Courtine

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Definio de orientaes tericas

e construo de procedimentos em
Anlise do Discurso
Jean-Jacques Courtine
University of Auckland (New Zealand)

TRADUO:
Flvia Clemente de Souza - Universidade Federal Fluminense e
Mrcio Lzaro Almeida da Silva - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Este texto responde a dois objetivos: (1) delinear alguns elementos tericos
e metodolgicos essenciais para um conjunto de trabalhos recentes em Anlise
do Discurso (que denominaremos doravante por AD) (COURTINE, 1979; 1981;
COURTINE e LECOMTE, 1980; COURTINE e MARANDIN, 1982); (2) dar
conta do funcionamento destes elementos, por meio de um projeto cuja aborda-
gem est baseada nos trabalhos de AD, o qual tem por objeto um corpus de discur-
so poltico (COURTINE, 1981) e indica o tipo de resultados para os quais suas
orientaes podem conduzir.

1. OBSERVAES INTRODUTRIAS
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1.1 De incio destacaremos as teses que articulam a concepo que apre-


sentamos aqui.
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(1) H uma ordem do discurso, a qual designamos como materialidade


discursiva, distinta da ordem da lngua.
(2) A materialidade discursiva consiste em uma relao determinada
entre a lngua e a ideologia.

Ns precisaremos estas duas propostas - no esprito das formulaes do


M. Pcheux (1975) e avanaremos no sentido de que o discursivo materializa o
contato entre o ideolgico e o lingustico, na medida em que ele representa no
interior da lngua os efeitos das contradies ideolgicas e onde, inversamente,
manifesta a existncia da materialidade lingustica no interior da ideologia. Isso
provoca, no nosso ponto de vista, as seguintes consequncias:
(a) O discurso como objeto deve ser pensado na sua especificidade. A
adoo de uma concepo especificamente discursiva deve evitar, se
verdade que o discurso pode ser pensado como uma relao entre
o lingustico e o ideolgico, reduzir o discurso anlise da lngua ou
lhe dissolver dentro da perspectiva histrica sobre a ideologia como
representao. Pelo contrrio, se trata de manter a anlise lingus-
tica, da qual certos procedimentos notadamente sintticos forne-
cem a linguagem de descrio e a tcnica de manipulao de sequn-
cias discursivas, e, por outro lado, a anlise histrica das condies de
formao dos conjuntos ideolgicos como discurso. E com isso levar
em conta a materialidade discursiva como objeto prprio, isto , que
produz seu lugar de proposies tericas.

(b) Tais proposies tericas devem conduzir ao estabelecimento dos
procedimentos que venham a realizar a montagem instrumental, sob
a forma de um dispositivo num campo metodolgico. A materializa-
o a partir de procedimentos determinados de um corpo de propo-
sies tericas visando ao discurso como objeto de conhecimento d
ao discurso uma concepo de objeto emprico-concreto ou objeto
real. Esta a condio qual as expresses o objeto da anlise do
discurso, ou ainda o discurso como objeto podem ser empregadas.

Acrescentemos que a construo de tais dispositivos tambm uma condio


de explicao das proposies tericas, na medida em que uma montagem instru-
mental faz dessas proposies uma representao transformada que as ressaltam1. ,
por fim, uma condio de reprodutibilidade e de falseabilidade de uma problemtica.

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1.2 A AD trabalha assim um objeto inscrito na relao da lngua com a his-

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tria. Ns gostaramos, a este respeito, de enfatizar que nos parece que os estudos
de AD em que se faz tal relao constituem uma importante aquisio terica: o
conceito de formao discursiva, por um lado, e a distino entre processos discursivos
e base lingustica por outro.

Se os processos discursivos constituem a fonte da produo dos efeitos de


sentido no discurso, a lngua, pensada como uma instncia relativamente autno-
ma, o lugar material onde se realizam os efeitos de sentido. o que P. HENRY
(1975:94) poderia assim formular:

1 Nota do tradutor: Courtine utiliza, entre aspas, a expresso fait voir, que pode ser traduzida como show ou
espetculo.
A noo de autonomia relativa da lngua caracteriza a indepen-
dncia de um nvel de funcionamento do discurso em relao
s formaes ideolgicas2 que se encontram articuladas, nvel
de formao relativamente autnomo, do qual a lingustica faz
sua teoria (...) Em outros termos, propomos que todo discurso
concreto duplamente determinado, por um lado pelas for-
maes ideolgicas que relacionam estes discursos s suas for-
maes discursivas3 definidas, por outro lado pela autonomia
relativa da lngua, mas propomos que no possvel traar a
priori uma linha de demarcao entre o que pertence a uma
ou outra dessas determinaes.

A distino entre base lingustica e processos discursivos/ideolgicos


decorre da tese colocada acima, a de que essa base faz da relao do lingustico
com o ideolgico a prpria materialidade do discursivo: ela pode autorizar assim
levar em conta as relaes de antagonismo, aliana, recuperao, absoro... entre
as formaes discursivas relevantes de formaes ideolgicas determinadas e ex-
primir, assim, o fato de que dentro de uma dada conjuntura da histria de uma
formao social, caracterizada por um estado de relaes sociais, os sujeitos falan-
tes, naquele momento da histria, pudessem concordar ou discordar do sentido a
dar s palavras, falar diferentemente, ao falar a mesma lngua.

