Descartes e o Realismo - Silvio Chibene PDF

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ARTIGO PUBLICADO EM REFLEXO, N. 57, PP. 35-53, 1993.

DESCARTES E O REALISMO CIENTIFICO 1

SILVIO SENO CHIBENI

Departamento de Filosofia - IFCH

Universidade Estadual de Campinas

13081 - Campinas - SP - Brasil

RESUMO: Este artigo inicialmente situa o problema do realismo cientfico no quadro das
doutrinas epistemolgicas, explicando exatamente como ele surge. Aps fornecer uma classificao
e descrio das principais posies a respeito desse problema, alguns dos principais argumentos pr
e contra o realismo cientfico so identificados nos Princpios da Filosofia, de Descartes.

ABSTRACT: This paper situates the problem of scientific realism against the background of the
main epistemological doctrines, explaining precisely how it arises. After presenting and classifying
the main positions which have been taken regarding the problem, some of the chief arguments for
and against scientific realism are identified in Descartes's The Principles of Philosophy.

1. INTRODUO.

A Epistemolgia, que , como o nome indica, o estudo ou cincia do conhecimento, compreende

basicamente dois grandes problemas: quais so as fontes do conhecimento (em que ele se

fundamenta, quais os processos pelos quais o adquirimos) e qual a sua extenso (quais as coisas que

podem ser conhecidas e quais as que no podem). Ao longo da histria da Filosofia, esses dois

problemas epistemolgicos quase nunca foram tratados separadamente, j que h conexes entre

eles. Porm, para fins didticos a distino til, e podemos classificar as doutrinas

epistemolgicas em dois grupos principais, conforme se ocupem de um ou de outro desses

problemas.

1 Texto referente a palestra apresentada em 26 de maio de 1992 no Salo Nobre da Pontifcia Universidade Catlica de
Campinas, a convite do Departamento de Ps-Graduao em Filosofia dessa universidade.
2

No caso do problema das origens e fundamentao do conhecimento, h essencialmente

duas posies antagnicas:

i) Empirismo. Sustenta que o conhecimento se baseia e se adquire atravs do que se

apreende pelos sentidos. Admite-se, alm dos sentidos externos (viso, audio, tato, olfato e

paladar) a participao de um sentido interno (introspeco), que nos informa acerca de nossos

sentimentos, estados de conscincia e memria. Como quase toda doutrina filosfica, o empirismo

encontra razes na Grcia Antiga, entre os filsofos da tradio jnica, cujo pricipal representante

foi Protgoras. Essa doutrina ganhou novo mpeto com a revoluo cientfica do sculo XVII, e

seus principais defensores no perodo moderno foram John Locke (1632-1704), George Berkeley

(1685-1753) e David Hume (1711-1776).

ii) Racionalismo. Mantm que as fontes do verdadeiro conhecimento encontram-se no nas

instveis e subjetivas impresses sensoriais, mas na razo. Como no caso do empirismo, tambm

essa doutrina j era defendida entre os gregos, pelos filsofos da escola eletica (Parmnides), por

Plato e pelos atomistas (Leucipo, Demcrito). Na era moderna, seu principal expoente foi Ren

Descartes (1596-1650).

Naturalmente, possvel manter-se uma posio empirista acerca de determinado tipo de

conhecimento e racionalista acerca de outro. De fato, freqente, por exemplo, que empiristas com

relao ao conhecimento do mundo fsico sejam racionalistas com relao ao conhecimento

matemtico. E mesmo dentro de uma mesma rea cabvel sustentar-se posies diferentes quanto

origem do conhecimento, dependendo do tipo de proposio envolvida. Esse o caso da teoria

epistemolgica de Immanuel Kant (1724-1804); segundo ela, nosso conhecimento da fsica

parcialmente a priori (como no caso das leis dinmicas de Newton) e parcialmente emprico, ou a

posteriori (a lei da gravitao universal e a lei de Boyle, por exemplo).

Foge ao escopo deste trabalho discutir e avaliar, ou mesmo apresentar de forma sistemtica,

as mltiplas variantes dessas doutrinas epistemolgicas sobre a origem do conhecimento. Notemos

apenas que, como resultado das profundas transformaes sofridas pela fsica em nosso sculo (que,

entre outras conseqncias, levaram descrena na verdade universal das leis da dinmica
3

newtoniana), o racionalismo com relao ao conhecimento do mundo fsico aparentemente perdeu

muito de sua plausibilidade.

Passemos agora questo dos limites do conhecimento. Aqui, a oposio principal se d

entre a doutrina epistemolgica do realismo e uma srie de doutrinas com nomes diversos, ditas

genericamente anti-realistas.

Poucos conceitos filosficos tm recebido caracterizaes to diversas quanto o de realismo.

Em um sentido amplo, o termo realismo denota uma determinada posio filosfica acerca de certas

classes de objetos, ou de proposies sobre esses objetos. Consideram-se, por exemplo, os objetos

matemticos, os universais, os objetos materiais ordinrios, as entidades no-observveis postuladas

pelas teorias cientficas, etc.

