Dissertação - A Gira de Escravos

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GIRA DE ESCRAVOS:

A MÚSICA DOS EXUS E POMBAGIRAS NO


CENTRO UMBANDISTA REI DE BIZARA.

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO


EM MÚSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA COMO
REQUISITO PARCIAL À OBTENÇÃO DO GRAU DE
MESTRE EM MÚSICA.

MACKELY RIBEIRO BORGES

SALVADOR – BAHIA
OUTUBRO/2006
Resumo

Os Exus e as Pombagiras são as entidades mais controversas da Umbanda.

Devido a esta natureza, a presença destes espíritos nos centros umbandistas é, em geral,

restrita ou muitas vezes até evitada. No Centro Umbandista Rei de Bizara estas entidades

ocupam um papel de destaque tanto no espaço sagrado quanto na execução de

determinadas atividades. Este centro umbandista realiza mensalmente uma cerimônia em

homenagem aos Exus e Pombagiras denominada Gira de Escravos, e nela constatamos a

existência de um repertório musical específico que merece ser melhor entendido.

Com o objetivo de compreender a música dos Exus e Pombagiras e a

importância destas entidades dentro da prática umbandista deste centro, após a Introdução

(Capítulo 1), o Capítulo 2 contextualiza o surgimento da Umbanda no Brasil, mostrando a

sua trajetória marcada pela busca de uma institucionalização e legitimação diante da

sociedade e do Estado brasileiro, apresentando uma visão geral da prática umbandista e das

entidades cultuadas através da revisão da literatura.

O Capítulo 3 se concentra no Centro Umbandista Rei de Bizara, abordando a

sua história, estrutura social, hierarquia e o lugar ocupado pelos Exus e Pombagiras, assim

como a importância dos instrumentos musicais e seus executantes.

O Capítulo 4 faz uma descrição minuciosa da Gira de Escravos. Apresenta a

transcrição dos toques que acompanham os pontos cantados. Propõe uma classificação das
iii
cantigas levando em conta a visão êmica e sugere possíveis interpretações das estruturas

melódicas, dos textos e da forma de cantar.

As conclusões até aqui obtidas são apresentadas no Capítulo 5. As transcrições

musicais e as ilustrações fotográficas, obtidas em seu contexto original, constam do corpo

desta dissertação à proporção que se tornam necessárias para exemplificar os problemas

abordados.

iv
Abstract

The Exus and Pombagiras are controversial entities from Umbanda. Due to this

nature, the presence of these spirits in Umbanda centers are, in general, restricted and

avoided most of the time. In the Centro Umbandista Rei de Bizara these entities have a

prominent role, in the sacred place as well as in the accomplishment of some of the

activities. This Umbandista Center holds a monthly ceremony in honor of the Exus and

Pombagiras called Gira de Escravos, and in this we verified the existence of a specific

musical repertory which deserves to be better understood.

With the goal of understanding the music of Exus and Pombagiras, and the role

of these entities in the Umbandista practice of this center, after an introduction (Chapter 1),

Chapter 2 shows the context of Umbanda´s beginnings in Brazil, showing its trajectory

marked by the search for establishment and legitimation in Brazilian government and

society, and presenting a general view of the Umbandista practice and the worshipped

entities through a review of literature.

Chapter 3 focus on the Centro Umbandista Rei de Bizara, approaching its

history, social structure, hierarchy, and the role of Exus and Pombagiras, as well as the

importance of musical instruments and their performers.

Chapter 4 provides an accurate description of Gira de Escravos. It includes the

analysis of the instrumental accompaniment of the chants, and proposes a classification of


v
songs based in a emic view. Possible interpretations of the melodic structure, the text, and

the model of singing are included.

The Conclusions obtained till now are presented in Chapter 5. The musical

transcriptions and pictures, captured in the original context, are in the body of the

dissertation as long as they are necessary to exemplify the approached issues.

vi
Agradecimentos

À Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, seus professores e

funcionários.

À minha orientadora, amiga, Dra. Sônia Maria Chada Garcia, que tanto

contribuiu para o meu crescimento e me mostrou, através da Etnomusicologia, uma nova

forma de pensar sobre música.

Ao professor Manuel Veiga pelo carinho e incentivo.

À professora Ângela Lühning por todas as orientações dadas durante as aulas e

no Tirocínio Docente.

À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa na Bahia) que me concedeu uma

bolsa de estudos durante um ano, o que ajudou muito na realização desta pesquisa.

Ao Diretor-Secretário da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro

(FENACAB), Sr. Antoniel Ataíde Bispo, pelas valiosas informações sobre a Umbanda na

Bahia e em Salvador.

Ao meu marido e grande companheiro Christian Lisboa, por todo o amor e

compreensão, estando ao meu lado em todos os momentos, inclusive durante o trabalho de

campo.

Aos meus pais, Marisa e Aurelino (in memoriam) por terem me apoiado em

tantos aspectos da minha vida.


vii
À Adriana Pereira de Macedo da Silva (tia Adriana), uma pessoa especial e

referência inesquecível, que cruzou o meu caminho transformando o meu destino.

As minhas irmãs, Gerusa, Letícia e Camila, e aos meus irmãos de coração,

Eraldo, Silas e Emílio que, mesmo à distância, me incentivaram com palavras de carinho.

A minha segunda e aventureira família, Nino, Marisa e Richard por todo o

amor e pelos exemplos de vida.

A todas as pessoas do Centro Umbandista Rei de Bizara, que tão bem me

acolheram. Em especial à Amélia Cândida da Silva (Tia Preta) e Kátia de Jesus dos Santos

(Katinha), pela confiança e pela ajuda durante toda a pesquisa e sem a qual este trabalho

não teria sido possível; Noeli de Jesus dos Santos (Noli) que me ensinou, com muita

paciência, os ritmos do atabaque e do agogô e a Sérgio Franklin pela amizade e confiança.

A todos os Exus e Pombagiras, com suas histórias e seus pontos cantados, que

permitiram a realização desta pesquisa.

viii
Sumário

Resumo iii

Abstract v

Agradecimentos vii

Capítulos

1. Introdução 1

2. A Umbanda no Brasil

2.1. O surgimento de uma religião 6

2.1.1. A desafricanização: a negação africana 20

2.1.2. A reafricanização: a afirmação africana 25

2.2. O culto umbandista 45

2.3. As entidades cultuadas 54

3. O Centro Umbandista Rei de Bizara

3.1. Do Rio de Janeiro para Salvador 68

3.2. A estrutura social: cargos e hierarquia 74

3.3. Os instrumentos musicais e seus executantes 81

3.4. A divisão do espaço físico 85

3.4.1. O lado direito 87

3.4.2. O lado esquerdo 95


ix
4. A Gira de Escravos

4.1. A festa dos Exus e Pombagiras 132

4.2. O acompanhamento instrumental 152

4.3. A classificação dos pontos cantados 162

4.4. Os textos: alguns significados 178

4.5. As melodias: possíveis interpretações 183

4.6. A maneira de cantar 191

5. Conclusão 197

Anexos

1. Textos dos pontos cantados 202

2. Ficha, folhetos e apostilas 215

3. Lista com as músicas do CD 237

Bibliografia 238

x
Para Christian
Helena e Eduardo
1. Introdução

A Umbanda é considerada a primeira religião genuinamente brasileira. Surge

como uma religião universal, isto é, dirigida a todos e a sua trajetória é marcada pela busca

de uma legitimação e institucionalização diante da sociedade e do Estado brasileiro. Há na

sua formação uma fusão de elementos de várias procedências e naturezas diversas, entre

eles influências das culturas indígena, branca européia e negra, além da adoção de

elementos de culturas orientais. Em vista disso, sua identidade, inclusive musical, está em

constante processo de construção, no qual as tentativas de institucionalização

(racionalização dos ritos e mitos em congressos, encontros e federações) se complementam

com a diversidade encontrada no universo particular dos locais de culto. Desta forma, cada

centro umbandista é um mundo particular, que apresenta características próprias, pontos

cantados1, cerimônias, trabalhos, representando um papel importante na vida religiosa dos

seus praticantes.

1
Ponto cantado é a denominação utilizada pelos umbandistas para designar a música na religião.
Na Umbanda, a organização das entidades cultuadas se dá em dois lados

aparentemente opostos, o direito e o esquerdo, relativizando a concepção cristã de separar

o bem do mal, ao mesmo tempo em que se apropria da visão kardecista ao classificar o seu

panteão em linhas2 e falanges de acordo com a evolução espiritual.

No Centro Umbandista Rei de Bizara, os Exus e as Pombagiras recebem o

nome de “Escravos” e possuem histórias, características e personalidades próprias,

integrando um número crescente de entidades que se destacam no espaço físico deste

centro e na condução dos trabalhos realizados. Aqui, as entidades da direita e da esquerda

são cultuadas como se houvessem duas atividades religiosas distintas, que se integram, mas

que não se misturam. Diante deste quadro, se faz necessário a geração de rituais e

consequentemente de repertórios musicais específicos adequados às características de cada

entidade. No primeiro sábado de cada mês, este centro realiza uma cerimônia denominada

Gira de Escravos em homenagem às entidades da esquerda. Nesta gira3, a música assume

um papel importante, acompanhando o ritual. É através da música que os “Escravos”

chegam, se apresentam, são homenageados, atendem ao público e se despedem. Em vista

disso, constatamos a existência de um repertório musical específico dedicado

exclusivamente aos Exus e as Pombagiras.

Localizado no bairro de Brotas em Salvador – BA, este centro é um centro-

escola voltado para o desenvolvimento dos médiuns e do público em geral e, para a prática

da caridade feita em sessões semanais de passes e consultas. Os fundamentos religiosos são

transmitidos sistematicamente em reuniões públicas e em encontros onde o acesso é

2
Cacciatore (1988: 162) define linha como “faixa de vibração, dentro da grande corrente vibratória
espiritual universal, correspondente a um elemento da natureza, representada e dominada por uma potência
espiritual cósmica – um Orixá, também chamado protetor e que é chefe dos seres que vibram e atuam nessa
faixa afim”.
3
Gira é o nome dado à sessão umbandista. Lopes (2003: 110), afirma que este termo vem do
umbundo chila ou tjila (dançar). Este assunto será aprofundado no decorrer deste trabalho.

2
restrito aos médiuns. O foco deste trabalho se concentra no repertório musical específico

dos Exus e das Pombagiras homenageados na Gira de Escravos. No propósito de entender

o papel da música dos Escravos e a sua relação e inserção no contexto religioso da

Umbanda, procuramos discutir algumas questões como a classificação dos pontos

cantados, os textos, as possíveis disposições melódicas, os toques, o papel dos

instrumentos musicais e seus executantes, entre outros. Estes estudos foram baseados no

trabalho de campo, onde foram feitas as coletas de dados e os registros sonoros através de

gravações, observações da Gira de Escravos e outros rituais realizados neste centro (festas

em homenagem às entidades da direita e Sessões de Caridade e de Desenvolvimento

Público) ocorridos durante o ano de 2005 e no primeiro semestre de 2006, além de

entrevistas com a mãe-de-santo e conversas informais com vários membros do centro.

Realizamos também algumas entrevistas com o Diretor-Secretário da Federação Nacional

do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB), Sr. Antoniel Ataíde Bispo, que nos deu importantes

contribuições a respeito da Umbanda na Bahia e em Salvador.

Os pontos cantados transcritos neste trabalho foram selecionados a partir de

gravações de campo realizados no contexto da Gira de Escravos. Na Umbanda, os pontos

cantados não possuem títulos, no entanto, optamos por nomear os 39 pontos transcritos

com o intuito de organizar as gravações contidas no CD e facilitar a elaboração das tabelas

que se encontram no corpo deste trabalho. Para o título dos pontos cantados utilizamos os

nomes dos Escravos citados ou as frases que resumem o conteúdo contido nos textos das

cantigas.

As transcrições das melodias e dos textos dos pontos cantados foram feitas,

respectivamente, com base nas alturas em que foram executadas e na forma como as

palavras foram entoadas na Gira de Escravos. Em muitos casos, a realização destas

transcrições contou com a ajuda inestimável da mãe-de-santo, de sua filha adotiva e do

3
médium responsável pelo conteúdo das apostilas e folhetos explicativos distribuídos nas

cerimônias. As transcrições dos toques foram feitos com a ajuda da curimbeira4

responsável pelos atabaques. Com exceção da mãe-de-santo, optamos por preservar os

nomes dos informantes, pois não obtivemos autorização para revelá-los. Quanto à

transcrição, adotamos as armaduras de clave e as fórmulas de compasso por se tratar de

exemplos musicais de uma religião brasileira, mesmo que de matriz africana, e pela

possibilidade de adaptação das melodias e dos ritmos contidos nos toques ao sistema de

notação ocidental.

Na transcrição dos toques assinalamos: a semicolcheia como a figura de menor

valor, a batida no centro (notas abaixo da linha) e na borda (notas acima da linha) do

atabaque e o toque com a mão direita (notas com a haste para cima) e esquerda (notas com

a haste para baixo) neste instrumento. No agogô assinalamos a batida nas diferentes

campânulas com as notas graves abaixo da linha e as agudas acima da linha. Em relação às

palmas, preferimos transcrevê-las obedecendo à pulsação dos pontos cantados, embora,

muitas vezes, no contexto da festa, elas representam à participação livre e direta do

público, não havendo, desta forma, uma regularidade na sua execução. Durante a

observação da execução dos pontos cantados no contexto da Gira de Escravos,

constatamos que a entrada da percussão sempre acontece após o canto do solista. Porém,

nos pontos cantados, com exceção do Hino da Umbanda (Cf. transcrição p. 51), não há um

lugar definido para a entrada do acompanhamento instrumental. Diante deste quadro, nas

transcrições, a indicação do acompanhamento instrumental e das palmas sempre ocorre

após a entrada do solista. Nas gravações, a entrada da percussão nem sempre corresponde

4
De acordo com Lopes (2003: 88), curimbeiro é a denominação do responsável pelos cânticos
rituais. Termo que se origina da palavra curimba, do quimbundo kuimba, correspondente ao umbundo
okuimba, que significa cantar. Cacciatore (1988: 94) afirma que curimba (de origem iorubá: “ko”- cantar;
“orin”- canção; e quimbundo: “ku” “imba”- cantar) são “cânticos religiosos dos cultos afro-brasileiros, para
honrar e chamar as divindades ou as entidades espirituais.”

4
às transcrições, pois dependendo do solista e do contexto em que o ponto está sendo

cantado, são inúmeras as possibilidades de introdução do atabaque e do agogô. A análise

das gravações indica que a entrada do acompanhamento instrumental acontece em relação

ao atraso do ciclo, isto é, pode acontecer em qualquer tempo do compasso.

Não nos foi permitido o registro fotográfico dos instrumentos, do salão onde

ocorrem as cerimônias, assim como de qualquer objeto que faça referência aos Escravos,

muito menos o registro fotográfico da Gira de Escravos ou de qualquer outra festa em seu

contexto original, por se tratar de uma norma deste centro, a qual concordamos.

O Centro Umbandista Rei de Bizara é uma demonstração da capacidade da

Umbanda de se adaptar aos contextos locais. Este centro cultua uma Umbanda Mista, no

qual encontramos muitas similaridades, inclusive musicais, com o Candomblé Angola e o

de Caboclo, além do compartilhamento do repertório musical com outras manifestações,

sejam elas religiosas ou não do contexto baiano.

As conclusões até aqui obtidas, embora generalizações sejam muitas vezes

buscadas, partem de uma visão panorâmica da música dos Escravos que compõem o rico

universo religioso do Centro Umbandista Rei de Bizara. Mesmo que esforços tenham sido

empreendidos, compreendemos que, em algumas questões, seria necessário mais tempo

para que uma resposta definitiva seja encontrada. Assim sendo, acreditamos que este

trabalho é apenas o primeiro passo em direção a uma compreensão do significado desta

música e do que ela representa para àqueles que a praticam.

5
2. A Umbanda no Brasil

2.1. O surgimento de uma religião

A Umbanda é considerada a primeira religião genuinamente brasileira, pois foi

formada no Brasil. Surge como uma religião universal, isto é, dirigida a todos e a sua

trajetória é marcada pela busca de uma legitimação e institucionalização diante da

sociedade e do Estado brasileiro. Apresenta características próprias, suas canções, danças,

oferendas, trabalhos, representando um papel importante na vida religiosa das pessoas que

a praticam. É uma religião essencialmente urbana, desde o seu surgimento associado aos

fenômenos de industrialização e urbanização, até os dias de hoje.

Na literatura existente sobre o assunto, há um consenso de que a Umbanda teria

surgido no Rio de Janeiro, na década de 1920 (Cf. Bastide, 1971; Concone, 2001; Jensen,

2001; Negrão 1996a e 1996b; Ortiz, 1999; Prandi, 1996 e 1991; Sá Júnior, 2004: 46).
Durante a pesquisa bibliográfica encontramos, em algumas publicações feitas por

praticantes, a afirmação de que o início da Umbanda teria sido em 15 de novembro de

1908. Nesta data, durante uma sessão espírita Kardecista, teria ocorrido a primeira

manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas com o objetivo de delegar ao médium

Zélio Fernandino de Morais a missão de fundar a religião (Cf. Assis, s/d; Isaia, s/d; Rivas

Neto, 1989; Sá Júnior, 2004: 65-68, Salles, 1991; W.W da Matta e Silva, 1997). Diana

Brown denomina esta versão do surgimento da Umbanda como o “mito de origem” (Cf.

Isaia, s/d.).

Atualmente, a Umbanda encontra-se espalhada por todo o território brasileiro

com destaque nos grandes centros urbanos, permeada por um forte sincretismo presente

tanto na sua formação quanto no seu culto. Há na sua concepção uma fusão de elementos

de várias procedências e naturezas diversas, entre eles, influências das culturas indígena,

branca e negra, que também representam a raiz da formação da sociedade brasileira, que se

fundem dando-lhe um caráter nacional, mantendo-a viva.

A influência indígena se faz presente pela apropriação e reinterpretação de

vários elementos desta cultura, como veremos no decorrer deste trabalho e está

personificada na entidade do Caboclo, que carrega consigo toda uma simbologia inspirada

na figura do ancestral indígena como o “dono da terra”, o primeiro habitante em solo

brasileiro.

A cultura branca européia está representada pelo Catolicismo com seus Santos

Católicos e a concepção cristã e, pelo Kardecismo5, introduzido no Brasil em 1863 por

5
O Kardecismo, surgido na França por volta de 1858, é uma religião cristã que reconhece os
ensinamentos de Jesus Cristo e prega a existência de um mundo espiritual. Allan Kardec, fundador do
Kardecismo, publicou em 1864 o Evangelho segundo o Espiritismo, que norteia a doutrina desta religião.
Nesta obra, o autor interpreta diversos textos bíblicos a partir de dois fundamentos principais: a existência da
comunicação entre os vivos e os mortos e a reencarnação como instrumento para o alcance da evolução
espiritual. A Umbanda também adota estes fundamentos e a obra de Allan Kardec freqüentemente se faz
presente nas sessões umbandistas.

7
imigrantes europeus (Cf. Bastide, 1971: 432) e que rapidamente se tornou muito popular.

Deste último, a Umbanda adota a sua filosofia baseada na prática da caridade por meio da

mediunidade e a organização das entidades em linhas e falanges, no qual os espíritos são

divididos de acordo com a sua origem étnica e o seu estágio de evolução espiritual.

Segundo Prandi (1991: 47) o Kardecismo teve uma boa aceitação no Brasil.

Em 1873 foi criado o primeiro movimento espírita do Rio de Janeiro e, na mesma cidade

em 1875, a livraria Garnier publicou as principais obras de Allan Kardec. Em 1900 já

existiam federações espíritas em quase todos os Estados brasileiros. De acordo com Jensen

(2001: 4) neste período a França influenciava o resto do mundo com as suas tendências

culturais como o modo de se vestir e o francês era uma das línguas mais faladas no mundo.

Diante deste cenário, o Kardecismo como religião vinda da França, encontrou um terreno

fértil entre a classe média branca brasileira composta também por imigrantes europeus,

médicos, advogados, intelectuais, entre outros. Com isso, a Umbanda, ainda em formação,

absolve alguns elementos do culto Kardecista6, como a realização das sessões duas vezes

por semana e o uso do passe.

O Kardecismo acredita na aliança entre a ciência e a religião. Para Kardec

(1996: 57) “a ciência e a religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela

as leis do mundo material e a outra do mundo moral”. A função do Espiritismo está em

unir estas duas forças. Acredita-se que o abismo encontrado entre a ciência e a religião

6
O culto kardecista é realizado no centro espírita, construção que possui um auditório voltado para
uma mesa onde os médiuns ministram palestras e um cômodo onde são realizados os passes. Os cultos, que
geralmente são realizados duas vezes por semana, constituem-se de palestra proferida por um médium, com
duração de mais ou menos meia hora, e do passe. O passe é um movimento de mãos ou sopro acompanhados
de orações feitas pelo médium sobre as pessoas. Os kardecistas acreditam que durante o passe o médium é
auxiliado pelos espíritos para que aconteça a troca de energia, transformando a energia ruim em energia
positiva. O passe pode ser realizado por apenas um médium em uma só pessoa ou por vários médiuns com
várias pessoas ao mesmo tempo. A pessoa que receberá o passe pode ficar em muitas posições, conforme
determina o médium, em pé, sentado ou até deitado em uma maca. Após o passe, todos os presentes se
servem com água fluidificada e a reunião é encerrada. A água fluidificada é armazenada num recipiente que
permanece em cima da mesa dos médiuns durante todo a sessão espírita. Os kardecistas acreditam que esta
água recebe todas as energias positivas enviadas pelos espíritos durante toda a sessão. O público que
freqüenta o culto espírita não é obrigado a tomar o passe ou beber a água fluidificada.

8
acontece porque ambos possuem seu ponto de vista exclusivo e cabe ao Espiritismo

preencher esta lacuna através de suas leis que regem o universo espiritual e a sua união

com o universo terreno. Desta forma, a doutrina espírita explica sua simpatia pela ciência,

afirmando que os conceitos da religião devem caminhar unidos à ciência:

O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de
provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as
suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lo mostra, não mais como
coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem
cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma imensidade de
fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso, relegados para o
domínio do fantástico e do maravilhoso. (...) O espiritismo é a chave com
o auxilio da qual tudo se explica de modo fácil. (Kardec, 1996: 56).

Este é um ponto de diferenciação entre o Kardecisno e a Umbanda. Enquanto o

primeiro apresenta uma simpatia pela ciência, o segundo é movido pela fé. No entanto, este

princípio de que todos os fenômenos podem ser explicados pelo Espiritismo também é

compartilhado pela Umbanda.

Analisando seu contexto histórico, o Espiritismo de Kardec nasce num

momento em que a Europa experimenta os movimentos do iluminismo e do racionalismo.

A França como um dos países mais importantes do continente refletia esta tendência

vivendo sob um ambiente cientificista onde predominava a busca pelo progresso. Com esta

filosofia, o Kardecismo atraiu adeptos com alto grau de escolaridade e o interesse voltado

não apenas em praticar a religião, mas também em estudar sua doutrina. Embora a

Umbanda seja uma religião que se caracteriza por abrigar adeptos de todas as classes

sociais e diferentes níveis de escolaridade, ela apresenta uma certa similaridade neste

sentido com o Kardecismo: o interesse dos praticantes em pesquisar a doutrina de suas

respectivas religiões. Este fato pode ser observado pela grande quantidade de publicações

encontradas a respeito das duas religiões produzidas pelos seus adeptos. No caso da

Umbanda, a partir da década de 1940 começam a se multiplicar as publicações produzidas

9
pelos praticantes, também conhecidos como “os intelectuais da Umbanda7” (Cf. Isaia, s/d;

Sá Júnior, 2004). O trabalho desenvolvido por estes umbandistas foi muito importante na

divulgação e na busca por uma sistematização das diversas práticas desta religião. A

produção desta literatura impulsionou o surgimento de editoras especializadas neste

assunto como, por exemplo, a editora Espiritualista, Eco, Crenças, Paz e Terra, entre

outras.

A pesquisa e a divulgação dos respectivos cultos numa perspectiva êmica

acompanham a evolução nos meios de comunicação. Atualmente, na rede mundial de

computadores (internet), nos deparamos com centenas de sítios relacionados ao

Kardecismo e a Umbanda. No segundo caso, podemos encontrar uma miscelânea de

assuntos, entre eles páginas de centros de Umbanda8, revistas especializadas em versão

online9 e endereços eletrônicos dedicados a grupos de discussão de assuntos relacionados a

tudo que se refere a esta religião10.

No Kardecismo, a busca pela evolução espiritual obtida pelas inúmeras

passagens pela Terra (a lei da reencarnação) também pode ser alcançada pela escolaridade.

Quanto maior o grau de instrução, mais evoluído é a pessoa ou o espírito. Nas sessões

espíritas além dos praticantes terem, na sua maioria, alto grau de escolaridade, os espíritos

que comandam as sessões foram, em suas vidas terrenas, cientistas, médicos, advogados,

7
São exemplos de alguns “intelectuais da Umbanda”: Aluízio Fontenelle, Cândido Emanuel Felix,
F. Rivas Neto, Tancredo da Silva Pinto, W. W. da Matta e Silva, entre outros.
8
Com o auxílio de uma página de busca, podemos encontrar centenas de endereços relacionados a
centros de Umbanda localizados em todas as regiões do Brasil. Caracteriza-se, na sua maioria, pela
apresentação dos centros (muitos com logotipo) com suas histórias e práticas rituais (surgimento e atividades
exercidas) acompanhados de conteúdos relacionados aos conceitos e princípios gerais da religião umbandista.
9
Um exemplo desta categoria é a Revista Espiritual de Umbanda que pode ser acessado através do
endereço <www.revistaespiritualdeumbanda.com>.
10
Trata-se de endereços eletrônicos especializados na interatividade entre usuários, que podem ser
divididas em duas modalidades: a primeira é conhecida como grupos de discussão e a segunda chama-se
Orkut, comunidades específicas formadas por umbandistas que se reúnem para a discussão sobre tudo o que
se refere a religião: atualidades, conceitos, informações gerais, rituais, entidades cultuadas, etc.

10
intelectuais, entre outros. Na Umbanda, a escolaridade não é fator primordial para o

alcance da evolução espiritual. O que se leva em conta não é o conhecimento intelectual,

mas a sabedoria adquirida na “escola da vida”. Este fator é aplicado tanto para os

praticantes quanto para os espíritos que utilizam esta ferramenta para atender a todos que

os procuram. Este sentido contrário, aliado a baixa condição social dos adeptos e ao transe,

são alguns dos elementos para que a Umbanda, junto com outros cultos afro-brasileiros,

seja considerada como culto de “baixo espiritismo” (Cf. Jensen, 2001: 4). Negrão (1996a:

58-59), de forma preconceituosa, destaca alguns aspectos desta dualidade entre “alto e

baixo espiritismo”:

Tínhamos, portanto, de um lado uma “religião-ciência”, o alto e


verdadeiro Espiritismo. De outro, a “magia-superstição” do baixo e falso
Espiritismo. Um reunindo adeptos “bem de fortuna” e instruídos, outro
adotado por pobres e ignorantes. Um legítimo e protegido pelo Estado,
outro ilegítimo e que era, ou deveria ser, por ele reprimido. Um que
congregava brancos cultivados da mais “alta sociedade”, outro dirigido
por “pretos boçais” e “mulatos pernósticos” exploradores de uma plebe
multirracial sem qualificação.

Diferente da Umbanda onde há o fenômeno da possessão, no Kardecismo o

médium não incorpora, ele apenas entra em contato com o plano espiritual através dos

sentidos para que sua razão não se perca.

Outro ponto em comum entre a Umbanda e o Espiritismo: Kardec (1996)

considera a doutrina do Espiritismo como uma ciência capaz de explicar todos os

fenômenos ditos misteriosos. Sobre isso, Serra (2001: 218) afirma que “o espiritismo

também tratou de apresentar-se como a síntese de vários credos e filosofias de todos os

tempos”. O fato pode ser observado na utilização pelos espíritas desde passagens bíblicas

interpretadas por Kardec no seu evangelho até os conceitos hindus de reencarnação. Esta

característica de alguma forma fez parte da formação da Umbanda, cuja a absorção de

aspectos de distintas crenças provocou o surgimento de diversas correntes de culto, assim

11
como os diferentes significados atribuídos à palavra umbanda que refletem as suas diversas

fases.

De acordo com Nina Rodrigues (1988: 257), Umbanda é uma palavra de

origem banto que significa sacerdote. Este significado reflete as origens negras da religião,

em especial o Cabula. Desta, a Umbanda pegou como empréstimo várias nomenclaturas,

entre elas: umbanda = sacerdote, chefe do culto, gira = local do culto e cambone =

assistente do sacerdote. Bastide (1971: 442-443) apresenta outra versão, de que a palavra

teria vindo do sânscrito11 e sua etimologia derivaria de Aum- Bandhâ que significa o limite

do ilimitado, ou princípio divino, luz radiante, fonte de vida eterna, evolução constante.

Este significado reflete, de certa forma, o período de desafricanização, que abordaremos no

decorrer deste capítulo, no qual a Umbanda tentou negar todas as suas influências negras,

adotando elementos de culturas orientais que, de certa forma, faz parte da formação da

Umbanda. A influência dos “povos orientais” está representada pelas entidades que

formam a linha do oriente, assim como o surgimento de uma ramificação umbandista

chamada Umbanda Iniciática ou Esotérica, como veremos no decorrer deste capítulo.

Continuando, Bastide (1971: 443) destaca mais um significado, desta vez vindo do

Catolicismo, no qual Umbanda seria o nome de um anjo da categoria de São Miguel ou

São Rafael.

A primeira vista, podemos considerar que os significados anteriormente citados

atribuídos à palavra umbanda, nada ou pouco tem a ver com a religião. Porém, cada um

deles reflete uma parte da sua formação, bem como o momento histórico enfrentado pela

Umbanda na busca de sua legitimação como religião brasileira por excelência.

11
De acordo com o Dicionário Aurélio a palavra sânscrito é uma língua presente na literatura e
ciência hindus e é mantida, por razões culturais, como língua constitucional da Índia (Cf. Ferreira, s.v.
“sânscrito”).

12
Considerando a sua matriz negra, a Umbanda teria surgido da Macumba12, uma

religião afro-brasileira originada no Rio de Janeiro a partir dos negros bantos que

migraram do Estado da Bahia. A mudança da capital do Brasil de Salvador-Bahia para o

Rio de Janeiro, em 1763, provocou um intenso desenvolvimento político e econômico e

com isso a necessidade de mão de obra escrava. Com a vinda destes povos para a nova

capital, o Rio de Janeiro passou a abrigar diversas manifestações religiosas que, aliada ao

Catolicismo e ao Kardecismo deram origem à Macumba. Não se sabe ao certo quando

surgiu a Macumba. Os primeiros registros aparecem no final do século XIX. Neste

período, o Rio de Janeiro passava por transformações políticas como o advento da

república em 1889 e, transformações econômicas com a forte industrialização que se

instalava na cidade. Com a abolição da escravatura em 1888, os negros se tornaram

trabalhadores assalariados e o país assistia a chegada de imigrantes de diversas

nacionalidades. Este cenário vai contribuir para uma desagregação (no sentido de

desorganização) das religiões negras instaladas no Rio de Janeiro (Cf. Bastide, 1971;

Carneiro, 1991; Ramos, 1988; Rodrigues, 1988). Consideramos necessária esta fase de

adaptação de valores tradicionais e práticas religiosas para que estes cultos pudessem

sobreviver num ambiente urbano que sofria constantes transformações. Ainda mais que, de

acordo com Nascimento (2004: 8), a população negra se concentrou no foco destas

mudanças: no centro da cidade do Rio de Janeiro e em bairros próximos.

Bastide (1971: 404) aponta o desaparecimento de rituais e a simplificação da

mitologia como fatores que contribuíram para a desagregação. O contexto urbano e o

trabalho assalariado levaram os negros a questionar as tradições africanas da religião. Ortiz

(1999: 47) nos mostra o conflito com a rigidez das tradições:

12
De acordo com Garcia (2001a: 46), “o termo genérico macumba é frequentemente utilizado para
designar os cultos afro-brasileiros derivados do nagô, mas modificados por influências angola-congo,
ameríndios, católicas, espíritas e ocultistas que se desenvolveram.”

13
Com efeito, as práticas do candomblé tornam-se incongruentes com as da
sociedade; a “camarinha” é para os fiéis um gasto de tempo
excessivamente longo, numa sociedade onde o trabalho assalariado é a
ocupação primordial. No nível dos símbolos, os sacrifícios de sangue são
cada vez mais conotados como bárbaros; no plano individual, o
candomblé exige ainda uma adesão e submissão incondicional à
personalidade do pai-de-santo, o que se opõe à liberdade recentemente
adquirida pelos cidadãos. Dois caminhos se abrem pois à gente de cor: o
retorno à tradição, o que implica o enquistamento dos candomblés, ou a
integração na sociedade, o que leva, senão à renuncia da tradição, ao
menos à reinterpretação desta segundo novos valores sociais.

Vários são os autores que concordam que outro fator importante e decisivo

para o surgimento da Macumba é a tendência dos cultos bantos ao sincretismo. Arthur

Ramos (1988) observa uma ligação entre estes cultos com o Espiritismo Kardecista devido

a uma similaridade entre eles: o culto aos antepassados. Edison Carneiro (1991: 133-36)

cita como exemplo, o Candomblé de Caboclo, religião de origem banto originada na Bahia

e trazida ao Rio de Janeiro. Sua base estaria no culto aos Orixás africanos e nos

antepassados indígenas. Os Caboclos, considerados os donos da terra, são homenageados a

tal ponto que a mística banta se mescla com a ameríndia. Garcia (2001a: 36) transcreve o

depoimento de Dulce Santos, mãe-de-santo do Ialaxé Omi, que esclarece a inserção do

Caboclo nesta religião, especialmente o contexto em que se estabeleceu o contato entre

negros e índios e a conseqüente assimilação dos espíritos indígenas pelas demais nações do

Candomblé:

os índios são os verdadeiros donos da terra, são os legítimos brasileiros.


Já estavam aqui quando os portugueses e depois os negros chegaram.
Quando os negros angolanos começaram a fugir, pois foi esses que
primeiro chegaram aqui, eles os esconderam nas suas aldeia e ensinaram
pra eles os seus segredos. Os negros começaram a ver as cerimônias, os
conhecimentos que eles tinham e acharam parecidas com a sua e foi
assim dessa comunicação que começou o Candomblé de Caboclo.
Primeiro era tudo separado, bem diferente do que é hoje. Até chegar ao
que é hoje que se “bate” pra caboclo em todas as casas de candomblé,
pois eles são os donos da terra.

14
Continuando, Garcia (2001a: 104) esclarece que no Candomblé de Caboclo os

Caboclos são os espíritos dos índios e dos tipos regionais como o Boiadeiro, o

Capangueiro e o Vaqueiro que são denominados respectivamente de “Caboclos-de-pena” e

“Caboclos-de-couro”.

Acreditamos que uma das principais contribuições do Candomblé de Caboclo

na formação da Macumba e mais tarde da Umbanda é a apropriação da entidade do

Caboclo. O Caboclo assumiu um papel importante na Macumba como entidade principal

do culto ao lado dos Orixás e determinou a forma de como esta religião vai perpetuar esta

herança negra do culto aos antepassados. Outra entidade presente na Macumba, criada

dentro deste conceito é o Preto-Velho, o negro escravizado. Ele será decisivo na criação da

Umbanda e vai assumir um duplo papel: o de entidade-chave dessa religião e o da

perpetuação da prática do culto aos antepassados, sendo o negro um dos responsáveis pela

formação do povo brasileiro.

O Cabula é uma das religiões negras importantes na formação da Macumba.

Arthur Ramos (1988) chama atenção para a existência deste culto banto no Rio de Janeiro

entre o final do século XIX e o início do século XX, que se assemelha muito ao

Candomblé Angola e ao Candomblé de Caboclo, principalmente na parte do culto aos

antepassados. Outra característica importante do Cabula é a sua aproximação com o

Kardecismo. Nina Rodrigues (1988: 255-60) resgata um documento do Bispo Dom João

Correa Nery que descreve o Cabula. Segundo Nina, pela influência direta do Kardecismo

as sessões deste culto eram chamadas de mesa, referente à mesa espírita onde os médiuns

comandam a reunião. Os espíritos que comandam a mesa são mais evoluídos e estão

voltados para atender as necessidades dos fiéis que os procuram, lembrando o lema

principal do Kardecismo: a prática da caridade. Como já mencionamos anteriormente, uma

das contribuições diretas do Cabula está na nomenclatura que será adotada na Macumba e

15
mais tarde pela Umbanda. O embanda (ou umbanda) de Cabula é o sacerdote do culto, o

cambone seu adjunto e a engira (ou gira) é o local onde os médiuns dançam ou giram para

receber os espíritos.

Acreditamos que a Macumba, como religião originada e organizada no final do

século XIX, foi o resultado de uma transformação que envolveu fatores econômicos,

políticos e sociais e não simplesmente produto de um processo de degradação dos cultos

negros. Contudo, a Macumba continuou mantendo a crença baseada no culto aos Orixás

assim como o Candomblé na Bahia, o Xangô em Pernambuco, o Tambor de Mina no

Maranhão e o Batuque no Rio Grande do Sul. O terreiro de Macumba reproduz ainda a

estrutura das casas de Candomblé, mas com modificações de acordo com as necessidades

do novo contexto social. Seus freqüentadores são representantes de todas as classes sociais

sejam como praticantes ou como clientes das habilidades mágicas. A presença do

imigrante europeu, neste sentido, enriquece o culto, pois acrescenta objetos e

procedimentos mágicos aumentando a eficácia e o alcance da religião utilizando, por

exemplo: “talismãs europeus, estrelas de David, insígnias cabalísticas, livros de astrologia”

(Ortiz, 1999: 39). Todavia, apesar de sua busca pela heterogeneidade étnica e social, a

Macumba não se desvencilha de suas raízes negras. Isto fica evidente na década de 1940,

quando os terreiros de Macumba se mudam do centro do Rio de Janeiro para as áreas

periféricas da Baixada Fluminense, conseqüência da Reforma Urbanística Pereira Passos.

Esta reforma, realizada nos primeiros anos do século XX, possibilitou uma

transformação do espaço urbano carioca. A cidade se encontrava populosa e com muitos

problemas de saneamento e de infra-estrutura. Na ocasião, muitos prédios localizados na

região central foram demolidos para o alargamento de ruas e construção de avenidas.

Obras de saneamento e de embelezamento também foram realizadas como a canalização de

rios e a arborização de praças e avenidas. Tudo isso com o objetivo de transformar o Rio

16
de Janeiro numa cidade moderna, condizente com a sua realidade de intensa efervescência

política, social e econômica. Nascimento (2004: 21) destaca que a região da Baixada

Fluminense também foi beneficiada com a realização de inúmeras obras de saneamento, a

eletrificação da Central do Brasil, a abertura da Avenida Brasil em 1946 e a construção da

rodovia Rio-Bahia na década de 1940.

Estas obras possibilitaram uma facilidade de acesso ao centro do Rio de

Janeiro, aliado à instituição da tarifa ferroviária única beneficiando ainda mais o trânsito

dos habitantes das regiões mais afastadas. Estas medidas atraíram uma grande quantidade

de imigrantes nordestinos significando a presença de mão-de-obra barata e uma atração

para a entrada de muitas indústrias na região.

Esse crescimento populacional proporcionou uma transformação cultural,

construída a partir de constantes trocas de experiências, inclusive na religiosidade. Desta

forma, a mudança dos terreiros de Macumba para a Baixada Fluminense vai possibilitar o

contato com outras casas de Candomblé vindos da Bahia. Este encontro vai proporcionar

um processo de reorganização do culto e a reafirmação da Macumba como um culto afro-

brasileiro. Atualmente, os umbandistas associam a Macumba à Quimbanda13 e entre a

população em geral, o termo é usado de forma pejorativa para designar a magia negra14.

O nascimento da Umbanda, na versão dos praticantes e compartilhada por

alguns autores (Cf. Bastide, 1971; Jensen, 2001: 6; Negrão, 1996a; Ortiz, 1999; Prandi,

1991: 48; Sá Júnior 2004: 46) é de que esta foi fundada por um médium kardecista

chamado Zélio Fernandino de Morais. Zélio pertencia a uma família tradicional do Estado

do Rio de Janeiro cujo pai também era praticante do mesmo Espiritismo. Na década de

13
Assim como a Umbanda, a Quimbanda é um culto que se originou na Macumba, porém apresenta
uma dimensão oposta da Umbanda, por cultuar especialmente os Exus e Pombagiras.
14
Neste caso a magia negra possui dois significados: o primeiro, o de magia feita pelos negros e a
segunda, o de magia como prática do “mal”.

17
1920, o médium, com a ajuda do seu mentor espiritual, o espírito do Caboclo das Sete

Encruzilhadas, fundou o primeiro centro umbandista, em Niterói, no Estado do Rio de

Janeiro. Justamente com o auxílio deste Caboclo que, de acordo com o Espiritismo,

pertence a uma categoria de espíritos considerados inferiores por não serem evoluídos o

suficiente para intervir neste mundo, praticar a caridade e difundir a doutrina. Vale a pena

ressaltar, ainda mais uma vez, que para o Kardecismo, os espíritos capazes são aqueles

com uma “elevada” instrução, que na vida terrena exerceram funções socialmente

importantes, o que não é o caso do nativo indígena.

Nos anos seguintes, outros centros surgiram com a mesma característica do

primeiro: seus fundadores foram antigos adeptos do Kardecismo. Esta troca de religião, do

Espiritismo para a Umbanda, ainda acontece nos dias de hoje. O depoimento abaixo, feito

por Antoniel Bispo, Diretor-Secretário da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro15

(FENACAB), ressalta o principal motivo desta troca de crença: o contato dos espíritas

kardecistas com as entidades do Caboclo e do Preto-Velho:

O espírita kardecista, aquele que está lá no topo da coisa, ele não admite
o Caboclo, não admite. Mas existem pessoas que são médiuns de
incorporação, recebe o espírito do desencarnado e também o seu Guia,
seu mentor espiritual que é um Caboclo. Então esta pessoa se ficar
eternamente só no centro espírita kardecista não vai ter conhecimento,
não vai desenvolver, o que que faz? Deixa e vai procurar o lado da
Umbanda que ela vai trabalhar, vai fazer duas coisas: vai trabalhar seu
lado mediúnico e vai dar passagem ao seu Guia espiritual que é aquele
seu Caboclo 16.

Acreditamos que esta explicação pode ser aplicada aos fundadores dos

primeiros centros umbandistas: Zélio Fernandino de Morais em Niterói, Benjamin

Figueiredo na cidade do Rio de Janeiro, Laudelino de Souza Gomes em Porto Alegre e

15
A Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro é uma entidade localizada em Salvador-BA que
concentra as suas atividades na coordenação, fiscalização e no amparo aos locais de culto afro-brasileiro,
inclusive Umbanda. Antoniel Ataíde Bispo é Diretor-Secretário da FENACAB há 26 anos.
16
Depoimento dado em entrevista realizada em 02/12/2005.

18
Otacílio Charão na cidade de Rio Grande -RS (Cf. Ortiz, 1999: 48; Oro, 2002: 356). Neste

caso, o contato e a simpatia pelos espíritos do Preto-Velho e do Caboclo aconteciam nos

terreiros de Macumba. Estes kardecistas passaram então a admirar também alguns rituais

da religião, ao mesmo tempo em que repeliam algumas práticas como a matança de

animais para as oferendas e o ambiente social formado por, na grande totalidade, pessoas

pobres e sem escolaridade. O nascimento da Umbanda vai representar o desejo destes

pioneiros umbandistas: a junção do conteúdo do Espiritismo com algumas práticas rituais

da Macumba17.

