Foucault e A Genealogia Da Verdade
Foucault e A Genealogia Da Verdade
Foucault e A Genealogia Da Verdade
GENEALOGIA DA VERDADE
NOTAS SOBRE A ONIPRESENÇA, A
IRREFUTABILIDADE, A AUSÊNCIA E A
UNIVERSALIDADE DA VERDADE
Abstract: This study presents some of the main characteristics attributed to the
truth as revealed in a genealogy of truth from the thought of Michel Foucault.
It is therefore to establish a connection between the ubiquity of the truth, the
irrefutability of the truth, the absence of the truth and the universality of truth
– characteristics historically attributed to truth, whose mapping, meaning and
intelligibility are conceptualized with reference to Foucault’s genealogy. Finally, it
will be settled a link between the universality of truth and the juridical forms that
establish, through the procedures of inquiry, the production of testimonial truth
as a sign of evidence of the truth.
Nº 6 - 02/2014
Foucault e a genealogia da verdade
Notas sobre a onipresença, a irrefutabilidade, a ausência e a universalidade da verdade, pp. 140 - 165.
II. Introdução
A
genealogia é a arte de restituir a mentira na própria mentira – trata-se de,
escutando a voz que fala por trás, trazer à frente a voz que fala. A genealogia
é posta em marcha por um conjunto de minhocas que perfuram a terra para
fertilizá-la; estes seres rastejantes, cegos e pequenos o suficiente para se infiltrarem na
estranheza das entranhas que separam os pequenos grãos, revelam para nós o segredo
da terra. Pois a genealogia é a descoberta de um segredo: o segredo de que não há
segredo. Eis porque o segredo mente: ele é “algo inteiramente diferente” porque ele não
é o que diz ser, ele não é o que dele dizem, ele não é um segredo. É, portanto, a pesquisa
de origem que constitui esse segredo a ser dessacralizado pela genealogia; e é aí que
encontramos o principal postulado de origem que, segundo Foucault (1988), liga os
postulados de que as coisas portam um segredo e de que há uma plenitude viva em seu
início. Esta ligação entre o segredo e a origem situa, portanto, o lugar da verdade.
A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder
ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história a
tornou inalterável. E, além disso a questão da verdade, o direito que
ela se dá de refutar o erro, de se opor à aparência, a maneira pela
qual alternadamente ela foi acessível aos sábios, depois reservada
apenas aos homens de piedade, em seguida retirada para um mundo
de fora de alcance, onde desempenhou ao mesmo tempo o papel
de consolação e de imperativo, rejeitada enfim como ideia inútil,
supérflua, por toda parte contradita – tudo isto não é uma história, a
história de um erro que tem o nome de verdade? (FOUCAULT, 1988,
p.19, grifos meus).
Ora, mas a genealogia da verdade mostrará que essa coisa que não pode ser
refutada é também qualificada como algo que não existe: “na raiz daquilo que nós
conhecemos e daquilo que nós somos não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade
do acidente” (FOUCAULT, 1988, p.21, grifos meus). O que não pode ser refutado e o que
não existe é – pasmemo-nos! – precisamente aquilo que se encontra em todo e qualquer
lugar: “em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista (...)
ela está presente aqui e em todo lugar” (FOUCAULT, 1988, p.113). É exatamente essa
onipresença da verdade que aparece no texto A Casa dos Loucos, mesma circunstância
irrefutabilidade.
Em A Casa dos Loucos (FOUCAULT, 1988), a verdade aparece como aquilo que
adormece em todo e qualquer tempo e lugar, à espera de que um olhar apurado possa
fazê-la tomar consciência de sua luz e despertá-la de seu sono.
É esta verdade-céu que reside em todos os lugares para onde se lança o olhar.
Trata-se de uma verdade que não acontece, mas que já está e já é sempre, que é
completamente indiferente em relação ao seu destinatário e ao seu caçador. Existe, pois,
uma coisa um tanto mágica chamada verdade que apaga as fronteiras e as diferenças
entre o que já está ali, o que nunca pode estar inteiramente aqui, o que está em todo
canto e o que sempre estará. A esta verdade-céu, Foucault (2012) opõe a verdade-raio:
“eu gostaria de fazer valer a verdade-raio contra a verdade-céu” (p.305, grifos meus).
metáfora utilizada por Deleuze (2009) para falar do caráter unilateral da diferença. A
diferença em si mesma, segundo este último, é a diferença que difere de uma coisa que,
por sua vez, não difere da diferença. A diferença é o processo de um divórcio unilateral:
separar-se daquilo que não opera uma separação. O exemplo utilizado por Deleuze
(2009) é precisamente o movimento que ocorre entre o relâmpago e o céu negro:
Este movimento operado por Foucault (2012) ao dizer que isto é, na realidade,
aquilo ou que isto é, no fundo, aquilo não consistirá simplesmente em uma atitude
de tradução, de codificação ou de representação da verdade-céu na verdade-raio.
