Artigo: O Critério de Cientificidade Por Meio Das Virtudes
Artigo: O Critério de Cientificidade Por Meio Das Virtudes
Artigo: O Critério de Cientificidade Por Meio Das Virtudes
Adilson Koslowski
RESUMO
O problema da demarcação é uma das clássicas questões em filosofia da ciência. Ele não teve
muita atenção nas últimas décadas entre os filósofos da ciência comparada àquela recebida no
início do século XX, contudo continua sendo importante. Pensamos existirem várias formas
de buscar uma solução ao desafio. Apresentaremos uma proposta que tem suas origens na
filosofia da ciência de Thomas Kuhn (1973). A escolha de teorias é baseada nas virtudes
cognitivas e pragmáticas das teorias.
PALAVRAS-CHAVE: O problema da demarcação. Virtudes. Filosofia da ciência. Thomas
Kuhn.
ABSTRACT
The problem of demarcation is one of the classic questions in philosophy of science. It has not
had much attention in recent decades among philosophers of science compared to that
received in the early twentieth century, yet still important. We think there are several ways to
find a solution to the challenge. We will present a proposal which has its origins in the
philosophy of science Thomas Kuhn (1973).
KEY WORDS: The problem of demarcation. Virtues. Philosophy of science. Thomas S.
Kuhn.
Professor de Filosofia na Universidade Federal do Sergipe/DFL. E-mail: [email protected].
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
492
Adilson Koslowski
INTRODUÇÃO
Nosso objetivo neste texto é sustentar a abordagem que remonta a Thomas Kuhn em
seu ensaio Objetividade, juízo de valor e escolha teórica de 1973, dez anos após A estrutura
das revoluções científicas (1962)1, presente posteriormente em seu livro Tensão Essencial, de
1977. Pretendemos estabelecer algumas virtudes que possam nos orientar na decisão de ser
uma teoria científica ou não. Semelhante ao médico que diagnostica seu paciente por meio de
certos sintomas, mutatis mutandis, por meio das virtudes nós podemos estabelecer se uma
teoria é científica ou não.
Não acreditamos que uma teoria geral possa dirimir todos os problemas quando nos
deparamos com alguma visão que se supõe científica. Dado o fracasso de uma solução
simples ao problema, existe vaguidade nos conceitos de ciência e não ciência que fazem com
que abandonemos uma solução estabelecida em algum tipo de algoritmo. A proposta é
proporcionar uma solução geral e não nos livrar imediatamente das controvérsias se uma dada
teoria é ou não científica; porém, estabelece critérios gerais – as virtudes – que podem nos
orientar no discernimento a respeito da cientificidade ou não de uma teoria.
1
Nesse livro e em outros Kuhn defende o critério de resolução de problemas como distinção entre ciência e
pseudociência. Para Kuhn, a astrologia não é ciência e nunca foi, pois não tem como objetivo a busca de solução
de quebra-cabeças, típico da atividade da ciência normal. Popper (1974), não obstante, sustenta que a astrologia
tem seus puzzles, e esse não seria um critério adequado.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
493
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
importância entre os filósofos da ciência de nossos dias2. Segundo o filósofo húngaro Imre
Lakatos (1980, p. 01): “A demarcação entre ciência e pseudociência não é um problema de
filosofia de poltrona: é de vital relevância política e social.” Lakatos tem razão. O critério de
demarcação afeta o currículo na Escola e na Universidade, levando à questão sobre o que
iremos ensinar. Afeta as políticas e agências de financiamento de pesquisa: para que
instituição ou grupo de pesquisa devem ser distribuídos os recursos? Nos tribunais: que
procedimentos são dignos de confiança para justificar certas sentenças? Nas universidades:
que tipo de evento pode ser feito e fomentado nos campi das universidades? Na saúde: quais
medicamentos e procedimentos adotar?
