(Psicologia) Bile Sapienza - Conversa Sobre Terapia

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CONVERSA SOBRE TERAPIA

BILE TATIT SAPIENZA

Editora: Paulus-SP
ISBN: 8528302962
Ano: 2004
Edio: 1
Nmero de pginas: 159

Este livro fruto de uma larga experincia como terapeuta, o resultado de


meditaes e estudos em profundidade. No entanto, o tom de intimidade
alcanado pela autora nesta obra nos faz pensar em algum que surge assim
como quem no quer nada, vai chegando perto, puxando prosa, e de repente a
gente percebe que a conversa vai ficando gostosa, estimulante. E quando nos
damos conta, estamos envolvidos em reflexes filosficas de grande
profundidade, grande complexidade.
O leitor vai tambm se envolver e se apaixonar por essa conversa, vai pensar e
refletir sobre o que acontece num encontro teraputico atravs do relato de um
atendimento a uma paciente que vai se descobrindo e descobrindo a vida,
desdobrando signicados sobre seu passado, seu futuro e seu presente que, como
para ns, para o Dasein, est sempre chegando, sempre se transformando, isto ,
configurando a sua histria.

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APRESENTAO

Clareza e simplicidade so virtudes.


Dedicao e amor so necessrios para conquista-las e preserv-las.

Picasso e Mir as conquistaram em suas obras. Estas podem ser


comparadas a desenhos de crianas por sua espontaneidade, mas basta
tentar criar algo semelhante, de modo verdadeiro, para descobrir que
no fcil.
Associar essas virtudes a uma conversa sobre terapia baseada na
filosofia de Heidegger pode parecer estranho. comum encontrar, na
traduo de seus textos, conceitos fundamentais associados a palavras
em grego e alemo, inclusive termos criados por ele. Ate mesmo o
nome adotado no Brasil por esta abordagem de psicoterapia, a
Daseinsanalyse, foi mantida em alemo. Entretanto, ao ler seus textos
com calma, a adoo desses termos se revela apenas um instrumento
para precisar seus conceitos.

CONVERSA SOBRE TERAPIA

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Ser simples e claro pode ser perigoso. Pode deix-lo exposto.
Muitos adotam a confuso para se proteger, como o polvo, que joga
tinta na gua para camuflar a fuga. Jarges hermticos cumprem este pape!,
mistificam o conhecimento e podem se tomar smbolos de poder para os
"iniciados". Utilizados sem conscincia pelos profissionais, acabam por se
tornar obstculos para a comunicao.

Empregadas com coragem e propsito, clareza e simplicidade so


armas.
Podem tocar coraes, transformar conceitos e atitudes.
Cuidado com seta conversa...

Tarcsio Tatit Sapienza

SUMRIO

Introduo11
Conversa sobre terapia13

INTRODUO

Um dia, senti a necessidade de por no papel algo que me servisse


como roteiro, como apoio para um curso sobre o assunto "terapia". O
importante era poder falar de uma terapia fenomenolgica e, mais
especialmente, da Daseinsanalyse.

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Assim comeou a nascer este texto, que foi surgindo no ritmo de
uma conversa - j que essa era a forma imaginada para o desenrolar do
curso. Cada pargrafo originava o seguinte.
Situaes e personagens que vocs encontram aqui aparecem
apenas como exemplos. Elas foram completamente imaginadas por
mim.

CONVERSA SOBRE TERAPIA

Vamos conversar sobre terapia. E, quando fazemos isso, um dos


assuntos que surgem e a teoria com que trabalhamos. Se o nosso
trabalho se situa na fenomenologia, ento, esse assunto se torna mais
complexo, pois o prprio uso ou no de uma teoria passa a ser urna
questo.
Ha algumas coisas, porem, que independem de teorias. Uma delas e
a postura do psiclogo diante de coisas fundamentais, como, par
exemplo, o respeito: pelo paciente, pelo contexto da sesso de terapia,
pelo segredo profissional; o bom senso de saber que a terapia, seja qual
for, no pode tudo, e que, s vezes, nosso paciente pode precisar
tambm de uma ajuda psiquitrica ou de algum outro tipo.
Trabalhamos luz da fenomenologia. Diante da existncia do
paciente, que o fenmeno com que lidamos, como poderemos fazer
fenomenologia com coerncia se formos para a sesso munidos de uma
teoria de psicologia que j sabe previamente explicar os fenmenos?
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Suspendemos as teorias de psicologia. Mas precisamos saber o que

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estamos suspendendo; seno, estaremos sendo apenas ignorantes. E no
razovel que ignoremos todo o conhecimento que a psicologia j
acumulou daquilo que diz respeito ao homem.
As teorias explicam o pensamento do homem, suas emoes, seu
desenvolvimento; explicam o porque de certas patologias. Todas elas
tm algo a dizer, e importante que o profissional que se prope a tratar
de seres humanos no ignore as cincias e os saberes todos que descre-
vem o homem.
Se voc no conhecesse as teorias, naquelas horas de perplexidade
diante do seu paciente, quando parece que nada faz sentido ou quando a
sensao poderia ser a de estar jogando conversa fora, voc teria
sempre uma iluso de que, se tivesse uma boa teoria, isso lhe ajudaria
muito e que, com ela, voc poderia ir longe no seu entendimento. Em
algum lugar dela, aquilo que ele diz ou o que no diz assentar-se-ia
muito bem.
Agora, se voc conhece as teorias, isso vai lhe permitir pensar: , a
teoria diria tal coisa deste paciente; mas eu, que estou aqui junto dele,
para quem ele j contou tanto de si, eu penso o que? Que sentido isso
faz na histria dele? Foi para esta pessoa que aquela teoria foi feita?.
Entao, voc no vai longe; para diante do seu paciente, diante daquela
sesso em particular, diante de
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como vem se desenrolando o processo teraputico; reconhece que ainda
no compreendeu bem e, com pacincia, espera. Nenhuma teoria tem o
que fazer ali.
Provavelmente, sua sensao vai ser de desamparo.
Mas esse um primeiro momento. Depois, j que ali surgiu um vazio -
disponvel, porque entregue, e disposto, porque atento a uma busca de
sentido -, o desamparo passa a ser substitudo pela surpresa de perceber

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que urna compreenso comea a preencher o vazio. Esta surge sem
voc saber de onde. Talvez lhe seja dada exatamente porque, para uma
coisa nova germinar, ela precisa do vazio de um espao, da calma de
um momento, e voc foi algum que favoreceu essas condies. Voc
foi a abertura na qual algo se deu a compreender. A compreenso vai
poder ser agora compartilhada ou, talvez, ainda no. Se no for ainda a
hora, contenha a sua pressa.
Como teorias so explicaes amplas, gerais, elas podem muitas
vezes ser aplicadas ao caso do seu paciente, pois, afinal, falam de gente,
e gente tem muita coisa em comum; foram elaboradas por pessoas que
observaram, que pensaram em aspectos importantes da existncia, no
importa que nomes tenham dado a isso. Entao, com seu paciente,
mesmo que voc se aproxime dele sem urna teoria, pode acontecer que,
em alguns momentos, aquilo que voc percebe nele seja muito parecido
com algo que a teoria X fala. Nesse caso, a teoria coincide

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com o que voc v no seu paciente. Voc talvez pense:


"No h de ver que isso mesmo?". E vai achar bom. Mas, no caso de
voc querer permanecer na fenomenologia, retorne em seguida ao seu
paciente e deixe de novo seu pensamento aberto.
Quem trabalha com fenomenologia convive com isto: a
necessidade de ir direto ao fenmeno tal como se apresenta - ir atrs de
seu significado naquele caso especial, nico, um significado que pode
mesmo contrariar qualquer teoria de psicologia -, sem, contudo, ignorar
as teorias que pretendem explic-lo. Quando, conhecendo as teorias,
voc conseguir manter o pensamento aberto para permanecer diante do
fenmeno, livre das teorias, voc vai ter a sensao de estar

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honestamente fazendo fenomenologia; saber o que esta deixando de
lado e por que faz isso. Voc sentir que o faz porque o apelo do
fenmeno maior.
Estar livre das teorias explicativas, geralmente causalistas,
elaboradas pela psicologia, entretanto, no significa que seu
pensamento se d na ausncia completa de referencias. Alis, nem seria
possvel uma coisa dessas, mesmo porque somos "ser-no-mundo", e
"mundo" em tal expresso j significa um entrelaamento de refe-
rencias: nosso fazer, nosso falar, nosso pensar sempre acontecem na
referenda a algo que lhes d sentido. claro que, com mais razo ainda,
aquele pensar que

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prprio da terapia, o pensar que diz respeito existncia, d-se dentro


de um contexto de referencias significativas fundamentais para nossa
compreenso do fenmeno existencial. Em nosso caso, trabalhamos
com um referencial bsico do pensamento heideggeriano: a
compreenso do Dasein, do "ser-ai", como "ser-no-mundo", como "ser-
com"; como aquele que chamado em suas possibilidades para realizar
sua existncia atravs do "cuidado", cobrado por isso e sente culpa;
aquele que sonha, faz planos; sabe que finito e se angustia diante da
possibilidade do nada.

Mas sempre ha urna tenta<;ao: e se arrumarmos urna teoria de


psicologia que seja fenomenolgica? H teorias psicolgicas que so
de inspirao fenomenolgica. Mas ser que, ao se tornarem teorias,
elas continuam a ser fenomenologia? E, no momento psicoterpico,
atermo-nos a essa teoria, ainda que ela tenha se originado de um

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pensamento fenomenolgico, ser que fazer uma boa fenomenologia?
O momento da terapia aquele privilegiado, em que fazemos uma
fenomenologia da existncia. possvel tambm faz-lo estudando,
pesquisando; so muitos os modos, mas nenhum e to precioso como
esse, que se origina de um momento raro como s esse pode ser, pois
em nenhum outro uma pessoa abre a sua intimidade

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com tanta confiana. E ela o faz no para que algum a veja dentro de
urna teoria ou para que elabore urna a partir do que ela fala. Sua
existncia se abre para ser compreendida. Esse o fenmeno ali. Ele
absolutamente singular: porque aquela vida de que se trata e nica,
aquela sesso e nica, a relao entre aquele terapeuta e aquele
paciente nica. No h duas terapias iguais.

Seu paciente vem semana aps semana, s vezes durante anos.


Cada vez ele traz um pedacinho da histria que e a dele, que e ele. Os
sentimentos mais diversos vo passando por ali: raivas e amores,
sonhos e desiluses, esperanas e temores, culpas e vontade de poder
ser melhor.
Por que ele volta toda semana e continua o desenrolar de sua
hist6ria? Ser que para ter uma conversa interessante com voc? Isso
no sustentaria uma terapia. Ele vem porque, a cada sesso, vocs dois
renem pedaos de significados que estavam dispersos na vida dele. s
vezes, eles esto difceis de aparecer, mas vocs acendem uma luzinha
aqui, outra ali, e comeam a encontr-los. Esses significados juntam-se
e passam a estruturar sentidos de sua vida.

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Isso acontece porque aquele o lugar onde ele pode retomar tanto
aquele episdio, to antigo que ele pensou que j fosse passado, como
aquele sonho de futuro sempre

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adiado; onde ele pode ser frgil e ser forte, estar triste ou contente;
onde ele pode se ver como aquele para quem a vida tem de ser sempre
uma tarefa rdua ou aquele para quem a vida tem de ser sempre uma
festa. Enfim, todos os sentimentos tm o direito de freqentar a sesso.
Alguns deles surgem e dizem logo "estou aqui" com muita clareza, e
outros, por muito tempo, negam-se a mostrar-se; querem ser chamados
por outros nomes ou se misturam com outros sentimentos. Mas, com
pacincia, eles todos vo chegando e colorindo uma histria cheia de
sentido.
A histria que se revela no decorrer de uma terapia pode ter
semelhana com outras historias, mas cada uma tem uma peculiar
combinao de significados, que s dela. E ali, na terapia, a nica
fenomenologia que interessa a dessa historia particular, e a da
existncia do paciente que esta na sala. Nisto consiste o trabalho que
ali se realiza: deixar que as coisas apaream com seus significados,
reuni-los e permitir que sentidos se articulem.

Esse trabalho e de pensamento, faz essencialmente uso da


linguagem, mas bem poderia ser chamado de artesanal. Neste contexto,
artesanal indica a diferena do "industrializado", do padronizado, do
que se torna generalizado - como as teorias so generalizaes -, feito
para algum que no sabemos quem ser. Nosso trabalho

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destinado a cada um. E no aquele artesanal que poderia j estar na
vitrine a espera de quem o levasse: ele s vai ser realizado no momenta
em que o destinatrio estiver presente. E mais: s6 ser feito com ele.
Terapeuta e paciente pensam e sentem juntos.
Artesanal diz respeito a um oficio realizado com as mos. Embora
no trabalhemos com as mos, essa metfora vale por aquilo que as
mos humanas podem simbolizar. Mos podem agredir, afastar, mas
tambm so elas que aproximam o que queremos ver de perto; mos
seguram o que est prestes a cair; mos aconchegam, desfazem ns e
fazem laos; mos mostram uma direo; mos detm a afobao da
pressa e do aquele "empurrozinho", as vezes, necessrio; mos
pensam feridas. Fora de toda a conotao pejorativa que a palavra
manipulao carrega, e de acordo com um bom e velho sentido que ela
j teve, podemos dizer aqui que esse um trabalho de "manipulao",
como quando lemos "Farmcia de manipulao". Ali os remdios
podiam ser elaborados especialmente para uma determinada pessoa.

Fulano est em "boas mos" - o que dizemos quando achamos


que ele vai ser bem tratado. Mas de que se trata o tratar da terapia?

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Antigamente dizamos: fulano precisa tratar dos nervos. Depois, foi


"descoberto" o "emocional", e as pessoas passaram a tratar do
emocional; foi acrescentada a isso a noo de que muitas doenas so
causadas pelo "emocional", e, ento, razo a mais para tratarmos dele.
Mais recentemente, a pessoa vem por motivos mais definidos: sofre de
depresso, tem pnico, vive com estresse (palavra da moda), e se define

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at dentro de siglas, por exemplo: "Eu tenho um TOC". Ela vem com
um pedido muito particularizado e urgente para que voc a livre de um
transtorno.
Se no tomar cuidado, voc vai comprar essa idia, e logo voc e o
paciente estaro ansiosamente empenhados em resolver a ansiedade
dele. O paciente tem pressa: primeiro, porque ele esta sofrendo;
segundo, porque acredita que, se um tratamento bom, deve ser rpido.
Afinal, j ha tantas pesquisas a respeito dos distrbios, existem tcnicas
para trat-los, e voc certamente j as conhece. Em geral, ele j vem
tomando um remdio, mas lhe disseram que uma terapia tambm ajuda
a resolver.
Sim, ajuda e muito. Mas como imaginar uma fenomenologia
ansiosa para resolver um problema? O paciente tem direito de escolher
uma forma de terapia que corresponda as suas expectativas. Mas se ele
resolver que quer ser atendido por voc, mesmo sabendo que voc no
usa as tcnicas que ele procurava, e se voce trabalha

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no referencial fenomenolgico, pelo menos para voc, desde o incio,


algumas coisas devem estar claras. Voc e ele vo trabalhar, no contra
o tempo, mas a favor do tempo; ele vai precisar de um tempo para
poder desdobrar, com voc, pormenores de sua vida que, s depois de
contados, tocados, mexidos, podero ajudar a compor a histria dentro
da qual suas queixas fazem sentido. E muita coisa que vai ser dita
poder parecer, primeira vista, conversa jogada fora, mas s parece;
voc vai precisar de um tempo para aprender, com esse paciente, a
forma de se aproximar sem ser invasivo; voc vai precisar de um tempo
para que amadurea uma compreenso; vai ser preciso tolerar

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sofrimento.

Talvez voce diga agora: "Mas isso tempo demais; e a terapia


mesmo,.pra valer, quando comea? Quando vai ser a hora de tratar dos
problemas pelos quais ele me procurou?".
Ora, a terapia j comeou l, no momento em que ele confiou em
voce como possibilitador do espao ou da condio em que o mundo
dele pode ser aberto, aproximado, olhado de perto; ali na sala ele falou
do medo que sentiu tantas vezes ou do medo que nunca se permitiu
sentir; do quanto ele tem se imposto tarefas e esforos para ter sucesso,
do quanto ele precisa competir; do amor que no recebeu, do amor que
no sabe dar; de como

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se sente capaz de fazer algum estrago em sua vida ou na dos outros, de


como ele no quer isso; de como preciso estar sempre atento para que
nada errado acontea; dos seus sonhos, tanto aqueles que morreram
como aquele que teima em continuar. Falou tambm das coisas boas de
sua vida. A terapia j comeou na hora em que, ao entrar na vida dele,
voc se tornou para ele aquele "outro" - e como necessrio o outro! -
que o espera a cada sesso para recolher, com ele, pedaos da sua
histria: pedaos que estavam esquecidos, dispersos, diminudos,
aumentados, e que, ao serem recolhidos, formam um desenho que vai
ganhando sentido e que ele pode reconhecer como sua vida. Ela
comeou porque poder compartilhar com voc esse novo olhar j
aquele "toque" teraputico que pode alterar profundamente a sua forma
de existir.
Terapia um pouco isto: oportunidade de o paciente poder olhar,

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de novo, para o que foi vivido e passou - ou no passou -, para o que
vivido agora, e autenticar tudo como sendo dele, como sendo ele.
Parece quase nada. Mas voc pensa que fcil? No , porque a se
incluem, por exemplo, as dores de que 'ele no quer nem se lembrar,
suas perdas, suas culpas, suas faltas, suas desiluses - e quanto disso h
na base de uma depresso; seus receios, sua angstia, porque ele sabe
que um dia vai morrer, sua tristeza pela precariedade de tudo,
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seu sentimento de impotncia diante de um mundo que se torna cada


vez mais ameaador - e quanto disso esta l no pnico; a se incluem
tambm os prazeres, as alegrias que ele no sabe se tem direito de
sentir.
Terapia tambm isto: ocasio de ver que essa e a vida que se
realizou, que foi esse o caminho percorrido mas um caminho que
continua e, o mais importante, pode ir em direes diferentes. s
vezes, isso quer dizer novas escolhas que implicam mudanas radicais.
Mas o mais comum que esse poder ir em outra direo queira dizer:
mudar a direo do olhar, poder ver outros significados nos fatos que,
em si continuam os mesmos; poder sentir que, exatamente porque
aquela histria especialmente a dele, ele seu protagonista e cabe a
ele trazer elementos novos para ela. Sim, porque terapia tambm
isto: a chance de algum perceber que no lhe compete mudar os
outros; que no compete aos outros tomar a iniciativa para resolver os
problemas que so dele, e que a obrigao de cuidar da sua vida e
primeiramente dele; e a chance de perceber que ele deve isso a si
mesmo.

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Talvez voc diga: "Bem, terapia pode ser tudo o que est dito acima.
Mas que tem isso a ver com aqueles problemas to especficos que o
paciente trouxe para resolver? Entao terapia no passa de uma
conversa, de um

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compartilhar coisas da vida com o terapeuta, e, a partir disso, quem
sabe, at poder v-las de um jeito novo? (Estou pensando aqui: voc
acha que isso pouco?) Os fatos da vida do paciente permanecem l; o
sentido deles pode mudar, mas os fatos no. E sua depresso fato e se
baseia em fatos, faz parte da realidade; seu pnico fato e se sustenta
em fatos, realidade; o abandono que ele sofreu aconteceu na
realidade. E ele apenas vai aprender a olhar para a realidade de um
outro jeito?".
Diante dessas perguntas que voce pode ter feito, vamos pensar: e o
que a realidade? Se voc trabalha com a fenomenologia, sabe que
realidade sempre realidade percebida. Ouvi de um psiclogo algo que
exemplifica isso. Uma menina chega para a sesso de terapia e conta
que seu namorado a deixou, no a quer mais. Este o fato. Ela se
deprime: "Que falta de sorte, eu devo ser mesmo incapaz de manter
algum comigo; o que ser que me falta?". Esta , realmente, uma
menina abandonada, porque no inspira amor. Outra menina chega e
conta o mesmo fato. Ela fica triste e com raiva: "Esse cara nao de
nada, ele pensa que eu sou uma idiota, aquele tonto que no sabe o que
esta perdendo". Esta , realmente, urna menina que namorou algum
que nao soube lhe dar o valor que ela merece.
Talvez voc me diga: "O real ai depende de se saber em cada caso
exatamente por que o namorado foi embora".