Em uma formulao puramente metafsica, o realismo sobre os objetos de uma dessas

classes se caracteriza pela afirmao de que os objetos em questo realmente existem, ou

desfrutam de uma existncia independente de qualquer cognio, ou esto entre os constituintes

ltimos do mundo real. Pode-se pois ser realista com relao a uma classe ou classes de objetos e

anti-realista com relao a outras.

Outros filsofos preferem (por razes que no examinarei aqui) formular o realismo em

termos parcialmente epistemolgicos. Michael Dummett, para tomar um exemplo importante,

prope que por realismo entendamos a doutrina segundo a qual as proposies da classe em

disputa possuem um valor de verdade objetivo, independente de nossos meios para conhec-lo: so

verdadeiras ou falsas em virtude de uma realidade que existe independentemente de ns.

Correspondentemente, caracteriza o anti-realismo como a viso segundo a qual as proposies da

classe em disputa devem ser entendidas somente com referncia ao tipo de coisa que contamos

como evidncia para uma proposio dessa classe (Dummett 1978, p. 145).

As posies anti-realistas por vezes recebem nomes especiais, de acordo com a classe de

objetos em questo. Assim, o anti-realismo com relao s entidades matemticas conhecido por

construtivismo; com relao aos objetos materiais ordinrios por fenomenalismo; com relao aos

universais por nominalismo. O anti-realismo cientfico recebe vrias denominaes, dependendo de


4

como a tese do realismo cientfico negada. Vejamos isto com alguma extenso, pois esse tipo de

realismo que nos interessa presentemente.

2. REALISMO CIENTFICO.

Comearei oferecendo algumas formulaes do realismo cientfico comumente encontradas

na literatura: i) Algumas das entidades no-observveis postuladas pela cincia (e.g. eltrons, vrus,

campos magnticos)2 realmente existem; ii) A cincia investiga um mundo independente de nossa

cognio; iii) Vale a lei do terceiro excludo para as proposies tericas da cincia, interpretadas

literalmente, e o que as faz verdadeiras ou falsas so suas conexes com uma realidade

independente de nossa cognio; iv) A cincia objetiva a nos fornecer, em suas teorias, uma

estria literalmente verdadeira de como o mundo; e a aceitao de uma teoria cientfica envolve a

crena de que ela verdadeira (van Fraassen 1980, p. 8).

Considero que as doutrinas filosficas que negam o realismo cientfico devam ser divididas

em dois grandes grupos, segundo partilhem ou no com o realismo cientfico a concepo clssica

da verdade (verdade como correspondncia com fatos objetivos). O primeiro desses grupos tem

sido chamado empirista na literatura contempornea, o que d azo a freqentes mal-entendidos,

pois se confunde esse uso do termo com o uso tradicional, para designar a doutrina epistemolgica
sobre a fundamentao do conhecimento que se ope ao racionalismo.

No segundo grupo esto as doutrinas filosficas denominadas relativistas, idealistas ou

construtivistas, que adotam uma das vrias concepes no-clssicas da verdade, nas quais em geral

no vale a lei do terceiro excludo. Os exemplos mais importantes so a concepo da verdade

como coerncia (uma proposio verdadeira se for coerente com todas as demais proposies

aceitas), e a concepo de Dummett-Putnam (uma proposio verdadeira se for asservel com

segurana [warrantedly assertible]). Essa forma de anti-realismo representa um rompimento

profundo com o realismo, e via de regra no se limita ao domnio das proposies cientficas;

2 Por brevidade, e com um certo abuso de expresso, daqui por diante me referirei a tais entidades pela expresso
`entidades tericas da cincia', e s proposies a seu respeito por `proposies tericas da cincia', ou simplesmente
por `proposies tericas'.
5

tipicamente, as motivaes para prop-la ligam-se a questes filosficas bastante gerais, de que no

tratarei aqui.

O anti-realismo cientfico do tipo empirista em geral associa-se a uma postura realista

quanto aos objetos materiais ordinrios. A bem da clareza, julgo importante distinguir trs doutrinas

diferentes neste tipo de anti-realismo: instrumentalismo, redutivismo e empirismo construtivo.

a) Instrumentalismo. Essa doutrina, que talvez possa mais apropriadamente ser

denominada instrumentalismo semntico, sustenta que as proposies tericas da cincia so na

verdade instrumentos de clculo ou predio, ou ainda regras de inferncia, que auxiliam a conexo

e a estruturao das proposies sobre coisas e processos observveis (proposies

observacionais). Portanto, segundo o instrumentalismo as proposies tericas no so

proposies genunas, mas pseudo-proposies, s quais no se aplicam os conceitos de verdade e

falsidade. Podem ser escolhidas livremente pelo cientista, conforme a sua utilidade e convenincia,

no cumprindo, ao contrrio do que prope o realista cientfico, nenhuma funo descritiva de

aspectos no-observveis do mundo.

