Courtine
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e construo de procedimentos em
Anlise do Discurso
Jean-Jacques Courtine
University of Auckland (New Zealand)
TRADUO:
Flvia Clemente de Souza - Universidade Federal Fluminense e
Mrcio Lzaro Almeida da Silva - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Este texto responde a dois objetivos: (1) delinear alguns elementos tericos
e metodolgicos essenciais para um conjunto de trabalhos recentes em Anlise
do Discurso (que denominaremos doravante por AD) (COURTINE, 1979; 1981;
COURTINE e LECOMTE, 1980; COURTINE e MARANDIN, 1982); (2) dar
conta do funcionamento destes elementos, por meio de um projeto cuja aborda-
gem est baseada nos trabalhos de AD, o qual tem por objeto um corpus de discur-
so poltico (COURTINE, 1981) e indica o tipo de resultados para os quais suas
orientaes podem conduzir.
1. OBSERVAES INTRODUTRIAS
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1.2 A AD trabalha assim um objeto inscrito na relao da lngua com a his-
1 Nota do tradutor: Courtine utiliza, entre aspas, a expresso fait voir, que pode ser traduzida como show ou
espetculo.
A noo de autonomia relativa da lngua caracteriza a indepen-
dncia de um nvel de funcionamento do discurso em relao
s formaes ideolgicas2 que se encontram articuladas, nvel
de formao relativamente autnomo, do qual a lingustica faz
sua teoria (...) Em outros termos, propomos que todo discurso
concreto duplamente determinado, por um lado pelas for-
maes ideolgicas que relacionam estes discursos s suas for-
maes discursivas3 definidas, por outro lado pela autonomia
relativa da lngua, mas propomos que no possvel traar a
priori uma linha de demarcao entre o que pertence a uma
ou outra dessas determinaes.
2 Falaremos em formao ideolgica para caracterizar um elemento susceptvel de intervir como uma fora confronta-
da a outras foras na conjuntura ideolgica caracterstica de uma formao social em determinado momento; cada
formao ideolgica constitui assim complexo conjunto de atitudes e representaes que no so nem individuais
nem universais, mas que se relacionam mais ou menos diretamente com as posies de classe em conflito umas em
relao s outras. (PCHEUX et coll, 1971: 102).
3 As formaes ideolgicas comportam, como um dos seus componentes, uma ou vrias formaes discursivas inter-
relacionadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermo,
de um panfleto, de uma exposio, de um programa etc.), a partir de uma posio dada em uma conjuntura...
(PCHEUX e FUCHS, 1975:11). Ns retomaremos adiante o conceito de formao discursiva.
Convm aqui lembrar aqui que uma interdisciplinaridade orgnica no
pode se constituir pela justaposio de disciplinas que, por suposio, contm a
priori elementos de rigor cientfico susceptveis de esclarecer um problema deter-
minado, a propsito do qual cada uma delas assumiria seus pontos de vista com
algumas diferenas, mas provavelmente complementares, e isso pela simples razo
de que, no caso de que nos ocupamos, o discurso no constitui em nada um objeto
para as trs regies de conhecimento em questo. Muito pelo contrrio, o tra-
balho terico-prtico do discurso como objeto (isto , o trabalho da contradio
entre o objeto real e objeto de conhecimento) que faz surgir a referncia articula-
o interdisciplinar neste objeto, atribuindo-lhe um contedo e uma configurao
precisa. Em suma, a posio teoricista consistiu em substituir o trabalho necessrio a
uma contradio enunciada pela sua resoluo terica, isto , supor o problema teori-
camente resolvido praticamente antes de ter sido posto.
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Tal contradio, longe de ser aparncia ou acidente do discur-
so, longe de ser aquilo de que preciso libert-lo para que ele
libere, enfim, sua verdade aberta, constitui a prpria lei de sua
existncia: a partir dela que ele emerge; ao mesmo tempo
para traduzi-la e super-la que ele se pe a falar; para fugir
dela, enquanto ela renasce sem cessar atravs dele, que ele
continua e recomea indefinidamente, por ela estar sempre
aqum dele e por ele jamais poder contorn-la inteiramen-
te que ele muda, se metamorfoseia, escapa de si mesmo em
4 Nota do tradutor: Courtine se utiliza do termo ngal, entre aspas, cuja definio no se encontra nos dicionrios
de francs. A partir do contexto da citao, com referncias a Althusser, empregamos o termo desigual, que no
francs seria traduzido por ingal.
sua prpria continuidade. A contradio funciona, ento, ao
longo do discurso, como o princpio de sua historicidade.