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Mas quem vai saber isso? Talvez nem ele mesmo saiba. Do ponto de
vista da menina, o que importa nesse fato e a percepo que ela tem
dele, o sentimento que despertado nela. Essa a realidade que tem
sentido para ela. Ento, a realidade nunca to objetiva como
imaginamos que seria por se chamar realidade. Ela sempre algo a
meio caminho entre o que foi dado, como foi dado, e o que foi
percebido. Se na terapia algum consegue comear a olhar a prpria
vida e a reelaborar significados que j estavam cristalizados, a realidade
da vida dessa pessoa pode se alterar tambm.
Se ate a fsica, uma cincia que lida com fatos objetivos, considera
que ato de observar e uma varivel que altera o objeto observado,
quanto maior deve ser a possibilidade de que urna dada situao
existencial possa ser alterada dependendo do "olhar" que lhe dirigido.
E tanto mais porque no se trata, na terapia, de um mero olhar
desinteressado, mas daquele "olhar" que tambm cuidar, como quando
algum, ao sair, diz para outra pessoa: "Olhe isso pra mim at eu
voltar". Ou quando a me diz para a bab: "Estou saindo, olhe as
crianas". S que, na terapia, trata-se de um olhar junto, de um "olhe
comigo". Terapia um pouco isto: possibilidade de dirigir um olhar
diferente para a prpria existncia e, assim, reformular significados.

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Mas esse olhar que cuida olha o qu? De que cuida a terapia? A
terapia isto: cuidar da existncia que sofre. Porque a existncia
frgil por natureza. No s a vida que, como animal, o homem
compartilha com os outros animais frgil, mas, sobretudo, a

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existncia como caracterstica peculiarmente humana o que h de
mais vulnervel. Existncia "ser-no-mundo", e isso poder ser
atingido, ser tocado o tempo todo por tudo: tanto pelo que vem ao
encontro do que desejamos e torna a existncia mais plena, como por
aquilo que e compreendido como destruio de algo que queremos ter
preservado ou como ameaa de que isso possa acontecer. Algumas
vezes, e a vida mesma, a prpria ou a de um outro, que sentimos
ameaada, e ento o sentido das coisas fica abalado, e isso di. Mas
isso no acontece s quando a vida est em risco; acontece tambm
naquelas situaes em que sabemos que a vida est ilesa, mas o
sentido da vida se quebra ou se torna confuso. A existncia sempre
um poder ser diante de um "para qu", de um"a fim de que", e quando
este se rompe ou est ameaado a existncia sai machucada. Em algum
grau e de alguma forma, algo esta doendo quando a pessoa procura a
terapia, embora, as vezes, no comeo ela nem identifique ainda aquilo
como dor. A terapia no uma forma de entretenimento intelectual
para pessoas que, dispondo de tempo e dinheiro, apenas querem se
conhecer melhor.
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Damos uma topada na pedra e o dedo di; algum sente que a garganta
di; a indigesto faz doer o estmago. Os animais tambm sentem essas
dores. Mas onde di uma decepo? Onde di o sentir-se perseguido? E o
sentir-se culpado? E a falta de amor? E a falta de sentido? Onde di a
incerteza? E, o saber da precariedade de tudo onde di? S os humanos
sentem essas dores. Porque s o homem, como "ser-no-mundo", existe na
compreenso do entrelaamento de significados que quer dizer "mundo". E
aquelas so dores da existncia, que s podem ser sentidas por um ente que
compreende significados. Elas podem ser to intensas que chegam a se
encarnar no corpo do homem, j que corporeamente que o homem existe.

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Talvez algum diga que, ao mexer nessas dores, a terapia vai machucar
mais. Isso acontece mesmo. Mas elas afloram exatamente porque o
paciente sabe que aquilo que o faz sofrer cabe naquele espao. Ningum
vai lhe dizer: "Bobagem sofrer por causa disso". Muitas vezes, essa uma
experincia totalmente nova para ele. E claro que ele tem com quem
conversar entre as pessoas com quem convive, mas ele reserva certas coisas
para, como dizamos antigamente, conversar com seus botes ou com o
travesseiro. Ou, ainda, como dizia Cartola, queixa-se s rosas... So essas as
conversas que cabem na terapia; ali urna pessoa ouve e acolhe suas
palavras.

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Entao, terapia tambm um pouco isto: ocasio de ouvir a prpria voz
a dizer coisas que, uma vez ditas, encorpadas na voz, so acolhidas
por ouvidos humanos. Tomando corpo assim, elas se mostram com
mais nitidez. Pensamentos e sentimentos expressos dessa forma
podem ser compreendidos melhor em suas propores e significados.

Mesmo se no houver um grande sofrimento, pelo menos em


alguns pontos a existncia de quem procura a terapia deve ter se
complicado. Mas o que se complicou algo dentro dela ou algo do
mundo em que ela vive? E dentro ou fora dela? Se considerarmos que
existir "ser-no-mundo", essa pergunta j no cabe, no h mais
dentro ou fora. "Ser-no-mundo" no quer dizer apenas estar
fisicamente dentro de um mundo fsico; no tambm estar dentro de
um mundo cujas presses sociais, culturais ou de qualquer outra
natureza modelam o psicolgico do homem; no tambm a
intemalizao de um mundo que, na origem fora do homem, passa a
ser vivido "psicologicamente" como sendo dele ou como sendo o seu
interior; tambm no aquele bvio dizer que "cada pessoa v o

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mundo de um jeito subjetivo". A concepo de existncia como "ser-
no-mundo" representa modificaes radicais de ordem filosfica e
epistemolgica. A existncia o "lugar", o "a" onde

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h "mundo", e "mundo" j sempre o "a" onde a existncia .
Existncia e "mundo" so co-originrios. Um no anterior ao outro.
Se voc concebe a existncia como esse ser num mundo de
significados, ser sempre diante de um a fim de que, e isso quer dizer
achar sentido, voc vai perceber o quanto o sofrimento do paciente tem
a ver com a dificuldade de encontrar sentido no que est vivendo ou de
ir ao encontro do que daria sentido a sua vida, ou seja, a dificuldade est
exatamente no cerne do existir. nessa dimenso que a terapia
fenomenolgica profunda. Terapia ento tambm isto: momento em
que possvel aprofundar o pensamento, de uma maneira inteiramente
pessoal, na questo bsica do sentido da vida prpria.

Quando falamos em sentido das coisas da vida tocamos na questo


dos valores, pois algum v sentido em caminhar na direo de algo
que valoriza. inevitvel que esse tema esteja presente de alguma
forma na terapia, e no pode deixar de ser pensado pelo terapeuta. As-
sim, vamos introduzi-lo aqui. Numa brincadeira de faz-de-conta, voc
pode imaginar que se encontra por ai com as cincias caminhando ou
correndo, ocupadas nos exerccios que as tomam fortes. Se elas
pararem URV pouquinho, e voc puder perguntar a elas "como vo
vocs?", elas

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respondero satisfeitas: "Ah, estamos timas, felizmente, talvez em
nossa melhor forma". Se, em seguida, voc se encontrar com os

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valores humanos - o que j vai ser difcil, visto que eles vivem meio
encostados pelos cantos -, ver que eles esto muito mal-tratados,
alguns meio deprimidos, outros raquticos. E talvez eles nem
respondam, andam quietos. Tm medo de que os chamem de velhos
caretas.
Agora, brincadeira parte, parece que, nas cincias, no h crise.
A crise e dos valores, na rea dos significados das coisas em geral,
dos significados que dizem respeito existncia do homem. As
pessoas pensam cada vez menos nisso e, quando querem ou precisam
pensar, no encontram a hora, o lugar; s vezes, j no encontram nem
mais a linguagem que facilitaria esse pensar. Terapia no pode deixar
tambm de ser isto: o lugar onde se pode ouvir a prpria resposta
pergunta inevitvel: o que tem valor para mim?

Uma resposta, num exemplo hipottico, poderia ser esta: "Meu


valor maior foi sempre fazer urna carreira brilhante. Eu quero nada
menos que o primeiro lugar em tudo. Na empresa em que trabalho
agora, posso ser promovido para um cargo legal, o mais alto, mas h
um outro cara que super capaz, e eu sei que desempenhar essa
funo o sonho da vida dele. Preciso impedir, de

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qualquer jeito, que ele consiga. Tenho inventado e espalhado algumas
coisas sobre ele e garanto que ele sai do preo, j, j. A gente tem de
tirar do caminho quem esta atrapalhando e, se for preciso, a gente pisa
e passa por cima. Sei que isso no honesto com ele, mas, enfim... No
que eu goste de prejudicar os outros, mas, neste caso, ele ou eu.
Depois ele se arruma de outro jeito. Se a gente ficar pensando nos
outros no chega a lugar algum".
Dito em qualquer outro lugar, isso provocaria comentrios como:

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agir assim e errado, e imoral; ou v em frente, cada um cuida de si.
Mas, quando falado numa sesso de terapia, mesmo que o terapeuta
no queira se manifestar no momento, isso suscitaria que tipo de pen-
samento nele? Ser que o terapeuta ficaria entre os dois comentrios
imaginados acima, tendendo ora para um lado, ora para outro? Ou ele
diria para si mesmo que isso no questo para terapia, uma questo
de valores, e cada um tem os seus? Ou diria que no funo da terapia
dar orientao moral? Ou acharia que a pessoa deve ser e agir o mais
possvel de acordo consigo mesma, com o que sente que bom para si,
e que isso at mesmo uma questo de autenticidade? Ou ser que o
terapeuta iria ficar procurando uma interpretao daquelas que, de to
rnirabolantes, acabam de uma vez com esse assunto incomodo? Ora,
mas natural que a terapia se
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demore nos assuntos incmodos, pois sempre h muito o que pensar
naquilo que incomoda.

No exemplo imaginado, no mnimo seria possvel pensar em qual


o significado do "outro" para aquela pessoa. O terapeuta poderia se
lembrar das palavras do poeta ingls John Donne (1572-1631):

Homem algum uma ilha completa em si mesma; todo homem


um pedao do continente, uma parte do todo; ( ... ) a morte de
qualquer homem me diminui, porque eu sou envolvido na
humanidade. E, portanto, nunca perguntes por quem os
sinos dobram; eles dobram por ti.1

Isso quer dizer tambm que o sofrimento, a dor, a injustia,


impostos sobre um homem, dizem respeito humanidade toda, a cada
um, a mim, a voc.

21
As palavras desse escritor ressoaram tanto que inspiraram dois
ttulos de livros, Homem algum e uma ilha, de Thomas Merton (1915-
1968), e Por quem as sinos dobram?, de Hemingway (1898-1961), que se
transformou em filme. Essas palavras lembram que os homens existem de
tal modo que no podem eliminar de sua essncia o ter de ser sempre
ligados aos outros.
1. The complete poetry and selected prose of John Donne. Coffin, Charles
M. (ed.). New York, The Modern Library, 2001.
33

Na pea de Sartre, de 1944, Entre quatro paredes,2 trs pessoas


condenadas ao inferno descobrem que a condenao consiste nisto: em no
poder se livrar do olhar do outro, do pensamento do outro. A personagem
Ins diz a Garcin:

Voc um covarde, Garcin, porque eu quero que seja. Eu quero,


compreende? Eu quero! No entanto, veja que fraquinha que sou,
um sopro. Sou apenas o olhar que est vendo voc, o pensamento
incolor que esta pensando em voc.

Entao, is to que o inferno? Nunca imaginei... No se


lembram? 0 enxofre, a fogueira, a grelha... Que brinca-
deira! Nada de grelha. O inferno... so os Outros.

So palavras duras. Essa nossa condio existencial bsica pode


mesmo ser vivida como o pior, mas tambm pode ser vivida como o
melhor que temos.

Isso de que falamos aqui no significa a mesma coisa que a noo


heideggeriana de "ser-com". Entretanto,

22
______________________________________________________

2. SARTRE, J. P. Entre quatro paredes. Trad. Guilherme de Almeida.

So Paulo, Abril Cultural, 1977.

34
as palavras desses outros pensadores nos ajudam a compreender alguns
desdobramentos do que esta contido naquela noo.
Ao concebermos 0 "ser-com" como uma caracterstica bsica da
existncia, dizemos que esse "ser-com" o outro faz parte tambm da
estrutura do "ser-no-mundo". Eu levo o outro comigo, mesmo se no
me importo com ele; se sou hostil ao outro; se me afasto do outro numa
renncia necessria em vista de outros ideais; se me afasto do outro
porque no gosto de gente; se prejudico o outro; se digo "o outro que se
dane". Basta ver que, at para poder articular esses pensamentos, em
todos eles, a esta sempre o outro. E quando algum o elimina, mesmo
concretamente, matando-o, a estar sempre o outro que algum matou.
Mesmo sem lhe tirar a vida, possvel infligir ao outro aquelas
pequenas mortes, quando algum intervm na vida dele, deliberada,
injustamente, s vezes s por capricho ou por irresponsabilidade,
matando seus sonhos e mesmo a sua capacidade de sonhar. Se voc se
lembrar daquele triste dobrar de sinos, embora no os escutemos, talvez
alguns sinos dobrem no s pela tristeza do outro que foi machucado,
mas tambm pela diminuio humana daquele por meio de quem a
tristeza e a injustia se instalaram no mundo, e tambm pelo mundo
que se tornou mais feio. Terapia um pouco isto: uma rara ocasio de
aprofundar o pensamento em coisas que,
35
primeira vista, parecem ser simplesmente questes de opinio, j

23
resolvidas, mas que, na verdade, precisam ser pensadas.

Naquele exemplo em que o paciente se prope a passar por cima do


colega, inventando coisas sobre ele, como se posiciona o terapeuta?
Ser o caso de bancar o grilo falante do Pinquio e dizer que ele no
est sendo honesto com o colega e isso errado? Ou ser que ele vai
ficar s no clssico "apontar": parece que voc precisa estar sempre em
destaque, na frente de tudo; voc no tolera frustrao; parece que nada
pode se interpor entre voc e seus objetivos; voc no consegue ver
ningum alm de voc e nada alm de seus interesses, etc. O paciente
dir ainda alguma coisa mais e ... no se fala mais nisso - que alvio! -,
esse assunto incmodo acabou; na prxima sesso ele trar outra coisa
para falar.
Um terapeuta com mais pacincia e sensibilidade talvez ache um
modo de manifestar a ele a sua estranheza por uma atitude to desleal,
pergunte se isso no o incomoda e, dependendo da sua resposta, no
diga mais nada. No por achar o assunto sem importncia ou para no
ser moralista, mas porque reconhece que ha horas em que falar
precipitadamente estraga tudo. H certas falas do terapeuta cujo efeito
a banalizao de uma coisa sria.
36
No exemplo suposto, ainda no houve tempo para a compreenso
do que significa tal comportamento para aquela pessoa em particular.
Qual o sentido mais profundo disso? O paciente expressou o que
para ele tem valor e at contou o que faz concretamente para conse-
guir seu objetivo. Mas, alm disso, que outras coisas ele valoriza? O
que mais constitui a sua existncia? Aonde o leva esse seu modo de
ser? Dentro de que contexto de significados o que ele descreve faz
sentido? E o terapeuta j tem idia desse contexto de significados que

24
o mundo dele? Ser que aquilo que ele disse que seu maior valor
mesmo o mais importante ou, quem sabe, ser um meio para outra
coisa, que representa at mais, outra coisa que ele ainda no
conseguiu ver e, se conseguisse v-la, talvez a buscasse de algum
outro modo? Ento, preciso calma, facilitar que essa conversa se
prolongue que puxe outras, e talvez isso leve tempo.
Com aquele terapeuta que se apressa em dizer qualquer coisa,
uma dessas coisas prontas que vm cabea, o paciente se apressa em
responder tambm qualquer coisa: "Esse o meu jeito mesmo,
assim que eu sou. E da?". O terapeuta ainda pode entrar com
possveis explicaes: deve haver muita insegurana por trs dessa
sua necessidade de ganhar sempre; voc precisa de um cargo
importante para sentir que vale alguma coisa; O outro sempre visto
por voc como uma ameaa, e voc
37
tem necessidade de destruir essa ameaa; voc continua como uma
criana que precisa mostrar para os pais o quanto "o bom"; voc
precisa ser o primeiro para poder superar seu pai. E vai por a afora.
Mas o que resulta de conversas pr-fabricadas desse tipo? Pois se eu,
que no conheo esse paciente, visto que ele nem existe, acaba de ser
inventado, posso dizer essas coisas sobre ele, por a voc pode ver o
quanto determinadas falas de terapeutas so estereotipadas: valem para
qualquer paciente e no valem propriamente para nenhum. Por isso
que a terapia deve ser um trabalho artesanal, de criao exclusiva para
aquele paciente, e no um produto pret-a-porter.

Suponha que o terapeuta ouviu o que o paciente disse, conteve-se, e


parece que agora ele quem tem um problema. O que ele pensa sobre o
ato de, deliberadamente, prejudicar outra pessoa para se sair bem? Pro-

25
vavelmente, ele acha que isso no certo. Mas isso um valor dele. E
os valores do terapeuta podem afetar a terapia? Nao funo da terapia
dar lies de moral. Mas prprio da terapia lidar com as questes
importantes que afetam a existncia do paciente. E aquela questo
trazida pelo paciente, que representa sua maneira de ser-no-mundo, de
ser-com o outro, isso importante? Se for importante, preciso cuidar
dela. Mas importante

38
por que? Ser que porque preciso evitar que as pessoas sejam
prejudicadas pelos espertos da vida? (No caso, o colega do paciente.)
Embora haja a uma boa inteno, isso foge do prop6sito da terapia,
no o que ela se prope a fazer (porque no especfico dela e porque
no somos onipotentes ). Nosso mundo est sendo aquele do vale-tudo, do
salve-se-quem-puder, e isso ruim, mas, ainda assim, o compromisso da
terapia , em primeiro lugar, o cuidado do paciente. Quando o paciente
entra em sua sala, o cuidado dirigido a ele; o mundo l fora est fora; mas
lembre-se de que o paciente ele mesmo um mundo, e, quando voc cuida
bem dele, do mundo que voc est cuidando - homem algum urna ilha.

Voltando pergunta acima, por que, ento, importante lidar com o


assunto trazido por aquele paciente? Se no para proteger os outros, se o
paciente, ao agir daquele modo, est de acordo com o que ele acha que d
sentido vida dele, se lealdade um valor do terapeuta e no do paciente,
por que, ento? No seria mais apropriado nos mantermos na neutralidade,
imparcialidade, na indiferena? Mas como manter indiferena diante de
certas coisas? possvel dizer que tanto faz gostar ou no de futebol, mas
no indiferente que algum mate o torcedor contrrio quando seu time

39

26
perde; tanto faz comer pra ou ma, mas no pode ser indiferente ver
algum, a seu lado, passar fome; tanto faz preferir cerveja ou vinho,
mas voc no vai ficar indiferente se seu filho estiver se tornando
alcolatra, com cerveja, vinho ou outra coisa. Aquelas situaes que
agridem os significados mais importantes que temos no suportam
indiferena. Elas solicitam interesse, solicitam cuidado.
Mas aquele relato do paciente mexe com algum significado
importante para que merea ser cuidado? Em primeiro lugar, para o
terapeuta que estou imaginando, mexe com algo que significa muito
para ele: a existncia de seu paciente. Mas por que esse terapeuta se
preocupa, por que ele v naquele modo de ser que descrito pelo
paciente algo que solicita o seu cuidado? O paciente diz que est
fazendo o que acha certo, parece que no est sofrendo nem um pouco
e at vai se dar muito bem. Ento, por que no olhar esse "pisar no
outro", descrito por ele, com neutralidade?
que esse terapeuta tocado quando se aproxima de uma
existncia que, entre tantas outras possibilidades, desenvolve
exatamente essa que a atrofia.
Mas atrofia por que? Seu paciente vai pisar no outro, vai conseguir
o cargo, chegar ao topo da carreira, ganhar muito dinheiro, comprara
o que quiser, viajar muito, ter as mulheres mais lindas. Ser que o
terapeuta
40
acha isso pouca coisa? No, at coisa demais. Mas seu paciente d
uma amostra do muito pouco que ele sabe fazer para ser feliz. Se sua
existncia, de acordo com a amostra que ele d entrar nessa bitola,
sempre haver mais uma meta a ser atingida, provavelmente pelos
mesmos meios, e sempre haver outros pisados ao longo do caminho; e
sempre haver outros de quem ele talvez quisesse se aproximar ou que

27
ele quisesse manter junto de si, e que vo se afastar dele. Se existir e
"ser-com" o outro, que forma triste essa de levar o outro consigo em
sua vida: sempre o outro que se precisa driblar, o outro que vai servir
de ponte para outra coisa, o outro que no esta no seu corao, o outro
em cujo corao no se consegue estar. Se existir "ser-no-mundo",
como devem ficar encolhidos os significados de um tal mundo. Que
significados pode ser capaz de dar para as palavras amor, amizade,
compaixo, respeito, solidariedade, vida, vida humana, Terra, algum
cujo grande objetivo ser o primeiro a qualquer preo, o mais bem-
sucedido, o poderoso? Essa no a nica, mas uma das formas de se
empobrecer uma existncia.
Mas por que chamar de pobre a existncia de algum cuja vida
caminha em direo ao sucesso? Talvez porque essa existncia siga em
frente como aquele cavalo que, com uma cenoura pendurada a sua
frente, marcha sempre visando a cenoura, e, com viseiras, no
41
enxerga mais nada ao longo do percurso. Pisa no que estiver frente e
segue; periodicamente come urna cenoura, e sempre aparece outra
diante dele que o obriga a continuar. Essa busca da cenoura, isto , do
sucesso e do poder, extremamente auto-estimulante e acaba por ser
predominante na vida, porque o sucesso exige muito empenho para ser
mantido, o poder exige vigilncia perene. Por isso, esse um modo de
ser que tende a se tornar absorvente, e o restante da existncia fica
atrofiado. Isso 0 que a torna pobre. Talvez seja esse o motivo
pelo qual o terapeuta, ao pensar no desdobrar-se da
existncia daquele paciente, sente que aquela sua fala
indica algo que precisa ser cuidado. E, como a existncia
do paciente tem significado para ele (0 terapeuta), esse

um daqueles casos diante dos quais difcil permanecer indiferente.