b) Redutivismo. Para o redutivista, as proposies tericas da cincia so proposies

legtimas, porm de fato referem-se (indiretamente) apenas ao que observvel; so abreviaes

para proposies mais complexas sobre entidades e processos observveis. As proposies tericas

no devem, portanto, ser interpretadas literalmente, mas reduzidas a proposies observacionais

atravs de certas convenes lingsticas (regras de correspondncia) para que seu verdadeiro

contedo emprico e significado se evidenciem. Essa forma de anti-realismo foi advogada pelos

positivistas lgicos; inicialmente, pretendiam que a reduo se fizesse em termos puramente

fenomenolgicos (i.e., as proposies reduzidas deveriam conter apenas conceitos lgicos e

referentes a qualidades sensveis); posteriormente, a proposta evoluiu para o fisicalismo (as

proposies reduzidas poderiam tambm incluir conceitos referentes a coisas materiais ordinrias).

As proposies que no fossem passveis de reduo eram dadas pelos positivistas lgicos como

metafsicas, destitudas de significado genuno. A tarefa da filosofia seria, segundo eles, a de

proceder anlise lgica da linguagem da cincia de modo a que essas proposies metafsicas

fossem identificadas e eliminadas.


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c) Empirismo Construtivo. Proposta por Bas van Fraassen em seu famoso livro, The

Scientific Image (1980), essa doutrina procura oferecer uma alternativa anti-realista tanto ao

instrumentalismo semntico como ao redutivismo, e poderia ser chamada de instrumentalismo

epistemolgico. Segundo van Fraassen, as proposies tericas da cincia so proposies genunas

e devem ser interpretadas literalmente (i.e., no devemos procurar reduzi-las); porm a deter-

minao de seu valor de verdade no constitui o objetivo da cincia. A cincia objetiva a nos

fornecer teorias que so empiricamente adequadas; e a aceitao de uma teoria envolve, como

crena, apenas que ela empiricamente adequada (van Fraassen 1980, p. 12).

J dissemos que o instrumentalismo, o redutivismo e o empirismo construtivo compartilham

a concepo da verdade como correspondncia. Alm disso, sustentam que o conhecimento no

apenas se fundamenta na evidncia dos sentidos (i.e., so doutrinas empiristas, no sentido original

do termo), mas tambm que ele se limita estritamente ao que pode ser fornecido por essa evidncia,

ou seja, ao que diretamente observvel pelos sentidos, sendo este o sentido em que so hoje ditas

empiristas.3

Notemos, ademais, que virtualmente todos os realistas cientficos de hoje tambm so

empiristas no sentido clssico. Isso os coloca na embaraosa situao de terem que justificar a

extenso dos limites do conhecimento para alm da evidncia emprica direta. Tm, pois, que

recorrer a princpios no-empricos (freqentemente referidos como princpios super-empricos),

como a simplicidade, o poder explicativo, a unidade, etc. precisamente nisso que reside o alvo

primordial das crticas anti-realistas contemporneas: alega-se que o apelo a tais princpios significa

um rompimento com os ideais empiristas, introduzindo inaceitveis elementos subjetivos no

conhecimento (ver e.g. van Fraassen 1980, 1985).

Reexpressando esse ponto crucial em outras palavras: Os realistas cientficos

contemporneos e seus rivais empiristas compartilham a crena de que o conhecimento provm

da experincia, ou seja, do que se apreende pelos sentidos. A divergncia surge, porm, quando

3 Essa afirmao naturalmente precisa, a rigor, ser qualificada, se no se est assumindo uma posio fenomenalista.
Dissemos acima que, de fato, nas discusses contemporneas em geral se adota uma posio realista quanto aos objetos
ordinrios. Nesse caso, claro que j se est admitindo que o conhecimento vai alm do que pode ser fornecido pelos
sentidos.
7

tomam para objeto de anlise epistemolgica as teorias cientficas que baseiam suas previses e

explicaes dos fenmenos em supostos mecanismos inacessveis observao direta:4 Os anti-

realistas mantm que as proposies referentes a tais mecanismos esto fora do alcance do conhe-

cimento humano, e os realistas pretendem que podemos de algum modo conhec-las, i.e.,

determinar se so verdadeiras ou falsas.

As teorias cientficas construtivas so ditas subdeterminadas empiricamente, ou seja, os

dados empricos so por princpio insuficientes para determinar o valor de verdade de algumas das

proposies fundamentais da teoria. , pois, possvel -- e h exemplos disso na histria da cincia --

que duas teorias incompatveis em suas leis tericas sejam empiricamente equivalentes, isto ,

coincidam no que dizem a respeito do que observvel. Para manter sua posio, o realista

cientfico tem que enfrentar esse problema da subdeterminao emprica das teorias, e

necessariamente tem de faz-lo recorrendo a princpios super-empricos, dando assim lugar crtica

do adversrio. O realista tm de atribuir valor epistmico a tais princpios, para que possam ser

usados na discriminao epistmica entre teorias empiricamente equivalentes.

