STRAUB Richard O Psicologia Da Saude Cap 01
STRAUB Richard O Psicologia Da Saude Cap 01
STRAUB Richard O Psicologia Da Saude Cap 01
Psicologia da Sade
1
SADE E PSICOLOGIA DA SADE
O que sade?
Os trs domnios da sade
Teste da realidade:
Como est sua sade?
SADE E DOENA:
LIES DO PASSADO
Vises antigas
A Idade Mdia e a
Renascena
O racionalismo
ps-Renascena
Descobertas do sculo XIX
O sculo XX e o incio
de uma nova era
Diversidade e vida saudvel:
Sade no novo milnio
PERSPECTIVAS EM
PSICOLOGIA DA SADE
Perspectiva do curso
de vida
Perspectiva sociocultural
Perspectiva de gnero
Perspectiva biopsicossocial
(mente-corpo)
Introduo
Psicologia da Sade
histria da famlia de Kathleen deixa claro que muitos fatores interagem para
determinar a sade. Este um tema fundamental da psicologia da sade, um subcampo da psicologia que aplica princpios e pesquisas psicolgicas para melhoria,
tratamento e preveno de doenas. Suas reas de interesse incluem condies sociais
(como a disponibilidade de servios de sade), fatores biolgicos (como a longevidade
da famlia e as vulnerabilidades hereditrias a certas doenas) e at mesmo traos de
personalidade (como o otimismo).
Como Kathleen, temos sorte de viver em uma poca em que a maioria dos
cidados do mundo tem a promessa de uma vida mais longa e melhor, com muito
menos deficincias e doenas do que em qualquer outra poca. Entretanto, esses
benefcios sade no so desfrutados universalmente. Considere:
O nmero de anos de vida saudveis que se pode esperar em mdia igual ou
excede os 70 anos de idade em 24 pases do mundo (a maioria deles desenvolvi-
22
PARTE 1
dos), mas estima-se que seja menos do que 40 anos em outros 32 pases (a maioria em desenvolvimento) (Organizao Mundial da Sade, 2000).
Embora a expectativa mdia de vida continue a aumentar, os brancos norte-americanos vivem consistentemente seis anos a mais do que os negros norte-americanos. As taxas de mortalidade para bebs negros continuam a ser mais de duas
vezes superior dos bebs brancos (Anderson, 1995).
Mortes e ferimentos relacionados com violncia, drogas e lcool e riscos relacionados com sexo, como o HIV, cada vez mais marcam a transio da adolescncia
para a idade adulta, particularmente entre minorias tnicas (Yee e cols., 1995).
Em cada idade, as taxas de mortalidade variam de acordo com o grupo tnico. Por
exemplo, entre homens e mulheres norte-americanos entre 45 e 54 anos de idade, as taxas de mortalidade so maiores entre afro-americanos (12 por mil), seguidos pelos nativos americanos (6,1 por mil), europeu-americanos no-hispnicos (5,0), hispano-americanos (4,9) e americanos de origem asitica e das ilhas
do Pacfico (2,6) (National Center for Health Statistics, 1999).
Durante um estudo de sete anos e meio de durao, realizado com 3.617 adultos
com idades a partir de 25 anos, os homens que viviam em reas urbanas tiveram
mortalidade 62% superior do que os homens que viviam em subrbios, cidades
pequenas ou reas rurais (House e cols., 2000).
Embora os homens tenham duas vezes mais probabilidade de morrer devido a
qualquer causa, a partir da meia-idade as mulheres apresentam taxas de doenas
e incapacidades mais elevadas (National Center for Health Statistics, 1999).
Os imigrantes recentes para os Estados Unidos geralmente so mais saudveis do
que os residentes antigos de mesma etnia e idade (Abraido-Lanza, Dohrenwend,
Ng-Mak e Turner, 1999).
Os Estados Unidos gastam uma poro maior de seu produto interno bruto em servios de sade do que qualquer outro pas, mas ocupam apenas a trigsima stima
posio entre 191 pases em relao ao desempenho geral de seu sistema de sade,
medido pelo grau de resposta, imparcialidade de financiamentos, acessibilidade a
todos os indivduos, e assim por diante (Organizao Mundial da Sade, 2000).
Mais de 15 milhes de adultos ao redor do mundo entre as idades de 20 e 64
morrem a cada ano. A maioria dessas mortes so prematuras e podem ser prevenidas (National Center for Health Statistics, 1999).
Essas estatsticas revelam alguns dos desafios na busca pelo bem-estar global. Esses
desafios envolvem reduzir a discrepncia de 30 anos em expectativa de vida entre os
pases desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento; ajudar os adolescentes a fazerem
uma transio segura e saudvel para a idade adulta; e alcanar um entendimento mais
profundo das relaes entre gnero, etnicidade, status sociocultural e sade.
Este captulo apresenta a psicologia da sade, um campo relativamente novo
que ir desempenhar um papel fundamental para enfrentar os desafios para a sade
do mundo nos prximos sculos. Considere algumas das questes que os psiclogos
da sade buscam responder:
De que maneira sua capacidade de se relacionar bem com outras pessoas influencia a sua sade?
De que maneira suas atitudes, crenas, autoconfiana e personalidade geral afetam a sua sade?
Ser que a acupuntura, a homeopatia, os tratamentos com ervas e outras formas
de medicina alternativa realmente funcionam?
At que ponto as caractersticas especficas do seu ambiente, incluindo arquitetura, nvel de rudo e presena de sol esto associados sua sade?
Pode a doena ser causada por hbitos pessoais?
A sade da mulher est indissociavelmente ligada a seu status na sociedade. Ela se beneficia com a
igualdade e sofre com a discriminao.
Organizao Mundial da Sade,
2000
sade estado de
completo bem-estar fsico,
mental e social
CAPTULO 1
23
N. de T.: Em ingls, hale significa sade, vigor, e whole significa completo, integral.
24
PARTE 1
Cada domnio da sade influenciado pelos outros dois domnios. Por exemplo, uma pessoa emocionalmente estvel, que tem boas habilidades de resoluo de
problemas (sade psicolgica), provavelmente ter mais facilidade para manter relacionamentos sociais saudveis (sade social) do que uma pessoa depressiva que tem
dificuldade para se concentrar no problema em questo. Da mesma forma, a sade
fsica fraca apresenta desafios especiais, tanto para a auto-estima da pessoa (sade
psicolgica) quanto para relacionamentos com sua famlia e seus amigos (sade social).
Teste da realidade
QUESTIONRIO
SOBRE
ESTILO
DE
VIDA
HBITOS
s
vezes
2
1. Eu realizo atividades fsicas moderadamente intensas, como caminhar rapidamente ou fazer trabalhos
domsticos por, pelo menos, 30 minutos por dia.
2. Eu realizo exerccios vigorosos, como correr, nadar, caminhar rapidamente ou aulas de dana
aerbica por, pelo menos, 20 a 30 minutos pelo
menos trs vezes por semana.
3. Eu tenho uma vida ativa.
4. Eu tenho mais ou menos a mesma forma fsica da
maioria das pessoas da minha idade.
