A Sádica Nostalgia Das Fogueiras-Natália Correia
A Sádica Nostalgia Das Fogueiras-Natália Correia
A Sádica Nostalgia Das Fogueiras-Natália Correia
FRANCISCO TOPA*
*
Docente da Universidade do Porto. Doutor pela Universidade do Porto.
1
Cf. Azevedo, 1997 e Esteves, 2005.
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judicial1 que teve por base a Antologia de poesia portuguesa erótica
e satírica (Correia, 1966), no qual figuraram como réus Natália
Correia, a organizadora, Fernando Ribeiro de Melo (*1941
†1992), o editor, e alguns dos poetas com textos incluídos no
volume e que estavam vivos à época. Com efeito, há neste caso
uma série de elementos ignorados e que vale a pena revelar e
tomar como motivo de reflexão, numa época em que quase todos
os protagonistas já desapareceram – e, em muitos casos, foram
esquecidos – e em que outras formas de censura e de vigilância do
pensamento se vão impondo.
O primeiro aspeto menos conhecido tem a ver com a duração
do processo: sete anos e meio, o tempo que separa a primeira peça,
datada de 17-I-1966, da última, de 27-VI-1973. Aquela é o despacho
que manda instaurar procedimento criminal contra os responsáveis
da Antologia, com o argumento de que se trata «(…) em cada um
dos seus escritos, especialmente dos inéditos da autora e de outros
que ela divulgou, e no seu conjunto [de] um caso de evidente
ultraje à moral pública.» (f. 2). O último elemento é o «AUTO
DE INUTILIZAÇÃO [pelo fogo] DO LIVRO DENOMINADO
“ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA ERÓTICA E
SATÍRICA”» (f. 491), em que foi oficiante o juiz corregedor João
de Sá Alves Cortez – que chegaria a juiz do Supremo Tribunal
de Justiça em setembro de 19842 – e o adjunto do Procurador da
República Carlos Manuel da Costa Saraiva. Com a referência a
este aspeto não quero sugerir apenas que a lentidão da máquina
judicial não é exclusiva da democracia; quero sobretudo pôr em
evidência uma das peripécias mais interessantes do processo, a
existência de dois inquéritos e de duas acusações, devido a um
erro na primeira fase, detetado e declarado pelo ajudante (termo
da época) do Procurador da República no 4.º Juízo Criminal de
Lisboa.
O segundo aspeto menos conhecido tem a ver com os
elementos concretos da acusação. Depois de uma fase de
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interrogatório na subdiretoria da Polícia Judiciária de Lisboa, que
começa a 18-I-1966 com Natália Correia, a acusação será feita a
9-VII-1966, vindo assinada por Fernando Lopes de Melo. No seu
ponto 4, lê-se o seguinte:
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para os trechos citados pelo acusador, verifica-se que houve uma
clara secundarização da vertente satírica – apesar do conteúdo
sociopolítico que ela apresenta em alguns casos –, valorizando-
se quase que em exclusivo a dimensão erótica e, dentro desta, o
uso do chamado palavrão, em particular o que designa órgãos e
práticas sexuais (v.g. cono/cona, crica, cu, cagueiro, caralho, caralhão,
caralhada, porra, arquiporra, pica, piça, mangalho, colhões, pentelho,
foder, fornicadela, langonha, minete, corno, puta). A leitura parece
pois ter sido feita em diagonal, de meio do volume para a frente
(além dos poetas medievais, ficaram de fora vários clássicos),
e com o mero objetivo de encontrar palavras e expressões que
chocassem, quod erat demonstrandum.
O terceiro aspeto menos conhecido do processo diz respeito
aos arguidos, seus advogados e testemunhas arroladas. Quanto aos
primeiros, são bem sabidos os que acabaram por sair condenados:
Natália Correia, o editor Fernando Ribeiro de Melo e os poetas
Mário Cesariny de Vasconcelos (*1923 †2006), Luiz Pacheco,
Ary dos Santos (*1937 †1984) e E. M. de Melo e Castro (*1932).
