas que se apoiam diretamente na categoria “populis-
mo” encontram-se divididas em duas linhas básicas. Por um
lado, define-se o populismo como construção discursiva pela
qual emerge a divisão entre povo e elite [LACLAU, 2005]. En-
quanto esta linha de análise simplesmente submerge a figura do
líder no discurso [da qual ele é, afinal, o produto], ignorando-se
os agentes construtores do discurso [inversão de causa e con-
sequência]; uma segunda vertente [ROBERTS, 1995], por outro
lado, entende o populismo como um estilo de condução política,
abordagem na qual o papel da liderança carismática é posta em
evidência: entender o processo que interliga líder e povo torna-
-se fundamental na análise.

De meu ponto de vista, ambas as abordagens sobre o populismo


são parciais e acabam definindo o fenômeno a partir de ângu-
los redutores. Seguindo aqui a tese de Shils (1965), entendo que
o populismo é uma realidade que envolve sempre dois fatores
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

combinados: a relação entre 1) líder e, 2) povo. No entanto, o


que as vertentes acima delineadas fazem é justamente expurgar
um dos aspectos desta dualidade ou, na melhor hipótese, subor-
dinar um fator ao outro, operando um desnível na análise. De
meu ponto de vista, a abordagem weberiana oferece uma pla-
taforma adequada para superar e integrar essas linhas de pen-
samento, cujos elementos necessitam ser combinados. É esta
hipótese que procuro desenvolver neste trabalho.

2 A trajetória dos estudos sobre o carisma

Nesta nossa empreitada teórica o carisma será a categoria cen-


tral, razão pela qual precisamos retomar, com cuidado, o seu
significado. Embora não se apresente aqui uma história com-
pleta da sua trajetória [Begriffgeschichte], gostaria de apontar
para três ondasou momentos diferentes de utilização da ideia
de carisma na tradição da sociologia política, tarefa que, assim
mesmo, vai nos exigir um grande esforço e ocupar boa parte de
nosso espaço, tal como segue.

2)Carisma e democracia

A importância de Max Weber no rol de autores das chamadas


teorias da democracia já é mais do que consagrada. Em qual-
quer manual, mais ou menos elaborado, encontramos sempre
a menção de Weber como o formulador de uma versão elitista
da democracia (HELD, 1986). Sob esta ótica de leitura, Weber
costuma ser apresentado com o polo oposto do tipo participa-
tivo/deliberativo de democracia, cujo protótipo seria Jürgen
Habermas(AVRITZER, 1995). Sob este enquadramento, Weber
estaria a defender uma teoria formalista de democracia, enten-
dida como método pela qual as elites políticas competem pelos
votos da população [elitismo democrático]. O que em Weber ain-
da estaria formulado de forma embrionária teria sido sistemati-
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Carlos Eduardo Sell

zado, mais tarde, por Joseph Schumpeter, chegando até Anthony


Downs e Robert Dahl. Está armado, assim, o gatilho para que o
autor da tese da irracionalidade das massas e da inevitabilidade
das burocracias converta-se, assim, no polo antagônico por ex-
celência do participativismo.

Esta compreensão padrão, quase hegemônica no atual debate


brasileiro, embora não esteja de todo incorreta, é claramente
unilateral. Em primeiro lugar, porque a exegese atual [PORTI-
NARO, 2001] aponta não apenas que o termo “elite” está com-
pletamente ausente dos textos weberianos, como também fica
evidente o caráter teleológico [quando não evolucionista] da
narrativa acima, na qual Weber estava destinado a ser o protóti-
po de um paradigma que apenas vai desenvolvendo, por conta de
sua potencialidade intrínseca, suas consequências inevitáveis.
De qualquer forma, como já afirmamos, o procedimentalismo
democrático weberiano não é de todo incorreto, apenas parcial,
e representa uma linha de desenvolvimento de sua obra. Este
modelo, que encontrou eco na Alemanha na obra de Hans Kel-
sen [que, por alguma razão, é sempre esquecido nas narrativas
“históricas” das teorias democráticas], possui ainda uma segun-
da vertente que promove o modelo plebiscitário de democracia
defendido por Weber em suas últimas obras. Esta herança pode
ser encontrada explicitamente no pensamento de Carl Schmitt.
Duas teorias da democracia em Max Weber? Do que se trata?

Ocorre que, entre 1917, ano da publicação de Parlamento e


Governo na Alemanha reconstruída (WEBER, 1980), e 1918,
depois da queda da monarquia prussiana e da eclosão das re-
voluções espartaquistas de Berlim e Munique, Weber (1982a)
procedeu a uma surpreendente inflexão de suas opções políti-
cas. De defensor de um modelo parlamentar para a democracia
alemã, ele passou a propugnar abertamente pela sua variante
plebiscitária (WEBER, 1982b). Nos últimos anos tenho feito
um sistemático esforço exegético de clarificação desta segunda
versão de democracia em Weber (SELL, 2010 e 2011), e tendo
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

em vista o trabalho já realizado, apresento aqui uma síntese


modificada destes estudos.

Nesta senda devo esclarecer que, apesar do sugerido acima, não


temos propriamente “duas” teorias diferentes de democracia
em Weber. A polaridade típico-ideal democracia “parlamentar”,
por um lado e, por outro, sua variante democracia “plebiscitária”
são constitutivas de um único modelo global da sociologia webe-
riana da democracia. O que mudou, como já dissemos, foi a pre-
ferência política de Weber por um ou por outro destes modelos.