Um ponto se coloca em foco aqui. A categorizao de instncia ideolgica


(formaes ideolgicas, funes discursivas...) que nos permite aqui representar o
exterior da lngua se inscreve na perspectiva do trabalho althusseriano a respeito
das ideologias. O desenvolvimento desta posio em AD poderia assumir a forma
incisiva do projeto de uma teoria do discurso (PCHEUX, 1975), da qual ns
queremos apartar nosso trabalho.
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A referncia a essa expresso retorna com efeito, no campo da AD, a uma


posio teoricista que consistia em dar impulso articulao terica de trs
regies de conhecimento: o marxismo; uma teoria freud-lacaniana do sujeito; e,
finalmente, a Lingustica. Resumindo, uma verso de esquerda do ectoplasma
interdisciplinar que assombra as cincias humanas e sociais.

2 Falaremos em formao ideolgica para caracterizar um elemento susceptvel de intervir como uma fora confronta-
da a outras foras na conjuntura ideolgica caracterstica de uma formao social em determinado momento; cada
formao ideolgica constitui assim complexo conjunto de atitudes e representaes que no so nem individuais
nem universais, mas que se relacionam mais ou menos diretamente com as posies de classe em conflito umas em
relao s outras. (PCHEUX et coll, 1971: 102).

3 As formaes ideolgicas comportam, como um dos seus componentes, uma ou vrias formaes discursivas inter-
relacionadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermo,
de um panfleto, de uma exposio, de um programa etc.), a partir de uma posio dada em uma conjuntura...
(PCHEUX e FUCHS, 1975:11). Ns retomaremos adiante o conceito de formao discursiva.
Convm aqui lembrar aqui que uma interdisciplinaridade orgnica no
pode se constituir pela justaposio de disciplinas que, por suposio, contm a
priori elementos de rigor cientfico susceptveis de esclarecer um problema deter-
minado, a propsito do qual cada uma delas assumiria seus pontos de vista com
algumas diferenas, mas provavelmente complementares, e isso pela simples razo
de que, no caso de que nos ocupamos, o discurso no constitui em nada um objeto
para as trs regies de conhecimento em questo. Muito pelo contrrio, o tra-
balho terico-prtico do discurso como objeto (isto , o trabalho da contradio
entre o objeto real e objeto de conhecimento) que faz surgir a referncia articula-
o interdisciplinar neste objeto, atribuindo-lhe um contedo e uma configurao
precisa. Em suma, a posio teoricista consistiu em substituir o trabalho necessrio a
uma contradio enunciada pela sua resoluo terica, isto , supor o problema teori-
camente resolvido praticamente antes de ter sido posto.

Estas observaes levantam a questo da interveno do marxismo no


campo da AD; se esta ltima tenta apreender os objetos histricos que atravessam
a luta de classes, se qualquer discurso concreto materializa uma posio determi-
nada na luta ideolgica, ento possvel sustentar que o sentido da referncia ao
marxismo, no campo da AD, h de vir da evocao do primado da contradio sobre
seus contrrios bem como do carter desigual4 da contradio (ALTHUSSER, 1975:
148). a partir deste duplo princpio que se deve conceber o recurso ao marxismo
em nosso trabalho: a contradio se constitui um elemento terico que intervm na
representao do real histrico, mas tambm um objeto de anlise, no sentido em
que a existncia de uma contradio desigual entre formaes discursivas antag-
nicas uma das modalidades discursivas que so objeto deste estudo.

Acrescente-se, finalmente, que encontramos, em Arqueologia do Saber, um reflexo


do lugar central em que deve se colocar a questo da contradio na ordem do discurso:

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Tal contradio, longe de ser aparncia ou acidente do discur-
so, longe de ser aquilo de que preciso libert-lo para que ele
libere, enfim, sua verdade aberta, constitui a prpria lei de sua
existncia: a partir dela que ele emerge; ao mesmo tempo
para traduzi-la e super-la que ele se pe a falar; para fugir
dela, enquanto ela renasce sem cessar atravs dele, que ele
continua e recomea indefinidamente, por ela estar sempre
aqum dele e por ele jamais poder contorn-la inteiramen-
te que ele muda, se metamorfoseia, escapa de si mesmo em

4 Nota do tradutor: Courtine se utiliza do termo ngal, entre aspas, cuja definio no se encontra nos dicionrios
de francs. A partir do contexto da citao, com referncias a Althusser, empregamos o termo desigual, que no
francs seria traduzido por ingal.
sua prpria continuidade. A contradio funciona, ento, ao
longo do discurso, como o princpio de sua historicidade.
(Foucault, 1969: 197).

2. DEFINIO DE UM PROJETO DE ANLISE DO DISCURSO


POLTICO

Este projeto duplo: (1) produzir a anlise de uma formao discursiva (dora-
vante FD) a partir de algumas linhas tericas que apenas esboamos; (2) trazer uma
reflexo que ponha em xeque as condies de possibilidade terica de uma AD5.

2.1 As descries adiante foram obtidas a partir da observao de um


corpus particular de discurso poltico: o discurso do Partido Comunista Francs,
mais precisamente o discurso comunista endereado aos cristos a poltica de mo
estendida aos cristos de 1936 a 1976. O discurso comunista um objeto clssi-
co de estudo em AD, mas os trabalhos resultantes dificilmente atendem ao ponto
de vista aqui desenvolvido. Como, de fato, este discurso foi caracterizado?

Seja, e um trabalho recente de LABBE (1977) vem a ser um exemplo, como


um bloco de imobilidade, fechando uma rea de repetio, que apreende o sujeito
falante nas malhas da lgica sem falha de uma gramtica ideolgica, em suma,
como um conjunto de discurso isolado e fechado em si mesmo. Seja, ainda, e aqui
na tradio da anlise sociolingustica do discurso (por exemplo, em MARCELLE-
SI, 1976), como um conjunto diferenciado, puramente contrastivo, se definindo
por proximidade ou por desvio de outros tipos de discurso, em uma dialetologia
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poltica que se apega a assinalar as fronteiras de classificao entre diferentes tipos.