28
Ento, diante daquela fala do paciente, o terapeuta ouve... e depois?
Deixa que ele continue a falar, a abrir a sua vida. Ser que ele se limita
a ser o cara capaz de ser desleal com seu colega? E do que mais a vida
dele feita? Ele ter outros sonhos? o que ser que ele j sofreu? o que
di nele? ou ele no capaz de sentir que algo di? Mas, de qualquer
forma, ele deve sentir que algo esta difcil, pois, afinal, ele procurou a
terapia. Por que ser que ele procurou a terapia? Abrir tudo isso leva
tempo. E o tempo, na terapia, para isso mesmo; ocasio para

42
que a vida se mostre, com ele que contamos para fazer a
fenomenologia de uma existncia; o tempo pode trabalhar a favor da
desocultao.
Mas aquilo que na desocultao pode se dar s se d quando
encontra a abertura humana que o acolhe. O terapeuta est l para ser
essa abertura, numa disponibilidade para a compreenso daquilo que
chega e se mostra; daquilo que no se mostra diretamente, mas se
insinua, e, com pacincia, acaba por aparecer; e tambm daquilo que
nem sequer se insinua, visto que dele nem podemos dizer que ,
mas que passa a serll quando pode, enfim, articular-se na linguagem a
linguagem a morada do ser -; e, para isso, vai ser preciso mais
pacincia ainda.
Pacincia no aquele esperar flutuante pelo momento em que,
enfim, entre em cena algo suficientemente interessante em que voc se
digne concentrar sua ateno. Essa pacincia desatenta desinteresse
por quem est com voc na sala. Tudo que se passa ali merece uma
ateno concentrada. Mesmo aquela fala do paciente que pode,
primeira vista, parecer uma evaso das coisas mais srias que pode
mesmo ser isso, precisa ser bem ouvida. No sem sentido o seu

29
aparecimento. Tanto que de umas coisas, e no de outras, que ele
prefere falar em seus desvios. Por mais que sua fala, s vezes, seja
impessoal e distanciada do si-mesmo, ela conta sempre algo do
paciente.
43
A pacincia e pronta; atenta no s ao que dito, mas ao como
dito, a voz mais solta ou embargada, aos rodeios, aos desvios, aos
silncios; e atenta aos gestos do paciente, a sua postura. Essa pacincia
a que permite estar em sintonia com a tristeza dele e, s vezes, sem
achar que isso perder tempo, poder rir com ele - a terapia no feita
s de lgrimas -, quando naquele dia o paciente traz o seu lado bem-
humorado e as coisas boas da sua vida, porque isso tambm faz parte da
vida dele. A boa pacincia faz parceria com o tempo, no o apressa,
mas aproveita todas as deixas que ele d, no desperdia oportunidades.
E, para isso, preciso que no se esteja ansioso para "mostrar servio"
- a ansiedade faz enxergar torto -, mas disponvel o tempo todo. Talvez
um bom nome para essa pacincia disponvel e envolvida seja
serenidade.
E a serenidade que facilita o pensar que essencial na terapia. Este
diferente daquele pensar que consiste em colocar o que se apresenta
em termos de um problema - equacionar o problema, como dizemos -,
levantar as alternativas, examin-las, calcular risco e vantagem de cada
uma, optar pela alternativa que melhor soluciona o problema, isto ,
que acaba com o problema, e do modo mais rpido possvel!, de
preferncia. Solucionado esse, passamos para outro. Diante de algumas
situaes possvel fazer isso.
44
Mas como seguir esse esquema com algum que sofre a decepo
de um abandono, de uma perda muito grande; que se depara, de

30
repente, com urna impossibilidade arrasadora de todos os seus
planos; ou algum que, como aquele paciente que imaginei (e larguei
l atrs, nesta conversa, diante do terapeuta), nem sequer v o seu
modo de ser como uma questo a ser pensada? Voc j tentou colocar
uma situao dessas naquele esquema de pensar que resolve
problemas? Como que se faz isso? Eu no sei. So experincias da
vida que precisam ser vividas, pensadas, e, aqui, o pensar de outra
ordem; e se forem experincias muito amargas, vai ser preciso curti-
las, naquele sentido em que dizemos que a cidra um certo tipo de
laranja tm de ser curtidas, por algum tempo, deixando-as numa gua
que vai sendo trocada at que percam todo o amargo, para depois
serem transformadas em doce. Jung tem razo ao dizer que h
problemas na vida que no so solucionados, so ultrapassados.

Agora, voltando quele terapeuta diante do seu paciente, que


mesmo que ele vai fazer alm de ouvi-lo cuidadosamente, de
favorecer que a existncia dele se mostre o mais possvel, de, junto a
ele, compreender e explicitar os significados que compem o seu
mundo, de alargar sua capacidade de ver significados, de ver o

45
sentido ou 0 rumo que sua vida segue, de repensar com ele o que, na
verdade, ele quer fazer de sua vida? Alm disso, tudo, o que mais deve
ocorrer na terapia? Talvez algo que no foi dito aqui, mas que,
certamente, j foi se dando no decorrer do tempo, pois terapia tambm
isto: possibilidade de algum perceber que tem do seu lado uma
pessoa que o conhece bem e que confia na sua capacidade de mudana,
caso ele sinta que quer modificar algumas coisas da prpria vida.

Se o terapeuta tem um fazer que contribui para que algumas coisas

31
aconteam, o que isso que, concretamente, constitui esse fazer? o que
se faz ouvir e falar? Mas, ento, e s uma conversa! mesmo s uma
conversa, muito especial, em que se exercita o essencial do conversar:
ouvir, falar, silenciar. E olhe que isso no fcil! No fcil ouvir uma
coisa ate o fim, sem ficar interrompendo, sem querer antecipar o que o
outro pretende falar; no fcil achar a linguagem apropriada ao falar;
no fcil silenciar nem suportar silncio.
Sobretudo, no que diz respeito fala do terapeuta, ele precisa prestar
muita ateno no sentido dela, isto : por que ele esta dizendo tal coisa
para este paciente? A fim de que? Ao dizer isto para o paciente, o que
ele pretende? Mostrar que esta prestando ateno? Mostrar que conhece
uma teoria que explica isso? Fazer por merecer
46
o dinheiro que ele paga - ora, afinal, precisamos ter alguma coisa para
dizer? E pelo costume de ter sempre algo interessante a dizer? s para
que o outro veja como ele perspicaz? Ele quer mostrar que sabe mais
que o paciente? E isso urna demonstrao de poder? E, no caso de ele
j ter compreendido algo a respeito do paciente, mas algo cuja
compreenso, pelo paciente, possa ser ainda prematura, por que a
pressa de falar sem considerar antes se o momento? Ele faz isso em
nome do que? Ser em nome da verdade? E o que o paciente vai fazer
com isso? Com calma, vai chegar o momento em que aquilo vai poder
ser dito, vai dever ser dito e, embora possa doer, vai fazer sentido para
o paciente.
O terapeuta deveria ter cuidado tambm ao falar, apressadamente,
determinadas coisas que, no momento em que o paciente est
vivendo, podem ser mal compreendidas por ele. Por exemplo: O
paciente diz que tem vontade de fazer algo que, por respeito a
determinadas regras ou convenes, ele mesmo acha que no deve

32
fazer; o terapeuta, ento, com a inteno de aproxim-lo daquilo que
mais "propriamente" ele - daquilo que talvez at sejam os
verdadeiros motivos pelos quais ele no faz aquilo que diz desejar
fazer -, na pressa, pergunta: "E por que no faz?". Para o terapeuta,
essa pergunta tem todo um sentido. Mas, para o paciente, isso pode
soar como: "Pois faa!". E o paciente, em seguida, vai e faz.

47
De uma hora para outra, sem tempo de ter sido colocado nada no lugar,
o terapeuta derrubou um limite que, embora a partir da
"impropriedade", estava tendo a funo de manter alguns significados
muito importantes na vida do paciente. O terapeuta faz isso em nome
do qu? Ele no podia esperar que o paciente, aos poucos, chegasse aos
verdadeiros motivos do seu fazer ou do seu no fazer, chegasse aos
seus porqus?
O terapeuta cuidadoso no falar corre menos risco de dizer bobagem
e de falar fora de hora. D para vermos que essa conversa que constitui
a terapia e especial, e delicada, porque o que est em jogo a
existncia de algum que, em principio, confia no terapeuta.
Isso no quer dizer que o tempo todo tenha de ser uma conversa
sisuda, profunda, sempre centrada num tema serio. Uma sesso
comporta alguma brincadeira, algum comentrio leve sobre um assunto
qualquer. Com alguns pacientes, essas coisas aparecem em algum mo-
mento da sesso, e podem ate ajudar na formao de um vnculo
facilitador de confiana; podem favorecer a entrada em assuntos mais
srios; mas, mesmo que no consigamos essa entrada, no foi tempo
perdido. Provavelmente, naquele dia, o paciente precisava daquela
vivncia mais descontrada com seu terapeuta. Ela no ter sido intil,
pois, numa conversa aparentemente ftil na

33
48
terapia, muito do paciente se mostra, e isso, num outro momento, vai
ajudar na compreenso que o terapeuta tem dele.
Essas pequenas falas "sem importncia" que podem acontecer
numa sesso, que terapeuta e paciente sabem que so pequenos
parnteses no desenrolar de uma hist6ria sofrida, no so elas as
bobagens que devem ser evitadas na terapia. Bobagens so algumas
coisas sem nexo, deslocadas ou inadequadas, e, o que pior, fanta-
siadas de coisa sria, que so ditas por alguns terapeutas.
Tambm uma outra coisa a ser considerada que, com alguns
pacientes, no cabe nenhuma brincadeira. O terapeuta precisa
discriminar as situaes. Algumas pessoas podem se sentir
pressionadas a ter de descobrir algum sentido oculto em qualquer coisa
dita pelo terapeuta. s vezes, a dificuldade daquele paciente exata-
mente esta: poder perceber diferenas entre os contextos em que as
coisas so ditas.

Bem, se terapia uma conversa, mas uma conversa muito especial,


ser que h uma tcnica definida para o seu acontecer? Se voc
entender tcnica como um jeito de conduzir a sesso (por exemplo:
permitir-se ou no fazer perguntas; responder ou no a perguntas mais
diretas feitas pelo paciente; fazer ou no interferncias em

49
seus relatos; dizer algo a cada a momento em que voc percebe que
aquela fala do paciente faz sentido para voc ou deixar para mais no
final da sesso fazer um apanhado mais amplo, etc.), claro que sim, e
cada terapeuta vai se sentir mais a vontade de um jeito, vai fazer isso
de uma maneira. Nesse caso, poderia ser dito que cada terapeuta
desenvolve urna tcnica, ou seja, o seu jeito de estar na sesso.

34
E, alm do fato de cada terapeuta desenvolver um modo de
trabalhar que o mais propriamente seu, esse seu modo pode precisar
se adequar s condies diversas de cada paciente.
Por isso, importante a troca de experincias entre terapeutas. Isso
permite saber como o outro trabalha e pode ser enriquecedor para
todos. Mas o que vai sair enriquecido ser sempre o jeito de cada um.
Mas se voc entender tcnica no seu sentido atual da poca
chamada tecnolgica, a resposta para aquela pergunta no, pois aqui
tcnica a aplicao pratica de um conhecimento cientfico-terico a
um campo de atividade. Ela pode ser traduzida em um conjunto de re-
gras ou procedimentos que tem em vista um resultado; tais
procedimentos so o mais possvel, padronizados. cincia aplicada
numa situao concreta.
E como falarmos em cincia aplicada quando o trabalho que
fazemos se fundamenta nos pressupostos da
50
fenomenologia? Qual a teoria cientfica a ser aplicada? Pois teoria
cientfica (a no ser que estejamos falando em cincia num sentido
muito amplo, em que estariam includos conhecimentos de vrias
naturezas, mas a ento j teramos sado do mbito da tecnologia atual)
um conjunto de hipteses sistematicamente organizadas, que pretende,
atravs de sua verificao, confirmao ou refutao, explicar uma
determinada realidade (por exemplo: a teoria da relatividade, a teoria da
evoluo). As cincias naturais correspondem bem a essa definio de
teoria cientfica.
Compreendemos que aquela psicologia, que tem como seu objeto
de estudo seja o comportamento humano, seja o funcionamento
cerebral em sua relao com os aspectos mentais, seja um psiquismo
concebido como uma estrutura regida por leis - de qualquer forma, sem-

35
pre algo que possa ser equiparado, em sua condio de objeto de
estudo, aquele das cincias naturais -, aspire ao nome de cincia e
merea-o, mesmo que nem sempre possa ser uma cincia rigorosamente
experimental. Ela prope hipteses, procura verific-las, pretende
chegar a leis explicativas de um fato. Est interessada em explicar
mecanismos de funcionamento, em estabelecer relaes causais de
algum tipo.
A psicologia que faz isso tem sua razo de ser, ela nos informa
sobre muita coisa que diz respeito ao homem.
51

S como exemplo, muito importante o que aprendemos, desde


Skinner, sobre o papel do reforo na explicao do condicionamento
operante, sempre to presente. E a psicologia comportamental no
parou de evoluir.
Mas se voc escolheu o referencial da fenomenologia para
trabalhar, e ainda mais especificamente a Daseinsanalyse, voc no est
trabalhando com base numa teoria cientfica de psicologia (o que no
implica ser contra a cincia nem ficar impedido de usar informaes
provindas de qualquer teoria de psicologia quando sentir que elas vo
ajud-lo a compreender alguma coisa do seu paciente). Se a tcnica a
aplicao de uma teoria cientifica em vista de um resultado, e no
estamos partindo de urna tal teoria, de onde vamos derivar urna
tecnica?
Dizer que no partimos de uma teoria cientfica, nem mesmo de
uma teoria "cientifica" que possa ter tido inspirao fenomenolgica,
no significa que trabalhemos sem referencias a priori, num vazio
intelectual, numa improvisao irresponsvel. Ao contrrio, trata-se de
um fazer que exige uma fundamentao de outra natureza e muita

36
responsabilidade.
Num dizer mais rigoroso, o fenmeno com o qual lidamos no
um "psiquismo", que precisaria de uma teoria psicolgica cientfica
para explic-lo. Lidamos com o fenmeno da existncia, e, segundo a
concepo de que
52
partimos, a existncia , em cada caso, a minha, a sua, a do paciente em
sua sala. Ora, embora em outros tempos cincia j tenha significado
algo diferente, no mundo em que vivemos damos o nome de cincia
elaborao de um conhecimento que trabalha com hipteses que devem
ser verificadas, que estabelece suas condies de refutabilidade, que
usa procedimentos estatsticos, que chega a leis gerais. Voc acha que a
fenomenologia faz isso que a cincia faz? Como ela poderia fazer
cincia, tal como esta e compreendida, com caso nico? A chamada
teoria cientifica, tal como descrita acima, no ponto de partida nem
de chegada da fenomenologia. A pesquisa fenomenolgica precisa
buscar a sua especificidade.
E com paciente em nossa sala, o fenmeno que buscamos
compreender e explicitar, para ele principalmente, a existncia dele.
Se estivssemos ancorados em uma teoria, talvez isso facilitasse nosso
trabalho. Como no estamos, somos solicitados a ter para cada um
deles um olhar especial, nico, atento ao sentido daquela vida; mas
esse olhar ser to mais profundo e apropriado quanta mais tivermos
nos aprofundado na compreenso do que caracteriza a existncia
humana.
Essa compreenso fundamentada em tudo aquilo que, de alguma
forma, nos conta o que o ser humano, ou seja: a literatura, a histria,
a religio, a mitologia, a arte em geral, as informaes cientficas, as
informaes

37
53
da psicologia e, especialmente, uma filosofia que tenha como
preocupao especfica urna compreenso da existncia; em nosso
caso, contamos com o pensamento da Daseinsanalyse.

Se o que voc faz no puder ser chamado de cincia, de acordo


com o que a palavra cincia significa hoje, isso torna menor ou menos
valioso o que voc faz? Por qu? Voc acredita que a cincia o nico
caminho? Voc faz fenomenologia, e esse , simplesmente, um outro
caminho.

Algum diria: que situao! No temos uma teoria cientfica, no


temos urna tcnica definida e padronizada. Ento, o que isso que
fazemos? A resposta , novamente, a mesma: uma fenomenologia da
existncia, e isso teraputico.
Fenomenologia no urna teoria. um modo de se aproximar de
um fenmeno, que se caracteriza, principalmente, por deixar que ele se
mostre tal como se apresenta o mais possvel sem a interferncia das
teorias j existentes sobre ele. Mas o fenmeno s se mostra quando
algum olha para ele, aproxima-se dele na procura de
compreend-lo e explicita-o na linguagem. Na terapia, o
fenmeno em questo a existncia do paciente. isso o
que se revela no decorrer das sesses. Mas por que isso
seria teraputico?
54
Terapia vem da palavra grega therapeia-as, de therapeein, e tem os
significados de: servir, honrar, assistir, cuidar, tratar. O cuidado com
alguma coisa, por exemplo, uma planta, supe que ela deva ser
plantada no solo adequado, tenha a luminosidade de que precisa, receba
gua, etc. Supe tambm precisar interferir, s vezes, naquilo que esta

38
prejudicando o seu desenvolvimento: a terra que se tona pobre, as
pragas que atacam o tronco que se entorta. Essa interferncia significa
cuidado, e podemos dizer que tal cuidado teraputico para a planta.
Mas cuidamos a fim de que? Cuidamos dela para que se torne o melhor
possvel, a planta que est destinada a ser: para que ela d as peras mais
gostosas ou as margaridas mais bonitas.
Ou, ento, quando se trata de uma criana, algum procura dar a ela
todas as condies para uma boa sade ou para que cresa bem. Isso
no garante, entretanto, que ela no venha a sofrer de alguma doena,
que no esteja sujeita a algum acidente. Se isso acontecer, ento, vai ser
preciso interferir; trataremos dela com exerccios especiais, remdios,
cirurgia, com tudo enfim que conhecido como capaz de devolv-la ao
seu rumo de desenvolvimento na direo da plenitude que sonhamos
para ela. Esses sero cuidados teraputicos.
Num exemplo mais delimitado: algum pode ter sua mo impedida
de desempenhar suas funes mais
55
essenciais por causa de doenas, de traumatismos. Um cuidado
teraputico tentar fazer com que aquela mo se reaproxime de novo
daquilo que ela, na condio de mo, deve ser. Trata-se de devolver a
ela, o melhor que pudermos aquilo que prprio da mo ou, dito de
outro modo, trata-se de devolver a mo ao que ela destinada.
Entao, qualquer cuidado teraputico tem a ver com o devolver,
recuperar ou resgatar para aquilo que cuidado algo que diz respeito a
ele e que por algum motivo foi perdido ou prejudicado; isso quer dizer:
favorecer que aquilo de que se cuida retome mais plenamente aquilo
que se espera dele, ao que prprio dele.
Visto que aquilo de que se cuida na terapia o fenmeno
existncia, e permitir que esse fenmeno se revele,

39
compreend-lo, explicitar essa compreenso numa
linguagem fazer sua fenomenologia, ser que fazer isso um

cuidado teraputico?
teraputico porque fazer essa fenomenologia desoculta os sonhos,
as perdas, os ganhos, o sentido ou a falta de sentido da vida. E o falar
disso tudo acaba por constituir a abertura que possibilita ao paciente
compreender que dele a responsabilidade por sua existncia e que
existir dedicar-se ao "cuidado". (Considerado ontologicamente, o
cuidado" um carter essencial do Dasein, mas sua realizao ntica
exatamente o difcil do existir.
56
O ser humano vive o cuidado, na maior parte do tempo, em seus modos
privativos, ou seja: descuidando - na negligncia -; cuidando pouco;
cuidando muito de muitas coisas, mas se desviando daquilo que seria o
essencial para o sentido de sua vida; destruindo o que encontra em seu
caminho.) Ao falar de sua existncia, o paciente pode perceber como
tem sido, em seu cotidiano, o seu "cuidar" de si, dos outros, das coisas.
Quando tudo isso compreendido na terapia, aquele modo de ser
cuidadoso, que realiza plenamente uma existncia, pode ser devolvido
pessoa ou mesmo inaugurado por ela. Ou, dito de outro modo, aquela
existncia particular pode se aproximar mais daquilo que essencial a
ela, daquilo a que ela destinada, o "cuidado". Terapia tambm isto:
momento de cuidado pela existncia do paciente, cuidado esse que
consiste em devolver a ele, o paciente, a obrigao do cuidado.