5. Eu passo grande parte do meu tempo de lazer envolvido com esportes ou atividades fsicas ativas
como ciclismo, caminhadas, natao, jardinagem
ou praticando esportes competitivos.
6. Eu tenho boa resistncia fsica.
7. Eu realizo exerccios de fortalecimento muscular
pelo menos algumas vezes por semana.
8. Eu tenho energia suficiente para passar o dia sem
me sentir fatigado.
Escore de exerccios e boa forma
Normalmente
3
Sempre
4
Sade fsica
Preveno de acidentes
25
Sade espiritual
Sade social
Sade ambiental
Sade psicolgica
CAPTULO 1
1. Eu me mantenho informado a respeito de questes ambientais, como a reduo da camada de oznio, a destruio das florestas e a chuva cida.
2. Eu reciclo papel, garrafas e latas de alumnio.
3. Eu tenho conscincia da segurana e qualidade da
gua que utilizo.
4. Eu participo ou contribuo para causas ambientais.
5. Eu me certifico de que qualquer resduo que eu
produzir seja descartado adequadamente.
6. Eu evito usar pesticidas em aerossol dentro de casa
ou no jardim ou, se os utilizar, tenho o cuidado de
seguir todas as instrues de segurana.
7. Eu lavo todas as frutas e vegetais antes de com-los.
8. Eu fao um esforo para economizar gua e eletricidade.
Escore de sade ambiental
26
PARTE 1
esmo que todas as civilizaes tenham sido afetadas por doenas, cada uma delas
compreendia e tratava a doena de formas diferentes. Em uma certa poca, nossos
ancestrais pensavam que a doena era causada por demnios. Em outra, eles diziam
que era uma forma de punio pela fraqueza moral. Atualmente, lutamos com questes como: ser que a doena pode ser causada por uma personalidade doentia?.
Vejamos de que maneiras as nossas vises com relao sade e doena mudaram
no decorrer da histria. (Talvez voc queira utilizar a Figura 1.1 durante a discusso
seguinte para ter um senso da cronologia da mudana nas vises sobre sade e doena.)
Vises Antigas
Medicina pr-histrica
Os esforos de nossos ancestrais para curar doenas podem ser traados at 20
mil anos atrs. Uma pintura feita em uma caverna no sul da Frana, por exemplo,
que se acredita ter 17 mil anos de idade, mostra o xam da idade do gelo vestindo a
mscara animal de um antigo curandeiro. Em religies que se baseiam em uma crena em espritos bons e maus, somente um xam (sacerdote ou paj) pode influenciar
esses espritos.
Para homens e mulheres pr-industriais, que enfrentavam as foras freqentemente hostis de seu ambiente, a sobrevivncia baseava-se na vigilncia constante
contra essas misteriosas foras do mal. Quando uma pessoa ficava doente, no havia
uma razo fsica bvia para tal fato; pelo contrrio, a condio do indivduo acometido era erroneamente atribuda a uma fraqueza frente a uma fora mais forte, feitiaria ou possesso por um esprito do mal (Amundsen, 1996).
O tratamento era duro e consistia de rituais de feitiaria, exorcismo e uma
forma primitiva de cirurgia chamada de trepanao. Muitos arquelogos j desenterraram crnios humanos pr-histricos contendo buracos irregulares que aparentemente haviam sido perfurados por antigos curandeiros para permitir que os demnios que causavam a doena deixassem o corpo do paciente. A trepanao era praticada em pessoas vivas e mortas, sugerindo que essa prtica desempenhava um importante papel em cerimnias culturais ou religiosas alm do tratamento da sade. Registros histricos indicam que a trepanao era uma forma de tratamento amplamente praticada na Europa, no Egito, na ndia e na Amrica Central e do Sul.
Aproximadamente 4 mil anos atrs, algumas pessoas notaram que a higiene
tambm desempenhava um papel na sade e na doena e fizeram tentativas de melhorar a higiene pblica. Os antigos egpcios, por exemplo, realizavam rituais de
limpeza para impedir que vermes causadores de doenas infestassem o corpo. Na
Mesopotmia (parte da qual localizava-se onde hoje o Iraque), fabricava-se sabo,
projetavam-se instalaes sanitrias e construam-se sistemas para o tratamento de
esgotos pblicos (Stone, Cohen e Adler, 1979).
CAPTULO 1
27
Figura 1.1
Uma linha do tempo de variaes culturais histricas em relao doena e cura
Desde o antigo uso da trepanao para remover espritos do mal at o uso atual de radiografias no-invasivas do crebro
para diagnosticar doenas, o tratamento de problemas de sade tem assistido a importantes avanos com o passar dos
sculos. Uma coletnea de tratamentos ao longo das eras apresentada a seguir (da esquerda para a direita): trepanao
(em um crnio peruano antigo); acupuntura da China; as primeiras cirurgias no sculo XVII; vacinao por um vacinador
distrital na Londres do sculo XIX; e uma tomografia computadorizada para observar a atividade cerebral no sculo XXI.
Crditos (da esquerda para a direita): Gravura de crnio trepanado, Escola Inglesa (sculo XIX), publicado em 1878 em Incidentes de
Viagens e Exploraes na Terra dos Incas, de George Squier: coleo privada/Bridgeman Art Library; Ilustrao exibindo acupuntura:
Corbis; O Cirurgio, gravura da Escola Alem (sculo XVI): coleo privada/Bridgeman Art Library; Gravura de Vacinao, 1871: Hulton
Getty/Liaison Agency; CT scan: Premium Stock/Corbis.
28
PARTE 1
O primeiro aqueduto trouxe gua pura para Roma j em 312 a.C., e a limpeza
das vias pblicas era supervisionada pelos aediles, um grupo de oficiais indicados que
tambm controlavam o suprimento de alimentos. Os aediles criavam normas para
garantir que a carne e outros alimentos perecveis estivessem frescos e organizavam
o armazenamento de grandes quantidades de gros, por exemplo, no esforo para
prevenir a fome (Cartwright, 1972).
Na Grcia, o filsofo grego Hipcrates (cerca de 460 a 377a.C.) estabeleceu as
razes da medicina ocidental quando se rebelou contra o antigo foco no misticismo e
na superstio. Hipcrates, freqentemente chamado de o pai da medicina moderna, foi o primeiro a afirmar que a doena era uma fenmeno natural e que suas
causas (e, portanto, seu tratamento e preveno) podem ser conhecidos e merecem
estudos srios. Dessa forma, ele construiu a base mais antiga para uma abordagem
cientfica da cura.