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Essas tentativas representam, a nosso ver, duas modalidades que no abran-


gem o discurso como objeto, o que as conduziria, da nossa perspectiva, a duas in-
terpretaes errneas do conceito de FD: uma FD no um nico discurso para
todos, nem a cada um o seu discurso, mas deve ser pensada como dois (ou
vrios) discursos em um s. Duas modalidades diferentes de um mesmo esqueci-
mento: aquele da contradio como princpio constitutivo de toda FD.

5 Reunimos neste texto os elementos tericos essenciais deste projeto, assim como os tipos de descrio e os resulta-
dos a que ele pode conduzir. Para uma descrio mais detalhada do corpus tomado como objeto, ns remetemos
o leitor a um texto recente, citado na bibliografia (COURTINE, 1981).
Consideramos assim uma FD como uma unidade dividida, uma heterogenei-
dade em relao a si mesma: o encerramento de uma FD fundamentalmente ins-
tvel, ele no consiste em um limite traado separando de uma vez por todas um
interior e um exterior do seu saber, mas se inscreve entre diversas FD como uma
fronteira que se desloca em funo das questes da luta ideolgica.

Isso nos levar adiante a considerar uma redefinio terica do conceito


de FD; podemos, no entanto, identificar desde j os elementos desenvolvidos at
agora, que se constituiro em tarefa prioritria para AD: em vez de caracterizar se-
paradamente ou diferencialmente as FDs, ser preciso identificar as modalidades de
contato entre FD dentro de formaes ideolgicas que unem e dividem ao mesmo
tempo uma contradio desigual; ser preciso caracterizar os efeitos discursivos da
hegemonia ideolgica, colocando em evidncia as formas segundo as quais no inte-
rior de uma FD dominada, os elementos pr-construdos produzidos no exterior
dela mesma so interiorizados, isto , acolhidos, absorvidos, reconfigurados ou,
ao contrrio, negados, ou mesmo ignorados...

2.2 A segunda aba do projeto reside no desenvolvimento de uma reflexo


que questiona as condies de possibilidade de uma AD, propondo um exame crtico
das noes e procedimentos que constituem a aparelhagem conceitual e metodolgica
daquela; mas avanando igualmente sobre cada um dos itens apresentados para consi-
derao, uma redefinio terica dos elementos criticados; e, finalmente, construindo
os procedimentos que tornam operativas as redefinies examinadas e que garantem
assim que no possamos ser acusados de no sermos capazes de substituir.

Tal abordagem se ancora essencialmente sobre as seguintes zonas do


trabalho em AD:

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(1) A noo de condies de produo do discurso e as operaes de
constituio de um corpus discursivo.
(2) A seleo de palavras-chave ou palavras-piv fundamentais na defini-
o de entradas de um tratamento.
(3) Uma conceituao da relao enunciado/enunciao em AD.

3. ETAPAS A SEREM SEGUIDAS PARA A ANLISE DE UM PRO-


CESSO DISCURSIVO

3.1. Elementos crticos

(a) A noo de condies de produo do discurso e as operaes de constituio


de um corpus discursivo.
A noo de condies de produo do discurso regula, em AD, a relao
entre a materialidade lingustica de uma sequncia discursiva e as condies hist-
ricas que determinam sua produo; ela funda, assim, os procedimentos de cons-
tituio de corpus discursivos (conjunto de sequncias discursivas dominadas por
um determinado estado, suficientemente homogneo e estvel, das condies de
produo do discurso).

Esta noo, no entanto, frequentemente conhecida como uma definio


sincrnica ou tende a ser confundida com o que os linguistas denominam situao
de enunciao. Ela tambm pode ser tambm o lugar de confuso entre as deter-
minaes de ordem psicolgica (as representaes subjetivas de uma situao de
comunicao ligadas ao aspecto vivido ou evento de um ato de discurso em
presena dos locutores) e as determinaes propriamente histricas que presidem
produo como efeitos dos discursos enunciados pelos sujeitos; resumidamente,
uma inverso imaginria do real histrico.

Tudo isso no isento de consequncias quanto confeco de corpus dis-


cursivos: as FDs identificadas sobre esta base so conjuntos de discurso sem memria
no sentido do j-dito, e principalmente de elementos pr-construdos (HENRY, 1975;
PCHEUX, 1975), de que a produo de uma sequncia discursiva por um sujeito
enunciador se sustenta, est ausente do plano de constituio do corpus discursivo.
Os discursos sem memria e, ns assinalamos acima, ao abrigo da contradio, no
sentido de que uma nica FD ou, na melhor das hipteses, duas FDs, projetadas
como dois universos paralelos e justapostos de discurso se encontram represen-
tadas no corpus.

(b) A seleo de palavras-chave e definio de entradas de tratamento


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Este procedimento consiste em escolher por diversos meios (hipteses for-


muladas a priori sobre a importncia desta ou daquela palavra em tal conjunto de
discursos; consideraes de ordem estatsticas sobre a frequncia de tal item ...) um
conjunto de termos que se comportam como lista de entradas de um tratamento,
a partir do qual sero feitos vrios tipos de clculos ou de manipulaes (ndices
de recorrncia de tal forma; anlise de co-ocorrncias; constituio de classes dis-
tribucionais de equivalncia...).

As contagens de palavras vm de uma tica pr-sinttica que ignora o fun-


cionamento do discurso como materialidade lingustica, que no pode seno levar
a uma demografia discursiva que ser, na melhor das hipteses, apenas indicativa.
As escolhas efetuadas a priori so a forma no controlada de uma redescoberta dos
juzos de conhecimento do analista (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1979)
sobre a importncia a conferir para tal elemento-piv e sobre a posio efetiva,
descrita sintaticamente, desse elemento no domnio do saber6 de uma FD.