Podemos afirmar que este desejo não se limitava aos primeiros umbandistas. A

Umbanda conseguiu se incorporar a uma sociedade que “é branca, mesmo quando

proletária, culturalmente européia, que valoriza a organização burocrática da qual vive boa

parte da população residente, que premia o conhecimento pelo aprendizado escolar em

detrimento da tradição oral” (Prandi, 1991: 49).

Ortiz (1999: 34-45) explica esta aproximação das religiões fundantes em dois

movimentos chamados de embranquecimento e empretecimento. Para o autor, o

movimento de embranquecimento é a presença do Kardecismo dentro da Macumba,

significando o desejo de embranquecer através da aceitação de valores do mundo branco e

a sua presença física dentro do terreiro. Já o empretecimento é o contrário, a camada social

branca se dirigindo á Macumba e aceitando a presença do negro na sociedade sem

valorizar suas tradições.

Arthur Ramos (1988: 168) que presenciou o nascimento da Umbanda resumiu

o culto da seguinte forma: religião “afro-indo-católica-espírito-ocultista” simbolizando a

origem sincrética da religião.

17
Guimarães (1997: 102) destaca que em Minas Gerais, “macumba” era a palavra utilizada para
designar a religião até o final da década de 1930. A partir deste período a palavra “macumba” foi substituída
pela denominação Umbanda.

19
2.1.1. A desafricanização: a negação africana

A adaptação ao contexto é uma marca registrada da Umbanda. É interessante

notar que a sua formação segue as linhas traçadas pelas mudanças sociais. Esta

característica sempre esteve presente desde a década de 1930, um período turbulento da

história do Brasil. O país, nesta época, vivia sob o regime do Estado Novo instituído por

Getúlio Vargas, que adotou um modelo político baseado no controle do poder pelo

executivo e o Nacionalismo. Um sistema ditatorial que seguiu a tendência de outros

regimes em voga e que influenciaram a ordem mundial da época: o Nazismo na Alemanha,

o Fascismo na Itália, o Franquismo na Espanha e o Salazarismo em Portugal.

Este período foi marcado pela perseguição das religiões afro-brasileiras, pois a

prática do “baixo espiritismo” era proibida por lei. A repressão policial era feita de forma

severa onde era comum a invasão e o fechamento de terreiros, bem como a apreensão de

objetos do culto e a prisão de pais e mães-de-santo. No Rio de Janeiro, uma das formas de

controle do Estado sobre a prática da Umbanda e do Candomblé foi a promulgação de uma

lei, aprovada em 1934, que enquadrava estas e outras religiões como a Maçonaria e o

Kardecismo na “Seção Especial de Costumes e Divisões” do Departamento de Tóxicos e

Mistificações do Rio de Janeiro. Diana Brown relata que caso os terreiros não efetuassem

seus registros junto a este órgão, ficariam sujeitos a clandestinidade e a sofrer ataques

policiais, e acrescenta:

Uma lei datada de 1934 colocou todos esses grupos sob a jurisdição do
Departamento de Tóxicos e Mistificações da Polícia do Rio de Janeiro, na
seção especial de Costumes e Divisões, que lidava com problemas
relacionados com álcool, drogas, jogo ilegal e prostituição. Esses grupos
religiosos, para poderem funcionar, eram obrigados a solicitar o registro
especial dos departamentos de polícia locais, e a polícia fixava suas
próprias taxas. Portanto, esta lei enquadrou, em termos sociais, as práticas
desses grupos como atividades marginais, desviantes, e por extensão ou
associação, como vícios que requeriam controles punitivos mais do que
controles simplesmente reguladores, esta classificação continuou

20
vigorando para os centros de Umbanda até a reorganização do
Departamento de Polícia do Rio, em 1964. A lei de 1934 colocou os
praticantes da Umbanda e das religiões afro-brasileiras numa situação
dúbia: teoricamente, o registro lhes permitia a prática legal;
concretamente, contudo, atraía a atenção da polícia, e aumentava a
possibilidade de intimidação e extorsão. Registrados ou não, os
umbandistas e seus correligionários afro-brasileiros ficaram expostos à
severa perseguição policial. (Brown, 1985: 18, apud Nascimento, 2004:
13-14).

A repressão policial aos cultos afro-brasileiros e à Umbanda ocorreu em todo o

território brasileiro. No Estado da Bahia destacou-se a ofensiva ao Candomblé, por ter sido

a religião das camadas negras e pardas da sociedade baiana18. A perseguição ao

Candomblé no Estado da Bahia se tornou mais visível na capital Salvador e na região do

Recôncavo por concentrar um grande número de terreiros, conseqüência do passado

histórico marcado pela numerosa população de escravizados africanos (Cf. Braga, 1995:

17). A imprensa foi porta voz implacável na campanha contra o Candomblé baiano, fato

que se intensificou na primeira metade do século XX (Cf. Braga, 1995 e Lühning, 1995). A

imprensa alegava que a população reclamava do barulho dos atabaques, das oferendas

(ebós) nas ruas e, por sua vez, acusava o Candomblé de manter pessoas presas nos terreiros

(submetendo-as aos rituais de feitiçaria para inúmeros fins) e de exercer a “prática ilegal da

medicina19”, um ato proibido pela legislação até os dias de hoje (Cf. Lühning, 1995: 200).

Todos estes fatores contribuíram para uma intensa repressão ao Candomblé.

Lühning (1995: 195-196 e 201) destaca que os objetos apreendidos pela polícia eram

denominados, de forma pejorativa, como “troços” ou “bugigangas” e quando recolhidos

tinham dois destinos: ou eram destruídos ou encaminhados ao Instituto Histórico e


18
Durante a pesquisa bibliográfica, não encontramos registros a respeito da perseguição à Umbanda
na Bahia. No entanto, a ofensiva ao Candomblé baiano apresenta características comuns encontradas em
repressões sofridas pela Umbanda e outros cultos afro-brasileiros em todo o território nacional.
19
De acordo com Braga (1995: 149), o conhecimento e o emprego das propriedades medicinais das
plantas pelos pais-de-santo alimentaram a acusação da prática ilegal da medicina. Para o autor, isto foi uma
justificativa encontrada pelos órgãos oficiais para o Candomblé ser submetido ao rigor da legislação vigente.
O uso terapêutico de plantas era uma prática comum entre a população e isto ainda pode ser visto atualmente
com o uso de chás a base de ervas e medicamentos fitoterápicos.

21
Geográfico da Bahia, no qual algumas amostras se encontram até hoje no museu da

mesma instituição.

Continuando, Lühning (1995: 195-197) aponta a existência de um símbolo

deste período: um delegado chamado Pedro Azevedo Gordilho, mais conhecido como

Pedrito. Este personagem se tornou conhecido por ter sido um repressor muito violento a

ponto de ser mencionado em forma de cantigas de sotaque20 dentro dos terreiros:

“Não gosto de candomblé


que é festa de feiticeiro
quando a cabeça me dóe
serei um dos primeiros

Procópio tava na sala


esperando o santo chegá
quando chegou seu Pedrito
Procópio passa pra cá

Galinha tem força n’aza


O galo no esporão
Procópio no Candomblé
Pedrito é no facão.”
(Alvarenga, 1946: 200, apud Lühning 1995: 195)

“O Maria Nenem
Pedrito vem aí
Ele vem cantando
ca ô cabieci”
(Guimarães, 1940: 131 apud Lühning 1995: 196)

Como uma forma de sobreviver a tantas perseguições, as religiões afro-

brasileiras se obrigaram a abolir muitas práticas rituais ou em casos em que isto não era

possível, dar uma roupagem católica as cerimônias através da inclusão, por exemplo, de

músicas (hinos católicos) e orações. A polícia, consciente de que não conseguiria acabar

com estas práticas, adotou uma forma de controlar estas religiões, desta vez obrigando as

casas de culto a se registrarem junto ao órgão. Na Bahia, o depoimento de Antoniel Bispo,

20
Estas cantigas eram cantadas dentro dos terreiros no momento em que se percebia a chegada da
polícia. A três primeiras foram criadas dentro da casa do pai-de-santo Procópio de Ogunjá e a última era
cantada no terreiro da mãe-de-santo Maria Neném, ambas localizadas em Salvador- BA (Cf. Lühning, 1995:
195-196).

22
atual Diretor-Secretário da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB),

nos mostra como funcionava este sistema:

O governo, vendo que não tinha condições de reprimir mais do que já


reprimia, prendendo, invadindo terreiros, prendendo instrumentos e etc,
fez o que? Resolveu em outro departamento da Delegacia de Segurança
Pública de Salvador, especificamente Delegacia de Furtos e Roubos,
criar um novo setor e ali eles registraram as casas de culto, obrigando-as,
para fazer qualquer dos seus rituais, a terem que tirar uma licença lá na
polícia e pagar uma taxa. Era uma receita para o Governo Estadual. O que
mais decepcionava a todos nós é que eles davam uma carteirinha com a
fotografia dos titulares das casas conhecidos antigamente como
babalorixás, ialorixás, pais e mães-de-santo, hoje sacerdotes afros. Essas
fotografias eram colocadas no mural junto com ladrão, com criminoso,
com tudo. Que consideravam como marginais, mas mesmo assim
liberavam nossas festas21.

No caso específico da Umbanda, além da inserção de símbolos católicos como

imagens de santos e preces, ela se associou ainda mais ao Kardecismo. Os umbandistas

começaram a se intitular espíritas como forma de esconder sua verdadeira identidade, pois

acreditavam que escapariam da perseguição vestindo a máscara destas duas religiões, a

Umbanda e o Espiritismo. A parte negra da Umbanda se vê obrigada a se camuflar pois,

afinal, neste período conturbado, estava certo quem adotava os valores brancos.

Contudo, o caminho para uma desafricanização passou pela necessidade de

uma institucionalização da Umbanda. Em 1939, com o objetivo de organizar a religião,

Zélio Fernandino de Morais juntamente com outros fundadores de centros umbandistas

criaram, no Rio de Janeiro, a primeira federação de Umbanda, chamada União Espírita da

Umbanda do Brasil (UEUB). Em 1941, a UEUB realizou no Rio de Janeiro o I Congresso

Nacional de Umbanda com o objetivo de definir e codificar os ritos sob os moldes do

Espiritismo Kardecista adotando o princípio de uma religião que une todas as crenças,

raças e nacionalidades. Vale a pena destacar o propósito da “quase” total dissociação das

influências negras no culto umbandista, pois as entidades do Caboclo e do Preto-Velho

21
Depoimento dado em entrevista realizada em 02/12/2005.

23
permaneceram e ganharam status de espíritos evoluídos. Os umbandistas acreditavam que

para tornar sua religião mais evoluída seria preciso “esquecer” suas raízes afro-brasileiras,

no caso a Macumba. Para isso, o I Congresso Nacional de Umbanda instituiu uma suposta

origem oriental da religião, sem negar sua passagem pela África:

A origem da Umbanda foi traçada no Oriente de onde, se dizia, teria se


espalhado para a Lemúria (um continente perdido), e daí para a África.
Na África continua a estória, (sic) a Umbanda degenerou em fetichismo.
Desta forma foi trazida para o Brasil pelos escravos negros. (Federação
Espírita de Umbanda, 1942: 44-47, apud Jensen 2001: 9)

Jensen destaca outra forma de atribuir a passagem da Umbanda pela África, na

afirmação de que “ela se originou na África, mas na África Central (Egito), portanto na

parte mais ocidental e civilizada do Continente”. (Federação Espírita de Umbanda, 1942:

114, apud Jensen 2001: 9). Continuando, de acordo com Jensen (2001: 9), “a influência

africana da Umbanda foi reconhecida como um mal necessário que serviu meramente para

explicar sua chegada e desenvolvimento no Brasil”.

Isaia (s/d) destaca o esforço em torno da desafricanização da religião após o I

Congresso Nacional de Umbanda:

irão multiplicar-se os livros de intelectuais da nova religião, que tentavam


propor codificações rituais e doutrinárias, aparecendo catecismos,
manuais de condução dos trabalhos, etc., que, não raras vezes,
conflitavam em suas interpretações. Ao esforço desafricanizante e erudito
da maioria desses intelectuais irá somar-se uma tentativa inversa: a da
valorização das raízes explicitamente negras. (...) Contudo, a nota
dominante da obra dos intelectuais de Umbanda de meados do século XX
aponta para um efetivo trabalho de desafricanização, de aproximação
com os valores dominantes na sociedade22.

Acreditamos que vem deste contexto a explicação da origem de expressões

muito presentes entre os umbandistas como “magia branca”, “Umbanda de linha branca”

e “Umbanda Pura” associadas à prática do bem em oposição a expressões como “magia

22
Esta citação está disponível no endereço eletrônico <http://www.geocities.com/ail_br/oelogioao
Progressonaobra.htm>.

24
negra” e “linha negra” associadas à prática do mal. As palavras do “intelectual da

Umbanda” Aluízio Fontenelle retratam essa fase da negação das influências africanas na

religião:

não a essa Umbanda mistificada e misturada com os diversos credos


fetichistas hoje conhecida no Brasil inteiro. Será uma Umbanda
codificada, uma Umbanda pura, na qual se aproveitará de todas as
religiões existentes na terra somente aquilo que for sublime e perfeito (...)
Quanto aos praticantes dos candomblés e aos que praticam a magia negra,
estes serão devidamente orientados e instruídos em novas práticas,
abandonando por completo os rituais bárbaros que os identificam. O
Espiritismo na Lei de Umbanda em sua nova fase, surgirá com o
progresso do mundo; novos horizontes nos serão apresentados e o mundo
marchará de fronte erguida na direção do aperfeiçoamento universal.
(Fontenelle, 1953: 76)

Os reflexos deste período continuam presentes na prática umbandista.

Atualmente a negação africana fundamenta algumas ramificações umbandistas, como

veremos no decorrer deste capítulo.

O fim do Estado Novo provocou uma mudança no quadro político, social e

cultural no Brasil. Como não deveria deixar de ser, a Umbanda tratou de se adaptar a este

novo contexto reafirmando as suas origens e influências negras, seguindo, desta forma, um

movimento contrário.

2.1.2. A reafricanização: a afirmação africana

Em 1945, com o fim da segunda guerra mundial e a conseqüente derrota dos

regimes autoritários da Europa, o Brasil assiste ao término do Estado Novo. Getúlio

Vargas é deposto e um novo período da história do Brasil se inicia. A democratização

pediu passagem e com ele a legalidade de ações antes proibidas. Nascimento (2004: 13)

destaca que a aprovação da constituição de 1946 permitiu a prática livre da Umbanda e o

seu crescimento através da abertura de novos centros, federações e da sua presença nos

25
meios de comunicação como programas de rádio e jornais. Todos estes fatores

proporcionaram uma visibilidade maior e o culto umbandista, aos poucos, começou a

ganhar espaço em outros Estados.

Na década de 1960, durante o período da Ditadura Militar a Umbanda obteve

seu reconhecimento oficial, deixando a situação de “seita” para se tornar oficialmente uma

religião. Ortiz (1999: 55) e Negrão (1996a) mostram um sinal desta legitimação,

destacando que em 1964 a Umbanda foi incluída no anuário estatístico do IBGE (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística) e a partir de 1966, entra no nível oficial das

estatísticas, podendo seus praticantes se declararem como umbandistas durante a pesquisa

do censo, pois anteriormente estes adeptos eram classificados como kardecistas.

Neste período, a Umbanda experimentou um crescimento no número de

centros e praticantes. Ortiz (1999: 54-61) descreve este fato apontando gráficos de

crescimento de centros umbandistas em várias regiões do país (Estados de São Paulo, Rio

de Janeiro e Rio Grande do Sul) e revela dados oficiais que constatam o aumento do

número de praticantes. Ainda destaca neste período, a estreita relação entre a Umbanda e o

governo militar. Segundo Jensen (2001: 13) os militares aproveitaram o crescimento da

religião para usá-la na manipulação das massas e ao ataque aos membros da Igreja Católica

que se posicionaram contra o regime.

Neste contexto, outros dois congressos de Umbanda foram realizados no Rio

de Janeiro, respectivamente em 1961 e 1973, sempre com os objetivos de alcançar a

unificação institucional e uma padronização dos rituais da religião. Negrão (1996a: 89)

destaca os resultados do II Congresso Brasileiro de Umbanda em 1961:

Foram aprovadas quinze resoluções, dentre os quais a primeira e a mais


importante se propunha a promover a codificação da Doutrina
Umbandista em todos os seus aspectos [filosófico, científico e religioso]
inclusive a uniformização do ritual e atos litúrgicos tendo em conta as
diversas particularidades do culto e as peculiaridades de cada Estado ou
região do país.

26
Seguindo, o mesmo autor acrescenta que o III Congresso Nacional de

Umbanda voltou a se preocupar com a padronização e a unificação da religião como forma

de alcançar sua legitimação e o respeito das outras religiões. Negrão (1996a: 111-112)

destaca o amplo temário deste encontro:

aspectos doutrinários e filosóficos [sincretismo; teologias e crenças;


moral e ética religiosa; práticas e rituais; iniciação e desenvolvimento;
organização religiosa; música, dança e cânticos; simbologia] (...) aspectos
administrativos [organização administrativa; os cultos e a legislação
oficial; órgão nacional interfederativo] (...) temas livres e teses sobre a
Umbanda.

A realização dos três congressos foram de grande importância para a

institucionalização e legitimação da Umbanda como religião brasileira. Renato Almeida,

nesta época membro do Conselho Nacional do Folclore e Diretor Executivo da Campanha

de Defesa do Folclore Brasileiro, em seu Manual de Coleta Folclórica (1965: 70-71)

apresenta algumas considerações sobre a Umbanda:

O caso da Umbanda que aglutina macumba, catolicismo, espiritismo e


ocultismo, embora possuindo vários elementos de crença popular, já não
se pode incluir rigorosamente no campo do folclore, porque pretende
constituir-se em religião, divulga por escrito suas doutrinas e práticas,
possui revista e recentemente reuniu um Congresso no Rio de Janeiro.
Oficializa-se, desfolcloriza-se no fato cultural, ainda que mantendo
numerosos elementos dos ritos fetichistas, inclusive os orixás, as
possessões, os despachos e certas formas de culto.

Reconhecida oficialmente como religião e liberta de todas as amarras do

passado, a Umbanda abriu passagem para a busca por novos conceitos e identificações.

Isto representou a procura e o interesse por suas raízes negras, o que na literatura

encontramos pelo nome de “reafricanização”, o que mais uma vez foi traçado em relação

ao contexto da época, em que a sociedade estava influenciada pelo movimento da

contracultura.

Depois de instalar-se nos Estados Unidos e Europa, este movimento chega ao

Brasil e é adotado pela classe média, principalmente por intelectuais, artistas e estudantes.
27
A contracultura estimulava tudo que contrariava os modelos impostos. Na área política,

incentivou a criação de movimentos de esquerda e a organização de inúmeros protestos

contra a ditadura militar e de apoio a grupos marginalizados pelo regime como os grupos

negros e pobres. Prandi (s/d) nos lembra os questionamentos e as buscas deste movimento:

questionava as verdades da civilização ocidental, o conhecimento


universitário tradicional, a superioridade dos padrões burgueses vigentes,
os valores estéticos europeus, voltando-se para as culturas tradicionais,
sobre tudo as do Oriente, e buscando novos sentidos nas velhas
subjetividades, em esquecidos valores e escondidas formas de
expressão23.

Na área cultural, Jensen (2001: 13) aponta a busca da classe média pelas

práticas orientais como o ocultismo e pelas origens negras da cultura brasileira. Desta

forma, as religiões afro-brasileiras passaram a se tornar visíveis para esta faixa da

população. Prandi (s/d) destaca que este movimento provocou um interesse pela Bahia:

No Brasil, verificou-se um grande retorno à Bahia, com a redescoberta de


seus ritmos, seus sabores culinários e toda a cultura dos candomblés. As
artes brasileiras em geral (música, cinema, teatro, dança, literatura, artes
plásticas) ganharam novas referências, o turismo das classes médias do
Sudeste elegeu novo fluxo em direção a Salvador e demais pontos do
Nordeste. O candomblé se esparramou muito rapidamente por todo o
país, deixando de ser uma religião exclusiva de negros, a música baiana
de inspiração negra fez-se consumo nacional, a comida baiana, nada mais
que comida votiva dos terreiros, foi para todas as mesas, e assim por
diante24.

É neste contexto que o mesmo autor (1991: 73) aponta a chegada do

Candomblé em São Paulo, já que no Rio de Janeiro este já havia se instalado desde a

década de 1940, especialmente na região da Baixada Fluminense.

A reafricanização da Umbanda representou a sua reaproximação com as

religiões afro-brasileiras. Jensen (2001: 14) lembra que em 1977 chegou ao fim a proibição

23
Esta citação pode ser encontrada na home page pessoal do autor: <http://www.fflch.usp.br/sociolo
gia/prandi/dancacab.htm>.
24
Idem.

28
da prática do Candomblé e de outras religiões afro-brasileiras. É somente neste período que

o Candomblé começa a experimentar a liberdade de culto e, como conseqüência direta, a

abertura de novos terreiros e federações que, por sua vez, favoreceram o seu contato com a

Umbanda e a sua reafricanização. Desta forma, o fim da proibição da prática do

Candomblé é um fato importante nesta fase do desenvolvimento da Umbanda.

No Estado da Bahia, a luta pela livre prática do Candomblé começou em 1937

com a criação do Conselho Africano da Bahia (Cf. Braga, 1995: 165). Presidido por

Edison Carneiro, este conselho era formado por pessoas ilustres ligadas ao Candomblé e

pelo povo-de-santo em geral (ogãs, sacerdotes) com o objetivo de substituir a polícia no

controle da religião. Porém, este conselho não conseguiu sobreviver por várias razões

como a frustrada tentativa de padronizar o Candomblé diante da pluralidade de sistemas e

estruturas religiosas seguidas por cada terreiro (Cf. Braga, 1995: 174-175).

A extinção do Conselho Africano da Bahia não representou o fim da luta pela

liberdade do culto do Candomblé. Muitas iniciativas foram tomadas, entre eles a criação da

Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB). Na época da sua fundação (24

de novembro de 1946) este órgão era conhecido como Federação Baiana do Culto Afro-

Brasileiro e teve um papel importante, sensibilizando as autoridades, no processo de

desvinculação do Candomblé da polícia. Braga (1995: 180 e 183) e Barbosa (1984: 71)

destacam duas iniciativas neste sentido. A primeira foi um encontro com o Governador da

Bahia, Roberto Santos, antes da sua posse em 15 de março de 1975, para pedir “que

olhasse pelos religiosos do Candomblé, libertando os mesmos da polícia” (Cf. Barbosa,

1984: 71), e a segunda foi o envio de uma carta à mesma autoridade em janeiro de 1976,

reivindicando a isenção do pagamento de taxas para a realização dos rituais. As mesmas

reivindicações foram discutidas por antropólogos, artistas e outros intelectuais baianos no I

29
Seminário de Cultura da Cidade do Salvador realizado de 15 a 22 de Junho de 1975 na

Biblioteca Central do Estado (Cf. Braga, 1984: 183 e Garcia, 1996: 9).

Todas estas iniciativas resultaram na tão esperada conquista: o decreto 25.09525

que desvinculou definitivamente o Candomblé da Polícia. Este decreto foi assinado pelo

Governador Roberto Santos durante a festa da Lavagem do Bonfim em 15 de janeiro de

1976 e publicada no dia seguinte (Cf. Barbosa, 1984: 71; Braga, 1995: 183 e Garcia, 1996:

9).

Atualmente a FENACAB, localizada na Rua Alfredo de Brito nº 39

Pelourinho, desenvolve suas atividades amparada pelo artigo 5ª, inciso 6º da Constituição

Federal que diz: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o

25
DECRETO Nº 25.095, DE 15 DE JANEIRO DE 1976

Define o sentido e alcance da previsão legal a que alude.

O GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA, no uso de suas atribuições e CONSIDERANDO


QUE, na expressão “Sociedades afro-brasileiras para atos folclóricos”, a que se refere à tabela 1, anexo à Lei
nº 3.097, de 29.12.72, se tem identificado para fins de registro e controle nela previstos, as entidades que
exercitam o culto afro-brasileiro, como forma exterior da religião que professam;
CONSIDERANDO QUE, semelhante entendimento se não ajusta no sentido e alcance da lei, sendo
antes antagônico ao princípio constitucional que assegura a liberdade do exercício do culto.
CONSIDERANDO QUE É DEVER do poder público garantir aos integrantes da comunhão política
que dirige, o livre exercício do culto de cada um, obstando quaisquer embaraços que o dificultam ou
impeçam;
CONSIDERANDO AFINAL QUE, se assim lhe incumbe proceder para com todas as crenças e
confissões religiosas, justo não seria que também não fizesse em relação às sociedades do culto afro-
brasileiro, que de idêntico modo têm a liberdade de regerem-se de acordo com a sua fé.

DECRETO:

Art. 1º - Não se incluem, na previsão do ítem 27 da Tabela nº 1, anexo à Lei 3.097, de 29.12.72, as
sociedades que pratiquem o culto afro-brasileiro, como forma exterior que professam, que assim podem
exercitar o seu culto, independentemente do registro, pagamento de taxa ou obtenção de licença junto a
autoridades policiais.
Art. 2º - Este decreto entrará em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.

PALÁCIO DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, 15 de janeiro de 1976.

ROBERTO FIGUEIRA SANTOS


LUIZ ARTHUR DE CARVALHO

OBS.: PUBLICADO NO DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO, EM 16 DE JANERO DE 1976


(dia seguinte à assinatura).

30
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias” e, pelo artigo 275 da Constituição do Estado da Bahia:

É dever do Estado preservar e garantir a integridade, a respeitabilidade e


a permanência dos valores da religião afro-brasileira e especialmente:
I - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de
valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios
arqueológicos vinculados à religião afro brasileira, cuja identificação
caberá aos terreiros e à Federação do Culto Afro-Brasileiro;
II - proibir aos órgãos encarregados da promoção turística, vinculados ao
Estado, a exposição, exploração comercial, veiculação, titulação ou
procedimento prejudicial aos símbolos, expressões, músicas, danças,
instrumentos, adereços, vestuário e culinária, estritamente vinculados à
religião afro-brasileira;
III - assegurar a participação proporcional de representantes da religião
afro-brasileira, ao lado da representação das demais religiões, em
comissões, conselhos e órgãos que venham a ser criados, bem como em
eventos e promoções de caráter religioso;
IV - promover a adequação dos programas de ensino das disciplinas de
geografia, história, comunicação e expressão, estudos sociais e educação
artística à realidade histórica afro-brasileira, nos estabelecimentos
estaduais de 1º, 2º e 3º graus.

O direito à liberdade de culto estampada nas duas legislações acima, por sua

vez, é assegurada pela existência da FENACAB, como afirma Antoniel Bispo:

Porque, como nós dissemos, a Constituição Federal nos dá o direito da


liberdade de culto, mas à toa não há a possibilidade. Então tinha que
existir dentro da lei uma disciplina. Quem pode disciplinar? Uma
entidade. Então esta entidade passou a ser o que? Qual é o principal papel
da federação? Muito simples. É uma entidade de pessoa jurídica de
direito privado, reconhecida de utilidade pública26.

Com este propósito, a FENACAB concentra suas atividades na fiscalização e

orientação às baianas de acarajé e comidas típicas e aos locais de culto afro-brasileiro das

diversas nações (queto, jêje, banto, mina jêje, mina nagô, nagô, juremeira, catimbó, tambor

de mina, xambá, batuque) e à Umbanda. Cabe à FENACAB também o provento, junto aos

poderes constituídos, de benefícios para as religiões. Dois exemplos importantes destas

conquistas são: a inclusão do tema “história e cultura afro-brasileira” nos currículos

26
Depoimento dado em entrevista realizada em 03/04/2006.

31
escolares do ensino fundamental e médio (Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003)27

e o registro dos pais e mães-de-santo junto ao Ministério do Trabalho, no qual terão os

mesmos direitos trabalhistas (auxílios, aposentadoria) assegurados aos sacerdotes das

outras religiões 28.

A fiscalização das casas de culto se dá pelo controle de todos os rituais

desenvolvidos nos terreiros. Para que possam ser realizados, os rituais devem ser

autorizados pela federação mediante o preenchimento da ficha de autorização (Cf. anexo p.

217), e a partir disso dá-se inicio ao processo de fiscalização:

Eles têm que vir aqui e pedir uma autorização e nós fiscalizamos. Nós
temos um quadro de fiscais que vai até o terreiro. Eu posso ir a uma festa
num determinado terreiro como diretor da federação e se eu encontrar
algo errado, eu posso autuá-lo ou posso, dentro de uma ética, convidar o

27
LEI Nº - 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003

Altera a Lei nº- 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
providências.

O PRESIDENTE DA REPÙBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art 1ª – A Lei nº- 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts.
26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de
todo o currículo escolar, e especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3º - (VETADO).
“Art. 79-A. (VETADO).”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência
Negra’.”
Art. 2ª – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182º - da Independência e 115º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
28
De acordo com diretor-secretário da FENACAB, estas conquistas poderiam ser ampliadas se os
terreiros de Candomblé fossem transformados em associações.

32
sacerdote em algum momento e informar da irregularidade que eu vi e
informá-lo que eu vou fazer um convite pra ele vir aqui pra coordenação
para prestar esclarecimento. Então ele está passível de punições, nosso
estatuto prevê isso. Prevê punição. Advertência, suspensão, expulsão,
etc29.

De certa forma, nos deparamos com uma ambigüidade, pois ao mesmo tempo

em que esta instituição fiscaliza exercendo poderes de suspender e expulsar uma casa de

culto, ele também oferece um serviço de orientação. Neste ponto, a FENACAB promove

diversas atividades como a realização de cursos (para as baianas de acarajé e cursos de

línguas africanas: iorubá, quicongo), o incentivo à divulgação de livros e trabalhos

voltados às religiões Afro-brasileiras e a realização de palestras sobre o assunto em

instituições como escolas, universidades e penitenciárias.

Para a realização de todas estas atribuições fora da cidade de Salvador, a

Federação possui coordenações nos Estados do Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará, Mato

Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro,

São Paulo e Sergipe. No Estado da Bahia, existem coordenações nas cidades de

Alagoinhas, Candeias, Feira de Santana, Itabuna, Itaparica, Jacobina, Lauro de Freitas,

Santo Amaro da Purificação, São Félix, São Sebastião do Passe, Simões Filho, Valença e

Vitória da Conquista. Estas coordenações abrangem suas áreas circunvizinhas e respondem

como representantes legais da entidade assumindo o mesmo papel e prestando contas à

sede em Salvador.

Assim como a FENACAB, no Brasil existem um grande número de entidades e

federações reconhecidas em âmbito municipal, estadual e federal que têm como funções a

legalização dos locais de culto, fornecendo alvará de funcionamento, estatutos e demais

documentações necessárias para o exercício das religiões afro-brasileiras e da Umbanda,

além de promover, através de cursos, o aperfeiçoamento dos sacerdotes.

29
Depoimento de Antoniel Ataíde Bispo em entrevista realizada em 03/04/2006.

33
A liberdade de culto ao Candomblé, bem como o aparecimento das federações,

facilitou o seu contato com a Umbanda, no qual se tornou uma prática a filiação dos pais-

de-santo umbandistas ao Candomblé com o objetivo de conhecer seus elementos africanos

e conseqüentemente aumentar a sua competência como líderes umbandistas. Prandi (1991:

81) lembra que em São Paulo muitos sacerdotes umbandistas mudaram para o Candomblé

alegando que era “preciso recuperar um passado perdido, apagado, escondido. E que a

umbanda teria sido um disfarce, uma forma de apagar ou dissimular uma origem que o

senhor branco hostilizava”. No entanto, existem diferenças importantes entre a Umbanda e

o Candomblé apontadas por Silva (1995: 95-97) e descritas no quadro a seguir, que

evidentemente não abarcam todas as características das duas religiões, mas servem como

síntese:

Candomblé Umbanda

Predomínio de um número Predomínio de um número maior de


menor de entidades circuns- entidades agrupadas por linhas ou
critas às divindades de origem falanges como as dos orixás,
Panteão africana (orixás, voduns, in- caboclos, pretos-velhos, erês, exus,
quices), erês (espíritos infan- pombagiras, ciganas, marinheiros,
tis) e eventualmente caboclos zé-pilintra, baianos, etc.
(espíritos ameríndios).
Serem louvadas, aproximação Desenvolvimento espiritual dos
Finalidades do Culto dos homens às divindades; médiuns e das divindades (da
às Divindades equilíbrio e fortalecimento do escala mais baixa, representada
homem. pelos exus, à mais alta,
representada pelos orixás),
influência do Kardecismo.
Declarado inconsciente e legi- Declarado semiconsciente e permi-
Transe timamente aceito somente após tido para um número maior de
a iniciação do fiel para um entidades, na medida do desenvol-
número reduzido de entidades. vimento mediúnico do fiel.
Condição básica para o ingresso Existe, mas não como condição
legítimo no culto. Segregação básica para o pertencimento ao
do fiel por um longo período; culto; camarinha: segregação do
raspagem total da cabeça; fiel por um período curto, raspagem
Iniciação sacrifício animal e oferendas parcial da cabeça (não
rituais. Grande número de obrigatória), sacrifício animal (não
preceitos obrigatório) e oferendas rituais.
Predomínio do batismo, realizado
na cachoeira, no mar ou através de

34
entregas de oferendas na mata.
Predomínio do jogo de búzios Predomínio do diálogo direto entre
Processos realizado somente pelo pai-de- os consulentes e as divindades que
Divinatórios: Modos santo (sem necessidade do dão “passes” ou receitam
de Comunicação com transe) que recomenda os ebós trabalhos.
os Deuses ou despachos para a resolução
dos problemas do consulente.
Estabelecida a partir do tempo Estabelecida a partir da
de iniciação e da ocupação de capacidade de liderança religiosa
Hierarquia cargos religiosos definidos. dos médiuns e de seus guias.
Fundamental na organização Importância da ordem burocrática.
sócio-religiosa do grupo.
Predomínio de cantigas con- Predomínio de pontos cantados em
tendo expressões de origem português, acompanhados por
africana. Acompanhamento palmas ou pelas curimbas
Música Ritual executado por três atabaques (atabaques), sem número fixo, que
percutidos somente pelos ala- podem ser percutidos por adeptos
bês (iniciados do sexo mascu- (curimbeiros) de ambos os sexos.
lino que não entram em transe).
Formação obrigatória da Não obrigatoriedade da forma- ção
“roda de santo” (disposição da “roda de santo”. Disposição dos
dos ade- ptos na forma circular adeptos em fileiras paralelas.
Dança Ritual que dançam em sentido anti- Predomínio de uma maior
horário). Predomínio de liberdade de expressão da
expres- sões coreográficas linguagem gestual nas danças que
preestabele- cidas, que identificam as divindades.
identificam cada divindade ou
momento ritual.

As constantes mudanças sofridas pela Umbanda durante a sua formação

possibilitou a existência de ramificações em seu culto que se diferenciam pela maior ou

menor aproximação das influências branca e negra. Lopes (1997: 65) aponta dois tipos

contrastantes de culto: a Umbanda de Asfalto e a Umbanda de Morro, no qual a primeira é

formada por integrantes pertencentes à classe média, que não assumem a herança negra.

Serra (2001: 221 e 1988: 18) em sua pesquisa sobre a Umbanda em Brasília-DF, definiu de

maneira precisa esta variação em três direções principais: A Umbanda Branca, a Mista e a

Preta.

De uma forma geral, poderíamos afirmar que a Umbanda Branca assemelha-se

àquela formada na década de 1920, por Zélio Fernandino de Morais. Esta categoria é

35
conhecida como Umbanda de Mesa Branca e caracteriza-se pela adoção da doutrina

espírita kardecista e pela negação das origens e influências negras. Porém, de acordo com

Cacciatore (1988: 235 e 243) algumas particularidades fazem com que este culto seja

diferente de uma sessão kardecista como o uso exclusivo de roupas brancas e a presença

das entidades do Caboclo, Preto-Velho e Crianças. No entanto, surgiram outras vertentes

dentro da Umbanda Branca como a Umbanda de Caboclo e a Umbanda de Pretos-Velhos,

no qual estas entidades ocupam o comando. Dentro deste contexto, destaca-se o

surgimento da Umbanda Esotérica, Iniciática ou Cabalística, cuja doutrina tem forte

influência oriental como o uso de mantras indianos e a utilização do sânscrito.

A Umbanda Mista caracteriza-se pela mistura das vertentes branca e negra, isto

é, apresenta influências do Kardecismo e do Catolicismo associados a algumas práticas

emprestadas das religiões afro-brasileiras. E, a Umbanda Preta caracteriza-se pela maior

associação com as religiões afro-brasileiras, no qual muitos autores apontam a existência

de uma modalidade chamada Umbandomblé (Cf. Jensen, 2001; Negrão, 1996a).

A linha divisória entre a Umbanda Mista e a Preta é tênue, pois é difícil definir

uma medida de quantidade de elementos “negros” capazes de afirmar se um centro

umbandista é misto ou preto. Este fator é acentuado se consideramos o universo particular

dos centros umbandistas. Porém, é possível estabelecer diferenças entre a Umbanda

Branca e a Mista, pois a primeira dispensa elementos que são fundamentais na segunda

como por exemplo: a não incorporação dos Orixás30 e a dispensa do uso dos instrumentos

musicais na música ritual, no qual os pontos cantados são acompanhados somente por

palmas.

30
Na Umbanda Branca, os homens não possuem o contato direto com os Orixás, pois estes não são
incorporados pelos médiuns. Neste culto, os Orixás estão presentes em forma de energia que auxilia o
trabalho das outras entidades. Aqui se acredita que devido à sua posição elevada na hierarquia, o lugar deles
está na esfera astral impondo, desta forma, uma hierarquia entre as diversas entidades cultuadas.

36
Ao analisar a Umbanda praticada em diversas regiões do Brasil, encontramos

um predomínio da modalidade mista em relação a branca. Serra (2001: 217-221), por

exemplo, mostra que na Umbanda praticada em Brasília-DF há uma predominância pela

direção mista que, por sua vez, corresponde à formação da cidade por imigrantes vindos de

todas as regiões do Brasil. Este fator, segundo o autor, contribui para que a maioria dos

quase 2000 centros de Umbanda existentes em Brasília seja de natureza mista. Afinal, os

centros umbandistas existentes na capital federal foram criados por goianos, mineiros,

paulistas, cariocas, pernambucanos e outros.

A Umbanda praticada no Rio Grande do Sul também apresenta a

predominância mista sobre a branca. De acordo com Oro (2002: 357-58) o culto praticado

neste Estado se caracteriza pela sua mistura com o Batuque31. Continuando, Oro acrescenta

que a Umbanda, denominada Linha Cruzada, surgida na década de 1960, hoje é cultuada

em cerca de 80% dos centros gaúchos. Esta modalidade se caracterizou pela adaptação ao

contexto urbano e industrial, através da simplificação dos rituais, sem perder a força

mística da junção Batuque-Umbanda. Oro (2002: 358) ainda explica a popularização da

Linha Cruzada pela sua adaptação às necessidades dos praticantes, composta em sua

maioria por trabalhadores assalariados situados nos grandes centros urbanos. Neste

contexto, esta modalidade vai ajustar-se principalmente à parte financeira (os custos dos

rituais são mais baratos do que no Batuque) e na simplificação dos fundamentos religiosos

(o aprendizado geral é mais simples em relação ao Batuque). A adaptação da Umbanda ao

contexto local pode ser observado em alguns elementos como, por exemplo, o churrasco

como comida atribuída ao Orixá Ogum.

Entre as modalidades de Umbanda Mista está o Xangô Umbandizado

encontrado no Estado de Pernambuco (Cf. Fonseca, 1999: 74). Trata-se de uma ligação
31
Religião afro-brasileira baseada no culto aos Orixás assim como o Candomblé na Bahia, o Xangô
em Pernambuco e o Tambor de Mina no Maranhão.

37
entre o Xangô (religião afro-brasileira pernambucana) com a Umbanda, obedecendo aos

mesmos princípios de adaptação ao contexto urbano como, por exemplo, a simplificação

dos rituais, sem perder a magia proporcionada pela união das duas crenças.

No Estado de Minas Gerais, a localização geográfica vai determinar a

existência da Umbanda Branca e Mista. Segundo Guimarães (1997: 103) nas cidades

localizadas na região da Zona da Mata e no Triângulo Mineiro há predominância da

Umbanda Branca em razão das influências do Rio de Janeiro e São Paulo sobre estas

localidades. Continuando (1997: 103), o autor aponta que na capital Belo Horizonte, a

Umbanda começou a se proliferar na década de 1940 e a partir dos anos 50 o Candomblé

passa a se tornar conhecido na cidade passando a influenciar diretamente a Umbanda. Já o

norte de Minas Gerais caracteriza-se pela prática da Umbanda Mista (junção da Umbanda

com o Candomblé de Caboclo), devido à aproximação desta região com o Estado da Bahia.

Por outro lado, na Bahia, a aproximação entre estes dois Estados também

contribuiu para a formação do Jarê, um culto praticado na Chapada Diamantina (região

central da Bahia). Senna (1973: 15) aponta o Jarê como uma variante sincretizada do

Candomblé de Caboclo com a Umbanda. A região da Chapada Diamantina, mais

especificamente a cidade de Lençóis teve a sua economia baseada na extração do diamante,

que atraiu a vinda de pessoas de diversas partes do território brasileiro, principalmente

Minas Gerais e das cidades baianas da região do Recôncavo e do São Francisco. Para

Senna (1973: 25-26) o encontro destas diferentes culturas possibilitou a formação de um

culto altamente sincrético, no qual o Candomblé apareceu com aqueles que vieram do

Recôncavo e, os que chegaram de Minas Gerais trouxeram a Umbanda.

Esta imigração também contribuiu para a formação da Umbanda na cidade de

Vitória da Conquista, localizada na região sudoeste do Estado da Bahia. De acordo com

Aguiar (1999: 95), o início da Umbanda em Vitória da Conquista ocorreu na década de

38
1960 e, atualmente, a cidade conta com 60 centros umbandistas, cujas influências descritas

abaixo (Aguiar, 1999: 99), nos leva a acreditar na existência das modalidades de Umbanda

Branca e Mista:

Cada casa possui suas especialidades, com conjuntos de símbolos que


colocam umas mais próximas das tradições consideradas africanas, outras
mais próximas das origens ditas indígenas e todas permeadas, umas mais
outras menos, por alguns símbolos do catolicismo e do Espiritismo
Kardecista.