Esse assunto gera disputas calorosas. Há quem defenda que o marxismo, a
psicanálise3, a economia clássica, o criacionismo, a parapsicologia, a homeopatia, a
astrologia, a teoria das supercordas sejam pseudociências. Contudo, existem defensores
zelosos para todas essas alegadas ciências. Os casos mais beligerantes, em nossa opinião, são
o ensino do criacionismo nas escolas (principalmente nos EUA) e a utilização de
medicamentos e procedimentos como a homeopatia e a acupuntura na medicina.
Observando a história do problema, distinguimos, grosso modo, três momentos. O
primeiro tem seu início na década de 20 e vai até a década de 60. Esse período é marcado
pelas reflexões do positivismo lógico e do racionalismo crítico. É um período de otimismo
exagerado acerca da possibilidade de estabelecer uma resposta ao problema da demarcação.
Acreditam os filósofos desse período que podemos, a partir de um princípio único, resolver
vários problemas em filosofia da ciência e igualmente o problema da demarcação.
No segundo momento, a confiança na possibilidade de estabelecer critérios de
distinção entre ciência e não ciência desaparece, e somos levados ao outro extremo, o
pessimismo da década de 60, que se expressa em obras da chamada “nova filosofia da
ciência”, hoje não tão nova, cujos membros principais são Thomas S. Kuhn, com a obra
Estrutura das revoluções científicas de 1962, e Contra o método, de Paul Feyerabend, de
1975. A nova filosofia da ciência influenciou perspectivas altamente críticas da ciência
moderna como alguns teóricos da sociologia do conhecimento científico (programa forte) que
negam qualquer critério objetivo de distinção epistêmica ou racional entre ciência e quaisquer
discursos, como é expresso na obra de Bruno Latour e Steve Woolgar intitulada Vida em
2
Para uma visão geral do problema, ver o verbete da Stanford Encyclopedia of philosophy “Pseudo-science and
Science” de Sven Ove Hansson (2015).
3
O caso da psicanálise é bastante controverso. Ver as críticas em Pinckney (1970), Mello (1967), Perelson
(2005), Onfray, (2011), Santamaría e Fumero, (2008). Para uma defesa, ver Roudinesco (2011).
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
494
Adilson Koslowski
4
Deixamos claro que Bunge é um dos críticos da possibilidade de demarcar a ciências apelando para um único
critério.
5
Informações desenvolvidas neste texto a respeito do problema da demarcação foram influenciadas e devem-se
ao Filósofo Antonio Diéguez Lucena, apresentadas na Universidade de Málaga em 04 de abril de 2014.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
495
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
são apenas tautologias. Há pelo menos dois sérios problemas com esse critério de
demarcação: a ciência sustenta leis universais, como a Lei da Gravitação, que não podem ser
verificadas por um conjunto finito de observações. E segundo o problema de Hume, os
raciocínios indutivos não são demonstrativos, mas apenas prováveis.
Outra solução dada pelos positivistas ao problema foi estabelecer o critério de
confirmação, enfraquecendo o requisito para um enunciado ser significativo e, portanto,
verdadeiro. Um enunciado empírico é confirmado apenas probabilisticamente. Contudo, esse
critério tinha seus próprios defeitos, entre eles, a segunda lei da termodinâmica, que não é
passível de confirmação. Além disso, não se conseguiu estabelecer um cálculo de
probabilidades que confirmasse uma lei com o mínimo de justificação.
Para complicar, as pseudociências podem ser confirmadas – como, por exemplo,
algumas predições da astrologia. Por fim, o critério da verificação ou da confirmação quando
aplicado a si próprio mostra-se inconsistente, perfazendo a chamada falácia da
autorreferência6. Mario Bunge (1989, p. 402) sustenta que o princípio de verificação é uma
tese falsa. Há conceitos significativos e não verificáveis, e, antes de qualquer experimento
para verificar algo, devemos saber o significado do que será testado. “O significado precede o
teste e não o contrário”. Em suma, teste e significação são independentes.
Segundo o critério do falseacionismo, as hipóteses científicas diferem das hipóteses
não científicas, pois as primeiras podem ser falseadas ou refutadas. Enquanto as hipóteses das
pseudociências não podem ser falseadas. Todas as evidências confirmariam as
pseudociências. Os pseudocientistas elaboram teses e buscam apenas as evidências que
possam confirmá-las e não as expõem às que possam falsificá-las. Além dos mais, tratam de
elaborar teorias que são resistentes a qualquer tipo de evidência contrária, são autoimunes.