Antecipemos um pouco, com relao exposio de procedimentos que ns


propomos a seguir, a soluo que vamos adotar: uma vez que a questo remar-
car temas do discurso, ns escolhemos constituir uma base formal isso quer
dizer sintxicas para esses procedimentos de rastreamento, para, a partir destas
estruturas sintticas, tecermos a hiptese de que elas podem de fato atribuir a um
elemento lexical determinada interpretao: tema do discurso. Eis a a razo para
recorrermos s estruturas de sentenas clivadas, pseudo-clivadas e pseudo-clivadas
invertidas, do tipo:

X QU P
Aquele QU P X
X aquele QU P

uma vez que elas constituem uma base formal de localizao e identificao
de um elemento X do discurso.

(c) O tratamento da relao enunciado/enunciao em AD

A noo de enunciado no tem estatuto terico na AD, onde muitas vezes


significa a realizao de uma sentena de superfcie, ou ainda uma sucesso de
frases (enunciaes seguidas) cujas leis de encadeamento tm sido at agora
pouco estudadas.

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O enunciado, por vezes, figura como uma proposio lgica, tomos de

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discurso da tradio logicista, cujas combinaes produzem o texto. Acontece
tambm que podemos adicionar a ele um suplemento pragmtico destinado a
fazer um ato de discurso7.

Parece-nos urgente diferenciar o enunciado do domnio das demais pro-


blemticas da lngua ou da lgica, e lhe atribuir uma concepo especificamente

6 Este termo ser definido adiante (no item 3.2 a)

7 No que concerne redefinio da relao entre enunciado e enunciao que vamos propor adiante (cf. 3.2 a) e b)),
queremos enfatizar que este um dos pontos onde a releitura de A Arqueologia do Saber nos pareceu particular-
mente fecunda. Foucault coloca a relao assim: podemos falar do enunciado em si, ou de suas vrias enunciaes
distintas. A enunciao um evento que no se repete. Ela tem uma singularidade situada e datada de modo que
no podemos reduzir. (Foucault, 1969: 134). O enunciado, por oposio, est ligado noo de repetio. Se neu-
tralizarmos a enunciao, seu tempo e seu lugar, o sujeito que a realiza e as operaes que o sujeito usa, so o que
se destaca, uma forma que indefinidamente repetvel e pode dar lugar para as enunciaes mais dispersas.
discursiva, como Foucault (1969: 111) nos convida a fazer ao nos lembrar que o
enunciado no nem uma frase, nem uma proposio lgica... nem, acrescente-se
a mais, um ato de linguagem.

Na tradio de uma lingustica da fala, o enunciado tambm se inscreve em


uma oposio bipolar com a enunciao. A recuperao desta ltima noo em AD
colocou o sujeito do discurso em um modelo de produo de sequncias discursivas
a partir de frases de base pelo vis das regras gramaticais (transformaes) que se
sobrepem, com o estatuto de operaes de enunciao, de um contedo psicol-
gico. Ao ligar a assimilao das condies de produo do discurso a de simples cir-
cunstncias situacionais, ela contribui para operar a psicologizao espontnea de de-
terminaes especificamente histricas do discurso que sinalizamos anteriormente.

necessrio, portanto, a nosso ver, retirar a enunciao de uma problemtica


centrada sobre o sujeito e suas operaes para tentar pensar, por meio da descrio
de posies de sujeito (esta noo explicada adiante) em uma FD, o processo de
assujeitamento, pelo qual um indivduo constitudo em sujeito de seu discurso.

3.2 Alguns elementos de redefinio terica

Este conjunto de crticas conduz elaborao de um quadro terico onde


o problema inicialmente colocado pode ser tratado; deste quadro terico, destaca-
mos aqui dois recursos: (1) o estabelecimento de dois nveis fundamentais na des-
crio de um FD: o do enunciado e o da formulao; (2) o primado atribudo a um
elemento terico central: o interdiscurso.

a) O nvel do enunciado: descrio do interdiscurso de uma FD


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Ns avanaremos na proposta de que no interdiscurso de uma FD8, como


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articulao contraditria de FD e de formaes ideolgicas, que se constitui o


domnio do saber prprio desta FD. A contradio primria, constitutiva da FD:
os objetos, ou elementos do saber, so formados depois.

O domnio do saber de uma FD funciona como princpio de aceitabilidade


discursiva para um conjunto de formulaes (ele determina o que pode e deve ser
dito) ao mesmo tempo em que como o princpio da excluso do no formulvel.

8 O termo interdiscurso (assim como o termo intradiscurso, utilizado adiante) emprestado de Pcheux (1975) e re-
trabalhado a partir de definies que ele lhes deu.
Ele realiza assim o fechamento de uma FD, fronteira cuja instabilidade, tal como
antes, enfatizamos.

O interdiscurso de uma FD deve assim ser pensado como um processo de


reconfigurao incessante pelo qual o saber de uma FD conduzido, em funo
das posies ideolgicas que esta FD representa em uma conjuntura determinada,
a incorporar os elementos pr-construdos produzidos no exterior dela mesma,
para gerar sua redefinio ou retorno; para suscitar tambm a retomada de seus
prprios elementos, a organizar a repetio, mas tambm para lhe provocar, even-
tualmente, seu apagamento9, esquecimento ou mesmo sua degenerao. O inter-
discurso de uma FD, como instncia de formao/repetio/transformao dos
elementos do saber daquela FD, pode ser referido como aquele que rege o desloca-
mento de suas fronteiras.