Em se tratando da Umbanda na Bahia, a Federação Nacional do Culto Afro-

Brasileiro (FENACAB) nos dá um panorama geral da presença da religião no Estado

através do número de registros dos centros umbandistas. Atualmente, a instituição possui

em todo o Brasil 4.622 filiações de centros de Umbanda e casas de culto afro-brasileiro de

todas as nações (queto, jêje, banto, mina jêje, mina nagô, nagô, juremeira, catimbó, tambor

de mina, xambá, batuque). No Estado da Bahia, existem registrados 276 centros

umbandistas distribuídos em 102 cidades e dois distritos. Estas são as cidades baianas onde

se encontram centros umbandistas registrados à FENACAB:

Distritos:
Bonfim de Feira: três centros
Cocorobó: um centro

Cidades:

Acaraci: um centro Itiruçu: um centro


Alagoinhas: nove centros Itororó: um centro
Alcobaça: um centro Ituberá: dois centros
Algodão: um centro Jacobina: nove centros
Amélia Rodrigues: dois centros Japumirim: um centro
Aporá: dois centros Jequié: um centro
Aramari: um centro Jeremoabo: um centro
Baixa Grande: um centro Jitaúna: um centro
Barra da Estiva: um centro Juazeiro: dois centros
Boa Vista do Tupim: um centro Laje: um centro
Bom Jesus da Lapa: três centros Lapão: um centro
Brumado: sete centros Lauro de Freitas: três centros
Cachoeira: três centros Macururé: um centro
Caculé: um centro Mata de São João: um centro
Cafarnaum: três centros Miguel Calmon: três centros

39
Camaçari: oito centros Morro do Chapéu: seis centros
Campo Formoso: três centros Mundo Novo: cinco centros
Candeias: nove centros Muritiba: dois centros
Capim Grosso: um centro Nazaré das Farinhas: seis centros
Caravelas: um centro Nova Viçosa: um centro
Castro Alves: três centros Oliveira dos Brejinhos: um centro
Catu: dois centros Paulo Afonso: um centro
Cipó: um centro Pé de Serra: um centro
Conceição do Coité: três centros Piritiba: um centro
Conceição de Feira: seis centros Potiraguá: um centro
Coração de Maria: um centro Santa Bárbara: um centro
Cruz das Almas: três centros Santa Terezinha: um centro
Curaçá: um centro Santo Amaro da Purificação: oito
Dias D’Avila: dois centros centros
Entre Rios: um centro Santo Antônio de Jesus: um centro
Euclides da Cunha: um centro Santo Estevão: um centro
Eunápolis: cinco centros São Félix: um centro
Feira de Santana: 17 centros São Francisco do Conde: um centro
Gandu: dois centros São Gonçalo dos Campos: um centro
Iaçu: um centro São Miguel das Matas: um centro
Ibirapitanga: seis centros São Sebastião do Passé: quatro
Ibirataia: cinco centros centros
Ibititá: um centro Senhor do Bonfim: três centros
Igrapiúna: um centro Serra Dourada: um centro
Ilhaú: um centro Serrinha: um centro
Ilhéus: um centro Serrolândia: três centros
Inhambupe: dois centros Simões Filho: sete centros
Ipiaú: 10 centros Sítio do Quinto: dois centros
Ipirá: um centro Teixeira de Freitas: um centro
Irará: um centro Terra Nova: cinco centros
Irecê: dois centros Travessão: dois centros
Itabuna: quatro centros Ubatã: um centro
Itaeté: um centro Urandi: três centros
Itagimirim: dois centro Utinga: dois centros
Itaibó: um centro Valença: seis centros
Itamarati: um centro Vitória da Conquista: nove centros
Itapetinga: dois centros Xique-Xique: dois centros

Na cidade de Salvador são encontrados 53 registros de centros umbandistas,

distribuídos em 28 localidades/bairros da seguinte forma:

Amaralina: um centro Federação: um centro


Baixa de Quintas: um centro Garcia: um centro
Baixa dos Sapateiros: um centro Itacaranha: um centro
Barra Avenida: um centro Itapoan: dois centros
Barroquinha: um centro Largo do Tanque: um centro
Barros Reis: dois centros Liberdade: cinco centros
Beiru: um centro Paripe: dois centros
Boca do Rio: um centro Pernambués: quatro centros
Brotas: nove centros Retiro: quatro centros
Cabula: um centro Santa Cruz: dois centros

40
Cajazeiras: dois centros Santo Antonio: um centro
Campinas de Pirajá: dois centros São Caetano: um centro
Castelo Branco: dois centros São Marcos: um centro
Fazenda Grande: um centro Sete de Abril: um centro

Todavia, o número de registros mencionados acima nos dá apenas um

panorama geral da presença da Umbanda no Estado da Bahia e na sua capital Salvador,

pois não reflete a situação real da religião em termos quantitativos. Os centros registrados à

FENACAB correspondem a uma faixa muito pequena dentro de um universo encontrado

na Bahia. Para se ter uma idéia, Vitória da Conquista possui, segundo dados da

FENACAB, nove centros registrados, enquanto que Aguiar (1999: 10) em seus estudos

sobre as manifestações religiosas nesta cidade constatou a existência de 60 centros

umbandistas.

A respeito da Umbanda em Salvador, Antoniel Bispo acredita que os primeiros

centros surgiram provavelmente na década de 1950, período em que a FENACAB, na sua

atividade de fiscalização das casas de culto afro-brasileiro, começou a tomar conhecimento

da existência da prática da Umbanda em Salvador. Infelizmente, não foi possível obter

junto à FENACAB o registro dos primeiros centros umbandistas do Estado da Bahia e da

sua capital, pois um incêndio na instituição provocou a perda desta documentação.

Béhague (1986: 20), por sua vez, afirma que, em Salvador, a Umbanda começou a se

popularizar no início da década de 1960, período em que ocorreu um aumento do culto

nesta cidade.

A Umbanda em Salvador possui uma particularidade que também reflete a

disparidade entre os centros registrados e os não registrados à FENACAB: a existência de

duas modalidades umbandistas, a Umbanda Branca e a Mista. Estas duas ramificações são

semelhantes àquelas apresentadas anteriormente, isto é, a Umbanda Branca, também

41
conhecida como Mesa Branca, caracterizada pelo afastamento das influências negras e seu

contato com o Kardecismo e a Umbanda Mista mais ligada às religiões afro-brasileiras.

Em Salvador, a Umbanda Mista é fortemente influenciada pelo Candomblé

Angola e pelo Candomblé de Caboclo. Antoniel Bispo nos explica que a chave para

desvendar esta proximidade está na música e na capacidade sincrética da Umbanda:

Esta forma de utilização da Umbanda muito levada para o lado de angola


é porque exatamente, eu Antoniel vejo assim, é mais fácil o ritual, os
toques, os cânticos. Porque, na verdade, os cânticos de angola são
praticamente semelhantes quase aos cânticos das músicas que se cantam
pra Caboclo [Candomblé de Caboclo]. É bem parecido com o samba de
roda. Os cânticos sagrados, esses não vem pra barracão. A Umbanda
daqui é como em todo lugar, ela vem pegando pedaços de coisas
diferentes. O toque dos atabaques na nação queto são completamente
diferentes. Nós da nação queto utilizamos para tocar os nossos atabaques
os aquidavis, as baquetazinhas. O toque de angola é um toque de mão e
também é muito utilizado na Umbanda. Os cânticos são bem levado pro
lado de angola. Que nós cantamos praticamente, nós do queto, tudo em
iorubá, não cantamos em português. É muito mais fácil para angola ficar
semelhante ou similar à Umbanda do que o queto.32

Apesar de o Candomblé queto estar no centro da declaração acima, ela

apresenta alguns pontos de contato entre a Umbanda – Candomblé Angola – Candomblé

de Caboclo. Esta proximidade também pode ser constatado nos rituais e nas músicas

executadas no Centro Umbandista Rei de Bizara33.

De acordo com Antoniel Bispo, os centros de Umbanda Branca são

freqüentados por pessoas na sua maioria de classe média (classes A e B34) e se localizam

em bairros nobres da cidade (Amaralina, Barra, Caminho das Árvores, Pituba), enquanto

que na outra modalidade os adeptos pertencem a todas as classes sociais e os centros se

encontram nos bairros populares e periféricos. O conhecimento do diretor da FENACAB a

32
Depoimento de Antoniel Ataíde Bispo em entrevista realizada em 03/04/2006.
33
Este assunto será abordado com mais detalhes nos próximos capítulos.
34
Trata-se de um critério de Classificação Econômica do Brasil, que divide a população em classes
econômicas e não em “classes sociais”. Este critério divide a população em classes A, B, C, D, E
considerando basicamente a renda familiar e grau de instrução do chefe de família.

42
respeito do perfil da Umbanda de Mesa Branca soteropolitana veio através do contato com

os seus freqüentadores nas mais diversas situações como descreve abaixo:

eu tive a oportunidade de fazer uma palestra sobre a religião afro numa


determinada faculdade de Salvador, por sinal católica. E, quando eu
terminei o meu trabalho, alguns alunos me procuraram: “professor, gostei
muito do trabalho do senhor, me diga uma coisa ...” Aí começaram a se
identificar. Eu moro em tal lugar assim, assim. Minha mãe recebe um
caboclo e faz uma sessão só pros amigos que vêm e fazem uma
consulta35.

Diante desta declaração podemos constatar que neste segmento a religião é

praticada também dentro de um grupo familiar, com o acesso restrito apenas aos amigos ou

àqueles que pertencem ao mesmo círculo de amizades. Este perfil nos indica que há uma

separação social dentro destas duas ramificações umbandistas em Salvador. No primeiro

caso encontramos uma mistura tanto na sua composição (influências brancas e negras)

quanto no seu público (diferentes posições sociais e de escolaridade) diferente das

restrições encontradas no segundo caso. Este fator social observado dentro da Umbanda, de

certa forma tem uma lógica, como nos diz Antoniel:

porque essas pessoas não querem se deixar manifestar em outro lugar


senão no reduto social deles. Eu já tive contato com pessoas que me
convidaram pra ir, mas como diretor da Federação não fica bem. O que
eu quero na verdade como diretor da federação é que essas casas passem
a fazer parte do nosso mundo também. Porque não há desigualdade pelo
lado espiritual36.

Apesar da grande incidência de Mesa Branca em Salvador, levando em

consideração a sua presença nos bairros nobres desta cidade, existe apenas um centro

35
Depoimento de Antoniel Ataíde Bispo em entrevista realizada em 03/04/2006.
36
Idem.

43
registrado na FENACAB. Trata-se do Centro de Umbanda Fé, Esperança e Caridade37,

localizado no Bairro Santo Antônio (mais conhecido como Direita de Santo Antônio).

Acreditamos que esta disparidade entre o número de centros registrados e a

realidade da prática umbandista na Bahia acontece porque atualmente a maioria dos

centros umbandistas não vê a necessidade do registro junto à FENACAB, haja vista que a

liberdade de culto está assegurada pela legislação vigente, portanto, não existindo mais o

perigo da repressão policial. Por outro lado, a obtenção dos registros pelos centros assegura

proteção e licença para a execução dos rituais, como podemos constatar no depoimento da

mãe-de-santo Amélia Cândida da Silva do Centro Umbandista Rei de Bizara, local

registrado à FENACAB desde 10 de dezembro de 1981:

Toda a pessoa que bate atabaque tem que ser filiada a eles [FENACAB].
Porque tem muita a gente aí que gosta de acabar com as coisas dos
outros. Se por acaso alguém vier aí encher a paciência eu mostro o papel
a eles e eles façam o que eles quizerem.

Em se tratando da Umbanda na Bahia, a FENACAB nos dá um panorama geral

que, apesar da falta de profundidade, nos dá muitas pistas sobre a sua presença em 104

municípios e na capital. Isto nos faz acreditar que este assunto merece ser melhor

compreendido.

Analisando a trajetória percorrida pela Umbanda desde a sua gênese até os dias

atuais podemos observar que a sua busca por uma identidade brasileira percorre dois

caminhos. O primeiro trilhado pelos centros umbandistas onde se produz e reproduz o

universo sagrado aliado ao imaginário popular brasileiro, e o segundo percorrido pelas

federações que, através da realização dos congressos de Umbanda, buscaram a

institucionalização e a legitimação da religião racionalizando e uniformizando os ritos

37
O nome deste local foge aos padrões de denominação de um centro umbandista, que na maioria
dos casos acompanha o nome do orixá ou entidade protetora. Fé, Esperança e Caridade nos remete a
denominações típicas encontradas nos centros espíritas kardecistas.

44
criados espontaneamente dentro dos centros umbandistas. Os dois caminhos se

complementam, pois a Umbanda não existiria sem esta “criatividade” dos terreiros, ao

mesmo tempo em que a religião possivelmente não se tornaria um movimento nacional se

não fosse pela atuação das federações.

Toda a cultura está sujeita a mudanças e estas podem representar ao mesmo

tempo, dinâmica e estabilidade (Cf. Merriam, 1964: 303). A identidade umbandista será

sempre um processo em construção se levarmos em consideração a sua tendência em se

adaptar aos contextos global e local através das constantes trocas com a sociedade na qual

se insere. Assim sendo, para que esta adaptação ocorra, a Umbanda sofre complexos

mecanismos de mudança cultural e musical. As inovações são sujeitas à aceitação social,

onde são colocadas em prática e finalmente, integradas como novos elementos do culto.

Processo este que ocorre sempre de forma dinâmica e contínua (Cf. Spradley e McCurdy,

1989: 302-325).

2.2. O culto umbandista

A primeira vista, quando nos deparamos com as diferentes direções presentes

na Umbanda, nos questionamos: que características são determinantes para que todas essas

divisões sejam consideradas como Umbanda? O denominador comum parece estar

presente no próprio culto umbandista, isto é, nele aparecem elementos semelhantes a todas

as ramificações que fazem com que todas elas se identifiquem como Umbanda.

45
Essencialmente, a Umbanda se fundamenta em alguns conceitos básicos, entre

os quais podemos destacar: a existência de um Deus único, a divisão do panteão

umbandista em linhas e falanges, a mediunidade como instrumento de desenvolvimento

espiritual e a prática da caridade.

O local onde se realiza o culto umbandista, por sua vez, pode ter muitas

denominações, entre eles, tenda, templo, igreja, terreiro, mas a designação mais encontrada

é “centro”, acompanhado pelo nome do Orixá ou entidade protetora. No centro

umbandista, local de extrema importância, são realizadas todas as sessões ou rituais e onde

se concentram os adeptos que, por sua vez, estão dispostos numa hierarquia bem definida,

baseada no tempo de iniciação e não pela faixa etária. A hierarquia na Umbanda, de forma

sucinta, está descrita abaixo de forma decrescente:

Pai ou Mãe-de-Santo – Conhecido também como sacerdote ou babá. É o chefe

e o portador de todo o conhecimento da religião. Responsabiliza-se por todas as atividades

desenvolvidas no centro e pela organização e supervisão dos cultos. A entidade

incorporada pelo sacerdote é considerada a protetora do centro.

Mãe ou Pai pequeno – É quem auxilia o sacerdote. A eles são ditadas as ordens

a serem seguidas por todos os componentes do centro. Geralmente são médiuns com mais

tempo de iniciação.

Curimbeiros – Conhecidos também como ogãs ou tabaqueiros. São os

responsáveis pela música, tocando os instrumentos musicais (atabaques, agogô) e

“puxando” os pontos cantados. Não entram em transe.

Médiuns – Conhecidos também como “cavalos” ou “burros”. São essenciais,

pois são os responsáveis pela incorporação das entidades. Na Umbanda, o número de

entidades incorporadas pelo médium determina o seu nível de desenvolvimento espiritual.

Para ingressar na religião, os médiuns passam por uma iniciação (batismo) e devem

46
cumprir alguns rituais como a obrigação ou a confirmação do Orixá (feita anualmente com

o auxílio de oferendas composta geralmente por flores, velas, frutos e alimentos).

Cambono ou Cambone – São responsáveis por auxiliar as entidades

incorporadas, fornecendo seus objetos de culto (charutos, velas, bebidas alcoólicas, etc).

Não entram em transe.

Clientes – Conhecidos também como assistência. São importantes, pois através

deles a Umbanda exerce seu papel principal: a prática da caridade.

Nos centros umbandistas, o apoio para a solução de problemas de naturezas

distintas é dado a todas as pessoas independente de cor, raça ou classe social. Na sua

grande totalidade, de forma generalizada, os pobres procuram a solução de problemas de

ordem financeira (desemprego, falta de dinheiro) e os ricos buscam respostas para os

problemas de ordem existencial como crises de identidade ou problemas afetivos. Negrão

(1996a: 349) aponta que a caridade não alcança somente a assistência:

A prática da caridade, entendida como a procura de solução dos


problemas pessoais das mais variadas naturezas, dando alívio e proteção
aos que os procuram, é o objetivo sempre declarado dos terreiros. Tal
caridade não está voltada exclusivamente aos vivos, mas atinge também
aos mortos: os próprios guias incorporados, ao praticarem o bem, estão
cumprindo suas missões e evoluindo espiritualmente. O que ocorre ainda
com o próprio médium, que cede seu corpo para possibilitar o encontro
espírito/cliente necessitado.

O expediente de um centro umbandista se concentra em sessões ou giras que

acontecem geralmente duas vezes por semana, onde cada sessão possui dinâmica e funções

próprias de acordo com cada centro e a sua direção. A prática umbandista é basicamente

concentrada na Sessão de Caridade e na Sessão de Desenvolvimento Mediúnico (Cf. Ortiz,

1999: 104 e Lopes, 1997: 67). A primeira se caracteriza pela presença das entidades38 com

38
Segundo os umbandistas, as entidades entendem o ato de caridade como um trabalho, pois
constitui uma ferramenta para que os espíritos cumpram sua missão e alcancem a sua evolução espiritual.
Nos pontos cantados aparecem com muita freqüência expressões relacionados ao trabalho como “vem
trabaiá”, “trabalho na Umbanda”, etc, comprovando o que foi dito.

47
o único intuito do atendimento ao público através da aplicação de passes e consultas e a

segunda está voltada para os médiuns, no qual os espíritos “descem” exclusivamente com o

objetivo de serem instruídos sobre a doutrina umbandista e no aperfeiçoamento do transe.

Porém, eventualmente estas sessões podem ser substituídas por outros rituais, como as

giras em homenagem às entidades.

Outras similaridades podem ser encontradas entre as diversas modalidades de

Umbanda, principalmente quando se trata dos elementos que compõem o cotidiano das

suas práticas rituais. Neste caso, merecem destaque o altar, a defumação, o ponto riscado e

o ponto cantado, pois esses elementos são considerados como pilares da prática

umbandista.

Considerado o centro do culto umbandista, o altar (chamado também de congá,

gongá ou peji) é o lugar onde ficam as imagens das entidades (Pretos-Velhos e Caboclos) e

dos santos católicos sincretizados com os Orixás. Nele, são encontrados também oferendas

como velas, flores, recipientes com grãos e copo com água. O altar deve ser limpo

periodicamente e os médiuns devem saudá-lo sempre antes e depois de qualquer sessão. A

saudação ao altar pelos clientes só pode ser feita com a autorização do sacerdote do centro.

O altar pode estar localizado tanto numa área pública (salão onde os rituais são realizados)

quanto privada (cômodo de acesso restrito).

A defumação é um elemento importante no culto umbandista. Antes de

começar qualquer sessão, o ambiente e todas as pessoas presentes entram em contato com

a defumação. O defumador é preparado com várias ervas, entre elas o alecrim e a alfazema

que queimam em contato com o carvão em brasa gerando a fumaça. Entre os umbandistas,

48
acredita-se que a defumação tem a função de preparar o local para realização das giras,

onde o carvão retira as energias negativas e as ervas afloram as energias positivas39.

O ponto riscado é um desenho feito com pemba (giz confeccionado com

substâncias consideradas sagradas) formando um conjunto de sinais cabalísticos (mágico-

simbólicos) como flechas, traços, cruzes, círculos, estrela de David, corações, etc. O ponto

riscado pode aparecer em duas situações: na primeira, antes da chegada da entidade com o

objetivo de chamá-lo ao mundo terreno, e na segunda quando o ponto é riscado pela

própria entidade no momento em que é incorporado como forma de identificação. Para os

umbandistas o ponto riscado possui um grande significado, pois através dele as entidades

contam sua história, além de ser entendido como uma prova de incorporação: se o espírito

não estiver bem incorporado ele não saberá riscar seu ponto. Na Umbanda, todas as

entidades possuem um ponto específico.

A música ou ponto cantado está presente em quase todos os rituais da

Umbanda. São cantigas ensinadas pelas próprias entidades (chamadas também de pontos

cantados de raiz40), cantadas em português e podem ser ou não acompanhados por

instrumentos. Os pontos cantados são evocações em forma de pequenas histórias ou

orações e possuem inúmeras funções, entre elas mostrar a história e as características das

entidades e determinar o encaminhamento do culto. De uma forma geral, os pontos

cantados podem ser classificados da seguinte forma:

Ponto de defumação – Presente antes do início da sessão, no momento em que

é feito a defumação do ambiente e das pessoas presentes.

Ponto de abertura – É utilizado para a abertura da sessão.

39
Nos centros umbandistas onde não existe o defumador, a defumação é feita com incensos.
40
Ponto cantado de raiz é um termo muito conhecido entre os umbandistas, e foi difundido por
alguns “intelectuais da Umbanda” (Cf. Arhapiagha, 1997 e Silva, 1997 e 1999).

49
Ponto de chamada – Cantado para chamar as entidades para “trabalhar” na

sessão.

Ponto de sotaque – É cantado, durante a sessão, pelas próprias entidades

quando incorporadas, para chamar a atenção das pessoas presentes para que possam ouvir a

mensagem podendo esta ser uma crítica ou um ensinamento.

Ponto de descarrego – Cantado para a retirada das energias negativas em

rituais específicos como, por exemplo, a “Sessão de Limpeza e Doutrinação dos Eguns”.

Ponto de doutrinação – Utilizado geralmente nas “sessões de

desenvolvimento” para a doutrinação das pessoas (médiuns e público) e das entidades.

Ponto de subida – Nos rituais, ele é cantado no momento da saída das

entidades.

Ponto de encerramento – Cantado para encerrar a sessão.

O ponto cantado, dentro do culto umbandista, pode ser interpretado à luz da

teoria do uso e da função da música defendida por Allan Merriam (Cf. 1964: 210-27). O

uso da música se refere ao contexto em que a música é usada, que no caso da Umbanda é a

sua presença nos rituais (uso no encaminhamento do culto). A função é o propósito ou a

razão da cantiga ligada ao momento do uso e pode ser interpretada de diferentes formas:

função de expressar emoções, gerar entreterimento, comunicar, representar

simbolicamente, produzir resposta física, reforçar normas sociais, validar as instituições e

rituais religiosos, contribuir para a continuidade e estabilidade da cultura e, contribuir para

a integração social, entre outros.

A Umbanda é uma religião que caracteriza-se pelo contato direto entre o

homem e os deuses. Como não podia deixar de ser, sua música, portanto, também se

acomoda a esta finalidade e desta forma se enquadra em uma importante afirmação de

Nettl (1983: 159) sobre a principal função da música em todas as culturas:

50
A função da música na sociedade humana, o que música faz
fundamentalmente, é controlar o relacionamento da humanidade com o
sobrenatural, mediando entre pessoas e outros seres, e dar apoio à
integridade de grupos sociais específicos. Faz isto expressando os valores
centrais relevantes da cultura de forma abstrata (tradução pessoal)41.

Entre os pontos cantados, nos chama a atenção a execução do Hino da

Umbanda na quase totalidade dos centros localizados em diversas regiões do Brasil. Ortiz

(1999: 109) relata que este hino é bastante popular entre os centros umbandistas paulistas e

cariocas. O mesmo acontece no Centro Umbandista Rei de Bizara, local onde este hino é

utilizado como um ponto de encerramento, pois é cantado sempre no final de todos os

trabalhos realizados na casa. Com exceção de uma frase, a letra do Hino da Umbanda

cantado neste centro é idêntico àquele citado por Ortiz. Pequenas variações na execução

deste hino podem ser verificadas na internet, através dos sítios de diversos centros e

terreiros de Umbanda. As variações não se limitam somente a letra, mas também a

melodia, como podemos visualizar nas transcrições abaixo:

41
“The function of music in human society, what music ultimately does, is to control humanity’s
relationship to the supernatural, mediating between people and other beings, and to support the integrity of
individual social groups. It does this by expressing the relevant central values of culture in abstracted form”.

51
52
O Hino da Umbanda42 gravado por W. W. da Matta e Silva, um dos

intelectuais da Umbanda, conhecido pelo seu trabalho de divulgação e sua tentativa de

sistematizar as doutrinas da religião:

42
A gravação deste hino pode ser encontrada no endereço eletrônico <http://www.umbanda.org/
pontos.html>.

53
A utilização do Hino da Umbanda na grande maioria dos centros umbandistas

do país, pode ser interpretado como um indício da tentativa de legitimação da Umbanda

através da codificação e unificação dos ritos, na medida em que até hoje esta cantiga está

presente em muitos centros. Diferente do que acontece com os demais pontos cantados

(que são ensinados pelas próprias entidades), o Hino da Umbanda possui um autor. Sua

autoria é atribuída a J. M. Alves, composto em 196043, um ano antes do II Congresso

Nacional de Umbanda. No Centro Umbandista Rei de Bizara esta cantiga não se

caracteriza somente como um ponto de encerramento, mas é entendido e executado como

um hino propriamente dito. As pessoas no momento de cantá-lo se posicionam de forma

respeitosa, semelhante a qual se canta o Hino Nacional Brasileiro (em pé com a mão

encostada ao peito próximo ao coração).

2.3. As entidades cultuadas

O culto umbandista é monoteísta44, isto é, se fundamenta na existência de um

Deus único. Considerado como força superior, criador do universo, este Deus pode ter

43
Esta informação pode ser encontrada no endereço eletrônico <http://pt.wikipedia.org/wiki/
umbandas>.
44
Atualmente este conceito é muito debatido e criticado em antropologia, no entanto, muitos autores
mencionam o monoteísmo na Umbanda, especialmente os “intelectuais da Umbanda”.

54
várias denominações (Zâmbi45, Olorum46). Apesar de considerado como força maior, este

Deus supremo se encontra afastado da realidade humana.

Para Ortiz (1999: 78) aqui se encontra a principal influência negra presente na

Umbanda: o culto aos Orixás. De uma forma geral, na Umbanda são cultuados

aproximadamente dez Orixás que possuem seus correspondentes entre os Santos

Católicos47: Oxalá (Jesus Cristo), Omolu (São Lázaro e/ou São Roque), Iemanjá (Nossa

Senhora da Conceição), Xangô (São Jerônimo), Nanã (Nossa Senhora de Sant’Ana), Iansã

(Santa Bárbara), Oxum (Nossa Senhora das Cadeias e/ou Nossa Senhora da Conceição),

Ogum (São Antônio e/ou São Jorge), Oxossi (São Jorge e/ou São Sebastião) e Ibêji (São

Cosme e Damião). Os Orixás seriam os intermediários entre Deus e os homens, e assumem

o controle do mundo terreno através do contato direto com a realidade humana. Ortiz

(1999: 79) ainda destaca que “distanciando-se dos problemas humanos, o Deus Supremo é

esquecido pelos homens; desta forma, somente as forças intermediárias é que são cultuadas

através dos ritos”. A presença dos Santos Católicos, na Umbanda, assume o mesmo papel

dos Orixás, são também intermediários entre o sagrado e o profano. Por isso, acredita-se

que este é um dos motivos do êxito no sincretismo existente entre os Orixás e os Santos

Católicos. Vale a pena ressaltar que tanto os Santos Católicos quanto os Orixás aqui não

são incorporados pelos médiuns. Nos centros, sua presença é restrita às imagens

encontradas no altar e ao sentimento dos praticantes em relação a elas.


45
Lopes (2003: 227) define Zâmbi como “divindade suprema dos cultos de origem angolo-conguesa
e da umbanda, correspondente ao nagô Olorum e ao Deus católico – Do termo multilinguístico banto Nzambi,
o Ser Supremo”.
46
Cacciatore (1988: 192) define Olorum como “Deus Supremo dos ioruba, criador do mundo, mas
que não tem altares nem sacerdotes (...) No Brasil foi quase esquecido, mas não de todo (...) F.- ior.: Olórum
(o-ló – dono; òrum – céus).
47
O número de Orixás cultuados pode variar de centro para centro. Na Umbanda Esotérica são
cultuados sete (Oxalá, Iemanjá, Yori (Crianças), Xangô, Ogun, Oxossi, e Yorimá (corrente dos Pretos-
Velhos). A correspondência com os santos católicos sofre variações dependendo da região, por exemplo: na
Bahia o Orixá Oxossi corresponde a São Jorge e no Rio de Janeiro o mesmo Orixá tem como correspondente
São Sebastião. Na Umbanda em geral, os Orixás também aparecem de forma individualizada, possuindo
nomes próprios como por exemplo Ogum Megê, Ogum Rompe Mato, Ogum Beira-Mar, etc.

55
Um dos papéis assumidos pelos Orixás no culto umbandista está relacionado à

influência kardecista, ou seja, na organização do panteão umbandista em linhas e falanges.

Assim, os Orixás coordenam as outras entidades ou seres espirituais dentro de uma mesma

corrente chamada linha. Assim, são agrupados numa mesma linha todos os espíritos que

possuem características e funções semelhantes ao Orixá que os gerencia.

Há uma concordância entre os pesquisadores desta religião sobre a existência

de sete linhas de Umbanda (Cf. Bastide, 1971: 445; Cacciatore, 1988: 164; Decelso, 1985:

35-37; Lopes, 1997: 66; Montero, 1985: 181; Ortiz, 1999: 78-86; Silva, 1997: 120) que

estariam dispostas numa hierarquia baseada no desenvolvimento espiritual. Assim sendo, a

linha de Oxalá é considerada a mais evoluída e a linha Africana a menos evoluída,

conforme a descrição abaixo:

Linha de Oxalá – Chamada também de linha de Santo porque nela estão

presentes vários Santos Católicos como Santo Antônio, São Cosme e Damião, Santa Rita,

Santa Catarina, Santo Expedito, São Benedito e São Francisco de Assis. Esta linha tem

como objetivo desmanchar os trabalhos de magia.

Linha de Iemanjá – Esta linha está representada por entidades ligadas ao

elemento água, seja pela água doce ou o mar como, por exemplo, os Orixás Oxum,

Yemanjá, Nanã e os espíritos dos Marinheiros e das Sereias. Esta linha protege o mar, os

rios, os marinheiros e as mulheres.

Linha do Oriente – Formado por espíritos de origem hindu, árabes, chineses,

japoneses, ciganos e outras raças. Geralmente estes espíritos são procurados por aqueles

que apresentam problemas de saúde, na busca de uma alternativa para a cura de doenças.

Estas entidades, especialmente os japoneses e chineses, quando incorporados costumam

atender os clientes fazendo massagem ou realizando sessões de acupuntura. Estas entidades

56
constituem a base espiritual da Umbanda Esotérica, mas também estão presentes nas outras

ramificações, mas de forma isolada.

Linha de Oxossi – Conhecida como a linha dos Caboclos, isto é, espíritos dos

ancestrais indígenas que ligados a este Orixá das matas, possui como característica o uso

de plantas medicinais para os mais variados fins como a realização de passes, a cura de

doenças e a proteção contra a magia

Linha de Xangô – Formada por Caboclos que possuem histórias,

personalidades e características que os tornam próximos a este Orixá. Decelso (1985: 40-

41) cita alguns exemplos como o Caboclo Rompe Ferro, Caboclo Pedra Preta, Caboclo

Ventania, Caboclo Araúna, entre outros.

Linha de Ogum – Esta linha está representada por entidades ligadas ao Orixá

Ogum: Ogum Beira-Mar, Ogum Iara, Ogum Megê, Ogum Naruê, Caboclos e outros. Tem

como função proteger os homens contra as brigas e lutas.

Linha Africana48 – Conhecida também como linha das Almas, formada

basicamente pelos Pretos-Velhos. Esta linha é formada pelas falanges do Povo da Costa,

Pai Francisco, Povo do Congo, Povo de Angola, Povo de Luanda, Povo de Cambinda e

Povo do Guiné. A primeira vista, a denominação Linha Africana indica uma contradição,

dando a impressão de que os Orixás mencionados nas demais linhas não sejam africanos.

No entanto, este título se refere ao povo de origem africana, mais especificamente os

escravizados que chegaram ao Brasil que, na Umbanda, são representados pela entidade do

Preto-Velho.

48
De acordo com Cacciatore (1988: 163), esta linha é uma herança deixada pelo Cabula cuja a base
deste culto está na reverência aos antepassados africanos.

57
Porém, como nos lembra Ortiz (1999: 83) e Silva (1997: 120), a cosmologia

umbandista é mais complexa, na medida em que cada linha se subdivide em sete falanges e

cada falange em sete subfalanges, e assim por diante.

Na Umbanda, a hierarquia do seu panteão pode ser organizada da seguinte

forma decrescente: DEUS – ORIXÁS – GUIAS49 (Cf. Birman, 1983). Seguindo esta

hierarquia, depois dos Orixás encontramos os Guias, chamados também pelos adeptos de

entidades. Outra forma utilizada pelos umbandistas de organização das entidades é a

divisão em duas linhas ou lados: a linha da direita e a linha da esquerda (Cf. Negrão, 1996a

e 1996b; Prandi, 1996 e Serra, 2001). Esta divisão obedece a concepção do cristianismo

adotada pela Umbanda de separar o bem e o mal. No entanto, na prática umbandista o que

acontece é uma complementação entre estes dois lados. A respeito disto Serra (2001: 248)

afirma:

o bom e o ruim se aproximam muito, se misturam, tornando necessárias


estratégias alternativas para lidar com as coisas situadas entre um e outro
marco de valor. Nesta perspectiva, há que aderir ao bem, mas não se pode
ignorar o mal.

Existe um maniqueísmo bem acentuado, porém, na Umbanda, o bem e o mal se

complementam, sendo um dos fatores importantes na forte identificação entre os

praticantes e as entidades cultuadas, pois gera uma humanização destas entidades. Desta

forma, os praticantes se identificam com estes espíritos, que apesar de habitarem o plano

espiritual, são passíveis de erros e acertos. Da mesma forma, estes dois “mundos” também

estão presentes no médium, pois ao mesmo tempo em que ele “recebe” as entidades da

direita, incorpora também as do lado esquerdo, e com eles acontece uma relação de troca,

49
Cacciatore (1988: 133) define guia como “entidade espiritual, espírito superior, em adiantado grau
de evolução espiritual, já isento de novas encarnações o qual “baixa” no médium para orientar os humanos e
os espíritos inferiores no melhor caminho a seguir para evoluir espiritualmente. Alguns são guia protetor do
terreiro, outros, do médium. Geralmente o guia do terreiro incorpora no chefe da casa do culto”.

58
no qual é dada oportunidade para estes espíritos trabalharem, em contrapartida eles

protegem e defendem o seu “cavalo”.

No lado direto se concentram os espiritos “do bem”, os espíritos evoluídos. Na

Umbanda, o lugar onde moram os Orixás e as entidades da direita chama-se Aruanda,

palavra que faz referência a Luanda, capital de Angola (Cf. Cacciatore, 1988: 53; Carneiro,

(1991: 63). Os Guias que trabalham neste lado estão presentes em todas as sete linhas da

Umbanda e se constituem basicamente de Caboclos, de Pretos-Velhos e de Crianças50.

Os Caboclos são os espíritos dos nossos antepassados indígenas e representam

uma das maiores contribuições da matriz indígena na formação da Umbanda. Como já

visto anteriormente, o Caboclo é uma herança direta do Cabula e do Candomblé de

Caboclo (religiões negras de origem banto) e seus cultos se baseiam na reverência aos

antepassados. Na Umbanda, estas entidades também vão assumir este papel e representam

os personagens símbolos da origem da sociedade brasileira. Negrão (1996a: 169) destaca

que a religião passou a privilegiar o Caboclo como símbolo de brasilidade, principalmente

a partir do II Congresso Nacional de Umbanda realizado em 1961.

Montero (1985: 181) afirma que “no ponto de vista estritamente quantitativo, o

espírito do caboclo é o mais importante”, pois esta entidade está presente em pelo menos

três das sete linhas da Umbanda (linhas de Oxossi, Xangô e Ogum). O Caboclo é sinônimo

de força, vitalidade e juventude. O comportamento dos médiuns ao incorporá-lo reforça

estas características através da postura ereta, cabeça erguida, movimentos rápidos e gritos

de saudação. Sua função dentro do culto umbandista está voltada para o atendimento ao

público que o procura para a solução dos mais variados problemas. Para isso, ele reza,

ensina simpatias, realiza rituais terapêuticos como banhos, defumações e passes.

50
Vale a pena ressaltar que as Crianças e outros espíritos também podem ser encontrados nas sete
linhas da Umbanda, porém de forma mais isolada. Este é o caso dos espíritos que pertencem à linha do
Oriente.

59
Os pontos cantados retratam suas características particulares, no qual a letra

retrata o ambiente indígena (matas, florestas) como pode ser verificado na cantiga

transcrita abaixo:

Os pontos cantados na Umbanda podem ser analisados de acordo com o

Modelo Tripartido de Merriam (Conceito, Comportamento e Som Musical). Segundo o

autor (Cf. Merriam 1964: 103) para se entender a música de uma determinada cultura é

preciso conhecer os conceitos aceitos pelo grupo (cultura). Estes conceitos geram uma

série de comportamentos e por fim a produção do som musical. Neste caso, há um

consenso entre os umbandistas de que o Caboclo é o antepassado indígena, que vive nas

matas e é o “dono da terra”. Este conceito é refletido no comportamento da entidade e, por

fim, na geração do ponto cantado. O fato pode ser estendido a todo o repertório musical

umbandista, inclusive àqueles que se referem a todas as entidades cultuadas.

A Cabocla (versão feminina) comparece em menor número nos centros

umbandistas. Montero (1985: 205) afirma que esta entidade carrega o estereótipo de

mulher virgem, descrevendo-a como uma índia jovem, bela e pura, semelhante a imagem

da personagem “ Iracema dos lábios de mel” do escritor José de Alencar.

O Boiadeiro é uma entidade muito parecida com o Caboclo. No Candomblé de

Caboclo ele representa uma categoria de Caboclo chamado de Caboclo-de-couro (Cf.

60
Garcia, 2001a: 104). Na Umbanda, trata-se de um Guia particular e quando incorporado é

logo reconhecido por seus gritos de aboio e uma gesticulação própria, como se estivesse

utilizando um laço.

Os Pretos-Velhos51 são Guias que seguem a mesma direção do culto aos

antepassados. Neste caso, representa uma herança direta do Cabula, cuja base está voltada

na reverência ao ancestral africano. Na Umbanda, os Pretos-Velhos representam a matriz

negra geradora da sociedade brasileira. Assumem o mesmo papel dos Caboclos como

símbolos de brasilidade, mas representa o oposto destes em relação ao temperamento.

Enquanto o Caboclo representa a força e a vitalidade, o Preto-Velho é a figura da velhice,

da fragilidade e da humildade. Montero (1985: 185) ressalta que a sua história marcada

pela escravidão ajuda a entender a personalidade e o papel deste Guia:

O preto-velho é o “negro fundamentalmente bom”, que trabalha na


umbanda, divinizado em razão dos sofrimentos a que foi submetido em
seu passado de escravo; negro que tira sua sabedoria das injustiças
sofridas, que tira sua força da capacidade de compreensão humana e de
aceitação da adversidade.

A postura curvada, os movimentos lentos e a voz rouca são comportamentos

encontrados nos médiuns no momento da incorporação dos Pretos-Velhos. Sua figura na

Umbanda representa o trabalho que é exercido no culto através do atendimento ao público.

Os centros umbandistas costumam realizar uma festa em homenagem aos Pretos-Velhos.

Este ritual se realiza geralmente no mês de maio (dia treze), lembrando a data da Abolição

da Escravatura. Durante a festa são entoados pontos cantados que retratam as

características desta entidade: a simplicidade, a humildade, a dedicação ao trabalho e ao

51
Esta entidade também possui sua versão feminina: a Preta-Velha. São conhecidas também como
tias e vovós e carregam o esteriótipo da mãe-preta, que cuida dos “filhos” que a procuram (Cf. Montero
1985: 205).

61
sofrimento no período da escravidão, que pode ser constatado no texto do ponto transcrito

abaixo:

O Caboclo e o Preto-Velho representam na Umbanda os fundadores da

sociedade brasileira. Mas, porque existe uma identificação entre estas duas entidades e os

adeptos dos grandes centros urbanos, que a primeira vista parecem tão distantes? Para

Ortiz (1999: 71-75) isto se explica porque o Caboclo não representa realmente a raça

indígena, mas sim a imagem que a sociedade quer que ele seja, isto é, o índio forte, que

lutou contra o domínio português e que preferiu lutar a ser escravizado. No caso do Preto-

Velho, representante do antepassado africano, este representaria a imagem contrária do

Caboclo no imaginário popular, imagem esta principalmente formada através da história

escrita. Nesta idealização, o negro de certa forma não lutou contra a escravidão e aceitou o

sistema escravocrata, então para ser aceito “não tem outra alternativa senão a de aceitar a

única imagem positiva que a sociedade lhe oferece: a humildade.” (Ortiz 1999: 74)

Conhecidas como Erês ou Ibejis, as Crianças representam a infância e trazem

uma idéia de inocência, pureza. Geralmente, estas entidades são associadas a São Cosme e

Damião e são homenageadas com uma festa realizada no dia 27 de setembro (data

dedicada aos dois Santos de acordo com o calendário católico). Ao incorporar uma

Criança, o espírito infantil aflora, o médium reproduz alguns comportamentos como

engatinhar, chupar o dedo ou chupeta, brincar e imitar a voz de criança. Como as Crianças

62
são seres em formação, esta condição faz com que raramente elas atuem diretamente no

atendimento ao público. Sua função está associada a alguns ritos de purificação como

“limpar” o terreiro depois da realização de algum trabalho de magia. Negrão (1996a: 233)

descreve da seguinte forma o comportamento das Crianças:

Os Erês brincam entre si e com as crianças, rolando pelo chão. Derrubam


doces, brigam, são advertidos pelos adultos. Vez por outra é uma Preta
Velha que, incorporada, toma conta de seus “netos”. Em alguns terreiros
dão passes e consultas entre as brincadeiras, sempre se dirigindo aos
clientes de forma jocosa, porém ingênua: a “Vó” quer namorado, a “Tia”
gosta de mocinho. Às vezes, para gozo da assistência, fazem “arte”:
Joãozinho se escondeu e, quando os Erês já haviam se despedido, aparece
e pergunta: “Ué, onde está todo mundo?”.

No lado esquerdo do cosmo religioso umbandista se concentram nos Exus e as

Pombagiras52. Diferente das entidades que pertencem ao lado direito, que se caracterizam

pela vida “correta” que tiveram na Terra, os Exus e as Pombagiras se enveredaram pelo

caminho “errado”. Em vista disso, estes espíritos não se enquadram dentro das sete linhas

da Umbanda, ficando esta categoria condenada ao “mundo das trevas”. São entidades que

representam personagens reais da sociedade brasileira. Os Exus na suas vidas terrenas

foram homens de baixo caráter como ladrões, aproveitadores e malandros e as Pombagiras

foram mulheres de “vida fácil” cujos comportamentos fogem aos padrões sociais.

Apesar desta “má fama”, estes espíritos exercem inúmeras funções dentro do

culto umbandista. Eles também representam a ponte entre o plano material (Terra) e o

mundo espiritual dos Orixás e reforçam o conceito umbandista da prática da caridade

realizando qualquer tipo de trabalho sem questionamentos, até aquelas tarefas em que as

entidades do lado direito se recusam a fazer por razões éticas e/ou morais. Os Exus

costumam ser procurados para atender os problemas relacionados à questão financeira e as

52
Na literatura existente, encontramos diversas formas de escrita desta palavra, substituindo o g pelo
j ou a divisão desta palavra com o uso ou não do hífem. Adotamos Pombagira guiados pelo Dicionário
Aurélio que esclarece que esta grafia é a versão brasileira de Pombajira, palavra originada de uma língua
banto (Cf. Ferreira, s.v. “pombagira”).

63
Pombagiras são comumente procuradas por àqueles que possuem problemas de ordem

afetiva e sexual. Para eles, o importante é atender aos pedidos dos clientes, por isso os

praticantes são unânimes em afirmar que sem Exu e Pombagira não existe Umbanda. A

cantiga transcrita abaixo retrata a relativização do Exu, uma entidade que por um lado

pertence ao “mundo das trevas” e por outro pratica a caridade como exímio trabalhador

pela causa umbandista:

64
Além das entidades que pertencem às linhas da direita e da esquerda, alguns

autores apontam ainda a existência de espíritos que possuem características tanto da direita

quanto da esquerda (Cf. Concone, 2001; Montero, 1985; Negrão, 1996a e 1996b; Souza,

2001). Os Marinheiros e os Baianos são os exemplos mais comuns dos espíritos que

pertencem a esta categoria “mista”.