Entre os que desconhecem o que fenomenologia, h os que a


consideram, como a palavra poderia sugerir primeira vista, um modo
de pensar que fica "s" nos fenmenos, e isso significaria ficar na
superficialidade de tudo. Esses acham que, como o fenmeno, segundo

40
eles, mera aparncia, quem faz fenomenologia est sempre muito
longe de conhecer qualquer coisa que, esta sim, mais no fundo, seria a
verdade.

57
No que diz respeito ao que e fenmeno e ao que conhecer,
estamos diante de questes que so da filosofia, da epistemologia.
Quem trabalha com fenomenologia precisa estudar muito para saber o
que est fazendo.
Ao pensar nessa histria de ficar "s" no fenmeno, tendo em vista
aquela fenomenologia da existncia que acontece na sala de terapia,
isso me faz lembrar uma outra coisa, dos versos de Fernando Pessoa
em "O Guardador de rebanhos": a ele diz que, diferentemente do Tejo,
que faz pensar em lugares distantes, "o rio da minha aldeia no faz
pensar em nada. Quem esta ao p dele, est s ao p dele". 3 paciente
na minha sala como o rio da minha aldeia: quando estou com ele,
"s" estou com ele. No somos eu, ele e a minha teoria; eu, ele e
minhas preferncias pessoais; eu, ele e uma tcnica. S "permanecer"
junto a ele j e suficientemente pleno em termos de possibilidades de
compreender o que o mais importante dele, de aprofundar o prprio
olhar em direo ao que mais propriamente ele.
A superfcie de um rio a primeira coisa que aparece. Voc diria
que ela mera aparncia? No, ela verdadeiramente a superfcie
daquele rio, e esta l para ser vista: provavelmente, ela reflete o cu, as
arvores que
_____________________________

3. Pessoa, F. Obra potica. Rio de Janeiro, Companhia Jose Aguilar,

1969.

41
58
esto ao redor; se houver peixes, alguns subiro tona; se tiver
chovido muito, a gua se tornara turva, se houver poluio, a gua ser
suja; pode ser at que por ali passe um barco. A superfcie do rio no
menos rio, e ela no sempre igual, pois o rio corre.
Ha terapeutas que ficam sempre to preocupados em descobrir
alguma coisa que deve estar no fundo, sempre por trs do que est
sendo dito, do evidente, que desqualificam tudo o que est diante dele.
Interessante que h pacientes que acabam por se acostumar com esse
estilo, e acreditam no poder do terapeuta de descobrir coisas que s
ele, o terapeuta, sabe, no importa se aquilo faz ou no sentido para
eles, os pacientes.
De um rio, assim como de todos os objetos que ocupam um lugar
no espao fsico e tem comprimento, largura e altura, fcil dizer o que
profundidade e o que superfcie. Mas do fenmeno existncia, cujo
ser espacial significa algo de natureza completamente diferente, j no
to simples dizer o que dela superficial e o que, no seu caso,
significa profundo.
Temos a tendncia de achar que aquilo que a pessoa "de verdade"
o profundo, e fica "no fundo", escondido at dela mesma. O que
aparece, como a palavra pode sugerir, seria s aparncia.
Mas para quem faz uma fenomenologia da existncia, nada da
existncia mera aparncia. Ao mostrar-se,
59
ela o faz como tudo aquilo que se mostra, que se apresenta: sempre
ocultando e sempre desocultando algo. E h sempre alguma verdade no
que se desoculta. Algum poderia perguntar: e como se conhece a
verdade toda? Mas ser que algum pode conhecer a verdade toda so-

42
bre alguma coisa?
Com relao ao paciente, talvez mais superficial ou mais profundo
seja o olhar do terapeuta, seu modo de compreender. Uma
compreenso no mais profunda porque perfura mais "camadas", mas
porque abarca melhor o que se manifesta, que nunca um item isolado,
mas sempre algo que deve fazer sentido dentro da rede de
significados que o mundo daquele paciente.

Para motivar esta conversa, tnhamos imaginado aquele paciente


que descrevia para o terapeuta o seu modo de ser com as outras
pessoas. Isso exemplifica apenas urna das inmeras maneiras de
desconsiderao pelo outro. A desconsiderao pode existir nas
relaes amorosas, familiares, de amizade, ostensivamente ou no.
Mas o terapeuta se depara tambm com o tipo oposto: aquela
pessoa cuja existncia parece ser o banquinho onde o outro sobe para
alcanar algo ou o piso sobre o qual o outro anda; ora ela um
utenslio, ora um brinquedo, ora uma jia, mas sempre ao sabor dos
interesses do outro, e acaba por j no saber bem quem
60
Ela ; sua existncia se empobrece por falta de um sentido que lhe seja
prprio.
Essa forma de ser no se confunde com aquela da pessoa solcita,
solidaria, atenta s necessidades do outro, o que pode implicar mesmo
algum sacrifcio pelo outro; nesse caso, a pessoa sabe que seu ser
solcito diz respeito a ela, d sentido a sua vida. Quando esse modo de
ser trazido para a sesso, podemos perceber que ele surge numa
afinao que indica que tal pessoa est em paz com o que faz.
Ao contrrio, aquele se deixar usar, que caracteriza a pessoa que
assim porque no consegue ser de outro jeito, surge misturado com um

43
sentimento em que transparece um qu amargo, mesmo quando
disfarado por uma aceitao.
O terapeuta compreende o sentimento da pessoa e teria vontade
de que ela percebesse logo o que acontece e mudasse sua forma de
ser. Mas a vida do paciente diz respeito primeiramente a ele mesmo,
e ele quem primeiro conhece seus limites, quem sabe se quer ou no
fazer mudanas em sua vida, e, no caso de querer, saber a hora de
faz-las. O terapeuta deve se lembrar de que aquele jeito de ser do seu
paciente est vinculado a outros significados da sua vida: por exemplo,
aquele pode ser para ele, que conhece bem a pessoa com quem con-
vive, o nico meio que encontra para garantir algo
61
importante na sua vida; pode significar o quanto ele se percebe
limitado; pode representar a necessidade de aceitao de um destino
previamente traado, etc. Entao, no simples para algum alterar
algo j instalado em sua vida; as possibilidades de mudana podem
parecer muito assustadoras.
H pacientes que querem e precisam se queixar da vida que levam,
durante muito tempo, e no vislumbram nenhuma possibilidade de
mudana. O terapeuta poderia se perguntar: "Mas, ento, por que ele
no pra de se queixar?". Talvez porque ele precise daquele espao
para isso, precise de algum que possibilite que ele fale e escute a si
mesmo descrevendo a prpria vida, e assim possa, aos poucos,
acreditar que a vida dele e mesmo aquilo que ele descreve, ou seja, no
o que ele deseja para si. Pequenos toques do terapeuta podem ajud-
lo, ao menos, a perceber que ele tem uma questo a ser pensada, uma
questo a ser cuidada: a sua vida.

So muitos os motivos pelos quais as pessoas sofrem: umas,

44
porque so abandonadas, outras, porque precisam abandonar algum;
umas, porque no tm opes de escolha, outras, porque no
conseguem se decidir entre tantas opes; algumas trazem uma
histria diante da qual pensamos: "Mas como ela agentou isso?".
Diante de outras, demoramos a perceber por que esto to infelizes -
mas elas esto realmente infelizes.

62
Alguns reconhecem que, vista de fora, a vida deles parece muito
boa, at privilegiada, quando comparada com os sofrimentos de certas
pessoas; mas saber disso no impede que eles estejam muito infelizes.
Sabem que esto deprimidos, que esto entediados, que no esto se
agentando. O sofrimento no d para ser medido e pode quase nem
ser notado por algum mais distrado.
Uma arvore pode cair despedaada por um raio ou esmagada por
urna grande pedra, e todo mundo v. Uma outra, a gente quase nem
percebe, mas ela vai perdendo o vio e, l um dia, est seca. Foi
prejudicada por parasitas ou por pragas que se instalaram nela.
Acontece isso tambm com algumas plantas que comeam a murchar
em seus vasos. So atacadas por pulges, por cochonilhas, que lhes
roubam o vigor. s vezes, demoramos a perceber o que est
acontecendo; e como difcil, depois, livrar a planta dessas pragas
quase invisveis!
Com as pessoas tambm se passa algo assim. Podem ser invadidas
por certos sentimentos, certas vivncias de mgoa, de desamor, de
desencanto, que parecem insignificantes, mas, como as plantas, elas
tambm murcham; mais outra forma de urna existncia
empobrecida.

Voc pode ter em sua sala algum que est assim, quem sabe

45
tambm perdendo o vigor da vida. uma moa

63

que dispara a falar, como se estivesse passando em revista a sua


vida e, j no fim da sesso, diz, entre outras coisas: "Mas est tudo
certo, tudo no lugar, tenho tudo, mas sabe como , fica sempre uma
coisa que eu no sei bem o que , mas no me falta nada; claro que
tenho uns probleminhas com as crianas, voc sabe o que criana,
mas isso todo mundo tem, no ? s no tendo filho, mas a tambm a
vida ia ficar sem graa; nossa, no sei o que seria de mim sem eles; as
vezes eu falo isso pro meu marido; ele diz que eu sou exagerada;
homem meio desligado chegado a romantismos, diz que isso
bobagem; o que interessa que tudo o que ele faz pra gente, e
verdade mesmo, ele no deixa faltar nada em casa, no posso reclamar,
tenho at medo de ser injusta, nem sei por que estou falando disso;
mas, sabe, ele diferente de um outro cara que eu namorei quando eu
era mais menina, ah ... , muito diferente; j sei, acho que estou
falando disso porque eu sonhei com esse cara ontem, cada sonho bobo
que a gente tem, mas isso coisa do passado; minha me diz que guas
passadas no movem moinhos, o que interessa o dia de hoje; e, alis,
por falar em hoje, no sei o que vou mandar minha empregada fazer
pro jantar; elas nunca sabem, todo dia isso; eu no devia

64
nem reclamar, tem gente que nem tem o que comer e eu aqui
reclamando; vida de dona de casa essa; tambm, quem mandou eu
largar o meu trabalho de professora de ingls quando eu casei, eu
gostava, mas at que foi bom largar, eu no ganhava grande coisa
mesmo; tenho uma amiga que continuou dando aula, trabalha o dia

46
todo, de noite ainda tem que ver a lio de casa do filho dela; tambm
o menino est ficando insuportvel, dando o maior trabalho, tambm,
com a me fora o dia todo; pelo menos os meus esto indo bem na
escola, eu estou ali o dia inteiro, presente, sou o tipo da me presente,
essa culpa eu no tenho; criana, se a gente larga, voc no sabe o que
vai ser, ainda mais nos dias de hoje; diferente de quando eu era
menina, minha me era legal, mas no dava moleza; cheguei a apanhar
urna vez do meu pai, eu nem merecia daquela vez, mas eu era meio
maluquinha mesmo, at que pelo menos eu aproveitei meus bons
tempos; sabe que uma vez eu at ganhei um concurso de dana no
colgio? Eu adorava danar, era bem diferente de hoje, at que eu criei
juzo, agora tratar de esperar que as crianas cresam mais, quem sabe
meu marido resolve viajar comigo um pouco pra qualquer lugar a; o
problema vai ser ter com quem deixar os meninos; bom, mas at l se
resolve, no ha nada que no se resolva no ? S pra morte que no
tem remdio, o resto a gente vai levando, mas, sabe, tem hora que no
sei o que me
65
d, parece que eu no agento, eu perco a pacincia com os meninos,
depois fico com d, eles no tm culpa, mas que eu fico estressada,
no sei por que; mas deixa isso pra l; nossa, falei muito hoje, acho que
j deu o nosso tempo".
E agora? Voc ouviu tudo? Ouviu nas entrelinhas? difcil, no ? 0
que foi feito daquela menina que adorava danar?

Nada. Ou melhor, dela, alguma coisa foi feita, sim essa mulher que
est murchando, tomando-se amarga -, e no demora o dia em que
algum vai dizer a ela:
"No t dando pra agentar essa tua depresso; para de ser chata!".

47
Imaginei essa moa falando daquele jeito, em disparada, sem poder
se deter nas suas mgoas. Por que ser que ela fala assim? Em trs
minutos ela passa por alto sobre seus dissabores, pequenos dissabores,
diria algum. Ningum morreu ningum est doente, filhos perfeitos,
marido bom, no falta dinheiro, tem de tudo; ela quer o que? Ser que
ela pensava que ia para sempre continuar aquela vidinha do colgio -
ah, minha filha, a vida nao um salo de baile, no; chega a hora em
que preciso enfrentar a realidade, e a dela, por sinal, muito boa.
Tomara que ela enfrente a realidade mesmo, que ela veja o que esta
sendo feito de sua vida. Tomara que o seu
66
terapeuta, aos poucos, consiga que ela possa integrar na sua vida de
mulher adulta tudo o que havia de vivo naquela menina que gostava de
danar.
Naquela sesso, de relance, ela indica algumas coisas que fogem
daquele "est tudo certo" ou talvez at esteja - tudo em volta est deserto,
tudo certo... como dois e dois so cinco -, tal como na msica do Caetano.
Voc v o esforo que ela faz para se certificar de que no se arrepende
de ter deixado sua profisso? O desencanto com o jeito seco do seu
marido? Uma certa culpa por estar "reclamando de barriga cheia"?
Voc v a impresso triste de que agora tarde e os sonhos ficaram
definitivamente para trs? E h mais coisas ainda. trabalho para muito
tempo de terapia. E ela diz tudo em mais ou menos trs minutos!
Voc j pensou se o terapeuta dessa moa, nao digo em trs
minutos ou em trs meses ou num tempo qualquer predeterminado,
resolve que, para o bem dela, ela precisa mudar de jeito? D para
imaginarmos uma fala mais ou menos assim: "Voc precisa se abrir
com seu marido e cobrar dele mais romantismo no casamento, dizer a
ele que ele precisa se dedicar menos ao trabalho e mais a voc, que ele

48
precisa ajudar com os filhos; faa valer seus direitos. E aquele ex-
namorado, voc nunca mais o viu? Voc j pensou que talvez tenha
escolhido a pessoa errada para marido? Ha tantas escolas de dana
67

por a; por que voce nao volta a danar? Mas um absurdo voc ter
parado de trabalhar porque ganhava pouco naquela poca; acho que
voce deixou o trabalho para fazer a vontade dele, que era ter a mulher
dentro de casa. Voc nao pode ficar assim to grudada nos filhos, isso
vai sufoc-los, vai fazer mal para eles. Uma mulher tem de ter sua vida
prpria. E podem vir tambm os clichs:
"Voc est se deixando anular como pessoa" e "no deixe que invadam
0 seu espao".
Ser que esse terapeuta acredita que ele "sabe" realmente o que
melhor para a paciente? E ser que ele nao v que em cada uma dessas
recomendaes ha uma cobrana para que ela seja capaz de fazer coisas
que, se pudesse, j teria feito? Ser que ele pensa que fcil para a
mulher que deixou de trabalhar fora, de repente, retomar uma vida
profissional? E o que ele pensa de acrescentar para ela ainda mais uma
cu1pa ao dizer que o cuidado dela com os filhos e um mal que ela est
fazendo a eles? O empenho apressado em dizer tudo isso a ela visa ao
que?
Se 0 terapeuta for capaz de pensar na sua paciente como o que
basicamente ela , um "ser-no-mundo", ele vai, antes de tudo,
compreender que cada uma das coisas que ela faz ou deixa de fazer, no
importa se certas ou erradas, tem significados imbricados uns nos
outros, imbricados em outros significados mais amplos; ele vai
68

49
compreender que, mesmo quando uma pessoa sente que o sentido que
sua vida est tomando no aquele que ela pretendia, mudar essa
direo no to fcil como quando algum percebe que tomou o
nibus errado, desce no primeiro ponto e toma outro.
exatamente por no ser fcil essa retomada do sentido que a
pessoa precisa de terapia precisa de tempo para pensar a sua vida, junto
de algum cujo pensamento tenha aquele carter artesanal, aquele
pensamento que dedicado existncia dela e no j pronto para
mulheres modernas em geral.
Nesse pensar que aprofunda significados, a pessoa tem chance de
retomar sua capacidade de sonhar de novo: sonhos novos; velhos
sonhos que podem ser recuperados, compatveis com o que faz parte do
seu mundo agora. E quanta queles sonhos que no cabem mais em sua
vida, talvez seja preciso renunciar a eles. Se ela mudar o seu modo de
existir, nao ter sido por cobranas externas de qualquer natureza, mas
por ter se aberto a descoberta da necessidade, que inerente a sua
prpria existncia, a necessidade de responder ao chamado para a
realizao do que ela sente que um projeto pessoal.
Aquele rapaz, exemplo do tipo de pessoa que no sabe o que
respeito pelo outro, continua a terapia. Ele
69
conseguiu o cargo desejado esta bastante feliz com seu sucesso. O
terapeuta perguntou a ele o que sentiu quando seu colega pediu
demisso, j que sua situao na empresa tinha ficado insuportvel. Ele
disse que se sentiu muito bem quando viu que seu caminho estava
livre. Quando o terapeuta perguntou o que ele sentiria se estivesse no
lugar do outro, ele respondeu: "Essa sua pergunta meio idiota, pois se
eu estivesse no lugar daquele tipo, eu seria ele, eu no seria eu, eu seria
um perdedor, e, nesse caso, eu responderia como um perdedor. Eu,

50
sendo eu, s posso responder do meu lugar de vencedor". Acrescentou
que, na vida, uns perdem, outros ganham, e at na teoria da evoluo a
coisa assim: sobrevivem os mais aptos. Nesse dia, a sesso foi pesada
para o terapeuta.

Ha uma coisa sobre ele, porem, que eu quero contar para voce, s6
como curiosidade. algo que nunca apareceu na terapia dele. Um dia,
reuniram-se vrios ex-alunos de um certo colgio na casa de um deles
para comemorar a volta de uma amiga que havia passado anos
estudando fora. Como costuma acontecer nesses encontros, foi um tal
de querer saber de tudo.
- E a fulaninha casou? E a sicraninha, continua bonita como era?
Como est aquela, como era mesmo o nome, que estudava tudo, a
"cdf" da turma? E o coisinha, o que foi feito dele?
70
Da, algum perguntou quem era esse coisinha. Ento urna das
moas disse:
- Ah, nao se lembra? que voc mudou de escola antes, voc nao
estava mais l quando o apelido dele se espalhou. Era o fulano, aquele
cara que urna vez roubou a bolsa da professora de francs e deixou a
culpa cair naquele garoto da oitava srie, que at foi expulso; aquele
que, depois de ter levado um fora daquela garota que sentava do meu
lado, aquela que tinha cabelos bem pretos, espalhou pela escola toda
que ela era a maior galinha, inventou sobre ela coisas to graves que
algumas mes nao deixavam mais as filhas sarem com ela. Lembra?
Ela chegou at a apanhar do pai
- No sei quem era essa menina.
- Claro que voc se lembra, ela era urna gracinha,
sempre alegre, e, urna vez, numa festa beneficente em que houve um

51
concurso de dana, ela ganhou o primeiro lugar. Lembra agora? Pois ,
ele arrasou a vida da menina. Ela precisou sair do colgio, foi morar
uns tempos com uns tios nos Estados Unidos. Na ltima vez que eu
soube dela, me contaram que ela voltou falando um ingls perfeito e
era professora de ingls.
- Mas por que o apelido do cara?
- que o nosso grupinho se revoltou contra ele,
mas ningum conseguia acabar com o falatrio que ele
71
comeou. Comeamos a cham-lo de o coisa-ruim, no na frente dele,
claro; depois ele passou a ser o coisa, e, no fim, era s o coisinha.
Veja s. Aquele vencedor que voc viu falando na terapia, que
passa por cima dos outros e manda hoje naquela empresa, o coisinha.
Ele nunca soube disso.

Voltando ao assunto da terapia dele, outro dia, ele comentou com o


terapeuta o quanto duro ter de lidar com gente invejosa. So seus
irmos que deram para criar caso, por um motivo bobo. Quando teve
certeza de que aquele cargo seria dele, j comeou a gastar, contando
com o dinheiro a mais que iria ganhar. Mas, como isso demorou uns
trs meses, obviamente ele teve de fazer dvidas. Os irmos esto
achando ruim, dizendo que ele obrigou a me a assinar cheques para
saldar suas dvidas. Mas a quem mais ele poderia recorrer? No vai fa-
zer falta para ela. E, alm de tudo, o dinheiro dos pais dos filhos, e
ele esta precisando agora. Ser que ningum entende isso?
Seu terapeuta tem feito tudo o que possvel para compreender
essa pessoa. Ele e o paciente de quem poderia ser dito: est em boas
mos. Mas o terapeuta sente que a h algumas barreiras
intransponveis.