Karl Popper exemplifica essa estratégia da pseudociência em Conjeturas e Refutações (1972,
p. 65) a respeito da psicanálise:
Certa vez, em 1919, informei-o [a Adler] de um caso que não me parecia ser
particularmente adleriano, mas que ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos
termos da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem mesmo tivesse
visto a criança em questão. Ligeiramente chocado, perguntei como podia ter tanta
certeza. “Porque já tive mil experiências desse tipo” - respondeu; ao que não pude
deixar de retrucar: “Com este novo caso, o número passará então a mil e um…” O
que queria dizer era que suas observações anteriores podiam não merecer muito mais
6
Por exemplo, a tese (1) afirma: “Não há nenhuma proposição verdadeira”. Se aplicarmos o critério da tese (1) a
si mesma torna-a paradoxal. A tese (1) não resiste ao seu próprio critério. Assim, tese (2) “Só as frases que são
verificáveis são significativas”, novamente, se aplicarmos o critério da tese (2), ela própria não é significativa,
pois não é verificável.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
496
Adilson Koslowski
certeza do que a última; que cada observação havia sido examinada à luz da
experiência anterior, somando-se ao mesmo tempo às outras como confirmação
adicional. Mas, perguntei a mim mesmo, que é que confirmava cada nova
observação? Simplesmente o facto de que cada caso podia ser examinado à luz da
teoria. Refleti, contudo, que isso significava muito pouco, pois todo e qualquer caso
concebível pode ser examinado à luz da teoria de Freud e de Adler. Posso ilustrar
esse ponto com dois exemplos muito diferentes de comportamento humano: o do
homem que joga uma criança na água com a intenção de afogá-la e o de quem
sacrifica sua vida na tentativa de salvar a criança. Ambos os casos podem ser
explicados com igual facilidade, tanto em termos freudianos como adlerianos.
Segundo Freud, o primeiro homem sofria de repressão (digamos, algum componente
do seu complexo de Édipo) enquanto o segundo alcançara a sublimação. Segundo
Adler, o primeiro sofria de sentimento de inferioridade (gerando, provavelmente, a
necessidade de provar a si mesmo ser capaz de cometer um crime), e o mesmo havia
acontecido com o segundo (cuja necessidade era provar a si mesmo ser capaz de
salvar a criança). Não conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano
que ambas as teorias fossem incapazes de explicar. Era precisamente esse fato - elas
serviam sempre e eram sempre confirmadas - que constituía o mais forte argumento
em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força aparente era, na
verdade, uma fraqueza.
7
Não que os cientistas acreditassem nos neutrinos antes de serem confirmados por experimentos, o que
aconteceu bem mais tarde de sua postulação no ano de 1953 pelo experimento de Cowan e Reines realizado nos
Estados Unidos, mas tinham esperança de que a existência dos neutrinos fosse confirmada, pois manteria o
princípio fundamental da conservação de energia intacto.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
497
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
ciência a partir da década de 60. Muitas definições foram contestadas, pois elas refletiam as
posições filosóficas e normativas dos seus proponentes que eram rejeitadas por outras
perspectivas. Há igualmente entre os filósofos8 influenciados pelo segundo Wittgenstein que
negam a possibilidade de haver uma definição essencialista de ciência. Contudo, tal estratégia
não eliminou a busca pelas definições, pois há filósofos que continuam propondo definições
da ciência que possibilitariam resolver igualmente o problema da demarcação.
Uma proposta de definição encontra-se no livro Uma introdução à metafísica da
natureza: representação, realismo e leis científicas, de 2013, do filósofo belga Michel Ghins.