Os Marinheiros, de uma forma geral, foram homens e mulheres que viveram no

mar. Pertencem à linha de Iemanjá e prestam a caridade realizando consultas e passes com

a segurança de quem já desbravou outros mundos, enfrentando a instabilidade do mar com

suas tempestades e calmarias. São alegres e se mostram amigos daqueles que os procuram.

Porém, são amantes das bebidas e das mulheres, chegando a se engraçar com as mulheres

presentes às festas. Negrão (1996a: 241) menciona o bom humor destas entidades e chama

a atenção para as indelicadezas nas suas brincadeiras: “Ao marido de uma mulher a quem

pedira para tirar sua jaqueta por ocasião da consulta, observou: Olha! Estou tirando a roupa

65
da sua mulher na sua frente”. Negrão (1996a: 241) nos mostra alguns textos dos pontos de

sotaque que revelam o lado machista desta falange:

A mulher e a galinha
São dois bichos interesseiros
A galinha pelo milho
E a mulher pelo dinheiro53

A mulher quando casada


O amante em cima dela
Ela sai pela cozinha
E o amante pela janela

Minha mulher e meu cachorro


Morreram no mesmo dia
O cachorro às onze horas
E a mulher ao meio-dia
Do cachorro tive pena
Da mulher tive alegria.

Segundo Merriam (1964: 187) o texto da canção é uma fonte importante para

o entendimento da música de uma cultura que, neste caso, pode ser adequado a uma

particularidade do Marinheiro. Merriam (1964: 190-193) destaca ainda que, em alguns

contextos, a revelação de sentimentos, pensamentos, idéias e conteúdos só podem ser

feitas através da música (a letra como veículo) e não de outra forma. Neste caso, o lado

machista do Marinheiro foi evidenciado pela cantiga de sotaque e não de outra forma, pois

53
Esta cantiga é também encontrada no Candomblé de Caboclo. Este compartilhamento de
repertórios musicais aponta para uma relação, inclusive musical, deste culto com a Umbanda. Garcia (2001a:
61) apresenta a transcrição abaixo mencionando que, no Candomblé, esta cantiga é entoada tanto nos sambas
de Caboclo quanto nos rituais dedicados a Exu:

66
se correria o risco de não ser corretamente compreendido por ser uma entidade

essencialmente amante das mulheres.

O Baiano é uma entidade marcada pela alegria. Quando incorporado, fala com

sotaque e traja-se como nordestino. Costuma fazer brincadeiras e representa as “boas

pessoas porém pouco responsáveis, amantes de boa prosa, bebidas e mulheres” (Negrão,

1996a: 218). Representa também a capacidade de adaptação da Umbanda ao contexto

local, haja visto que esta entidade ganhou destaque no culto umbandista praticado em São

Paulo. Prandi (1991) e Souza (2001) destacam que a religião surgiu neste Estado na

década de 1930 e ganhou força nas décadas de 1950 e 60, período em que São Paulo

absorveu grandes migrações, sobretudo de imigrantes nordestinos. Para Souza (2001:

309), a entidade do Baiano representa o nordestino em terras paulistas, no qual a sua

presença é muito freqüente no atendimento ao público:

O baiano representa a força do fragilizado, o que sofreu e aprendeu na


“escola da vida” e portanto pode ajudar. O reconhecido caráter de bravura
e irreverência do nordestino migrante parece ser responsável pelo fato de
os baianos terem se tornado uma entidade de grande freqüência e
importância nas giras paulistas nos últimos anos.

Analisando as diversas categorias apresentadas acima, percebemos que a

Umbanda se utiliza de um conjunto de símbolos que são personificados na figura das

entidades que, por sua vez, adquirem vida própria no dia-a-dia dos centros. Estas

entidades, ora como símbolos fundantes da brasilidade (Caboclos e Pretos-Velhos) ora

como representantes de figuras do nosso cotidiano (Exus e Pombagiras) são diretamente

influenciados pelo Kardecismo, no tocante a sua organização em linhas e falanges, e pelo

Cristianismo quando assumem sua posição (direita ou esquerda) de acordo com o

“maniqueísmo-cristão”. Porém, como na Umbanda a relativização é uma constante, não

poderia deixar de existir uma categoria mista, mesclada. O Marinheiro e o Baiano são

entidades mais “humanizadas” no sentido de apresentar qualidades e fraquezas próprias do


67
seres humanos. Desta forma, a identidade da Umbanda, inclusive musical, sempre estará

em processo de construção, no qual os centros são os locais onde o sagrado é construído e

reproduzido, sempre de forma a se adequar ao contexto social vigente.

68
3. O Centro Umbandista Rei de Bizara

3.1. Do Rio de Janeiro para Salvador

“A Umbanda é uma religião de desafio. É uma lata de lixo, vive cheia e vazia.

É isso que é Umbanda. Eu parti pra ela sem medo de errar, de cabeça assim, e dou graças a

Deus por isso, sou muito feliz por isso.” Essas são as palavras de Amélia Cândida da Silva,

mãe-de-santo do Centro Umbandista Rei de Bizara no alto dos seus 82 anos, sendo 58

dedicados à Umbanda.

Tia Preta, como é carinhosamente conhecida, foi iniciada no Candomblé da

nação queto54, na década de 1940, no terreiro denominado Cantinho de Adário localizado

54
Conforme depoimento, este Candomblé era de nação queto “misturado” com a nação angola.
na cidade baiana de Cachoeira. Como não se adaptou, passou para a Umbanda que

conheceu no Rio de Janeiro55. No depoimento abaixo, ela relata esta mudança:

Eu não fiz na Umbanda, eu fiz no Candomblé. Eu me horrorizei com o


ambiente, saí e passei pra Umbanda [...] É porque eu fui morar no Rio.
Meu marido [jogador de futebol] foi contratado do Fluminense do Rio. E
aí eu fui pra Joãozinho da Goméia e cheguei lá em Joãozinho da Goméia,
tava a toa, sem ter onde ficar, sem ter onde ir. Aí eu fui freqüentar lá com
ele e ele gostou muito de mim e aí me disseram que eu tinha um Caboclo
muito valentão. Só me chamavam assim: seu Caboclo é valentão. Mas eu
vou fazer uma carta pro teu pai-de-santo pra saber por que motivo você
saiu de lá. Aí fez uma carta pro meu pai-de-santo e aí ficou esperando a
resposta antes de me colocar na sua casa direto. Eu não vestia a roupa lá
nem nada. Aí quando que a carta chegou que eu podia ficar, que era uma
pessoa muito boa. Aí pude botar a roupa, fiquei amigona dele e estou aí
até hoje. Ele me encaminhou pra Umbanda, me fez tudo na Umbanda pra
mim.

De acordo com Nascimento (2004: 11), Joãozinho da Goméia (João Torres

Filho), nasceu em 1914, na cidade baiana de Inhambupe e foi um sacerdote do Candomblé

de Caboclo e Angola. Com apenas 18 anos, abriu a sua casa de culto em Salvador e, com a

ajuda da imprensa e de Edison Carneiro, foi o responsável por divulgar e popularizar estas

nações de Candomblé em Salvador. Foi também um importante colaborador de Edison

Carneiro na organização do II Congresso Afro-Brasileiro em 1937, o qual resultou na

criação do Conselho Africano da Bahia56 (Cf. Nascimento, 2004: 10-11). A relação dos

dois foi fundada no princípio de “troca de favores” como nos relata Nascimento (2004:

11):

Carneiro, praticamente projetou o nome do babalorixá, nos apontando


para um fato interessante: a troca de favores, muito comum às casas de
culto tradicionais baianas. Em troca de uma entrada fácil e uma
conscientização clara das coisas do candomblé, que interessariam ao
jovem Édison Carneiro aprender, para que auxiliassem seu trabalho como
jornalista, etnólogo e pesquisador dos cultos afro-brasileiros, este deveria

55
De acordo com a Tia Preta, o seu contato com a Umbanda aconteceu no período entre o final da
década de 40 e o início dos anos 50.
56
Conforme já mencionado no capítulo anterior, o Conselho Africano da Bahia foi um movimento
formado por intelectuais e praticantes do Candomblé com o objetivo de libertar a religião do controle
policial.

69
divulgar o “bom nome” de João da Goméia tornando sua casa de culto
conhecida entre os intelectuais, estrangeiros e o povo de santo.

Todavia, em 1946, Joãozinho da Goméia se muda para o Rio de Janeiro.

Constrói sua casa de culto no município de Duque de Caxias, sendo um dos responsáveis

pela popularização do Candomblé na Baixada Fluminense, bem como na capital do Rio de

Janeiro. Neste período o sacerdote conheceu a Umbanda e passou a praticá-la

paralelamente ao Candomblé. Tia Preta nos relata que sua casa de culto era dividida em

duas partes: uma dedicada ao Candomblé e a outra à Umbanda. Ainda no Rio de Janeiro,

Joãozinho da Goméia se tornou muito popular a ponto de ter um bom trânsito na alta

sociedade carioca e no meio político, estabelecendo estreitas relações com os presidentes

Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, chegando a ser intitulado como “Rei do

Candomblé” pela Rainha Elisabeth da Inglaterra. (Cf. Nascimento, 2004: 27).

Sua atuação como divulgador do Candomblé Angola não se limitou às cidades

de Salvador e ao Rio de Janeiro. Silva (1995: 81-84) destaca que Joãozinho da Goméia foi

o precursor do culto da nação angola na cidade de São Paulo, no qual o rito Angola

assumiu uma grande importância na composição da prática do Candomblé nesta região.

Em 1971, este movimento de difusão do culto foi encerrado com o falecimento do

babalorixá.

Tia Preta, depois do seu desenvolvimento umbandista no Rio de Janeiro,

retorna à Salvador, na década de 1950, e aqui estabelece sua prática umbandista abrindo o

Centro Umbandista Rei de Bizara. A trajetória deste centro, em Salvador, se dá em muitas

residências alugadas, até que no final da década de 197057, Tia Preta conseguiu construir a

sua casa própria e o centro umbandista, localizados na rua Alto do Saldanha nº 26 no

57
Durante as entrevistas, a mãe-de-santo não lembrou exatamente das datas da sua chegada à
Salvador e da abertura do seu centro. Ela nos informou que estes eventos ocorreram aproximadamente no
período apontado acima.

70
Bairro de Brotas, funcionando neste endereço até hoje. Rei de Bizara58 é o Caboclo que

protege e comanda todos os rituais deste centro e é o mentor espiritual da mãe-de-santo.

Trata-se do mesmo “Caboclo valentão” que acompanha Tia Preta desde a sua iniciação na

Umbanda no Rio de Janeiro.

O Centro Umbandista Rei de Bizara é um centro-escola voltado para o ensino

dos fundamentos da Umbanda. “O importante é vocês aprenderem a trabalhar direito”, esta

frase é constantemente proferida pela mãe-de-santo, que assume a responsabilidade de

repassar os conhecimentos adquiridos aos médiuns e ao público.

Cada cultura estabelece o seu processo de aprendizagem baseados em

conceitos e comportamentos, de acordo com os seus ideais e valores. Neste centro, o

conhecimento é transmitido sistematicamente em reuniões públicas e em encontros onde o

acesso é restrito aos médiuns. Estas reuniões acontecem aos sábados e seguem um

calendário preestabelecido, pois aos sábados também ocorrem as festas em homenagem às

entidades que “descem” no centro.

Nas reuniões de desenvolvimento público, todos os presentes recebem

gratuitamente apostilas (Cf. anexos pp. 222-237) com conteúdos que são lidos e discutidos

durante os encontros. O público também assiste as comunicações dos médiuns, que

exemplificam os assuntos abordados expondo suas experiências pessoais. No final da

reunião é aberto um espaço para perguntas e respostas, no qual a assistência e os próprios

médiuns têm a oportunidade de expor e tirar suas dúvidas.

Os conteúdos ministrados nestes encontros se referem aos princípios e

fundamentos umbandistas. Podemos constatar o empréstimo de muitos conceitos da

doutrina kardecista, como por exemplo, a reencarnação, a mediunidade como objeto de

58
De acordo com Tia Preta, Bizara é o nome da aldeia e da tribo que esta entidade governa. Por isso
este Caboclo é chamado Rei de Bizara.

71
evolução do homem na Terra e como um meio de comunicação entre os vivos e os mortos,

a classificação das entidades em linhas e falanges, entre outros.

Outro aspecto que reafirma o título de escola ao Centro Umbandista Rei de

Bizara é o aspecto didático encontrado em todos os rituais. Nas festas, todas as pessoas

recebem folhetos explicativos59 com informações a respeito das entidades homenageadas

(Cf. anexos pp. 219-221). Os folhetos e as apostilas são elaborados pelo mesmo médium

responsável pela compilação dos conteúdos doutrinários do centro. Nelas, constam a

referência bibliografia com a presença de muitos autores conhecidos entre os

pesquisadores da Umbanda e das religiões afro-brasileiras como Pierre Fatumbi Verger e

W.W. da Matta e Silva, além de outras fontes extraídas da internet. Para as pessoas que

comparecem pela primeira vez a uma festa, são entregues um folheto contendo uma

relação de normas de conduta (Cf. anexo p. 217) exigidas pelo centro como, por exemplo,

a vestimenta apropriada, o horário de chegada ao centro, a direção destas pessoas ao

espaço reservado ao público, incluindo a forma de como se deve cantar os pontos:

Nestas festas, as palmas e os cânticos acompanham uma certa sincronia e


hierarquia. Primeiro um filho da casa ou um guia tira o ponto para depois
então ser acompanhado por todos. Tenha o cuidado de não cantar junto
com o guia nesta hora porque foge ao ritual.

Além das sessões de desenvolvimento público, a aprendizagem dos

fundamentos umbandistas também acontece em reuniões de desenvolvimento restrito aos

médiuns, que aprendem diretamente com as entidades e com a mãe-de-santo, os pontos

cantados e riscados, as danças, a liturgia, e o aperfeiçoamento do transe. Todos estes

fundamentos serão aperfeiçoados nas festas e nas sessões de caridade. Desta forma, o

desenvolvimento mediúnico é o resultado de um longo processo que tem como base a troca

de experiências com a mãe-de-santo, com as entidades e com os outros médiuns.

59
Neste folheto constam algumas informações da entidade homenageada como o seu perfil, suas
histórias (lendas), o santo católico com o qual é sincretizado, sua oração e outros aspectos particulares.

72
Neste centro, o período do desenvolvimento tem a duração de sete anos. Após

este período, é permitido ao médium abrir seu próprio local de culto. Desta forma, o

Centro Umbandista Rei de Bizara foi a matriz para a formação de muitos centros

umbandistas em Salvador60 e em outras cidades como Rio de Janeiro, São Paulo,

Governador Valadares (MG) e Brasília. Segundo Tia Preta, o momento da formação de um

novo centro não representa o desligamento total do membro, agora novo sacerdote. Os

médiuns que possuem seus próprios locais de culto continuam a freqüentar o antigo centro,

fortalecendo ainda mais seus vínculos e a continuidade dos fundamentos umbandistas

adquiridos na medida em que as empregam em seus centros61:

Vem aqui [os médiuns], fica sete anos e depois vai embora montar seu
centro. Cada um monta o seu centro. Continua aqui, mas cada um na
sua.[...] Todos são unidos, cada um trabalha a sua maneira e vamo
levando. Os médiuns abrem tudo como aprendeu aqui. Tem quarto de
santo [altar] muito bonito. Tem umas [médiuns] que mandam chamar o
pedreiro pra olhar o meu quarto [quarto de santo] pra ficar a mesma coisa
lá.

No caso daqueles que abrem suas casas de culto em outros Estados, os médiuns

entram em contato periodicamente com a mãe-de-santo e em ocasiões especiais

comparecem pessoalmente ao centro.

O título de centro-escola atribuído ao Centro Umbandista Rei de Bizara pela

própria mãe-de-santo Tia Preta o torna um ponto de referência para a difusão da religião

umbandista praticada em Salvador. Este centro cultua uma Umbanda Mista, no qual

encontramos muitas similaridades com o Candomblé Angola e o de Caboclo. Acreditamos

que dois pontos importantes foram determinantes para a formação desta prática

umbandista. O primeiro é a iniciação da Tia Preta com Joãozinho da Goméia, um sacerdote

60
São exemplos de centros umbandistas formados em Salvador originados do Centro Umbandista
Rei de Bizara: o Centro Umbandista Oxossi Matalambô, Iansã da Pedra do Ouro e Rosário de Luz,
localizados em áreas próximas do bairro de Brotas.
61
A médium responsável pela condução dos pontos cantados nos rituais possui seu próprio local de
culto, mas continua freqüentando o Centro Umbandista Rei de Bizara.

73
que cultuava as duas religiões (Umbanda e Candomblé) dentro de uma mesma casa de

culto. O segundo, a tendência da Umbanda em se adaptar aos contextos locais, sendo

Salvador uma cidade formada por uma população de maioria negra e parda com uma

cultura fortemente influenciada pelo Candomblé, que nesta cidade se faz presente em mais

de 2000 terreiros (Cf. Vatin, 2001: 9). Além disso, a Umbanda desde o início de sua

formação foi influenciada pelos cultos bantos trazidos pelos escravizados vindos da Bahia

para o Rio de Janeiro. Hoje no Centro Umbandista Rei de Bizara estes pontos de contato

ainda permanecem sob os mais diversos aspectos, inclusive na música, como pretendemos

mostrar nesta pesquisa.

3.2. A estrutura social: cargos e hierarquia

O Centro Umbandista Rei de Bizara é uma casa onde a vida cotidiana da mãe-

de-santo e de sua filha se mistura com os cultos. A casa possui divisões que determinam as

dependências reservadas às entidades e ao lar propriamente dito. Apesar da complexidade

gerada pela permanência do mundo material e espiritual no mesmo espaço, a mãe-de-santo

é a maior autoridade neste centro, estando sob a sua responsabilidade a organização e o

controle de todas as atividades exercidas no local. É nesta mesma figura que se concentra

todo o conhecimento da religião. Sabedoria que foi adquirida no decorrer dos anos com a

intensa convivência com seus Guias espirituais.

Seguindo a hierarquia, abaixo da mãe-de-santo encontramos os médiuns, que a

auxiliam diretamente na condução de todos os rituais, sustentando a existência do centro

74
umbandista, bem como da religião em si. Atualmente são aproximadamente 50 médiuns,

numa proporção equilibrada entre homens e mulheres. Entre os médiuns há representantes

de diversas classes sociais, assim como estes exercem profissões diversas nas suas vidas

particulares. Neste centro, teoricamente, todos os médiuns têm a mesma importância

dentro do culto. Todavia, observa-se que o tempo de iniciação é um fator hierárquico

determinante na relação entre os médiuns. Os que possuem mais tempo de iniciação são

respeitados pelos mais novos, que lhes pedem a benção e auxílio antes de executar

qualquer tarefa. Os médiuns mais antigos também assumem o papel de auxiliares mais

próximos da mãe-de-santo na condução dos rituais e contribuem no processo de

aprendizagem dos médiuns mais novos.

Os médiuns também exercem funções específicas neste centro. Nos rituais, há

uma médium responsável por puxar os pontos cantados para manter a ordem e o bom

desenvolvimento do ritual. No Centro Umbandista Rei de Bizara os pontos são cantados da

seguinte forma: o puxador inicia o canto do ponto a capella. A extensão deste solo

depende do ponto cantado, podendo ser uma frase ou toda a cantiga. Em seguida, entram

os instrumentos musicais e o coro formado pelos freqüentadores e pelos membros do

centro que respondem a frase do solista. As entidades também puxam as suas cantigas em

momentos específicos, de forma que não atrapalhe o andamento da cerimônia. A mãe-de-

santo e os outros médiuns também podem puxar os pontos cantados, mas isso ocorre

somente quando há uma necessidade específica ou em momentos do ritual onde há

liberdade para esta iniciativa.

Há também um médium responsável pela compilação de todo o conteúdo

referente à doutrina da religião ministrado a todos os integrantes do centro, inclusive o

público. A parte financeira fica sob a responsabilidade de um médium que controla o

orçamento e a arrecadação para a realização dos rituais. As contribuições vêm dos próprios

75
médiuns que se tornam sócios da casa e contribuem com um determinado valor conforme

as possibilidades de cada um.

A nomeação a estes cargos específicos é feita pela mãe-de-santo que observa as

habilidades de cada médium e como estas podem ser aproveitadas no centro. O médium

responsável pelo conteúdo da doutrina umbandista atua na área de Biblioteconomia e a

médium responsável por puxar os pontos cantados nas festas teve suas habilidades notadas

pela mãe-de-santo da seguinte forma:

Ela [a médium] toda a vida foi assim cantarolando, toda a vida. Aí eu


aproveitei, vamos embora aprender a cantar e ela aprendeu e canta
direitinho. Puxa o povo, ela puxa. Você vê que ela fica assim naquela
alegria dela.

Vários são os motivos que levam os médiuns a procurarem a Umbanda, como

problemas de ordem material e espiritual e também o próprio fato da aquisição da

mediunidade. As pessoas descobrem esta “habilidade” e sob recomendação de amigos ou

familiares procuram o desenvolvimento no centro umbandista. Durante as festas é comum

encontrar entre o público pessoas numa espécie de “meio transe” apresentando tonturas,

tremedeiras e contorcendo o corpo. Nestes casos, há o auxílio imediato dos médiuns que

dão passes até a pessoa voltar ao seu “estado normal” e depois aconselham estas pessoas a

desenvolverem suas habilidades mediúnicas. Durante a pesquisa de campo observamos a

entrada de três novos médiuns, que tiveram manifestações durante as festas e pouco tempo

depois se tornaram médiuns do centro. A apresentação dos novos médiuns à comunidade

acontece na primeira festa após o ingresso na casa. Diferente do Candomblé, onde a

iniciação de um novo membro é permeado por rigorosos e demorados rituais, na Umbanda,

como já afirmamos, os rituais de iniciação não são obrigatórios. No Centro Umbandista

Rei de Bizara, o médium não passa por rituais específicos de iniciação, a cada novo

médium que ingressa na casa, a mãe-de-santo faz a consulta aos búzios para ver os Guias

76
que acompanham o médium (o Orixá de cabeça e o seu parceiro62, o Caboclo e o Exu ou

Pombagira):

Eu jogo o Búzio para saber quem é. (...) Eu tenho que estar preparada,
com banho de folha e cabeça amarrada. Eu jogo o búzio pra saber o que
eles (as entidades) estão fazendo ali (médium). Vou olhando todo mundo.

Após conhecer as entidades que acompanham o novo médium, a mãe-de-santo

terá condições de auxiliar no desenvolvimento espiritual deste novo membro63. Este

desenvolvimento acontece com o passar do tempo e principalmente com a convivência

com os Guias espirituais baseada numa relação de companheirismo, no qual um se apóia

no outro na busca da evolução espiritual. A entidade utiliza o corpo do médium e este, por

sua vez, se beneficia com os ensinamentos e a proteção dos Guias. Porém, o exercício da

mediunidade não é fácil, pois requer muita disciplina no cumprimento de todas as etapas

do desenvolvimento espiritual, além de experimentar muitas limitações, inclusive

comportamentais, impostas muitas vezes pelas entidades. Tia Preta, em seu depoimento

abaixo, relata sua dedicação à religião e sua relação com seus Guias espirituais:

Eu tenho uma vida inteira aqui dentro minha filha. Eu vivo só pra aqui.
Eu vivo aqui dia e noite. Não saio, os Orixás não me deixam beber. Eu
ando na linha com eles. Eu ando assim com eles [encosta os dois dedos
indicadores]. Eu adoro eles. Tudo que eu peço eu ganho, tenho saúde
principalmente.

Os médiuns a partir do momento que ingressam na casa passam a freqüentar

todos os rituais, inclusive a “Obrigação”, um conjunto de rituais que acontecem uma vez

por ano, no mês de outubro, onde o acesso é restrito aos médiuns. Neste período, ficam

62
Na Umbanda, o médium geralmente possui dois Orixás que protegem e comandam a sua vida
material e espiritual: o Orixá de cabeça (o principal) e o Orixá de costas.
63
Na Umbanda, o nível de desenvolvimento de um médium pode ser medido pela quantidade de
entidades que ele recebe. Um médium num alto nível de desenvolvimento é capaz de incorporar vários
Orixás (o Orixá de cabeça e os acompanhantes), as entidades de direita (Preto-Velho, Caboclo, Crianças,
Orientais, Marinheiros, etc) e as entidades de esquerda (Exus e Pombagiras). Na Umbanda, não há restrição
quanto ao gênero, os homens podem incorporar entidades femininas e as mulheres podem incorporar
entidades do sexo oposto, porém o segundo caso é mais comum.

77
confinados no centro durante seis dias (dois finais de semana consecutivos: sexta, sábado e

domingo) onde são submetidos a diversos rituais como o Bori64 e a Lavagem das Guias65.

No primeiro sábado da “Obrigação” acontece uma Gira de Escravos (festa pública em

homenagem aos Exus e Pombagiras) e no segundo final de semana, no sábado, acontece

uma festa pública em homenagem a todos os Orixás e no domingo é realizada outra festa

pública, a Marujada, dedicada às entidades dos Marinheiros. O período da “Obrigação” só

termina com o fim desta festa. O número de “Obrigações” cumpridas corresponde ao

tempo de desenvolvimento do médium, ou seja, quanto mais “Obrigações” cumpridas,

mais desenvolvido será o médium. Teoricamente, não se trata de um ritual de iniciação, no

entanto, a primeira “Obrigação” de um médium é entendido como um batismo, no qual o

mesmo, oficialmente, passa a fazer parte do centro. Segundo Tia Preta, o Bori é um ritual

de confirmação da fé do médium que em troca recebe uma “força” do seu Orixá.

Além dos médiuns, seguindo a hierarquia, outra categoria presente no Centro

Umbandista Rei de Bizara é o cambono66. O cambono difere do médium por não entrar em

transe, mas é também um cargo importante pois está diretamente ligado ao funcionamento

do centro. Durante os rituais, ele auxilia as entidades incorporadas fornecendo-lhes seus

objetos particulares como charutos, velas, bebidas, e verifica as condições dos espaços

públicos do centro, como o funcionamento do banheiro, as acomodações da assistência nos

salões e os tambores de água mineral que estão a disposição do público em geral. Enfim,

64
De acordo com Cacciatore (1988:68), o ritual do Bori possui algumas finalidades como:”fortificar
o espírito do crente para suportar repetidas possessões, ou por estar por elas enfraquecido (profilaxia e
terapêutica), penitência pela quebra de algum preceito, dar resistência contra influências negativas.” De certa
forma, as poucas afirmações da mãe-de-santo sobre este ritual confirmam as finalidades acima.
65
Guias são colares coloridos usados pelos médiuns que representam a presença dos Orixás.
Segundo Cacciatore (1988:93) As guias são geralmente feitos com miçangas, contas de vidro, louça ou cristal
e as cores variam conforme os Orixás. Na Lavagem das guias, estes colares recebem um banho feito com
ervas amassadas e água.
66
Este centro umbandista possui atualmente apenas um cambono, mas ele conta com a ajuda de
todos os demais membros para o cumprimento de todas as tarefas.

78
está sempre pronto para resolver qualquer problema. Cabe também ao cambono as

anotações no livro de registros de tudo que acontece no centro como, por exemplo, o

número de médiuns presentes, o número de pessoas atendidas nas sessões de caridade e o

registro de cada ponto cantado trazido pelas entidades, especialmente quando se trata de

uma cantiga inédita que não é compreendida imediatamente pelo público. O cambono faz o

registro para que, numa próxima oportunidade, esta cantiga possa ser “respondida” pelos

médiuns e consequentemente pelo público. O Centro Umbandista Rei de Bizara possui

uma apostila que contém o texto de todos os pontos cantados em seus rituais.

A primeira vista, entendemos esta ação de registro dos pontos cantados como

uma forma de aprendizagem através do método da memorização. Neste caso, há uma

prioridade da letra em relação à música, mas acreditamos que ao anotar a letra,

automaticamente a parte musical estará de alguma forma sendo memorizada, pois o texto

sem a música não tem utilidade no culto umbandista.

A parte musical fica sob a responsabilidade das curimbeiras que, neste centro

umbandista, são exercidas por duas mulheres que tocam os instrumentos musicais

(atabaques e agogô) e puxam os pontos cantados. Da mesma forma que a médium

responsável pelos pontos cantados, as duas curimbeiras conhecem um grande número de

cantigas e sabem o momento certo de cantá-las nos rituais. No entanto, como já afirmamos

anteriormente, o ato de cantar para manter a ordem e o bom funcionamento dos rituais fica

a cargo da médium. As curimbeiras puxam as cantigas na ausência desta ou então quando

uma entidade se manifesta nela. O canto das curimbeiras também pode ser visto em

momentos específicos dos rituais. Nestes casos, elas cantam a pedido das entidades que

sentem a necessidade de ouvir seus pontos cantados. Durante a pesquisa observamos

alguns casos, como o Cigano Mariano, uma entidade muito reservada, que pediu para as

curimbeiras cantarem uma cantiga (o ponto Cigana), que ele se referiu como o ponto “do

79
Cigano que não suporta traição” (Cf. transcrição p. 126). Aqui encontramos uma diferença

significativa entre a Umbanda e o Candomblé: a possibilidade da execução instrumental da

música ritual ser feita por mulheres.

As curimbeiras não entram em transe e a iniciação à religião não é obrigatória.

É o que acontece com Noli, a curimbeira responsável pelos atabaques, que não é praticante

da Umbanda mas ocupa esta função há mais de 15 anos. Ela foi percussionista de uma

banda de música formada exclusivamente por mulheres chamada Bolacha Maria e na

época trabalhava como doméstica no centro. Com sua experiência em percussão,

“aprendeu sozinha” os toques dos atabaques, ouvindo e vendo os outros curimbeiros. No

depoimento abaixo, Noli relata o motivo e a maneira como foi admitida ao cargo de

curimbeira no centro:

Eu trabalhava na casa dela. Aí chegou um dia eles precisavam de um


tocador e eu sabia tocar. Aí eu chamei Katinha [filha da mãe-de-santo].
Katinha, você sabe que eu toco na banda, quer que eu toque? Aí ela quis
ver eu tocar, eu toquei a primeira vez, aí ela gostou. E aí fiquei67.

Por fim, o público que freqüenta o Centro Umbandista Rei de Bizara é

chamado de assistência, no sentido de assistir as cerimônias. A assistência é formada por

pessoas de todas as classes sociais que participam dos rituais do centro. Os freqüentadores

não precisam ser obrigatoriamente umbandistas, mas na maioria dos casos são pessoas que

residem em diversos bairros de Salvador e procuram no centro a solução de problemas de

diversas naturezas. Entre os freqüentadores que compõem a assistência, existem pessoas

que freqüentam todos os rituais, turistas de diversas regiões do Brasil e do exterior e

pessoas que comparecem de forma eventual.

67
Durante a pesquisa de campo, tivemos a oportunidade de aprender com esta curimbeira algumas
noções básicas dos toques executados pelos instrumentos (o atabaque e o agogô). Este depoimento foi
registrado em um encontro ocorrido em 05/05/2006.

80
3.3. Os instrumentos musicais e seus executantes

Os instrumentos utilizados nos rituais do Centro Umbandista Rei de Bizara são

os atabaques e o agogô.

De acordo com a classificação dos instrumentos musicais propostos por

Hornbostel e Sachs (1961), podemos descrever os atabaques como membrafones, aqui

percutidos com as mãos, que apresentam um pouco mais de um metro de altura, estreitos

com o corpo em forma de barril, feito com madeira envolvida com aros de ferro, com

tampo único coberto de couro (pele), cuja tensão é medida por tarraxas de ferro que ficam

em volta do tampo que, com o auxílio de uma chave, podem ser apertados ou afrouxados

conforme a altura do som desejada pelo curimbeiro.

Detalhe dos atabaques utilizados nas festas em homenagem às entidades da direita.

81
O agogô é um idiofone percutido, composto por duas campânulas metálicas

superpostas, de tamanhos diferentes que produzem sons de alturas distintas. As

campânulas são unidas por um arco em forma de U e são percutidas com uma vareta de

metal.

Agogô utilizado nas festas em homenagem às entidades da direita.

A classificação proposta por Hornbostel e Sachs (1961) privilegia a forma, a

descrição do material (construção do instrumento) e a maneira de produção do som. Seeger

(1986: 175) traz o seguinte comentário:

Embora extremamente útil para registro musicológico e louvável pela


ênfase à maneira segundo a qual o som é produzido, a classificação pura
e simples de instrumentos musicais comporta, ao mesmo tempo, virtudes
e vícios. Um deles é o isolamento dos instrumentos musicais das outras
categorias de elementos da cultura material. A música é uma faceta da

82
vida social; os instrumentos musicais são parte integrante da cultura
material que, por sua vez, não pode ser isolada dos outros domínios da
sociedade.

Ao falar dos instrumentos musicais devemos levar em conta outros fatores

como o contexto cultural, a maneira como os instrumentos são tocados, entre outros. A

abordagem destes fatores pode nos fornecer um maior conhecimento a respeito dos

instrumentos musicais bem como o seu papel dentro da cultura a qual pertence. No caso do

Centro Umbandista Rei de Bizara, uma visão global dos instrumentos musicais nos

fornece respostas importantes, principalmente em se tratando da estreita relação entre a

Umbanda e Candomblé, especialmente da nação angola e o Candomblé de Caboclo.

No Centro Umbandista Rei de Bizara encontramos um trio de atabaques de

tamanhos diferentes, que recebem os seguintes nomes na ordem decrescente de tamanhos:

Rum, Rumpi e Lé. Estes instrumentos, antes de serem utilizados nos rituais, são batizados

numa cerimônia secreta68. No centro existem cinco atabaques que se dividem em dois

grupos: o Rum, o Rumpi e o Lê utilizados exclusivamente nas festas em homenagem às

entidades da direita e um Rum e um Rumpi que são utilizados exclusivamente para os

rituais dedicados aos Exus e Pombagiras. Demonstrando, inclusive musicalmente, a

distinção entre as entidades (direita e esquerda) e os espaços sagrados. Atualmente, por

falta de curimbeiros, são utilizados somente um agogô (Gã) e dois atabaques no

acompanhamento musical das festas da direita (Rum e Rumpi) e um atabaque (Rum) e um

agogô (Gã) nas festas da esquerda.

Em se tratando da forma como os atabaques são executados, encontramos outra

similaridade importante entre a Umbanda e o Candomblé Angola e o de Caboclo, o toque

68
A respeito do batismo dos atabaques, a mãe-de-santo não revelou os detalhes do ritual, por se
tratar de um segredo do centro.

83
nos instrumentos com as mãos, diferente do Candomblé de nação queto que utiliza os

aguidavis69.

No Centro Umbandista Rei de Bizara, acredita-se que os instrumentos são os

responsáveis por estabelecer a comunicação com as divindades sendo um ponto de contato

entre os homens e o sobrenatural. Nas festas, são os instrumentos que chamam as entidades

para participar como nos diz Tia Preta: “ela [a entidade] chega mais pra dentro da

Umbanda pelo atabaque e o agogô.” Por esta razão, os instrumentos são considerados

objetos sagrados e os membros do centro os respeitam como tal, conforme nos explica a

mãe-de-santo:

Num atabaque você não pode chegar, dar as costas a ele. Tem que ter
respeito. Se um atabaque virar, cair no chão tem que fechar a casa. Ele é
respeitado como gente. Nós temos um respeito enorme com o atabaque e
com o agogô.

A aprendizagem dos instrumentos musicais acontece por meio da imitação, no

qual se aprende vendo e ouvindo os executantes. Segundo Tia Preta, por este centro já

passaram muitos curimbeiros, onde o conhecimento dos ritmos ou toques foi passado desta

forma de um para o outro. A aprendizagem acontece lentamente no contexto dos rituais,

onde o aprendiz observa e pratica os instrumentos durante as cerimônias. Na Gira de

Escravos, observamos por diversas vezes, o filho da curimbeira responsável pelos

atabaques praticando os toques no instrumento e acompanhando sua mãe no agogô. Nas

festas realizadas para as entidades da direita, mãe e filho costumam acompanhar alguns

pontos cantados onde cada um assume um atabaque. Em um conversa informal a respeito

de como aprendeu a tocar o atabaque e o agogô, o menino afirmou que aprendeu ouvindo

os toques nas festas e “batucando” os ritmos nas paredes da sua casa.

69
De acordo com Garcia (1996: 82-83) os aguidavis (varetas) são feitos com madeiras resistentes,
“entre eles o galho da goiabeira, tamarindeiro ou cipó duro, e medem em média cerca de 30 cm.”

84
3.4. A divisão do espaço físico

O Centro Umbandista Rei de Bizara é uma casa de quatro pavimentos. O térreo

é o espaço reservado à vida cotidiana da mãe-de-santo e de sua filha. O primeiro subsolo é

dedicado às entidades da direita, o segundo subsolo é dedicado às entidades da esquerda e

o terceiro subsolo possui uma grande cozinha onde é preparada a comida servida na Gira

de Escravos, como veremos no decorrer deste trabalho.

No térreo, a privacidade das moradoras não é preservada. A vida cotidiana se

mistura com o espaço sagrado, pois em um dos cômodos se localiza o quarto de santo.

Trata-se de um típico altar umbandista que, neste centro, ocupa toda a dimensão do quarto.

Lá encontramos imagens de Jesus Cristo, dos Santos Católicos sincretizados com os Orixás

e de outras entidades da direita como os Pretos-Velhos e os Caboclos. Junto com as

imagens são encontradas oferendas como velas, flores e também podem ser depositados

neste local objetos resultantes dos rituais dedicados aos Guias do lado direito.

Detalhe do quarto-de-santo do Centro Umbandista Rei de Bizara.


85
Todos os médiuns que chegam ao centro são “obrigados” saudar este quarto de

santo. Devem entrar no cômodo sem os sapatos, fazer o “agô” (pedir licença batendo

palmas), bater a cabeça cumprimentando as entidades do altar (ajoelhar no chão e encostar

a cabeça na borda do altar) e rezar. O quarto de santo deve ser limpo uma vez por semana

e esta tarefa fica sob a responsabilidade da mãe-de-santo.

Descendo as escadas, encontramos a bandeira do Centro Umbandista Rei de

Bizara. Segundo Tia Preta, todo o centro de Umbanda possui uma bandeira. Nesta, estão

retratadas os seguintes símbolos: o cálice que representa Oxalá (Orixá que rege o centro),

as pombas e a estrela que representam o Divino Espírito Santo. O centro possui dois

exemplares da sua bandeira, uma de frente para as escadas que dá acesso ao salão do

primeiro subsolo e a outra no caminho do segundo subsolo.

Bandeira do Centro Umbandista Rei de Bizara.

86
Detalhe dos símbolos da Bandeira: o cálice, as pombas e a estrela.

3.4.1. O lado direito

No primeiro subsolo se localiza o salão onde são realizadas todas as festas em

homenagem às entidades da direita (Orixás, Caboclos, Boiadeiros, Pretos-Velhos, Crianças

e Marinheiros70) é também o lugar onde acontece a Sessão de Consultas e Passes,

conhecida como Sessão de Caridade.

No Centro Umbandista Rei de Bizara, são cultuados os seguintes Orixás:

Oxalá (Jesus Cristo), Tempo71, Xangô (São Jerônimo), Nanã (Nossa Senhora de Sant’ana),

70
Diferente de alguns autores (Cf. Concone, 2001; Montero, 1985; Negrão, 1996a e 1996b; Souza,
2001) que consideram o Marinheiro como entidade mista (metade direita e metade esquerda), esta entidade
neste centro é considerado de direita.
71
Tempo é um Orixá que pertence ao Candomblé Angola (Inquice de Angola) e representa uma
diferença importante entre as nações angola e queto. O fato de este Orixá ser cultuado no Centro Umbandista
Rei de Bizara indica uma influência muito significativa do Candomblé Angola. O centro não realiza uma
festa específica para o Orixá Tempo, no entanto, esta divindade é lembrada e homenageada nas festas dos
outros Orixás conforme o calendário mostrado a seguir.

87
Oxum (Nossa Senhora Aparecida), Iemanjá (Nossa Senhora da Conceição), Oxossi (São

Jorge), Ogum (Santo Antônio), Obaluaê/Omulu (São Lázaro), Iansã (Santa Bárbara) e Ibeji

(São Cosme e Damião). Os Orixás também aparecem de forma individualizada, como se

fossem ramificações vindas de uma mesma matriz, como por exemplo, Oxossi Caçador e

Oxóssi das Matas pertencente a categoria de Oxóssi. Estas entidades “descem” nas festas

dos seus Orixás (matrizes) correspondentes.

As festas públicas realizadas neste salão acontecem aos sábados e obedecem ao

seguinte calendário72:

fevereiro Festa de Iemanjá


abril Festa de Oxossi73
maio Festa dos Pretos-Velhos
junho Festa de Ogum
julho Festa do Rei de Bizara
Festa de Nanã
agosto Festa de Obaluaê/Omulu
setembro Festa da Ibejada
outubro Festa em homenagem a todos os
Orixás
Festa de Oxalá
Festa dos Marinheiros (Marujada)
Festa de Xangô
dezembro Festa de Iansã
Festa de Oxum74

Como podemos visualizar no calendário acima, além das festas dedicadas aos

Orixás, os Pretos-Velhos são homenageados no mês de maio numa festa onde estas

72
Este calendário pode ser alterado conforme as necessidades do centro. No mês de janeiro o centro
realiza apenas Sessões de Consultas e Passes. Em março, acontecem as Sessões de Consultas e Passes nas
quartas-feiras, as Sessões de Desenvolvimento aos sábados e a Gira de Escravos no primeiro sábado do mês.
Em novembro o centro não realiza festas porque é um mês dedicado aos mortos (acontecem apenas as
Sessões de Desenvolvimento aos sábados e as Sessões de Consultas e Passes nas quartas-feiras).
73
Na Festa de Oxossi os Caboclos também são homenageados porque pertencem à mesma linha
deste Orixá.
74
Nesta festa, Oxum recebe presentes dos membros do centro e dos freqüentadores. Estas oferendas
(perfumes, sabonetes, flores, etc.) são depositadas na Lagoa do Abaeté.

88
entidades realizam consultas e passes enquanto as pessoas cantam os seus pontos cantados

específicos. As Crianças são homenageadas na Festa da Ibejada (São Cosme e Damião),

onde estas entidades são presenteadas com brinquedos pelos freqüentadores e no final da

festa são servidos o Caruru de São Cosme e Damião (refeição composta por vatapá, caruru,

bolinhos de acarajé e arroz) e doces (bombons, bolos, balas e pipocas). Os Marinheiros são

homenageados numa festa que marca o fim do período da “Obrigação”. Nesta festa, os

médiuns se vestem com o uniforme do marinheiro (roupa branca e chapéu) e quando

incorporados cantam os pontos cantados específicos desta entidade. Os Caboclos e os

Boiadeiros75 são homenageados em duas oportunidades: no mês de abril durante a Festa de

Oxossi porque pertencem à mesma linha deste Orixá e no mês de julho na festa em

homenagem ao Caboclo Rei de Bizara (mentor espiritual do centro). Acreditamos que a

homenagem aos Caboclos feita no mês de julho pode ser uma influência do Candomblé

baiano no Centro Umbandista Rei de Bizara, pois na Umbanda cultuada em outros Estados

os Caboclos são homenageados em outras datas.