52
72
Em outro dia ele falou:
- Cara, tenho sado com uma gata, coisa fina; no do meu nvel
social, alias, est bem longe disso, mas bem produzida, de causar
inveja quando saio com ela; corpo perfeito, e o rosto, ento, difcil
um mais bonito; mas no nada srio, mesmo porque, mulher pra mim
s muda a embalagem; so todas iguais, gostam de carres, de bons
restaurantes, presentes caros, e, como amante, eu no deixo nada a
desejar. Enfim, estou me sentindo timo.
Em seguida, pela primeira vez, ele falou de um fato acontecido em
seu tempo de colgio.
- S uma vez, eu quase gostei de uma menina da minha escola; ela
era super gracinha, mas boboquinha como ela s; era aquele tipo que
sonha com casamento, que diz que um dia quer ter filhos, enfim, aquele
tipo que voc deve saber como ; um dia, ela teve a cara-de-pau de me
dizer que, embora me amasse, embora eu fosse todo carinhoso com ela,
achava que eu tinha um jeito estranho de pensar sobre as coisas da
vida, s vezes ela tinha medo de mim, e no ia ser legal a gente
continuar; e terminou o namoro naquele dia mesmo, a tontinha; nao era
preciso ela se apressar, pois eu ia mesmo terminar logo.
E, o dilogo continuou.
73
- 0 que voce quer dizer com esse "quase" gostei?
Ser que voc no gostou mesmo dela?
- Voc ta louco? o que eu quis dizer que foi uma fraqueza,
bobagem de moleque; no nego que ela era gostosinha mesmo, mas
imagine s, eu gostando daquela bobinha.
- Por que voc a achava to bobinha? Os sonhos dela incomodavam
voce?

53
- Esse assunto to sem sentido que nem vale a pena ser
comentado. Pra que eu vou querer saber dos sonhos dos outros? Alm
de tudo, isso j ficou l atrs; o que vale hoje, e a gata de hoje
incrvel.

Na sesso seguinte, ele chega com um p enfaixado, curativos no


brao e um arranho na testa, e diz, meio brincando:
- Cara, a gata deu zebra. O que vale que sou um cara de sorte. A
gente estava voltando da praia, e voc sabe que eu corro mesmo, e
ainda mais depois de ter tomado todas e meio chapado; s sei que eu
derrapei e a gente rolou num precipcio. O carro acabou. Eu quebrei o
p e tive uns cortes no brao. Mas ela, voc precisava ver, nem sei
como est viva; O resto, ento, estraalhado, no d nem pra contar.
Socorreram a gente, e, no hospital, eu ouvi quando disseram:
"Coitadinha, essa a no vai haver plstica que recupere". Para o
delegado, eu disse
74
Que era ela quem estava dirigindo. Depois a me dela ainda quis
reclamar; ela nao tem pai. Mas uma boa grana - meu pai raspou do
banco toda a poupana dele e ainda emprestou do meu tio - fez com que
a histria acabasse por a ela acaba consertando um pouco o rosto, e
ainda sobra aquele corpao... , ela vai aprender a se virar muito bem.
- E voc nao sentiu nada quando viu o rosto dela inteiro
desfigurado?
Ele respondeu muito srio:
- Claro, eu sou muito sensvel pra essas coisas, nao agento ver
sangue. Senti nojo.
Nesse dia, o terapeuta se sentiu muito mal e encerrou a sesso um
pouco antes da hora. Desmarcou o ltimo paciente do dia e foi para

54
casa mais cedo. Ao entrar, sua filha disse: "Oi, pai j chegou!". Ele fez
um carinho demorado no rosto dela, e foi nesse momento que teve a
plena certeza de que no atenderia mais aquele paciente.

Mais tarde, sozinho, perguntou a si mesmo: "O que eu sinto por ele?
E a resposta foi: raiva, muita raiva. Lembrou-se de suas aulas de
psicopatologia, quando lhe falaram do psicopata, algum que no
capaz de sentir culpa. Seus pensamentos dispararam em todas as
direes: aquilo no gente, nao humano, aquilo uma coisa.

75
Ele pensava: "Mas, como seu terapeuta, posso ter essa raiva toda
dele? Ser que eu no deveria encarar tudo isso como a doena dele? E
ser que a falha no foi minha? Ser que nao fui firme o suficiente para
faz-lo compreender que seus atos eram imorais? Ser que eu tambm
sou responsvel pela deformao do rosto daquela garota? Mas tenho
certeza de que tudo que eu sabia e que podia fazer eu fiz. Procurei
compreender com ele o significado de seus atos, de seus projetos de
vida; procurei por muito tempo pensar com ele e mostrar a ele sua
forma de ser com as pessoas, o uso que ele faz das pessoas. Sempre
ouvi com pacincia e aproveitei todas as oportunidades de dizer a ele o
que me parecia apropriado dizer. O que faltou fazer? Com todos os
outro pacientes que atendo eu consigo me comunicar; somos sempre ali
duas pessoas conversando, eles sabem do que estou falando cada vez,
eles conhecem o sentido do que falado. Algumas vezes eles dizem:
nao concordo com o que voce fala, eu penso diferente; mas sinto que
estamos falando da mesma coisa. Com ele foi sempre diferente. Ao
poucos comecei a perceber que ele nao fazia a mnima idia do
significado do que eu falava, no por falta de conhecer as palavras; at

55
que o vocabulrio dele dos melhores, ele e superinteligente. Mas ele
estava sempre de um outro lado de uma grande brecha entre ns, e eu
nao tinha como nem sequer jogar uma corda
76

que enroscasse do outro lado e que me permitisse, por meio dela,


chegar at ele; do outro lado no havia nada que pudesse sustentar a
corda que eu jogava, e ela tambm caa num vazio, num buraco
enorme. Falta nele uma coisa que no sei o que . Mas falta. Curioso,
aquela menina que ele namorou no tempo do colgio, sobre quem ele
comentou numa das ltimas vezes que veio, parece que intuiu alguma
coisa; ela percebeu algo nele que era diferente, e caiu fora. como se
ele fosse incapaz de saber o que significa pessoa; ele no sabe que os
outros existem que tm projetos de vida. J no entendo mais nada. Se
ele incapaz dessas coisas, se isso falta a ele, onde est a sua culpa?
Mas se culpa essencialmente falta, ser que a vida dele no
exatamente o prottipo da culpa? Binswanger tem aquele livro,
chamado Trs formas da existncia malograda. Ser que a dele nao uma
outra forma de existncia malograda? Aquela existncia culpada, e nao
naquele sentido heideggeriano da culpa existencial, enquanto o ser
sempre devedor, o sentir-se devedor porque sempre falta o que realizar.
Mas aquela existncia culpada, sim, porque s espalha sofrimento ao
redor, que torna o mundo um lugar injusto, triste. Uma existncia
culpada que no sabe o que culpa, que jamais vai se sentir devedora.
J estou confuso, no sei mais o que penso, o que sinto com relao a
ele. A minha raiva se misturou com o sentimento de uma profunda
77
lstima pelo ser humano, que capaz de fazer tanto mal; porque esse
cara gente, ele humano, isso tambm prprio do humano; mas

56
como eu queria que nao fosse assim! S sei que no tenho mais
condio de tratar dele; talvez outra pessoa consiga. Amanh cedo, ligo
pra meu ex-terapeuta e vou voltar pra terapia".
E ele foi dormir se lembrando de um artigo que tinha lido, de um
seu ex-professor, em que o terapeuta era comparado a uma lente de
aumento que amplia para o paciente o que este ainda no consegue
enxergar sozinho, e que seria bom que ele enxergasse. Ele disse, ento,
para si mesmo: "Eu no consegui; que lente embaada devo ser!". que
ele, nesse momento, nao estava em condio de pensar que, por melhor
que seja a capacidade de ampliar de uma lente, a possibilidade de ver
tem de ser da pessoa.

E aquela moa que falava sem tomar flego, lembra-se dela? Ela
continua a sua terapia h alguns meses. Sua terapeuta, felizmente, no
daquele jeito que eu tinha imaginado, toda aflita e cobrando mudanas
da paciente.
Um dia ela chegou e contou um sonho:
- Eu andava por umas ruas, todas elas asfaltadas, absolutamente
planas. Nao havia caladas dos lados. Era tudo s rua mesmo. Os
carros e as pessoas se misturavam. As pessoas todas tinham capas de
chuva cor de cinza.
78
Eu nao tinha capa. No estava chovendo, mas o cho era escorregadio.
Uma rua sempre acabava em outra, do mesmo jeito, e ia tudo se repetindo.
A terapeuta notou a presena da cor cinza, a presena do asfalto e a
nfase com que ela se referiu ao absolutamente plano das ruas. E
comearam um dilogo.
- Voc gosta de cinza?
- No desgosto, at acho o cinza uma cor que combina com muita

57
coisa. Uma cala cinza, por exemplo, voc usa com urna poro de
blusas. Vai com tudo, porque uma cor neutra. Mas uma cor
apagada; eu no colocaria, numa festa dos meus filhos, bolas e
outros enfeites cor de cinza.
- E o asfalto tambm, em geral, tende para o cinza, no ? E por que
ser que no sonho est destacado o fato do asfalto nas ruas? Pois,
geralmente, as ruas so mesmo asfaltadas.
- No sei. Mas me chamava a ateno o asfalto da rua, meio
escorregadio, acho que tinha chovido.
- E fora do sonho, na vida acordada, o asfalto chama sua ateno
por algum motivo?
- Acho timo quando o asfalto da estrada ou da rua est legal, sem
buracos. Mas adoro tambm quando a gente vai pra algum stio e a
estradinha de terra, contanto, lgico, que esteja bem conservada.
Mas, sabe, aquela estradinha que fica colorida pelo verde do mato e
pela
79
Cor de algumas plantinhas que nascem espalhadas, isso eu acho muito
mais bonito. Perto do stio da minha cunhada assim. Quando chove,
fica um cheiro de terra molhada, uma delcia. Agora, o asfalto uma
coisa rida.
- O asfalto das ruas do seu sonho, molhado de chuva, no tinha
cheiro de terra molhada, nem florzinha por perto. Parece que l no h
nada que lembre vida. Predomina no seu sonho a aridez, a neutralidade
do cinza. E o que voc acha do absolutamente plano das ruas?
- claro que gosto de ruas planas.
- E o que mais o plano significa para voce? Como
so as superfcies planas em geral?
- As coisas deslizam mais facilmente no plano. Mas tem tambm

58
outra coisa. Quando voc sabe que uma estrada, por exemplo, no
plana, voc pode ter surpresas, e at preciso ter mais cuidado na
direo. J, no plano, parece que no vai haver surpresa, e isso bom,
mas tambm fica montono. Me vem agora a lembrana da montanha-
russa: s susto e emoo o tempo todo. Sabe que eu gostava muito
desses brinquedos dos parques de diverses?
- Voc repara que em seu sonho esto presentes essas coisas que
lembram a aridez, a neutralidade, a monotonia, a falta de emoo?
Voce diria que a sua vida, atualmente, tem sido mais ou menos assim
como o seu sonho? Voc j notou que, s vezes, na sua forma de falar
80
aqui, voc vai dizendo tudo num mesmo tom, meio que neutralizando
tudo, nivelando tudo? como se o fato de o seu menino ter esquecido a
lancheira na escola, como voc contou outro dia, ficasse no mesmo
plano da mgoa sentida quando seu marido esqueceu que tinha
combinado com voc que iriam sair naquela noite e voc ficou
esperando toda arrumada. Lembra-se disso? Voc contou as duas coisas
manifestando a mesma emoo. Ser que tudo a mesma coisa
mesmo? Ser que a sua vida esta to sem cor?
- Acho que a cor da minha vida atualmente e cinza. Elas comentaram
ainda sobre a ausncia de caladas, sobre as pessoas expostas ao perigo
andando no meio dos carros, sobre o cho escorregadio; falaram do
fato de ela nao ter uma capa que a protegesse de chuva e de como tais
coisas sugeriam um sentimento de desproteo. A paciente ainda fez
alguns comentrios e acrescentou que parecia mesmo que a sua vida
estava estampada no sonho. Ela gostou de saber que o sonho fazia
algum sentido.

Aos poucos, ela comeou a estar mais relaxada nas sesses e, uma

59
vez, comentou:
- Sabe, aqui um lugar onde sinto que sou ouvida, onde ningum
me julga ou me pede pra prestar contas
81

da minha vida, e isso me acalma; parece que algumas vezes consigo


sair daqui e levar essa calma para o mundo lei de fora, se bem que no
dura muito; o mundo muito duro e, curioso, as pessoas que mais a
gente ama so as que mais fazem a gente sofrer; antes eu no parava
pra pensar nessa coisa de sofrimento, punha o sofrimento de lado, de
medo de me afundar nele. Eu sempre tive uma atitude muito positiva
diante da vida; mas, aqui, vejo que posso olhar pra minha vida e
admitir que j sofri muito, que ainda sofro, sim; posso dizer essas
coisas pra voc porque sei que voc no acha, e no acha, de verdade
mesmo, que tudo exagero meu; agora vejo que falar dessas coisas me
faz bem.
E, quase no fim da sesso, ela acrescentou:
- Voc no acha que at tenho falado mais devagar?
- Tenho notado isso, voc no precisa mais falar
atropelando as idias, como para se ver logo livre delas, como para no
se deter no que incomoda voc.
- isso sim, mas tem mais uma coisa: aqui eu fico mais tranqila
pra falar porque, parece at mentira o que vou dizer, tenho a impresso
de que, pela primeira vez na vida, algum ouve realmente o que eu
falo.
- Eu escuto o que voc fala, porque me interesso em compreender
as coisas que dizem respeito a voc.
82

60
Num outro dia, ela disse a terapeuta:
- Eu tinha um pouco de medo de falar pra voc o quanto fico em cima
dos meus filhos, de falar da preocupao excessiva que tenho com eles, e
sabe por que? E que eu sei que os psiclogos dizem que errado super-
proteger as crianas, que faz mal pra elas, e que, s vezes, a me at faz
isso porque, no fundo, ela no ama tanto o filho, e ento exagera na
demonstrao de cuidados pra no ficar com a conscincia pesada; me
neurtica que faz isso; mas hoje resolvi falar, e juro pra voc que eu amo
demais os meus filhos, tenho certeza de que eles so o que tenho de melhor
na minha vida; gostaria de desgrudar um pouco deles, sei que seria bom,
mas no consigo.
- Mas por que voc precisa jurar para mim que ama seus filhos? Voc
mesma quem mais sabe o que sente; que razo eu teria para duvidar de
voc? Voc disse que tinha medo de falar sobre isso comigo, mas parece
que no est mais com medo, no ? E agora me diga ento: voc acha
mesmo que exagera nesse cuidado com os filhos?
- Acho que sim.
- Entao, deve mesmo estar havendo um excesso de
preocupao, mas voc exagera numa coisa que, em si mesma, boa e
necessria; filhos precisam ser cuidados, e voc uma me que leva isso a
srio, s que talvez leve a srio demais; mas me diga, voc sempre gostou
de criana?
83
- Sempre, desde que me conheo por gente, meu maior sonho
sempre foi ser me, ter filhos.
- Voc tem alguma idia do porque desse seu exagero no tomar
conta das crianas?
- porque s isso que preenche a minha vida. Os momentos em

61
que estou com eles, cuidando ou dando bronca quando preciso, so os
momentos em que mais sinto que estou viva; o resto to sem graa,
tudo como um deserto.
- Um deserto um lugar seco, onde no brota nada, no cresce
nada, e se sua vida como um, deserto, ela assim desse jeito? E ela
foi sempre assim? Foi sempre essa coisa rida e triste?
A moa ficou muito quieta por um tempo, quase chorou. J estava
na hora de terminar a sesso, mas a terapeuta esperou um pouquinho
mais, at ela estar mais calma, e encerrou.

Quando voltou na outra vez, logo no comeo ela contou que esteve
muito triste. Tinha pensado no quanto ela era diferente na adolescncia.
E disse ento:
- No outro dia, a gente falou em tristeza, em deserto; mas a minha
vida no era assim; voc j viu um ip completamente florido, aquele
amarelo vistoso que chama a ateno? Pois eu era assim, era pura
exuberncia; eu ria de tudo, gostava de festas, de roupas da moda,
84
tudo diferente do que sou agora. Mas hoje vou contar pra voc uma
coisa que eu j tinha enterrado, nem queria mais pensar nisso, porque
foi muito doloroso, porque ainda muito doloroso; nunca mais falei
disso com ningum; mas quero dividir isto com voc, porque sei que a
minha mudana comeou ali; foi ali que comecei a murchar. Eu me
encantei por um menino do colgio, ele era lindo, e fiquei toda feliz
quando ele se interessou por mim, porque todas as meninas eram
loucas por ele; e comecei a gostar mesmo dele; a gente comeou a
namorar, sabe, aquela histria de primeiro amor, paixo pura, e isso
durou um ms ou dois, at que comecei a achar que ele tinha umas
coisas estranhas, no admitia ser contrariado em nada que queria, no

62
queria saber o que eu pensava, achava que eu tinha que fazer tudo e s
0oque ele queria; comecei a no gostar desse jeito dele, e um dia
pensei: preciso acabar com isto, no isto que eu quero pra mim. Hoje
ate me admiro de como, sendo to nova, consegui pensar isso, e pus
um ponto final na historia. Mas paguei muito caro. Logo em seguida,
parecia que um trator tinha passado por cima de mim; ele acabou
comigo, inventou horrores. Disse que eu era uma vagabundinha, que
eu saa com todo mundo, e o pior: que alguns conhecidos dele que no
eram do colgio tenho at vergonha de contar -, ate pagavam pra estar
comigo. Inventou que eu usava droga. No fim, eu no
85
tinha mais cara pra entrar na escola, no conseguia encarar os
professores. As meninas mais minhas amigas e mesmo alguns dos
meninos ficaram do meu lado, porque me conheciam bem e no
acreditaram nele; mas isso no impediu que a minha fama corresse, ate
que chegou aos ouvidos do meu pai. Um dia, quando entrei em casa,
meu pai estava me esperando com um chicote, nem sei onde ele
arrumou aquilo, e eu comecei a apanhar. Eu dizia: 'Pai, tudo mentira,
eu no sou isso que esto falando, escute, pai, eu juro que no sou nada
disso, acredite em mim'. Ele dizia que eu no prestava, que eu era uma
puta, que no era mais filha dele. Minha me pedia pra ele no fazer
aquilo, ela queria me proteger, mas ela no tinha fora. Se meu irmo
no tivesse chegado, ele teria me matado. Minha me me ps depois
numa banheira com gua quente e bastante sal, mas no havia o que
aliviasse a dor. Durante muito tempo precisei usar s cal<;as compridas
e blusas bem fechadas pra que as marcas roxas em minha pele no
aparecessem. Eu disse pra mim mesma que nunca iria perdoar meu pai.
O assunto se espalhou entre os parentes e os amigos de meus pais. Sai
do colgio. Eu sobrevivi, mas nunca mais fui a mesma. Aquele carinha

63
acabou com os meus sonhos.
Quando terminou esse relato, tanto ela como a terapeuta ficaram
em silncio, e, depois, ela chorou par muito tempo. Quando acabou o
horrio, ela falou:
86

- Sabe que eu tinha prometido pra mim, desde aquele dia, que nunca
mais iria chorar por isso? Faltei a minha promessa, mas foi um alvio.

Ha uma coisa, entretanto, que aquela menina nem ficou sabendo,


mas eu vou contar para voc. Os pais da sua melhor amiga souberam da
surra, pois a amiga foi v-la quando ela comeou a faltar s aulas.
O pai da amiga achou aquilo um absurdo e resolveu ir conversar
com o pai dela. Logo ao entrar, ele j foi dizendo:
- Olhe fulano, sei que isto no da minha conta, coisa da sua
famlia; conheo voc desde a faculdade, fui seu aluno, somos amigos,
mas acho que voc enlouqueceu. Como voc fez uma coisa dessas com
sua filha? Conheo a sua menina desde que ela estava na escola
maternal com meus filhos; ela sempre conversou comigo, com minha
mulher. E voc no conhece a filha que ter? Por que no conversou com
ela primeiro? Voc devia dar graas a Deus por ela ter se livrado
daquele "mau-carter que ela estava namorando; aquele tipo no presta,
eu sei disso, porque meu filho me conta; ele inventou essas coisas de
vingana, porque a iniciativa foi dela de terminar o namoro.
De um ponto em diante, ele parou de falar. O pai da menina
chorava como dificilmente homem chora e apenas disse:
87
- Logo em seguida eu ca em mim, mas j estava feito, no tinha
como voltar atrs; o que eu fiz no tem perdo.