Chamamos enunciado ([E]) os elementos do saber prprios a uma FD. Ns


concebemos o enunciado como uma forma, ou um esquema geral, que governa a
repetibilidade no seio de uma rede de formulaes.

Uma rede de formulaes consiste em um conjunto estratificado ou desnivela-


do de formulaes, que constituem a mesma quantidade de reformulaes possveis
de [E]. O que chamamos de estratificao ou desnivelamento de formulaes refere-se
dimenso vertical (ou interdiscursiva) de um [E] como rede de formulaes. nestas
redes que se estabiliza a referncia dos elementos do saber: os objetos do discurso so
formados ali como pr-construdos, os [E] os articulam.

tambm a este nvel de constituio do enunciado como elemento do


saber, sob a dominao do interdiscurso, que deve estar situada a instncia do

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sujeito universal (ou sujeito do saber prprio a uma FD, doravante SU), referindo-se

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ao lugar de onde se pode enunciar: todo mundo sabe / v / diz / entende que...
para cada sujeito falante que venha a enunciar uma formulao a partir de um
lugar inscrito na FD. O saber prprio a uma FD assim formado pelo conjunto
de afirmaes referentes ao SU e marca bem que o enuncivel se constitui como
exterior ao sujeito que enuncia.

b) O nvel da formulao: descrio do intradiscurso de uma sequncia


discursiva

9 Nota do tradutor: em francs, o autor usa o verbo reflexivo effacer, que em sentido literal seria quase desaparecer,
sumir deixando marcas.
Denominamos por [e] uma formulao, isto , uma sequncia lingustica (de
dimenso sintagmtica inferior, igual ou superior a uma frase) que uma refor-
mulao possvel de [E] no seio de uma rede de formulaes e que vem marcar a
presena de [E] no intradiscurso de uma sequncia discursiva dominada por uma
FD na qual [E] um elemento do saber.

O intradiscurso de uma sequncia discursiva aparece assim como o lugar onde


se realiza a sequencializao dos elementos do saber, onde desnivelao interdiscursiva do [E]
linearizada, provocando um achatamento em uma superfcie nica de [e] articuladas.

Essa horizontalizao da dimenso vertical de constituio do enunciado


contempornea apropriao por um sujeito enunciador (doravante, L), que
ocupa um lugar determinado no seio de uma FD, de elementos do saber da FD na
enunciao do intradiscurso de uma sequncia discursiva, esta em uma situao
de enunciao dada.

c) Em consequncia: discurso e efeitos discursivos

A distino operada entre nvel do enunciado e nvel da formulao resulta


em certas consequncias, no que concerne ao uso em AD dos termos discurso e sujeito.

Devemos indicar, de fato, que estes termos no denotam objetos dados a


priori, mas sim objetos a construir: ns no nos autorizamos a falar de discursos
que em termos de articulao do plano do interdiscurso e o plano do intradiscur-
so; qualquer caracterizao em termos de funcionamento ou de efeitos discursivos
compromete a relao do enunciado com a formulao, da dimenso vertical e
estratificada, onde se elabora o saber de uma FD, com a dimenso horizontal, na
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qual os elementos deste saber se linearizam, tornando-se objetos de enunciao.


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O mesmo se aplica ao sujeito: se no existe, do ponto de vista que adotamos,


sujeito de discurso nulo, ns identificamos, por outro lado, dentro de uma FD,
diferentes posies de sujeito que constituem as mesmas modalidades da relao
entre o sujeito universal e o sujeito da enunciao (SU / L), do sujeito do enuncia-
do com o da formulao.

Chamaremos de domnio da forma-sujeito, seguindo Pcheux (1975) o


domnio de descrio da produo do sujeito como efeito no discurso; isso equi-
vale a descrever o conjunto das diferentes posies de sujeito em uma FD como
modalidades particulares da identificao do sujeito da enunciao com o sujeito
do saber, com os efeitos discursivos especficos que lhes so associados.
3.3. Construo de procedimentos e resultados

Ns vamos expor aqui, em primeiro lugar, a soluo proposta para o trata-


mento da noo de condies de produo do discurso; em seguida, por mais
tempo, discutiremos uma proposta para a construo do enunciado como objeto.

a) Condies de produo e condies de formao

Poderamos reformular, em funo do quadro terico que foi descrito, as cr-


ticas direcionadas noo de condies de produo do discurso, indicando que
ela opera uma confuso das determinaes especficas aos dois planos de descrio
explicitados: ao do enunciado e ao da formulao. Por isso, necessrio dissociar
segundo estes dois nveis e ento extrair as consequncias quanto constituio de
um corpus discursivo que materializa sob a forma de uma montagem determinada
as exigncias tericas que requer o conceito de FD.

Precisamos primeiro conceber as determinaes especficas ao nvel da for-


mulao: escolher uma sequncia discursiva enquanto manifestao da realizao
de um intradiscurso - como ponto de referncia a partir do qual o conjunto de ele-
mentos do corpus receber sua organizao; relacionar esta sequncia discursiva a
um sujeito e a uma situao de enunciao determinada; mostrar como o sujeito da
enunciao e circunstncias enunciativas so atribuveis (referenciveis) aos lugares
dentro dos aparelhos ideolgicos de uma determinada conjuntura histrica10. Ns
chamamos o conjunto de elementos que foram mencionados como as condies de
produo da sequncia discursiva da referncia.