Lopes (1997: 63) destaca que, na Bahia, várias nações de Candomblé

homenageiam os Caboclos no dia 2 de julho, “em comemoração à Catarina Paraguassú e

Diogo Alves Correia, dois índios que representam o Brasil.” Garcia (2001a: 116) considera

que a comemoração do Dia do Caboclo no Candomblé da Bahia faz referência à

Independência do Estado que aconteceu nesta mesma data. A Independência da Bahia é um

fato histórico comemorado com um desfile realizado no dia 2 de julho nas principais ruas

da região central da cidade de Salvador. No desfile, os carros com as estátuas do Caboclo e

da Cabocla conduzem o cortejo cívico, pois representam aqueles que lutaram pela

Independência da Brasil. Garcia (2001a: 118-119) descreve a participação dos adeptos do

75
Como no Candomblé de Caboclo, no Centro Umbandista Rei de Bizara o Boiadeiro é considerado
um Caboclo.

89
Candomblé nesta comemoração, e como este fato reforça a crença nestas entidades e a

geração de um repertório musical:

Atualmente, muitos adeptos do candomblé acompanham o cortejo logo


após os carros do Caboclo e da Cabocla, trajando vestimentas brancas
características das cerimônias do candomblé, e usando muitos colares de
contas. Fazem referência aos Caboclos nos seus respectivos carros.
Saúdam a imagem do Caboclo. (...) A idéia do Caboclo herói, presente no
desfile, amplia o mito do Caboclo cultuado no candomblé, e torna-se um
reforço para a sua assimilação e penetração no imaginário daqueles que
crêem nas divindades Caboclas e as cultuam. Esta imagem do Caboclo
brasileiro valente e guerreiro penetra nos terreiros e é simbolizada nos
rituais de várias formas, inclusive nos textos de muitas de suas cantigas,
sendo um tema importante para a produção do repertório musical.

Como já mencionamos anteriormente, acreditamos que uma das principais

contribuições do Candomblé de Caboclo na formação da Umbanda é a entidade do

Caboclo. Porém, os Caboclos do Candomblé e da Umbanda possuem características

distintas. No Candomblé, os Caboclos estão no mesmo nível dos Orixás (Cf. Póvoas, 1989:

106), e se voltam para a transmissão das suas histórias, lendas, danças, vestimentas entre

outros fatores relacionados ao conceito da “divindade da mata” e do “dono da terra”,

ancestral indígena, o primeiro habitante em solo brasileiro. Enquanto que na Umbanda são

considerados entidades abaixo dos Orixás na escala de desenvolvimento espiritual e a sua

função está direcionada ao atendimento ao público, seguindo a filosofia kardecista da

prática da caridade. O pai-de-santo Matambalessi (Cf. Silva, 1995: 104), da nação angola

também aponta estas diferenças entre os Caboclos do Candomblé e da Umbanda:

no candomblé, o caboclo que vem é mais evoluído para as coisas da


natureza. Na umbanda eles são mais rezador, curador, benzedor, ensina
rezas e simpatias, canta pontos com nome de santo. No candomblé eles
cantam samba-de-roda e coisas da natureza deles.

A Sessão de Consultas e Passes no Centro Umbandista Rei de Bizara acontece

todas as quartas-feiras e caracteriza-se pela presença de alguns elementos presentes no

Catolicismo (a figura do Anjo da Guarda, orações e hinos). Neste dia, acontece o


90
atendimento ao público onde, por ordem de chegada, cada pessoa recebe o passe das

entidades da direita incorporadas nos médiuns. Mesmo existindo uma hierarquia entre os

Orixás e os Guias da direita, nesta sessão estas entidades trabalham juntas. No momento do

passe, existe o contato direto entre os homens e os deuses e durante este encontro os

freqüentadores fazem suas consultas expondo suas necessidades e ouvem os conselhos. Os

passes acontecem no salão e as pessoas são atendidas na frente do público. Porém, existe a

possibilidade do atendimento individualizado, de forma reservada, feito pelo Caboclo

Tupinambá. Esta entidade se manifesta na mãe-de-santo e a sua consulta acontece num

quarto que fica no canto do salão, próximo ao espaço reservado à assistência.

Centro Umbandista Rei de Bizara (primeiro subsolo)

91
O Caboclo Rei de Bizara trabalha em parceria com o Caboclo Tupinambá,

onde o primeiro se faz presente apenas em algumas festas e durante o período da

“Obrigação” dos médiuns, enquanto que o segundo trabalha diretamente com o público.

Conforme já mencionamos anteriormente, o nível de desenvolvimento de um médium é

medido pela quantidade de entidades que se manifestam nele. Tia Preta e os demais

médiuns do Centro Umbandista Rei de Bizara incorporam várias entidades entre elas

Orixás, Guias da direita e da esquerda.

Os freqüentadores que se consultam com o Caboclo Tupinambá, geralmente

contribuem com uma importância em dinheiro e esta receita faz parte do orçamento do

centro. As pessoas atendidas têm os seus nomes anotados numa ficha de controle onde são

registrados os dias das consultas. Estas anotações e a organização das fichas ficam sob a

responsabilidade do cambono. As pessoas que se consultam com o Caboclo Tupinambá

também tomam o passe com as outras entidades.

Nas quartas-feiras o público chega ao centro e aguarda o início da sessão no

espaço do salão reservado à assistência. Neste momento, acontece a defumação76 e em

seguida todos recebem uma pequena quantidade de perfume de alfazema que é espalhado

em diversas partes do corpo (nuca, testa, mãos, pulsos e braços). Segundo Tia Preta, este

perfume tem como finalidade chamar as entidades para abençoar todas as pessoas

presentes. Enquanto isso, os médiuns se preparam para incorporar os seus Orixás ou Guias,

que são chamados através de pontos cantados acompanhados somente por palmas, sem os

instrumentos musicais. As transcrições abaixo são dois exemplos de pontos cantados

presentes neste contexto:

76
Assim como nos outros locais de culto umbandista, a defumação também está presente em todos
os rituais do Centro Umbandista Rei de Bizara.

92
A Sessão de Caridade tem início quando chegam as entidades. Todos os

médiuns obedecem a uma escala de trabalho, para que todos tenham a oportunidade de

“trabalhar”, porque em cada sessão os passes são ministrados por no máximo quatro

médiuns77. Toda a sessão é coordenada pelo médium mais antigo (tempo de iniciação) com

o auxílio da filha adotiva da Tia Preta. No momento do passe, cada pessoa é chamada a se

dirigir em direção à entidade, ficando de frente à ela. O coordenador pergunta o seu nome e

em seguida puxa duas orações (um Pai-Nosso e uma Ave- Maria) e, em coro, todos os

presentes rezam junto. Após as orações o coordenador profere as seguintes palavras: “estas

orações estão depositadas nos pés do Santo Anjo da Guarda de (o nome da pessoa que vai

receber o passe)” e só depois desde pequeno ritual o passe acontece. Após o passe, a

pessoa pode se retirar do centro. Segundo Tia Preta, estas orações têm como objetivo

fortalecer a pessoa espiritualmente.

Toda a sessão acontece ao som de músicas católicas e os atabaques não são

tocados. As músicas ouvidas são gravações de hinos muito conhecidos entre os católicos,

interpretados por Pe. Zezinho e o cantor Roberto Carlos. Os hinos católicos neste caso têm

a finalidade de auxiliar na concentração dos médiuns e do público, como explica Katinha,

filha da mãe-de-santo:
77
Segundo Tia Preta, só os médiuns que possuem mais de três anos de desenvolvimento é que estão
preparados para participar das Sessões de Caridade.

93
A música católica é pras pessoas não ficarem conversando porque não
pode. Então ta pedindo oração. E bota bem baixinho pra ficar tocando pro
anjo de guarda da pessoa que está tomando o passe. E as pessoas ficam
conversando e então atrapalha. (...)
P - E porque música católica?
Porque é muito bonito, tem muita gente que gosta. E a Umbanda parte
muito pro Catolicismo. Se bota ponto aqui da gente com os atabaques,
tem muita gente que não entende. Essas músicas é pras pessoas
entenderem que é um momento de oração78.

O emprego da música católica revela outra característica deste centro

umbandista: a maioria dos freqüentadores são da religião católica, como afirma Tia Preta:

As pessoas que vêm pra cá são católicas. Católicas mesmo, católicas


fervorosas. Vem pedir misericórdia79. Elas vêm buscar umas coisas que
elas não encontram na igreja.

Nesta sessão, as orações e a música aproximam os católicos do universo da

Umbanda. Porém, o fator determinante para esta aproximação é a busca de algo que não se

encontra na Igreja Católica, que pode ser um contato direto com as entidades ou outros

elementos que as pessoas acreditam encontrar somente na Umbanda. Negrão (1996a) em

sua pesquisa sobre a Umbanda na cidade de São Paulo constatou a freqüência de um

grande número de católicos nos centros paulistas. Segundo o autor (1996a: 303) a doutrina

umbandista vai de encontro com as necessidades dos clientes de uma forma mais direta.

Existe um consenso entre os freqüentadores de que, na Umbanda, é possível encontrar

respostas aos problemas através de uma força ou de uma palavra das entidades, enfim, algo

que não se encontra na Igreja. Nela, este tipo de contato acontece somente com o padre no

confessionário, num local onde predomina o sentimento da penitência.

Sem dúvida, é na Sessão de Consultas e Passes que a Umbanda mostra seu

principal fundamento: a prática da caridade. Nesta cerimônia todos são beneficiados: os

78
Depoimento dado em entrevista realizada em 21/04/2006.
79
A expressão “pedir misericórdia” significa o ato de pedir qualquer coisa ao mundo espiritual no
momento de oração.

94
clientes pela solução de seus problemas, os médiuns pelo cumprimento de uma etapa

dentro da série de etapas necessárias para o seu desenvolvimento espiritual, e as entidades

que cumprem suas missões e ascendem espiritualmente.

Por fim, todas as atividades que são realizadas no primeiro subsolo são

coordenadas pelo mentor espiritual do centro, o Caboclo Rei de Bizara. Esta entidade é o

representante do Orixá que rege o centro: Oxalá. Na Umbanda, este Orixá, sincretizado

com Jesus Cristo, se encontra no patamar mais elevado na escala espiritual (nas sete linhas

da Umbanda) e por isso não entra diretamente em contato com o mundo dos homens como

explica Tia Preta:

A casa é de Oxalá. O Rei de Bizara é o chefe dos Caboclos. Oxalá, como


eu tenho ele, eu tenho que ter um Caboclo pra substituir a ele. Oxalá não
canta, não dança. É uma entidade muito fina. Está numa esfera muito alta
e precisa de uns representantes dele. O Rei de Bizara é o chefão mesmo.
Pelo jeito dele você vê.

Salles (1991: 66) complementa que entre os umbandistas há um consenso de

que para uma possível “descida” de Oxalá aos centros seria preciso um médium com um

grau de pureza e desenvolvimento suficientes para receber a vibração de Jesus Cristo, o

Deus supremo e o Pai de todos. No Centro Umbandista Rei de Bizara a presença de Oxalá

está presente no coração das pessoas e está representado na bandeira, além de que este é

constantemente reverenciado e lembrado nas orações e nos rituais através do Hino da

Umbanda.

3.4.2. O lado esquerdo

O segundo subsolo é o andar dedicado exclusivamente às entidades da

esquerda. Neste andar encontramos um salão onde são realizados os rituais e três quartos:

dois para a troca de roupa dos médiuns (um para os homens e outro para as mulheres) e o
95
outro chamado quarto de escravo, um cômodo reservado aos Exus e Pombagiras, onde

estão depositadas suas imagens e suas respectivas oferendas. Este local é aberto somente

no momento dos rituais e o acesso é restrito aos médiuns.

Diferente de outros centros, onde a presença destas entidades é restrita ou

muitas vezes até evitada, no Centro Umbandista Rei de Bizara eles ocupam um papel de

destaque tanto na condução dos trabalhos quanto no calendário das festas. Todo o primeiro

sábado de cada mês é dedicado exclusivamente aos Exus e Pombagiras que são cultuados

em uma cerimônia chamada Gira de Escravos80. No Centro Umbandista Rei de Bizara

estas divindades recebem o nome de Escravos. No depoimento abaixo, Tia Preta explica os

motivos para esta denominação que acreditamos não haver paralelo81 no universo

umbandista:

São mensageiros dos Orixás. Os Orixás trabalham aqui, mas pra limpar e
fazer tudo, eles tem que ter um empregado, e o empregado é eles. [...]
Você sabe que na Umbanda a gente tem que começar pelos Escravos. É
eles que manobram tudo.

Vale a pena lembrar que, Joãozinho da Goméia, o pai-de-santo da Tia Preta,

cultuava paralelamente o Candomblé Angola e a Umbanda. Em vista disso, seria possível

que a adoção do termo “Escravos” pelo Centro Umbandista Rei de Bizara indique uma

influência do Candomblé Angola. De acordo com Lopes (2003: 98), Escravo-de-Inquice é

uma das denominações de Exu encontrada nos Candomblés bantos82. No depoimento

80
A Gira de Escravos não se realiza nos meses de janeiro (o centro realiza apenas Sessões de
Consultas e Passes) e novembro (mês dedicado aos mortos).
81
Durante a pesquisa bibliográfica não foi encontrada nenhuma referência sobre a denominação
Escravos dado aos Exus e Pombagiras.
82
De acordo com Prandi (2000: 63), a formação dos Candomblés bantos se apresenta em três
referências básicas: Candomblé Angola, Congo e Cabinda.

96
abaixo, “Seu” Benzinho83 nos mostra que esta designação também pode ser encontrada no

Candomblé Angola:

quando a gente trata de “escravo-de-inquice”, sabe-se que está se


referindo a Exu, pois só ele é o mensageiro dos inquices. [...] Ele é
conhecido como o diabo. As cantigas chamam Exu, Bambojira, [ou
Bombonjira], Jiramavambo, Mancuce, Imbemberiquiti, Imbé Perequeté,
Ingambeiro, Quitungueiro, Caracoci. (Santana, 1984: 45-46)

Conforme o depoimento acima, Giramavambo84 é uma das denominações

atribuídas aos Exus, que também é usada no Centro Umbandista Rei de Bizara como

podemos verificar no seguinte ponto cantado85:

83
“Seu” Benzinho é membro de uma casa de Candomblé Angola e foi um dos convidados do
Encontro de Nações de Candomblé realizado em Salvador em 1981.
84
Durante a pesquisa bibliográfica encontramos a denominação Jiramavambo escrita com “J” e com
“G”, no entanto, resolvemos adotar a grafia Giramavambo por estar mais presente na literatura consultada.
85
Este ponto cantado apresenta improvisações na parte do solista. No entanto, os dois momentos do
solo na transcrição acima apresentam a mesma frase (Giramavambo agradeço ê, ê). Não foi possível a
transcrição das improvisações pela limitação imposta pela gravação. Nela, a voz do solista se encontra
encoberta pelos instrumentos (Cf. faixa do CD). A transcrição do solo apresentado acima foi possível com a
ajuda da Tia Preta.

97
Neste mesmo ponto cantado, se desconsiderarmos algumas alterações, o trecho

cantado pelo coro possui as mesmas relações intervalares e rítmicas de um outro trecho

cantado pelo coro de uma outra cantiga para Giramavambo encontrada no Ilê Axé Dele

Omí86, onde se pratica o Candomblé de Caboclo (Cf. Garcia, 1996: 135 e 2001a: 63). Em

relação ao acompanhamento instrumental, as duas cantigas apresentam o toque de mesmo

nome (Congo) e o mesmo padrão rítmico executado no agogô, no entanto, a execução do

atabaque é diferente. Estas semelhanças poderiam ser interpretadas como um indício da

relação musical entre as duas religiões, envolvendo a mesma categoria de entidades (Exu):

Nestes dois trechos, verificamos também uma semelhança na prosódia das

palavras cantadas pelo coro que, quando pronunciadas, “soam” parecidas:

86
Segundo Garcia (1996:28) o Ilê Axé Dele Omí se localiza na localidade de Arenoso, bairro de
Tancredo Neves, área periférica da cidade de Salvador- BA.

98
Agradeço ê Recompensuê
Ah, ah, ah, ah Ra, ra, ra
Agradeço ah Recompensuê

De acordo com Tia Preta, o ponto Agradeço foi criado por ela em parceria com

o seu mentor espiritual, o Caboclo Rei de Bizara. O fato desta entidade “compor” para Exu

nos chama atenção, pois confirma a existência de uma hierarquia nesta religião. A posição

ocupada por este Caboclo como o mentor espiritual do Centro Umbandista Rei de Bizara o

permite interferir, até musicalmente, em outro “território”: o lado esquerdo.

A Pombagira é o correspondente feminino de Exu, cuja denominação

representa um elemento banto dentro da doutrina umbandista por ser de origem

quimbunda, língua pertencente a uma das tribos originárias de Angola-Congo-Lês e

Contracosta (Cf. Póvoas, 1989: 18 e 24-25). No Candomblé Angola e de Caboclo,

Bombojira, outro termo de origem banto, é um dos nomes dados ao Exu masculino, cuja

semelhança prosódica Pombagira/Bombojira nos chama a atenção. Prandi (1996: 140)

sugere que o termo Pombagira seja uma corruptela de Bombojira, isto é, uma alteração

desta palavra para que ela seja adaptada à língua portuguesa, pois ambas possuem

prosódias semelhantes. As duas cantigas abaixo são dedicadas a estas duas entidades em

contextos diferentes. A primeira transcrição é um ponto de Pombagira encontrado no

Centro Umbandista Rei de Bizara e a segunda é uma cantiga coletada no Ilê Axé Dele Omí

(Cf. Garcia, 1996: 135). Aqui a semelhança prosódica do texto é reforçada pela

similaridade na estrutura melódica. As duas cantigas apresentam as mesmas relações

intervalares e semelhanças rítmicas (o uso de colcheias e semínimas pontuadas). Em

relação ao toque, as duas cantigas apresentam o mesmo padrão rítmico no agogô, embora o

toque seja diferente: a primeira é acompanhada pelo Samba e a segunda pelo Cabula:

99
100
O trânsito musical entre a Umbanda e o Candomblé de Caboclo também pode

envolver entidades diferentes. As duas cantigas abaixo apresentam semelhanças melódicas

e no texto. A primeira transcrição abaixo é um ponto de Exu cantado no Centro

Umbandista Rei de Bizara e a segunda é uma cantiga de entrada de Caboclo encontrada no

Ilê Axé Dele Omí (Cf. Garcia, 2001a: 126 e 1996: 157). A diferença existente entre os

textos é o que caracterizam as entidades. No primeiro texto a palavra “esquina” faz

referência aos Exus e a palavra “Aruanda” caracteriza a morada dos Caboclos:

Garcia (2001a: 66) destaca que, no Candomblé de Caboclo, há semelhanças no

comportamento entre o Caboclo e o Exu (nas cerimônias ambos bebem, fumam e se

comunicam em português, apesar do Exu neste culto ser um Orixá africano). Estas

semelhanças, de certa forma, permitem um trânsito de repertório entre as duas entidades,

mesmo em diferentes contextos, no qual as cantigas que possuem semelhanças melodias e

101
textos distintos podem ser utilizadas tanto para Caboclo quanto para Exu (Cf. Garcia,

2001a: 63).

Portanto, diante destes e outros fatos que demonstraremos durante este

trabalho, acreditamos que existe um complexo processo de trocas musicais entre a

Umbanda e o Candomblé de Caboclo. Garcia (2001a: 15) também acredita nesta

possibilidade quando afirma que:

Em relação ao repertório musical entoado nos dois cultos e seus


processos geradores, podemos afirmar que uma mesma cantiga pode ser
utilizada em ambos; que a mesma melodia pode ser encontrada com
textos distintos; e que textos semelhantes podem receber diferente
tratamento musical: um complexo processo de trocas, portanto. Nos
rituais da Umbanda, entretanto, as cantigas aí chamadas de pontos são
acompanhadas por toques diferentes dos do Candomblé de Caboclo.

Contudo, como acontece este trânsito dos repertórios entre estas religiões

aparentemente diferentes? Na visão êmica de Tia Preta, todas as entidades que trabalham

no Centro Umbandista Rei de Bizara não são impedidas de trabalhar em outras casas de

Candomblé ou Umbanda87. Vatin (2001:13) também acredita que “quando uma divindade

migra de uma nação para outra, seu repertório de cantigas a acompanha”. Em vista disso,

há a possibilidade destas entidades “carregarem” seus repertórios musicais, porém, eles

devem obedecer ao sistema da casa de culto e muitas vezes são adaptados a outros

contextos. No caso do centro, a cantiga deve ser cantada em português por se tratar da

prática da Umbanda, uma religião brasileira.

Na Umbanda e no Candomblé, os Escravos assumem o papel de mensageiros

dos Orixás, porém, no Candomblé, o Exu é considerado um Orixá, enquanto que na

Umbanda se trata de um Guia espiritual. Um ser muito próximo aos seres humanos que

apesar de habitarem no mundo espiritual já viveram na Terra e portanto, assim como os


87
Durante o trabalho de campo, observamos que durante uma Festa de Iemanjá um Orixá começou a
puxar um ponto desconhecido (em outro idioma). Neste momento ele foi advertido por um membro do
centro: “Este ponto não é daqui! Este ponto é de Candomblé!” Imediatamente, um médium puxou outro
ponto (desta vez conhecido) para dar prosseguimento à festa.

102
homens, possuem defeitos e virtudes. Além disso, neste centro umbandista o termo

mensageiro está relacionado ao trabalho que os Escravos exercem em nome dos seus

“donos” em todas as esferas da religião, inclusive naquelas em que os Orixás não têm

acesso, enquanto que no Candomblé o Exu assume o papel de mensageiro propriamente

dito. Ele transporta as oferendas dos homens aos Orixás, ao mesmo tempo em que carrega

as mensagens, as determinações e os conselhos que os Orixás enviam aos homens. No

Candomblé, o Exu é reverenciado em primeiro lugar numa cerimônia chamada Padê, que

antecede a todos os rituais. Edison Carneiro (2002: 69) ressalta que no Candomblé a

ligação entre os Orixás e os homens não se realiza sem a atuação do mensageiro e

transportador Exu:

Quando os negros dizem despachar Exu, empregam esse verbo no


sentido de enviar, mandar. Exu é como o embaixador dos mortais. Tem
por objetivo realizar os desejos dos homens – sejam bons ou maus – e
cumpre a sua missão com uma precisão matemática , com uma eficácia e
uma pontualidade jamais desmentidas. O despacho de Exu é uma garantia
prévia de que a favor a pedir será certamente obtido.

Com estas características, o Exu se tornou uma das entidades mais controversas

dos cultos afro-brasileiros e da Umbanda, no qual se consolidou um pensamento de que ele

não trabalha sem pagamento, fixando uma imagem associada ao mercenário e ao

interesseiro. Na África, o Exu é uma divindade que está ligada à reprodução e à

sexualidade. Segundo Prandi (2001: 48) este já despertava a atenção dos viajantes e

missionários que tiveram neste continente nos séculos XVIII e XIX, cujos relatos

apontavam para a representação do Exu com o órgão sexual exposto e aumentado,

chegando a ficar desproporcional ao resto do corpo. Continuando (2001: 50), o autor

afirma que este Orixá com os seus símbolos fálicos são venerados pelo povo africano, que

preza pela posse de uma quantidade grande de filhos, pois se acredita que a descendência é

uma garantia para a continuidade da vida e da sobrevivência das famílias.

103
Todos estes fatores contribuíram para que o Exu, no Brasil, fosse sincretizado

com o diabo. Segundo Garcia (2001b), o sincretismo se trata de uma aproximação dos

Santos Católicos com as divindades africanas. Isto foi possível pela existência de uma

“correspondência entre a personalidade dos Orixás e a dos santos resultante

freqüentemente de uma acomodação sócio-histórica. Não se trata tanto de identificá-las,

nem misturá-las e sim de encontrar equivalências entre elas.” (Cf. Garcia, 2001b:114).

Desta forma, todos os Orixás receberam um Santo Católico correspondente ficando para o

Exu o papel do demônio. A respeito desta demonização, Nina Rodrigues comenta:

Exu, Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que os afro-baianos têm


grande tendência a confundir com o diabo. Tenho ouvido mesmo de
negros africanos que todos os santos podem se servir de Exu para mandar
tentar ou perseguir a uma pessoa. Em uma altercação qualquer de negros,
em que quase sempre levantam uma celeuma enorme pelo motivo mais
fútil, não é raro entre nós ouvir-se gritar pelos mais prudentes: Fulano
olha Exu! Precisamente como diriam velhas beatas: Olha a tentação do
demônio! No entanto, sou levado a crer que esta identificação é apenas o
produto de uma influência do ensino católico (Rodrigues, 1935: 40, apud
Prandi, 2001:50)

Além da transformação do Exu em diabo, este Orixá precisou sofrer mudanças

para se adaptar ao território e à cultura brasileira. Uma delas foi perder a sua relação com a

reprodução e a sexualidade. Segundo Prandi (2001: 51), sua conotação sexual aos poucos

foi sendo reprimida, inclusive provocando mudanças na sua representação:

Suas imagens brasileiras perderam o esplendor fálico do explícito


Elegbara, disfarçando-se tanto quanto possível seus símbolos sexuais,
pois mesmo sendo transformado em diabo, era então um diabo de
cristãos, o que impôs uma inegável pudicícia que Exu não conhecera
antes. Em troca ganhou chifres, rabo e até mesmo os pés de bode próprios
de demônios antigos e medievais dos católicos.

Outra mudança observada pelo autor é quanto à intenção da oferta aos Exus.

No Candomblé, antes a oferenda era entregue para o transporte aos outros Orixás, agora

esta é oferecida para que ele simplesmente não atrapalhe o andamento do ritual:

104
Grande parte dos devotos dos orixás pensam e agem como se Exu
devesse assim ser evitado e afastado, momentaneamente distraído com as
homenagens (...) Seu culto transformou-se assim num culto de evitação.
Faz-se a oferenda não para que Exu cumpra sua missão de levar aos
orixás as oferendas e pedidos dos humanos e trazer de volta as respostas,
mas simplesmente para que ele não impeça por meio de suas artimanhas,
brincadeiras e ardis a realização de todo o culto. Exu é pago para não
atrapalhar, transformou-se num impecilho, num estorvo, num embaraço.
(Prandi, 2001:54)

Garcia (1996: 55-56) ao mencionar a cerimônia do Padê, reforça as declarações

acima, afirmando que as oferendas ao Exu são feitas para que este

não interfira no bom andamento do ritual e tudo ocorra bem [...] O Padê é
feito para que Exu não venha perturbar a ordem das coisas, ou melhor,
para que ele vele e esteja atento às devoções, no desempenho de sua
função de mensageiro entre os deuses e os homens.

No culto umbandista, o Exu se mostra mais adaptado à cultura e ao território

brasileiro. Como já mencionamos anteriormente, a Umbanda adotou a concepção cristã de

separar o bem do mal, o céu do inferno, a luz das trevas, ao mesmo tempo em que acolhe o

modo kardecista ao classificar o seu panteão em categorias de acordo com a evolução

espiritual. Os Escravos, que em suas vidas na Terra foram homens de baixo valor moral, de

conduta questionável como ladrões, malandros e aproveitadores, vivem no mundo das

trevas aqui representados pelas encruzilhadas e cemitérios, várias são as interpretações.

Serra (2001: 229) associa os Exus ao homem da rua: “há, pois, uma relação metafórica

entre a rua e o domínio dos espíritos errantes, perturbadores, impuros, descontrolados”.

Montero (1985: 200) afirma que os Exus são os filhos da pobreza, aqueles que não tiveram

oportunidade e portanto, ingressaram na vida do crime, no qual representam “um mundo

de onde pode advir a desordem e o caos”. Enfim, como não podia deixar de ser, na

Umbanda, os Escravos não fugiram da associação com o diabo, como pode ser visto no

105
ponto cantado abaixo. Esta cantiga possui um trecho que estimula os médiuns a girarem88.

Nesta parte, onde se canta a palavra “rodea”, há uma correspondência entre a letra e a

melodia, no qual o contorno melódico se apresenta como um semicírculo, um movimento

diferente do restante da melodia que apresenta contornos predominantemente

descendentes.

88
Segundo Tia Preta, ao girar o médium chama as divindades permitindo que eles tomem posse do
seu corpo. Este comportamento, de certa forma, poderia ser uma herança deixada pelo Cabula (culto banto
encontrado no Rio de Janeiro no mesmo período do surgimento da Umbanda), que usava o termo gira ou
engira para designar o local onde os médiuns giravam e dançavam para receber os espíritos (Cf. Nina
Rodrigues, 1988: 259).

106
Porém, a relativização também é aplicada no caso dos Escravos, pois ao

mesmo tempo em que convivem com crime, eles possuem qualidades que todos desejam

como a liberdade (no sentido de não estar preso às normas sociais) e a esperteza (a

habilidade de tirar proveito das situações, mesmo quando elas são contrárias). Montero

(1985: 194) ressalta esta relativização:

Se ele é mau porque rouba e mata, são essas características que fazem
dele um valente, um homem que merece respeito na medida em que é
capaz de enfrentar, por sua própria conta e risco, condições que lhe são
adversas - a necessidade de migração, a pobreza, a vida na favela e, no
limite, a própria morte.

Além da sua história e da sua personalidade, outro fator importante que indica

a relativização dos Exus é a sua função dentro da Umbanda. Nela, os Escravos exercem

uma atividade no qual se baseia toda a filosofia umbandista: a prática da caridade. Como já

mencionamos, para o Exu o importante é atender aos pedidos dos clientes, realizando

qualquer tipo de tarefa, até aquelas em que as entidades da direita se recusam a fazer.

Negrão (1996a: 232) explica as razões desta fácil comunicação entre os Exus e seus

clientes:

Estes não necessitam ter os escrúpulos e os cuidados necessários na


abordagem dos guias de direita. (...) Os Exus estão mais próximos das
fraquezas humanas e as aceitam sem constrangimentos. Quando há um
pedido equívocado do ponto de vista moral a fazer, ou quando há que

107
demandar, são os guias apropriados. (...) De qualquer forma, são os
problemas concretos do cotidiano que são tratados por eles.

Montero (1985: 198) demonstra que por estar no nível mais baixo da escala do

desenvolvimento espiritual é permitido aos Exus trilhar qualquer caminho na busca da

solução dos problemas, inclusive aqueles que não condizem com as normas impostas pela

sociedade:

A força dos exus reside portanto na possibilidade, sempre presente, que


essas entidades têm de agir no sentido da “subversão da ordem natural
das coisas”, propondo soluções para os problemas cotidianos nem sempre
condizentes com a ética e os valores da sociedade inclusiva. Porque
pertencem ao escalão mais baixo do desenvolvimento espiritual e
sobretudo porque as vias de ascensão social para eles de antemão
bloqueadas, os exus podem permitir-se trilhar atalhos que levem ao êxito
com maior eficácia do que aqueles pautados na lógica da “caridade” do
“conformismo” e da “humildade” [entidades da direita].

Por estes motivos, os Escravos são fundamentais na condução das atividades

desenvolvidas no Centro Umbandista Rei de Bizara. Tia Preta nos mostra que o simples

fato de pertencerem ao mundo das trevas não impede que estas entidades trabalhem para o

bem, além de que protegem o centro, os médiuns e aqueles que os procuram:

Eu sempre trabalhei com eles [Exus e Pombagiras] e não me arrependo.


Eles trabalham na linha do bem. Quem não trabalha na linha do bem não
entra aqui. Eu boto logo pra correr.[...] Pra mim todos são iguais. [...]
Todos me fazem bem. Sou muito amiga deles, eles são muito meus
amigos. É tudo que eu tenho.

Além disso, existe um forte convívio entre estas entidades com o público. No

trecho abaixo, Prandi (2001:54) revela os efeitos desta aproximação:

um efeito banalizador e desmistificador no que diz respeito à sua suposta


natureza de diabo. Exu e Pombagira, por causa de sua convivência
estreita com os humanos propiciada pelo transe, passam assim a ser
encarados mais como compadres, amigos e guias dispostos a ajudar quem
os procura, do que propriamente como demônios.

108
Na Umbanda, os médiuns e a assistência utilizam a palavra tanto no plural,

Exus, referindo-se a estes Guias de forma coletiva, quanto no singular, onde cada um

possui um nome, Orixá correspondente, aparência, preferências, símbolos e seus pontos

cantados. Estes são alguns Escravos encontrados no Centro Umbandista Rei de Bizara:

Exu Tranca Rua, Exu Arranca Toco, Exu Giramundo, Exu Tiriri, Exu Caveira, Exu

Caveirinha, Exu Sete Caveiras, Exu Sete Encruzilhadas, Exu Sete Facadas, Exu Beiramar,

Exu Pintinho, Exu Labareda, Exu Veludo e Exu Tomba Morro. Não é possível quantificar

com exatidão o número de Exus, pois o médium pode receber vários Escravos diferentes,

ao mesmo tempo em que eles podem estar presentes em apenas um ou em vários médiuns

ao mesmo tempo, como por exemplo o Exu Tranca Rua que geralmente é incorporado por

vários médiuns. Porém, apesar do nome Tranca Rua ser o mesmo, trata-se de Exus

diferentes por serem mensageiros de Orixás diferentes como nos explica Tia Preta: “São

Tranca Ruas diferentes. Tem o de Ogum, tem o de Oxossi. Cada um vem de um lado. Um

completamente diferente do outro.” Outro aspecto importante é a relação entre a entidade e

o médium. Conforme mencionamos anteriormente, existe uma relação de companheirismo

entre o médium e as entidades. Em se tratando dos Exus e Pombagiras, existe uma relação

de amizade em que os médiuns, em alguns casos, se referem a eles como “compadres”. A

amizade e o respeito fundamentam a relação entre Tia Preta e o “seu” Escravo Tomba

Morro. No entanto, a mãe-de-santo revela que o seu primeiro encontro com esta entidade

foi difícil e que ele se faz presente desde a sua vida religiosa no Candomblé, portanto,

antes do seu desenvolvimento na Umbanda:

Aquele Exu... Sabe aonde que eu peguei ele? Em Cachoeira [cidade do


interior do Estado da Bahia]. Na Estrada de Cachoeira. (...) Aí ele disse
que pra mim mudar pra Salvador e fazer um quarto de escravo, que tinha
que fazer um trabalho pra ele sozinha meia noite na encruzilhada. Ele
disse que eu tinha que ser mulher pra agüentar ele! Porque ele era muito
valentão! Valentão, valentão que me matava! Aí eu fui e na hora que eu
vi ele com os pés deste tamanho. Eu vi ele! Todo enfezado. Eu me urinei
toda na rua. Eu me molhei toda. Vim pra casa toda assombrada, com

109
medo dele me pegar. (...) Aí meu Deus, como eu sofri com esse Escravo!
Aí ele tomou conta da casa, e disse que ia ser o chefão lá de baixo e até
hoje tem tudo aqui. Ele é porreta! Ele é! Um dia ele disse: Tia Preta
arrume a casa que as tuas irmãs vão chegar aí. Daí a pouco estavam todas
aqui. Ele avisa as coisas longe! (...) Ele me protege! Graças a Deus! Ele
me protege, Ave Maria! Como me protege!

O Exu Tomba Morro é o mensageiro do Caboclo Rei de Bizara. No centro, ele

comanda todas as atividades desenvolvidas no segundo subsolo, espaço reservado

exclusivamente às entidades da esquerda. O texto da cantiga abaixo mostra, de forma

indireta, que este Escravo é dono do lugar:

110
O Exu Beiramar é um Escravo que na sua vida na Terra viveu no mar. Ele é o

mensageiro de Yemanjá e no Centro Umbandista Rei de Bizara ele é incorporado por

apenas um médium e possui o seguinte ponto cantado:

111
O Exu Veludo tem como característica a sua habilidade de proteger o seu

cliente contra os inimigos. Isto pode observado através do texto do seguinte ponto cantado:

112
Neste centro, todos os Exus que trabalham nos cemitérios como o Exu Caveira

e o Caveirinha, são mensageiros do Orixá Iansã. Rosa (2005: 143) em seus estudos sobre o

Candomblé da nação xambá, aponta a existência do Orixá Iansã Balé ou Igbalé,

considerada a condutora dos espíritos, pois, na mitologia, a Iansã Balé recebe de Obaluaê o

reino dos mortos. Continuando, Rosa (2005: 171) destaca os elementos musicais que

tornam as cantigas dedicadas à Iansã de Balé músicas de caráter “fúnebre”:

cantos melismáticos, um “flutuar” sobre as notas e o tempo, mostram


figuras mais longas em relação à agilidade do canto silábico presente na
maioria das cantigas de Iansã (...) e o andamento é bastante lento.

Na Umbanda, os Escravos que trabalham nos cemitérios são responsáveis por

abrir e fechar as portas que separam o mundo material do espiritual. No centro, eles são

saudados através deste ponto cantado:

No entanto, de uma forma geral, na Umbanda o Orixá Ogum, na Bahia

sincretizado como Santo Antônio na Igreja Católica, é o protetor dos Exus. De acordo com

Edison Carneiro (2002: 66), este Orixá é responsável por abrir as encruzilhadas, “devido às

suas estreitas relações com o Exu, considerado seu escravo.” No centro, esta relação entre

o Exu e o Orixá Ogum se confirma no texto do seguinte ponto cantado:

113
No Centro Umbandista Rei de Bizara, além do estreito contato descrito acima,

existe o Ogum Xoroquê, uma divindade que durante seis meses (janeiro à junho) é um

Orixá nos outros seis meses (junho à dezembro) se transforma num Escravo. Abaixo, Tia

Preta explica que esta entidade exige uma atenção especial, tanto da mãe-de-santo quanto

do seu médium, principalmente quando o Ogum está do lado esquerdo:

E quando ele muda [vira Escravo] o médium dele tem que andar na linha.
Andar na linha, saber onde pisa, fazer o que faz. Eu é que controlo tudo
isso. Aquele [médium] que vem aqui com a mulher loira, ele tem
Xoroquê. Quando for 1º de junho ele passa pra Escravo e eu faço a
comida dele, as coisinhas que ele gosta. Faço tudo isso.

114
Na Umbanda, além dos Exus, existe outra categoria que vem se tornando muito

popular entre os adeptos: o Zé Pilintra. Trata-se de uma entidade que reflete a figura do

nosso cotidiano: o malandro e marginal natural dos morros do Rio de Janeiro. São espíritos

livres, que não trabalham para nenhum Orixá, mas praticam a caridade. Devido a sua

condição, a sua esperteza e a sua habilidade de se adaptar a qualquer situação faz com que

ele ganhe todas as partidas no “jogo da vida”. O ponto cantado abaixo destaca que não se

deve confiar no malandro, pois no jogo dele ninguém ganha. A melodia, o toque e o

andamento deste ponto lembra o samba-canção. Surgido na década de 1920, este é um

“samba cuja ênfase musical recai sobre a melodia, geralmente romântica e sentimental,

contribuindo para amolecer o ritmo, que se torna mais contido.” (Marcondes, 1998: 705)

115
No Centro Umbandista Rei de Bizara, o Zé Pilintra do Morro do Livramento é

muito popular entre os adeptos por ser um bom conselheiro e estar sempre presente nas

Giras de Escravos com o seu ponto cantado:

116
Negrão (1996a e 1996b) afirma que o Zé Pilintra é ambivalente, ora se

apresenta como um Preto-Velho, ora se apresenta como Exu. Esta ambivalência é possível,

pois dentro das sete linhas da Umbanda, a Linha das Almas é a última no estágio de

evolução espiritual. Portanto, é a categoria mais próxima do lado esquerdo da Umbanda.

Isto está de acordo com a afirmação da Tia Preta de que “quando um Preto-Velho é mau,

ele é igual a um Escravo”. O Zé Pilintra do Morro do Livramento, apesar de no centro

atuar como um Escravo, não nega a sua ambivalência, como podemos constatar no ponto

cantado abaixo:

117
Na Umbanda, como já mencionamos, também existe o lado feminino do Exu: a

Pombagira. Trata-se de uma entidade muito procurada pelos freqüentadores da Umbanda.

Abaixo, Prandi (2001: 51) explica como a figura feminina se tornou uma Pombagira, ou

seja, um espírito da mesma categoria do Exu:

O imaginário tradicional umbandista, para não dizer brasileiro, acreditava


que muito da maldade humana é próprio das mulheres, que o sexo
feminino tem o estigma da perdição, que é marca bíblica, constitutiva da
própria humanidade, desde Eva. O pecado da mulher é o pecado do sexo,
da vida dissoluta, do desregramento, é o pecado original que fez o
homem se perder. Numa concepção que é muito ocidental, muito católica.
Então Exu foi também feito mulher, deu origem à Pombagira, o lado
sexualizado do pecado.

Portanto, a Pombagira possui uma forte ligação com o pecado do sexo. Birman

(1995: 185) relaciona esta entidade com o universo da rua, cuja “figura da pomba-gira

118
geralmente é apresentada como uma “mulher que se perdeu”, gosta de cachaça, e de

seduzir homens em troca de bens e dinheiro”. Da mesma forma, Prandi (1996: 156) as

descreve como mulheres que, em suas vidas terrenas, prezaram pela vida fácil:

“prostitutas, cortesãs, companheiras bandidas dos bandidos amantes,


alcoviteiras e cafetinas, jogadoras de cassino e artistas de cabaré, atrizes
de vida fácil, mulheres dissolutas, criaturas sem família e sem honra”

Assim como os Exus, as Pombagiras possuem funções próprias, sendo as

responsáveis pelo atendimento aos clientes que, na maioria dos casos, procuram soluções

para os problemas de ordem afetiva e sexual. Prandi (1996: 158-159) confirma que não há

ninguém melhor do que elas para entender deste tipo de assunto, devido a sua experiência

vivida na Terra:

a concepção mais generalizada de Pombagira é de que se trata de uma


entidade muito parecida com os seres humanos. Ela teria tido uma vida
passada que espelha certamente uma das mais difíceis condições
humanas: a prostituição. Mas é justamente essa condição que permitiu a
ela um total conhecimento e domínio de uma das mais difíceis áreas da
vida das pessoas comuns, que é a vida sexual e o relacionamento
humano fora dos padrões sociais de comportamento aceitos e
recomendados. Assim, acredita-se que Pombagira é dotada de uma
experiência de vida real e muito rica que a maioria dos mortais jamais
conheceu, e por isso seus conselhos e socorros vêm de alguém que é
capaz, antes de mais nada, de compreender os desejos, fantasias,
angústias e desespero alheios.

As Pombagiras são mulheres vaidosas, envolventes. Para incorporar esta

entidade, a médium se prepara colocando roupas e adereços próprios: vestidos

extravagantes geralmente nas cores vermelho e preto, muitas miudezas como brincos,

colares e pulseiras e uma rosa vermelha nos cabelos. Apesar da amizade e fidelidade

dedicada aos seus clientes, a Pombagira causa medo e desconfiança, pois como entidade da

esquerda, não é confiável e pode muitas vezes demonstrar rancor. A cantiga a seguir

destaca suas características mais visíveis como a beleza, a feminilidade, e a desconfiança e,

119
apresenta uma correspondência entre a letra e a melodia: nos trechos onde a palavra

“girando” é cantada, o contorno melódico possui a forma de um semicírculo.

120
Assim como acontece com os Exus, a mesma regra se aplica às Pombagiras:

elas são singulares e plurais. No Centro Umbandista Rei de Bizara, são encontradas

algumas Escravas como: Pombagira Cigana, Pombagira do Oriente, Pombagira Maria

Padilha, Pombagira Sete Saias, Pombagira Maria Molambo. De acordo com Tia Preta,

todas estas Escravas trabalham para Iansã. Assim como acontece com os Escravos, não

podemos quantificar o número exato de Pombagiras, pois uma médium pode incorporar

mais de uma Escrava além de que existem vários médiuns que incorporam Maria Padilha.