Um aceso debate se trava nos dias de hoje em torno desse problema. Dada a natureza

introdutria deste trabalho, e as limitaes de espao, no adentrarei esse debate aqui, prefirindo,

antes, trazer considerao do leitor algumas das observaes feitas sobre o assunto por um grande

pioneiro da filosofia e da cincia modernas: Ren Descartes. Isso possibilitar um primeiro contato

com alguns dos principais argumentos pr e contra o realismo cientfico, expostos sem a

sofisticao conceitual e terminolgica das discusses contemporneas.

3. DESCARTES E O REALISMO CIENTFICO

Descartes foi o primeiro filsofo da era moderna a sentir de perto a importncia do problema do

realismo cientfico. Por um lado, perseguia o ideal de fundamentao rigorosa do conhecimento;

por outro, foi o criador da primeira teoria abrangente e detalhada da estrutura da matria,

4 Note-se que a maioria das teorias cientficas mais importantes so desse tipo; so denominadas teorias construtivas,
em oposio s teorias fenomenolgicas, que se limitam a descrever e correlacionar fenmenos.
8

apresentada nos Ensaios, e, de modo sistemtico, nas Partes 3 e 4 dos Princpios da Filososofia.5

Essa teoria explica os fenmenos fsicos recorrendo ao de corpsculos microscpicos,

imperceptveis aos sentidos, dotados apenas de qualidades que Locke mais tarde diria primrias

(i.e., forma, tamanho, movimento, nmero e arranjo das partes), e cujo comportamento regido

pelas leis mecnicas deduzidas por Descartes de certos princpios metafsicos, na Parte 2 dos

Princpios. Surge ento naturalmente a questo de como a existncia e as propriedades de tais

entidades podem ser conhecidas.

Contrariamente ao que se poderia esperar a partir das caractersticas gerais de sua proposta

epistemolgica e de algumas de suas afirmaes mais salientes, Descartes encontra muita

dificuldade em estabelecer o seu alegado conhecimento das entidades e mecanismos imperceptveis

que comparecem em sua teoria, conforme veremos a seguir. A tal respeito, importante observar

que as fontes no-empricas de conhecimento, propostas por Descartes nas Meditaes e na Parte 1

dos Princpios, mostram-se cada vez mais insuficientes na medida em que ele avana alm das leis

mecnicas fundamentais.6 E ao adentrar o terreno emprico, Descartes topa de frente com o

problema do realismo cientfico, que, como vimos, uma conseqncia natural da filosofia

empirista.

Um aspecto intrigante e ainda insuficientemente esclarecido da argumentao cartesiana

que, paradoxalmente, Descartes avana argumentos tanto a favor como contra o realismo cientfico.

Neste artigo me absterei de investigar esse ponto.

Nos pargrafos 42 a 47 da Parte 3, e nos pargrafos finais da Parte 4 dos Princpios (187 et

seqs.), Descartes tece interessantes consideraes metodolgicas e epistemolgicas acerca das

teorias fsicas formuladas nessa obra. Nos pargrafos 187 e 199 da Parte 4 Descartes expressa a

opinio de que, a exemplo das coisas j consideradas, pode-se dar conta de todos os fenmenos da

Terra e dos Cus atravs do mesmo tipo de explicao, ou seja, pelo movimento e disposio de

corpsculos de determinadas formas e tamanhos. Do pargrafo 189 at o pargrafo 198 Descartes

desenvolve sua famosa e influente teoria da percepo, que naturalmente obedece a esse mesmo

5 Primeira edio, em Latim, publicada em 1644; traduo francesa autorizada, 1647.

6 Ver, sobre esse ponto, as originais anlises da obra cartesiana feitas por Zeljko Loparic (1975, 1989 e 1991).
9

modelo mecnico. Assim, Descartes faz uso essencial de entidades e mecanismos no-observveis

em sua explicao tanto da Natureza como de sua percepo pelos seres humanos.

Seguindo uma ordem racional, conveniente iniciarmos nossa anlise pelo pargrafo 201 da

Parte 4.7 Descartes comea apresentando uma primeira defesa do realismo cientfico, associando a

posio oposta ao empirismo:

Talvez se diga que eu considero muitas partes em cada corpo que so to pequenas que no podem
ser sentidas, e que eu deveria saber que isso no ser aprovado por aqueles que tomam os seus sentidos para a
medida das coisas que podem ser conhecidas. Porm, parece-me constituir grande ofensa ao raciocnio
humano pretender que ele no v mais longe que os olhos.

