Secco. C. T. Noémia Sousa

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NOMIA DE SOUSA, GRANDE DAMA DA POESIA MOAMBICANA

por Carmen Lucia Tind Secco


Nomia de Sousa no apenas uma grande dama da poesia moambicana. , tambm, uma
grande dama da poesia africana em lngua portuguesa, tendo em vista sua voz ardente ter ecoado
por diversos espaos e compartilhado seu grito com outras vozes, em prol dos que lutaram e
clamaram pela liberdade dos oprimidos, entre os anos 1940-1975, no contexto do colonialismo
portugus.

J no era sem tempo, no Brasil, a edio de Sangue negro, nico livro escrito por Nomia.
Praticamente desconhecida de grande parte dos leitores brasileiros, a autora, no entanto, nas
dcadas de 1940-1950, manteve, como jornalista, colaborao esparsa com a revista
brasileira Sul, publicao que, nesse perodo, aproximou escritores e poetas do Brasil, entre os
quais Marques Rebelo e Salim Miguel, de autores de Angola e de Moambique, como Antnio
Jacinto e Augusto dos Santos Abranches, respectivamente. Alm desses e de Nomia, outros
escritores africanos tambm colaboraram na Revista Sul: Glria de SantAnna, Viriato da Cruz,
Luandino Vieira, Francisco Jos Tenreiro. Em Cartas dfrica e alguma poesia, Salim Miguel
reuniu algumas dessas missivas trocadas com escritores da frica, em cujas pginas se detectam
contundentes denncias ao salazarismo.

A ligao de Nomia com o Brasil vem, por conseguinte, dessa poca e se revela, ainda, em
alguns poemas, nos quais a poetisa assinala no s sua breve passagem por terras brasileiras
(cf. o poema Samba, cuja dedicatria ao amigo e fotgrafo moambicano Ricardo Rangel
registra a noite de 19/11/1949 em que estiveram juntos no Brasil), mas tambm sua declarada
admirao por Jorge Amado, que pode ser claramente observada nos versos a seguir:

[]
As estrelas tambm so iguais
s que se acendem nas noites baianas
de mistrio e macumba
(Que importa, afinal, que as gentes sejam moambicanas
ou brasileiras, brancas ou negras?)
Jorge Amado, vem!
Aqui, nesta povoao africana
o povo o mesmo tambm
irmo do povo marinheiro da Baa,
companheiro de Jorge Amado,
amigo do povo, da justia e da liberdade!
[]

(SOUSA, Poema a Jorge Amado)

Nos versos citados, o sangue pulsante nas veias do povo baiano carrega igual seiva africana,
traz a memria amarga de negreiros que transportaram muitos escravos de l, vindos para o
Brasil revelia. H, na poesia de Nomia, uma emoo e uma musicalidade to profundas, que
atravessam tempos e espaos.

Nos jornais moambicanos, entre 1948 e 1951, os poemas de Nomia de Sousa acenderam
conscincias, fizeram vibrar revoltas, dialogaram com o movimento da Negritude e com o
Renascimento Negro do Harlem, entrecruzaram cadncias meldicas e estribilhos
de blues, spirituals e jazz, fazendo vir tona a musicalidade africana reinventada.

No Brasil, tantos anos depois, na Feira Literria de Paraty, em julho de 2015, um poema de
Nomia, intitulado Splica, ao ser lido pelo poeta pernambucano Marcelino Freire, provocou
enorme comoo no pblico presente. Em agosto de 2015, Emicida, cantor brasileiro de rap,
no SESC Pinheiros, em So Paulo, tambm declamou esse mesmo poema, comovendo os
ouvintes que no conseguiram esconder o entusiasmo e a atrao despertados. Por tudo isso,
torna-se importante, no Brasil, ler e conhecer a vida e a obra de Nomia de Sousa, o que
contribuir, sobremaneira, para refazer, com a frica, alguns laos ancestrais que uma histria
de dores e exlios esgarou por tanto tempo.

Carolina Nomia Abranches de Sousa nasceu em 20 de setembro de 1926, em Catembe, em


uma casa beira-mar, banhada pelo ndico, no litoral de Moambique; faleceu em 2002, em
Cascais, em Portugal, levando consigo a mgoa de no ter sido convidada para a festa da
independncia de Moambique pela qual tanto lutou em sua mocidade.