Apesar do mesmo nome trata-se de Pombagiras diferentes, com histórias, características,

personalidades e pontos cantados diferentes. O ponto cantado abaixo pertence à Maria

Padilha89:

89
A melodia do ponto Ela é uma Padilha, não possui a nota si bemol, embora seja necessário a sua
indicação na armadura de clave. De acordo com a escrita adotada neste trabalho, o mi e o lá bemol, presentes
na melodia, devem estar representados na armadura seguindo a ordem dos acidentes, que neste caso é si, mi e
lá bemol.

121
Como acontece na Umbanda, de uma forma geral, neste centro o objetivo

dessas entidades é atingir a ascensão espiritual. Este é um princípio kardecista adotado pela

Umbanda, onde todos, sem exceção, têm condições de evoluir por meio da doutrinação. É

o que acontece também com os Escravos, que ficam sob a autoridade da mãe-de-santo.

Esta, por sua vez, aceita alguns comportamentos, mas proíbe os excessos. De acordo com

Negrão (1996a: 224), os pais-de-santo fazem um trabalho de doutrinação com estas

entidades, coibindo alguns comportamentos e impondo normas de conduta que vai de

acordo com a dinâmica do local de culto, como por exemplo a proibição aos Exus de falar

palavrão ou de agredir as pessoas. A mesma coisa acontece neste centro, onde Tia Preta

controla não só os Escravos, mas todas as entidades, inclusive o Caboclo Rei de Bizara

122
que, segundo a mãe-de-santo “era um Caboclo muito brabo, que tomava meio litro de

cachaça pelo ouvido.”

A doutrinação dos Escravos começa desde as primeiras cerimônias em que eles

participam e continua durante todo o período de permanência do médium no centro.

Segundo Tia Preta, a aprendizagem é adquirida com o tempo e exige muita paciência:

É a dona da casa que manobra eles como eu. Eu vou doutrinando eles.
(...) Eu tenho que pegar, doutrinar, ir devagarzinho... Ensinando como
faz, que não pode beber muito. Eu pego eles [os Escravos]: venha cá!
Não é assim! É assim e tal... Na gira eu fui no quarto de escravo duas
vezes pra chamar atenção do Escravo [na ocasião, a entidade estava
bebendo demais e levantava os braços em direção ao ventilador em
movimento, correndo o risco de machucar o médium]. Eu disse que eu
não queria que ele fizesse mais isso, porque aquilo não era bonito. Que
era pra trabalhar direitinho, com amor. Pra não atender ninguém com mal
criação. E aí eu começo a falar, falar... Quando é a primeira vez e quando
é lá pela sexta doutrina que eu dou neles, oxente! Ele baixa que você não
conhece o que era aquele! Tem gente que até duvida: É o mesmo
Escravo? É sim, é o mesmo!

Portanto, através da doutrinação é possível aos Exus e Pombagiras evoluírem

espiritualmente. Neste caso, “passam” para a categoria de Cigano e Cigana, considerados

os Guias de esquerda mais evoluídos. Porém, neste patamar, este é o maior grau de

evolução que se pode chegar, pois não é possível, por meio do desenvolvimento espiritual,

passar para o lado direito. De acordo com Montero (1985: 193), esta limitação se explica

por ser o lado esquerdo fundamental para o equilíbrio do universo religioso umbandista:

No entanto, ainda que teoricamente todas as entidades possam evoluir, a


lógica da ascensão espiritual não pode ser absoluta. E isso porque a
evolução espiritual de todas as entidades, sobretudo dos exus, suprimia a
hierarquia espiritual existente e, consequentemente, poria em risco a
ordem do universo. A existência do “mundo das trevas”, do mundo dos
exus e das pombagiras, é fundamental para a existência do “mundo das
luzes”. Se esses dois universos se opõem pela sua natureza, eles
permanecem intimamente ligados, uma vez que um existe em função do
outro: o Bem só o é na medida em que tem como meta combater o Mal;
este, por sua vez, só ganha sentido sendo a inversão de uma ordem
definida enquanto Bem.

123
Os Ciganos, da mesma forma que o Zé Pilintra, são entidades ambivalentes

que pertencem ao lado esquerdo e o direito. Nos centros onde são considerados entidades

da direita, eles pertencem à linha do oriente (Cf. p. 56) por se tratar de um povo de origem

indiana. Apesar de serem Escravas, as Ciganas não são mensageiras dos Orixás, por

fazerem parte de um povo que não pertence a nenhuma nação. Na Terra, sobreviviam

“lendo” a vida das pessoas na mão e jogando cartas. São mulheres alegres e vaidosas com

seu vestido longo e seu lenço na cabeça característico. Na Umbanda são muito procuradas

por serem boas conselheiras e amigas dos seus clientes conforme sugere o texto do ponto

cantado a seguir:

124
Porém, apesar da Cigana ser considerada uma Escrava mais evoluída que a

Pombagira, ela continua sendo uma entidade da esquerda, que não é digna de confiança,

como adverte o texto do ponto cantado abaixo:

125
126
Com a exceção da habilidade de prever o futuro, os Ciganos possuem as

mesmas características da sua versão feminina. No Centro Umbandista Rei de Bizara , o

Cigano Mariano sempre está presente nas festas exigindo o seu ponto cantado90:

90
A palavra Aruanda presente no texto deste ponto cantado indica a ambivalência desta entidade,
pois, como já mencionamos anteriormente, Aruanda é o local onde moram os Orixás e as entidades da direita
(Cf. Cacciatore, 1988: 53).

127
O trabalho dos Escravos não está restrito as suas presenças nos rituais e no

atendimento ao público. Cabe a eles também o exercício de um ritual muito comum na

prática Umbandista: o trabalho de limpeza que consiste em afastar os Eguns, e/ou

desmanchar os seus feitiços. Na Umbanda, os Eguns são espíritos de pessoas já falecidas

que muitas vezes acompanham os vivos, causando inúmeros obstáculos na vida deles. No

Kardecismo os Eguns são conhecidos como “espíritos obsessores”. Segundo Cacciatore

(1988: 108), os Eguns também são encontrados no Candomblé em algumas cerimônias,

porém só existe uma modalidade voltada exclusivamente para os Eguns, chamado

Candomblé de Egungun localizado na Ilha de Itaparica – Bahia. Tia Preta declara que os

Escravos são fundamentais para o afastamento “desses espíritos”, protegendo os médiuns,

seus clientes e o próprio centro.

Eles [os Escravos] não deixam moleque [Egum] encostar na gente.


Porque tem muito Egum, você sabe o que é Egum, não sabe? É espírito
de morto que vem te perturbar. Então quando tem um Escravo que
defende a gente, ele afasta tudo isso.

Acreditamos que, por habitarem no mundo das trevas, os Escravos e os Eguns

“falam a mesma língua” podendo estabelecer um diálogo, uma aptidão que não está ao

alcance dos Orixás e das demais entidades da direita. Além disso, os Exus ajudam no

desenvolvimento espiritual dos Eguns que, quando submetidos à doutrina, deixam de ser

“perturbados” para se tornarem espíritos de luz, passando até a fazer parte do centro

Umbandista. No depoimento abaixo, Tia Preta nos revela um caso de doutrinação de um

Egum que acompanhava a vida de uma mulher:

Teve um [Egum] que foi assim. Ele veio aqui e disse: quero lhe falar!
Quando eu fui ver era um perturbado. Então levei ele lá pra baixo [o
segundo subsolo, andar reservado aos Escravos]. Derrubou aquelas
bebidas todas do quarto de escravo sem ninguém encostar lá, derramou
tudo, acabou tudo. Meu Deus do Céu!
P –E a senhora ficou com medo?
Não, lá dentro [quarto de escravo] não tenho medo de nada. Porque seu
Tomba Morro ta ali. Aí eu chamei seu Tomba Morro. Seu Tomba Morro

128
toma conta desse homem [Egum] que eu não agüento não. Pode deixar
comigo. Ele [Egum] disse que queria comer. Aí eu fiz assim, peguei um
camarão seco, sempre tenho um camarão seco em casa, com cachaça,
com azeite de dendê, aquela farofa e dei a ele pra comer e ele comeu. Ele
comeu parecendo que era um pedaço de doce que ele tava comendo. Eu
levei oito dias doutrinando este homem. Você não me via aqui em cima.
Era lá em baixo direto. Até peguei um colchão e botei no chão pra durmir
lá. E hoje é um espírito de luz, deixou de perturbar a moça.

No Centro, este trabalho de doutrinação também é feito em conjunto, formado

pela mãe-de-santo, os médiuns e seus respectivos Escravos. Neste ritual são entoados

pontos cantados específicos, como por exemplo a cantiga abaixo que indica o momento em

que o Egum chega no lugar achando que vai controlar tudo e de repente ele é dominado

(amarrado):

129
O ponto Santo Antônio amarra o nego apresenta semelhanças melódicas,

rítmicas e no texto com outra cantiga presente no Ilê Axé Dele Omi (Cf. Garcia, 1996:

136). Em vista disso, na transcrição acima destacamos o intervalo de 4ª justa e 3ª maior (no

final do primeiro compasso e o início do segundo) e o posicionamento das colcheias no

início das frases. Em relação ao acompanhamento instrumental, as cantigas apresentam o

toque Congo e o mesmo ritmo no agogô, mas a execução do atabaque é diferente. Estas

semelhanças indicam mais um exemplo da existência de uma relação musical entre a

Umbanda praticada no Centro Umbandista Rei de Bizara e o Candomblé de Caboclo.

A delimitação do espaço físico deste centro e as atividades nele desenvolvidas

indicam uma separação bem definida entre os lados direito e esquerdo. Esta separação se

estende a todos os objetos utilizados no centro, inclusive os atabaques e o agogô. Os

instrumentos musicais utilizados no andar de cima não são os mesmos tocados nas

cerimônias realizadas no andar de baixo. Segundo a mãe-de-santo, esta distinção é imposta

pelas entidades que determinam que os dois lados não se misturam:

Aqui no centro é tudo separado. Até as panelas do Escravo é lá em baixo.


As panelas da comida dos Orixás é aqui em cima. É tudo separado, até os
garfos que você come é separado.(...) Por exemplo, se eu pegar uma
galinha e colocar numa panela aqui em cima eles chegam [as entidades] e
dizem: não! É lá em baixo.

130
Por fim, conhecer o espaço físico e outras particularidades do Centro

Umbandista Rei de Bizara nos faz acreditar de que neste local as entidades da direita e da

esquerda são cultuados como se houvesse duas atividades religiosas independentes que se

integram, mas que não se misturam. O destaque dado aos Escravos merece a nossa

atenção, pois o verdadeiro papel destas entidades vai além do que representa o lado

esquerdo e demoníaco do mundo espiritual umbandista.

131
4. A Gira de Escravos

4.1. A festa dos Exus e Pombagiras

A Gira de Escravos é uma festa em homenagem às entidades da esquerda que

acontece todo o primeiro sábado de cada mês91 no Centro Umbandista Rei de Bizara. Este

tipo de ritual voltado exclusivamente aos Exus e Pombagiras não é uma prática comum nos

centros umbandistas. Dentro do universo da Umbanda, de uma forma geral, estas entidades

somente estão presentes em cerimônias fechadas, geralmente nos trabalhos de “limpeza”

(afastamento dos Eguns). A natureza controvertida dos Exus e Pombagiras fazem com que

eles sejam evitados em muitos locais de culto, especialmente nos centros de Umbanda de

Mesa Branca. Desta forma, os rituais com as características da Gira de Escravos não é uma

prática comum. Na literatura sobre o assunto não encontramos nenhum registro de centros

91
Conforme mencionamos no terceiro capítulo, nos meses de janeiro, março e novembro o centro
não realiza festas. Neste período acontecem apenas as Sessões de Desenvolvimento aos sábados e as Sessões
de Consultas e Passes nas quartas-feiras).
que realizam este tipo de cerimônia com a regularidade apresentada no Centro Umbandista

Rei de Bizara, embora estes tipos de rituais estejam presentes em alguns centros. Negrão

(1996a) em seus estudos sobre a Umbanda em São Paulo aponta alguns centros que

realizam anualmente suas homenagens aos Exus e Pombagiras. No Centro Umbandista Rei

de Bizara o conceito de que “sem Exu não existe Umbanda” se confirma no texto do

seguinte ponto cantado transcrito abaixo:

133
De acordo com Tia Preta, a Gira de Escravos é uma exigência do Escravo Tomba

Morro. “Seu Tomba Morro me disse pra fazer uma matança pra ele todo primeiro sábado

de cada mês.” A matança que a mãe-de-santo se refere é o sacrifício de galos e galinhas a

fim de preparar a comida deste Escravo. O Xinxim que é oferecido a todos os presentes no

final da festa. Isto comprova que cada centro umbandista é um mundo particular, no

sentido que não está hierarquicamente sujeito nem a uma autoridade maior e centralizadora

nem a regras comuns. Sob o comando de um pai ou mãe-de-santo, que detém a autoridade

moral e espiritual sobre sua casa e sua família-de-santo, acima só se reconhece a própria

autoridade das divindades. Com isso, cada centro possui suas características próprias, vez

que os pais ou mães são os responsáveis pela criação de novos detalhes, de acordo com a

vontade das divindades, havendo, porém, uma estrutura básica comum a todas e uma certa

uniformidade nas crenças e nas práticas rituais. Há, portanto, um limite na variação do que

é aceitável.

Manuel Querino (1938: 184) considera o Xinxim92 um prato puramente

africano que chegou à Bahia trazido pelos negros. Atualmente o Xinxim faz parte da

92
No livro Costumes Africanos no Brasil, Manuel Querino (1938: 184) descreve o modo de preparo
do Xinxim:

134
cultura baiana, tornando-se um item importante e típico da culinária local e também uma

referência diante da diversidade dos pratos que compõem a culinária brasileira. No centro,

a preparação do Xinxim de Tomba Morro obedece a um ritual. Na madrugada do dia da

festa (por volta das 4 horas da manhã), Tia Preta, com a ajuda de alguns médiuns, sacrifica

aproximadamente 28 galos e galinhas onde algumas partes são oferecidas ao Escravo,

conforme a explicação abaixo:

Tudo dele é separado. O dele é a asa, tudo que tem dentro [os órgãos
internos], as pernas, a gargantinha, o peito. Separado tudo, faço o
tempero direitinho e boto lá nos pés dele [no quarto de escravos].

As outras partes são destinadas para o Xinxim que será oferecido ao público

presente na gira. Na carne são acrescentados outros ingredientes: os temperos (sal, alho,

cebola), azeite de dendê, camarão seco, amendoim e castanhas de caju moídos. Durante a

preparação da comida a mãe-de-santo reza, faz pedidos e canta para o Escravo Tomba

Morro. Os pontos neste contexto são cantados sem o acompanhamento instrumental. Este é

um dos pontos cantados pela mãe-de-santo durante este ritual93:

Morta a gallinha, depenna-se, lava-se bem, depois de retirados os intestinos e corta-se


em pequenos pedaços. Deitam-se na vasilha ou panella para cozinhar com sal, alho e
cebola ralados. Logo que a gallinha estiver cozida, addicionam-se camarões seccos em
quantidade, sal, se fôr preciso, cebola, sementes ou pevides de abóbora ou melancia,
tudo ralado na pedra, e o azeite de dendê.
93
Este ponto foi gravado em uma das entrevistas realizadas com Tia Preta.

135
Esta prática de oferecer comida para o público no término da festa é uma

influência direta do Candomblé. Não nos referimos somente ao ato de ofertar o público,

mas a todo um conjunto de significados que está por trás disto. A comida é associada à

entidade homenageada, por isso o seu preparo obedece a um ritual, geralmente secreto,

feito seguindo regras previamente estabelecidas94. Todos os detalhes são importantes,

desde a escolha dos ingredientes até o modo de preparo, onde tudo deve estar de acordo

com o desejo do homenageado.

No centro, o Xinxim servido na Gira de Escravos, pode ser feito com a carne

das aves sacrificadas ou com o bofe bovino95. Geralmente, por uma questão financeira,

existe um revezamento: num mês o Xinxim é feito com as aves e no outro com bofe (sendo

esta a mais barata e viável, pois suas peças podem ser compradas não sendo necessária a

matança). Porém, existem ocasiões especiais onde a comida deve ser feita com as aves,

como explica Tia Preta:

Tem um sábado agora que eu fiz o bofe. No próximo sábado que vai ter
giro eu tenho que fazer a matança de galo porque é o giro de Ogum.
Ogum é que também manobra a casa, é que nos ajuda muito. E também
tem a questão financeira.

94
No Candomblé, a matança é um ritual secreto com acesso apenas das pessoas iniciadas. Os
participantes geralmente devem seguir algumas regras para participar como não ter relações sexuais na
véspera do ritual, tomar banho com ervas para a purificação do corpo, entre outros. Os animais também
passam por alguns procedimentos antes de serem sacrificados. Dependendo da divindade que será
homenageada, os animais sacrificados podem ser galos, bodes, entre outros e assim como na Gira de
Escravos, uma parte do sacrifício é ofertada às entidades e a outra parte é destinada para o preparo da comida
que será servida no final da cerimônia. No Candomblé, a música acompanha todo ritual da matança, no qual
as cantigas são acompanhadas pelo trio de atabaques e o gã (Cf. Garcia, 1996: 57-60).
95
Caracteriza-se geralmente por alguns órgãos internos do boi como o pulmão, coração, fígado, etc.

136
Na afirmação acima, a mãe-de-santo se refere ao primeiro sábado do mês de

junho, época em que Ogum é homenageado. Como já mencionamos anteriormente, este

Orixá possui uma forte ligação com os Escravos, por isso a matança para a Gira de

Escravos do mês de junho também é dedicada a ele.

A Gira de Escravos tem um caráter especial em outros dois momentos

importantes do Centro Umbandista Rei de Bizara: o Sábado de Aleluia e o período da

“Obrigação”. A gira realizada no Sábado de Aleluia, véspera da Páscoa, marca a volta das

atividades do centro depois da Quaresma, período em que o local não funciona e nenhum

ritual é realizado em sinal de respeito à Paixão de Jesus. A Gira de Escravos realizado no

Sábado de Aleluia é especialmente animada, a confraternização entre os presentes é feita

de forma mais intensa e os Escravos manifestados convidam o público a compartilhar da

alegria da festa. O mesmo ambiente de confraternização, especialmente entre os médiuns, é

encontrado na gira realizada no período de “Obrigação”. O texto do ponto cantado abaixo

se refere ao caráter alegre dos Exus e Pombagiras e ao ambiente de “festa” encontrado na

Gira de Escravos:

137
Além do Xinxim, antes da festa é preciso preparar e decorar o espaço sagrado.

Alguns médiuns, muitas vezes acompanhados de algumas pessoas da assistência, se

encarregam desta função, no qual o salão é enfeitado com balões vermelhos e pretos,

combinação de cores que representam os Exus e Pombagiras. A realização de uma Gira de

Escravos envolve o empenho da mãe-de-santo e dos médiuns presentes para que todas as

tarefas sejam realizadas desde a preparação da comida e a decoração do salão até a

recepção do público e o bom andamento do ritual.

Apesar da natureza dos Escravos estar ligada à noite e às madrugadas, a Gira

de Escravos, assim como todos os rituais públicos deste centro são realizados no período

da tarde, geralmente das 15:00 até as 18:00 horas. Ao ser questionada a respeito do horário

das festas, Tia Preta esclarece:

Porque eu não bato de noite [referindo-se aos atabaques]. Eu só bato de


tarde. Porque eu moro num lugar que tem muita gente de um lado pro
outro. Não incomodo ninguém, na hora certa acabou, ninguém mexe
comigo. Apesar de que eu tenho licença da afro-brasileiro mas mesmo
assim. Eu não quero abusar, quero andar na linha. Ninguém me
incomoda.

138
Esta preocupação da mãe-de-santo tem fundamento. O bairro de Brotas é

altamente populoso, particularmente na área de localização do centro. Trata-se de uma rua

densamente povoada, com muitas habitações e um intenso movimento de pedestres. No

centro, o som dos atabaques se faz presente somente nos rituais realizados no período da

tarde.

Horas antes do início da Gira de Escravos, os médiuns chegam ao centro e

imediatamente entram no quarto de santo para saudar as entidades da direita representadas

no altar. Em seguida, se dirigem aos dois quartos localizados no segundo subsolo (um para

os homens e o outro para as mulheres) e trocam de roupa para a cerimônia. Geralmente os

homens vestem calça e camisa ou camisetas brancas e as mulheres vestem a indumentária

típica da baiana96, porém, nesta festa os trajes das mulheres são simplificados: blusa, bata

ou camiseta branca com uma saia longa e rodada com anágua, sem o turbante que envolve

a cabeça.

O público chega aos poucos e imediatamente são recepcionados pelos médiuns

presentes. Antes de se dirigir ao local da festa, o público espera ser chamado no lugar

reservado à assistência localizado no salão do primeiro subsolo. Momentos antes do início

da festa, a mãe-de-santo se dirige ao salão e reúne todos os médiuns. Enquanto isso, a

curimbeira toca o atabaque para “esquentar” o seu couro, assim preparando-o para a festa e

96
De acordo com Câmara Cascudo (2000: 125-126) é uma indumentária tradicional da negra e
mestiça baiana. Segundo o autor, este traje possui a seguinte composição:
uma saia muito rodada, de várias cores combinadas, medindo geralmente cerca de 2 a 4
metros de roda de bainha, usada bufante e armada por uma anágua, ou saia de baixo,
muito engomada; uma bata, isto é, blusa branca comprida e solta (...) usualmente
enfeitada de renda larga, às vezes usada muito frouxa no pescoço e deixada escorregar
de um dos ombros; um pano da Costa, isto é, um comprido manto de algodão listrado,
às vezes atado sobre um dos ombros e preso debaixo do braço oposto (...); um torso ou
turbante de algodão ou seda , atado à volta da cabeça; simples chinelas sem presilhas, de
saltos baixos; muitos colares de coral, búzios ou contas de vidro, às vezes tendo
corrente de metal, usualmente prata; brincos de turqueza, coral, prata ou ouro, e muitos
braceletes de búzios, ferro, cobre ou outro metal.

139
um médium (geralmente uma mulher) faz o ritual da defumação, incensando todas as

pessoas entre médiuns e freqüentadores. Conforme já mencionamos anteriormente, a

defumação é um item obrigatório no culto umbandista e neste centro ele está presente em

todos os rituais com o objetivo de preparar o local e as pessoas retirando as energias

negativas. Nas festas das entidades da direita, a defumação é acompanhada por pontos

cantados específicos, e na Gira de Escravos este ritual é realizado sem acompanhamento

musical e todas as pessoas presentes são incensadas pela frente e pelas costas.

Após a defumação, o público é convidado a se dirigir ao local da festa e todos

se acomodam no espaço reservado à assistência. Os médiuns se posicionam de pé no

centro do salão formando duas fileiras paralelas sob a observação da mãe-de-santo que

permanece sentada ao lado dos médiuns, como podemos visualizar na figura a seguir:

Centro Umbandista Rei de Bizara (segundo subsolo97):

97
No segundo subsolo, o quarto de escravo guarda algumas imagens de Exus e Pombagiras
(representações de figuras masculinas e femininas de “forma diabólica”, com chifres, rabo e portando
tridentes) e as oferendas das entidades e as bebidas alcoólicas que são servidas nas festas. O quarto 1 é um

140
A Gira de Escravos se inicia quando a porta do quarto de escravo é aberta e a

mãe-de-santo se dirige a ele pedindo licença às entidades pronunciando Agô Babá98. A

médium puxa o ponto Agradeço (Cf. transcrição p. 97) e em seguida outros pontos de

abertura são cantados. Enquanto o público canta, todos os médiuns, um a um, entram no

quarto de escravo para saudar as imagens dos Exus e Pombagiras. Os médiuns se retiram

do cômodo (um de cada vez) andando de costas, para não ficar de costas para as imagens, e

muitos deles já saem com seus Escravos manifestados.

Neste momento da festa muitos pontos de chamada são cantados e apenas os

Exus são incorporados, acontecendo sempre durante a execução das cantigas. Nos

cômodo para a troca de roupa das mulheres (médiuns) e neste espaço se encontra um armário para a
acomodação das roupas das médiuns e as cadeiras para a assistência são guardadas neste cômodo. O quarto 2
é um cômodo para a troca de roupa dos homens (médiuns). A cozinha onde é preparado o Xinxim fica no
terceiro subsolo e o acesso pode ser visto na parte de cima da figura.
98
De acordo com Fonseca Júnior (1995), Agô Babá são dois termos de origem iorubá. Agô significa
“pedir licença” e Babá se refere ao “pai ou ancestral”. Conforme já dito anteriormente, na Umbanda, Babá
também é uma das denominações dadas ao pai ou mãe-de-santo (Cf. p. 45).

141
intervalos entre um ponto cantado e outro, os Exus se apresentam, um de cada vez,

cumprimentando todos os presentes dizendo Boa Noite três vezes e o público responde três

vezes com a mesma frase. Após esse diálogo o Exu se identifica falando o seu nome e o

atabaque e agogô rufam imediatamente reproduzindo os aplausos do público.

A apresentação das entidades sempre acontece na frente do atabaque e do

agogô, demonstrando a importância dos instrumentos musicais neste centro umbandista.

Como já mencionamos, de acordo com os membros do culto, os instrumentos fazem a

ligação entre os homens e as entidades, no qual o som destes instrumentos chega até a

morada das entidades convocando-os para vir ao centro. Na visão da mãe-de-santo, os

instrumentos musicais são considerados como membros do culto e não apenas como

objetos, por isso eles devem ser respeitados e saudados pelas entidades e, nas festas da

direita, pelos médiuns:

Porque eles [os Exus e Pombagiras] têm que cumprimentar o atabaque


como se fosse uma pessoa. Os orixás também. O atabaque tem muito
valor. Os atabaques não é brincadeira, os Orixás vêm por causa do
atabaque. Os filhos de santo também têm que saudar os atabaques. Isso
acontece nas festas da direita. (...) Nós temos um respeito enorme com o
atabaque e com o agogô.

Após cumprimentar os instrumentos e o público, as entidades pedem a benção

para a dona da casa, a mãe-de-santo, ajoelhando-se na sua frente e beijando sua mão.

Como já afirmamos, todas as entidades, inclusive os Escravos, respeitam a mãe-de-santo e

a reconhecem como autoridade máxima do centro. Feitas as apresentações, os Escravos

cumprimentam os médiuns e o público, um de cada vez, a seu modo. Uns abraçam, outros

entrelaçam seus braços com os braços das pessoas, outros fazem o sinal da cruz, outros

seguram os ombros das pessoas e dão baforadas com o cigarro ou charuto. Cada Escravo

possui uma personalidade própria que pode ser observada por estes e outros gestos que os

142
diferenciam um do outro. Durante a festa, os Escravos se concentram no centro do salão,

onde bebem cachaça e fumam cigarros e charutos.

Na Umbanda, o fumo e o consumo das bebidas alcoólicas possuem muitos

significados. Na Gira de Escravos, caracterizam-se como elementos que fazem parte dos

comportamentos relacionados à personalidade dos Exus e das Pombagiras. Para os

umbandistas, a bebida também é utilizada no intuito de manter o médium “dormindo”

enquanto a entidade estiver manifestada. De acordo com a visão êmica, os médiuns não se

embriagam quando as entidades manifestadas bebem. No momento em que deixam o corpo

dos médiuns, as entidades carregam os vestígios da bebida. Na Gira de Escravos,

geralmente o primeiro contato pessoal entre as entidades e o público se dá pelo

compartilhamento da bebida. A fumaça dos cigarros e dos charutos também é utilizada no

momento do passe, onde os Escravos lançam longas baforadas em direção ao corpo

daqueles que estão sendo atendidos. No depoimento abaixo, Tia Preta fala sobre as

“preferências” do Escravo Tomba Morro:

Ele gosta de cantar, gosta de uma cachaçazinha aí do interior, destilada.


Ele é fora de série. Ele não gosta de cerveja. Eu não posso beber, mas ele
pede [quando está manifestado] e não me deixa nada graças a Deus.

Na Gira de Escravos, a dança é um elemento que acompanha os cantos e as

palmas. Os médiuns, posicionados em duas fileiras paralelas (Cf. figura p. 141), dançam

sem sair do lugar, reproduzindo movimentos que, de uma forma geral, acompanham os

textos das cantigas. Este é o caso dos pontos cantados Santo Antônio amarra o nego, Santo

Antônio pequenino e Ela é bonita (Cf. transcrições respectivamente nas pp. 129, 106 e

120). No ponto Santo Antônio amarra o nego, os médiuns e a assistência cantam

movimentando os braços e as mãos num o gesto imitando o ato de “amarrar”. No ponto

Santo Antônio pequenino, quando a palavra “rodea” é entoada, os médiuns giram com o

143
objetivo de chamar as entidades. E no ponto Ela é bonita, o texto, em alguns trechos,

estimula o giro das médiuns que recebem as Pombagiras. Na Gira de Escravos, a dança

também está relacionada às características individuais dos Escravos, onde cada entidade,

quando manifestada, realiza uma “coreografia” própria como, por exemplo, o ato de

levantar a taça ou o copo de bebida e a movimentação pelo salão feita de um lado para o

outro. Além disso, a dança também pode assumir uma função exclusivamente lúdica, como

é o caso do Samba de Roda, assunto que abordaremos no decorrer deste capítulo.

No Centro Umbandista Rei de Bizara, os Exus se manifestam tanto nos

homens quanto nas mulheres. Quando incorporados por eles, os médiuns, de uma forma

geral, ficam com o corpo levemente curvado para frente, com os braços encostados nas

costas e as mãos em forma de garras. A expressão facial muda completamente, se torna

tensa, com a testa franzida e a voz fica rouca, até mesmo quando a entidade se manifesta

numa mulher. A médium quando está manifestada por um Exu, imediatamente solta os

cabelos, quando estão amarrados, e retira todos os objetos que podem indicar sua

feminilidade como brincos e pulseiras. Neste momento da incorporação, tanto as mulheres

quanto os homens, são auxiliados pelo cambono ou por outro médium não manifestado que

esteja mais próximo. Eles protegem seus colegas evitando que se machuquem com os

momentos bruscos da incorporação, além de cuidar de alguns objetos como óculos,

prendedores de cabelos, entre outros.

Na Gira de Escravos, na medida em que os Exus vão chegando, eles vão sendo

homenageados através do canto dos seus pontos cantados individuais ou sendo citados nos

pontos coletivos como, por exemplo, a cantiga transcrita abaixo. Nela, a expressão Mojubá

nos acha atenção pelos seus diferentes significados. Cacciatore (1988: 175) nos diz que

este é o nome dado ao Exu na língua iorubá, no qual “mojú” significa viver à noite e “ba”

144
significa armar emboscadas. Para Vogel (2001), Mojubá é uma “louvação endereçada aos

ancestrais ilustres, forças da natureza e aos próprios òrìsà, durante os ofícios litúrgicos”.

145
Depois da chegada e da apresentação dos Exus, é aberto um espaço da gira

para a chegada das Pombagiras. Neste momento, são puxados pontos de chamada das

Pombagiras como a cantiga transcrita abaixo99:

Enquanto este e outros pontos de chamada são cantados, algumas médiuns se

dirigem ao outro quarto para colocar a roupa que caracterizam as Escravas que incorporam,

especialmente aquelas que recebem Ciganas. As roupas brancas dão lugar aos vestidos de

festa vermelhos, rosas de mesma cor nos cabelos, maquiagem (sombras, batom), pulseiras,

colares e brincos dourados. Durante a pesquisa, aconteceu apenas uma vez o fato de um

homem incorporar uma Pombagira, na ocasião a Pombagira Sete Saias.


99
Durante a execução deste ponto cantado, as Pombagiras que freqüentam esta festa são citadas,
uma de cada vez, na medida em que a cantiga é repetida.

146
As Escravas, quando chegam na gira, realizam o mesmo procedimento dos

Exus: saúdam os instrumentos musicais, o público, pedem a benção para a mãe-de-santo e

cumprimentam individualmente os médiuns e o público. As Pombagiras com o seu jeito

alegre e desinibido de ser, acabam contribuindo para a animação da festa. Elas andam com

a postura ereta, exibindo sua sensualidade, tomam champanhe em taças, fumam cigarros e

soltam suas gargalhadas que se destacam no ambiente. Da mesma forma como acontece

com os Exus, as Pombagiras também são homenageadas com seus pontos cantados

individuais e coletivos. Apesar da proporção equilibrada entre médiuns homens e mulheres

no Centro Umbandista Rei de Bizara, o número de Pombagiras que “descem” na Gira de

Escravos é menor do que o número de Exus. Muitas médiuns “recebem” Exus ao invés de

Pombagiras e, é pouco comum os médiuns homens receberem esta entidade feminina, fato

que, durante o trabalho de campo, aconteceu apenas uma única vez como já mencionamos.

As características individuais dos Escravos se destacam também no momento

do atendimento ao público. Cada entidade possui seu jeito próprio de cumprimentar e

responder aos questionamentos das pessoas. Alguns são falantes, outros dizem apenas o

necessário, uns dão conselhos e outros recomendam a realização de algumas tarefas como

acender velas de determinadas cores nas igrejas ou fazer orações para o anjo da guarda.

Todos os Escravos compartilham suas experiências e a sua bebida, fazendo as pessoas

beberem no mesmo copo. Na Gira de Escravos a relação entre o público e as entidades

acontece de forma muito próxima. A confiança depositada nos Exus e nas Pombagiras faz

com que as pessoas compartilhem com eles seus segredos, angústias e aspirações. Entre os

freqüentadores desta festa, há um pensamento de que os Escravos são entidades com quem

se pode contar em qualquer situação. De uma forma geral, as Pombagiras são mais

procuradas para a solução de problemas amorosos e os Exus para as questões financeiras.

Foi observado que muitos freqüentadores presenteiam os Escravos com flores,

147
especialmente as Pombagiras, como forma de agradecimento pelos pedidos alcançados.

Também foi observado que alguns Exus e Pombagiras possuem mais popularidade, sendo

mais procurados pela assistência.

Os Escravos incorporados nos médiuns que participam pela primeira vez da

Gira de Escravos ou aqueles que possuem pouco tempo no centro são orientados a apenas

cumprimentar as pessoas e não prestar o atendimento, pois precisam de mais tempo no

centro para aprender a doutrina umbandista e as regras do centro. Quando são vistos

Escravos “novos” na gira, os mais velhos costumam apontar para a necessidade da

doutrinação, puxando o seguinte ponto de sotaque:

A Gira de Escravos chega ao seu ponto culminante quando muitos Exus e

Pombagiras estão incorporados havendo uma intensa atividade em todos os sentidos: no

148
atendimento ao público, na participação de todos cantando os pontos, na quantidade de

bebida, de cigarros e charutos consumidos. Observamos que, algumas cantigas fazem

referência a este momento da festa, como o ponto de sotaque transcrito abaixo:

A Gira de Escravos é um evento único que não se repete. Embora exista uma

estrutura fixa que se reproduz em todas as edições da festa, ela pode variar muito nos

detalhes, a depender dos médiuns presentes e dos Escravos que eles trazem, do

conhecimento dos pontos cantados pelos médiuns e curimbeiras e da participação do

público.

Algumas características como a forma de atender ao público e a alegria fazem

com que alguns Escravos sejam especialmente festejados pelo público quando

comparecem à festa, como é o caso de Zé Pilintra do Morro do Livramento, os Ciganos

(Pombagira Cigana e Cigano Mariano) e o Tomba Morro. Este último, com o seu caráter

festivo puxa seus pontos de sotaque e brinda com o público. Sua autoridade como um dos

mentores espirituais do centro é reconhecida no momento da sua chegada, quando o

público pede sua proteção cantando o ponto cantado abaixo. Esta cantiga apresenta, no 5º,

6º e 8º compassos, notas pontuadas que coincidem com o ritmo do agogô:

149
A presença do Tomba Morro na Gira de Escravos acontece geralmente antes

do fim da festa. É este momento que a assistência é servida pelo cambono, que sai de

dentro do quarto de escravo carregando bandejas com copos cheios de vinho. Antes das

seis horas da tarde, as curimbeiras começam o ritual de encerramento puxando o único

ponto de subida cantado na festa, que se prolonga até a saída de todos os Escravos:

150
Muitas vezes o canto é interrompido pelas mensagens que alguns Escravos

fazem questão de anunciar em voz alta, dirigindo-se a todos os presentes. São mensagens

de fé, otimismo e de agradecimento pela oportunidade de estarem presentes na festa.

Enquanto uns mandam mensagens, outros simplesmente se despedem acenando ou falando

algumas frases como: “Que o Pai Oxalá esteja sempre com vocês!” “Que a paz esteja com

todos vocês!”

Após a saída de todos os Escravos, os médiuns e o público, em pé e de mãos

dadas, rezam um Pai-Nosso que é dedicado a todas as pessoas presentes e as que estão

ausentes da festa. Em seguida, todos cantam o Hino da Umbanda e a Gira de Escravos é

encerrada. Vale a pena lembrar que o canto na primeira parte deste hino exige um

posicionamento especifico: a pessoa deve estar de pé, com a postura ereta e com a mão

151
direita encostada no peito na altura do coração, em sinal de respeito e reverência a Oxalá.

Como já mencionamos anteriormente, no Hino da Umbanda, o acompanhamento

instrumental e as palmas só acontecem a partir da segunda parte do hino (Cf. transcrição p.

51).

Após a o encerramento da gira, o Ximxim é servido e a confraternização toma

conta do ambiente. Nesse momento, os presentes costumam comentar a festa, apontando

detalhes que mais chamaram atenção na gira. É comum encontrar pessoas que assistiram a

festa pela primeira vez e também praticantes assíduos, que participam de todas as

atividades públicas do centro. A confraternização também acontece entre os médiuns, que

trabalham num sistema de revezamento para que todos sejam servidos: uns preparam as

bandejas com os pratos e os copos, os outros servem as pessoas e os demais permanecem

na cozinha lavando e secando as louças.

4.2. O acompanhamento instrumental

Todos os pontos cantados executados na Gira de Escravos são acompanhados

por apenas três toques: Congo, Barravento e Samba. Estes toques obedecem a uma

estrutura rítmica que se organiza em ciclos formados por um número de pulsos fixos que se

repetem variadas vezes. Os instrumentos tocam frases rítmicas distintas que, quando

executadas em conjunto, se complementam.

A execução instrumental que se faz presente no Centro Umbandista Rei de

Bizara é diretamente influenciado pelo acompanhamento instrumental encontrado no

152
Candomblé. Porém, a execução acontece de forma distinta, começando pela quantidade

instrumentos que, na Gira de Escravos, se reduz a apenas um atabaque e um agogô. No

Candomblé, o conjunto é ampliado para três atabaques e um agogô, além do que é comum

encontrar instrumentos complementares como o caxixi, o adjá, entre outros (Cf. Garcia,

2001a: 71-85 e 1996: 81-85; Lühning, 1990: 115 e Vatin, 2001: 9).

Em se tratando da execução instrumental, alguns conceitos são encontrados na

literatura para explicar as estruturas rítmicas envolvidas. Time span é a denominação de

Nketia (1974: 126) para a duração do tempo total onde dentro dele se relacionam os

padrões rítmicos executados pelos instrumentos. No nosso caso, temos a duração de 16

pulsos para os toques Congo e Samba e 12 pulsos para o toque Barravento. O agogô é o

instrumento que executa a linha guia, um padrão rítmico regular que é repetido como um

ostinato. Designado como time line por Nketia (1974: 131), o ritmo do agogô serve de

referência para a execução do atabaque. A curimbeira do centro responsável pelo atabaque,

afirma que o agogô é um ponto de referência para a execução do atabaque, principalmente

para aquele que ainda não tem o domínio do instrumento. Ainda segundo ela, os que já

sabem tocar o ritmo o fazem sem precisar se guiar pelo Gã. Continuando, a curimbeira

explica as diferenças na execução instrumental no Candomblé e na Umbanda:

O Gã é quem dá a voz do instrumento. Vai se guiar pelo Gã. No


Candomblé, o Gã entra e depois entra o Rumpi, depois o Contrarrum e
depois o Rum. Cada um toca um toque diferente. Mas na Umbanda não é
assim não. Na Umbanda é tudo o mesmo ritmo100.

O trecho acima aponta que, na Umbanda, há uma “simplificação” na execução

dos atabaques. Esta “simplificação” representa uma diferença significativa entre a

execução instrumental da Umbanda e do Candomblé, devido a ausência da polirritmia

instrumental, especialmente entre os tambores. Todos os atabaques utilizados nos rituais do

100
Depoimento dado pela curimeira durante um encontro realizado em 05/05/2006. Neste encontro,
nos foi passado uma noção geral dos toques para que fosse realizada a transcrição dos mesmos.

153
Centro Umbandista Rei de Bizara (rum e rumpi nas festas da direita e o rum na Gira de

Escravos) executam a mesma frase rítmica. Desta forma, na execução instrumental de cada

toque, existem apenas dois padrões rítmicos diferentes que se complementam: a linha guia

do agogô e o padrão rítmico executado pelo atabaque.

O agogô, nestes toques, é tocado nas duas campânulas produzindo dois sons

distintos (um som grave na campânula maior e no menor mais agudo), acentuando o ritmo

deste instrumento. No Candomblé de Caboclo, o Gã é tocado somente em uma das

campânulas (Cf. Garcia, 2001a: 85). No entanto, no contexto da Gira de Escravos, é

comum a utilização de apenas uma campânula (geralmente a maior) em algumas cantigas.

Sob o ponto de vista êmico, esta variação no toque do agogô está relacionado com o estilo

e as preferências sonoras do executante que, neste caso, acredita que o ponto fica “mais

bonito” com o som de apenas uma campânula.

Na Gira de Escravos também foi observado uma maneira individualizada na

execução do atabaque. No centro, os atabaques são tocados exclusivamente com as mãos

no centro e na borda dos instrumentos, fornecendo alternativas de improvisação para os

executantes. O toque com as mãos é uma influência direta do Candomblé Angola, pois esta

é uma característica que a distingue das demais nações desta religião que utilizam os

aguidavis (baquetas) junto com o toque das mãos para executar os atabaques

(especialmente a nação queto).

Embora existam alguns pontos de “improvisação” ou variação na execução dos

dois instrumentos, existe um padrão que é ensinado e aqui este está sendo utilizado na

transcrição dos toques. A realização da transcrição só foi possível com as orientações da

curimbeira que nos ensinou as frases rítmicas do atabaque e as linhas guias do gã. Além da

transcrição, esta prática nos propiciou o contato direto com a visão êmica de alguns

154
aspectos como o processo de aprendizagem musical, do papel dos executantes e a sua

relação com a música, o ato de tocar, entre outros.

O Congo e o Barravento são toques oriundos do Candomblé Angola (Cf. Vatin,

2001: 12). Mas, no centro, os padrões rítmicos desses toques são executados

diferentemente do Candomblé.

De acordo com Cacciatore (1988: 92), Congo é uma região da África, próximo

à Angola, no qual atravessa um grande rio de mesmo nome. Congo também se refere ao

reino (Kongo), ao país africano (República Democrática do Congo), ao povo bakongo, á

língua banta quicongo e à nação de Candomblé. Este toque é baseado num ciclo de 16

pulsações e o ritmo da linha guia do gã é a mesma encontrada no Candomblé de Caboclo e

Angola (Cf. Garcia, 2001a: 86 e 1996: 101). Dentro do ciclo, o agogô apresenta cinco

batidas e o atabaque 12 batidas:

Congo

Barravento, segundo Cacciatore (1988: 64), é o nome dado ao estado que

antecede o transe. No centro, este toque possui o padrão rítmico de 12 pulsos que

acompanha os pontos cantados de 16 pulsações (Cf. transcrições dos pontos Pintinho,

Risada e Xô Tomba Morro respectivamente nas pp. 165, 138 e 193). Esta combinação de

pulsos gera o efeito de hemiola.