Prosseguindo, Descartes defende a tese preliminar de que certo que os corpos sensveis

[sensibles] so compostos de partes insensveis [insensibles]. Para tanto adianta dois argumentos:

i) Argumento do crescimento e decrescimento contnuo e insensvel de determinadas coisas, como

as plantas; ii) Argumento da divisibilidade ao infinito. Descartes reconhece que este segundo

argumento no persuade a todos, pois h os que no admitem a divisibilidade ao infinito. Aduz

ento consideraes aparentemente destinadas a emprestar mais suporte tese em foco:

a) Descartes aplica suas leis mecnicas e da fisiologia dos sentidos para explicar de modo

natural os limites de nosso aparelho sensorial: os corpsculos microscpicos no tm fora para

mover os nervos.8

b) Descartes defende a superioridade das explicaes mecnicas do tipo das suas, onde a

operao dos corpsculos imperceptveis encontra analogia nas operaes dos corpos sensveis,

sendo pois inteligveis, em contraste com as explicaes que recorrem a noes como a de matria

primeira, a de formas substanciais, etc., que, diz, so ainda mais difceis de conhecer do que todas

as coisas que se pretende explicar atravs delas.

A seguir, no pargrafo 4-202, Descartes toma o cuidado de apontar as diferenas entre seus

princpios e os de Demcrito (historicamente rejeitados em favor dos de Aristteles): Descartes

7 Daqui em diante adotarei a seguinte conveno: `P-N' denota o pargrafo N da parte P. Assim, por exemplo, o
pargrafo que acaba de ser referido ser denotado por `4-201'.

8 Note-se que isto parece conflitar com a prpria teoria da percepo elaborada um pouco antes; afinal, so os
corpsculos imperceptveis que, atingindo os nervos, produzem em ns as sensaes de luz, som, cheiro, etc.
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repudia o atomismo, o vazio, o peso como qualidade primria, acrescentando que havia ainda outro

motivo importante para rejeitar a filosofia de Demcrito (ou pelo menos o que dela se conhece):

Demcrito no explicou em particular como todas as coisas teriam se formado unicamente pelo

encontro desses pequenos corpos; ou, se ele explicou algumas, as razes que deu no dependiam

umas das outras de modo a que ficasse patente que toda a Natureza podia ser explicada desse

mesmo modo. Assim, Descartes aponta certas caractersticas super-empricas que faltavam teoria

de Demcrito (mas no sua, conforme se infere): a coerncia e integrao dos princpios e a

abrangncia da teoria. Disso deduzimos que tomava tais virtudes como fornecedoras de evidncia a

favor da verdade de uma teoria que as exiba. Estamos, pois, diante de um argumento tpico a favor

do realismo cientfico.

No pargrafo 4-203 Descartes tenta responder de modo direto a questo central de como

pde chegar ao conhecimento das entidades microscpicas no-observveis que emprega em sua

teoria; essa resposta tem quatro partes:

1) As nicas noes claras e distintas que podemos ter das coisas materiais so as de formas,

tamanhos e movimentos, e das regras pelas quais tais coisas se combinam (Geometria e Mecnica).

Portanto, conclui, julguei ser necessariamente preciso que todo o conhecimento que os homens

podem ter da Natureza fosse buscado exclusivamente a.

2) A seguir examinei todas as principais diferenas que se podem encontrar entre as

formas, tamanhos e movimentos dos diversos corpos insensveis, em razo unicamente de sua

pequenez, e quais efeitos sensveis podem ser produzidos pelas diferentes maneiras pelas quais se

combinam.

3) Depois, quando encontrei efeitos parecidos nos corpos que nossos sentidos percebem,

pensei que eles [os efeitos produzidos pelos corpos insensveis] podiam ter sido produzidos desse

modo.

4) Por fim, acreditei que infalivelmente o foram, quando me pareceu ser impossvel

encontrar em toda a extenso da Natureza alguma outra causa capaz de os produzir. Nisto o

exemplo de muitos corpos compostos pela arte dos homens muito me serviu: pois no reconheo
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nenhuma diferena entre as mquinas feitas pelos artesos e os diversos corpos compostos apenas

pela Natureza [...] . por isso que, do mesmo modo que um relojoeiro, ao ver um relgio que ele

no fez, ordinariamente pode julgar, a partir de algumas partes que ele v, quais so todas as

demais, que ele no v, assim tambm eu, ao considerar as partes sensveis dos corpos naturais,

esforcei-me para conhecer quais devem ser suas partes que so insensveis.

Como transparece, a resposta de Descartes tem vrios pontos bastante vulnerveis. Primeiro,

ele busca uma ontologia que possa em princpio ser conhecida, de acordo com a sua teoria

epistemolgica; a possibilidade de o mundo conter entidades e mecanismos incognoscveis no

considerada. Depois, a tarefa referida na etapa 2 obviamente no pode ser cumprida estritamente,

pois envolveria um nmero infinito de passos. Na etapa 3 Descartes procura conferir plausibilidade

aos seus modelos microscpicos atravs de meras analogias com mecanismos macroscpicos. Por

fim, um dos pontos mais duvidosos refere-se a um elo faltante entre as etapas 2 e 3: Como

Descartes reduziu a infinidade de modelos compatveis com as leis mecnicas e com os fenmenos

a apenas um? No h no texto qualquer resposta a tal questo. Alm disso, interessante observar

que no pargrafo seguinte (4-204) Descartes conceder que o exemplo do relgio ilustra nossa

incapacidade de, pela inspeo dos fenmenos, determinar univocamente a sua causa.