Houve contudo mais dois arguidos: Geraldo Soares, jornalista de O
Século, e Francisco Marques Esteves, empregado de escritório, que
forneceram a Natália Correia inéditos de poetas contemporâneos
já falecidos à época (como Silva Tavares, António Botto [*1897
†1959] ou Carlos Queiroz). O primeiro desses dois implicados virá
a morrer no decurso do processo, a 1-IV-1967 (f. 166), vítima de
tumor pulmonar, ao passo que o segundo será absolvido. Quanto
aos advogados, podemos dizer que os arguidos – e depois acusados
– foram representados pela fina-flor da advocacia da época que
militava na oposição ao regime: Manuel João da Palma Carlos
(falecido em 2001, aos 86 anos, na sequência de um incêndio que
atingiu o lar de idosos em que vivia e que vitimou mais cinco
ocupantes), o qual defendeu Natália Correia, Ribeiro de Melo
e Francisco Marques Esteves; Fernando Luso Soares (morto
em 2004 e que se destacou também como ficcionista, ensaísta
e dramaturgo), advogado de Mário Cesariny; Francisco Salgado
Zenha (desaparecido em 1993), que tinha como constituinte
Melo e Castro; José Vera Jardim (*1939), que representou Ary
dos Santos (embora a dada altura subestabeleça num colega); e
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ainda Francisco Vicente, que acompanhou Artur Geraldo Soares,
e um advogado oficioso atribuído a Luiz Pacheco que seria mais
tarde substituído por António de Sousa. É curioso notar que
dois dos elementos desta pequena lista viriam a ser ministros da
justiça depois da Revolução dos Cravos (Salgado Zenha e Vera
Jardim) e que um outro, Palma Carlos, teve o mesmo destino dos
exemplares da Antologia apreendidos pela PIDE: a destruição
pelo fogo. Sinais dos tempos, certamente, sobre os quais importa
meditar.
Quanto às testemunhas arroladas pelos arguidos, a reflexão
é mais difícil de fazer, devido ao seu número e diversidade,
por um lado, mas sobretudo porque implicam frequentemente
relações pessoais hoje difíceis de reconstituir. Seja como for,
observa-se um nítido predomínio de grandes figuras (quase
sem exceção do setor intelectual e, tirando Fernanda Botelho,
todas masculinas), num aparente sinal de solidariedade que não
pode deixar de nos surpreender. Dominam os escritores, com
alguns nomes previsíveis, como Bernardo Santareno, Urbano
Tavares Rodrigues, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Luiz
Francisco Rebelo (autor de uma parte da badana e que integra
também a antologia), José Cardoso Pires, Alexandre O’Neill (um
dos antologiados) ou Jaime Salazar Sampaio; mas há também
nomes menos esperados, como Vergílio Ferreira, João Gaspar
Simões, José Régio ou David Mourão-Ferreira (os dois últimos
colaboradores do volume e David também autor de uma parte
da badana); e dois um tanto surpreendentes: Almada Negreiros
(indicado por Ary dos Santos) e António Manuel Couto Viana
(arrolado por Luiz Pacheco). Entre as testemunhas há ainda um
número razoável de críticos (José-Augusto França, Rui Mário
Gonçalves, Tomás Ribas, José Palla e Carmo, João Palma-
Ferreira, Serafim Ferreira), alguns pensadores (José Marinho,
Orlando Vitorino), professores (Hernâni Cidade, Vitorino
Nemésio), médicos (Francisco Barreto Alvim, Almerindo Lessa),
editores (Vítor Silva Tavares, António Palouro), um arquiteto do
calibre de Conceição Silva, um compositor como Lopes Graça ou
um jurista como Fernando Abranches Ferrão. Mas há igualmente
duas figuras à partida difíceis de compreender: João Bernardo
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Gíria (provedor da Misericórdia da Covilhã e simpatizante do
regime, indicado por Melo e Castro) e, sobretudo, o jornalista e
crítico Amândio César (arrolado por Luiz Pacheco como forma de
pressionar os principais arguidos a arranjarem-lhe um advogado
que não fosse oficioso3).