A elaboração da chamada sociologia weberiana da democracia


é fruto do pensamento tardio de Weber. Seus estudos sobre a
democracia foram desenvolvidos especialmente nos escritos
político-engajados, e em paralelo com sua célebre sociologia
teórico-sistemática da dominação. Embora Weber tenha procu-
rado integrar sua sociologia da democracia na sua teoria dos
tipos de dominação, seu esboço ficou inacabado. A sociologia
da dominação pode ser localizada oito vezes em textos de We-
ber e mesmo em Economia e Sociedade[onde ela é mais exten-
samente desenvolvida] encontram-se duas versões básicas da
mesma: a parte mais antiga, escrita antes da primeira guerra,
e a parte mais recente, feita após o conflito. É apenas nesta úl-
tima versão que Weber procura abrigar com mais clareza seus
modelos típico-ideais de democracia no interior da forma ca-
rismática de dominação.

Para entender esta opção, mais uma palavra sobre a sociologia


da dominação de Weber será necessária. Conforme as reconstru-
ções exegéticas feitas por Schluchter [1980], a trilogia weberia-
na da dominação não deveria, em princípio, ser entendida como
uma sequência linear, na qual a dominação carismática corres-
ponde às sociedades segmentares, o tipo tradicional às socieda-
des estratificadas e o tipo legal-racional às sociedades moder-
nas. Levando em consideração que o eixo da análise weberiana
é o processo de “rotinização” [passagem do extraordinário ao
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Carlos Eduardo Sell

ordinário] e de “objetivação” [passagem do subjetivo/carisma


ao objetivo/Burocracia] do carisma, é a dominação carismática
que se encontra no centro da análise. Por esta via, o modelo tri-
partite de dominação de Weber [perspectiva sincrônica] pode-
ria ser lido, historicamente [diacronicamente], conforme sugere
o modelo abaixo:

TRADICIONALIZAÇÃO

CARISMA rotinização + objetivação CARISMA



GENUÍNO REVOLUCIONÁRIO

LEGALIZAÇÃO

Institucionalização Transformação

A vantagem deste modelo [que não deve ser lido de forma “cí-
clica”: dicotomia burocracia x carisma] é que ele nos permite
entender que o carisma é considerado por Weber como uma
dimensão societária básica que inclui processos de “institucio-
nalização” e, ao mesmo tempo, de “desinstitucionalização” radi-
cal: o carisma é a força revolucionária [criativa e destrutiva] da
história.

O mesmo esquema se repete no que tange à democracia parla-


mentar e a democracia plebiscitária, os dois tipos fundamentais
de regimes democráticos do mundo contemporâneo. Inspiran-
do-me em uma versão modificada da tipologia desenvolvida por
Breuer (2006), entendo que Weber definia a democracia gene-
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

ricamente como a “ausência de dominação” e distinguia,histori


camente,quatro modelos básicos. Além dos dois tipos de demo-
cracia modernos que já foram nomeados acima, temos ainda a
democracia direta antiga [grega] e a democracia diretamoderna
[democracia das ruas ou do socialismo sem estado]. Mais uma
vez, um esquema ilustra o ponto:
Quadro 01: Weber: tipos de democracia

Democracia Democracia
Parlamentar Plebiscitária

Democracia Democracia
Grega Conselhista

Fonte: o autor, com base em Breuer (2006, p.126).

A diferença fundamental entre os dois tipos ideais de democracia


de Weber é que eles processam, de forma diferenciada, o funda-
mento societário-carismáticode qualquer democracia moderna.
Weber foi muito claro e afirmou taxativamente que a extensão
do sufrágio eleitoral trazia o carisma para o centro do processo
político: “em essência isto significa uma mudança em direção ao
modo cesarista de seleção. Na verdade, toda democracia pro-
pende nesta direção”(WEBER, 1980, p.75, negrito meu).

Isto significa que o modelo parlamentar de democracia foi pen-


sado por Weber como mecanismo de bloqueio da dimensão ca-
rismática inerente à democracia eleitoral. O parlamento tem na
figura do líder do partido seu elemento carismático e ele está
ligado às massas apenas na medida em que prova diante delas
suas qualidades demagógicas [aqui Weber toma Péricles e a Gré-
cia como modelo]. O formato parlamentar de democracia [cujo
protótipo, para Weber, era a Inglaterra] evita a aclamação ce-
sarista/romana[feita diretamente pelas massas]. Olhando para
seu próprio país, contudo, Weber achava que parlamento ale-
25

Carlos Eduardo Sell

mão deveria ser o lugar no qual poderiam ser selecionados líde-


res políticos “responsáveis”. No entanto, como isso não aconte-
cia, ele precisava ser reformado para permitir uma política não
apenas negativa [de veto], mas principalmente positiva, ou seja,
de corresponsabilidade [positiva] pelas decisões governamen-
tais. Foi este modelo que Weber defendeu em seu célebre escrito
Parlamento e Governo na Alemanha Reordenada.

Por que, diante da mudança de conjuntura política,Weber mu-


dou seu julgamento sobre o modelo de democracia é assunto
que, nem de longe, podemos aprofundar aqui. O fato é que ela
levou Weber a um tournant em sua posição política: em textos
como O presidente do Reich, A forma estatal da Alemanha do Fu-
turo (WEBER, 1982) e mesmo em Política como Profissão (WE-
BER, 1982b), Weber apela diretamente ao carisma para propor
um modelo político democrático-plebiscitário para Alemanha.