(Foucault, 1969: 197).
Este projeto duplo: (1) produzir a anlise de uma formao discursiva (dora-
vante FD) a partir de algumas linhas tericas que apenas esboamos; (2) trazer uma
reflexo que ponha em xeque as condies de possibilidade terica de uma AD5.
5 Reunimos neste texto os elementos tericos essenciais deste projeto, assim como os tipos de descrio e os resulta-
dos a que ele pode conduzir. Para uma descrio mais detalhada do corpus tomado como objeto, ns remetemos
o leitor a um texto recente, citado na bibliografia (COURTINE, 1981).
Consideramos assim uma FD como uma unidade dividida, uma heterogenei-
dade em relao a si mesma: o encerramento de uma FD fundamentalmente ins-
tvel, ele no consiste em um limite traado separando de uma vez por todas um
interior e um exterior do seu saber, mas se inscreve entre diversas FD como uma
fronteira que se desloca em funo das questes da luta ideolgica.
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(1) A noo de condies de produo do discurso e as operaes de
constituio de um corpus discursivo.
(2) A seleo de palavras-chave ou palavras-piv fundamentais na defini-
o de entradas de um tratamento.
(3) Uma conceituao da relao enunciado/enunciao em AD.
X QU P
Aquele QU P X
X aquele QU P
uma vez que elas constituem uma base formal de localizao e identificao
de um elemento X do discurso.
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O enunciado, por vezes, figura como uma proposio lgica, tomos de
7 No que concerne redefinio da relao entre enunciado e enunciao que vamos propor adiante (cf. 3.2 a) e b)),
queremos enfatizar que este um dos pontos onde a releitura de A Arqueologia do Saber nos pareceu particular-
mente fecunda. Foucault coloca a relao assim: podemos falar do enunciado em si, ou de suas vrias enunciaes
distintas. A enunciao um evento que no se repete. Ela tem uma singularidade situada e datada de modo que
no podemos reduzir. (Foucault, 1969: 134). O enunciado, por oposio, est ligado noo de repetio. Se neu-
tralizarmos a enunciao, seu tempo e seu lugar, o sujeito que a realiza e as operaes que o sujeito usa, so o que
se destaca, uma forma que indefinidamente repetvel e pode dar lugar para as enunciaes mais dispersas.
discursiva, como Foucault (1969: 111) nos convida a fazer ao nos lembrar que o
enunciado no nem uma frase, nem uma proposio lgica... nem, acrescente-se
a mais, um ato de linguagem.
8 O termo interdiscurso (assim como o termo intradiscurso, utilizado adiante) emprestado de Pcheux (1975) e re-
trabalhado a partir de definies que ele lhes deu.
Ele realiza assim o fechamento de uma FD, fronteira cuja instabilidade, tal como
antes, enfatizamos.
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sujeito universal (ou sujeito do saber prprio a uma FD, doravante SU), referindo-se
9 Nota do tradutor: em francs, o autor usa o verbo reflexivo effacer, que em sentido literal seria quase desaparecer,
sumir deixando marcas.
Denominamos por [e] uma formulao, isto , uma sequncia lingustica (de
dimenso sintagmtica inferior, igual ou superior a uma frase) que uma refor-
mulao possvel de [E] no seio de uma rede de formulaes e que vem marcar a
presena de [E] no intradiscurso de uma sequncia discursiva dominada por uma
FD na qual [E] um elemento do saber.
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minaes especficas ao nvel do enunciado e as articular aos primeiros. A configu-
10 o texto do Appel aux chrtiens de France, pronunciado por G. Marchais em Lyon em 10 de junho de 1976 que
adotaremos como sequncia discursiva de referncia.
Estas redefinies controlam a constituio do corpus discursivos de modo
que representvel a relao do discurso como objeto com dois elementos teri-
cos essenciais em nossa perspectiva: a questo da memria histrica em primeiro
lugar, de que o discurso poltico o produto; a natureza heterognea e contraditria
de toda FD em segundo lugar.
S desta forma nos parece que poderemos, a partir das categorias de proces-
so e de contradio, representar a relao ente interdiscurso e intradiscurso, enun-
ciado e formulao, sujeito do saber de uma FD e sujeito enunciador.
11 Assim, no caso diante de ns, o domnio de memria rene os principais textos do Partido Comunista Francs sobre
a poltica de mo estendida de 1936-1976, juntamente com os textos antagnicos da Doutrina Social da Igreja.