Hipcrates props a primeira explicao racional para o fato das pessoas adoecerem. Segundo sua teoria humoral, um corpo e uma mente saudveis resultavam
do equilbrio entre quatro fluidos corporais chamados de humores: sangue, bile amarela, bile negra e fleuma. Para manter o balano adequado, o indivduo deveria seguir um estilo de vida saudvel, incluindo exerccios, descanso suficiente, boa dieta e
evitar excessos. Quando os humores estavam desequilibrados, contudo, o corpo e a
mente seriam afetados de maneiras previsveis, dependendo de qual dos quatro humores estivesse em excesso. Um excesso de sangue, por exemplo, contribua para
uma personalidade sangnea (otimista e alegre). Embora uma personalidade alegre
possa parecer desejvel, Hipcrates acreditava o contrrio: sangue demais, dizia ele,
aumentava a suscetibilidade da pessoa a epilepsia, angina, disenteria e artrite. O
tratamento para o excesso de sangue consistia em flebotomia (a abertura de uma
veia para remover sangue), banhos frios e enemas. A pessoa fleumtica, que tinha
excesso de fleuma, era triste, lnguida e lenta. Como resultado, era propensa a dores
de cabea, resfriados e acidentes vasculares cerebrais. O tratamento consistia em
banhos quentes, diurticos e ervas que induzissem a nusea. A pessoa colrica, que
tinha um excesso de bile amarela e um temperamento ardente, necessitava de um
tratamento para lceras na boca, ictercia e distrbios estomacais. Encontrava-se alvio por meio de sangrias, dietas lquidas, enemas e banhos refrescantes. Uma pessoa
melanclica possua bile negra demais; uma disposio triste e sorumbtica (da o
termo melancolia) era o resultado provvel. Tambm se esperava que essa condio
contribusse para a ocorrncia de lceras e hepatite, que poderiam ser tratadas com
uma dieta especial, banhos quentes, emticos (drogas que induzem o vmito) e queima de tecido corporal com um ferro quente (cauterizao).
Ainda que a teoria humoral tenha sido descartada medida que foram feitos
avanos em anatomia, fisiologia e microbiologia, a noo sobre os traos da personalidade estarem ligados aos fluidos corporais persiste na medicina popular e alternativa de muitas culturas. Alm disso, como veremos no prximo captulo, atualmente
sabemos que muitas doenas envolvem um desequilbrio (de certa forma) entre os
neurotransmissores do crebro, de modo que Hipcrates no estava to errado.
Hipcrates fez muitas outras contribuies notveis para uma abordagem cientfica da medicina. Por exemplo, para aprender quais eram os hbitos pessoais que
contribuam para a gota, uma doena causada por perturbaes no metabolismo
corporal do cido rico, ele conduziu uma das primeiras pesquisas de sade pblica
a respeito dos hbitos daqueles que sofriam da doena, como sua temperatura corporal, freqncia cardaca, respirao e outros sintomas fsicos. Ele tambm apontou a
importncia das emoes e pensamentos de cada um dos pacientes com relao a
sua sade e tratamento e, assim, chamou a ateno para os aspectos psicolgicos da
sade e da doena.
A prxima grande figura na histria da medicina ocidental foi o mdico Claudius
Galeno (cerca de 129 a 200 d.C.). Grego por nascimento, passou muitos anos em
Roma, conduzindo estudos de dissecao de animais e tratando os ferimentos graves
dos gladiadores romanos, dos quais ele aprendeu grande parte do que anteriormente
no se sabia a respeito da sade e da doena. Galeno escreveu volumes a respeito da
anatomia, higiene e dieta, construdos sobre as bases hipocrticas da explicao racional e da descrio cuidadosa dos sintomas fsicos de cada paciente.
teoria humoral conceito de sade proposto por Hipcrates, considerava o bem-estar como um
estado de perfeito equilbrio entre quatro fluidos corporais bsicos, chamados de humores.
Acreditava-se que a doena era
o resultado de perturbaes no
equilbrio dos humores
CAPTULO 1
29
Galeno tambm expandiu a teoria humoral da doena, desenvolvendo um sistema elaborado de farmacologia que os mdicos seguiram por quase 1.500 anos. Seu
sistema era fundamentado na noo de que cada um dos quatro humores do corpo
tinha sua prpria qualidade elementar que determinava o carter de doenas especficas. O sangue, por exemplo, era quente e mido. Ele acreditava que as drogas
tambm tinham qualidade elementares; assim, uma doena causada pelo excesso de
humor quente e mido poderia apenas ser curada com drogas que fossem frias e
secas. Embora essas vises possam parecer arcaicas, a farmacologia de Galeno era
lgica, baseada em observaes cuidadosas, e semelhante aos antigos sistemas de
medicina que surgiram na China, ndia e em outras culturas no-ocidentais. Muitas
formas de medicina alternativa ainda usam idias semelhantes hoje em dia.
Medicina no-ocidental
30
PARTE 1
No final do sculo XV, nascia uma nova era, a Renascena. Comeando com o
ressurgimento da investigao cientfica, esse perodo presenciou a revitalizao do
estudo da anatomia e da prtica mdica. O tabu envolvendo a dissecao humana foi
suficientemente removido, ao ponto do anatomista e artista flandrense Andreas
Vesalius (1514 1564) conseguir publicar um estudo composto por sete volumes dos
rgos internos, musculatura e sistema esqueltico do corpo humano. Filho de um
farmacutico, Vesalius era fascinado pela natureza, especialmente pela anatomia dos
seres humanos e dos animais. Em sua busca pelo conhecimento, nenhum cachorro
vadio, gato ou rato estava livre do seu bisturi.
Na escola de medicina, Vesalius passou a dissecar cadveres humanos. Suas
descobertas provaram que algumas das teorias de Galeno e dos mdicos antigos estavam claramente incorretas. Como pde, pensou ele, uma autoridade inquestionvel
como Galeno ter feito tantos erros ao descrever o corpo? Ento compreendeu o porqu: Galeno nunca havia dissecado um corpo humano. Vesalius entendeu que o propsito de sua vida era escrever o estudo oficial da anatomia humana. Esses volumes
tornaram-se os fundamentos de uma nova medicina cientfica, fundamentada na anatomia (Sigerist, 1958, 1971).
Um dos mais influentes pensadores da Renascena foi o filsofo e matemtico
francs Ren Descartes (1596 1650), cuja primeira inovao foi o conceito do
corpo humano como uma mquina. Ele descreveu todos os reflexos bsicos do corpo,
construindo, nesse processo, elaborados modelos mecnicos para demonstrar seus
princpios. Ele acreditava que a doena ocorria quando a mquina estragava; a tarefa
do mdico era consertar a mquina.
Descartes conhecido por sua crena de que a mente e o corpo so processos
separados e autnomos, que interagem de forma mnima e que cada um deles est
sujeito a diferentes leis de causalidade. Esse ponto de vista, chamado de dualismo
mente-corpo (ou dualismo cartesiano), baseia-se na doutrina de que os seres humanos possuem duas naturezas, a mental e a fsica. Descartes e outros grandes pensadores da Renascena, em um esforo para romper com o misticismo e as supersties do
passado, rejeitava vigorosamente a noo de que a mente influencia o corpo. O estudo (no-cientfico) da mente era relegado religio e filosofia, enquanto o estudo
(cientfico) do corpo era reservado medicina. Esse ponto de vista abriu caminho
para uma nova era de pesquisas mdicas, fundamentadas na confiana na cincia e
no pensamento racional.