No entanto, no podemos parar por a: preciso tambm pensar as deter-

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minaes especficas ao nvel do enunciado e as articular aos primeiros. A configu-

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rao em sequncia de formulaes no intradiscurso da sequncia discursiva de
referncia se realiza de fato sob a dependncia do processo discursivo inerente
FD que a domina, de formao discursiva referncia (a FD comunista, neste caso).
Tal processo discursivo est sujeito a condies especficas: sob a dependncia
do interdiscurso que se constitui o saber prprio a uma FD, em redes estratifica-
das de formulaes onde se formam os enunciados. Deve-se, assim, caracterizar as
condies interdiscursivas que dominam o processo discursivo de formao/repro-
duo/transformao dos enunciados dentro das FD de referncia; designaremos
tais condies como condies de formao da FD de referncia.

10 o texto do Appel aux chrtiens de France, pronunciado por G. Marchais em Lyon em 10 de junho de 1976 que
adotaremos como sequncia discursiva de referncia.
Estas redefinies controlam a constituio do corpus discursivos de modo
que representvel a relao do discurso como objeto com dois elementos teri-
cos essenciais em nossa perspectiva: a questo da memria histrica em primeiro
lugar, de que o discurso poltico o produto; a natureza heterognea e contraditria
de toda FD em segundo lugar.

Articular as condies de produo e as condies de formao em um


corpus discursivo dado consistir de fato em corresponder sequncia discursiva
de referncia um domnio de memria, ou seja, um conjunto de sequncias discursi-
vas que pr-existem enunciao da sequncia discursiva de referncia no seio de
um processo; a partir do domnio da memria que ser caracterizada a formao
dos enunciados e que sero analisados o s efeitos que produz, dentro de um proces-
so discursivo, a enunciao de uma sequncia discursiva determinada (efeitos de
recordao, de redefinio, de transformao, mas tambm efeitos de esquecimen-
to, de ruptura, de negao do j-dito). Acrescentemos que o domnio da memria
consiste em uma pluralidade contraditria de sequncias discursivas, em que
algumas so dominadas pela FD de referncia, enquanto que dependente de FD
contraditoriamente ligadas a esta ltima por relaes de antagonismo, escoramen-
to, aliana, recuperao... etc...11

S desta forma nos parece que poderemos, a partir das categorias de proces-
so e de contradio, representar a relao ente interdiscurso e intradiscurso, enun-
ciado e formulao, sujeito do saber de uma FD e sujeito enunciador.

b) A construo do enunciado como objeto: o exemplo do enunciado dividido

Assumimos, como um ponto de partida, a presena, no intradiscurso, de


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formulaes manifestas de estruturas sintticas clivadas, estruturas sobre as quais


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assumimos a hiptese de que tm o efeito de colocar um elemento X, identificado


e localizado, em posio de tema do discurso. Assim:

A violncia, no de ns que ela vem.

Tal frase recebe geralmente uma interpretao contrastiva. Trata-se, na


realidade, nos termos de Gross (1977), por exemplo, de uma frase contrastiva a
um membro, derivada da forma geral:

11 Assim, no caso diante de ns, o domnio de memria rene os principais textos do Partido Comunista Francs sobre
a poltica de mo estendida de 1936-1976, juntamente com os textos antagnicos da Doutrina Social da Igreja.
P1 = X A Y / P2 = X B Y

O contraste tem origem na confluncia de duas frases P1 e P2; estas duas frases
apresentam apenas uma diferena (A/B), A est ento em contraste com B. Um dos
dois membros dessa forma geral pode ser apagado12 (o que pode produzir ambiguida-
de). Podemos, contudo, no caso em questo, reconstruir a parte apagada da formula-
o por meio de um recurso ao contexto (intra ou interdiscursivo). o que realmente
encontramos nas referncias discursivas dominadas pela FD comunista:

NO de comunistas (mas tambm de trabalhadores, proletrios, do povo...) QUE


vem a violncia, do capital (mas tambm da grande burguesia, dos monoplios, da aris-
tocracia do dinheiro ...) QUE ela vem.

Esta formulao tem as seguintes caractersticas:

antagonismo de dois termos (e de seus respectivos sinnimos substitutos)


no saber da FD comunista (comunistas, trabalhadores, proletariados vs.
capital, burguesia, aristocracia do dinheiro...);

uso contrastivo da cpula de identificao ( / NO );

apagamento possvel de um dos dois membros da frase constrastiva;

aplicao de uma transformao de deslocamento + pronominalizao pos-


svel sobre o membro restante.

O intradiscurso da sequncia discursiva de referncia nos serviu como

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ponto de partida. Se fizermos uma verificao no interdiscurso da FD comunis-

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ta neste caso, o domnio de memria no qual fazemos figurar certo nmero de
sequncias discursivas dominadas pela FD catlica encontraremos l facilmente
um conjunto de formulaes que constituem uma rede, com as quais a formulao
de referncia mantm uma relao interdiscursiva. Para dar a forma geral repetvel:

A violncia vem dos comunistas.

Assinalamos, assim, no interdiscurso, uma oposio entre dois elementos:

12 Cf. nota 9
A violncia vem dos comunistas vs. A violncia vem do grande capital, oposio
esta que manifesta a contradio entre dois domnios de saber de FD antagonistas.

Na verdade, estamos diante de uma configurao particular de parfrase


discursiva13 na qual duas formulaes, de forma sinttica determinada (N1 V de
N2), atribuem valores semelhantes (a violncia, vem de) a certos lugares desta estru-
tura e dois valores antagonistas a, pelo menos, um lugar (aqui: N2, que apresenta
dois valores antagonistas xy , neste caso:

comunistas
grande capital

a presena, no interdiscurso, de uma configurao de parfrase discursiva do tipo:

[e]1 P x
[e]2 P y

onde [e]1, [e]2 representam duas formulaes pertencentes a FD antagonistas;

P representa um contexto de formulao comum;

x
y dois valores antagonistas atribudos a um lugar determinado do esquema
sinttico dessas formulaes; que podem desencadear, no intradiscurso
das sequncias discursivas dominadas por essas FD, uma modalidade
contrastiva de identificao sintaticamente realizada por uma frase do
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tipo X QU P interpretao contrastiva.