P1 = X A Y / P2 = X B Y
O contraste tem origem na confluncia de duas frases P1 e P2; estas duas frases
apresentam apenas uma diferena (A/B), A est ento em contraste com B. Um dos
dois membros dessa forma geral pode ser apagado12 (o que pode produzir ambiguida-
de). Podemos, contudo, no caso em questo, reconstruir a parte apagada da formula-
o por meio de um recurso ao contexto (intra ou interdiscursivo). o que realmente
encontramos nas referncias discursivas dominadas pela FD comunista:
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ponto de partida. Se fizermos uma verificao no interdiscurso da FD comunis-
12 Cf. nota 9
A violncia vem dos comunistas vs. A violncia vem do grande capital, oposio
esta que manifesta a contradio entre dois domnios de saber de FD antagonistas.
comunistas
grande capital
[e]1 P x
[e]2 P y
x
y dois valores antagonistas atribudos a um lugar determinado do esquema
sinttico dessas formulaes; que podem desencadear, no intradiscurso
das sequncias discursivas dominadas por essas FD, uma modalidade
contrastiva de identificao sintaticamente realizada por uma frase do
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13 A noo de parfrase discursiva cobre em AD um procedimento que consiste na construo de classes de equiva-
lncia distribucional, de acordo com o mtodo de Z. Harris (1952), que estabelece a relao de substituio de n
segmentos discursivos num contexto tido como equivalente. Estes segmentos so, ento, ditos em relao de parfrase
discursiva. A FD pode, assim, ser concebida como um espao de reformulao-parfrase.
O discursivo representa bem no interior do funcionamento da lngua os efeitos
da luta ideolgica:
X QU P, MAS NO Y QU P
X QU P, MAS Y QU P2
NO Y QU P
X QU P
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O discursivo manifesta inversamente a existncia da materialidade lingustica no inte-
rior da ideologia.
14 Entre essas outras formas sintticas de contraste podemos notar: as transformaes negativas, as relativas determi-
nativas (que produzem um efeito de clivagem contrastiva sobre seu antecedente), as coordenaes de frases por
mas ou por ao contrrio, certos usos polmicos de aspas etc.
cessos discursivos na articulao contraditria em que se materializa
essa fronteira;
de comunistas
A violncia vem
do grande capital
So:
X = {a,b,c,d, ...}
Y = {f,g,h,i, ...}
de tal modo que temos a b c d
f , g , h , i ...
P xy recebe assim a interpretao: os elementos (morfemas, sintagmas,
formulaes) em posies referenciais {X, Y} no contexto de formulao P no so
comutveis.
Assim N1 V de N2
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ciado como forma pr-construda da articulao de elementos pr-construdos do discurso.
A essa regra podemos dar a forma de uma implicao recproca, que d conta
da forma de coexistncia dos objetos que figuram no plano do interdiscurso (enun-
ciados) e no plano do intradiscurso (formulao). A forma da regra ser:
x
P y X QU P/NO Y QU P
SU1
SU2
X QU P/NO Y QU P
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A posio de sujeito polmico como elemento de descrio da forma
Algumas notas, enfim, sobre o que no pode ser o enunciado numa pers-
pectiva especificamente discursiva.
Um esquema geral como P xy no seria assimilado a uma forma de base em
que as estruturas de superfcie da frase X QU P poderiam ser derivadas da inter-
pretao contrastiva; o interdiscurso no pode desempenhar, assim como o intra-
discurso, o papel de uma estrutura profunda (no mais do que uma macroestrutu-
ra textual) a partir do qual podemos considerar a gerao do intradiscurso como
texto. Da mesma forma, a regularidade mostrada acima no uma regra de gerao.
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LABBE, D. Le discourscommuniste.Paris: Presses de laFondationNationale desscien-
ces politiques, 1977.
MARCELLESI, J.B. Analyse de discours entrelexicale, dans Langages, no 41,
Paris: Didier/Larousse, 1976.
PECHEUX, M. Lesvrits de la Palice.Paris: Maspro, 1975.
PCHEUX, M., HAROCHE, C. et HENRY, P. La smantique et la coupuresaus-
surienne: langue, langage, discours dans Langages, no 24, Paris: Didier/Larousse,
1971, p. 93-106.
PCHEUX, M. et FUCHS, C. Misesau point et perspectives propos delAAD
dans Langages, no 37. Paris: Didier/Larousse, 1975, p. 7-80.