O racionalismo da ps-Renascena
Aps a Renascena, esperava-se que os mdicos se concentrassem exclusivamente nas causas biolgicas da doena. Cem anos aps Vesalius, o mdico italiano
Giovanni Morgagni (1682 1771) publicou o primeiro livro didtico de anatomia
mdica. Com base em seus achados de centenas de autpsias humanas, Morgagni
promoveu a idia de que as causas de muitas doenas residem em problemas nos
rgos internos e nos sistemas muscular e esqueltico do corpo. Enfim, a antiga
teoria humoral de Hipcrates poderia ser descartada em favor dessa nova teoria
anatmica da doena.
A cincia e a medicina mudaram rapidamente durante os sculos XVII e XVIII,
motivadas por numerosos avanos na tecnologia. Apesar de Galileu ter construdo
o seu primeiro termmetro em 1592, ele no tinha escala para medir e propiciava
apenas indicaes grosseiras da variao da temperatura. Um importante passo
adiante na cincia da medio da temperatura ocorreu em 1665, quando Christian
Huygens (1629 1695) props uma escala fixa em que os pontos de congelamento
e de ebulio da gua eram designados como sendo 0 e 100, respectivamente
a origem do sistema centgrado. Por volta do final do sculo XVII, o uso clnico da
termometria (a mensurao da temperatura) estava amplamente disseminado.
Talvez a mais importante inveno na medicina durante esse perodo tenha sido
o microscpio. Embora o uso de uma lente para aumento j fosse conhecido em
pocas antigas, foi um mercador de tecidos dinamarqus chamado Anton van
CAPTULO 1
31
32
PARTE 1
sfilis, peste bubnica e febre tifide. De posse dessas informaes, a medicina comeou
a controlar doenas que haviam acossado o mundo desde a antigidade.
modelo biomdico viso dominante no sculo XX que sustenta que a doena sempre tem
uma causa fsica
patgeno vrus, bactria ou algum outro microrganismo que
causa determinada doena
Medicina psicossomtica
O modelo biomdico, por intermdio de seu foco nos patgenos, avanou o tratamento de sade de maneira significativa. Entretanto, foi incapaz de explicar transtornos que no apresentavam causa fsica observvel, como aquelas descobertas por
Sigmund Freud (1856 1939), que inicialmente obteve formao como mdico. As
pacientes de Freud exibiam sintomas como perda da fala, surdez e at paralisia. Um
caso particularmente intrigante envolveu uma paciente que relatou perda completa
das sensaes em sua mo direita. Freud acreditava que esse mal, que ele chamou de
anestesia de luva, era causado por conflitos emocionais inconscientes convertidos
em forma fsica. Freud rotulou essas doenas de transtornos de converso, e a comunidade mdica viu-se forada a aceitar uma nova categoria de doena.
A idia de que determinadas doenas poderiam ser causadas pelos conflitos psicolgicos do indivduo foi desenvolvida durante a dcada de 1940 pelo trabalho do
psicanalista Franz Alexander. Quando os mdicos no conseguiam encontrar agentes
infecciosos ou outras causas diretas para artrite reumtica, Alexander ficava intrigado
pela possibilidade de que fatores psicolgicos pudessem estar envolvidos. Segundo o
seu modelo do conflito nuclear, a presena de determinados conflitos inconscientes
pode levar presena de queixas fsicas (Alexander, 1950). Ou seja, cada doena fsica
o resultado de um conflito psicolgico fundamental ou nuclear. Por exemplo, acreditava-se que indivduos com personalidade reumtica, que tendem a reprimir a raiva
e so incapazes de expressar as emoes, seriam propensos a desenvolver artrite. Descrevendo com cuidado um grande nmero de transtornos fsicos que eram
presumivelmente causados por conflitos psicolgicos, Alexander ajudou a estabelecer
a medicina psicossomtica, um movimento reformista dentro da medicina, denominado em decorrncia das razes psico, que significa mente, e soma, que significa corpo.
Por definio, a medicina psicossomtica diz respeito ao diagnstico e ao tratamento
de doenas fsicas supostamente causadas por processos deficientes na mente. Esse
novo campo floresceu e, logo, o peridico Psychosomatic Medicine publicou explicaes
psicanalticas para uma variedade de problemas de sade, incluindo hipertenso, enxaquecas, lceras, hipertireoidismo e asma brnquica.
estudo de caso um dos mtodos mais antigos de observao, em que uma pessoa estudada de forma profunda, na
esperana de encontrarem-se
princpios universais
medicina comportamental um
campo interdisciplinar que integra as cincias comportamentais e biomdicas para promover a sade e curar doenas
CAPTULO 1
33
Medicina comportamental
34
PARTE 1
CAPTULO 1
35
desafio que os psiclogos da sade enfrentam no sculo XXI claro: como ajudar
as pessoas a adotarem e manterem mudanas em estilo de vida que promovam vitalidade para toda a vida. Os antigos filsofos gregos afirmavam esse objetivo de forma
mais sucinta: ajudar as pessoas a morrerem jovens o mais tarde possvel (Brody,
1996b). Quatro tendncias principais em sade pblica, psicologia e medicina contriburam para moldar esse desafio.
36
PARTE 1
Figura 1.2
Mortalidade infantil nos Estados Unidos
H menos de cem anos, 15% dos bebs que nasciam nos Estados Unidos
morriam antes de seu primeiro aniversrio. Para aqueles que sobreviviam, a
expectativa de vida era de pouco mais de 50 anos. Com a melhoria dos
servios de sade, atualmente, mais de 90% dos recm-nascidos sobrevivem at pelo menos 1 ano de idade.
Fontes: Historical Statistics of the United States: Colonial Times to 1970, de U.S. Bureau
of the Census, 1975, Washington, DC: U.S. Government Printing Office p. 60; Deaths:
Final Data for 1998, de S. L. Murphy, 2000, National Vital Statistics Reports, 48 (11),
Tabela 27.
idade. Alm disso, a expectativa mdia de vida o nmero de anos que o recmnascido provavelmente viver aumentou em mais de 20 anos. Nos Estados Unidos,
em 1999, a expectativa mdia de vida era de 79,7 anos para as mulheres e 73,8 anos
para os homens (OMS, 2000). Apesar dessas notcias encorajadoras, as desigualdades em expectativa de vida persistem nos pases, assim como ao redor do mundo e
esto bastante associadas classe socioeconmica, mesmo em pases com um bom
padro mdio de sade (OMS, 2000).
Com as pessoas vivendo mais, existe maior conscincia pblica das questes
relacionadas com a sade, a qual foi redefinida em termos mais amplos e positivos.
Essa nova definio, que enfatiza a vitalidade fsica, psicolgica e social para a vida
toda, estabelece um papel claro para a psicologia no tratamento de sade.
CAPTULO 1
37
Tabela 1.1
As 10 principais causas de mortes nos Estados Unidos em 1900 e 1998
1900
345
202
194
143
72
64
40
31
13
1998
Doenas cardacas
Cncer
AVC
Doenas obstrutivas pulmonares crnicas
Acidentes
Pneumonia, influenza
Diabete comeando na idade adulta
Suicdio
Nefrite e nefrose (doenas renais)
268,2
200,3
58,6
41,7
36,2
34,0
24,0
11,3
9,7
Fontes: Historical Statistics of the United States: Colonial Times to 1970, Pt. 1, de U.S. Bureau of the Census, 1975, Washington, DC:
U.S. Government Printing Office; Deaths: Final data for 1998, de S. L. Murphy, 2000, National Vital Statistics Reports, 48(11), p. 5.