Diferentemente deste entendimento, penso que “no fundo” e “na realidade” significam,
aqui, na imanência. Esta imanência da verdade constituiria um modo de perspectivação
que permite não somente perceber os efeitos de deformação na imanência operados
pela transcendência da verdade (a verdade-céu), mas também efetivamente situar-se
em um registro contrário, de oposição ou de resistência a esta transcendência. Isto
implica uma força a mais, uma vontade excedente, uma alegria transbordante. Não é
simplesmente que o raio consiga se livrar e se fazer diferença em seu divórcio com o céu:
mas o raio é a própria queda do céu!
negativa do termo Alethéia: A-létheia, o que não se esconde, o que não é esquecido,
o que não é dissimulado, o que é completamente visível. Ao fazer referência a essa
forma negativa de A-léthes, Foucault (2011) opera também um curioso deslocamento,
mostrando uma afinidade de A-léthes com A-trekes. Se A-léthes significa algo como
“não-oculto”, A-trekes “quer dizer reto, etimologicamente significa exatamente ‘não-
curvo’” (FOUCAULT, 2011, p.192, grifos meus). O verdadeiro é, portanto, aquilo
que é reto, aquilo que é reto por ser não-curvo, não-torto, não-dobrado, não-penso.
Trata-se de uma cisão bastante explorada por Foucault (2011a), no curso de 1982: A
Hermenêutica do Sujeito, no que diz respeito à relação entre o sujeito e a verdade.
É possível aqui citar dois exemplos de como Foucault tematiza essa ausência
da verdade. O primeiro diz respeito à relação entre o sonho e a verdade, tal como
analisado no curso de 1980, intitulado Do Governo dos Vivos. Nesta ocasião, Foucault
(2010), dando o exemplo do sonho como forma privilegiada de aleturgia (a saber, de
manifestação da verdade), nos mostra como a Psicanálise nada mais faz do que reativar
o tipo de aleturgia que, há séculos, tem realizado a cisão entre o sujeito e a verdade. No
sonho a verdade é dita precisamente porque o sujeito não fala por si, na segurança de
si, no território de si.
A verdade, se é que ela aparece no dito, não provirá deste. A verdade – houve
uma “forte tendência” para assim colocar as coisas – aparece sempre como exterior ao
sujeito que enuncia e ao dito que diz alguma coisa. A verdade vem sempre de fora, chega
sempre do fora – e se este fora indica o lugar da ausência, poderá indicar também o lugar
da universalidade. Ora, se a verdade vem sempre do fora, qualquer um, em princípio,
estará capacitado para dizer a verdade. O correlato disto, contudo, será precisamente
o de que ninguém poderá dizer efetivamente o que é a verdade em sua inteireza ou em
sua exatidão. Esse ponto foi explorado por Foucault (2012), em O Poder Psiquiátrico,
quando fala sobre aqueles qualificados para dizer algo sobre a verdade-céu, ou verdade-
demonstração – a saber, a verdade que está em todo lugar à espera de qualquer um para
(não de qualquer modo) desvelá-la.
No texto A Casa dos Loucos, Foucault (1988) aponta com uma sublinhável
perspicácia três momentos de uma história da verdade: a) Momento de passagem de
uma verdade-prova para uma verdade-constatação e imposição da verdade sob a forma
de conhecimento; b) Momento de universalização da verdade pelo desbravamento das
terras inexploradas; c) Momento da produção calculada da verdade.
Este momento é referido por Foucault como a conquista das terras, a era das
grandes navegações, o tempo das grandes viagens – todo o desbravamento de um
mundo até então inexplorado. A partir disto, foi possível agenciar o procedimento
jurídico-político do inquérito sobre a própria natureza: a natureza é que deveria ser
interrogada e responder às questões fundamentais, colocadas agora pelo “Homem em
Geral”. Trata-se, assim, de um tipo de tecnologia que é não somente anterior à técnica
de produção, mas que constitui condição de possibilidade para ela.
Não é possível, todavia, que essa verdade possa se abrir aos instrumentos de
inquisição e aventura sem que, antes, a própria verdade não tenha sido recoberta e
codificada sobre a forma-conhecimento.