Desta forma, o carisma inerente à democracia eleitoral que,


na Alemanha, desaguava, em parte, na figura do Kaiser [Impe-
rador], mas não nos líderes parlamentares [que Weber julgava
incapazes], é deslocado diretamente para a figura do presiden-
te da República. Neste modelo, inspirado nos Estados Unidos, a
aclamação cesarista não é bloqueada, mas diretamente canali-
zada e filtrada: seu foco institucional deixa de ser o Monarca e
o líder parlamentar para centrar-se, sem mediações, no presi-
dente, figura que é exterior e independente do parlamento. Com
o poder das massas como sustentáculo, Weber acreditava que
o governante teria a força suficiente para implementar as me-
didas urgentemente necessárias para a reconstrução da Alema-
nha. Naturalmente, isto não dispensava, de forma nenhuma, o
papel do Parlamento como a garantia da liberdade [Rechstaat] e,
principalmente, resolve o que Weber achava ser o principal pro-
blema da Alemanha naquele momento histórico: a falta de lide-
ranças responsáveis [dados que elas estão subjugadas pela bu-
rocracia]. Conforme ele se expressa em Política como Profissão,
transitamos assim de uma Führerloserdemokratie/democracia
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A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

sem liderança [democracia parlamentar] para a tão desejada


democracia com liderança [Führerdemokratie], neste caso, a de-
mocracia plebiscitária. Foi a partir desta operação que Weber
definiu a democracia plebiscitária no contexto de sua sociologia
da dominação nos termos que até hoje ainda são clássicos: “A
‘democracia plebiscitária’ – o tipo mais importante da demo-
cracia de líderes – em seu sentido genuíno, é uma espécie de
dominação carismática oculta sob a forma de uma legitimidade
derivada da vontade dos dominados” (WEBER, 1994, p.176).

b) Carisma e ditadura

Embora Weber apostasse na possibilidade de uma acomodação


do elemento carismático na democracia, seja na forma de um
bloqueio [democracia parlamentar], seja na forma de um filtro
[democracia plebiscitária], a história acabou derrubando sua
proposta. Em seu próprio país natal, apenas três anos após sua
morte, na mesma cidade de Munique, um putschconduzido por
um pintor fracassado e soldado ressentido já anunciava o declí-
nio da República de Weimar, regime que o próprio Weber ajudou
a moldar. O carisma, aquela imprevisível força revolucionária da
história, fugiu do controle e escapou da jaula que lhe fora pre-
parada. Era natural, portanto, que os estudos sobre o carisma
acompanhassem esta tendência e passassem a discutir a rela-
ção entre carisma e ditadura.Embora existam diversos trabalhos
que aprofundaram esta perspectiva, vou servir-me de um mode-
lo teórico que ilustra magistralmente esta via de análise6.

Na Alemanha do pós-guerra, apesar do reinado quase inconteste


da Escola de Frankfurt no terreno da sociologia, poucas vozes
weberianas foram mais respeitadas do que a obra de M. Rainer
Lepsius. O caráter extraordinário da obra deste autor reside,
a meu ver, no fato de que, assumindo por inteiro a sociologia

6
Modelo similar também pode ser encontrado em Cavalli (1987).
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Carlos Eduardo Sell

weberiana da dominação, ele procurou pensar como o carisma


pôde engendrar uma forma de ditadura carismática. A partir
deste esforço, este sociólogo nos legou preciosas lições para
aprofundar – seguindo as pegadas de Weber - nossa compreen-
são sobre as formas carismáticas de exercício do poder.

Evitando “psicologizar” o conceitode carisma [como é tendência


nas suas versões mais vulgarizadas], Lepsius lembrou que este
fundamenta um tipo de relação social: o foco de Weber não se
resume ao elenco das características [Eigenschaften] do porta-
dor do carisma [perspectiva psicológica], mas à análise das ca-
racterísticas das relações sociais de tipo carismático [perspecti-
va sociológica].

Em termos típico-ideais, a primeira característica do carisma é


“o livre reconhecimento das qualidades intrínsecas do líder por
parte dos dominados”, ou seja, já aqui se mostra que o carisma
é sempre relacional: a bilateralidade é um elemento constituti-
vo do mesmo.O segundo elemento é que a relação carismática
suspende os padrões normativos vigentes, os processos formais
e as estruturas organizacionais estabelecidas. A relação caris-
mática cria, para si mesma, uma posição de poder distinta [de
tipo afetivo e personalizada] que está além e acima das formas
de autoridade existentes [tradicionais ou legais]. Ou, para co-
locar em termos weberianos, ela é revolucionária. Os dois ele-
mentos anteriores determinam o tipo de estrutura associativa
das organizações carismática, seu terceiro elemento. Relações
carismáticas engendram comunidades emocionais cuja estrutu-
ra básica deve organizar a relação entre o líder, seu séquito de
confiança e os dominados. Ocorre que esta forma de dominação,
ainda que tenha no seu centro dinâmico o aspecto emocional,
precisa organizar administrativamente esta relação, seja através
do movimento, seja do partido ou mesmo do Estado. A relação
destas estruturas com o líder é costurada pela lealdade. Por
fim, Lepsius lembra que no modelo weberiano todo carisma é
constantemente posto à prova. No momento em que as supostas
28

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

qualidades do líder carismático não produzem mais os efeitos


esperados e não satisfazem mais os interesses dos dominados,
a relação carismática tende a se dissolver e as formas institu-
cionalizadas de dominação tendem a se dissipar. Nos termos de
Weber, ela é sempre volátil, ou seja, extracotidiana.Na visão de
Lepsius, o modelo teórico weberiano nos permite indagar qual
o graue a direção que atinge a carismatização de uma relação
social. Ou, conforme suas palavras:

Ao contrário do seu uso atual, carisma não significa prestí-


gio, popularidade ou qualidades pessoais. O carisma funda
uma relação social que modifica em seus fundamentos as
estruturas de comportamento] [...]. Um líder carismático
não é apenas uma pessoa que goza de confiança, desperta
grandes esperanças ou ao qual são atribuídas característi-
cas especiais. Um líder carismático funda uma nova posição
de liderança, uma nova estrutura de relações sociais e uma
nova definição cognitiva da situação (LEPSIUS, p.96).