Tabela 1.2
Mortes evitveis e custos associados
Causa
da morte
Nmero
anual
Tratamento
Custo por
paciente (U$)
30.000
29.000
22.000
570.000
Doena cardaca
Cncer
AVC
Leses
500.000
510.000
150.000
142.500
23.000
1 - 1,5 milho
Cuidado neonatal
Farmacologia
10.000
75.000
Fatores comportamentais
Fumar, falta de exerccios, dieta deficiente
Fumar, falta de exerccios, dieta deficiente
Fumar, falta de exerccios, dieta deficiente
Consumo de lcool, falta do cinto de
segurana
Comportamentos maternos
Atividade sexual de risco, uso de agulhas
contaminadas
Fonte: Healthy People 2000: National health promotion and disease prevention objectives. DHHS Publication No. (PHS) 91-50212, do U.S. Department of Health
and Human Services (USDHHS), 1991, Washington, DC: U.S. Government Printing Office.
38
PARTE 1
A segunda mudana nas principais causas de morte envolve o padro da doena. Antes do sculo XX, as principais causas de doenas e de morte eram transtornos
agudos, dos quais os indivduos se recuperavam em questo de semanas, ou morriam
rapidamente. Atualmente, as pessoas vivem com doenas crnicas por muitos anos.
Embora no possam ser curadas, possvel tratar as doenas crnicas para prevenir
mortes prematuras e manter a qualidade de vida.1
CAPTULO 1
39
Figura 1.3
Gastos per capita com sade nos Estados Unidos de 1960 a 2000
Em 1980, o custo anual dos servios de sade foi de 156 bilhes de dlares. Em 1995, esse nmero havia crescido para mais de 989 bilhes de
dlares. Em 2000, os custos com a sade consumiram 13,4% do produto
interno bruto dos Estados Unidos. Embora o sistema de sade norte-americano gaste uma poro maior de seu produto interno bruto com a sade do
que qualquer outro pas, ele ocupa apenas a trigsima stima posio em
191 pases que so membros da Organizao Mundial da Sade, no que
diz respeito ao seu desempenho geral.
Fonte: Health, United States, 2000, de U.S. Department of Health and Human Services,
2000, Washington, DC: U.S. Government Printing Office, p. 321.
tos de risco das pessoas, antes que eles causem doenas, tem o potencial de reduzir
custos com a sade de forma expressiva (Kaplan, 2000). Por exemplo, a cada ano,
surgem aproximadamente um milho de casos novos de cncer e ocorrem aproximadamente 500 mil mortes relacionadas com ele. Muitas formas de cncer so
evitveis, reduzindo ou eliminando o hbito de fumar ou aumentando o uso de
testes diagnsticos.
40
PARTE 1
Essa perspectiva tambm examina as principais causas de morte que acometem certos grupos etrios. Doenas crnicas, as principais causas de morte na populao geral, afetam, mais provavelmente, adultos de meia-idade e idosos. Os
jovens tm uma probabilidade muito maior de morrer de acidentes ou ferimentos
no-intencionais.
Outra preocupao dessa perspectiva a forma como as experincias de uma
determinada coorte de nascimento influenciam a sade. Uma coorte de nascimento um grupo de pessoas que, por terem nascido com uma diferena de poucos
anos, experimentam condies histricas e sociais semelhantes, as quais afetam
sua sade e doenas. As pessoas que nasceram no final do sculo XIX ou no comeo
do sculo XX precisaram superar obstculos enormes apenas para sobreviver at a
idade de 50 anos. Atualmente, grandes mudanas nas polticas de sade pblica
remodelaram o futuro para os adultos mais velhos nos Estados Unidos. Por exemplo, em 1965, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei dos Idosos norteamericanos, que proporciona a cada pessoa, independentemente de sua renda,
muitos benefcios sade desde refeies subsidiadas at orientao e outros
servios proporcionados por mais de 20 mil agncias comunitrias. Como resultado, os cidados mais velhos tm mais oportunidades, hoje em dia, para permanecer
em boa sade do que aqueles em sua faixa etria que atingiram a terceira idade em
outras pocas da histria.
Perspectiva sociocultural
A maneira como fatores sociais e culturais contribuem para a sade e para a
doena o foco da perspectiva sociocultural. Quando os psiclogos usam o termo
cultura, esto referindo-se a comportamentos, valores e costumes persistentes que
um grupo de pessoas desenvolveu ao longo dos anos e transmitiu para a prxima
gerao. Dentro de uma cultura, pode haver um, dois ou mais grupos tnicos, isto ,
grandes grupos de pessoas que, por compartilharem certas caractersticas, tendem a
ter valores e experincias semelhantes.
Em culturas multitnicas, como a dos Estados Unidos e da maioria das naes
atuais, existem amplas disparidades em expectativa de vida e nvel de sade, tanto
entre os grupos de minorias tnicas e como na maioria da populao. Algumas dessas diferenas sem dvida refletem uma variao em status socioeconmico, uma
medida de diversas variveis, incluindo renda, educao e ocupao. Por exemplo,
as taxas mais elevadas de doenas crnicas ocorrem entre pessoas que possuem os
nveis mais baixos de status socioeconmico (Flack e cols., 1995).
A variao sociocultural tambm est aparente em crenas e comportamentos
relacionados sade. Por exemplo, as prticas tradicionais de cuidado sade dos
nativos norte-americanos so holsticas e no distinguem modelos separados para
doenas fsicas e mentais (Johnson e cols., 1995). Em outro exemplo, os adeptos da
cincia crist tradicionalmente rejeitam o uso da medicina, pois crem que as pessoas
doentes podem ser curadas apenas por meio da orao, e a lei judaica prescreve que
Deus d a sade, sendo responsabilidade de cada indivduo proteg-la.
De um modo geral, os psiclogos que trabalham nessa perspectiva encontram
grandes discrepncias, no apenas entre os grupos tnicos, mas tambm dentro deles. Os latinos, por exemplo, no so homogneos. Os trs maiores grupos de nacionalidade cubanos, porto-riquenhos e norte-americanos de origem mexicana diferem em educao, renda, sade geral e risco de doenas e de morte (Bagley, Angel,
Dilworth-Anderson Liu e Schinke, 1995).
Perspectiva de gnero
A perspectiva de gnero em psicologia da sade concentra-se no estudo de
problemas de sade especficos dos gneros e em barreiras que tal condio encontra
nos servios de sade. Homens e mulheres diferem no risco que apresentam para
perspectiva sociocultural perspectiva terica que aborda a maneira como os fatores sociais e
culturais contribuem para a sade e para a doena
perspectiva de gnero perspectiva terica que aborda problemas de sade especficos
dos gneros e as barreiras que
estes encontram aos servios
de sade
CAPTULO 1
41
Vis sociocultural
no diagnstico
Foi dito aos mdicos que estes supostos pacientes cardacos eram idnticos
em ocupao, sintomas e em qualquer
outro aspecto, exceto idade, raa e gnero. Embora o cateterismo fosse o tratamento adequado para os sintomas descritos, os mdicos recomendaram-no
mais para os pacientes mais jovens,
brancos e do sexo masculino do que para
os pacientes do sexo feminino, os mais
velhos e os negros.