Antes de considerarmos essa intrigante mudana de posio, voltemos por um momento

Parte 3 dos Princpios, onde Descartes j havia aduzido razes para suas convices realistas,

razes estas que diferem substancialmente das que acabamos de examinar. No pargrafo 3-42

Descartes recorre a um importante princpio super-emprico que, em roupagem diferente, muito

discutido em nossos dias. Trata-se da capacidade de a teoria adiantar-se aos fatos. Descartes

considera que embora, para ser verdadeira, uma teoria deva poder dar conta de todos os fenmenos,

no necessrio que nas etapas iniciais de sua elaborao se considere a totalidade deles, mas

apenas os mais gerais. Um forte argumento para a verdade da teoria surgir ento, caso

articulaes subseqentes revelem sua capacidade de dar conta dos demais fenmenos, no

considerados inicialmente. Vejamos este trecho do pargrafo em questo:

Mas creio que para [conhecer a verdadeira natureza do mundo visvel] no seja preciso que desde o incio
consideremos todos [os fenmenos], mas que ser melhor tratarmos de encontrar as causas dos mais gerais,
que propus aqui, a fim de, posteriormente, ver se dessas mesmas causas podemos tambm deduzir todos os
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outros mais particulares, que no levamos em conta ao procurar essas causas. Pois se encontrarmos ser esse o
caso, isso constituir um argumento muito forte para nos assegurar que estamos no caminho verdadeiro. (3-42)

O pargrafo seguinte dedicado exposio de um argumento realista que depende

essencialmente de um princpio bsico da epistemologia cartesiana, mas difere do argumento da

Parte 4 examinado acima, no apresentando as deficincias que nele observamos. Vejamos esse

pargrafo em sua ntegra:

Que no verossmil [vray-semblable] que as causas das quais se podem deduzir todos os fenmenos sejam
falsas.

Certamente, se os princpios dos quais me sirvo so muito evidentes, se as conseqncias que deles tiro esto
fundadas sobre a evidncia das Matemticas, e se o que assim deles deduzo concorda exatamente com todas as
experincias, parece-me que seria cometer uma injria contra Deus acreditar que sejam falsas as causas que
desse modo encontramos para os efeitos que esto na Natureza: pois seria querer torn-lo culpado por nos
haver criado to imperfeitos que pudssemos nos enganar mesmo quando usamos bem a razo que ele nos deu.
(3-43)

O argumento realista aqui apresentado , portanto, o de que se dispusermos de um sistema

dedutivo rigoroso, com axiomas evidentes, e que d conta perfeitamente bem dos fenmenos,

consistiria um atentado bondade divina supor que as proposies tericas desse sistema no so

verdadeiras, ou seja, no representam a realidade.

Notemos que parte substancial desse argumento retm seu interesse mesmo para aqueles

que, por alguma razo, no podem aceit-lo em sua ntegra: a idia de que se uma teoria prediz

corretamente uma grande quantidade e variedade de fenmenos improvvel que seja falsa acerca

do mundo sub-fenomnico de que suas predies empricas dependem. Este , com efeito, o

conhecido argumento da coincidncia csmica, para o qual J.J.C. Smart, entre outros, tem

chamado a ateno em nossos dias.9

Seja porque sentisse a fragilidade de seus argumentos realistas, seja porque temesse

represlias da Igreja Romana (uma preocupao constante de Descartes), ou ainda por algum outro

motivo, o fato que Descartes faz concesses anti-realistas nos pargrafos que seguem

imediatamente queles em que apresenta os seus principais argumentos realistas. Comecemos pelo

9 Ver Smart 1968. Quando acoplado ao j mencionado argumento que explora a capacidade de a teoria adiantar-se aos
fatos, esse argumento parece constituir a mais persuasiva razo para a crena na verdade das teorias cientficas maduras
contemporneas, que no apenas so de uma abrangncia enorme, mas ainda contam a seu favor inmeros casos de
antecipao qualitativa e quantitativa de fenmenos os mais variados.
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pargrafo 44 da Parte III, que contrasta nitidamente com o anterior, que acaba de ser transcrito:

Que no quero no entanto asseverar que as [causas] que proponho sejam verdadeiras.

Mas visto que as coisas de que trato aqui no so de pouca importncia, e que poderiam talvez pensar que eu
fosse demasiadamente ousado se afirmasse haver encontrado verdades que no foram descobertas por outros,
prefiro nada decidir a tal respeito, a fim de que cada um seja livre para pensar sobre isso o que melhor lhe
parea. Desejo que o que irei escrever seja tomado unicamente como uma hiptese, que pode estar muito
distante da verdade; mas ainda que esse seja o caso, acreditaria ter feito muito, se todas as coisas que dela
forem deduzidas estiverem inteiramente conformes s experincias: se isto se der, ela [a hiptese] no ser
menos til vida do que se fosse verdadeira, porque se poder servir dela do mesmo modo para dispor as
causas naturais para produzir os efeitos que se deseje. (3-44)

Prosseguindo nessa direo, Descartes vai ao ponto de asseverar, nos pargrafos seguintes

(3-45 et seqs.), que ele assumir algumas hipteses que sabe, pela razo natural, serem falsas.