Nomia era mestia, tanto por via paterna, como materna: seu pai, de procedncia lusitana, afro-
moambicana e goesa, era originrio da Ilha de Moambique; sua me, filha de um caador
alemo e de uma mulher africana da etnia ronga, era do sul de Moambique. Ela sempre se
mostrou precoce; antes dos cinco anos, j lia, pois o pai, cedo, a iniciara no mundo das letras e
a incentivara intelectualmente. Com a morte deste, quando ela tinha apenas 8 anos, as condies
financeiras da famlia mudaram e, aos 16 anos, se viu obrigada a trabalhar para ajudar na
educao dos irmos. Entretanto, mesmo trabalhando, nunca deixou de procurar amigos que
defendiam as letras, as artes e os ideais libertrios, em Moambique. As orientaes recebidas
do pai calaram-lhe fundo e a levaram a atuar politicamente junto a intelectuais que
reivindicavam uma sociedade mais justa e humana.

Em 1948, Nomia publicou, no Jornal da Mocidade Portuguesa, em Moambique, o poema


Cano Fraterna, cuja repercusso fez com que se aproximasse de um grupo revolucionrio
de jovens moambicanos: Joo e Orlando Mendes, Ruy Guerra, Ricardo Rangel, Cassiano
Caldas, Jos Craveirinha, entre outros. A combatividade potica e poltica de seus poemas,
assinados com as iniciais N.S. ou com o pseudnimo literrio Vera Micaia, acarretou autora
o exlio. Junto com Joo Mendes e Ricardo Rangel, foi presa por atacar, frontalmente, o sistema
colonial portugus em Moambique. Foi degredada para Portugal, tendo participado, em 1951,
da Casa dos Estudantes do Imprio, em Lisboa; viajou pela Amrica e, entre 1952 e 1972, foi
deportada para Paris, continuando, como jornalista, poetisa e tradutora, sua luta a favor do
nacionalismo e da libertao de Moambique.

Nomia de Sousa inaugurou a cena literria feminina moambicana, protestando contra as


opresses sofridas pelas mulheres em Moambique. Seus 49 poemas, escritos todos, entre 1948
e 1951, circulavam em jornais da poca, como O Brado Africano. S em 2001, foram reunidos
no livro Sangue negro, publicado pela Associao dos Escritores Moambicanos (AEMO), com
organizao de Nlson Sate, Francisco Noa e Ftima Mendona. Nomia no queria seus
poemas publicados em livro. Ela tinha conscincia da dimenso de sua linguagem potica,
capaz de disseminar a revolta por intermdio de poemas incendirios, passados, de mo em
mo, de jornal em jornal (O Brado Africano, Itinerrio, etc.), de antologia em antologia (as
editadas pela Casa dos Estudantes do Imprio, CEI, em 1951 e 1953; a Poesia negra de
expresso portuguesa, organizada por Mrio Pinto de Andrade e Francisco Jos Tenreiro, em
1953; o Boletim Mensagem, de 1962; a antologia No reino de Caliban, organizada por Manuel
Ferreira em 3 volumes, em 1975, 1976 e 1988; a Antologia temtica de poesia africana, de
Mrio Pinto de Andrade em 2 volumes, em 1975 e 1979; a Antologia da nova poesia
moambicana, organizada por Ftima Mendona e Nelson Sate, em 1993, entre outras).

Embora, para Nomia, um livro com seus poemas no fosse necessrio sua militncia potica,
para os estudiosos de sua poesia, as duas edies moambicanas de Sangue negro a de 2001,
pela AEMO, e a de 2011, pela Editora Marimbique, de Nlson Sate foram importantssimas,
pois cumpriram a tarefa de consagrao da primeira poetisa das letras de Moambique,
considerada por Zeca Afonso, compositor e cantor da Grndula Morena, nas celebraes do
25 de Abril, a me dos poetas moambicanos. Me, por ser a primeira voz feminina da poesia
moambicana a embalar os poetas que a sucederam. Contudo, como irm, companheira de
luta, que os sujeitos poticos de grande parte dos poemas de Sangue negro se impem. Irm,
filha de uma frica violada e aviltada durante sculos, cujos filhos foram vtimas de muitas
discriminaes e crueldades. Irm, que denuncia os dramas do continente africano.