Fonte: The Effect of Race and Sex on Physicians Recommendations for Cardiac Catherization, De K. A. Schulman, J. Berlin, W.
Harless, J. F. Femer, S. Sistrunk, B. J. Gersh, R.
Dub, C. K. Taleghani, J. E. Burke, S. Williams,
J. M. Eisenberg, e J. Escarce, 1999, New
England Journal of Medicine, 340, p. 618-625.
uma variedade de transtornos. Durante a infncia, por exemplo, os garotos apresentam uma proporo maior do que as garotas em uma variedade de transtornos de
comportamento e psicolgicos, incluindo problemas com o sono e a alimentao,
hiperatividade, autismo e comportamentos anti-sociais. Da mesma forma, da idade
de 8 anos at a idade adulta, as garotas e as mulheres apresentam uma proporo
maior do que os garotos e homens no diagnstico da depresso, ansiedade e transtornos da alimentao (Ussher, 1997). Alm disso, as mulheres tendem a responder de
forma mais ativa do que os homens a sintomas de doenas e a buscar tratamento
precoce.
A profisso mdica tem longa histria de tratar homens e mulheres de maneira
diversa. Por exemplo, pesquisas j mostraram que as mulheres tratadas para doenas
cardacas recebem mais medicaes, tm maior probabilidade de passar por procedimentos diagnsticos desnecessrios e provavelmente no recebero a mesma qualidade de tratamento mdico que os homens (Ayanian e Epstein, 1991). Em um estudo, solicitou-se que 700 mdicos receitassem tratamento para oito pacientes cardacos com sintomas idnticos (Schulman e cols., 1999). Na verdade, os pacientes
eram atores que diferiam apenas em gnero, raa e idade (55 ou 70). Embora o
diagnstico seja uma forma de julgamento, a maioria dos especialistas em problemas
cardacos concordaria que o diagnstico de cateterismo seria o tratamento apropriado para os sintomas descritos por cada um dos pacientes hipotticos. Entretanto, as
recomendaes realmente feitas revelaram um pequeno, mas ainda assim significativo, preconceito contra mulheres e negros. Para os pacientes mais jovens, brancos e
do sexo masculino, o cateterismo foi recomendado em 90, 91 e 91% das vezes, respectivamente; para os pacientes mais velhos, negros e do sexo feminino, em 86, 85 e
85% das vezes, respectivamente.
Problemas como esses, somados sub-representao das mulheres como participantes dos testes de pesquisas mdicas, levaram a crticas contra os preconceitos de gnero em pesquisas e no tratamento mdico. Em resposta, o National
Institutes of Health publicou diretrizes detalhadas sobre a incluso de mulheres e
grupos de minorias na pesquisa mdica (Burd, 1994). Alm disso, o NIH recentemente lanou a Womens Health Initiative, um estudo de 15 anos de durao, realizado com 160 mil mulheres aps a menopausa, concentrando nos determinantes
e na preveno das deficincias e da morte em mulheres mais velhas. Entre os alvos
de investigao nesse estudo esto a osteoporose, o cncer de mama e a doena
cardaca coronariana.
Hoje em dia, provavelmente esteja claro para voc que essas perspectivas se
sobrepem, e que todas elas vem a sade e a doena como produtos da interao de
fatores. Elas diferem apenas nos fatores que enfatizam e, embora respondam diferentes questes sobre sade, elas se complementam, em vez de se contradizerem.
Juntas, ajudam a explicar a sade e a doena humanas. De certo modo, as perspectivas sociocultural, do curso da vida e de gnero agrupam-se na perspectiva
biopsicossocial, pois esse modelo, direta ou indiretamente, lida com todas as questes tratadas pelas perspectivas mencionadas. Por essa razo, nosso foco neste texto
estar na perspectiva biopsicossocial, para a qual nos voltamos agora.
42
PARTE 1
perspectiva biopsicossocial
(mente-corpo) ponto de vista
segundo o qual a sade e outros comportamentos so determinados pela interao de
mecanismos biolgicos, processos psicolgicos e influncias sociais
O contexto biolgico
Todos os comportamentos, incluindo estados de sade e doena, ocorrem no
contexto biolgico. Cada pensamento, estado de esprito e nsia um evento biolgico possibilitado pela estrutura anatmica e pela funo biolgica caracterstica do
corpo de uma pessoa. A psicologia da sade chama a ateno para aqueles aspectos
de nosso corpo que influenciam a sade e a doena: nossa conformao gentica e
nossos sistemas nervoso, imunolgico e endcrino (ver Captulo 3).
Os genes proporcionam o projeto de nossa biologia e predispem nossos comportamentos saudvel e doentio, normal e anormal. Por exemplo, sabe-se h
muito tempo que a tendncia de abusar do consumo de lcool hereditria (ver
Captulo 8). Uma razo para isso que a dependncia ao lcool , pelo menos em
parte, gentica, embora no parea estar ligada a um nico gene especfico. Em vez
disso, certas pessoas podem herdar uma grande sensibilidade aos efeitos fsicos do
lcool, experimentando a intoxicao como algo prazeroso e uma ressaca como algo
de pouca importncia. Essas pessoas tm mais probabilidade de beber, especialmente
em certos contextos psicolgicos e sociais.
Um elemento fundamental do contexto biolgico a histria evolutiva de nossa
espcie. Nossos traos e comportamentos humanos caractersticos existem na forma
como so porque ajudaram nossos ancestrais distantes a sobreviverem tempo suficiente para se reproduzirem e enviarem seus genes para o futuro. Por exemplo, a
seleo natural favoreceu a tendncia das pessoas de sentirem fome na presena de
um aroma agradvel (ver Captulo 7). Essa sensibilidade para pistas relacionadas
com a comida faz sentido evolucionrio, pois comer necessrio para a sobrevivncia particularmente no passado, quando os suprimentos de comida eram imprevisveis e era vantajoso ter um apetite saudvel quando havia alimento disponvel.
Ao mesmo tempo, a biologia e o comportamento interagem de forma constante.
Por exemplo, alguns indivduos so mais vulnerveis a doenas relacionadas com o
estresse porque reagem com raiva a perturbaes cotidianas e a outras influncias
ambientais (ver Captulo 4). Entre os homens, quantidades maiores do hormnio
testosterona apresentam uma correlao positiva com esse tipo de reao agressiva.
Figura 1.4
O modelo biopsicossocial
Segundo a perspectiva biopsicossocial, todos os comportamentos
saudveis so melhor explicados em termos de trs contextos: processos biolgicos, processos psicolgicos e influncias sociais.
Fonte: Psychology: A Byopsychosocial Approach, de C. Peterson, 1997,
New York: Addison-Wesley Longman.