Para Lepsius, naturalmente, interessa entender porque, no caso


da Alemanha, este conteúdo seguiu uma via autoritária. Por esta
razão, sua teoria não se esgotana mera exegese dos escritos we-
berianos. Na busca por explicações históricas ele introduz em
suas análises variáveis contextuais, ou seja, elementos de ordem
cultural e social. Estes, ao contrário, são sempre conjunturais e
contingentes e dependem do momento histórico e da realidade
específica de cada formação social concreta.

Em primeiro lugar, ele considera o que chama de situação ca-


rismática latente, designação que aponta certa disposição exis-
tente na história de determinado Estado-Naçãoe que predispõe
uma sociedade a assumir relações políticas de tipo carismático.
Do ponto de vista “cultural” isto implica em identificar em que
sentido estariam presentes na dimensão simbólica tradições
cognitivas, morais e expressivas que inclinam à aceitação da
autoridade carismática[Frederico II, Bismarck, etc.] Dentre os
fatores latentes, Lepsius inclui também uma dimensão “social”,
29

Carlos Eduardo Sell

assim descrita: “a condição social para uma situação carismática


latente é a percepção de uma crise. Dada sua incapacidade de
dominar a crise, as instituições políticas são deslegitimadas, e
cresce a esperança de que um “homem forte” possa superar a
situação emergencial” (p.101).

Por definição, situações latentes podem [ou não] transformar-


-se em situações manifestas, ou seja, desenvolver suas potencia-
lidades de forma real e efetiva [atual]. De qualquer forma, não
se trata de um processo “automático” e exige considerar quais
mecanismos operam esta atualização. Portanto, novos fatores
entram em jogo, o que nos leva de volta às variáveis de tipo polí-
tico. Nas palavras de Lepsius, “uma situação carismática latente
torna-se manifesta apenas quando uma exigência carismática é
levantada e uma pessoa entra em cena com a promessa de supe-
rar a crise, obtendo para isso ampla confiança” (p.101). Tal pro-
cesso exige, segue Lepsius, que se obtenha uma nova definição
da situação [dimensão do discurso] que propugne o abandono
das instituições existentes e exija a superação da crise mediante
o recurso a novos valores. A crise precisa ser encenada de tal for-
ma que a percepção da missão redentora do líder apareça como
a única alternativa possível. O recurso às eleições é fundamental
nesta construção, pois ele encena a comprovação do carisma do
líder. Nesta fase o que temos, em regra, é um movimento caris-
mático que, pela lente de Weber, Lepsius entende marcado pela
existência da “seita” [partido] e do seu líder.

Ao final, a reflexão de Lepsius volta-se para a caracterização so-


ciológica do regime nacional-socialista, quer dizer, para a ten-
tativa de tipificar sociologicamente [à la Weber] os traços deste
tipo de ditadura carismática como forma de dominação. Neste
caso, estamos diante da estrutura estatal propriamente dita.
Sem pretender entrar nos pormenores de sua descrição, ele de-
fende a tese de que a estrutura carismática erigida pelo movi-
mento nacional-socialista não suprime simplesmente a forma
estatal vigente [dissolvendo a anterior], mas erigeum “Estado
30

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

duplo” [Doppelstaat], qual seja, acoplando ao aparelho estatal


vigente [com suas características burocráticas e legais normais]
uma estrutura paralela. Ambos seguem sua própria racionalida-
de [burocrática x carismática], cabendo à estrutura carismática
garantir a condução política de todo processo, enquanto as de-
mais preenchem suas funções habituais [como a administração
por exemplo]: “este sistema de dominação é apenas parcialmen-
te carismático, ainda que em aspectos decisivos” (p.115). Trata-
-se, em suma, de uma estrutura de dominação “policrática” na
qual apenas sua parte carismática funciona sob a lógica da “mo-
nocracia carismática”.

c) Carisma e liderança nas organizações

Se a geração anterior de estudos do pós-guerra levou o tema do


carisma na direção da explicação dos movimentos totalitários é
natural que, conforme a nomenclatura de Huntington (1994), a
terceira onda da democratização avançasse, o tema tivesse que
ser recolado em novas bases. Qual o lugar o carisma nos gover-
nos representativos da atualidade? Esta guinada me parece tão
mais interessante porque, no fundo, ela volta à suas bases origi-
nais, pois, como já demonstramos, era da relação entre carisma
e democracia que tratavam os estudos do próprio Weber.

Um levantamento completo sobre como o tema do carisma e da


política é tratado, hoje, na literatura especializada, não será pos-
sível neste espaço. Na absoluta impossibilidade de resenhar este
debate aqui, vou servir-me do trabalho de HenrikGast (2008)
que me parece, pelo menos, bastante ilustrativo desta nova ten-
dência e que possui o especial mérito de buscar aplica-lo à ci-
ência política. Conforme explica o intérprete, os estudos atuais
sobre o conceito de carisma explodiram no interior da chamada
teoria das organizações. Do ponto de vista epistemológico, esta
nova tendência faz exatamente o que a geração de estudos so-
ciológicos anteriores tentou evitar, ou seja, ela busca destacar as
bases psicológicas do carisma no processo de gestão. Mas, não
31

Carlos Eduardo Sell

é aí que está a ruptura mais radical, pois, indo novamente além


de Weber, esta abordagem rompe com a ideia de que o caris-
ma é um dado inerente ao indivíduo e que ele emerge somen-
te no processo de relação. É justamente esta nova perspectiva
que Gast quer transportar parar o campo da ciência política. No
centro de seu trabalho estão duas perguntas: 1) de que modo
o carisma é gerado e, 2) que o papel dos chefes de governo na
formação deste carisma em diferentes arenas do espaço político.
Com base nestas perguntas, Gast formula deste modo seu con-
ceito operacional de carisma:

Enquanto Weber ainda entendia a dominação carismática


como um conjunto de qualidades extraordinárias de um in-
divíduo, a pesquisa contemporânea sobre o carisma tende a
reduzi-la ao fenômeno da indução e aceitação da liderança,
entusiasmo, motivação ou engajamento pró-grupo. O ele-
mento místico e heroico, que em Weber ainda se mantinha e
que parecia subtrair-se ao entendimento racional, foi aban-
donado (GAST, 2008, p.151).