Trata-se das famosas hipteses cosmognicas, que constituem como que a base a partir da qual

desenvolver sua teoria sobre a estrutura atual do mundo. Descartes acrescenta (3-47) que a

falsidade dessas hipteses no impede que o que delas for deduzido seja verdadeiro. Evidente-

mente, do ponto de vista estritamente lgico essa uma afirmao a que no se pode objetar.

Todavia, representa uma violao da intuio cientfica subjacente ao argumento realista da

coincidncia csmica, que Descartes acabava de expor: No parece fisicamente razovel

sustentar-se que dedues feitas a partir de uma base de premissas falsas produzam, sistemtica e

invariavelmente, conseqncias verdadeiras em grande cpia.

Passemos agora ao pargrafo 204 da Parte 4, cujo ttulo Que sobre as coisas que nossos

sentidos no percebem, suficiente explicar como elas podem ser; e que isso tudo o que

Aristteles procurou fazer. Como j vimos, Descartes finaliza o pargrafo anterior com a analogia

do relgio, para argumentar a favor do realismo cientfico. Agora, Descartes inicia o pargrafo

expondo de forma clara a dificuldade central da defesa da posio realista dentro de uma

epistemologia empirista: a subdeterminao emprica das teorias que envolvem entidades no-

observveis.10 Para tanto, prossegue naquela analogia, ligeiramente modificada, e considera o caso

de dois relgios, idnticos por fora, mas que diferem em seus mecanismos internos. Quando se

esperaria uma trplica, surpreendentemente encontra-se a admisso plena de que a objeo correta

10 Na Parte III, pargrafos 15 a 17, Descartes j havia considerado um exemplo real de subdeterminao emprica: as
teorias de Coprnico e de Tycho Brah so empiricamente equivalentes, se consideradas unicamente do ponto de vista
astronmico.
14

(o grifo meu):

Poder-se- replicar a isso que embora eu haja talvez imaginado causas que poderiam produzir efeitos
parecidos [semblables] aos que vemos, no devemos da concluir que os efeitos que vemos so de fato
produzidos por elas. Pois, assim como um relojoeiro industrioso pode fazer dois relgios que marcam as horas
do mesmo modo, e entre os quais no h nenhuma diferena no que aparece exteriormente; e que, apesar disso,
no tm nenhuma semelhana na composio de suas engrenagens; assim tambm certo que Deus possui
uma infinidade de diferentes meios atravs de cada um dos quais pode ter feito que todas as coisas deste
mundo paream tal qual presentemente parecem, sem que seja possvel ao esprito humano conhecer qual
desses meios quis ele empregar para faz-lo. Com isto no tenho nenhuma dificuldade em concordar. E creria
j ter feito o bastante se as causas que expliquei so tais que todos os efeitos que podem produzir forem
parecidos com os que vemos no mundo, sem me indagar se por elas ou por outras que so produzidos. Creio
mesmo ser to til para a vida conhecer as causas assim imaginadas quanto ter o conhecimento das ver-
dadeiras: Pois a Medicina, as Mecnicas e em geral todas as artes s quais o conhecimento da Fsica pode
servir, no tm por objetivo seno aplicar os corpos sensveis uns sobre os outros de modo que, por
conseqncia de causas naturais, alguns efeitos sensveis sejam produzidos. E isso faremos to bem con-
siderando a conseqncia de algumas causas daquele modo imaginadas, mesmo que falsas, quanto se elas
fossem verdadeiras, visto que supomos essa conseqncia parecida, no que diz respeito aos efeitos sensveis.
(4-204)

Notemos que neste pargrafo encontramos um Descartes bastante preso aos limites dos

sentidos, conforme se infere da admisso da impotncia do esprito humano para penetrar os

verdadeiros mecanismos no-observveis pelos quais Deus produz os fenmenos. No pargrafo 46

da Parte 3 tambm encontramos uma significativa concesso ao empirismo:

J observamos acima que todos os corpos que compem o Universo so feitos de uma mesma matria,
divisvel em todos os tipos de partes, j dividida em muitas [partes] movidas diversamente, e cujos
movimentos so de algum modo circulares; e que h sempre uma igual quantidade de tais movimentos no
mundo. Mas no pudemos determinar dessa mesma maneira qual o tamanho das partes nas quais essa matria
est dividida, nem qual a rapidez com que se movem, nem quais crculos descrevem. Pois tendo tais coisas
podido ser ordenadas por Deus em uma infinidade de maneiras diversas, unicamente pela experincia, e no
pela fora da razo que podemos saber qual dentre todas essas maneiras ele escolheu. por isso que agora
estamos livres para supor aquela que queiramos, contanto que todas as coisas que dela sero deduzidas
concordem inteiramente com a experincia. (3-46)

Chama-nos a ateno aqui a bvia incapacidade da experincia para desempenhar o papel

que Descartes lhe atribui no penltimo perodo, quando se trata de escolher, entre os vrios

mecanismos no-observveis que poderiam produzir os fenmenos, aquele que efetivamente os

produz. Foi talvez percebendo esse fato que Descartes imediatamente mudou o tom, dizendo que

temos, nesta questo, licena para fazer suposies.