CAPTULO 1
43
Essa relao, contudo, recproca: ataques de raiva tambm podem levar a nveis
elevados de testosterona. Uma das tarefas da psicologia da sade explicar como (e
por que) essa influncia mtua entre biologia e comportamento ocorre.
O contexto psicolgico
A mensagem central da psicologia da sade que a sade e a doena esto
sujeitas a influncias psicolgicas. Por exemplo, um fator fundamental para determinar o quanto uma pessoa consegue lidar com uma experincia de vida estressante
a forma como o evento avaliado e interpretado (ver Captulo 5). Eventos avaliados
como avassaladores, invasivos e fora do nosso controle nos custam mais do ponto de
vista fsico e psicolgico do que os que so avaliados como desafios menores, temporrios e superveis. De fato, algumas evidncias sugerem que, independentemente
de um evento ser realmente experimentado ou simplesmente imaginado, a resposta
do corpo ao estresse , de modo aproximado, a mesma. Os psiclogos da sade pensam que certas pessoas podem ser cronicamente depressivas e mais suscetveis a
certos problemas de sade porque revivem eventos difceis muitas vezes em suas
mentes, o que pode ser funcionalmente equivalente a passar repetidas vezes pelo
evento real. No decorrer deste livro, iremos examinar as maneiras como o pensamento, a percepo, a motivao, a emoo, a aprendizagem, a ateno, a memria e
outros tpicos de importncia central para a psicologia tm implicaes para a sade.
Os fatores psicolgicos tambm desempenham um importante papel no tratamento de condies crnicas. Considere o tratamento do cncer que j foi uma
doena que levava inevitavelmente morte. Embora a morte no seja mais inevitvel, tratamentos como a quimioterapia foram os pacientes a passar por reaes s
vezes insuportveis causadas pelas poderosas drogas administradas, incluindo nuseas e vmitos extremos. Os efeitos colaterais podem ser to debilitantes que alguns
pacientes recusam-se a continuar com o tratamento que tem o potencial de salvar sua
vida. A eficcia da medicao bastante influenciada pela atitude do paciente para
com o tratamento. Um indivduo que acredita que a droga ir apenas causar-lhe
desconforto capaz de experimentar uma tenso considervel, que pode piorar sua
reao fsica ao tratamento, desencadeando um ciclo vicioso, no qual a crescente
ansiedade antes do tratamento seguida por reaes fsicas progressivamente piores
medida que o regime de tratamento continua. As intervenes psicolgicas ajudam
os pacientes a administrar sua tenso, diminuindo, assim, as reaes negativas ao
tratamento. Aqueles pacientes mais tranqilos em geral so mais capazes e mais
motivados para seguir as instrues de seus mdicos.
As intervenes psicolgicas tambm auxiliam os pacientes a administrar o
estresse da vida cotidiana, que parece exercer um efeito cumulativo sobre o sistema
imunolgico. Eventos negativos na vida, como a perda de um ente querido, o divrcio, a perda do emprego ou uma mudana, podem estar ligados diminuio do
funcionamento imunolgico e a maior suscetibilidade a doenas. Ensinando aos pacientes formas eficazes de administrar tenses inevitveis, os psiclogos da sade podem
ajudar o sistema imunolgico do paciente a combater as doenas.
O contexto social
Ao colocarem o comportamento saudvel em seu contexto social, os psiclogos
da sade esto preocupados com a maneira como pensamos, influenciamos e nos
relacionamos conosco e com o ambiente. O seu gnero, por exemplo, implica determinado papel social que d a voc um senso de ser mulher ou homem. Alm disso,
voc membro de determinada famlia, comunidade e nao; voc tambm tem
certa identidade racial, cultural e tnica, e vive dentro de uma classe socioeconmica
especfica. Cada um desses elementos do seu contexto social nico influencia suas
crenas e comportamentos incluindo aqueles relacionados com a sade.
44
PARTE 1
Considere o contexto social em que uma doena crnica, como o cncer, ocorre.
Um cnjuge, outra pessoa afetivamente significativa ou um amigo ntimo, proporcionam importante apoio social para muitos pacientes de cncer. Mulheres e homens
que se sentem socialmente conectados a uma rede de amigos afetuosos tm menor
probabilidade de morrer de qualquer forma de cncer do que seus correlatos que
sejam isolados socialmente (ver Captulo 10). O fato de sentir-se amparado por outras pessoas serve como proteo, que mitiga o resultado de hormnios que causam
estresse e mantm as defesas do corpo fortes durante situaes traumticas. Pode
tambm promover melhores hbitos de sade, check-ups regulares e exames para
sintomas preocupantes tudo isso tende a melhorar as chances de sobrevivncia de
uma vtima do cncer.
Apesar da validade dessas influncias sociais, lembre-se de que seria enganoso
concentrar-se exclusivamente neste, ou em qualquer outro contexto, de forma isolada. O comportamento saudvel no a conseqncia automtica de determinado
contexto social. Por exemplo, embora, como grupo, os pacientes de cncer que so
casados tenham tendncia a sobreviver por mais tempo do que pessoas que no so
casadas, casamentos infelizes e destrutivos no oferecem benefcio algum nesse sentido e podem estar ligados a resultados ainda piores para a sade.
Sistemas biopsicossociais
Conforme indicam esses exemplos, a perspectiva biopsicossocial enfatiza as influncias mtuas entre os contextos biolgicos, psicolgicos e sociais da sade. Ela
tambm est fundamentada na teoria sistmica do comportamento. Segundo essa
teoria, a sade de fato, toda a natureza melhor compreendida como uma hierarquia de sistemas, na qual cada um deles simultaneamente composto por subsistemas
e por uma parte de sistemas maiores e mais abrangentes. Assim, cada um de ns
um sistema um corpo formado por sistemas em interao, como o sistema endcrino,
o cardiovascular, o nervoso e o imunolgico. Esses sistemas biolgicos so, por sua
vez, compostos de partes menores, que consistem de tecidos, fibras nervosas, fluidos,
clulas e material gentico. Na direo contrria, somos parte de muitos sistemas
maiores, incluindo nossa famlia, nosso bairro, nossa sociedade e nossa cultura.
Aplicada sade, essa abordagem enfatiza uma questo fundamental: o sistema, em determinado nvel, afetado por sistemas em outros nveis e tambm os
afeta. Por exemplo, o sistema imunolgico enfraquecido afeta rgos especficos no
corpo de uma pessoa, o que, por sua vez, afeta a sua sade biolgica geral, afetando,
por sua vez, os relacionamentos dessa pessoa com sua famlia e seus amigos. Conceituar
a sade e a doena conforme a abordagem sistmica permite que compreendamos o
indivduo de forma integral.
CAPTULO 1
45
Figura 1.5
Um modelo biopsicossocial da depresso
A depresso melhor compreendida se considerarmos sua
ocorrncia em trs contextos: biolgico (predisposies genticas e desequilbrios de neurotransmissores), psicolgico (pensamentos negativos e crenas autodestrutivas) e
social (eventos estressantes, desamparo condicionado e
cultura individualista que encoraja a autoculpa por fracassos pessoais).