A diferença na concepção do conceito é assunto que vai nos


ocupar apenas no final deste artigo. De qualquer forma, ela
ainda preserva justamente aquele que me parece ser o ponto
chave da abordagem weberiana: o papel das emoções. Por ora,
fixemos nosso olhar no esquema que Gast elabora para estu-
dar o surgimento do carisma em diferentes arenas do sistema
político institucional [organizações]. Em relação aos espaços
formais, ele escolhe como unidade de análise quatro arenas
de disputa política: a coalizão, o gabinete [ministério], a fra-
ção [grupo no interior do partido], o partido e o espaço pú-
blico mais amplo [opinião pública]. Que o esquema do autor
reflete a realidade dos sistemas parlamentaristas europeus é
tão obvio que o comentário não necessita de mais acréscimos.
Prosseguindo, Gast investiga em cada um destes quatro espaços
s seguintes variáveis:
32

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

1. Contato pessoal: dependendo da relação de proximidade


ou semelhança entre liderança e liderados, modificam-se
as formas e tipos de carisma;

2. Saber especializado: enquanto determinadas arenas exi-


gem alto grau de especialização técnica [fração, partido,
etc.], o mesmo não ocorre na esfera pública mais ampla;

3. Coesão grupal e homogeneidade: Dependendo do grau de


coesão ou conflito na unidade considerada, aumenta a
chance de liderança carismática ou não.

4. Fatores contextuais ou temporais: avaliação do fator crise


na geração do carisma e dimensionamento do fator tempo
em cada arena política específica.

Vale acentuar o fato de que as variáveis elencadas por Gast po-


dem ser lidar como um continuum que começa pelo líder [tipo
de relação], passando pelas características dos liderados [ca-
racterísticas da organização na qual se exerce a liderança], até
chegar aos fatores contextuais mais amplos [fator crise e fator
tempo]. É a partir destas premissas que Gastparte para a ela-
boração de uma lista de quatro mecanismos psicossociais pela
qual emergem [nas organizações políticas estatais] relações de
tipo carismático, a saber: 1) aidealização, 2) o visionário, 3) a
romantização [do líder], e, 4) a personalização [da relação]. Re-
tomemos cada um destes mecanismos em maior detalhe.

O modelo da idealização assume a premissa psicanalítica da di-


ferença entre o eu real e o eu idealizado. Nesta senda, a idealiza-
ção significa a projeção do eu não realizado na figura do líder que
emerge, portanto, como um substituto compensatório. Os desejos
de poder, sucesso e independência são projetados em uma figura
ideal com a qual os indivíduos se identificam. Para Gast este meca-
nismo é predominante na arena organizacional e seu fator deter-
minante não é o tipo de líder, mas as necessidades dos liderados.
33

Carlos Eduardo Sell

Esta situação se inverte no segundo modelo, denominado de lí-


der visionário. Neste caso, é o líder que formula uma nova de-
finição da situação, capaz de atrair a motivação dos liderados.
O grupo passa a trabalhar por valores e ideais que lhe dão um
novo sentido e a relação se torna carismática quando o próprio
líder encarna este novo modo de ser e agir [aspecto biográfico].
De qualquer forma, aqui o elemento “visão” [discurso] é funda-
mental e atua como elo entre liderança e liderados. O que conta,
para o líder, é sua capacidade de comunicação exercida, acima de
tudo, na esfera pública.

O terceiro tipo envolve o processo de romantizaçãoda figura do


líder. Este tipo é semelhante ao modelo anterior na medida em
que a definição [ou visão sobre] da situação é fundamental no
processo, mas, aqui, ela não é produzida pela iniciativa inova-
dora da liderança: são os próprios liderados que sentem o peso
da rotina e acabam romantizando a figura que ocupa o papel de
condução da organização [não necessariamente suas qualida-
des]. A complexidade da organização só poderia, mesmo, reque-
rer figuras fortes, acima da média geral.

Uma quarta dinâmica é a personalização da relação. Por essa via,


o centro das atenções volta ao papel exercido pelo líder. Por esta
dinâmica, quanto mais o líder promove os interesses dos lidera-
dos, maior é o sentimento de bem estar e a ligação emocional.
Por isso, a capacidade de empatia do dirigente é fundamental.
Outro fator chave é a capacidade do dirigente de figurar como
mentor dos outros indivíduos [estímulo]: quanto melhor suce-
dida, tanto mais cresce o vínculo emocional.

Nas conclusões do estudo, Gastacentua que, a depender da dinâ-


mica psicossocial, o líder (tipos 1 e 3) ou os liderados (tipos 2 e
4) podem desempenhar os papeis preponderantes do processo.
Um segundo fator é que em todos os modelos o elemento crise é
considerado um mecanismo facilitador da bilateralidade de tipo
carismático. Por fim, a arena em que as relações carismáticas
34

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

emergem varia conforme seu locus seja o gabinete, o partido e


sua fração ou mesmo a esfera pública ampla. Neste caso é a in-
tensidade pela qual ocorre a relação pessoal que conta. Pensan-
do menos no caso europeu e mais nas democracias presidencia-
listas latino-americanas, valeria destacar que para Gast o papel
da esfera pública ampla é sempre mais forte nos tipos 1 (ideali-
zação), 2 (líder visionário) e 3 (romantização) mas, segundo ele,
menor no tipo 4 (relações personalizadas).