A publicao de Sangue negro, no Brasil, amplia esse universo de sagrao da autora, cuja voz
atravessou ndicos de revolta e desespero, levando seu brado contestador por outras terras e
mares, sem se calar, mesmo no exlio, vivido at a morte, em 2002, em Portugal.

A edio brasileira mantm a mesma estrutura das edies moambicanas anteriores,


respeitando a diviso em seis sees: Nossa Voz, Biografia, Munhuana 1951, Livro de
Joo, Sangue Negro, Dispersos.

A primeira seo funda a potica da voz, a poiesis do grito que se quer rebelde e se expressa
por poemas longos, caudalosos, feitos para serem declamados, dramatizadamente, de forma a
traduzirem a indignao do sujeito lrico que, por meio de anforas e gradaes, no se cansa
de gritar contra as injustias sociais, denunciando a escravido, os preconceitos em relao aos
negros, a fome e a pobreza dos menos favorecidos.

A voz de Nomia no apenas feminina; , tambm, coletiva. uma voz tutelar, fundadora da
poesia moambicana. uma voz plural, prometeica, que, epicamente, assume uma heroicidade
salvacionista, na medida em que se declara como a que iluminar e libertar os destinos dos
irmos africanos marginalizados. evidente a postura redentora dos sujeitos poticos, cuja
misso dar passagem ao povo oprimido. So inmeras as imagens que se relacionam a esse
campo semntico: trespassou, passe, abrir a porta. Tais metforas do abertura aos
poemas da segunda seo, Biografia, que tratam no apenas da urgncia de ser recobrada a
memria individual de Nomia, nascida na casa beira-mar, em Catembe, mas, ainda, do
imperativo de ser revigorada a memria ancestral dos povos negros moambicanos e africanos,
cujos hbitos, crenas, ritmos e histrias precisam ser preservados, assim como necessitam ser
esconjuradas as lembranas sombrias de injrias e atrocidades vividas ao longo de sculos de
escravido.
O poema Deixa passar o meu povo, Let my people go, se configura como movimento e
ao para dentro e fora de Moambique. uma potica nervosa, tecida por afetos e emoes,
que, pulsantes, revelam a revolta contra as discriminaes vivenciadas no s pelos negros de
frica, porm, tambm, pelos africanos dispersos nas Amricas e no mundo. Nesse sentido, a
voz de Nomia se acumplicia dos irmos negros do Harlem, referncia explcita ao
Renascimento Negro, de Langston Hughes.

Noite morna de Moambique


e sons longnquos de marimba chegam at mim
certos e constantes
vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rdio e deixo-me embalar
Mas as vozes da Amrica remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
spirituals negros de Harl.
Let my people go
oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo ,
dizem.
[]

(Idem, Deixa passar o meu povo)

No posfcio Nomia de Sousa: a metafsica do grito, escrito por Francisco Noa, sublinhado
esse pendor para a emoo, recorrente na poesia de Nomia, em que so frequentes apstrofes,
cuja funo imprimir uma dico emocionada aos versos. uma emoo fremente, acelerada,
que deixa mostra o dilaceramento do sujeito potico, cuja insubordinao se manifesta no
apenas no nvel temtico, mas, ainda, no campo da linguagem.

Os afetos na potica de Nomia vo da repulsa e do dio ao amor e esperana, da angstia e


da solido indignao e solidariedade, da vergonha e da humilhao rebeldia e coragem.
A voz enunciatria prima por um derramamento de sentimentos que leva a mulher oprimida a
buscar recuperar sua dignidade. Falando da margem, dos bairros perifricos de Loureno
Marques, antiga capital moambicana no tempo colonial, o sujeito lrico feminino se rebela
contra o abuso sofrido pelas moas das docas, encaradas como objetos sexuais pelos
colonizadores, cuja posse empreendida no foi s da terra, porm, tambm, dos corpos dessas
negras, tratadas, quase sempre, de forma extica e subalterna.

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e canio.


Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
[]

(Idem, Moas das Docas)

Este poema faz parte da terceira seo do livro, intitulada Munhuana 1951. Os espaos
marginais aqui so eleitos como cenrios de uma poesia que chama ateno para os
subalternizados pelo regime colonial racista: as mulheres negras e pobres, prostitudas e
humilhadas; os habitantes dos bairros de canio, Munhuana, Mafalala, Xipamanine; os
magaas, serviais explorados nas minas da frica do Sul; os zampunganas, negros que
recolhiam em baldes, noite, as fezes dos patres colonizadores; os escravos, em dispora, que,
obrigados a condies subumanas de trabalho, morreram em terras distantes.

Os poemas da quarta seo Livro de Joo constituem uma espcie de rquiem a Joo Mendes,
seu irmo de luta, cuja vida deu causa dos oprimidos de Moambique e da frica em geral:

Ah, roubaram-nos Joo,


mas Joo somos ns todos,
por isso Joo no nos abandonou
E Joo no era, e ser,
porque Joo somos ns, ns somos multido,
[]

(Idem, Poema de Joo)

Joo representa o companheiro poltico com quem Nomia partilhou ideais revolucionrios. Os
poemas desta seo choram a falta do amigo, mas rendem-lhe homenagem por ter sido o grande
mentor intelectual, cujas lies de liberdade ficaram e continuaram a animar a poesia d.
A seguir, a quinta seo, Sangue Negro, rene composies poticas de profunda recusa
opresso sofrida pelos negros. o momento em que os sujeitos poticos celebram o sangue
negro, metfora da ancestralidade africana reinventada e repensada por uma poesia lcida que
consegue dizer no a formas de imposio e autoritarismo:

Bates-me e ameaas-me,
Agora que levantei minha cabea esclarecida
E gritei: Basta!

[] Condenas-me escurido eterna


Agora que minha alma de frica se iluminou
E descobriu o ludbrio
E gritei, mil vezes gritei: Basta!
(Idem, Poema)

Se a poesia de Nomia, por um lado, se pautou pelo grito de basta explorao da mulher e
escravizao dos negros em geral, por outro procurou afirmar traos da oralidade e da cultura
popular de Moambique, como tambm aspectos de valorizao das razes africanas em geral.

Os poemas da quinta seo, numa espcie de gradao, alcanam o clmax de suas


reivindicaes, celebrando a frica e outras vozes que tambm bradaram pela liberdade: Billie
Holiday, nascida em 1924 na Pensilvnia, a primeira grande cantora de jazz, cujas letras das
canes protestaram, com veemncia, contra o preconceito racial e as desigualdades sofridas
pelos negros americanos; Jorge Amado que defendeu o Brasil negro, descendente dos escravos
vindos da frica; Rui de Noronha, o poeta-precursor da poesia moambicana.

O livro de Nomia de Sousa se fecha com a sexta seo, Dispersos, em que se encontram os
poemas: Quero conhecer-te frica, 19 de outubro, A Mulher que ria Vida e Morte.
Nessas trs composies, fica expresso o compromisso de os sujeitos poticos mergulharem
num profundo conhecimento da frica milenar, buscando recuperar a prtica do culto aos
antepassados, a crena de que preciso continuar a batalha daqueles que deram a vida pelas
causas libertrias, pois, segundo antigas religiosidades africanas, para l da curva, esperam os
espritos ancestrais.

Mesmo tendo vivido tantos anos fora de Moambique, Nomia de Sousa se manteve viva na
lembrana do povo moambicano e seus poemas no se afastaram de suas origens africanas.
Por isso, talvez, no tenha sido relegada ao silncio, nem ao esquecimento, tendo sido aclamada
a me dos poetas moambicanos. Agora, publicada no Brasil, sua voz continuar a ecoar,
compartilhando com Jorge Amado, entre outros, as dores da memria de um passado escravo
que ainda precisa ser exorcizado para, definitivamente, ser ultrapassado.

Rio de Janeiro, 26 de maio de 2016.

Carmen Lucia Tind Secco Universidade Federal do Rio de Janeiro

Citar como:

SECCO, Carmen Lucia Tind. Nomia de Sousa, grande dama da poesia


moambicana. Prefcio in: SOUSA, Nomia. Sangue negro. Ilustraes de Mariana Fujisawa.
So Paulo: Kapulana, 2016. (Srie Vozes da frica). http://www.kapulana.com.br/noemia-de-
sousa-grande-dama-da-poesia-mocambicana-por-carmen-lucia-tindo-secco/

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