Fonte: Psychology: A Biopsychosocial Approach, de C. Peterson,
1997, New York: Addison-Wesley Longman.
46
PARTE 1
CAPTULO 1
47
Figura 1.6
Tradicionalmente a maioria dos psiclogos aceitava posies de ensino ou pesquisa em universidades e faculdades. Devido ao declnio no nmero de matrculas,
contudo, as posies docentes em muitos subcampos da psicologia no acompanharam o nmero de interessados. As oportunidades de emprego para psiclogos da
sade com habilidades de pesquisa ou aplicadas, todavia, parecem estar muito boas
por todo o mundo desenvolvido, particularmente em cenrios hospitalares (DeAngelis,
1995). De fato, o nmero de psiclogos que trabalham em campos relacionados com
a sade mais do que dobrou na dcada de 1980 (Enright, Resnick, DeLeon, Sciara e
Tanney, 1990). Essa tendncia continua, atualmente, em resposta maior
nfase da sociedade na promoo da sade e no cumprimento das necessidades de determinados grupos, como os idosos (Kaplan, 2000).
Alm de trabalharem em faculdades, universidades e hospitais, os
psiclogos da sade atuam em muitos outros locais, incluindo organizaes
de sade, faculdades de medicina, clnicas de reabilitao e consultrios
particulares (ver Figura 1.6). Um nmero crescente de psiclogos da sade
pode ser encontrado em locais de trabalho, onde orientam empregadores
e trabalhadores em diversas questes relacionadas com o trabalho, e
tambm ajudam a estabelecer intervenes no local de trabalho para ajudar
os empregados a perder peso, parar de fumar e aprender maneiras mais
adaptativas de administrar o estresse.
48
PARTE 1
Sntese
Sade e psicologia da sade
1. Sade um estado de completo bem-estar fsico, mental e social. A psicologia da sade preocupa-se com os
aspectos psicolgicos da sade no decorrer da vida
de um indivduo. Seus objetivos especficos so promover a sade, prevenir e tratar doenas, investigar o
papel de fatores comportamentais e sociais na doena e avaliar e aperfeioar a formulao de polticas e
servios de sade para todas as pessoas.
2. A definio de sade confirma que ela um estado
positivo e multidimensional, que envolve trs domnios: sade fsica, sade psicolgica e sade social.
Os domnios no so independentes, mas influenciam
uns aos outros.
Sade e doena: lies aprendidas
3. Nas mais antigas culturas conhecidas, acreditava-se que
a doena resultava de foras msticas e espritos malignos que invadiam o corpo. A teoria humoral de
Hipcrates foi a primeira teoria racional da doena, na
qual a sade do corpo e da mente resultava do equilbrio
entre quatro fluidos corporais chamados de humores.
Galeno expandiu a teoria humoral da doena, desenvolvendo um elaborado sistema de farmacologia que
os mdicos adotaram por quase 1.500 anos.
4. Sob a influncia da igreja medieval, a medicina avanou pouco durante a Idade Mdia. Os estudos cientficos do corpo (especialmente a dissecao) eram proibidos e as idias a respeito da sade e da doena tinham implicaes religiosas. A doena era considerada uma punio de Deus por alguma malfeitoria, e o
tratamento freqentemente envolvia tortura fsica.
5. O filsofo francs Ren Descartes desenvolveu sua teoria do dualismo mente-corpo a crena de que a
mente e o corpo so processos autnomos, cada qual
sujeito a diferentes leis de causalidade. A influncia
de Descartes abriu caminho para uma nova era na
6.
7.
8.
9.
CAPTULO 1
49
teoria celular, p. 31
teoria dos germes, p. 31
modelo biomdico, p. 32
patgeno, p. 32
medicina psicossomtica, p. 32
estudo de caso, p. 33
medicina comportamental, p. 33
etiologia, p. 35
expectativa mdia de vida, p. 36
efeito placebo, p. 38
perspectiva do curso de vida,
p. 39
coorte de nascimento, p. 40
perspectiva sociocultural, p. 40
perspectiva de gnero, p. 40
perspectiva biopsicossocial
(mente-corpo), p. 42
teoria sistmica, p. 44
50
PARTE 1
Endereo
Descrio
http://web1.ea.pvt.k12.pa.us/medant/
http://www.health-psych.org
http://freud.apa.org/divisions/div38/
http://socbehmed.org/sbm/sbm.htm
http://www.cdc.org
Os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) proporcionam informaes pblicas sobre doenas infecciosas.
http://www.chid.nih.gov
http://noah.-health.org
Mantido pela City University of New York, este incrvel site bilnge (todas as informaes esto disponveis em ingls e espanhol) oferece atualizaes freqentes e links para boletins de sade.
A seo de psicologia da sade da Canadian Psychological Association
proporciona informaes e links sobre inmeros temas relacionados com
a psicologia da sade.
http://is.dal.ca/~hlthpsyc/hlthhome.htm
CAPTULO 1
51
deve ser muito cauteloso. Em alguns casos, universidades, agncias federais de sade e outras organizaes
cientficas proporcionam informaes relacionadas com
a sade para o pblico em geral sem citar a referncia
completa do estudo em que as informaes se baseiam. A credibilidade da organizao como uma fonte
genuna, contudo, obviamente permite que voc considere as informaes confiveis. Alm disso, mesmo
quando essas organizaes no apresentam as referncias completas, elas quase sempre indicam um link para
a fonte original ou explicam como solicitar uma citao completa.
Exerccio: encontre pelo menos dois websites que apresentem informaes conflitantes para determinado tratamento
de sade digamos, por exemplo, o uso da erva-de-sojoo para melhorar a memria ou acupuntura para aliviar
a dor. Ento, responda s questes a seguir. (Dica: dois
sites que voc pode consultar como ponto de partida so
www.herbs.org, que se orgulha de ter uma biblioteca de
150 mil artigos e www.seanet.com/~vettf/Primer.htm, do
National Council on Reliable Health Information.)
1. Qual tratamento de sade voc decidiu pesquisar?
Por qu?
2. Quais websites voc visitou? Como os encontrou?
3. Que agncias ou grupos mantm os websites? Eles
so autoridades confiveis? Como voc sabe?
4. Quais afirmaes em favor da sade so feitas para o
produto ou tratamento em cada website? Que evidncias so apresentadas para fundamentar essas afirmaes? As evidncias so confiveis?
5. Suponhamos que um amigo ou parente pergunte se
eles deveriam experimentar o produto ou tratamento. Como voc responderia?
NOTAS
1. Observe que as principais causas de morte na dcada de
1990 no foram doenas novas; elas j estavam presentes
em pocas anteriores, mas menos pessoas morriam por causa
delas ou elas eram confundidas com outras causas.
2. Alguns dos mecanismos de busca mais poderosos so aqueles oferecidos pela Yahoo, Infoseek, Microsoft Network,
Excite e Alta Vista, todos os quais possuem categorias de
sade elaboradas, como mecanismos de busca, links, batepapo e quadros de avisos. Use a categoria sade para localizar informaes sobre quase todos os aspectos da sade, doena e medicina.