3. Graus e direções do populismo

Esta rápida enumeração de momentos distintos na reflexão


sobre o carisma na sociologia política já nos mostra que,
ainda que haja muitos elementos de continuidade, existem
também elementos díspares e direções divergentes. Ambas
partem de Weber, mas enquanto a primeira onda de reflexão
explora mais a dimensão autoritária do carisma, a segunda
volta para sua dimensão antiautoritária. Sem ignorar estas di-
ficuldades e, ao mesmo tempo, sem aplainar as distinções, o
que pretendo, ao final deste artigo, é retomar algumas destas
contribuições para formular uma quadro teórico para o estu-
do comparativo do caráter político do populismo na América
Latina. A ideia é apontar para diferentes unidades de mani-
festação do fenômeno, permitindo-nos dimensionar tanto a
“direção” quanto o “grau” de carismatização das relações e
das estruturas políticas. E, nunca custa lembrar, isto de forma
sempre típico-ideal.

No tocante à dimensão histórico-latente, vimos que, enquan-


to parte da literatura adotou o pressuposto de que o carisma
constitui um elemento permanente da vida social e política,
outra vertente explorou seu lado excepcional e patológico.
Para a primeira vertente, o carisma será disfuncional apenas
se não corretamente processado politicamente, seja na for-
ma de bloqueio, seja na forma de filtro: o carisma que vem da
35

Carlos Eduardo Sell

sociedade é absorvido pelas instituições políticas. Já a segun-


da versão entende que a irrupção do carisma enquanto força
desagregadora do sistema está condicionada por elementos
contingentes presentes na cultura [tradições de discurso po-
lítico] e no plano social tem seu elemento detonador em mo-
mentos de crise. Neste último caso, a dimensão carismática
latente na vida social colide e tende a dissolver e modificar o
sistema político.

O elemento institucionalé outra variável fundamental na análise.


O populismo é um tipo de fenômeno político que pode operar
em regimes representativos e, por outro, pode constituir-se em
movimento que almeja a constituição de um regime autoritário.
A diferença é que no primeiro caso a liderança carismática ape-
la ao povo como recurso estratégico na concorrência eleitoral e
na disputa política com os adversários, mas sempre dentro dos
marcos da regra do jogo. Neste contexto, formas populistas são
dificultadas por democracias de tipo parlamentar [liberais] e fa-
cilitadas em democracias plebiscitárias [iliberais]. Já na sua ver-
são autoritária, o populismo busca constituir o povoativamente
como ator político a ser mobilizado visando à suplantação de
adversários políticos ou mesmo o monopólio do poder [supres-
são da disputa]. De uma ponta até outra, o que varia é o grau de
concorrência admitido na luta pelo poder e o modo de utilização
do carisma em relação aos concorrentes, adversários ou inimi-
gos do jogo político.

Nesta mesma dimensão, variam o tipo de liderança exigida e seu


papel no processo político. Nos regimes representativos, a lide-
rança carismática é exercida como estilo de condução política.
Trata-se de um mecanismo de aproximação com os eleitores
e governados via demagogia [democracias parlamentares] ou
como estratégia que busque apoiar-se explicitamente no poder
popular [via plebiscitos e referendos] para garantir a implemen-
tação de certas agendas. Nos casos autoritários, o líder [já no
exercício do poder, ou ainda não] exerce o papel de visionário a
36

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

combater a ordem estabelecida e aqueles que a sustentam, apre-


goando a necessidade de constituição de uma nova estrutura
política. Se for bem sucedido, a fusão líder/movimento/povo
precisa ser acoplada ao Estado Burocrático através de meca-
nismos que garantam sua direção carismática. De visionário, o
líder passa a chefe.

Neste processo, variam os mecanismos pelos quais ocorre, de


forma bilateral, a relação entre [tirar] emocional entre líderes
e liderados. Em regimes parlamentares de democracia é o me-
canismo da personalização que tende a predominar, elemento
que se torna romantizado em ambiente de democracia plebisci-
tária. Líderes de movimentos, por sua vez, precisam catalisar a
insatisfação e, nesta medida, promovem elementos visionários ao
qual se agrega ainda a idealização [culto ao líder], especialmente
nas suas versões mais extremas [regimes]. O que ocorre é que
o fundamento emocional vai estabelecendo diferentes mecanis-
mos de projeção e identificação dos liderados com a liderança.

Segue daí que prestar atenção à base da pirâmide não é de so-


menos importância. Em regimes representativos [parlamenta-
res ou plebiscitários], o povo não é constituído como um coletivo
homogêneo, ou seja, como uma comunidade emocional [através
de ideologias e estruturas próprias, em particular, o partido e o
movimento]. O recurso à ideia povo ocorre de forma abstrata e
funciona como recurso simbólico, seja na forma de uma aproxi-
mação, seja na forma de sua utilização como recurso estratégi-
co de pressão: trata-se, principalmente, de retórica. Em termos
weberianos existe uma dinâmica de tipo “societária” na vertente
antiautoritária [Gesellschaft] e uma dinâmica “comunitária” [Ge-
meinschaft] na sua linha autoritária. O que varia, de uma ponta
à outra, é o grau de passividade e mobilização do coletivo povo
que aumenta e se institucionaliza conforme passamos de um
tipo ideal para outro.
37