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Gostaramos de retornar agora aos elementos tericos que nos guiaram at


aqui para colocar em evidncia, a partir da localizao no intradiscurso de formu-
laes do tipo X QU P para a interpretao contrastiva e da construo no in-
terdiscurso da configurao da parfrase discursiva P xy que foi obtida, um modo
particular de contato entre o ideolgico e o lingustico na ordem do discurso, isto
, na ordem da relao do enunciado com a formulao.

13 A noo de parfrase discursiva cobre em AD um procedimento que consiste na construo de classes de equiva-
lncia distribucional, de acordo com o mtodo de Z. Harris (1952), que estabelece a relao de substituio de n
segmentos discursivos num contexto tido como equivalente. Estes segmentos so, ento, ditos em relao de parfrase
discursiva. A FD pode, assim, ser concebida como um espao de reformulao-parfrase.
O discursivo representa bem no interior do funcionamento da lngua os efeitos
da luta ideolgica:

(*) a existncia de contradies ideolgicas que delineia no interdis-


curso configuraes do tipo P xy demonstradas acima, em condies
formais de distribuio, em um contexto de formulao P determi-
nado, dos constituintes que aparecem em {X, Y}; estes constituintes
ocupam uma posio antagnica determinada nos domnios do saber
da FD, para que essas contradies se materializem.

(**) as configuraes de uma tal forma coexistem com a presena no con-


junto de sequncias discursivas pertencentes ao domnio de memria
das FD consideradas, de formulaes que manifestam certa regula-
ridade lexical e sinttica: os constituintes vo ocupar as posies {X,
Y, P} onde P xy so recorrentes nessas formulaes; tambm se pode
detectar a ocorrncia de formas sintticas tais como:

X QU P, MAS NO Y QU P
X QU P, MAS Y QU P2
NO Y QU P
X QU P

e de outras formas sintticas de contraste14. P xy coexiste assim com uma


zona de repetibilidade determinada no interior dos processos dis-
cursivos considerados (recorrncia de certos elementos lexicais/ de
certas formas sintticas).

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O discursivo manifesta inversamente a existncia da materialidade lingustica no inte-
rior da ideologia.

(*) assim a expresso P xy vem, no interdiscurso, materializar a frontei-


ra entre os domnios de saber prprios e as FD antagonistas, indi-
cando, pela no-substitutibilidade dos constituintes que ela pe em
oposio nas condies formais de funcionamento da lngua, a linha
divisria entre o formulvel e o no-formulvel para cada um dos pro-

14 Entre essas outras formas sintticas de contraste podemos notar: as transformaes negativas, as relativas determi-
nativas (que produzem um efeito de clivagem contrastiva sobre seu antecedente), as coordenaes de frases por
mas ou por ao contrrio, certos usos polmicos de aspas etc.
cessos discursivos na articulao contraditria em que se materializa
essa fronteira;

(**) assim as formulaes onde aparecem as estruturas sintticas que vm


sendo mencionadas tm o efeito, no intradiscurso de uma sequncia
discursiva, para a identificao contrastiva que operam sobre os ele-
mentos de saber antagonistas, de apontar, de designar esta fronteira,
de lhe exibir como regra para todo sujeito que deva enunciar ou in-
terpretar tal formulao.

Uma expresso como:

de comunistas
A violncia vem
do grande capital

constitui, portanto, um enunciado. Chamamos este enunciado de enun-


ciado dividido e lhe atribumos a forma geral [E] = P xy . Enumeramos a seguir
algumas caractersticas e condies contguas a essa forma.

{X, Y} representam posies referenciais, no contexto de formulao P, ocupa-


das, no interior de um processo discursivo dado (e/ou nos dois ou possivelmente
vrios processos discursivos), por dois conjuntos de elementos que tomam um
valor antagnico no interior do processo discursivo (e/ou nos dois ou vrios
processos discursivos contraditoriamente ligados).

Ns chamamos esses conjuntos de elementos de clases referenciais.


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So:
X = {a,b,c,d, ...}
Y = {f,g,h,i, ...}
de tal modo que temos a b c d
f , g , h , i ...
P xy recebe assim a interpretao: os elementos (morfemas, sintagmas,
formulaes) em posies referenciais {X, Y} no contexto de formulao P no so
comutveis.

Para que P xy constitua um enunciado, ou seja, uma forma indefinida-


mente repetvel, podendo dar lugar s enunciaes dispersas no seio de um pro-
cesso discursivo, ser necessrio:

(*) que os conjuntos de elementos que venham ocupar as posies {X, Y,


P} sejam recorrentes e co-ocorrentes em um conjunto de formulaes no
interior do processo discursivo. Se a construo de P xy foi possvel
no exemplo desenvolvido, porque foi possvel identificar a recorrn-
cia de certos elementos (a violncia, vem de,...) e a sua co-ocorrncia em
uma estrutura determinada, das formas de invarincia que se repetem
no processo discursivo.

Assim N1 V de N2

VIOLNCIA VEM DE COMUNISTAS.

Chamaremos essa forma de invarincia: base de formulao; as proprieda-


des de repetibilidade das bases de formulao (recorrncia e co-ocorrncia em
um processo discursivo) so designadas como elementos pr-construdos do discur-
so. {PX/PY} representam duas bases de formulao, cuja configurao em uma
forma determinada produz um enunciado. Portanto, podemos redefinir o enun-

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ciado como forma pr-construda da articulao de elementos pr-construdos do discurso.