Sumariamente, sua definição de ciência estabelece que uma teoria científica é um conjunto de
modelos e proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos. Algumas dessas
proposições alcançam o status de leis. Essas proposições são explicativas, descrevem
mecanismos causais, e os elementos das teorias maduras devem ser interpretados
(frequentemente) de modo realista. Longe de evitar controvérsias, tais definições pressupõem
elementos contestados por outros filósofos. No caso da definição de Ghins, temos a noção de
modelo que é controversa, a defesa de leis científicas é contestada por filósofos como Bas van
Fraassen em Laws and Symmetry (1989), Ronald Giere em Science without Laws (1999) e
Nancy Cartwright em How the Laws of Physics Lie (1983) e Nature’s Capacities and their
Measurements (1989). A noção de mecanismo causal interpretado de modo realista será
rejeitada por filósofos empiristas. Essa definição parece pressupor o monismo metodológico
e, portanto, sustentar a indiferença entre ciências naturais e humanas, o que não é aceito por
todos.
Outra proposta de definição de ciência que oferece explicitamente uma solução ao
problema da demarcação é a de Mario Bunge. A ciência básica factual (BUNGE, 1989, p. 28-
29) é constituída de dez elementos9. O elemento base é a comunidade de pesquisadores (CP)
que é constituída de pessoas treinadas, com forte comunicação entre si e aberta a receber e
treinar outros indivíduos interessados. A CP pertence a uma comunidade maior, a sociedade.
A sociedade fomenta a CP ou pelo menos a tolera. O discurso da comunidade de
pesquisadores se refere a entidades reais e não a imaginosas ou fantasmagóricas. A CP possui
uma filosofia ontologicamente realista. O mundo é composto de entidades concretas que
8
Por exemplo, Dupré (1993).
9
São eles: (1) a comunidade dos investigadores; (2) a sociedade que os apoia ou tolera; (3) o domínio ou
universo de discurso; (4) a concepção geral ou filosofia da CP, (a) a epistemologia realista, (b) o ethos, (5) o
fundo formal; (6) o fundo específico; (7) os problemas; (8) o fundo de conhecimento acumulado, (9) os
objetivos, (10) a metódica.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
498
Adilson Koslowski
mudam por meio de leis e são independentes do pesquisador. Uma epistemologia de que
podemos conhecer o mundo parcial e gradualmente, e um ethos que busca a verdade acima de
outros valores como a utilidade, o poder, o dinheiro. Possui uma coleção de teorias lógicas e
matemáticas atualizadas e uma base de dados, hipóteses e teorias atualizadas e razoavelmente
confirmadas e corrigíveis, bem como métodos efetivos. Os problemas que a CP deseja
resolver são sobre coisas reais. Há um cabedal de teorias e hipóteses e dados compatíveis com
o depósito fornecido pela tradição da CP. O objetivo da CP é descobrir regularidades,
sistematizar teorias e refinar métodos. Os métodos são conferíveis, analisáveis e justificáveis.
A CP é contígua com outras comunidades em seu objeto de pesquisa tanto quanto em
métodos e teorias que compartilha com outras comunidades de pesquisa. Os elementos da
comunidade, com exceção da sociedade que a hospeda, modificam-se com o tempo.
Bunge (2006, p. 56) sustenta que uma atividade cognitiva (e, igualmente uma teoria
que não satisfaça mesmo que aproximadamente todas as condições) não é científica. As
atividades que satisfazem parcialmente são semicientíficas ou protocientíficas. E aqueles
campos que não satisfazem, mas se consideram científicos, são de fato pseudocientíficos. Para
Bunge o conceito de ciência é não absoluto, mas gradual. As disciplinas são mais ou menos
científicas, desenvolvidas em maior ou menor grau, perspectiva que consideramos muito
importante quando lidamos com o problema da demarcação. De acordo com Bunge, toda e
qualquer solução do problema da demarcação deverá levar em conta essa gradação, pois é
raro teorias científicas nascerem completamente maduras (isso se alguma delas for real e
completamente madura).
De um modo mais sintético e direto, Bunge (2006, p. 58) resume seu critério de
demarcação assim: “Uma hipótese ou teoria é científica se e somente se (a) for precisa; (b) for
compatível com o grosso do conhecimento cientifico relevante, e (c) juntamente com
hipóteses subsidiárias e dados empíricos, acarretar consequências empiricamente testáveis”.