155
Barravento

O Samba possui um ciclo de 16 pulsações. Dentro do ciclo, o agogô apresenta

nove batidas e o atabaque 13 batidas. A linha guia do agogô é a mesma encontrada no

toque de mesmo nome no Candomblé de Caboclo (este usando somente uma campânula do

instrumento) e o atabaque é distinto. No Candomblé, este toque acompanha

exclusivamente os Sambas de Caboclo, cantigas trazidas por estas entidades e também

aquelas provenientes do Samba de Roda (Cf. Garcia, 2001a: 128 e 1996: 103). Da mesma

forma, os dois temas de Samba de Roda encontrados na Gira de Escravos ( O Moinho da

Bahia e Piaba) também são acompanhados pelo toque Samba.

Samba

Além do padrão rítmico descrito acima, na pesquisa de campo constatamos

que, neste toque, o agogô pode também executar a seguinte linha guia:

156
De acordo com as gravações, esta linha guia do agogô acompanha os seguintes

pontos cantados: A mulher de Itaparica, Ela é uma Padilha, Ele já chegou, Eu queria

saber e Mulher de pouca roupa (Cf. faixas do CD e transcrições respectivamente nas pp.

170, 122, 101, 124 e 169 ).

O andamento dos pontos cantados pode variar dependendo do solista. Durante

a execução das cantigas é bastante freqüente a aceleração gradativa do tempo depois da

entrada do coro e do acompanhamento instrumental e principalmente no final da música.

Diferente do que acontece na Umbanda, no Candomblé o andamento das cantigas não

apresenta variação, onde a mesma pulsação deve ser mantida do início ao fim da execução

musical. Considerando a média da pulsação dos pontos cantados e a base de semínima, os

andamentos das cantigas acompanhadas pelos toques Congo e Samba variam entre q = 88 e

120, e o toque Barravento, geralmente mais rápido, entre q = 96 e 138.

Na Gira de Escravos, com a exceção do ponto Venha cá meu velho que não

possui acompanhamento instrumental, a distribuição dos toques nos pontos cantados

acontece da seguinte forma: dos 38 pontos que possuem acompanhamento instrumental,

três são acompanhados pelo Barravento, 15 são acompanhados pelo Congo e 20 são

acompanhados pelo Samba.

157
Toques Pontos Cantados

Pintinho
BARRAVENTO Risada
Xô Tomba Morro
Abre a porteira Exu
Agradeço
Capa
Cigana
Encruzilhada já lhe chama
Exu Caveira
Exu da meia noite
CONGO
Exu Veludo
Hino da Umbanda
Mariano
Morador
O sino da igrejinha
Porteira
Santo Antônio amarre o nego
Tomba Morro da encruzilhada
Abrindo a boca
A mulher de Itaparica
Beiramar
Doce é
Ela é bonita
Ela é uma Padilha
Ele já chegou
Eu queria saber
Eu te avisei
SAMBA Exu de duas cabeças
Exu Laroê Exu
Labareda
Massapê
Mulher de pouca roupa
Panela sem fundo
Pombagira que tá que tá
Santo Antônio pequenino
O Moinho da Bahia
O Zé
Zé Pilintra.

Há portanto, uma incidência maior de pontos cantados acompanhados pelo

toque Samba no repertório executado na Gira de Escravos. Talvez este fato possa ser

interpretado como um indício da relação ritmo brasileiro/religião brasileira. O Samba

também é um toque mais presente no culto ao Caboclo: Garcia (1996: 106) aponta que no

Candomblé de Caboclo este toque é “possivelmente seu aspecto mais brasileiro”, pois,

158
como vimos anteriormente, neste culto o Samba acompanha exclusivamente as cantigas

dos Caboclos considerados entidades brasileiras “os donos da terra”. No Centro

Umbandista Rei de Bizara, este toque está presente em outras cerimônias, portanto,

acompanha não apenas pontos cantados de Exus e Pombagiras. Aliás, os três toques

(Congo, Barravento e Samba) acompanham todos os pontos cantados deste centro. Em

apenas uma ocasião, na Festa em homenagem a todos os Orixás, o Ijexá (padrão de 16

pulsos) se fez presente acompanhando um ponto cantado para Oxum. A respeito deste

toque, a curimbeira responsável pelo atabaque nos informou que raramente ele se faz

presente no centro. O Ijexá também é executado no Candomblé de Caboclo (Cf. Garcia,

2001a: 90 e 1996: 103) e a linha guia do agogô é a mesma executada no Centro

Umbandista Rei de Bizara, inclusive na utilização das duas campânulas. No entanto, os

ritmos executados pelos atabaques são distintos. Continuando, Garcia (1996: 111) afirma

que, no Candomblé, o Ijexá “geralmente é um ritmo para a dança, e foi levado para fora do

culto através dos grupos de afoxés que o introduziram no Carnaval, tendo conquistado ali

um lugar considerável na música popular baiana.” No centro, o Ijexá é executado da

seguinte forma:

Ijexá

Garcia (2001a: 75) analisando o conjunto de atabaques no Candomblé de

Caboclo aponta para a possibilidade dos tambores funcionarem também como

159
instrumentos melódicos. No nosso caso, a aprendizagem e a observação do atabaque

durante a pesquisa, nos chamou atenção para a proposta descrita abaixo:

De uma forma geral, os tambores podem ser instrumentos melódicos


tanto quanto os instrumentos melódicos podem ser tocados
percussivamente. A altura do tambor pode não ser clara, em parte, pela
percentagem de ruído. Contudo, a forma do ressoador pode reduzir essa
percentagem de sorte que se possam alcançar alturas determinadas. As
técnicas de construção dos tambores, a escolha de diferentes formas, os
tipos e medidas das membranas, as formas de encouramento e as técnicas
de tocar - o uso da mão em concha, a palma, palma e dedos ou a base da
palma em diferentes posições sobre o tambor – são fatores importantes
para definir o timbre, a altura e a afinação dos tambores.

Continuando (2001a: 75), a autora nos mostra a forma como os tambores são

abordados na literatura etnomusicológica:

O assunto parece ainda não ter despertado a atenção de etnomusicólogos.


De uma forma geral, na literatura etnomusicológica, membranofones e
idiofones – excluindo os tipos metalofones, xilofones e litofones – são
classificados como instrumentos de alturas indeterminadas não sendo
especificadas as suas possibilidades de alturas determinadas, embora, na
mesma literatura, sejam encontrados inúmeros exemplos de conjuntos em
que estes instrumentos são afinados.

Nketia (1974: 87-89) em seu The Music of Africa, aponta que a altura é um

elemento importante que influência na construção, na forma, no tamanho, na técnica (o uso

das mãos e baquetas) e na performance dos tambores. Além disso, o autor destaca que os

tambores, quanto tocados em conjunto, são geralmente organizados e posicionados de

acordo com o som e a altura que produzem.

No caso da Umbanda, particularmente na Gira de Escravos, é levado em conta

a “afinação” do atabaque. A preocupação com a sonoridade do instrumento pode ser

percebida durante a festa, onde a curimbeira constantemente ajusta o atabaque nos

intervalos entre os pontos cantados. Com o auxílio de uma chave, as tarraxas do

instrumento são reguladas apertando ou soltando o couro até se obter o som desejado.

160
Outra preocupação da executante está em “esquentar o couro”, pois se acredita que o som

fica “mais bonito”.

Durante o processo de aprendizagem dos toques, a curimbeira freqüentemente

repetia as fórmulas rítmicas verbalizando sílabas onomatopaicas que reproduziam a altura

e o ritmo que desejava nos ensinar. Neste período percebemos diferentes alturas apenas no

toque de mão no centro e na borda do atabaque. Neste instrumento, as possibilidades

sonoras se ampliam na medida em que diferentes posições de mão são utilizadas como a

forma de concha, o toque com a palma e com as pontas dos dedos. Sem dúvida, existe um

conceito musical101 por trás desta prática sonora, embora seja difícil de ser verbalizada

pelas curimbeiras e que necessitaria de mais tempo de pesquisa para ser descrita e

explicada.

Em se tratando do lugar de entrada dos instrumentos na execução dos pontos

cantados, isto acontece na maioria das vezes depois da introdução da cantiga pelo puxador.

De acordo com as curimbeiras, a entrada ocorre desta forma porque o ritmo das palavras

cantadas pelo solista determina o toque que acompanha o ponto, por isso, se faz necessário

ouvir o trecho para depois entrar com o acompanhamento. Neste caso, necessitaríamos de

mais tempo de pesquisa para apontar uma relação entre o ritmo do texto e o toque. No

entanto, o ponto Capa (Cf. transcrição p. 150) apresenta uma correspondência entre os

ritmos da melodia com os rítmos da linha guia do agogô. Em uma ocasião, perguntamos à

curimbeira sobre o que acontece quando um ponto é acompanhado por um toque diferente

do “ideal”, e ela nos respondeu que, com o toque errado, o ponto não “fica bonito” e nem

atinge o seu objetivo. Em seguida, fizemos uma demonstração onde cantamos um ponto

acompanhado por um toque não apropriado e o resultado foi um desequilíbrio entre o canto

e os instrumentos de tal forma que não foi possível executar a cantiga integralmente. Em

101
Conceito musical se refere a uma sistemática musical implícita.

161
vista disso, o princípio de que o ritmo das palavras determina o toque do ponto cantado

aponta para a existência de uma relação entre toque e ritmo da melodia, mesmo ela não

sendo verbalizada pelos membros do culto, que necessita ser verificada.

A Umbanda não possui uma teoria escrita sobre sua música, mas isto não quer

dizer que ela não exista. De acordo com Nettl (1998: 171-180), um dos caminhos para

entender o conceito musical sistematizado de uma determinada sociedade é investigar o

“pensamento musical” e o “pensamento sobre música” de uma cultura, isto é, como as

pessoas pensam a sua música ou quais as suas idéias sobre a música que fazem. Para o

autor (Cf. 1998: 172), estes dois conceitos se relacionam com a estrutura musical, o

comportamento musical e os valores centrais da cultura. Para Nettl (1998: 179), “as formas

como uma sociedade pensa sobre o conceito de música, sobre música na cultura, sobre os

músicos, pode determinar muito sobre a forma em que os músicos dessa sociedade pensam

sua música” (tradução pessoal)102.

4.3. A classificação dos pontos cantados

Na Umbanda, a música é um componente importante dentro de um sistema

onde estão presentes as representações simbólicas, as divindades, os conceitos, os

comportamentos, o papel dos praticantes (povo-de-santo e assistência), os rituais, entre

outros. No Centro Umbandista Rei de Bizara os pontos cantados estão presentes em quase

102
“the ways in which a society thinks about the concept of music, about music in culture, about
musicians, may determine much about the way in which the musicians of that society think their music”.

162
todos os rituais, são cantados em português e podem ou não ser acompanhadas por

instrumentos.

O número de pontos cantados que compõem o repertório dos Escravos do

Centro Umbandista Rei de Bizara é extenso e praticamente impossível de ser quantificado.

Considerando que os pontos cantados são trazidos e ensinados pelas próprias entidades, o

número de cantigas tende a aumentar, pois neste centro há sempre um movimento contínuo

de ingresso de novos médiuns e, consequentemente de novos Escravos. Além disso, na

Gira de Escravos freqüentemente aparecem novos pontos cantados, tendo em vista que os

puxadores conhecem um grande número de cantigas e, durante a cerimônia, os Exus e

Pombagiras podem puxar suas próprias cantigas.

Na Gira de Escravos, este repertório musical acompanha o encaminhamento da

cerimônia, portanto, classificamos os pontos cantados de acordo com a função103 que

exercem neste ritual. Com exceção dos pontos individuais e coletivos dos Exus e

Pombagiras, para esta classificação adotamos a terminologia adotada pelos umbandistas

em geral. Desta forma temos:

Pontos de abertura – São cânticos que abrem a sessão saudando os Exus e

Pombagiras que serão homenageados. Estes pontos preparam as pessoas para o ritual, por

isso a médium104 que puxa estas cantigas deve estimular a participação do público. A

abertura muitas vezes determina a energia da festa: se os pontos são cantados com

animação, este entusiasmo vai permanecer no decorrer da cerimônia. Na cantiga a seguir a

palavra Laroiê (no canto se pronuncia Laroê), se refere a uma saudação ao Exu na língua

iorubá (Cf. Cacciatore 1988: 159) e um termo do Candomblé que aqui foi adotado pela

103
Neste caso, a palavra “função” não se refere ao mesmo termo usado por Merriam (1964: 210-
227) para distingüi-lo do conceito de “uso”. Aqui tratamos “função” como o papel da música no ritual, no
sentido do momento em que o ponto é cantado.
104
Conforme mencionamos no capítulo anterior, o Centro Umbandista Rei de Bizara possui uma
médium encarregada de puxar os pontos cantados para manter a ordem e o bom desenvolvimento dos rituais.

163
Umbanda. Esta saudação acompanha uma melodia curta que se repete numa espécie de

ostinato:

Pontos de chamada – São puxados pela médium com o objetivo de atrair as

entidades, convidando-as para a festa. O ponto cantado abaixo é utilizado para “chamar” o

Exu Pintinho mas, no contexto da Gira de Escravos, é utilizado também para atrair os

demais Escravos:

164
Pontos individuais dos Exus e Pombagiras – São cantigas de caráter individual,

no qual cada entidade possui o seu ponto cantado que retrata sua personalidade,

comportamento, história e suas características. Estes componentes encontram-se

estampados nos diversos elementos das cantigas como o texto, a melodia, o ritmo, entre

outros. Na gira, as próprias entidades puxam as suas cantigas para se identificar, mas

algumas vezes os membros do centro (médiuns e curimbeiras) cantam estes pontos para

homenagear os Escravos no momento que eles chegam à festa. O ponto a seguir retrata Exu

Labareda que, como o seu nome já denota, possui uma forte energia facilmente comparada

ao calor do fogo. Seu caráter forte e agitado está estampado nesta cantiga de andamento

rápido com notas curtas e no ritmo do samba. Nas giras, mesmo quando o Exu Labareda

não está presente, este ponto costuma ser puxado no ponto alto da festa, quando muitos

Escravos estão festejando num ambiente de forte interação com o público. Neste sentido,

165
dependendo do contexto, o ponto cantado abaixo105 pode ser utilizado para diferentes

finalidades.

Pontos coletivos dos Exus e Pombagiras – São cantigas que fazem referência a

todos os Exus e Pombagiras. Geralmente os Escravos podem ser citados nominalmente nos

textos ou mencionados indiretamente através de palavras-chaves que indicam alguns

aspectos gerais como a sua morada (encruzilhadas, cemitérios, ruas) e/ou o seu horário de

atuação (noite, madrugada). Na transcrição abaixo, o Escravo Tomba Morro é mencionado

do início ao fim da cantiga, fato que pode ocorrer com os demais Exus. Porém,

dependendo do momento da gira, outras cantigas podem homenagear vários Escravos

105
A melodia do ponto Labareda não possui as notas fá e sol sustenidos, embora sejam necessárias
as suas indicações na armadura de clave. De acordo com a escrita adotada neste trabalho, as notas dó, ré e lá
sustenidos, presentes na melodia, devem estar representados na armadura seguindo a ordem dos acidentes,
que neste caso é fá, dó, sol, ré e lá sustenidos.

166
dentro de uma mesma execução, onde a quantidade de entidades citadas vai depender da

duração do ponto e dos Escravos que estão manifestados. Partindo das 39 cantigas

coletadas, encontramos esta característica nos seguintes pontos cantados: Abre a porteira

Exu, Exu da meia noite, O sino da igrejinha, Porteira, e Santo Antônio Pequenino (Cf.

transcrições respectivamente nas pp. 146, 133, 114, 145 e 106). Em todos os casos ocorrem

pequenas variações melódicas, rítmicas e de acentuação para que o nome da entidade possa

ser adaptado ao ritmo da melodia.

Pontos de sotaque – São pontos puxados exclusivamente pelos Escravos já

manifestados com o intuito de chamar a atenção do público para que possam ouvir suas

críticas e/ou mensagens. São cantigas altamente dependentes do contexto, no qual as

entidades “puxam os sotaques” para mandar uma mensagem relacionada a algo que os

chama atenção, desagradando-os ou não. Do mesmo modo como acontece no Candomblé

de Caboclo (Cf. Garcia, 2004: 1-14; 2001a: 131 e 1996: 126), no Centro Umbandista Rei

de Bizara acredita-se que estas cantigas são puxadas na hora, mas no período desta

pesquisa constatamos esse acontecimento somente uma vez. Zé Pilintra do Morro do

Livramento, um Escravo muito popular entre os freqüentadores deste centro, percebendo

uma forte participação do público que respondia animadamente aos seus pontos, mandou

167
um sotaque carinhoso aos presentes antes de se despedir. A partir de então não ouvimos

mais esta cantiga em nenhuma outra ocasião. Conversando com a Tia Preta e com outros

membros do centro sobre este “sotaque”, eles afirmaram não conhecer esta cantiga nem se

lembraram de a terem ouvido em outra ocasião:

Com exceção deste caso registrado, verificamos que o “sotaque” faz parte do

repertório da Gira de Escravos e desta forma o mesmo um ponto se faz presente em várias

edições da festa. Contudo, como já afirmamos, são cantigas altamente dependentes do

contexto e por isso não tem um momento exato de serem cantadas durante a festa.

Observando os pontos de sotaque e o contexto em que eles aparecem, acreditamos que,

nestas cantigas, a atenção está mais voltada para o texto. Merriam (1964: 193) afirma que,

em algumas situações, a canção (música e texto) dá a liberdade de expressar pensamentos,

idéias e conteúdos que não podem ser manifestados de outra forma. Na Gira de Escravos,

os pontos de sotaque têm esta função e também representam um veículo para as entidades

atingirem outros objetivos como disciplinar o comportamento do público (incluindo os

médiuns e os próprios Exus e Pombagiras), fazer pedidos ou simplesmente chamar a

atenção.

168
Tomba Morro quando está presente na gira e vê que alguém está infringindo as

regras do local, costuma cantar dois pontos de sotaque. O primeiro ponto transcrito abaixo

chama a atenção das mulheres que estão vestidas com a roupa decotada (vestimenta não

aceita pelas normas de conduta do centro – Cf. anexo p. 218). O segundo ponto chama a

atenção das pessoas e principalmente dos Exus novatos que estão bebendo demais (bebida

alcoólica). Este é um comportamento particularmente não aceito por Tomba Morro e pela

Tia Preta. As duas cantigas, Mulher de pouca roupa e A mulher de Itaparica106,

apresentam semelhanças melódicas (destaque para as notas repetidas e o contorno

melódico) e são acompanhados pelo mesmo toque Samba:

106
A melodia do ponto Mulher de pouca roupa não possui a nota mi bemol, embora seja necessário
a sua indicação na armadura de clave. De acordo com a escrita adotada neste trabalho, as notas si, lá e ré
bemóis, presentes na melodia, devem estar representados na armadura seguindo a ordem dos acidentes, que
neste caso é si, mi, lá e ré bemóis. O mesmo acontece com o ponto A mulher de Itaparica, que não possui o
dó sustenido. A sua indicação na armadura de clave se justifica pelas notas fá e sol sustenidos presentes na
melodia.

169
Zé Pilintra do Morro do Livramento é um Exu muito extrovertido e se sente

muito à vontade na Gira de Escravos. Quando chega, gosta de tomar conta do ambiente, se

tornando assim o centro das atenções. Este é um dos pontos de sotaque entoado por ele

para chamar a atenção do público:

170
Na Gira de Escravos, verificamos que os pontos de sotaque coletados são

puxados pelos Exus, com exceção do ponto Panela sem fundo que é entoado pela médium

encarregada pelas cantigas no momento em que há uma intensa atividade dos Escravos e

do público na festa (Cf. transcrição p. 149). No período desta pesquisa não encontramos

nenhum ponto de sotaque das Ciganas e Pombagiras. Dentro dos pontos cantados

coletados, verificamos que o repertório específico das Pombagiras e Ciganas é menor em

relação àqueles que se referem aos Escravos. Dos 39 pontos coletados, cinco cantigas se

referem especificamente às Pombagiras/Ciganas: Cigana, Ela é uma Padilha, Ela é bonita,

Eu queria saber e Pombagira que tá que tá (Cf. transcrições respectivamente nas pp. 126,

122, 120, 124 e 100). São 22 cantigas que se referem especificamente aos Escravos:

Agradeço, Beiramar, Capa, Ele já chegou, Eu te avisei, Exu Caveira, Exu da meia noite,

Exu de Duas Cabeças, Exu Laroê Exu, Exu Veludo, Labareda, Mariano, Morador, O sino

da igrejinha, Ô Zé, Pintinho, Porteira, Santo Antônio Pequenino, Tomba Morro da

Encruzilhada, Venha cá meu Velho, Xô Tomba Morro e Zé Pilintra (Cf. transcrições

respectivamente nas pp. 97, 111, 150, 101, 115, 113, 133, 64, 164, 112, 166, 127, 110, 114,

116, 165, 145, 106, 167, 136, 193 e 118). E três cantigas se referem, ao mesmo tempo, aos

lados masculino e feminino: Abre a porteira Exu, Encruzilhada já lhe chama, e Risada

(Cf. transcrições respectivamente nas pp. 146, 151 e 138). As demais cantigas são os

pontos de sotaque (Cf. quadro p. 176), o Hino da Umbanda, o tema de Samba de Roda O

171
Moinho da Bahia e o ponto Santo Antônio amarra o nego (Cf, transcrições

respectivamente nas pp. 51, 174 e 129) utilizado nas Sessões de Limpeza e Doutrinação

dos Eguns e também se faz presente na Gira de Escravos.

Como vimos anteriormente, o sotaque não se encontra somente na Umbanda

cultuada no Centro Umbandista Rei de Bizara. Está presente no Candomblé de Caboclo

(Cf. Garcia; 2004: 9-17; 2001a: 131-133; 1996: 77) e em diversos contextos não religiosos

como a música e a poesia praticada pelos Repentistas. Esta manifestação que conhecemos

como Cantoria, se baseia na música improvisada onde, da mesma forma como acontece

com os Exus, a criação e a realização musical acontecem simultaneamente. Outra

similaridade entre a Cantoria e o Ponto de Sotaque é a dependência do contexto onde é

primordial a interação entre os intérpretes e os ouvintes (Cf. Travassos, 1989: 115-116).

Pontos de subida – Na Gira de Escravos só uma cantiga determina a retirada

das divindades da festa: o ponto Encruzilhada já lhe chama (Cf. transcrição p. 151). Nesta

cantiga, a letra faz referência à despedida e ao retorno à morada. No momento em que é

entoado, os Escravos se despedem do público, muitas vezes transmitindo mensagens de

otimismo: “que o Pai Oxalá esteja sempre com vocês!”, ou simplesmente acenando com as

mãos, cabeça, olhos...

Pontos de encerramento – O Hino da Umbanda (Cf. transcrição p. 51) é o

ponto de encerramento de todos os rituais realizados no Centro Umbandista Rei de Bizara,

inclusive a Gira de Escravos.

Na Gira de Escravos, além destas categorias de pontos cantados, são entoadas

cantigas emprestadas do Samba de Roda. Este é outro sinal de adaptação da Umbanda ao

contexto ao qual está inserida, se utilizando, aqui, de um gênero (música/dança)

tipicamente baiano. Surgido no Recôncavo Baiano, o Samba de Roda é uma manifestação

que possui passos (dança) e formas melódicas próprias. O conjunto musical geralmente é

172
formado pelo “pandeiro, atabaque, berimbau, viola e chocalho, acompanhado por canto e

palmas, e está associado a datas festivas do Candomblé” (Cf. UNESCO, 1995). A dança é

realizada numa roda onde o solista canta e dança no meio da roda e o coro o acompanha

com palmas. A partir de um determinado momento da música, o solista convida outro

componente da roda para tomar o seu lugar através da umbigada107 e assim sucessivamente

permanecendo durante horas. Alguns autores afirmam que o Samba de Roda faz parte da

origem do samba carioca (Cf. Câmara Cascudo, 2000: 799; Cantarino, 2006: 9 e

Napolitano e Wasserman, 2000: 173108). No ano de 2005, mais precisamente no dia 25 de

novembro, a UNESCO109 (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e

Cultura) declarou o Samba de Roda como Patrimônio da Humanidade na Categoria de

Expressões Orais e Imateriais110

Na Gira de Escravos o Samba de Roda tem a finalidade lúdica, de entreter o

público (freqüentadores e médiuns) e os Escravos manifestados. Quando este tipo de

cantiga é entoada, os médiuns e as entidades cantam e dançam da mesma forma em que o

Samba de Roda é encontrado no seu contexto original, e o público acompanha cantando e

batendo palmas. Aqui, o Samba de Roda não é um item obrigatório, sendo assim, pode se

fazer presente ou não nas festas. Durante a pesquisa, observamos em algumas Giras de

107
Câmara Cascudo (2000: 891- 893) define a umbigada como uma “pancada com o umbigo nas
danças de roda, como um convite intimatório para substituir o dançarino solista [bater com a barriga na
barriga do outro da roda]. Continuando, o autor afirma que a umbigada chegou ao Brasil trazido pelos negros
bantos.
108
Há um consenso entre os autores de que a raiz do samba carioca está no Samba de Roda que foi
levado para o Rio de Janeiro pelos baianos, entre eles destaca-se Tia Ciata, uma mãe-de-santo que organizava
reuniões com sambistas em sua casa. O Samba “Pelo Telefone” do compositor Ernesto dos Santos (Donga) é
considerado a primeira música do gênero impressa e gravada (fato ocorrido em 1916).
109
UNESCO é a sigla de United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
110
Esta informação pode ser localizada no sítio <http://www.unesco.org.br/noticias/ultimas/sambade
roda/noticias_view>.

173
Escravos a execução de dois temas do Samba de Roda (O Moinho da Bahia e Piaba111)

cantados em seqüência:

111
Durante uma conversa informal, o médium responsável pela compilação do conteúdo ministrado
no centro nos informou que, neste samba, Piaba se refere ao solista que está no centro da roda. Neste sentido,
o trecho da letra que diz: Sai, sai, sai, oh Piaba/ Saia da lagoa, significa que o solista deve sair do centro da
roda para dar lugar à outra pessoa. Além da Gira de Escravos, este samba pode ser ouvido na cerimônia da
Ibejada (Cosme e Damião), uma festa do Centro Umbandista Rei de Bizara dedicada às entidades das
Crianças.

174
De acordo com Vianna (2006), O Moinho da Bahia é um tema tradicional de

Samba de Roda. O médium responsável pela compilação do conteúdo ministrado no centro

nos informou, em uma conversa informal, que este tema foi criado a partir de um incêndio

que aconteceu num Engenho de Farinha chamado Moinho da Bahia, localizado no Bairro

de Água de Meninos em Salvador. Este tema é utilizado em outros contextos, inclusive na

Música Popular Brasileira (MPB). A versão do médium, de certa forma, se confirma numa

canção gravada por Gilberto Gil, em 1966, chamada Água de Meninos. Nesta música, o

texto conta as particularidades do bairro (o porto e a feira) e a localização do engenho.

Além disso, o que nos chama atenção nesta canção é o refrão que apresenta, salvo algumas

modificações, o tema O Moinho da Bahia cantado na Gira de Escravos. Comparando o

refrão abaixo com o tema presente na gira, constatamos semelhanças no texto, na melodia

e no ritmo. Quanto ao texto, o refrão abaixo difere ao acrescentar a frase abre a roda pra

sambar. Na melodia, até a metade do segundo compasso, encontramos as mesmas relações

intervalares (3ªmenor e 4ª justa) e no ritmo, os dois exemplos apresentam o compasso

quaternário e semelhanças no posicionamento das colcheias e semicolcheias:

175
A utilização de músicas da tradição oral pela música popular é um fato comum.

Neste caso a mesma cantiga é compartilhada e adaptada para ser utilizada em diferentes

contextos: o Samba de Roda, a Umbanda (contexto religioso) e a MPB.

Garcia (2001a: 127), aponta a presença do Samba de Roda também no

Candomblé de Caboclo. Neste caso ele está presente numa categoria que abriga uma série

de cantigas de Caboclo chamadas de Samba de Caboclo e possuem as seguintes

características:

São em geral melodias curtas, rápidas, com o andamento sendo acelerado


gradativamente, de acordo com o movimento dos Caboclos. O repertório
de sambas cantados no Candomblé de Caboclo inclui tanto sambas que
são trazidos pelos Caboclos, cantigas que são adquiridas de forma
sobrenatural (...) quanto cantigas que são aprendidas dos sambas de roda.

Incluímos o Samba de Roda nas categorias dos pontos cantados por estar

presente na Gira de Escravos. Acreditamos que esta presença pode ser interpretada como

uma comprovação musical de que a Umbanda é sincrética e que busca adaptar-se ao

contexto local. Da mesma forma, Teixeira Jr. (2004: 433-444) aponta uma adaptação

musical da religião cultuada no Rio de Janeiro, no qual há semelhanças entre os pontos

cantados da Umbanda local com o samba carioca.

A seguir, apresentamos uma tabela com a classificação de todos os pontos de

Exus e Pombagiras coletados durante o trabalho de campo, relacionando-os com os toques.

176
Esta classificação foi estabelecida a partir do contexto do ritual em que estas cantigas

foram executadas:

Categorias Pontos Cantados Toques

Agradeço Congo
Pontos de abertura Exu Laroê Exu Samba
O sino da igrejinha Congo
Abre a porteira Exu Congo
Ele já chegou Samba
Pontos de chamada Exu da meia noite Congo
Pintinho Barravento
Santo Antônio pequenino Samba
Beiramar Samba
Capa Congo
Cigana Congo
Ela é uma Padilha Samba
Eu queria saber Samba
Eu te avisei Samba
Pontos individuais de Exus Exu Caveira Congo
e Pombagiras Exu Veludo Congo
Labareda Samba
Mariano Congo
Morador Congo
Ô Zé Samba
Venha cá meu velho -
Zé Pilintra Samba
Ela é bonita Samba
Exu de Duas Cabeças Samba
Pombagira que tá que tá Samba
Pontos coletivos de Exus Porteira Congo
e Pombagiras Risada Barravento
Santo Antônio amarra o nego Congo
Tomba Morro da encruzilhada Congo
Xô Tomba Morro Barravento
Abrindo a boca Samba
A mulher de Itaparica Samba
Pontos de Sotaque Doce é Samba
Massapê Samba
Mulher de pouca roupa Samba
Panela sem fundo Samba
Pontos de Subida Encruzilhada já lhe chama Congo
Pontos de Encerramento Hino da Umbanda Congo
Samba de Roda O Moinho da Bahia Samba

Em relação à distribuição dos toques dentro da classificação dos pontos

cantados destacamos um equilíbrio entre os toques Congo e Samba nas categorias em que

177
eles aparecem juntos. O toque Congo acompanha cantigas “chaves” do encaminhamento

da Gira de Escravos como o ponto Agradeço (Cf. transcrição p. 97) que abre a cerimônia,

o ponto de subida Encruzilhada já lhe chama (Cf. transcrição p. 151) e o Hino da

Umbanda (Cf. transcrição p. 51) que encerra não só a gira, mas todos os rituais realizados

no Centro Umbandista Rei de Bizara. E, por fim, destacamos que o toque Samba

acompanha todos os pontos de sotaque e os Samba de Roda.

4.4. Os textos: alguns significados

Como mencionado, este trabalho busca compreender a música dos Exus e

Pombagiras no contexto da Gira de Escravos. Trata-se de um ritual que faz parte de uma

religião brasileira, que envolve entidades brasileiras e, como não poderia deixar de ser, os

pontos são cantados em português. Acreditamos que a apreciação dos textos das cantigas é

um dos caminhos para o entendimento desta música e das entidades envolvidas. Os textos

abordam os mais variados assuntos, como a história das entidades, a descrição de suas

características, e os papéis exercidos dentro da Umbanda. Muitas vezes, as mensagens

contidas nos textos contêm informações que não são possíveis de se obter em outro

contexto. Neste sentido, acreditamos que a música não está sendo esquecida quando

analisamos a letra de um ponto cantado, pois o texto é parte integrante da música. De

acordo Merriam (1964: 187):

178
Textos, naturalmente, são comportamento lingüístico mais do que sons
musicais, mas eles são uma parte integrante da música e há claro indício
de que a linguagem usada em conexão com a música difere da do
discurso usual (tradução pessoal)112.

No caso dos pontos cantados dedicados exclusivamente às entidades da

esquerda, Nascimento; Souza e Trindade (2001: 107-113) analisaram 221 letras de pontos

cantados de Exus e Pombagiras e, baseados na análise do texto, estabeleceram oito

categorias de cantigas. Analisando estas categorias, encontramos uma estreita relação com

os textos entoados na Gira de Escravos. Em vista disso, resolvemos exemplificar as

categorias apontadas por Nascimento; Souza e Trindade (2001: 109) com as cantigas que

compõem este trabalho, com exceção do Hino da Umbanda e O Moinho da Bahia por não

estarem relacionados diretamente aos Escravos. Abaixo, estão as oito categorias apontadas

pelos autores e a relação com os pontos cantados coletados na Gira de Escravos:

Descritivos de poder/ funções atribuídas: pontos que indicam as funções das

entidades ou os poderes que possuem. Exemplo: Abre a porteira Exu, Eu queria saber,

Exu da meia noite, Mariano, O sino da Igrejinha e Porteira (Cf. transcrições

respectivamente nas pp. 146, 124, 133, 127, 114 e 145).

Caracterização: pontos que mostram a imagem e a aparência física das

entidades através da indicação do vestuário ou instrumentos que os caracterizam. Exemplo:

Ela é bonita (Cf. transcrição p. 120).

Identificação/saudação: pontos onde o foco principal está na apresentação da

entidade. Exemplo: Beiramar, Exu Caveira, Exu Laroê Exu, Labareda e Pombagira que tá

que tá (Cf. transcrições respectivamente nas pp. 111, 113, 164, 166 e 100).

112
“Texts, of course, are language behavior rather than music sound, but they are an integral part of
music and there is clear-cut evidence that the language used in connection with music differs from that of
ordinary discourse.”

179
Relação hierárquica: pontos onde são citadas outras entidades (Orixás/Santos

Católicos) associadas ao Exu indicando, de certa forma, uma relação diferencial de poder

ou hierarquia. Exemplo: Ela é uma Padilha, Exu de Duas Cabeças, O sino da igrejinha,

Santo Antônio Pequenino e Santo Antônio amarra o nego (Cf. transcrições

respectivamente nas pp. 122, 64, 114, 106 e 129).

Personalidade: pontos que indicam o modo de ser das entidades. Exemplo:

Cigana, Exu de Duas Cabeças, Risada e Zé Pilintra (Cf. transcrições respectivamente nas

pp. 126, 64, 138 e 118).

Proteção: pontos que revelam o caráter protetor das entidades: Exemplo: Capa,

e Venha cá meu velho (Cf. transcrições respectivamente nas pp. 150 e 136).

Advertência: pontos que advertem quanto aos poderes das entidades sem

especificá-los. Exemplo: Eu te avisei, Exu Veludo e Tomba Morro da encruzilhada (Cf.

transcrições respectivamente nas pp. 115, 112 e 167).

Morada: nesta categoria, os autores consideraram somente as moradas

específicas das entidades e não os lugares de permanência das entidades (ruas, cemitérios,

encruzilhadas, esquinas, entre outros) exceto se estiverem acompanhados pelo verbo morar

ou seus equivalentes, conforme o exemplo dado por eles (Cf. 2001: 109):

Pomba-Gira, aê, aê
Pomba-Gira é de Maceió
Aonde mora Pomba-Gira
Ela mora no Maceió.

Durante a pesquisa não encontramos pontos com estas características. Na Gira

de Escravos, grande parte das cantigas fazem referência aos lugares de permanência das

entidades que, por sua vez, não deixam de ter a conotação de morada, como nos pontos

cantados: Ele já chegou, Encruzilhada já lhe chama, Morador, Ô Zé e Tomba Morro da

encruzilhada (Cf. transcrições respectivamente nas pp. 101, 151, 110, 116 e 167).

180
Alguns pontos que compõem o repertório da Gira de Escravos poderiam

exemplificar mais de uma das categorias citadas. Exu de Duas Cabeças poderia se

enquadrar tanto na categoria de relação hierárquica quanto a de personalidade. O sino da

igrejinha poderia exemplificar os descritivos de poder e relação hierárquica e, Tomba

Morro da encruzilhada poderia ser classificado tanto na categoria de advertência quanto de

morada.

Os textos dos pontos Agradeço, Pintinho e Xô Tomba Morro não se enquadram

em nenhuma das categorias acima. O texto do primeiro ponto (Cf. transcrição p. 97) é um

agradecimento às entidades e os pontos Pintinho e Xô Tomba Morro, junto com os pontos

de sotaque são exemplos de cantigas em que somente os textos não são suficientes para

identificá-los, pois são cantigas altamente dependentes do contexto. Conforme já

mencionamos anteriormente, os pontos de sotaque são puxados pelas entidades com o

propósito de chamar a atenção do público para que possam ouvir suas mensagens e/ou

críticas. Por esta razão, nestes casos, é preciso considerar os textos e o contexto em que os

esses pontos cantados são utilizados na Gira de Escravos. Em vista disso, o ponto Pintinho

(Cf. transcrição p. 165) pode ser enquadrado na categoria identificação/saudação e o ponto

Xô Tomba Morro (Cf. transcrição p. 193) pode estar relacionado à proteção. Os pontos de

sotaque do Escravo Tomba Morro A mulher de Itaparica e Mulher de pouca roupa (Cf.

transcrições respectivamente nas pp. 170 e 169) e os “sotaques” do Escravo Zé Pilintra do

Morro do Livramento, Abrindo a boca e Doce é (Cf. transcrições respectivamente nas pp.

170 e 168) sugerem uma exemplificação da categoria personalidade. Os “sotaques”

Massapê e Panela sem fundo (Cf. transcrições respectivamente na p. 148 e 149) poderiam

caracterizar advertência.

De acordo com Nascimento; Souza e Trindade (2001: 109) a análise dos textos

dos pontos de Exus e Pombagiras indicam que eles representam uma das faces do

181
masculino e do feminino na nossa sociedade. Porém, como ressaltam os autores (Cf. 2001:

110), “esses papéis, valorizados negativamente, funcionam mais como um fator de

referência a ser considerado para ser evitado, do que como um lugar com importância

estrutural para o funcionamento do próprio sistema.” Na nossa sociedade, se estabeleceram

valores relacionados ao masculino como a força, o trabalho, a autoridade (social e

familiar), a reprodução (realização sexual), entre outros. Neste sentido, se levarmos em

conta o trabalho desenvolvido pelo Exu na Umbanda, veremos que ele se encaixa nestes

valores, mas sua natureza faz com que isto não aconteça. O Exu, como um ser “anormal, só

pode ser admitido para ele o local das trevas, a noite. É ali que pode expressar seu caráter

sinuoso, escondido do convívio dos que trabalham normalmente.” (Nascimento; Souza e

Trindade, 2001: 112).

A Pombagira também é associada com a marginalidade. A prostituição é a

condição imposta para a mulher que não se encaixa nos moldes femininos, isto é, aquela

que se encontra no meio familiar como mãe, esposa e filha. A Pombagira é uma entidade

da rua, sem família, mas trabalhadora que não lhe sobrou outro lugar a não ser a

prostituição. Outra característica desta entidade é a beleza e a vaidade, qualidades que

“correspondem à expectativa em relação ao papel feminino, no qual a mulher deve se

conservar sempre bonita, pois esse é o seu maior bem, a fim de satisfazer o homem.”

(Nascimento; Souza e Trindade, 2001: 111).

Mesmo com esta representação, os Exus e Pombagiras são importantes na

composição do universo umbandista. No interior dos centros estas entidades estão sempre

em processo em construção baseado no contato com os homens, no qual absorvem seus

valores (sociais, culturais) e suas percepções do mundo e a partir delas se atualizam,

tornando a Umbanda uma religião viva e dinâmica.

182
4.5. As melodias: possíveis interpretações

A análise apresentada aqui não faz parte do conceito musical nativo, portanto,

as decisões analíticas aqui tomadas a respeito da disposição das alturas, escalas, modos,

âmbito, contorno melódico e formas, não deixam de ser um retrato da visão do pesquisador

sobre a música do “outro”, mesmo correndo o risco da adoção de uma postura etnocêntrica.

Não foi possível construir uma análise que fosse totalmente baseada no vocabulário da

própria comunidade. Desta forma, as decisões tomadas aqui podem ser contestadas, mas

não são arbitrárias.

A definição das escalas e modos é baseada no simples ordenamento das alturas.

Considerando somente os sons que aparecem na melodia, os 39 pontos cantados transcritos

podem ser classificados da seguinte forma: seis tetratônicos, sete pentatônicos, 13

hexatônicos e 13 heptatônicos (12 tonais e um modal). Para uma melhor compreensão, as

tabelas abaixo permitem uma visualização das disposições e seus tipos, os pontos cantados

e suas características melódicas:

1. Tetratônicas

A mulher de Itaparica Melodia baseada na tríade de Mi M. Sugere


(Cf. p.170) tonalidade de mesmo nome. Saltos de 3ª
2M+2M+3m maior, 3ª menor e 4ªJ.
Exu Veludo Arpejo de sol maior na 2ª inversão. Saltos de
(Cf. p.112) 4ª e 5ªJ. Sugere a tonalidade de Sol M.
Mulher de pouca roupa Notas repetidas intercaladas pelos saltos de 3ª
2M+2M+2m (Cf. p.169) maior e 3ª menor. Apresenta o primeiro
tetracorde completo de Láb M.
A melodia segue a progressão I-V-I,
2m+2M+2M Labareda sugerindo a tonalidade de Si M. Graus
(Cf. p.166) conjuntos interrompidos por saltos de 3ª
menor e 4ª J.
3M+2m+2M Tomba Morro da encruzilhada Presença da tríade de Fá M. Saltos de 3ª maior
(Cf. p.167) e 5ªJ.
3m+2M+2M Ele já chegou Saltos de 3ª maior, 3ª menor e 5ªJ. Notas
(Cf. p.101) repetidas.

183
2. Pentatônicas

Abre a porteira Exu A melodia segue a progressão I-IV-I, sugerindo a


2m+2M+2M+3m (Cf. p.146) tonalidade de Sol M (sem o 2º e o 7º graus). Arpejo
com a tríade de Sol M. Saltos de 3ª maior e 4ªJ.
Agradeço Saltos de 3ª maior, 3ª menor e 5ªJ.
(Cf. p.97 )
2M+2M+3m+2M Cigana Saltos de 3ª maior, 3ª menor . 4ª e 5ªJ.
(Cf. p.126)
Porteira Saltos de 3ª maior, 3ª menor, 4ª e 5ªJ.
(Cf. p.145)
Capa Graus conjuntos interrompidos por saltos de 3ª maior,
(Cf. p.150) 3ª menor e 4ªJ. A disposição da melodia sugere o Modo
3m+2M+2M+2m Dórico.
Ela é uma Padilha Graus conjuntos e notas repetidas interrompidos por
(Cf. p.122) saltos de 3ª maior, 3ª menor e 5ªJ. Sugere a tonalidade
de Dó m (sem o 2º e o 7º graus).
Exu Caveira A melodia segue a progressão I-V7-I, sugerindo a
2M+2M+2m+2M (Cf. p.113) tonalidade de Fá M. Possui os cinco primeiros graus da
escala completa.