Teríamos, portanto, vivido um momento em que a verdade não era algo que
deveria se constatar, mas se provar. A manifestação da verdade não era uma descoberta,
mas uma demonstração ritualística de força, um juramento, uma promessa, uma
dramatização, um teste. Para que a verdade se manifestasse, era necessária não uma
exatidão ou uma integração daquilo que era manifesto com um mundo anterior. Um
discurso, um ritual ou uma prova eram verdadeiros não porque descobriam uma
verdade, mas porque faziam a verdade acontecer. Como bem percebe Larrauri (1999),
o discurso poderoso era verdadeiro porque fazia acontecer a verdade em seu ato de
enunciação, ou seja, que com o que ele dizia ocorria que as palavras e as coisas passavam
a coincidir. Assim, a verdade-prova era verdadeira não porque revelava, descobria ou
mostrava nada, mas porque possuía força para fazer as coisas acontecerem.
1
O interesse de Foucault pelo mito Édipo-Rei é algo que se manifesta em distintos momentos de sua
obra. Citamos aqui cinco ocasiões em que este mito foi por ele trabalhado: no custo ministrado em 1971
no Collège de France intitulado Aulas sobre Vontade de Saber, em uma conferência proferida em 1972 em
Buffalo intitulada O Saber de Édipo, no ciclo de conferências A Verdade e as Formas Jurídicas, proferida
no Rio de Janeiro em 1973, no curso Do Governo dos Vivos e, por fim, no curso O Governo de Si e dos
Outros também ministrado no Collège de France intitulado em 1983.
p.31). Édipo, portanto, constitui não um símbolo do desejo e da culpa, mas o signo
de uma partição entre saber e poder que teve suas origens em um modo de produzir a
verdade inteiramente dependente de uma aleturgia testemunhal.
Ora, mas não seria evidente que a verdade dependeria de algo como uma
aleturgia testemunhal? Não faz parte da própria verdade que haja alguém que tenha
visto, presenciado, compartilhado o acontecimento para que se possa dizer: “eis a
verdade”? Isto não é efetivamente evidente, e o que Foucault (2011b, 1988) faz, tanto
em A Verdade e as Formas Jurídicas quanto no texto A Casa dos Loucos, é mostrar a
passagem de uma produção da verdade enquanto prova, teste, demonstração de força e
uma produção da verdade enquanto constatação, testemunho, revelação, verificação ou
reconstrução da realidade precisa de um acontecimento. Ambas, contudo, constituem
formações de verdade ancoradas em procedimentos jurídicos.
acontecimentos de extrema relevância para este paralelo entre uma história do direito
e uma história da verdade: a) A figura do soberano como alguém que, representando
todo o povo, é lesado pelo crime e deve ser ressarcido; b) A figura da testemunha que
constitui aquele que viu e pode falar a verdade do crime; c) O procedimento do inquérito
(na falta da testemunha ou do flagrante) como aquilo que pode restituir a atualidade do
acontecimento do crime.
O procurador vai dublar a vítima, vai estar por trás daquele que
deveria dar a queixa, dizendo: “Se é verdade que este homem lesou um
outro, eu, representante do soberano, posso afirmar que o soberano,
seu poder, a ordem que ele faz reinar, a lei que estabeleceu foram
igualmente lesadas por esse indivíduo. Assim, eu também me coloco
contra ele”. O soberano, o poder político vêm, desta forma, pouco a
pouco substituir a vítima. Este fenômeno, absolutamente novo, vai
permitir ao poder político apossar-se dos procedimentos judiciários.
O procurador se apresenta, portanto, como o representante do
soberano, lesado pelo dano (FOUCAULT, 2011b, p.66).
mais ser obtida pelos mecanismos da prova. O rei ou seu representante, o procurador,
não podem arriscar suas próprias vidas ou seus próprios bens cada vez que um crime
é cometido” (FOUCAULT, 2011b, p.67). Como então assegurar o confisco e, com ele,
a riqueza e o poder sem submeter-se ao azar, ao acaso, à imprevisibilidade da prova?
Eis aqui uma questão fundamental que uma genealogia da mentira da verdade mostra
como sendo uma das grandes mesquinharias e baixezas atuantes na construção deste
templo magno na verdade. A solução será ainda mais rasteira e rastejante – e, segundo
Foucault (2011b), “este é um dos grandes momentos da história do Ocidente” (p.68).
Referências bibliográficas:
_____. Do Governo dos Vivos. Tradução de Nildo Avelino. Rio de Janeiro: Achiamé,
2010.
_____. A Casa dos Loucos. Em: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. (pp.113-