64
Esse pai carrega at hoje essa culpa, e nunca procurou ningum
para falar sobre isso. A vida dele tambm murchou.

Quando voltou, na outra vez, a paciente falou que tinha estado


pssima. Disse que pensava que j tivesse esquecido tudo aquilo, mas
no, estava tudo ainda muito vivo.
E a terapeuta comentou:
- Num outro dia era um deserto que havia ao seu redor; hoje di,
mas h coisas vivas.
- H coisas vivas, mas como doem! Sabe aquelas florestas mal-
assombradas, que aparecem nos desenhos infantis? Pois parece que
isso que h ao meu redor agora: aqueles galhos retorcidos, o perigo
espalhado em todo canto; sinto muito medo agora; parece que antes de
tocar nesse assunto eu estava mais forte; agora estou muito sensvel,
assustada com a maldade das pessoas; o mundo muito injusto. Nunca
tinha parado pra pensar direito no porque daquela atitude do meu
namorado. Por que ele me odiou tanto? o que significou aquilo? o que
eu signifiquei pra ele? E por que quase todo mundo acreditou naquilo?
Ser que o fato de eu ser to expansiva, de
88
usar minhas minissaias, de rir muito, de paquerar os garotos, ser que
isso era errado e eu no sabia? Ser que foi por isso que acreditaram
nas mentiras dele? verdade que alguns ficaram do meu lado e me
diziam pra no ligar pra aquele coisa-ruim, eles sabiam que era
mentira; mas no adiantava, a minha fama corria; algumas mes no
deixavam mais as filhas sarem comigo. Depois de um tempo, fui
mudando meu jeito de me vestir, meu jeito de rir, alis, eu no via mais
motivo pra rir. Precisei sair do colgio. Mas, voltando ao que eu dizia
sobre o que sinto hoje aqui com voc, na verdade, sinto o quanto a

65
gente indefesa diante das coisas; a vida vai seguindo um rumo e, de
repente, entorta tudo; como eu ia imaginar que aquele menino, to
carinhoso, de urna hora pra outra fizesse o que fez? E o meu pai, ento?
A vida e muito injusta. Engraado, disse h pouco pra voc que talvez
houvesse algo errado no meu jeito, mas agora estou pensando outra
coisa: no havia nada errado comigo; acho agora que as meninas
tinham inveja de mim, eu era bonita mesmo, no havia uma que no
invejasse meus cabelos sempre soltos, com muito brilho, porque eu
tratava bem deles, bem pretos; eu me divertia com tudo e acho que elas
no perdoavam a minha alegria. Hoje, aqui com voc, tenho certeza de
que no merecia o que aconteceu comigo. Olhe, estou mais revoltada
hoje do que quando aconteceu tudo; naquele tempo fiquei
89
parece que atordoada e confusa; hoje meus sentimentos so de revolta e
de medo, porque, de repente, sempre pode acontecer alguma coisa
muito ruim na vida da gente.
E ela continuou por a afora, aprofundando seu olhar em direo
prpria vida. To diferente daquelas primeiras sesses, em que estava
tudo certo. Na hora de sair, ela disse: "Nossa, terapia di".
A terapeuta, nesse dia, ficou a maior parte do tempo em silncio.
No era hora de interferir no curso daquele rio, era s ficar ao p dele.
Durante muitas sesses, ela falou do seu sofrimento, contou
detalhes, e o que passava por ali eram guas tumultuosas, que traziam
muitos detritos; e traziam tambm coisas boiando como lixo, mas que
eram percebidas pela terapeuta como material reciclvel, que no devido
tempo poderiam ser retomadas. Vieram tambm as lembranas boas.
Ela disse que, naquele tempo, era uma sonhadora: planejava viajar
muito e estudava bastante ingls porque achava que iria precisar falar
muito bem quando estivesse viajando pelo mundo; sonhava com seu

66
casamento, queria ter filhos; dizia para as amigas que gostaria de estar
sempre bonita, em forma. Falou muito tambm da sua me, que foi
sempre amiga, e do irmo, muito querido, sempre do seu lado. Enfim,
sua histria foi aparecendo, e era como se ela estivesse sendo apre-
sentada a si mesma, como se ela pudesse se ver e dizer:
"Essa sou eu". Do pai, ela sempre evitou falar.
90
Por algum tempo, as coisas do cotidiano cederam lugar ao que a
paciente chamava de "remexer nas coisas velhas". A sua idia de ter
sofrido uma injustia estava sempre presente. Ela perguntou, certa vez:
- Mas por que justo comigo? Atualmente, o que mais me perturba
querer entender por que isso aconteceu comigo; o que eu fiz pra
merecer isso? No vejo 1gica nisso.
- Ha duas coisas para a gente pensar no que voc diz. Uma delas a
sua necessidade de andar atrs de uma lgica que explique a razo de
tudo. A outra a pergunta pela justia. Voc est trazendo aqui assuntos
que so muito srios e difceis. Isso difcil porque a lgica do mundo
nem sempre to transparente em sua lgica; e nem sempre a lgica
est vinculada justia.
- Se o que acontece de justo ou de injusto pode no ter a ver com o
que a gente acha que seria lgico - e por lgico eu estou querendo dizer
que quem no merece no deveria sofrer injustia -, ento fica tudo ao
sabor do acaso ou do azar?
- No sei responder a isso, mas, s vezes, a gente chama de sorte o
que chega por acaso.
- E, mas por que uns aprontam e outros pagam o pato?
- Talvez isso tudo no seja um problema de lgica; talvez isso diga
respeito mais ao modo de ser dos seres
91

67
humanos; talvez seja conseqncia da irresponsabilidade, do
desrespeito que certas pessoas tm pelos outros.
- No tem lgica nenhuma nisso, de uns terem de sofrer pelo que os
irresponsveis fazem.
- , no tem e tem. No tem porque, como a gente tem o costume de
associar sofrimento com castigo, fica a questo do porque de um
castigo para quem no fez nada, e a gente acha ento que no h lgica
nisso. Por outro lado, h uma lgica indigesta, baseada na premissa de
que os atos humanos tm conseqncias. Os atos maldosos, ou mesmo
os meramente irresponsveis, logicamente resultam em alguma coisa:
seja em seguida e muito prximo, seja mais tarde e at muito longe;
seja para a prpria pessoa, seja para os outros. E os atos bons tambm
se desdobram assim.
Depois de um pouco de silncio, a paciente disse: - Mas, ento, a gente
fica no mundo como uma palhaa, sofrendo as conseqncias das
ruindades dos outros.
- De certa forma, sim, e, por outro lado, usufruindo um monte de
coisas boas, tambm resultantes de outros atos, tambm humanos, para
os quais, as vezes, a gente nem olha, porque no chamam a ateno. A
histria do mundo feita de tudo isso, e a histria de cada um tambm.
Veja sua histria: que bom que seu irmo, naquele dia, chegou e foi
capaz de arrancar voc da fria de seu pai, e, apesar de ter levado
tambm umas chicotadas,
93
permaneceu ali com voc; que bom ter sua me solidria e cuidando
de voc; que bom ter algumas amigas cuja amizade, naquela hora, foi
fundamental para voc; que boa a idia da sua madrinha de mand-la
para os Estados Unidos, onde voc estudou tanto; e, trazendo a sua
historia para mais perto, que bom poder ter a seu lado esses filhos,

68
que do trabalho e alegram sua vida, no ?
- Nunca tinha pensado na minha vida como uma histria, tantos
personagens fazendo parte dela, os mocinhos e os bandidos. E a
historia continua...
- Sim, continua, e voc a protagonista, porque essa histria sua;
voc no pode tudo, mas pode alterar algumas direes dela.

Numa outra vez, a paciente falou:


- A gente tinha conversado, num outro dia, sobre sorte, azar, enfim,
essas coisas. Um dia desses, fui comprar material escolar para as
crianas e encontrei uma menina ou, melhor, como eu, j no mais
uma menina, mas uma antiga amiga do meu colgio. Conversa vai,
conversa vem, e ela perguntou o que eu andava fazendo. Fiquei com
um pouco de vergonha de dizer que estava s em casa cuidando de
filhos, mas pensei, ora, e isso mesmo, e falei pra ela que eu estava
meio parada. Ela disse: "Que timo, acho que voc hoje me caiu do
cu;
93
me lembro de que voc era tima em ingls, e estou desesperada atrs
de algum que me ajude numa traduo que peguei pra fazer; sabe
como , a gente pega coisas demais e depois no d conta; enfim, nem
te contei direito, o fato que fao tradues de livros, de artigos, e
agora acumulou um monte de coisas. Voc bem que podia fazer pra
mim a traduo de um artigo pra uma revista de decorao, nada muito
complicado, seno eu perco esse prazo. Voc topa ?". Enquanto minha
amiga me falava, alguma coisa dentro de mim disse: "Vai em frente". E
respondi pra ela: "Claro, estou com tempo e posso ajudar voc". Dei
meu endereo e, noite, ela me levou o artigo. Depois que as crianas
dormiram, peguei o artigo e vi que, usando um pouco o dicionrio,

69
porque estou meio destreinada, dava pra dar conta dele. Continuei no
dia seguinte e no outro dia terminei. Ela foi buscar em casa e me disse:
"Maravilha, ainda bem que encontrei voc; no que eles me pagarem eu
trago o cheque pra voc". Levei um susto quando ela me falou em
trazer um cheque; de verdade mesmo, no pensei que aquilo fosse um
trabalho. Disse pra ela: "Que isso, no precisa, eu fiz pra ajudar voc".
E ela respondeu: "De jeito nenhum, isto trabalho; ainda vou abusar
muito da sua boa vontade, vou entulhar voc de servio".
- Que bom que voc topou; saber bem ingls era um dos seus
sonhos. Quem sabe, talvez tenha chegado a hora de retom-lo.
94
- Mas ser que vou ter tempo pra isso?
- Por que no tentar? Voc no vai ter de sair de
casa, pode escolher seus horrios. questo de organizar seu tempo.

Varias sesses depois, surgiu este assunto:


- Voc se lembra de quando eu dizia que a nica coisa que me dava
vida era cuidar das crianas? Pois , estou achando o maior barato fazer
as minhas tradues. E tem mais: j ganhei um dinheirinho. No preci-
so nem dizer que a primeira coisa que fiz foi comprar brinquedos pras
crianas. Meu marido acha graa quando pego os artigos, vou pra sala e
digo: "Tchau, to indo pro meu trabalho". Minha amiga tem uma poro
de contatos e est aparecendo muita coisa; ela diz que sou sua scia.
Estou com um pouco mais de tempo. Combinei com a vizinha do meu
apartamento, que tem uma filha na mesma escola dos meus, que vou
pegar as crianas tarde, e ela leva os trs. Ela at me disse: "Por que a
gente no pensou nisso antes?". Vou dizer uma coisa pra voc: ando
mais feliz ultimamente. Meu marido me disse que estou mais bem-
humorada, que ele no conhecia esse meu lado. Tenho at medo de

70
falar, deixe eu bater na madeira, mas ele esta mais prximo de mim,
esta mais carinhoso.
95
Algum tempo depois, ela apareceu com um corte
de cabelo diferente e perguntou: - Gostou?
- Ficou muito bom esse cabelo pra voc.
- Dei um jeito nele, estou usando um produto que
acentua a cor dele e cobre uns fios brancos. Ficou bem preto de novo,
como era antes. Eu andava meio descuidada de mim, mas pensei, outro
dia: eu no era desse jeito, eu era urna menina vaidosa, era at um
pouco exagerada; o que aconteceu comigo?
- Talvez aquele falatrio todo que houve em torno de voc, a sua
"fama," como voc me dizia, tenha a ver com essa sua mudana. Voc
me disse que logo em seguida comeou a mudar seu jeito de se vestir,
at o jeito de rir: adeus, minissaias; adeus, risadas gostosas - isso no
era jeito de menina sria; tambm, nem havia mesmo do que rir, no ?
E se enfeitar para que? Para quem?
Ela ficou muito triste e comentou:
- Eu tinha at medo de descambar, voc entende; tinha nos ouvidos
as palavras do meu pai. Mas agora sei que tudo o que me aconteceu
no foi parque eu era bonita, vaidosa; isso pode ter contribudo, pois
havia gente que no gostava de mim exatamente par isso, gente que
ajudou a espalhar aquele falatrio. No havia nada de errado com o
meu gosto de ser feliz, com a minha alegria, e pra voc posso falar - sei
que voc no vai dizer
96
que sou exibida: no havia nada de errado em ser bonita. Ser que ainda
posso voltar a ser como eu era?
- Mas o que poderia impedir isso? Exatamente como voc era, no

71
vai dar, porque voc era uma meninona, cheia de sonhos; voc pode ser
de novo, s que no mais uma menina, mas uma mulher cheia de
sonhos.
- Ser que j no passei desse tempo?
- Ora, o tempo vai passando, mas tambm vai se
abrindo. A sua histria se realiza a cada dia. J percebeu que voc
retomou uma poro de coisas que eram suas? Veja a sua vaidade
retomando nesse cabelo novo, bem tratado; o seu interesse pelo seu
trabalho, pelo estudo de lnguas. Voc j se deu conta de que esta menos
presa ao cuidado exclusivo da casa e dos filhos? J notou que tem
sorrido mais, pelo menos aqui comigo? o tempo de agora tambm seu.
A moa perguntou, com ar meio surpreso: - Voc acha
mesmo?

Certo dia, a paciente apareceu com aquele jeito de criana travessa,


prestes a "fazer alguma arte" e falou:
- No sei o que voc vai achar; pode ser que seja caretice. Mas voc
se lembra de uma vez, em que a gente falava de sonhos de menina?
Olhe, no v me achar ridcula, mas sabe no que ando pensando? Eu
sonhava tanto com meu casamento, eu entrando na igreja, aquela
97
La musica e tudo mais. Nada disso deu certo. Quando casei, meu
marido e eu combinamos que iramos ao cartrio e pronto. E foi desse
jeito mesmo. Eu tinha dito pra ele que nem precisava isso, o importante
era que a gente se gostava muito. No precisava de papel nenhum. Foi
ele que insistiu. E, era verdade, eu pensava mesmo assim, e ainda penso
que no um papel assinado que faz um casamento. Mas agora me vem
urna idia meio louca na cabea. At falei pra ele e ele topou, at achou
que ia ser legal.

72
- Mas que idia louca e essa? Ainda no sei do que voc est
falando.
E ela disse, entre sem jeito e feliz:
- Eu queria casar do jeito que imaginei quando era garota. Claro que
no seria tudo igual, nem teria cabimento. Mas queria entrar na igreja,
queria uma msica, flores. No v rir de mim.
- Mas por que eu iria rir de voc? Eu estou e achando um barato ver
sua disposio para retomar o que voc queria tanto. Compartilho a sua
alegria. O que h de loucura nisso? Era um sonho seu que pode ser
realizado, nada impede j que seu marido gosta tambm da idia.
As duas acabaram rindo, fazendo planos para o casamento.
- Sabe como imagino tudo? Penso em mandar fazer um vestido,
assim um pouco abaixo dos joelhos, de urna
98
cor bem clarinha, pode ser um bege claro ou um azulzinho; na cabea,
no coloco nada, s fao um penteado meio discreto, mas bem
moderninho. Meu marido tem um irmo que toca um violino
maravilhoso, ele pode tocar pra gente. E sabe o mais engraadinho que
imagino? os dois meninos entram com a gente, na frente, at o altar.
Ser que eu levo uma flor na mo, uma rosa, por exemplo? Uma s,
no ia ficar charmoso? Vai ser tudo numa igreja bem simples, no
gosto dessas cheias de pompa, num dia qualquer da semana. A gente
convida s os parentes e alguns amigos.
A sesso desse dia girou em torno desse casamento, um sonho que
parecia perdido, mas que agora podemos ver que s tinha sido adiado.

Na sesso seguinte, ela perguntou logo ao chegar: - Voc vai ao


meu casamento?
A terapeuta hesitou um pouco e depois disse:

73
- Espero que voc compreenda bem, eu gostaria muito de ir ao seu
casamento, mas no vou. Para mim, isso iria atrapalhar nosso trabalho
de terapia. Acho melhor continuar a conhecer essas pessoas s quais
voc se refere s atravs do que voc conta. Prefiro saber de sua vida,
de preferncia, s atravs de voc. Mas pode saber que nesse dia vou
me lembrar de voc, e depois voc me conta tudo.
99
- Eu entendo isso.
E acrescentou meio emocionada: - Obrigada por
tudo.
E assim, essa terapia continua e passa por momentos mais
descontrados e por momentos pesados. Ainda ha muito caminho pela
rente.

Bem, voc se lembra daquele terapeuta que desistiu de atender o


paciente? Ele foi mesmo procurar seu antigo terapeuta. Chegou, falou
de algumas coisas mais gerais, e em seguida j entrou na sua questo.
- Estou de volta, e o motivo principal para eu estar aqui o
seguinte. Aconteceu uma coisa que me abalou demais. No sei
se era pra tanto, mas pra mim foi. Atendi por mais de um ano
uma pessoa, e o cara, em resumo, deu uma chacoalhada na
minha vida profissional. Resolvi que no vou mais atender esse
paciente. Est tudo remexido em mim. H momentos em que

penso que ele um psicopata e no tem jeito; de repente, acho que foi
falha minha; enfim, estou me sentindo uma merda.
- Vamos com calma, uma coisa de cada vez. Est parecendo que a
ha coisas que dizem respeito aos seus sentimentos com relao a ele,
com relao a voc mesmo, e h outras que se referem ao prprio
atendimento, a como ele foi conduzido. No vamos misturar as coisas.
Eu posso atender voc em terapia, mas acho bom voc

74
100
procurar outra pessoa para conversar sobre seu paciente. Se isso
tambm for feito aqui comigo, ns vamos embaralhar as coisas,
concorda? Mas me diga o que aconteceu que tumultuou tanto voc.
- O paciente, desde o comeo, me pareceu um tipo bastante
insensvel, desses que s pensam em si; muito inteligente e bem-
sucedido no trabalho. Eu fui levando a terapia do modo como acredito
que deve ser, tentando ver com ele as implicaes de seus atos, o rumo
que sua vida tomava, procurando compreender o motivo de de-
terminadas condutas suas; abri espao para que ele trouxesse coisas do
seu passado, da sua infncia, as inquietaes que ele pudesse ter. E, na
histria que ele trazia, a tnica era sempre a mesma: ele, ele, e seus
interesses, o como ele era mais atendido ou menos atendido em seus
desejos. Eu nunca vi ningum to impermevel; nem sei por que ele
vinha terapia; parece que era s a ocasio de ele se ouvir falando o
quanto ele era o mximo. Parece que ele no se importava se eu estava
ouvindo e muito menos se importava em me ouvir. Resumindo, cada
vez mais, o que foi se revelando, como a gente costuma falar aqui, o
que aconteceu, agora vejo, foi a manifestao de um retumbante "eu
existo, o resto no importa". O cara um trator, consegue destruir tudo
por onde passa.
101

- Parece que consegue mesmo, veja como voc esta. Marcaram o


prximo horrio para comear a terapia.

Na semana seguinte ele foi procurar a outra pessoa com quem


conversar sobre o caso de seu paciente e o seu atendimento.
Com essa pessoa, ele comentou que o fato de ter partido dele a
interrupo da terapia no era tranqilo para ele. Depois de bastante

75
conversa, concluiu que ele tinha direito e obrigao de interromper um
tratamento que j no daria certo com ele.
Durante algum tempo ele continuou essas supervises. Cada vez
mais, a conversa com o colega mostrava que aquela era uma pessoa que
passaria pela terapia sem ser tocada por ela. Apesar disso, acharam que
tinha sido bom ter dado ao paciente alguns nomes de pessoas para que
ele as procurasse, caso quisesse continuar uma terapia.
Conversaram tambm sobre outros atendimentos, sobre algumas
dificuldades. Mas as dificuldades existentes eram aquelas prprias do
trabalho teraputico. De modo geral, eram terapias que fluam, das
quais era possvel dizer: isto est caminhando.
Passado um tempo, tendo revisto o caso daquele paciente, e com a
sua prpria terapia, aquele terapeuta comeou a ter claro que,
independentemente do diagnstico daquela pessoa, ele tinha feito tudo
que era possvel ser
102
feito numa terapia; compreendeu a sua raiva, to humana;
compreendeu a sua decepo ao ter constatado, de modo bem concreto
(teoricamente ele j sabia), que o terapeuta no tem "poder"; que ele
pode, ao estar afetivamente prximo ao paciente, ao estar disponvel
para pensar junto, favorecer uma ocasio propcia para que o paciente
reveja a prpria vida, descubra ou redescubra sentidos. Mas sempre
um trabalho a dois.