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(**) P xy uma condio de ocorrncia de formulaes da forma X QU P
/ ESTE QU P X/ X ESTE QU P e de outras formas sintticas que marcam o
contraste, no intradiscurso, de sequncias discursivas dominadas pela FD onde P
x
y um elemento de saber, bem como uma condio de interpretao dos efeitos de
sentido relacionados com o funcionamento contrastivo dessas formas.

A existncia de P xy determina as condies de reformulao no interior do


processo de discursivo e determina a ele uma zona de repetibilidade.
Chamamos de zona de repetibilidade em um processo de discurso as for-
mulaes ou sequncias de formulaes onde podemos identificar os efeitos da
existncia de P xy , isto , onde as condies (*) e (**) so preenchidas.

P xy se inscreve numa relao determinada entre interdiscurso e intradis-


curso no processo discursivo inerente a uma FD; essa relao funciona como regra
para o processo discursivo.

A essa regra podemos dar a forma de uma implicao recproca, que d conta
da forma de coexistncia dos objetos que figuram no plano do interdiscurso (enun-
ciados) e no plano do intradiscurso (formulao). A forma da regra ser:

x
P y X QU P/NO Y QU P

Esta regra (no sentido de regularidade existente no corpus) opera, para a


zona de repetibilidade que nos interessa aqui, a diviso entre o formulvel e o
no-formulvel, fixa os limites da aceitabilidade discursiva, garantindo assim o
fechamento de um domnio do saber.

Conclumos este conjunto de desenvolvimentos em dois pontos: a questo


do sujeito, em primeiro lugar, e um retorno sobre a definio de enunciado, espe-
cificando este como o que no se encontra na AD.
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4. PARA CONCLUIR: A PROPSITO DO SUJEITO E DO


ENUNCIADO

4.1. A definio de uma posio de sujeito. A zona de funcionamento


discursivo ligada ao enunciado dividido se caracteriza pelo fato de que os efeitos
discursivos que ali localizamos entram no registro do funcionamento polmico
do discurso: a reformulao, por um sujeito enunciador, no intradiscurso, de uma
forma de enunciar P xy se realiza por meio das formas lingusticas da refutao.
Assim, podemos tirar, da descrio do enunciado dividido que acaba de ser
feita, as seguintes consequncias para a questo do sujeito: P xy representa bem,
como um elemento de saber, uma expresso referente ao sujeito universal da FD; o
enunciado atribui uma forma determinada quilo que designamos como a exterio-
ridade do enuncivel para um sujeito.

Esta forma particular, no caso do enunciado dividido, que manifesta a


relao entre dois sujeitos de saber antagonistas, o que podemos notar, por analo-
gia com a forma do enunciado: SU 1
SU
2
, no sentido de que PX uma expresso refe-
rente a SU1 e PY uma expresso referente a SU2.

Se uma posio de sujeito se define como uma relao de identificao do


sujeito enunciador com o sujeito universal de uma FD, a especificidade da posio
de sujeito no funcionamento polmico do discurso que essa identificao, atravs
da qual um sujeito falante interpelado/constitudo em sujeito ideolgico, efetua-
-se em um lugar demarcado por uma contradio.

E se o domnio da forma-sujeito constitui bem o domnio da descrio do


sujeito como efeito no discurso, por intermdio das diferentes posies de sujeito
identificadas em uma FD, ns podemos notar que:

SU1
SU2
X QU P/NO Y QU P

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A posio de sujeito polmico como elemento de descrio da forma

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sujeito na FD.

4.2 O enunciado em discurso

Algumas notas, enfim, sobre o que no pode ser o enunciado numa pers-
pectiva especificamente discursiva.
Um esquema geral como P xy no seria assimilado a uma forma de base em
que as estruturas de superfcie da frase X QU P poderiam ser derivadas da inter-
pretao contrastiva; o interdiscurso no pode desempenhar, assim como o intra-
discurso, o papel de uma estrutura profunda (no mais do que uma macroestrutu-
ra textual) a partir do qual podemos considerar a gerao do intradiscurso como
texto. Da mesma forma, a regularidade mostrada acima no uma regra de gerao.

Se a existncia de enunciado distinta daquela da frase ou do texto, ela


tambm no se configura como uma proposio lgica. Uma forma tal que P xy
no um axioma, ou um objeto abstrato a partir do qual poderiam ser aplicadas
regras de deduo. Ao contrrio, X, Y so posies referenciais que no conduzem
a questes sobre o valor de verdade das expresses que podem lhe figurar.

Nem o significado, nem a referncia, no sentido lgico deste termo, so


os objetos de discurso com que AD se preocupa, mas sim suas formas de coexistn-
cia material nos processos onde se constitui o saber das FD.

O conjunto de negaes formuladas designa, contudo, a existncia do enunciado


como um lugar problemtico de nossa abordagem. Essas negaes tm suas razes,
no sentido de que nossa inteno dar um estatuto especfico aos objetos (FD, enun-
ciado, formulaes...), o qual lhes faa existir fora das representaes lingusticas ou
lgicas, em que eles fluam espontaneamente. Tateando o caminho, contaminado com
o empirismo, que tomo emprestado aqui e ali, condenado a apenas lidar com objetos
concreto-abstratos, produtos de generalizaes a partir de observaes empricas.

A Anlise do Discurso nos parece no momento destinada a seguir este


caminho difcil se ela deseja constituir o discurso como objeto, desviando-se das
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consideraes externas sobre uma problemtica da lngua ou da lgica.


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