No pargrafo 4-205 Descartes inicia um movimento de recuo de suas concesses anti-

realistas, introduzindo a categoria da certeza moral, isto , aquela suficiente para regular nossos

costumes. Ilustra-a atravs dos exemplos de nossa certeza de que Roma uma cidade da Itlia e da

que temos ao encontrar uma soluo para um enigma de letras trocadas; este ltimo comparado
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aos seus modelos mecnicos, nos quais a combinao de uns poucos elementos suficiente para

explicar uma infinidade de fenmenos fsicos. Mais uma vez estamos diante do interessante

argumento realista da coincidncia csmica. Vejamos os trechos relevantes desse pargrafo:

Que porm se tem uma certeza moral de que todas as coisas deste mundo so tais como foi aqui demonstrado
que podem ser.

[...] E se algum, para adivinhar uma mensagem cifrada escrita com letras ordinrias, resolve ler um B em todo
lugar onde houver um A, e um C onde houver um B, substituindo assim no lugar de cada letra aquela que a
segue na ordem do alfabeto; e lendo-a dessa maneira encontra palavras que fazem sentido, de nenhum modo
duvidar que seja esse o sentido da mensagem, embora possa ocorrer que aquele que a escreveu lhe tenha dado
um sentido completamente diferente, atribuindo outra significao a cada uma das letras. Pois [esta ltima
hiptese] s muito dificilmente pode ocorrer, principalmente quando a mensagem contm muitas palavras, de
modo que ela no moralmente crvel. Ora, se se considerar o grande nmero das diversas propriedades do
m, do fogo e de todas as outras coisas do mundo, que foram deduzidas de modo evidentssimo de um nmero
muito pequeno de causas, propostas por mim no comeo deste tratado, ainda que se imagine que eu as tenha
inventado ao acaso, sem que a razo me tivesse persuadido delas, nem por isso se deixaria de ter pelo menos
tanta razo para julgar que elas so as verdadeiras causas de tudo aquilo que delas deduzi, quanto se tem para
crer que se encontrou o verdadeiro sentido de uma mensagem cifrada, quando se v que ele segue da
significao que conjeturalmente se deu a cada uma das letras. (4-205)

Para finalizar, observemos que embora a essncia do argumento da coincidncia csmica

possa ser identificada tanto neste pargrafo como no pargrafo 3-43, comentado anteriormente, h

uma importante diferena na fora das concluses tiradas. Equanto que naquele pargrafo Descartes

pretendeu mostrar a verdade -- i.e., a certeza absoluta, ou, como ele diz, metafsica -- de sua

teoria, agora argumenta simplesmente a favor de sua certeza moral, ou, como diramos hoje, de

seu alto grau de probabilidade. Esse enfraquecimento est naturalmente ligado ao fato de Descartes

no haver aqui apelado para o princpio metafsico da bondade divina.

Se tomarmos essa ltima posio como a mais representativa do pensamento de Descartes

quanto ao estatuto epistemolgico de suas teorias cientficas -- e creio que uma anlise global e

cuidadosa de sua obra apie essa interpretao --, ento poderamos talvez dizer que Descartes se

aproxima bastante da posio dos realistas cientficos contemporneos, visto que em nosso sculo o

conceito de conhecimento deixou de incluir a certeza absoluta como ingrediente essencial (ao

menos para os filsofos empiristas, bem entendido).

REFERNCIAS:

CHURCHLAND, P.M. & HOOKER, C.A. (eds.) Images of Science. Chicago, University of
16

Chicago Press, 1985.

DESCARTES, R. Les Principes de la Philosophie. In: C. ADAM & P. TANNERY (eds.) Oeuvres
de Descartes. Tomo IX-2. Paris, Vrin, 1971. (1a ed. latina 1644; francesa 1647.)

DUMMETT, M. Truth and Other Enigmas. London, Duckworth, l978. (Cap. 10: Realism.)

LOPARIC, Z. Descartes segundo a ordem das dificuldades. Discurso. Ano V, n. 6, pp. 151-85,
1975.

----------. Paradigmas cartesianos. Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia. Srie 2, 1 (2): 185-
212, 1989.

----------. Sobre o mtodo de Descartes. Manuscrito. 14 (2): 93-112, 1991.

SMART, J.J.C. Between Science and Philosophy. New York, Ramdom House, 1968.

VAN FRAASSEN, B.C. The Scientific Image. Oxford, Clarendon Press, 1980.

----------. Empiricism in the Philosophy of Science. In: CHURCHLAND & HOOKER 1985, pp.
245-308.

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