Numa das vezes em que foi superviso, ele comentou que agora
tinha bem claro que, no caso daquele paciente que ele parou de atender,
nunca se havia formado um vnculo afetivo entre eles. De sua parte,
havia acolhido muito bem o rapaz, mas agora tinha a impresso de que,
para o paciente, era como se ele fosse um mvel da sala ou algo assim

76
ou algum que estava l "a servio", pago para isto: ouvir suas proezas.
Ele perguntava se aquela pessoa seria capaz de amar algum.
A partir da, comearam a conversar sobre o que amar. Em
seguida, passaram a falar sobre o afeto que surge na terapia entre
terapeuta e paciente, e concordaram que uma boa relao afetiva era
um fator importante no encaminhamento da terapia. Mas a pergunta
era: que espcie de afeto e esse? E viram que no era fcil classific-lo.
Chama-se amor, amizade, preocupao pelo outro, gratido? Ser que
pode ser tudo isso? E se a
103
palavra amor incluir todos esses sentimentos? E o que a palavra amor
significa?
Um deles disse que amor um sentimento que aproxima as
pessoas. O outro falou que as pessoas tambm ficam presas pelo dio.
Mas a isso o primeiro respondeu que o dio prende, "liga" as pessoas,
mas no as aproxima; ele liga afastando ou afasta ligando, mas no
aproxima.
E o dilogo entre os dois continuou.
- Ser que o amor se confunde com aquilo que se costuma chamar
de "cuidado"?
- O "cuidado", parece que algo mais amplo, que inc1ui muito
mais, tanto que se fala no "cuidado" que consiste em pensar o ser; no
"cuidado" como preocupao com as coisas; no "cuidado" que se refere
prpria existncia; no "cuidado" que, em seu modo privativo, pode ser
maltratar o outro; no "cuidado" como o carter principal, essencial do
Dasein. Ser que a palavra amor significa exatamente essas coisas?
Pode ser que, mesmo estando includo no "cuidado", mesmo sendo um
dos possveis modos do "cuidado", mesmo que ele possa ser
conceitualmente derivado do "cuidado", o amor constitua algo de uma

77
natureza to peculiar, um "cuidado" que tem a tal ponto uma
especificidade que mereceria ser considerado destacadamente do
"cuidado" em seu sentido mais amplo. o que voc acha?
104
- Olhe, isso a parece que j foi um ponto de discrdia que separou
Binswanger de Heidegger; quem sou eu para achar ou no achar
alguma coisa? No quero entrar nessa briga. Mas isso faz sentido. Ao
"cuidado" dirigido ao outro se d o nome de solicitude. Solicitude quer
dizer empenho em atingir um objetivo, desejo de atender a alguma
solicitao da melhor forma possvel, boa vontade, ateno, cuidado
constante. Isso tudo pode estar presente no amor, mas ser que o amor,
diga com sinceridade, define-se por essas coisas? Eu, por mim, acho
que todas as formas de amor, dos pais pelos filhos, dos
filhos pelos pais, pela humanidade, entre amigos, entre os namorados,
incluem a solicitude, mas a solicitude no precisa ser necessariamente
marcada pelo se sentir prximo de algum, e isto sim caracteriza o amor.
- E, talvez seja mesmo melhor deixar essa conversa para os
filsofos, e vamos pensar na terapia. o fato que h uma relao
afetiva que se forma na terapia, e isto um fator importante no seu
processo. O afeto que surge a pode ser chamado de solicitude, visto
que 0 cuidado pelo outro, que deseja 0 melhor para a
existncia do paciente. Mas uma solicitude que tem
como caracterstica o aproximar, o unir aquelas pessoas.
Talvez a melhor descrio para esse afeto seja uma
solicitude que, na proporo em que se efetiva, aproxima
terapeuta e paciente, e por isso uma solicitude amorosa. Ela

existe
105
tanto da parte do terapeuta como do paciente, pois os dois esto

78
empenhados em responder a uma solicitao que, no caso, diz respeito
ao sofrimento do paciente, busca de sentido da sua existncia. E o
paciente conta com o terapeuta, sente-o prximo a si no caminho que
est percorrendo. Isso o que marca a relao afetiva que se estabelece
na terapia.
- Mas ao criar-se tal situao de intimidade e confiana, pode
acontecer que uma paciente comece a erotizar seu afeto pelo terapeuta e
passe a fantasiar urna outra forma de amor, o amor apaixonado que ela
teria por um namorado.
- Sim, no precisa acontecer necessariamente, mas pode acontecer,
principalmente porque a pessoa est, em geral, vivendo uma fragilidade
grande, e o terapeuta pode aparecer como o heri salvador, por quem
ela se apaixona. paciente so permitidas as fantasias que queira ter,
mas, do terapeuta, espera-se que ele saiba sempre que est ali para
compreender, para conter essas fantasias ou desejos, e no para realiz-
los. O terapeuta vai precisar acompanhar a passagem da paciente por
esse momento, at que, conversando sobre o que est ocorrendo, surja
tambm para ela a compreenso de que aquilo ou foi um momento de
um sonho seu, e que nem todos os sonhos podem se realizar; que a
funo do terapeuta no ser seu namorado, que seu namorado ou
ser algum que est l fora.
106
- E se o terapeuta tambm se apaixonar pela paciente?
- No impossvel. Mas se comear a haver um envolvimento dessa
natureza, eles podem pensar em viver essa paixo, um direito; s que a
terapia termina ai. No d para misturar envolvimento ertico com terapia.
- , o trabalho do terapeuta exige uma tica muito grande
no lidar com os sentimentos do paciente. Poderia ser dito
que a tica a exigida a mesma que deve existir em outras profisses

79
semelhantes do terapeuta. Isso verdade, mas, no caso do terapeuta, ele
precisa de um cuidado ainda mais atento, pois a pessoa que est ali confia
nele, faz confidncias muito ntimas; ela pode trazer assuntos em que esto
envolvidas suas prprias dificuldades e suas fantasias sexuais, e o simples
falar sobre essas coisas capaz de despertar sentimentos erticos. A pessoa
pode misturar seus sentimentos. O terapeuta que no deve misturar, e, se
ele perceber que isso tende a acontecer com ele, hora de voltar para sua
terapia.
- Por isso, sempre bom que o terapeuta evite propiciar certas
situaes, certos comentrios que possam facilitar interpretaes
ambguas, por parte do paciente, daquilo que constitui a relao entre eles.
J basta ter de lidar com o que possa vir naturalmente, em termos de
fantasias do paciente.
107
- Voc se lembra de uma pea de teatro, em que trabalhavam Irene
Ravache e Regina Braga, chamada Uma relao to delicada? No tinha
nada a ver com terapia, mas s estou pensando no seu nome; parece que
esse nome exprime bem a delicadeza da relao teraputica: uma
relao to delicada. delicada porque existe afeto, porque afetos
podem se misturar, no s no que diz respeito a sentimentos erticos,
como no exemplo a que nos referimos, mas possvel tambm imaginar
o terapeuta confundindo o paciente com um filho ou interagindo com
ele como se fosse o amigo com quem se toma cerveja, e outras
confuses. um afeto que precisa ser muito bem cuidado e preservado
na sua especificidade.
- E por ser assim, to especial, que o vnculo afetivo que se forma
na terapia , ele mesmo, teraputico. O paciente no vem para a terapia
com questes intelectuais para resolver. Suas questes dizem respeito a
sua vida, e isso tem a ver com o seu modo de se aproximar ou de se

80
afastar das coisas, das pessoas, de si mesmo, tanto no passado como no
presente; tem a ver com o modo como ele sente que as pessoas se
aproximam ou se afastam dele. Isso diz respeito a como ele se afina,
isto , como se sente em harmonia ou, ao contrrio, em desarmonia com
as coisas, com as pessoas, consigo mesmo; diz respeito, enfim, a como
ele se encontra no mundo. Em geral, ele vem de experincias em que o
que esta em questo so
108
exatamente os sentimentos que compem a sua vida: sentimentos de
abandono, de frustrao, de medo, de ansiedade, de angstia, de tdio,
de desnimo diante da incerteza do futuro, de culpa, de insatisfao, de
todo tipo de tristeza. Enfim, tudo aquilo de que se fala na terapia
envolve sentimento, e o prprio vnculo teraputico se torna carregado
de sentimento.
- Voc tem razo. A pessoa no sofre por idias abstratas. Quando
ela pergunta pelo significado ou pelo sentido das coisas na sua vida,
isso no um assunto terico; ela esta perguntando: O que eu fao com
a minha vida?". E h sentimento nisso. Quando ela diz que sua vida est
sem sentido, isso no mera comunicao; ela est dizendo que seu
existir no tem um para que", e um tdio viver assim. E tambm h
sentimento nisso. Sentimentos permeiam toda a terapia. Por isso, seria
estranho pensar numa terapia acontecendo num espao desprovido de
sentimento. Veja como exemplos: uma pessoa cuja vida uma histria
feita da necessidade de no confiar em ningum. Talvez possa sentir
pe1a primeira vez, possa viver, na terapia, o sentimento de confiana
em algum; outra, que sempre sentiu que ningum confia em suas
possibilidades, talvez possa sentir, pe1a primeira vez, que algum
confia nela. A terapia tambm isto: espao afetivo que pode servir de
um novo cho, de um novo ponto de partida.

81
109
E assim, a conversa entre os dois terapeutas se prolongou durante
muitos encontros. Falaram no s daquele caso especial do paciente
que o terapeuta deixou de atender, mas tambm de urna poro de
outras coisas que dizem respeito terapia.

E o casamento daquela moa foi do jeito que ela queria. Quem


assistiu ao casamento contou que ela estava muito bonita e feliz; seu
marido tambm estava feliz; e as crianas achavam tudo muito
engraado.
Havia um clima de alegria, mas algum mais atento perceberia que
o pai dela no estava vontade. J fazia muito tempo que ele e a
mulher estavam separados. A me dela, que j tinha tolerado vrios
descontroles do marido, naquela vez em que ele bateu na filha, achou
que ele tinha passado da conta. Logo aps a viagem da menina para os
Estados Unidos, eles se separaram.
Dizem que ele esteve muito deprimido por uns tempos, mas hoje
em dia esta bem: casou-se novamente, cuida de sua sade, trabalha,
viaja, mantm um certo contato com os filhos. De vez em quando,
visita-os e leva presentes para os netos. Ningum mais fala daquele
assunto to dolorido.
Mas, no dia do casamento, houve uma hora em que, ao v-la entrar
na igreja, sem vestido de noiva e sem buqu, mas linda de azul com
uma s rosa na mo, uma
110
emoo muito forte conseguiu romper um bem-estar medicamentoso,
e surgiu urna tristeza imensa. Ele logo recuperou o controle e no
deixou que a emoo tomasse conta, seno ele cairia no choro, e isso
ele no podia fazer.

82
Ele no chorou, mas seu pensamento foi longe: "Que pena, filha!
Eu queria que fosse tudo to diferente. Mas por que no foi de outro
jeito? Talvez, se eu no tivesse me precipitado naquele dia ... Como
pude ser to bruto? o que deu em mim naquele dia? verdade que eu
j vinha meio descontrolado, os negcios indo de mal a pior, cada dia
um aborrecimento novo e, por ltimo, aquela notcia que entrou em
mim como um veneno: minha filha, a coisa mais preciosa que eu tinha
no mundo, tornando-se aquilo, uma puta - eu ouvi essa palavra no
meio daquilo tudo que aquele cara do clube falou dela -; logo a minha
filha, minha princesa, como eu dizia para ela .
. Isso no podia acontecer na minha famlia, uma famlia de gente
direita, de mulheres direitas. Foi demais para mim. Ser que outro pai,
no meu lugar, teria feito o que fiz? Talvez at fizesse, se estivesse
passando pela fase horrvel que eu vivia naquela poca, sem dizer
nada a ningum para no preocupar as pessoas, tomando remdios por
minha conta, porque eu tinha vergonha de buscar ajuda. Mas no
importa o que outro pai faria. O fato que eu fiz. Mas no posso ter
sido o monstro que fez aquilo. Esse no sou eu. Mas, fui eu sim, e, a
partir daquela
111
hora, perdi minha princesa. J estou castigado. Mas por que ela teve de
ser castigada tambm?".
Foram seus pensamentos na igreja; quase nem viu a cerimnia.
Depois, no jantar na casa da filha, ele bebeu um pouco, tentou ser
socivel, conversou com todos.
Mais tarde, j em casa, ele voltou a rememorar detalhes daquele dia
que estragou sua vida. Como tinha sido mesmo? Ele estava no clube,
quando chegou um conhecido e lhe disse:
- Fulano, no me leve a mal; estou aqui como um pai falando pra

83
outro, se bem que s tenho filho homem, e ser pai de menina mais
complicado; mas, outro dia, ouvi dos amigos do meu filho que estavam
no meu carro urna conversa sobre uma garota do colgio deles; bem,
pra encurtar o caso, eles falavam da sua filha; sei que as meninas hoje
so mais livres, mas, pelo que eles diziam, no caso dela as coisas esto
indo longe demais, esto tomando um rumo que, sei l; s vezes a
menina est com algum problema e acaba fazendo loucuras de todo
tipo; como sou seu amigo, me vi na obrigao de ...
Ele se lembra de que, naquela hora, parecia que no tinha mais
cho; as palavras chegavam soltas aos seus ouvidos e uma grande
vergonha se apossou dele. Nem sabe mais como acabou aquela
conversa.
Sabe apenas que foi para casa e j no era s vergonha o que
sentia; comeou a sentir raiva da filha: ela havia
112
desmanchado o sentido da vida dele. Na sala, em cima de uma lareira,
estava um chicote trazido de uma fazenda por um seu primo. A menina
entrou em casa e, no momento seguinte, o chicote j estava em sua
Mao, e ele batia nela. Naquele momento, ela merecia ser castigada pelo
mal que tinha feito a ele: como se acaba assim com os sonhos de um
pai? S parou quando, por acaso, seu filho entrou e se colocou entre
eles, e, sendo um rapaz forte, pode interromper aquele massacre. No
tinha conseguido ouvir o que a filha queria falar para ele, e agora ele
pensa: por que?
Ele no sabe o porque de nada. S sabe que no ha o que justifique
o que fez. Viu sua caixa de comprimidos e pensou: "Tambm, que
burrice a minha; hoje eu devia ter tornado um comprimido a mais, eu
devia saber que podia me emocionar; pacincia, Tomo dois agora".
Foi assistir a um filme e, algum tempo depois, estava bem mais

84
tranqilo. Pde ento pensar: "Que loucura hoje! Passei tanto tempo
sem pensar nessas coisas e hoje me volta tudo de uma vez. O que
interessa que minha filha est feliz. Por que remoer o que j ficou l
atrs? Sentimento de culpa no leva a nada. Pedir desculpa, nesta
altura, no tem cabimento, e, naquela poca, eu no conseguia fazer
isso. Entao para que?".
O sono chegou e no outro dia ele foi trabalhar normalmente.
113

o casamento foi tema de conversa em vrias sesses de terapia


daquela moa. Ela contou tudo em detalhes. Numa das vezes a
conversa foi esta:
- Voc sabe o que significa um sonho ressuscitado?
Pois , foi isso (a terapeuta pensou: como isso deve ser bom!). Queria
que voc estivesse l. Eu e meu marido estvamos felizes, e eu via no
rosto das pessoas que elas estavam felizes por ns. S por um instante
uma coisa me perturbou muito. Ao entrar, vi meu pai num dos bancos,
e, quando passamos por ele, ele estava completamente plido, parecia
que ia ter alguma coisa naquela hora. Eu sei o que ele devia estar
sentindo. Quando eu era pequena, entre as histrias que ele me contava
havia uma, que era mistura de sonho e de conto de fada, e era dessa que
eu mais gostava. Era a histria de como iria ser o meu casamento, e
nesse sonho eu era uma princesa: o vestido de noiva, nunca houve um
mais lindo, a cauda teria nem sei quantos metros; meu buqu era feito
das flores mais lindas e perfumadas; a msica era maravilhosa; o meu
noivo estaria me esperando no altar, e ele, s vezes, era o moo loiro
mais lindo, s vezes, era o moo moreno mais lindo; e quando eu
estivesse entrando com meu pai, todos os outros pais iriam ficar com
inveja dele, porque ele era o pai da noiva mais linda do mundo. Era
uma histria cheia de detalhes, e eu no queria que ela acabasse; ento,

85
ele sempre inventava
114
mais um pedao. Sabe, meu pai no foi sempre louco do jeito que ficou
naquele dia horrvel. Ele comeou a ficar impaciente, esquisito, um
tempo antes de ter acontecido tudo aquilo. Mas, naquele instante, s me
lembrava do pai bom que eu tive e, por uma frao de segundo, eu disse
em pensamento: "Que pena pai! Eu no queria desapontar voc, me
perdoe". Era exatamente isso que eu pensava na hora em que passei
perto dele; eu sorri para ele, mas parece que ele no via nada. Mas isso
tudo foi muito rpido, a minha felicidade era grande demais. Depois, na
minha casa, vi que ele estava bem.
- Voc repara que esta e uma das primeiras vezes que voc fala do
seu pai?
- No gosto mesmo de falar a respeito dele. Sabe, consigo me
lembrar exatamente da dor que senti, do medo que tive do seu olhar
enfurecido, das palavras que ele me dizia. No d pra esquecer essas
coisas. No posso perdoar meu pai.
- No pode mesmo? Mas, por uma frao de segundo, parece que
no s ele estava perdoado como voc pedia perdo a ele.
- que quando a gente esta feliz demais no h lugar pra mais nada,
ali no cabe nenhuma mgoa, e a gente confunde isso com perdo.
Parece que a gente sai da realidade.
115
- E por que voc, ainda que num relance, pedia perdo a ele?
- Bobagem minha. Mas sabe o que ? Eu no fiz nada de propsito
pra magoar meu pai, mas o fato que alguma coisa eu fiz. Talvez se eu
no tivesse namorado aquele carinha, nada disso teria acontecido. Bem
que o irmo da minha melhor amiga tinha me dito: "Sai dessa, esse cara
s apronta por ai". Eu freqentava muito a casa, desde criana, e a me

86
deles tambm me falou pra eu ter cuidado. Mas no liguei. Comecei a
sair com ele, achei que eu no era boba e no ia me envolver com ele.
Quando vi, estava apaixonada. Lembra de que uma vez falei pra voc
que eu ficava pensando o que ser que havia no meu jeito que
favoreceu que as pessoas acreditassem naquele falatrio? Eu tinha
concludo que no havia nada errado em mim, lembra disso? Pois ,
continuo achando isso. Mas fiz uma coisa errada, sim: foi ter me
apaixonado por aquele menino, e as pessoas tinham me avisado. Fui
entrando na situao aos poucos. Esse foi o erro. Lembra-se de que
voc dizia que os atos humanos tm conseqncias? A coisa esta a, do
namoro resultou toda aquela confuso. Agora vejo que parte da minha
tristeza, que se manteve por tantos anos, tinha a ver tambm com essa
sensao de ter feito algo muito errado, algo que estragou no s a
minha vida, mas tambm a dos meus pais, a do meu pai
principalmente.
116
- Voc est dizendo que se sentia culpada?
- curioso voc usar essa palavra. Todas as vezes
que tentei dizer pra algum isso que eu sentia, a pessoa me dizia:
"Deixe de besteira, voc no percebe que foi a grande vitima de tudo O
que aconteceu?". Hoje estou podendo falar isso sem me sentir idiota.
Ou, talvez, at seja uma idiota mesmo, mas eu sentia urna pontinha de
culpa, sim. Mas, em seguida, deixava de pensar nisso e dizia pra mim
mesma: voc era s uma menina apaixonada.
- Mas, segundo o que voc diz, voc no levou em conta as
informaes que tinha sobre ele, e, quando viu, j estava apaixonada
pelo rapaz cuja fama era conhecida, no ?
- Mas, puxa vida, ser que naquela idade eu podia fazer alguma
coisa diferente? muito rpida a passagem de um mero interesse para

87
uma paixo, e a a gente no enxerga mais nada. At que me esforcei,
depois, pra por um fim em tudo.
- Concordo com voc, mas isso no impede que voc se cobre por
no ter podido ser mais forte, por no ter levado a serio as informaes
que tinha sobre ele; depois de tudo, voc percebeu que gostaria de ter
podido ser diferente. Voc se sentiu em falta diante de voc mesma, e
isso se chama culpa. Sentiu que a confuso toda teve a ver com seu
namoro. Mas me diga uma coisa: se seu namoro foi urna coisa errada, o
que voc pensa da proporo entre esse seu erro e tudo o que se seguiu?
117
- Tenho certeza de que foi uma coisa desproporcional. E agora
comeo a me dar conta de que o fato de eu ter namorado o cara, porque
me apaixonei por ele, no podia por si s desencadear toda aquela
maldade contra mim. O que desencadeou tudo foi o mau-caratismo
dele. O que fiz de errado foi me apaixonar por ele; mas se voc
soubesse como ele era bonito, como sabia encantar as meninas ...
Percebo mais uma coisa ainda neste momento. O que provocou tudo,
alem da ruindade dele, claro, no foi o fato de eu namorar, mas o fato
de eu terminar o namoro. Podia ser que, se eu esperasse mais um
pouco e ele tivesse terminado, ele no tivesse ficado com tanta raiva de
mim, voc no acha? Engraado, acabei pagando caro exatamente
porque fiz a coisa que me pareceu mais certa fazer. E olhe, foi difcil
chegar deciso de acabar com tudo, porque eu gostava muito dele.
Tambm podia ser que, se eu no tivesse terminado o namoro, com o
tempo ele criasse juzo e a gente pudesse ter sido feliz. Quem que
sabe, no ?
- E. Quem e que sabe como seria? Ns s sabemos como foi. E
ainda sobrou para voc uma pontinha de culpa, no ?
- Mas ser que eu tenho de carregar isso tambm?

