Ana Mafalda - A Fraternidade Das Palavras
Ana Mafalda - A Fraternidade Das Palavras
Ana Mafalda - A Fraternidade Das Palavras
* Universidade de Lisboa
“E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros....
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.”
(“África”, in Xigubo, p.17)
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portuguesa, desse modo a que ele chamou de uma espécie de “ritmo quebra-
do em choque entre o literário e o não literário, no ranger de expressões que
se endurecem como um desafio a uma língua que não se adaptou aos gestos
circulares de outros estilos de pensar, e no crispar-se da linguagem em
contrastes como de arranha-céus ao lado de aldeias de caniço, sentindo nis-
so tudo aquela terrível consciência de que Fontenelle, ao morrer, dizia que
sentia “uma dificuldade de ser”.
Esta dificuldade de ser, ou este novo ser, resultante de tal prática, ou
pesquisa, da língua, ganha os contornos de um discurso amoroso, repassa-
do de amarga ironia, e implica uma violação (violentação) semântica e até
sintáctica, uma vez que – integrando expressões do ronga – a nova língua
se instala , no pleno oralismo que caracteriza o português moçambicano, ao
mesmo tempo, cativada pelo fascínio pelas palavras cultas, sentindo o poe-
ta quase uma atracção pela palavra como um objecto, a par de uma
pessoalíssima e esplenderosa nobreza de dicção.
Eugénio Lisboa (1973) refere esta luta como um acto lúdico amoroso,
como uma prática que o poeta moçambicano se compraz em fazer amor com
as palavras “(...)morde a polpa das palavras, tacteia-as amorosamente, fá-
las vibrar no poema , encoleriza-as(...) Faz amor – é bem o termo.”
Ler Craveirinha é de certo modo fazer trabalhar o nosso corpo, fazê-lo
partilhar de uma prática oral que vai ecoando até formar um imenso tecido
sonoro. A sua poesia pressupõe uma enunciação em voz alta que pode até
assemelhar-se a uma recitação encantatória, vibrante e suporte fundamen-
tal da palavra- oral e da memória rítmica da língua-mãe. Sendo o ronga a
língua primeira do poeta, esse fundo rítmico de base por certo sofreu oscila-
ções à medida que se foi operando a travessia para a outra teia da língua
portuguesa.
A figura paterna de um “algarvio bem moçambicano” que o introduziu
nas rimas de Junqueiro, de Cesário e na rítmica de Camilo, decerto desper-
tou essa cumplicidade energética, que ganha a forma quase táctil de
apossamento das palavras e da língua, estranhamente sentidos e
reconfigurados no confronto com o fundo intemporal de uma oralidade na-
tal, oriunda na figura materna .
Assim, por exemplo, quando o poeta se estriba na criação de hibridismos
vocabulares, ou quando incorpora dissonâncias que prefiguram as relações
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“Amigos:
as palavras mesmo estranhas
se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs.
E eis que num espasmo
de harmonia com todas as coisas
palavras rongas e algarvias ganguissam
neste satanhoco papel
e recombinam o poema.”
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