Uma quarta vertente do processo que vale a pena pôr em
relevo diz respeito à peripécia jurídica a que já aludi. A 10-V-
1967, o ajudante do Procurador da República, em ofício ao juiz-
corregedor presidente do 4.º Juízo Criminal de Lisboa, nota
que há no processo «certas anomalias que cumpre debelar.» (f.
176): na sua opinião, um dos elementos essenciais do crime de
que os réus são acusados consistiria em expor, pôr à venda ou
publicitar de qualquer forma o impresso; «Ora, os elementos
recolhidos em instrução não permitem com segurança – mesmo
no campo mèramente indiciário – concluir pela verificação de tal
requisito que, possivelmente, se terá dado». Conclui portanto que
terá havido um lapso do seu antecessor e que a pronúncia estaria
viciada, dando assim por verificada a nulidade, por insuficiência
do corpo de delito. Solicita por isso a anulação de uma parte
do processado e o envio dos «autos à Polícia Judiciária para a
regularização e feitura das necessárias diligências, indispensáveis
ao esclarecimento da verdade.» (f. 176v). Mesmo não tendo
formação jurídica, julgo poder observar que o magistrado fez aqui
o papel que caberia à defesa, a quem terá escapado um aspeto
talvez dado por adquirido.
Nove dias depois, os autos são remetidos para a subdiretoria
da Polícia Judiciária de Lisboa, que a 6 de julho recebe um ofício
da PIDE (f. 192) comunicando a apreensão de 24 exemplares
da Antologia em casa de Natália Correia e 13 na Tipografia da
Sociedade Astória que se destinavam à Biblioteca Nacional.
Satisfeito aparentemente o quesito invocado pelo ajudante do
Procurador da República, o processo volta ao 4.º Juízo Criminal
de Lisboa e, a 1-II-1968, é deduzida nova acusação contra os
3 O esclarecimento é de João Pedro George: «A escolha de Amândio César, homem
de direita e funcionário do regime, tinha uma intenção muito clara: obrigar Natália
Correia e Ribeiro de Melo a arranjarem-lhe um advogado para o processo da Antologia
(por impossibilidade económica, tivera de requerer um defensor oficioso). A manobra,
segundo ele, resultou em cheio.» (George, 2011: 377).
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mesmos réus (à exceção de Artur Geraldo Soares, que entretanto
tinha falecido). Os termos do libelo são idênticos, mantendo-se
também os 29 exemplos, a que se juntam contudo outros 13, todos
da autoria de algum dos arguidos: um é retirado de um texto de
Luiz Pacheco, nove pertencem a Ary dos Santos, ao passo que
os restantes três são de Melo e Castro. Percebe-se o objetivo de
tentar implicar mais diretamente cada um dos acusados, o que
é confirmado pela natureza diferente destes trechos: embora às
vezes esteja em causa uma linguagem crua e o recurso ao palavrão,
parece – sobretudo nos casos de Luiz Pacheco e Ary dos Santos
– que é o alcance sociopolítico e o efeito iconoclasta que é objeto
de reparo e de tentativa de criminalização. Vejam-se os seguintes
dois exemplos (f. 232), um de cada autor:
pater.»