3. Hexatônicas

Graus conjuntos e saltos de 3ª menor. A


Abrindo a boca melodia segue a progressão I-V-IV-V-I, su-
(Cf. p.170) gerindo a tonalidade de Ré M (sem o 7º
grau) ou o Modo Mixolídio.
Graus conjuntos e saltos de 3ª maior e 3ª
Doce é menor. Arpejo de Lá M no fim da cantiga.
(Cf. p.168) Sugere a tonalidade de Lá M (sem o 7º
grau) ou o Modo Mixolídio.
A melodia segue a progressão I-IV-V-I
Exu Laroê Exu sugerindo a tonalidade de Sol M (sem o 7º
(Cf. p.164) grau) ou o Modo Mixolídio. Graus
conjuntos e saltos de 3ª maior e 5ªJ.
A melodia segue a progressão I-IV-V-I/ VI-
Mariano I-V-I sugerindo a tonalidade de Ré M (sem
(Cf. p.127) o 7º grau) ou o Modo Mixolídio. Arpejos
2M+2M+2m+2M+2M com as notas da tríade de Ré M. Saltos de 3ª
maior, 6ª maior e 5ªJ.
Pintinho A melodia segue a progressão I-VI, suge-
(Cf. p.165) rindo a tonalidade de Sib M (sem o 7º grau)
ou o Modo Mixolídio. Saltos de 4ªJ e 5ª J.
Repetição dos ritmos numa espécie de osti-
Pombagira que tá que tá nato em todas as frases. Notas repetidas que
(Cf. p.100) são interrompidas por saltos de 3ª maior e
5ªJ. A melodia sugere a tonalidade de Láb
M (sem o 7º grau) ou o Modo Mixolídio.

184
Risada A melodia segue a progressão I-VI, suge-
(Cf. p.138) rindo a tonalidade de Dó M (sem o 7º grau)
ou o Modo Mixolídio. Saltos de 4ªJ e 5ª J.
Zé Pilintra Graus conjuntos e saltos de 4ªJ. A melodia
(Cf. p. 118) segue a progressão I-IV-I, sugerindo a tona-
lidade de Réb M (sem o 4ºgrau).
Arpejos com as notas das tríades de Láb M
2m+2M+2M+3m+2M Beiramar e Mib M. Saltos de 6ª maior, 4ªJ, 5ªJ e 8ªJ.
(Cf. p.111) A melodia sugere a tonalidade de Láb M
(sem o 4ºgrau).
Encruzilhada já lhe Graus conjuntos e saltos de 3ª menor e 4ªJ.
2M+3m+2M+2M+2m chama Na melodia o intervalo de 7ª menor sugere
(Cf. p.151) o Modo Mixolídio (sem o 3º grau).
Venha cá meu velho Graus conjuntos e saltos de 3ª maior e 3ª
3M+2m+2M+2M+2M (Cf. p.136) menor. Sugere a tonalidade de Sol M (sem
o 2º grau).
Morador Graus conjuntos e saltos de 3ª maior, 3ª
2M+3m+2M+2M+2M (Cf. p.110) menor e 4ª J. Sugere a tonalidade de Fá M
(sem o 3º grau).
Santo Antônio amarra o Graus conjuntos e saltos de 3ª maior, e 4ª J.
2M+2M+3m+2M+2M nego Sugere a tonalidade de Fá M (sem o 4º
(Cf. p.129) grau).

4. Heptatônicas

Mixolídio Ô Zé Graus conjuntos e saltos de 3ª maior, 3ª menor,


(Cf. p.116) 5ªJ e 6ª maior.
Exu de Duas Cabeças Presença de arpejos de Ré M (I grau) e Sol M (IV
(Cf. p.64) grau). Saltos de 3ª menor e 4ªJ. A melodia segue
Ré maior a progressão I-V-I / IV-I- V- I.
O Moinho da Bahia Saltos de 3ª maior, 4ªJ e 5ªJ. A melodia segue a
(Cf. p.174) progressão I-IV-V-I.
Santo Antônio pequenino Graus conjuntos e intervalos de 4ªJ. Contorno
Mi bemol maior (Cf. p.106) melódico predominantemente descendente.
Xô Tomba Morro A melodia segue a progressão I-V-I. Saltos de 3ª
(Cf. p.193) maior e 5ª J.
Fá maior Panela sem fundo Saltos de 3ª maior, 3ª menor e 4ªJ Notas da tríade
(Cf. p.149) de Fá M. Presença da progressão I-IV-V-I.
Massapê Repetição dos ritmos numa espécie de ostinato.
Sol maior (Cf. p.148) Notas repetidas interrompidas por saltos de 3ª
maior, 3ª menor e 6ª maior.
Ela é bonita Repetição dos ritmos numa espécie de ostinato.
Lá bemol maior (Cf. p.120) Graus conjuntos por saltos de 3ª maior, 3ª menor,
6ª maior e 8ªJ.
Lá bemol menor Eu te avisei Saltos de 3ª maior, 4ªJ, 5ªJ, 7ª menor e 8ªJ.
(Cf. p.115)
Si bemol maior Hino da Umbanda A melodia segue a progressão I-IV-V-I. Saltos de
(Cf. p.51) 3ª maior, 3ª menor, 4ªJ, 6ª maior, 6ª menor e 8ªJ.

185
Si maior Exu da meia noite A melodia segue a progressão I-IV-V-I. Saltos de
(Cf. p.133) 3ª maior, 3ª menor ,5ªJ, 6ª maior e 7ª menor.
Lá menor Eu queria saber Graus conjuntos e saltos de 3ª menor, 4ªJ, 8ªJ e 9ª
(Cf. p.124) maior.
Mi menor O sino da igrejinha Graus conjuntos e saltos de 4ªJ, 5ªJ e 7ªm.
(Cf. p.114)

A partir desta análise, correndo o risco de etnocentrismo, é possível afirmar

que, de uma forma geral, as melodias dos pontos cantados tendem a ser tonais. Das sete

cantigas pentatônicas, três pontos sugerem uma tonalidade e uma sugere uma escala modal.

Nesta categoria, apenas um ponto cantado possui o toque Samba e as demais são

acompanhados pelo Congo. Das 13 cantigas hexatônicas, em sete delas a ausência do 7º

grau da escala permite a sugestão de duas possibilidades: a tonalidade maior e o Modo

Mixolídio. Três pontos cantados sugerem uma escala tonal sem o 4º grau, um ponto sugere

o mesmo sem o 2º grau e um ponto sem o 3º grau. Entre as hexatônicas, o único caso em

que se sugere apenas a possibilidade da escala modal é o ponto Encruzilhada já lhe chama.

Das cantigas heptatônicas, apenas uma é modal (Ô Zé), o restante é tonal. Das

tonalidades apresentadas, a maioria é baseada em escalas maiores (nove pontos cantados) e

os três restantes escala menor.

Se nos deixarmos levar pelo subjetivismo, não seria exagerado supor que a

ocorrência das tonalidades maiores e dos Modos Mixolídio e Dórico poderiam ser uma

adaptação musical da Umbanda ao contexto local, devido a ocorrência destas disposições

melódicas na música nordestina. No entanto, convenhamos que esta suposição não se trata

mais de Etnomusicologia, mas sim de Estética ou Apreciação Musical.

Analisando o contorno melódico dos pontos cantados, observamos que os

pontos apresentam seções ascendentes e descendentes, onde a melodia realiza estes

movimentos ora por graus conjuntos ora por saltos (predominante de terças, quartas e

quintas). Algumas melodias apresentam como característica a repetição de notas

186
intercaladas com saltos. De uma forma geral, os pontos cantados apresentam percursos

melódicos ascendentes seguidos de movimentos descendentes e vice e versa.

Se considerarmos somente o som inicial e final das cantigas, há um predomínio

do movimento descendente, onde a nota final é mais grave que a nota inicial. Das 39

transcrições apresentadas neste trabalho, 20 pontos cantados apresentam a relação

descendente entre a nota inicial e a final, 11 cantigas iniciam e finalizam com o mesmo

som e em oito pontos cantados a nota final é mais aguda que a nota inicial. O quadro a

seguir ilustra as direções melódicas em cada ponto cantado:

Abre a porteira Exu


Abrindo a boca
Doce é
Ela é uma Padilha
Encruzilhada já lhe chama
Eu queria saber
Eu te avisei
Exu Caveira
Exu da meia noite
DESCENDENTE Exu de Duas Cabeças
Exu Laroê Exu
Ô Zé
Pintinho
Pombagira que tá que tá
Risada
Santo Antônio pequenino
Tomba Morro da encruzilhada
Venha cá meu velho
Xô Tomba Morro
Zé Pilintra
Agradeço
A mulher de Itaparica
Beiramar
Ela é bonita
MESMA DIREÇÃO Ele já chegou
Labareda
Mariano
Massapê
Morador
Mulher de pouca roupa
Porteira

187
Capa
Cigana
Exu Veludo
ASCENDENTE Hino da Umbanda
O Moinho da Bahia
O sino da igrejinha
Panela sem fundo
Santo Antônio amarra o nego

O âmbito dos pontos cantados geralmente se mantém dentro dos limites igual

ou inferior a uma oitava. Das 39 cantigas transcritas, seis apenas ultrapassam a extensão de

uma oitava. O menor âmbito é de quarta justa encontrada em dois pontos cantados

(Labareda e Mulher de pouca roupa). Ao longo das seqüências melódicas, vimos

praticamente todos os tipos de intervalos, sendo os mais comuns as segundas (maiores e

menores), terças (maiores e menores), a quarta e a quinta justa. E os menos encontrados

são os intervalos que ultrapassam uma oitava. A tabela abaixo nos traz o detalhamento do

âmbito dos 39 pontos cantados:

4ª justa Labareda
Mulher de pouca roupa
5ª justa A mulher de Itaparica
Ele já chegou
Tomba Morro da encruzilhada
6ª maior Agradeço
Doce é
Exu Laroê Exu
Exu Veludo
Pintinho
Risada
Santo Antônio amarra o nego
Venha cá meu velho
6ª menor Abre a porteira Exu
Capa
Ela é uma Padilha
Exu Caveira
7ª maior Abrindo a boca
Massapê

188
7ª menor Encruzilhada já lhe chama
Exu de Duas Cabeças
Morador
Ô Zé
Panela sem fundo
Xô Tomba Morro
Zé Pilintra
8ª justa Ela é bonita
Exu da meia noite
Mariano
O Moinho da Bahia
Pombagira que tá que tá
Porteira
Santo Antônio Pequenino
9ª maior Beiramar
Cigana
9ª menor Eu te avisei
10ª menor Eu queria saber
O sino da igrejinha
11ª justa Hino da Umbanda

Considerando a execução dos pontos cantados no contexto da Gira de

Escravos, as cantigas apresentam as seguintes formas:

O coro repete integralmente a melodia cantada pelo solista:


Abre a porteira Exu
Abrindo a boca
A mulher de Itaparica
Ele já chegou
Encruzilhada já lhe chama
Exu Caveira
Exu Laroê Exu
Exu Veludo
AA Labareda
Massapê
Mulher de pouca roupa
Panela sem fundo
Pintinho
Risada
Tomba Morro da
encruzilhada
Venha cá meu velho
Zé Pilintra
ABB Mariano
(Possui um parte A e uma parte B que se repete.) Santo Antônio Pequenino
ABAB
(Apresenta uma parte A e a parte B é uma variante da parte A, Pombagira que tá que tá
dando a impressão de um diálogo musical de “pergunta e
resposta”.)

189
AAB Exu da meia noite
(Possui um trecho melódico A que se repete e uma parte Exu de Duas Cabeças
contrastante B que encerra o ponto cantado.)
AABB Doce é
(Apresenta as mesmas características da forma anterior, o que Ela é uma Padilha
difere é a repetição da parte B.) Ô Zé
AABC
(Possui uma repetição da parte A, uma parte B e uma nova Cigana
melodia C que finaliza o ponto cantado.)
AABBC Capa
(Possui a mesma configuração da forma anterior, o que difere é a O Moinho da Bahia
repetição da parte B)
AABCC
(Apresenta uma melodia A que se repete, uma parte contrastante Eu te avisei
B e uma outra frase melódica C que se repete.)
AABCD
(Possui a mesma configuração da forma anterior, diferenciando-o O sino da Igrejinha
apenas com o acréscimo de uma nova frase melódica D.)
ABBCA
(Apresenta uma melodia A, uma parte contrastante B que se Eu queria saber
repete, uma outra frase melódica C e o retorno da parte A.)
ABCDE Hino da Umbanda
(Apresenta cinco partes diferentes.)
ABCDEE Porteira
(O que o difere da forma anterior é a repetição da parte E no final
do ponto cantado.)
ABCDDEFEFG
(Apresenta uma parte A, uma parte B, uma parte C, uma parte D Ela é bonita
que se repete, um novo material seguido por uma outra frase EF
que se repetem e um outro trecho G que encerra a cantiga.)

O coro entoa uma melodia diferente do cantado pelo solista:


ABAB’
(O solista começa cantando uma melodia (A), o coro responde
com um material contrastante (B). O solista canta novamente o Agradeço
trecho (A) e o coro responde com a mesma melodia da sua
entrada anterior, mas com texto diferente (B’)).
AABCBC
(O solista canta uma melodia e um texto (A) e o coro repete (A). Morador
O solista canta uma nova melodia e texto (B) e o coro responde
com um outro trecho (C) e estas duas partes (BC) se repetem).
ABACADAE
(Esta forma se caracteriza como um Rondó, no qual o coro canta
o refrão e o solista responde cantando trechos diferentes. O
Rondó nesta cantiga acontece da seguinte forma: O coro canta
uma melodia e um texto (A), o solista responde com uma frase Santo Antônio amarra o nego
contrastante (B). O coro repete o refrão (A) e o solista responde
cantando um novo texto com pequena variação melódica da sua
entrada anterior (C). O coro repete a sua melodia (A) e o solista
apresenta outra variação (D). O coro entra novamente (A) e o
solista finaliza a cantiga com outra variação (E)).
190
AABACAB’AC’AD
(Também caracteriza-se uma forma Rondó, porém de uma forma
diferente da configuração anterior. O solista canta o refrão (A) e o
coro repete (A). O solista apresenta uma melodia diferente (B) e o
coro canta o refrão (A). O solista apresenta outro trecho (C) e o Xô Tomba Morro
coro responde com o refrão (A). O solista apresenta a mesma
melodia da parte B, mas com o texto diferente (B’) e o coro
responde com o mesmo refrão (A). O solista canta a mesma
melodia da parte C, mas com o texto diferente (C’), o coro canta
o refrão (A) e o solista finaliza o ponto cantando uma nova
melodia (D)).
ABACDBECA’BACD’BE’C
(O solista começa cantando o tema (A) e o coro responde (B). O
solista volta com o seu tema (A) e o coro responde com o mesmo
texto, mas com variação melódica (C). O solista apresenta um Beiramar
novo material (D) e o coro volta a responder com a parte (B). O
solista apresenta outro trecho (E) e o coro responde com a parte
(C). Toda esta seção se repete com pequenas variações no texto
acompanhadas por variações rítmicas (A’, D’ e E’)).

Vale a pena ressaltar que as formas dos pontos cantados favorecem a

participação do público, especialmente aqueles que promovem uma maior interação entre o

solista e o coro. Neste repertório musical, como é muito importante a participação da

assistência, é comum que as frases melódicas cantadas pelo coro sejam simplificadas e, na

maioria dos casos, o coro repete integralmente a melodia entoada pelo solista.

4.6. A maneira de cantar

No Centro Umbandista Rei de Bizara um bom puxador ou puxadora das

cantigas não se avalia somente pela “afinação” ou “qualidade vocal”, mas também pela

capacidade de fazer o povo cantar. Para isso, de acordo com a visão êmica, o executante

191
precisa ter uma “voz forte” e deve cantar pronunciando o texto de forma clara, já que as

mensagens contidas nos pontos são muito importantes, além de conhecer o maior número

possível de pontos que compõem o repertório e as suas funções dentro dos rituais. Em vista

disso, quanto maior o número de cantigas ele conhecer, melhor será sua performance. No

entanto, entendemos que no Centro Umbandista Rei de Bizara não se avalia um bom

puxador ou puxadora levando em conta somente suas capacidades técnicas, mas sim outras

qualidades estéticas que vão além do conhecimento do sistema musical. Sobre este assunto,

Canzio (1991: 143) resume:

Observadores de todas as épocas têm expressado o sentimento que existe


uma qualidade inefável quase carismática que notamos em certos músicos
que permite-lhes exprimir e transmitir todas as nuances de expressão
requeridas pelos critérios estéticos de sua cultura.

De acordo com Merriam (1964: 114-115), em toda cultura existe um

comportamento verbal a respeito da música, isto é, as pessoas falam sobre os mais variados

aspectos da música, como o julgamento da performance e as habilidades necessárias para

formar o melhor músico, o que o autor denomina de “excelência musical”. Este

comportamento depende essencialmente do conceito de música, isto é, a forma de como as

pessoas de um determinado grupo definem a sua música. O conceito de música difundido

no Centro Umbandista Rei de Bizara é de que se trata de uma oração que deve ser

compartilhada por todas as pessoas que participam dos rituais. Por isso, este local preza

muito pela participação do público cantando e acompanhando os pontos com palmas.

De uma forma geral, observando as diferentes categorias de pontos cantados,

os momentos em que aparecem no ritual (particularmente na Gira de Escravos) e a forma

de como são cantados e aprendidos, podemos afirmar que existe uma variação na execução

da música praticada neste centro umbandista. Nos pontos coletivos de Exus e Pombagiras

este processo criativo pode ser encontrado nos trechos em que aparecem os nomes dos

192
Escravos presentes na gira. Para isso, ocorrem pequenas variações melódicas, rítmicas e de

acentuação para que os nomes dos Exus e Pombagiras possam ser encaixados. No contexto

da festa, esta “improvisação” ocorre de forma livre, denunciando o estilo particular de

cantar do puxador ou puxadora da cantiga. No entanto, conforme já mencionamos, esta

inovação acontece dentro de um limite que é imposto pelo contexto. No ponto transcrito

abaixo, Tomba Morro pode ser substituído por outros Escravos que, em alguns casos,

implicará numa modificação na estrutura rítmica-melódica:

193
194
Outra forma de “improvisação” ocorre na execução do ponto Agradeço (Cf.

transcrição p. 97). Nesta cantiga, com exceção do primeiro verso (Giramavambo agradeço

ê ê) a parte do solista é “improvisada”, no qual os textos são modificados com a adaptação

das melodias. Os versos improvisados são acompanhados pelo refrão, que é cantado pelo

público, numa espécie de diálogo entre o solista e o coro. Os solos improvisados se tratam

de agradecimentos às entidades pelas realizações tanto materiais quanto espirituais.

Segundo Tia Preta, no momento da “improvisação”, aquele que puxa a cantiga pode fazer

qualquer tipo de agradecimento aos Escravos. A própria mãe-de-santo durante uma

entrevista realizada em 21/04/2006 improvisou alguns versos para exemplificar:

“Agradeço pelo pirão que nós comemos/ Agradeço pela minha família/ Agradeço pela

nossa gira.”

Os pontos Risada e Pintinho possuem melodias semelhantes, textos distintos e

são acompanhados pelo toque Barravento (Cf. transcrições respectivamente nas pp. 138 e

165). De acordo com Tia Preta, esses dois exemplos constituem um único ponto cantado.

A mãe-de-santo explica que, na Gira de Escravos, estas cantigas são executadas juntas,

onde o puxador canta uma e o público responde com a outra cantiga:

Junta uma com a outra, a gente canta junta.


P- São músicas diferentes?
A mesma música, a gente bota de um lado pra outro. Só a letra que muda.
Uma canta [puxadora] e a gente [público] responde.

195
Porém, neste caso encontramos uma contradição entre a teoria (como deveria

ser a execução) e a prática (o que acontece no ritual). Durante a realização deste trabalho,

tivemos a oportunidade de assistir várias giras e em todas elas, a execução destas duas

cantigas nunca acontecem conforme relatado por Tia Preta. Na prática, estes dois pontos

são cantados separadamente e em momentos distintos do ritual. Podemos afirmar que estas

cantigas no contexto da Gira de Escravos sugerem que elas possuem funções litúrgicas

diferentes. O ponto Risada é utilizado como um ponto coletivo dos Exus e Pombagiras,

pois aponta a alegria como uma característica comum destas entidades e a segunda como

um ponto de chamada do Escravo Pintinho.

A maneira de cantar se relaciona a uma série de fatores que são altamente

dependentes do contexto, como a função do solista e a sua relação com a comunidade, os

“estilos” de cantar, o julgamento da performance, o conceito de música difundido pela

comunidade, qualidades estéticas relacionadas ao domínio do sistema musical, entre

outros.

Por fim, o repertório musical dos Exus e das Pombagiras presente na Gira de

Escravos tende a ser tonal. Quanto ao contorno melódico, os 39 pontos transcritos

apresentam seções ascendentes e descendentes, onde a melodia realiza estes movimentos

ora por graus conjuntos ora por saltos. O âmbito dos pontos cantados geralmente se

mantém dentro dos limites igual ou inferior a uma oitava e as formas das cantigas

favorecem a participação do público que canta e acompanha os pontos com palmas.

Quanto ao acompanhamento instrumental, o Samba é o toque mais encontrado no

repertório das entidades da esquerda. Os textos dos pontos cantados revelam a história das

entidades, descrevem suas características e os papéis que os Exus e as Pombagiras exercem

na Umbanda.

196
5. Conclusão

A Umbanda é uma religião brasileira cuja identidade, inclusive musical, se

encontra em constante processo de construção. Analisando a sua trajetória, desde sua

origem até os dias atuais, podemos observar que a busca por uma identidade brasileira

percorre dois caminhos. O primeiro trilhado pelos centros umbandistas onde se produz e

reproduz o universo sagrado aliado ao contexto da cultura local, e o segundo percorrido

pelas federações que buscaram a institucionalização e legitimação da religião,

racionalizando os mitos e ritos em congressos e encontros. Os dois caminhos se

complementam, pois a Umbanda não existiria sem a produção do sagrado nos centros

umbandistas, ao mesmo tempo em que a religião possivelmente não se tornaria um

movimento nacional se não fosse pela atuação das federações.

As entidades cultuadas são símbolos personificados que adquirem vida própria

no dia-a-dia dos centros umbandistas e, na Umbanda, a primeira religião genuinamente

brasileira, representam os mais diversos tipos de brasileiros mestiços, pessoas comuns,

numa pluralidade que expressa a diversidade cultural deste país. Com a finalidade de
organizar o seu panteão, a Umbanda, sob a influência do Kardecismo, classificou o seu

panteão em linhas e falanges de acordo com a evolução espiritual, ao mesmo tempo em

que organizou suas entidades em lados aparentemente opostos, o direito e o esquerdo,

relativizando a concepção cristã de separar o bem e o mal.

As entidades da esquerda, os Exus e as Pombagiras, apresentam condutas

questionáveis e comportamentos que fogem aos padrões sociais vigentes. São aqueles que

se enveredaram pelo caminho “errado” e pela “vida fácil” como os ladrões, os

aproveitadores, os malandros, os boêmios e as prostitutas. Características que os

condenaram a ficar no “mundo das trevas”: as ruas, as esquinas, as encruzilhadas, os

cemitérios... No entanto, apesar destas características, os Exus e os Pombagiras são

fundamentais no culto umbandista. Não são “deuses” distantes e inacessíveis, muito pelo

contrário, são próximos. São entidades brasileiras, espíritos de homens e mulheres dotados

de experiências de vida que os permitiram conhecer e dominar as fraquezas humanas,

compreendendo também os mais diversos desejos e fantasias dos seres humanos. Estas

condições permitem que estas entidades pratiquem um dos principais fundamentos

umbandistas: a prática da caridade.

A produção do sagrado também reflete a capacidade da Umbanda de se adaptar

aos contextos locais. O Centro Umbandista Rei de Bizara apresenta uma Umbanda Mista,

onde os fundamentos umbandistas se mesclam com alguns elementos do Candomblé

Angola e de Caboclo. Acreditamos que dois pontos foram determinantes para a formação

desta prática umbandista. O primeiro é a iniciação da Tia Preta com o pai-de-santo

Joãozinho da Goméia, que cultuava o Candomblé Angola e a Umbanda dentro da mesma

casa de culto no Rio de Janeiro. O segundo é a necessidade de adaptação ao contexto de

Salvador, uma cidade formada por uma população de maioria negra e parda com uma

198
cultura fortemente influenciada pelo Candomblé, que aqui se faz presente em mais de 2000

terreiros (Cf. Vatin, 2001: 9).

No Centro Umbandista Rei de Bizara, os Exus e as Pombagiras recebem o

nome de Escravos e se destacam no espaço físico e sagrado, assim como na condução dos

trabalhos realizados. Neste centro, as entidades da direita e da esquerda são cultuadas

como se houvesse duas práticas religiosas independentes, que se integram, mas que não se

misturam. Aqui, os Exus e as Pombagiras são homenageados em uma cerimônia

denominada de Gira de Escravos. Esta cerimônia apresenta particularidades importantes,

inclusive musicais, que reforçam a adaptação da Umbanda ao contexto local.

Há uma aproximação entre a denominação Escravos, dada aos Exus e as

Pombagiras, e a designação Escravo-de-Inquice, dado ao Exu nos Candomblés bantos,

incluindo o Candomblé Angola. No Candomblé e na Umbanda os Escravos são os

mensageiros dos Orixás, porém, no Candomblé são aqueles que literalmente levam e

trazem as mensagens dos Orixás aos homens e vice-versa. Na Umbanda, de acordo com a

visão êmica, são os Guias que “descem para trabalhar” cumprindo uma missão através da

prestação de qualquer tipo de serviço, principalmente a caridade àqueles que os procuram.

Na Gira de Escravos, a música possui um lugar de destaque, estando presente

em todas as partes do ritual. Aqui, os pontos são cantados em português, onde o texto

revela as histórias, as características e as personalidades das entidades da esquerda. Quanto

à parte melódica, o simples ordenamento das alturas dos sons das melodias indica que

pontos cantados tendem a ser tonais. Das tonalidades apresentadas, a maioria é baseada e

escalas maiores.

Nesta cerimônia, acompanhamento instrumental é feito por um atabaque e um

agogô. Da mesma forma que o Candomblé Angola e o de Caboclo, os atabaques, neste

centro umbandista, são tocados exclusivamente com as mãos. Barravento, Congo e Samba

199
são os toques que acompanham todos os pontos cantados. Os padrões rítmicos que

acompanham o repertório musical executado na Gira de Escravos não são semelhantes aos

do Candomblé, no entanto, há semelhanças na nomenclatura e na linha guia do agogô. Os

toques Congo e o Barravento são oriundos do Candomblé Angola e também acompanham

o repertório musical dedicado ao Caboclo no Candomblé. O Samba é utilizado no

Candomblé de Caboclo e, na Gira de Escravos, é o toque mais encontrado no repertório

das entidades da esquerda. Isto poderia se interpretado como um indício da relação ritmo

brasileiro/religião brasileira.

As cantigas de sotaque e o Samba de Roda estão presentes tanto na Gira de

Escravos quanto no Candomblé de Caboclo. Nos dois casos, os pontos de sotaque são

cantigas altamente dependentes do contexto e o Samba de Roda representa o aspecto

lúdico, onde os médiuns e as entidades cantam e dançam um gênero (música/dança)

tipicamente baiano.

Outro indício da aproximação musical entre a Umbanda e o Candomblé de

Caboclo é uma possível existência de trocas musicais, que envolvem tanto entidades que

pertencem a mesma categoria (Exu) quanto entidades de categorias distintas (Exu e

Caboclo). Este trânsito de repertórios musicais acontece seguindo um processo complexo,

no qual uma mesma cantiga pode ser utilizada nos dois contextos, onde uma mesma

melodia acompanha textos diferentes ou, ainda, a mesma letra apresenta melodias

diferenciadas.

Acreditamos que este estudo não é e nem pretende ser um trabalho conclusivo

sobre a música dos Exus e das Pombagiras, sendo este uma contribuição para que outras

questões possam ser abordadas com o material etnográfico e musical apresentado nesta

pesquisa.

200
Anexos
1. Textos dos pontos cantados

Constam neste anexo todos os textos dos pontos cantados mencionados no

corpo do trabalho, agrupados aqui por categorias. Estão sendo indicados os toques que os

acompanham e o número da página onde a transcrição pode ser encontrada.

Ponto Cantado de Caboclo

Caboclo vai 59
Caboclo vem
Caboclo Flecha Dourada é que vem
Caboclo vai
Caboclo vem
Caboclo Flecha Dourada é que vem
Mas ele é o Caboclo da mata
É Flecha Dourada é que vem
Mas ele é o Caboclo da mata
É Flecha Dourada é que vem

Ponto Cantado de Preto-Velho

Vovô não qué 61


Casca de côco no terrero
Vovô não qué
Casca de côco no terrero
Pra não lembrá
Do tempo do cativero
Pra não lembrá
Do tempo do cativero
Samba de Caboclo113

A mulhé e a galinha 65
São dois bicho interesseiro
A galinha pelo milho
A mulhé pelo dinheiro

Cantigas de Exu114

Ele é um Giramavambo 98
Recompensuê ra ra rá
Recompensuê

Bombongira jamô canguê 100


Ai, ai o re rê
Bombonjira jamô canguê
Ai, ai o re rê
Bombongira cujan cujango

Santo Antônio amarra o negro 130


Lá no caminho
Santo Antônio amarra o negro
Deixa amarrá

Cantiga de Entrada (Caboclo)115


Ele já chegô 101
Ele já chegô
Ele já chego d’Aruanda
Ele já chego ô

113
Cantiga encontrada no Candomblé de Caboclo (Cf. Garcia, 2001a: 61).
114
Cantigas encontradas no Candomblé de Caboclo (Cf. Garcia, 2001a:63; 1996: 135-136).
115
Cantiga encontrada no Candomblé de Caboclo (Cf. Garcia, 2001a:126; 1996: 157).

203
Hino da Umbanda116

Refletiu a luz divina 53


Com todo seu esplendor
Vem no reino de Oxalá
Onde há paz e amor
Luz que refletiu na terra
Luz que refletiu no mar
Luz que veio de Aruanda
Para tudo iluminar
A Umbanda é paz e amor
É o mundo cheio de luz
É força que nos dá vida
E a grandeza nos conduz
Avante filhos de fé
Como a nossa lei não há
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá

Pontos Cantados na Sessão de Caridade

Trabalhe meu Caboclo 93


Pra Deus lhe ajudá
Desenvolva meu passe
Pra Deus lhe clareá

Ô venha aqui Caboclo 93


Venha aqui n’aldeia
Venha nos ajudá
Venha nos ajuda á

Gira de Escravos

Pontos de Abertura
Toque Congo
Giramavambo agradeço ê ê 97
Agradeço ê ah ah ah ah ah
Agradeço ah
Giramavambo agradeço ê ê
Agradeço ê ah ah ah ah ah
É bom perdoá

116
Este hino pode ser encontrado no endereço eletrônico <http://www.umbanda.org/pontos.html>.

204
O sino da igrejinha faz belém blem blom 114
O sino da igrejinha faz belém blem blom
Deu meia noite o galo já cantô
Seu Tranca Rua é o dono da gira
Ô abre a gira que Ogum mandô

Toque Samba
Exu Laroê Exu 164
Exu Laroê Exu
Exu Laroê Exu
Exu Laroê Exu

Pontos de Chamada
Toque Barravento
Qui quá quá quá 165
Cadê meu Pintinho
Que eu não vejo piá
Cadê meu Pintinho
Que eu não vejo piá
Cadê meu Pintinho
Traga ele pra cá

Toque Congo
Abre a porteira Exu 146
Deixe a mulhé passá
Maria Padilha é
A dona do congá

Exu da meia noite 133


Exu da madrugada
Umbanda sem Exu
Sem Exu não vale nada
Exu da meia noite
Exu da madrugada
Umbanda sem Exu
Sem Exu não vale nada
Era meia noite
Eu vi uma sentinela
Era Seu Caveirinha
Que tirá tua cancela

205
Toque Samba
Ele já chego o ou 101
Ele já chegou
Ele já chegou da esquina
Ele já chego ou

Santo Antônio pequenino 106


Amansador de burro brabo
Quem mexer com esses escravos
Tá mexendo com diabo
Rodea, rodea
Rodea meu Santo Antônio
Rodea
Rodea, rodea
Rodea meu Santo Antônio
Rodea

Pontos Individuais de Exus e Pombagiras


Toque Congo
Seu Tomba Morro 150
Me cobre com a tua capa
Seu Tomba Morro
Me cobre com a tua capa
A tua capa escapa
A tua capa escapa
A tua capa é feita de caridade
Tua capa cobre tudo
Só não cobre a falsidade

Comprei uma barraca velha 126


Foi a Cigana que me deu
Comprei uma barraca velha
Foi a Cigana que me deu
U que é meu é da Cigana
U que é dela não é meu
Amigo preste muita atenção
Povo cigano não suporta traição
A lealdade é a bandeira da Cigana
A falsidade ela não perdoa não

Portão di ferro 113


Cadiado di madera
Boa noite Exu, Exu
Exu Cavera

206
Ninguém pode comigo 112
Eu posso com tudo
Lá na encruzilhada
Ele é Exu Veludo

Corta esse galho Mariano 127


Eu quero ver
Corta esse galho
Pra essa árvore não crescê ê
Eu quero ver
A ciganada d’Aruanda
Trabaiando na Umbanda
Pa Quimbanda não cresce
Eu quero ver
A ciganada d’Aruanda
Trabaiando na Umbanda
Pa Quimbanda não crescê

Ê, tem morador 110


Isso aqui tem morador
Tem morador
Isso aqui tem morador
Na terra que o galo canta
Isso aqui tem morador
Na terra que o galo canta
Isso aqui tem morador

Toque Samba
Beiramar ê ê Beiramar 111
Beiramar ê ê Beiramar
Beiramar beira do rio
Ê ê Beiramar
Beiramar cheguei agora
Ê ê Beiramar
Ô Beiramar
Beiramar ê ê Beiramar
Beiramar ê ê Beiramar
Beiramar beira do rio
Ê ê Beiramar
Beiramar cheguei agora
Ê ê Beiramar

Lá vai Labareda 166


Lá vai Labareda
Lá vai Labareda
Labareda pegou fogo

207
Arreda home 122
Que lá vem mulé
Arreda home
Que lá vem mulé
Ela é uma Padilha
A mulhé de Lucifer
Ela é uma Padilha
A mulhé de Lucifer

Zé Pilintra, Zé Pilintra 118


Boêmio da madrugada
Vem da linha das alma
E também da incruzilhada

Mas eu queria saber 124


Aonde encontrava
Essa Cigana de fé
Eu queria
Eu ia caminhando a pé
Para ver se encontrava
Minha Cigana de fé
Ela parou e leu a minha mão
A minha mão
E disse a toda verdade
Mas eu queria saber
Aonde encontrava
Essa Cigana de fé

Eu te avisei 115
Que você não jogasse
Esta cartada comigo
Eu te avisei
Que você não jogasse
Esta cartada comigo
Você largou na dama
E eu parei no valete
Amigo você se engana
Neste jogo de copa
É o malandro quem ganha
Amigo você se engana
Neste jogo de copa
É o malandro quem ganha

208
Ô Zé 116
Quando vem lá da lagoa
Toma cuidado
Com o balanço da canoa
Ô Zé
Quando vem lá da lagoa
Toma cuidado
Com o balanço da canoa
Ô Zé
Faça tudo o que quizé o Zé
Mas não maltrate
O coração dessa mulhé
Ô Zé
Faça tudo o que quizé o Zé
Mas não maltrate
O coração dessa mulhé

Sem acompanhamento instrumental


Venha cá meu velho 136
Venha nos olhar
Nós tamo precisando
Do seu amor de Deus

Pontos Coletivos de Exus e Pombagiras


Toque Congo
Eu botei meu pombo na porteira 145
Na porteira não pousou
Ele pousou foi na encruzilhada
Foi Tomba Morro quem mandou
O ina, ina Mojubá ê
Ê Mojubá
O ina, ina Mojubá ê
Ê Mojubá

Santo Antônio amarra o nego 129


Lá no caminho
Santo Antônio amarra o nego
No pé de côco
Santo Antônio amarra o nego
Lá na estrada
Santo Antônio amarra o nego
Bem amarrado

É o Tomba Morro 167


Da encruzilhada
Sem esse Exu
Ninguém pode fazer nada

209
Toque Barravento
Qui quá quá quá 138
Que bela risada
Que Exu vai dá
Que bela risada
Que Exu vai dá
Que bela risada
Que é quá quá quá

Xô xô xô Tomba Morro 193


Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro
Xô xô xô Tomba Morro
Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro
Eu te dei um banquete de ouro
Tomba Morro
Para ganhar seu tesouro
Tomba Morro
Xô xô xô Tomba Morro
Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro
Eu te dei um braço de ferro
Tomba Morro
Para ganhar seu tesouro
Tomba Morro
Xô xô xô Tomba Morro
Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro
Eu te dei uma corrente de ouro
Tomba Morro
Para ganhar seu tesouro
Tomba Morro
Xô xô xô Tomba Morro
Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro
Eu te dei um anel de ouro
Tomba Morro
Para ganhar seu tesouro
Tomba Morro
Xô xô xô Tomba Morro
Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro
O beija flor é um pássaro bonito
Tomba Morro
Não deixa ninguém te pegar
Tomba Morro

210
Toque Samba
De vermelho e preto 120
Vestindo a noite o mistério traz
De colar de contas
Brincos dourados promessa faz
Você pode ir, você deve ir
Faça o que qui zé
Mas cuidado amigo
Ela é bonita ela é mulhé
Mas cuidado amigo
Ela é bonita ela é mulhé
E no canto da rua
Ô girando, girando, girando á
Ela é moça bonita
Ô girando, girando, girando á
E no canto da rua
Ô girando, girando, girando á
Ela é moça bonita
Ô girando, girando, girando á
Ô girando a o lê lê
Ô girando a o lá lá
Ô girando a o lê lê
Ô girando á

Exu que tem duas cabeças 64


Mas ele olha
Sua banda com fé
Exu que tem duas cabeças
Mas ele olha
Sua banda com fé
Uma é
Satanás do inferno
A outra é
Jesus Nazaré

Pombagira que tá que ta 100


Olha, olha ê
Pombagira que tá que ta
Olha, olha ê
Pombagira que jambo jambo
Olha, olha ê
Pombagira que jambo jambo
Olha, olha ê
Pombagira olha os inimigo
Olha, olha ê
Pombagira olha os inimigo
Olha, olha ê
Pombagira que a mocanguê
Olha, olha ê

211
Pombagira que a mocanguê
Olha, olha ê
Pombagira olha o seu banquete
Olha, olha ê
Pombagira olha o seu banquete
Olha, olha ê

Pontos de Sotaque
Toque Samba
Mas eu falei abrindo a boca 170
Eu vou falando abrindo a boca
Falei, falei, falei abrindo a boca

A mulhé de Itaparica 170


Bebe água na gamela
Bebo eu e bebo ela
Cachaça na goela dela

Doce é, doce é 168


Um beijinho no coração
Doce é, doce é
Um beijinho no coração
Doce é laranja
Amargo é limão
Doce é laranja
Amargo é limão

Quem não sabe andá 148


Pisa no massapê escorega
Pisa no massapê escorega
Pisa no massapê escorega

Eu vou me amasiá 169


Com a mulé de pouca roupa
Quando a roupa acabá
Jogo fora e pego outra

Quem nunca viu 149


Venha ver
Panela sem fundo
Ferver

212
Ponto de subida
Toque Congo
Encruzilhada já lhe chama 151
Fé, fé, fé
Encruzilhada lhe chamou
Pé, pé, pé

Ponto de Encerramento
Toque Congo
Refletiu a luz divina 51
Em todo seu esplendor
E no reino de Oxalá
Onde há paz e amor
Luz que refletiu na terra
Luz que refletiu no mar
Luz que vem lá de Aruanda
Para tudo iluminar
Umbanda é paz e amor
É o mundo cheio de luz
É a força que nos dá vida
E a grandeza nos conduz
Avante filhos de fé
Como a nossa lei não há
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá
A bandeira de Oxalá
Brilhou, brilhou
A bandeira de Oxalá
Lá no céu já clareou
Clariou na Umbanda
Clariou no mar
Clariou no terreiro
Salve o Pai Oxalá
Clariou na Umbanda
Clariou no mar
Clariou no terreiro
Salve o Pai Oxalá

213
Samba de Roda
Toque Samba
O moinho da Bahia 174
Queimou, queimou
Deixa queimar
O moinho da Bahia
Queimou, queimou
Deixa queimar
Sai, sai, sai ô piaba
Saia da lagoa
Sai, sai, sai ô piaba
Saia da lagoa
Bota a mão na cabeça
Outra na cintura
Dá um remelexo no corpo
E dá uma umbigada na outra

(Gilberto Gil )
176
O moinho da Bahia
Queimou, queimou
Deixa queimar
Abre a roda pra sambar
O moinho da Bahia
Queimou, queimou
Deixa queimar
Abre a roda pra sambar

214
2. Ficha, folhetos e apostilas

Constam neste anexo, alguns materiais que ilustram o conteúdo deste trabalho.

Um folheto dirigido à assistência do Centro Umbandista Rei de Bizara que contém as

normas de conduta exigidas pela casa. Exemplos de folhetos distribuídos nas cerimônias

em homenagem às entidades da direita e algumas apostilas utilizadas nas sessões de

desenvolvimento público. Abaixo, encontramos um modelo da ficha utilizada pela

Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB) para a fiscalização dos rituais

realizados nas casas de culto filiadas.


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3. Lista com as músicas do CD

Faixa/p. Categorias Pontos Cantados


01. (p. 97) Agradeço
02. (p. 164) Pontos de abertura Exu Laroê Exu
03. (p. 114) O sino da igrejinha
04. (p. 146) Abre a porteira Exu
05. (p. 101) Ele já chegou
06. (p. 133) Pontos de chamada Exu da meia noite
07. (p. 165) Pintinho
08. (p. 106) Santo Antônio pequenino
09. (p. 111) Beiramar
10. (p. 150) Capa
11. (p. 126) Cigana
12. (p. 122) Ela é uma Padilha
13. (p. 124) Eu queria saber
14. (p. 115) Eu te avisei
15. (p. 113) Pontos individuais de Exus Exu Caveira
16. (p. 112) e Pombagiras Exu Veludo
17. (p. 166) Labareda
18. (p. 127) Mariano
19. (p. 110) Morador
20. (p. 116) Ô Zé
21. (p. 136) Venha cá meu velho
22. (p. 118) Zé Pilintra
23. (p. 120) Ela é bonita
24. (p. 64) Exu de Duas Cabeças
25. (p. 100) Pombagira que tá que tá
26. (p. 145) Pontos coletivos de Exus Porteira
27. (p 138) e Pombagiras Risada
28. (p. 129) Santo Antônio amarra o nego
29. (p. 167) Tomba Morro da encruzilhada
30. (p. 193) Xô Tomba Morro
31. (p. 170) Abrindo a boca
32. (p. 170) A mulher de Itaparica
33. (p. 168) Pontos de Sotaque Doce é
34. (p. 148) Massapê
35. (p. 169) Mulher de pouca roupa
36. (p. 149) Panela sem fundo
37. (p. 151) Pontos de Subida Encruzilhada já lhe chama
38. (p. 51) Pontos de Encerramento Hino da Umbanda
39. (p. 174) Samba de Roda O Moinho da Bahia
Bibliografia

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1999 “As Religiões Afro-Brasileiras em Vitória da Conquista:

Caminhos da Diversidade.” Dissertação submetida ao Programa de

Mestrado em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre

em Ciências Sociais. São Paulo: Faculdade de Ciências Sociais da

PUC/SP.

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1965 Manual de Coleta Folclórica. Rio de Janeiro: Olímpica.

Andrade, Mário de

1963 Música de Feitiçaria no Brasil. Organização, introdução e notas de

Oneyda Alvarenga. São Paulo: Livraria Martins.

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Arom, Simha

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