Esquematicamente: Científica ↔ Comprovável & compatível com o conhecimento comum
(científico). Por exemplo: o alegado poder de algumas pessoas de mover objetos com a força
do pensamento é uma tese pseudocientífica, segundo Bunge, as razões para isso seriam: 1)
que o fato nunca foi comprovado por observação ou experimento; (2) que o fato é
incompatível com o princípio de conservação de energia.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
499
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
Se existe um método científico, não seria ele um critério para demarcar a ciência e a
não ciência? Parece-nos que sim. Contudo, muitos filósofos, desde a década de 1960, têm
criticado a noção de método científico, alegando que se trata de um mito filosófico. Se
entendermos o método científico como um método único, universal para todas as ciências, um
conjunto de regras, um algoritmo que seja capaz de inventar hipóteses e resolver problemas
parece que tal coisa não existe.
Contudo, existem defesas sofisticadas da existência de um método científico comum a
todas as ciências. Entre os defensores da existência de um tal método estão, por exemplo,
Barry Gower em Scientific Method: and historical and philosophical introduction, publicado
em 1997, e Mário Bunge, em várias obras, entre as quais destaca-se La investigación
científica, de 198910.
Como dissemos acima, Mario Bunge é defensor do método científico há décadas. Sua
visão é de que existe um método geral da ciência, e todas as ciências particulares devem
obedecer. Porém, como ele mesmo afirma a respeito do método “[ele apenas] forma, mas não
informa”. Contudo, ele ressalta, cada ciência tem seu conjunto de métodos particulares
adaptados ao objeto de estudo específico. Bunge chama esse conjunto de métodos de
metódica que difere muito entre as ciências. As metódicas da matemática, da botânica e da
biomedicina são muito distintas. Além disso, em cada subárea há diferenças, por exemplo, a
metódica para se estudar o cérebro é, em grande parte, distinta da do pulmão.
Vejamos como Bunge resume as etapas do método científico geral em seu livro
Epistemologia (1980, p. 25):
10
Para maiores esclarecimentos acerca do método científico, ver Nola e Shankey (2007).
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
500
Adilson Koslowski
Contudo, a visão da existência do método científico que era aceita pela maioria dos
filósofos da primeira metade do século XX foi posta em questão famosamente por dois
filósofos que defenderam o pluralismo em relação ao método científico. O primeiro deles foi
Thomas Samuel Kuhn com a famosa obra a Estrutura das revoluções científicas, de
1962/1975. Sustentou nessa obra que a ciência é estabelecida quando da emergência de um
paradigma. O paradigma informa os cientistas de uma determinada comunidade quais são os
problemas e o modo adequado de resolver os problemas ou quebra-cabeças (puzzles).
Contudo, os paradigmas são históricos e igualmente o modo de se fazer ciência. Não há
apenas várias ciências, mas há várias químicas, físicas, biologias que foram se sucedendo na
história da ciência. Há ciências, há métodos. Muitos filósofos da ciência nas últimas décadas
do século passado aceitaram os argumentos de Kuhn contra a existência de um método
científico geral.
O segundo contestador é Paul Feyerabend (1924-1994) em sua obra Contra o método,
de 1975/2007. Nas palavras de Feyerabend no início de seu famoso livro:
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
501
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
502
Adilson Koslowski
14
Além do texto de Kuhn já citado, ver McMullin, 1983 e 1996; Lacey, 1999, cap. 3, p.45-65; 2008, p. 84-86.
15
Estamos apenas exemplificando autores que defenderam de modo bastante veemente essas virtudes em suas
metaciências, pois há muitos outros que defenderam e defendem as mesmas virtudes tanto no passado como no
presente como propriedades importantes das teorias científicas.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
503
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
7. A validez das teorias não está baseada na mera autoridade de seu proponente;
(Mário Bunge).
8. As teorias são postas de lado a partir de em contrário e substituídas por teorias
melhores. (Aristóteles, Tomás de Aquino).