Carlos Eduardo Sell

A análise do populismo segundo níveis de manifestação do fe-


nômeno, englobando suas condições histórico-latentes, cultu-
rais, institucionais e psicossociais, não deve nos conduzir nem
a fragmentação analítica e nem nos levar àsaporias do holismo
metodológico, que supervaloriza os fatores históricos e suas
bases sociais (como o fator classe), ou do individualismo meto-
dológico restrito, que reduz o populismo ao estilo de gestão do
governante. Na base do conceito repousa a tese de que o poder
carismático é uma forma de relação que interliga, com base em
fundamentos emocionais, líderes e liderados. Da definição não
pode faltar o caráter bilateral [relacional] e, principalmente,
seu caráter emotivo. Do contrário, como já diria Weber, ele seria
amorfo. É a partir deste núcleo central que práticas, instituições,
processos e pressupostos socioculturais do populismo podem
ser investigados de forma integrada.

O caráter carismático/emocional,base de qualquer forma de


populismo, também não significa que toda atividade política se
reduz a este fator, nem que o cálculo de custos benefícios [Ratio-
nalChoice) ou a deliberação pública [Democracia deliberativa]
estejam excluídas enquanto possibilidade e realidade empírica
do processo político, como afirmam os críticos de Weber. Mas a
política também não se reduz a apenas um ou outro destes fato-
res. Portanto, entendo que o ponto de vista weberiano é útil para
pensar os aspectos emocionais lá onde eles se aplicam. O popu-
lismo é um destes casos. Assim, assumimos aqui a tese de que o
populismo, mais do que uma forma personalizada de gestão po-
lítica, construção discursiva, regime político ou manifestação de
classe, constitui-se, em seu núcleo fundamental, com base exa-
tamente neste elemento carismático-emocional. Estes fatores,
portanto, representam apenas direções ou graus distintos de
um mesmo fenômeno que se manifesta em lócus e intensidades
diversas, a depender das contingências históricas, exatamente a
ideia que o esquema abaixo pretende sugerir.
38

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

Quadro 02: Graus e direções da dominação carismática populista

CARISMA Grau
Direção Carisma antiautoritário Carisma autoritário

Dimensão Delegado do Líder/Chefe/Duce


Demagogo Visionário
Subjetiva (Líder) povo (César) Dirigente
Dimensão
Personalização Idealização Visionário Romantização
Relacional
Dimensão Dem/ Dem/
Movimento Regime
organizacional Parlamentar Plebiscitária
(Bewegung) (Gemeinschaft )
(Regime) (Liberal) (Iliberal)
Eleitoral/ Eleitoral/ Sociedade
Arena política Estatal
Governo Governo Civil
Dimensão Povo como Povo c/ Povo como Povo como
societária recurso recurso comunidade destinatário do
(Povo) simbólico estratégico organizada regime
Dinâmica
Individualizada Individualizada Coletiva Coletiva
societária
Dinâmica política
Concorrência Pressão Suplantação Eliminação
[Antagonismo]
Forma de Estrutura
Definição de Estilo eleitoral Estilo de gestão
Mobilização carismática ao
populismo Carismático carismático
carismática Estado Burocrático

4. O caráter político do populismo

Em que medida o modelo acima pode ser considerado uma so-


ciologia weberiana do populismo? Não se trata, ao final, apenas
de uma sociologia da dominação carismática tout court, na qual a
categoria populismo simplesmente submerge e fica reabsorvida
no conceito de carisma, da qual acaba sendo sinônima? Como de-
terminar com precisão o que é específico do carisma, de um lado,
e do populismo, de outro, sem apagar as diferenças e, ao mesmo
tempo, estabelecer uma conexão entre estes dois fenômenos?

Para interligar populismo e carisma, sob uma ótica weberiana,


penso que, em princípio, duas via seriam as mais óbvias. Na pri-
meira, o carisma é apenas uma dimensão do populismo, o que
39

Carlos Eduardo Sell

significa que o segundo termo é dominante em relação ao pri-


meiro. Neste prisma o carisma é sempre uma das característi-
cas que integram o fenômeno populista. Na tipologia de Kennet
Roberts (1995), para citar um exemplo, o populismo é caracte-
rizado por cinco elementos: 1) estilo personalista de liderança
política, 2) uma coalização política heterogênea focalizada em
grupos marginalizados, 3) processo de mobilização política as-
cendente [pela via eleitoral ou pela via movimentista], 4) uma
ideologia política focada na divisão povo x elite, 4) projetos eco-
nômicos redistributivos ou clientelistas. Esta enumeração já dei-
xa claro que, seguindo-se este viés, o carisma seria apenas um
elemento (necessário, mas não suficiente) do amplo conjunto de
características do populismo. Nesta linha de análise, Weber se-
ria apenas um aporte para uma sociologia do carisma [parte] no
populismo [todo] ou, em termos ainda mais sintéticos, para uma
sociologia da liderança carismática de tipo populista. A sociolo-
gia weberiana seria útil apenas para pensar a liderança carismá-
tica, mas não o populismo como um todo.

Embora considere esta perspectiva válida [e, no mínimo, neces-


sária], entendo que se pode aventar ainda a hipótese de constru-
ção de uma teoria do populismo como forma específica de mani-
festação histórica e política do carisma, ou seja, uma sociologia
do populismo como subtipo da dominação carismática. Neste
caso, a perspectiva se inverte e o populismo é que é transforma-
do em caso possível da dominação carismática, quer dizer, o que
temos é uma sociologia do populismo [parte] no carisma [todo].
Formulando de outra maneira, esta hipótese nos dá a chance de
desenvolver uma sociologia da dominação carismática de tipo
populista. A sociologia weberiana seria útil para pensar não só
a liderança carismática isoladamente, mas também o caráter es-
pecífico do populismo na sua dimensão política.