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abertos por Carolina Michäelis de Vasconcelos [como já fizera
no prefácio] e nos nossos dias por Elsa Pacheco Machado e do
Doutor Rodrigues Lapa, que publicaram respectivamente, o
Cancioneiro da Biblioteca Nacional e as Cantigas de Escarrnho e
Maldizer, colecções essas de nível universitário que são vendidos
(sic) abertamente nas nossas livrarias e nas quais se encontram
algumas das produções que vêm na Antologia referida nos autos
e cuja terminologia é pelo menos tão violenta como a da presente
Antologia, se não for mais.» (f. 6). Na contestação à primeira
acusação, afirma – ela ou o seu advogado, Manuel João da Palma
Carlos – de modo contundente, numa retomada dos argumentos
habitualmente usados pelas vítimas de processos deste tipo:
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Um dos elementos interessantes apresentados por Natália
Correia é uma carta do poeta Eugénio de Andrade, em que este
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declara:
civilizado
131
Carta de Eugénio de Andrade
132
a quatro anos de trabalhos forçados.» (f. 106); e Baudelaire e as
Flores do mal, obra perante a qual «o tribunal limitou-se a ordenar
a supressão de seis poemas sobre um total de cem que na opinião
prudente dos juízes podiam constituir atentado contra a moral
pública.» (f. 106). Noutro momento, comentando o prefácio de
Natália Correia, inverte a acusação contra os acusadores:
133
de prisão ao abrigo de outro processo4; por outro lado porque,
acossado por crónicos problemas materiais, se viu obrigado a pedir
a nomeação de um advogado oficioso; por último porque, devido
aos mesmos motivos, acabou por ter a multa a que foi condenado
substituída por pena de prisão, ainda que – aparentemente – não
tenha chegado a cumpri-la. Na contestação à primeira acusação,
o autor de O libertino passeia por Braga, a idiolátrica, o seu esplendor
escreve que, correspondendo ao pedido de Natália Correia, teve
julgamento. Lérias.
4 A acusação, formulada junto do tribunal da Sertã, era de rapto e estupro (de Maria
Irene, companheira de Pacheco). O processo foi colocado pelo pai e pela irmã de Irene,
que vivera anteriormente com o escritor. Cf. George, 2011: 111 e 126.
5 Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Espólio de Natália Correia,
D9/1565.
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Embora acompanhe o processo à distância, Pacheco
percebe-o com clarividência: «Da leitura do libelo e dos versos
citados guardei e acentuei a opinião que já tinha: querem a todo
o custo evitar um processo político, e manter-nos no banco dos
pornográficos (…)» (ibid.). Também por isso, numa outra carta6,
insiste na necessidade de se planear uma defesa coletiva, tanto
mais que a Antologia, por razões diversas, suscitara oposição de
todos os quadrantes:
6 D9/1589.
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Para terminar esta abordagem da estratégia de defesa dos
incriminados, vale a pena referir ainda a contestação apresentada
por Francisco Salgado Zenha, advogado de Melo e Castro, à
segunda acusação. Parecendo mostrar que não chegou a haver
uma concertação entre os arguidos, esta resposta destaca-se
pela cuidada elaboração retórica e pelo tom irónico (e mesmo
humorístico), surpreendente se pensarmos nos contornos
políticos de um processo que seria julgado em Tribunal Plenário,
numa época em que os advogados eram frequentemente alvo de
perseguição, aliás bem exemplificada no caso de Salgado Zenha.
A ideia principal é a de que os poemas de Melo e Castro incluídos
na Antologia resultam de «experiências de tipo poético, em que os
fonemas são utilizados não no seu sentido lógico e explícito, mas
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sim nas suas possibilidades fonéticas» (f. 256). Daqui resultaria a
sua falta de sentido ou:
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pelo Tribunal, sob pena de se condenarem os arestos judiciários a um
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Escusado será sublinhar que Agostinho Tienza é o antigo
motorista de Rosa Casaco que, segundo depoimento ao Expresso
do seu ex-superior7, assassinou a secretária de Humberto Delgado,
Arajaryr Campos, a 13 de fevereiro de 1965, perto de Badajoz.
139
Antologia apenso ao processo
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reconhecimento público da obra, admitia o autor do segundo
Hospital das Letras que «é provável que também suscite, em meia
dúzia de paranóicos, em duas ou três dezenas de recalcadas, a
sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício». Uns e outras – e
não sei até que ponto faz sentido essa distinção de género – viram
de facto a sua exigência satisfeita: de forma efetiva, com a queima
de 38 exemplares; de forma simbólica, com a queima em lume
brando, ao longo de tanto tempo, de Natália Correia e de alguns
dos seus colaboradores; e ainda com a queima alegórica mas
material – num acidente sem culpados – do advogado Manuel
João da Palma Carlos. Mais de quarenta anos depois, o caso
continua a merecer séria reflexão.
GEORGE, João Pedro – Puta que os pariu! A biografia de Luiz Pacheco. Lisboa:
Tinta da China, 2011.
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