9. A ciência progride no sentido que uma teoria estável demais é um indício de
não ser científica; (Thomas Kuhn).
10. As teorias são coerentes internamente (logicamente) e coerentes externamente
com outras teorias científicas; (Mário Bunge).
11. Há experimentação controlada e reprodutível; (Karl Popper).
12. Fecundidade: a teoria deve ser fonte de novas descobertas; (Thomas Kuhn).
Uma teoria que possui essas virtudes em algum grau torna-as aceitáveis como teorias
científicas. A aplicação desse critério é semelhante ao diagnóstico médico e pode sempre ser
revisto, ampliado e não aplicado quando temos boas razões para fazê-lo. Portanto, uma teoria
que não possui uma determinada virtude não implica que estejamos imediatamente diante de
um caso de pseudociência, bem como ter algumas virtudes não torna a teoria imediatamente
ciência. Esse modo de estabelecer qual é uma teoria científica é vago e impreciso. Partilhamos
a visão aristotélica e kuhniana de que sobre certos assuntos não podemos exigir maior
exatidão dada à natureza do objeto. Parece não ser igualmente possível, por enquanto,
estabelecer com precisão os níveis de cientificidade.
Outro modo de colocar os critérios de cientificidade é não focando nas virtudes das
teorias, mas no oposto, nos vícios ou antivalores. Seguimos aqui a lista elaborada por Seven
Ove Hansson (2015) a partir de várias fontes:
1. Crença na autoridade: devemos aceitar uma teoria porque alguém com habilidades
especiais a defende e devemos segui-lo na aceitação dessa teoria.
2. Experiências não repetíveis: experiências que não podem ser refeitas por outras
pessoas em condições similares.
3. Teoria não submetida a teste: uma teoria com capacidade de ser testada, mas não
foi submetida a testes.
4. Desconsiderar algo que desabone a teoria: observações, experimentos, dados que
falsifiquem a teoria são negligenciadas.
5. Teste tautológico: o teste apenas confirma a teoria, não permite refutá-la.
6. Perda teórica: uma teoria melhor é abandonada em favor de uma teoria pior, a
saber, explica menos coisa que a anterior.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
504
Adilson Koslowski
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CHIBENI Silvio Seno. A homeopatia como ciência: uma análise filosófica. Revista de
Homeopatia. Associação Médica de Homeopatia Brasileira. n. 4, p. 89-96, 2002.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
505
Artigo: O critério de cientificidade por meio das virtudes
DUPRÉ, John. The disorder of things: metaphysical foundations of the disunity of science.
Harvard: Harvard University Press, 1993.
FEYERABEND, Paul. A ciência em uma sociedade livre. São Paulo: UNESP, 2011.
GOODMAN, Nelson. Quando há arte? In: D’OREY Carmo (Org.). O que é arte? A
perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivros, 2007.
GROVER, Barry. Scientific Method: and historical and philosophical introduction. London:
Routledge, 1996.
KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva,
1975.
KUHN, Thomas Samuel. “Objetividade, juízo de valor e escolha teórica”. In: Tensão
essencial. Lisboa: Edições 70, 1977
LACEY, Hugh. Is Science value free? Values and scientific understanding. London:
Routledge, 1999.
LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Ed. 34, 2008.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
506
Adilson Koslowski
MERTON Robert K. Science and Technology in a Democratic Order. Journal of Legal and
Political Sociology, 1, p. 115–126, 1942.
PERELSON, S. O livro negro da psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud. São Paulo:
Civilização Brasileira, 2005.
POPPER, Karl, R. Reply to my critics. In: SCHILPP P. A. The Philosophy of Karl Popper.
The Library of Living Philosophers, vol xiv, book ii. La Salle: Open Court. p. 961–1197.
ROUDINESCO, E. Freud: mas por que tanto ódio? Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
SANTAMARÍA, C.; FUMERO, A. Psicanálisis ¡vaya timo! Pamplona: Laetoli, 2008.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 492-507, ago./dez. 2017 – ISSN: 2177-6342
507