Esta segunda perspectiva, muito mais ampla, é sugerida [mas


não aprofundada] em texto de Stefan Breuer (2006). O estudio-
so critica especialmente a incapacidade do conceito tradicional
40

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

de populismo de recobrir fenômenos diversos temporalmente


[como os fazendeiros americanos e Narodniks ou mesmo o getu-
lismo varguista] e distintos espacialmente [Populismos na Améri-
ca Latina e na Europa], sem chegar a qualquer unidade conceitual
capaz de abarcar estas diferenças. Ele também ataca outra pre-
missa básica destes estudos que os compreendem como essen-
cialmente antimodernizantes ou como expressões patológicas de
modernizações mal sucedidas. Trata-se, segundo ele, de assumir
que o carisma está contido na própria modernidade. Somente
superados estes pressupostos, sustenta Breuer, “é que se torna
possível situar o populismo no horizonte daquilo que em Weber
significava o carisma no contexto da modernidade” (2006, p.145).

O que a incipiente proposta de Breuer sugere, pois, são impor-


tantes pistas para pensar o populismo não apenas como fenô-
meno transitório [que ocorre somente em sociedades em vias de
modernização], ou patológico [fruto das falhas no processo de
modernização]. Além disto, sob o aspecto especificamente po-
lítico, a diversidade espacial do fenômeno poderia ser supera-
da remetendo-se o populismo a um denominador comum, quer
dizer, entendendo-o como um caso específico de um fenômeno
que o engloba, a saber, a dominação sob sua forma carismática.
No entanto, penso que não se deve apagar por completo o que
existe de sui generis no populismo. Por essa via, a sugestão de
Breuer precisa ser aperfeiçoada.

Por este motivo, entendo que a díade liderança [carisma] e li-


derados [povo] é constitutiva do fenômeno populista e precisa
ser considerada. Ocorre que lideranças carismáticas podem se
relacionar com outras entidades coletivas [reais ou simbólicas],
como a raça, a classe, a nação originária, um grupo messiâni-
co, etc. Note-se que temos o mesmo elemento geral carismáti-
co [emocional] mediando à relação líder/liderados [elemento
permanente], mas são outras as entidades coletivas que estão
na base social [elemento variável]. Por isso, importa frisar mais
uma vez. Na sua dimensão geral, o populismo pertence ao gê-
41

Carlos Eduardo Sell

nero [próximo] da dominação carismática, mas quanto a sua


particularidade trata-se de um subtipo [diferença específica]
caracterizado pela relação entre a liderança carismática e uma
entidade reclamada ou constituída como “povo”. Isto não quer
dizer que o balanço entre os dois elementos seja sempre o
mesmo. A dimensão carismática da liderança varia de nature-
za e intensidade passando desde a figura do líder parlamentar
[componente eleitoral], passando ao presidente [componente
da gestão], mas ela é preponderante em relação à sua base so-
cial, que fica dispersa: a relação carismática como estilo de fa-
zer política não anula a individualidade e o recurso à ideia de
povo aparece como discurso. Nas suas formas autoritárias, a
dimensão base acompanha na mesma intensidade o fervor da
liderança, pois se opera um processo de fusão entre a lideran-
ça e as individualidades que ficam suspensas, dado que estão
agrupadas [via recursos concretos como ideologia, movimentos
ou regime] segundo um atributo coletivo a elas sobreposto.Em
suma, é nesta dupla dimensão que interliga, carismaticamente,
lideranças e liderados, constituídos [simbolicamente ou real-
mente] enquanto povo, que podemos definir o caráter do popu-
lismo enquanto fenômeno político.

5. Nota final

Se a coruja de Minerva sempre levanta voo ao entardecer, pos-


sibilitando nos ver, com mais calma, os fenômenos post facto,
na América Latina, este momento parece já ter chegado. Atual-
mente, a onda populista de esquerda, apesar de ainda hegemô-
nica, parece adentrar em uma segunda fase. Na Venezuela, com
a morte do Chávez, ela tem continuidade na figura de Nicolás
Maduro; na Argentina, com a morte de Nestor Kirchner, pela li-
derança de Cristina Kirchner, no Brasil, a liderança de Lula foi
substituída, com seu patrocínio direto, pela burocrática gestão
de Dilma Rousseff. Tal tendência sugere, por sinal, que agora é o
tema da sucessão do carisma que está em jogo.
42

A LIDERANÇA CARISMÁTICA: SOBRE O CARÁTER POLÍTICO DO POPULISMO

Mas, se este é um tema que ainda está por vir, tarefa específica
deste texto foi sugerir um aporte weberiano de análise do po-
pulismo. Definido como um subtipo peculiar de dominação ca-
rismática abre-se caminho para caracterizá-lo adequadamente
na sua dimensão especificamente política, sem reduzi-lo a epife-
nômeno de classe, abordagem na qual sua natureza fica diluída.
Nesta direção, um aporte weberiano é essencial.

Por fim, apenas mais um rápido comentário, de ordem norma-


tiva. Da mesma forma que, segundo afirmava Weber, o Estado
não deve ser definido pelos seus fins, também o populismo não
se explica pela ideologia ao qual serve: da direta nacionalista ou
neoliberal, passando pelo reformismo fraco ou forte, ele se aco-
pla a múltiplos fins. Mas, isto não quer dizer que a perspectiva
weberiana está desprovida de premissas normativas pelas quais
possamos avaliar o fenômeno e, estas são bem claras: a demo-
cracia e a liberdade. O Estado Democrático de Direito, enfim.

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Recebido em 10.08.2013
Aprovado em 20.10.2013

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