88
Pra mim no existe desculpa?
- Ora, mas voc j falou da sua meninice, do quanto ele era
encantador, de como a paixo toma conta de
118
repente. No so desculpas suficientes? Parece que voc sabe disso, mas
isso no basta. Voc j tentou perdoar aquela menina?
- Mas voc acha que aquela menina que sofreu tanto precisa de algum
perdo? Voc sabe que eu fui a vitima naquilo tudo.
- Voc repete agora aquilo mesmo que as pessoas falam quando voc
puxa esse assunto. Mas por que voc traz esse assunto s vezes? porque
h aquela sensao meio difusa de ter colaborado para que uma coisa muito
ruim acontecesse. E pense naquela frao de segundo em que voc, em
pensamento, pediu perdo a seu pai. Isso tudo no faz voc pensar que deve
existir algo a ser perdoado?
- Mas a quem eu poderia pedir perdo? Nunca tive a inteno de
magoar ningum; no tive culpa de ter me apaixonado por aquele tipo;
nunca podia esperar que urna pessoa normal fizesse o que ele fez; a reao
do meu pai foi um absurdo, jamais compreendi aquilo; e sou eu ainda que
preciso de perdo? Do perdo de quem?
- J pensou que pode ser de voc mesma? Houve urna menina que, em
seguida quela confuso toda, achou que foi um erro no ter levado em
considerao o que algumas pessoas haviam dito a ela, sentiu que falhou
nessa hora; sentiu que foi essa a sua falha e que isso trouxe as
complicaes: se ela tivesse sido mais previdente,
119
nada teria acontecido. Hoje voc olha para ela e v que entre o
pequeno descuido da menina e a crueldade que se seguiu no houve
proporo; mas isso no impede que ela tivesse sentido aquela
"pontinha de culpa", como voc disse antes. Ser que voc hoje no

89
pode perdoar a imprevidncia daquela menina?
- Nunca pensei nisso dessa forma.
- E, em geral as pessoas pensam mais em negar a falta ou em
arranjar desculpas para ela do que no perdo. Voc pode
racionalmente entender as razes para as desculpas, pois fazer
isso significa ver as outras variveis que contriburam para que a
falta acontecesse, e importante que isso seja feito. Mas, mesmo
com as desculpas, a pessoa continua presa na culpa. como se ela
precisasse repensar, precisasse relembrar: eu tenho tal desculpa,
tal outra desculpa, e mais outra; mas esse inventrio das desculpas
s faz prender a pessoa na culpa, pois sempre esta que est em
cena.
- E o perdo tirar de cena a culpa, esquecer o que se passou?
- No h como esquecer coisas importantes que aconteceram, a
no ser que se perca a memria. Mas possvel, sem negar que
alguma falta existiu, seja ela enorme ou mnima como voc encara a
sua, de algum modo ultrapass-la, no ficar presa nela. Exatamente
porque ela esta l, sem ser aumentada nem diminuda,
120
ela pode ser olhada na proporo que tem; voc pode dizer a si mesma:
"Falhei nisso, porque eu no era to capaz, no sabia tanto como eu
pensava que soubesse, no tinha o controle que supunha ter; enfim, eu
me vejo na minha humanidade - podendo falhar e querendo ser
melhor". Quando as coisas se passam assim, voc comea a abrir o
espao para o perdo. Se houve alguma culpa, houve; ela tem o seu
lugar na histria da vida, mas o perdo permite que a vida se solte dela
e v em frente.
Durante muitas sesses esse assunto do perdo continuou.

90
Numa outra ocasio, ela chegou e foi logo falando: - Hoje tenho uma
notcia boa. Minha amiga, aquela das tradues, me chamou pra dar
aula na escola onde ela ensina. Uma professora de l vai ter filho e
entrou de licena, e vou ficar com as aulas dela. As aulas so tera e
quinta, e, ento, nesses dias, vai deixar os meninos na escola em
perodo integral. Pensei que eles fossem achar ruim, mas adoraram a
idia, porque nesses dias tem natao, tem umas atividades de que eles
gostam, e os amiguinhos deles tambm ficam l. Meu marido tambm
achou timo.
- Quanta coisa nova em sua vida!
- Voc se lembra de quando eu falava que no conseguia desgrudar
das crianas? Sentia que precisava tomar
121
conta deles minuto a minuto, seno eles iriam fazer um, coisa errada
ou, ento, poderia acontecer algo muito ruim se eu no estivesse atenta
a tudo o tempo todo Mas agora vejo que ningum consegue ter o
controle de tudo; sempre pode haver outra coisa que chega e estraga,
ou chega e melhora, sei l ... A gente no consegue prevenir tudo, nem
na prpria vida. A vida da gente sofre interferncia de tanta coisa, n?
Lembra de quando falamos aqui sobre como o que uma pessoa faz ou
deixa de fazer pode repercutir na vida dos outros? Lembra Foi naquele
dia em que a gente estava falando se havia lgica para que certas coisas
acontecessem.
- Eu me lembro. Naquele dia, sua questo dizia respeito ao porque
do seu sofrimento, j que voc no, merecia tudo aquilo. E eu disse a
voc que isso podia no ter a ver com o merecer ou no.
- Pois naquele dia eu pensava no porque do me sofrimento; hoje
penso no porque dessa coisa boa que est acontecendo. Veja: uma
moa vai ter um beb, ela afastada escola; minha amiga, que tinha

91
estado distante de mim por tanto tempo, um belo dia se encontra
comigo numa papelaria; ela me chama pra ajudar nas tradues; agora
me chama pra dar as aulas. V quantas coincidncias? A vida vai
aprontando as coisas.

- Isso tudo verdade, mas voc esta esquecendo algumas coisas:


sua amiga s a convidou para as tradues
122
porque sabia como voc era boa em ingls na escola; ao fazer bem
essas tradues, ela passou a confiar bastante em voc, e, por isso,
convidou-a para as aulas; e voc abriu em voc mesma um espao para
poder aceitar esse trabalho. Em resumo, nessa histria toda h coisas
que vm em sua direo, mas ha tambm o seu caminho em direo a
essas coisas, ou seja, o fato de isso estar acontecendo tem muito a ver
com voc.
- , nesse caso assim mesmo. Mas quando falei que a vida vai
aprontando as coisas, eu me lembrava de outras situaes. Sabe,
quando uma coisa imprevista acontece, e a gente fica sem saber se foi
porque j estava escrito, como se diz, ou, ao contrario, o que
predomina no mundo o acaso ...
- Voc pensa, neste momento, em alguma coisa particularmente?
- Tem hora que me sinto meio chata de falar tanto no mesmo
assunto. Mas eu no tinha ainda contado uma coisa pra voc, uma
conversa que tive com a minha me h algum tempo: foi sobre aquela
surra que levei do meu pai. Nunca entendi onde meu pai achou aquele
chicote, e eu no queria falar sobre isso com minha me, pois alm de
no mudar em nada o que aconteceu, ainda iria remexer em guas
passadas que, como ela sempre diz, no movem moinhos. Um dia criei
coragem e perguntei. Ela me contou que, na noite anterior ao que

92
123
aconteceu, um primo do meu pai, o fulano, foi l em casa visit-los.
Ele vinha de uma antiga fazenda do av deles que acabava de ser
vendida. Antes de entregar a fazenda aos novos donos, alguns objetos
da casa da fazenda foram retirados, e o fulano resolveu distribuir
aquelas coisas entre os primos que costumavam passar frias, tantas
vezes, na fazenda do av. Serviriam de lembranas daquele tempo.
Trouxe para meu pai o chicote que os pees usavam com os cavalos;
trouxe tambm urna pequena mquina de moer caf. Minha me
sugeriu que aquelas peas ficariam muito bem num mvel que havia
em nosso stio elas completariam a decorao. No fim da semana eles
levariam as duas peas para stio. Enquanto isso, elas ficaram em
cima da lareira. Isso foi na sexta e eu apanhei no sbado. Agora veja:
se aquilo no estivesse l, meu pai talvez me desse a maior bronca,
talvez me desse uns tapas mesmo, mas no seria daquele jeito, ele no
teria me machucado tanto. Agora me diga, por que aquele primo do
meu pai teve de levar aquela porcaria l em casa? Ele no teve
nenhuma inteno de que aquilo acontecesse, apenas largou aquilo l,
sem maldade, querendo agradar. No d pra se dizer nem que foi uma
irresponsabilidade, como a gente diria no caso, por exemplo, de
algum deixar um revolver armado em cima de uma lareira. No. Era
urna lembrana, um objeto de decorao.
124
- Entretanto, aquele chicote que j tinha sido um instrumento de
trabalho dos pees de uma fazenda, que iria ser um objeto de
decorao, passou a servir para a punio de uma filha; e veja, hoje,
sua lembrana serve como objeto da nossa conversa. Parece que a
histria de um chicote, que no sabe que tem histria, mas que entrou
na sua histria. Por acaso, o chicote estava l; ele foi levado ate l com

93
outra finalidade, e, talvez, se o primo do seu pai tivesse deixado para
fazer aquela visita uma semana depois, a histria teria se modificado.
Mas voc acha que foi s por acaso que seu pai pegou o chicote e
bateu com ele em voc? Alguma coisa havia com ele, pois, como voc
disse uma vez, ele no era um homem assim violento. Algo que ns
no sabemos o que foi deve ter motivado a violncia daquele dia, algo
que no foi simplesmente a presena casual daquele chicote sobre a
lareira. Tambm no foi por acaso que se espalhou aquele falatrio
contra voce.
- E, eu sei que voc quer me falar da responsabilidade das pessoas
pelo que elas fazem. Mas o acaso tambm entra. E, naquele dia, o
acaso fez com que as coisas piorassem pro meu lado ... Mas essa
historia de pensar o acaso complicada mesmo. Estou pensando agora
que, em vez do chicote, meu pai poderia ter usado outra coisa que
estivesse ao alcance da sua mo, por exemplo, a sua cinta. Ele estava
decidido a me castigar. Mas no
125
adianta, percebo o acaso de novo: aquele garoto que espalhou os boatos
poderia estar em qualquer outro colgio, e eu nem iria saber da
existncia dele. Por que ele tinha de estar justamente na minha escola
naquela ocasio? Isso no acaso?
- Voce tinha dito um pouco antes, que a gente no consegue saber se
algumas coisas acontecem por acaso, aleatoriamente, ou se estava
escrito que seria assim. o que voce quer dizer com esse "estava
escrito?
- que, s vezes, acho que o que tem de ser ser, no h o que
mude; o que chamam de destino. E, s vezes, acho que tudo uma
seqncia de acasos.
- De qualquer modo, assim, o homem est sempre apenas merc

94
dos acontecimentos. E a gente diz: foi a mo do acaso, ou, ento, foi a
mo do destino - s vezes, que sorte, e, s vezes, que azar! E ento se
acaba a responsabilidade humana pela histria. Mas no h uns
momentos em que voce percebe a mo do homem empurrando, seja o
acaso, seja o destino?
- Mas mesmo a posso pensar que alguma coisa, por acaso, permitiu
que ele pudesse empurrar, ou posso pensar que ele estava predestinado
a dar esse empurro. Isso complicado pra mim.
- Tambm acho difcil. A gente s consegue pensar nas coisas
depois que elas aconteceram, e a, ento, s se v que houve uma
imensa trama de acontecimentos que
127
se combinaram para resultar em algo. E o homem est no meio disso
tudo, e ele solicitado, pelo fato mesmo de existir, a se responsabilizar
pelos seus atos concretos. E vamos pensar uma coisa. E se a destinao
humana for exatamente esta, a de se responsabilizar pelo mundo, a de
cuidar das coisas? Disso tudo resulta a histria do mundo, a histria da
gente.
- J vi. Voce insiste nisto: responsabilidade. Voc quer me dizer que
muito do que acontece com algum tem a ver com o que as pessoas
fazem ou no fazem, com o modo de ser das pessoas. Eu estava falando
aquilo sobre o acaso, sobre o destino, mas, voc sabe, o que eu queria
mesmo entender so alguns porqus da minha vida. Queria entender a
atitude daquele menino, queria entender a fria do meu pai.
- Entender totalmente por que eles agiram como agiram a gente no
vai conseguir. Voc, que conhece os dois, talvez at possa fazer alguma
idia do por que. Quanto a mim, eu poderia at fazer algumas hipteses,
mas poderia estar completamente enganada.
- Ele, eu acho que foi por pura vingana. Acho que ele nunca tinha

95
levado um fora. Sabe aquele tipo que precisa sempre mostrar que ele
que manda? E, sem ele esperar, eu terminei tudo. Agora, meu pai, esse
eu no entendo mesmo. Sabe, o que me di mais e encarar o que meu
pai me fez. Aquele tipo, j tenho mesmo na
128
conta de um doido. Mas, do meu pai, no sei o que pensar. Ele no
podia ter feito o que fez.
- Naquela hora da raiva, ele tinha do seu lado o poder da fora e ele
pde fazer. Nesse sentido, ele podia. O que a gente no sabe o porque
de um descontrole to grande. Sera que naquele momento ele estava
passando por alguma situao muito complicada e no agentou um
problema a mais? Voc disse uma vez que ele andava meio esquisito
naquela poca. Ele estaria com algum problema de sade? Ser que ele
veio de uma formao moral to rgida que no pde suportar o que se
falava da filha dele? E como ser que as notcias chegaram at ele? O
ato dele, por mais exagerado e absurdo que possa parecer, deve ter tido
um sentido para ele. E ser que ele no se arrependeu depois?
- Sei l! Nem me interessa. Nunca mais se falou disso. Arrepender-
se depois no adianta. As coisas no podem ser assim: vai fazendo e
depois se arrepende. Parece que voc esta querendo defender meu pai.
- No se trata de defender nem de acusar ningum.
Voc tinha dito que queria entender alguns porqus. Voc chegou a
dizer que, da parte do seu namorado, aquilo devia ter sido vingana. Da
parte do seu pai, fica uma grande pergunta: por que? exatamente essa
pergunta que esta sendo desdobrada aqui. A menos que ele tenha tido
um surto psictico naquela hora, por que teve
128
uma reao to extrema, por que quase matou a filha dele? Mas h
uma coisa: na hora em que voc me disse que parecia que eu estava

96
defendendo seu pai, tive a impresso de que voc estava brava
comigo, como se voc estivesse me sentindo do lado dele e contra
voc. Foi assim mesmo?
- Foi. Senti voc querendo justificar a atitude dele.
E eu preciso ter voc do meu lado.
- E, se eu procurar compreender o porqu da atitude do seu pai,
isso significa estar contra voc?
- No digo contra, mas perco uma aliada. Voc minha terapeuta e
tem de ser minha aliada.
- Olhe, voc fala como se eu e voc estivssemos numa guerra, em
que preciso lutar contra algum, contra um inimigo. Mas ser isso o
que se faz aqui na terapia? Ser sua aliada significa muito mais poder
estar junto de voc nas suas tristezas, nas coisas que voc comea a
conquistar, e tambm nas suas perguntas pelo sentido das coisas que
lhe aconteceram. As perguntas so suas. Voc est querendo
compreender por que algumas pessoas maltrataram voc. E, nessa
busca de compreenso, eu sou sua aliada.
- Eu sei disso. Bobagem minha, que voc muito importante pra
mim.
- Compreendo a sua preocupao em no querer ter mais
decepes na vida.
129
Na sesso seguinte ela falou, logo ao chegar, que tinha pensado
muito sobre a sesso anterior. Disse que percebia que sua vida estava
mudando, que tinha agora um trabalho, coisa que sempre desejou; a
convivncia com o marido estava melhor, pois o fato de ela estar mais
bem-humorada, mais feliz, tinha aproximado mais os dois, e at a vida
sexual entre eles estava melhor agora. E a conversa continuou.
- Acho que tenho estado mais alegre, mas voc no imagina como

97
isso me assusta. E sabe por qu? porque no quero perder tudo de
novo. Seja por acaso, seja o destino, seja porque no mundo h pessoas
irresponsveis e ms, no importa o porqu. O fato que tenho medo
de, de repente, virar tudo um nada. Quando comecei a terapia, j tinha
tido a experincia de ver como tudo se transforma de uma hora para
outra. E ate j estava conformada com algumas coisas, ainda que eu
no estivesse feliz. Quando era garota, sabia bem o que eu queria da
minha vida - quero fazer isto, quero aquilo, assim que eu quero ser -;
verdade que, hoje eu vejo, eu pensava e queria um monte de
bobagens, mas o que importa que eu via um rumo, eu tinha uma
direo. Mas fui ficando mais velha e passei a ver que eu me iludia
demais. E quanto mais a gente se ilude, mais a gente sofre. Voc vai
pensar: mas por que ela esta falando isso agora? O que estou querendo
dizer que tem hora
130
em que me surpreendo fazendo planos de novo. Nem contei ainda pra
voc, mas ando pensando em fazer ps graduao; e, mais uma coisa,
eu e minha amiga pensamos tambm em montar um tipo de curso para
ser oferecido a funcionrios de empresas. Enfim, so idias. No sei se
isso d certo. Mas sabe de urna coisa? Eu ando animada. D at um
pouco de medo de dizer, mas tenho me sentido feliz. uma sensao
boa, e no quero perder isso por nada deste mundo.
- Mas alguma coisa esta ameaando voc?
- No. No h nenhum sinal de perigo rondando
a minha vida. difcil explicar pra voc. Por um lado, tenho certeza de
que, durante este tempo de terapia, fiquei mais forte, consegui alterar
minha vida, fiz coisas que nem eu esperava; nossa, s rindo mesmo -
pois no h de ver que at casei com o meu marido? -; mas por outro
lado, no sei se porque eu penso mais agora, tambm percebo que

98
fiquei mais fraca. Tenho a impresso de que tudo de bom pode acabar,
assim... num sopro.
- Voc deve estar sentindo como a existncia frgil, como a gente
pode ser atingida por coisas que surgem sem pedir licena, que vo
chegando sem mais nem menos, no ?
- Sabe, eu penso em doenas, em morte - que horror -, meus filhos
so a coisa mais importante, ou em
131
outras coisas, como: e se meu marido se interessar por outra? Sei l,
no sei bem o que pode acontecer, mas a impresso esta: no se
encante muito porque voc no sabe se isso vai durar; tenho vivido
com esta impresso, de que no h garantia de nada, que eu posso per-
der o que tenho. Talvez por isso, outro dia tive medo de que voc
deixasse de estar do meu lado. Seria o comeo das perdas. E sinto que
agora eu no posso perder nada.
- Eu estou do seu lado tambm neste momento que voc esta
vivendo. S que, mesmo que eu seja sua aliada, como voc disse outro
dia, no posso, e ningum pode dar garantia da estabilidade da sua
vida. Cada um sabe o que bom e faz o que pode para que tudo seja da
melhor forma possvel; a gente faz como se tivesse garantia, sabendo
que no tem. As coisas no precisam ser estragadas por antecipao
pelo fato de que elas podem no durar; mesmo porque elas tambm
podem continuar boas. Sei que no fcil existir compreendendo a
fragilidade das coisas. Mas talvez seja isto mesmo que as torna to
preciosas.
- Mas o triste exatamente isto: serem to preciosas e to frgeis.
- Voc tem razo. Isso no s triste como a grande ameaa que a
gente vive: a possibilidade da perda daquilo que se gostaria de
preservar para sempre.

99
132
- Esse assunto incmodo. Mas foi bom a gente ter falado sobre
isso hoje. Eu andava achando que estava meio maluca por pensar
coisas desse tipo. Tem gente que fala que pensar isso atrai desgraa.
Mas a verdade esta: no tenho poder de garantir nada mesmo.

Algumas semanas mais tarde, ela disse:


- Tive ontem um sonho to bonito, mas o sentimento durante o
sonho era de muita tristeza. Voc j viu um filme sobre a vida do Villa-
Lobos? Ns vimos outro dia o video, l em casa. H uma cena em que
muitas crianas esto reunidas, acho que num estdio, para uma co-
memorao. Elas seguram bales, bexigas coloridas, e depois soltam.
Acho que fiquei influenciada por essa cena e acabei sonhando com
urna coisa parecida. No sei como que comeou esse sonho, s sei
que um dia de muito sol, e vejo uma infinidade de bexigas de todas as
cores que vo subindo do cho. uma viso super linda, mas uma
coisa angustiante, porque elas vo para o ar, cada vez mais longe; no
sei onde aquilo tudo vai parar; mas, ao mesmo tempo, elas no somem
de uma vez; de um ponto em diante, so pontos coloridos distantes, e
eu cada vez mais aflita com aquilo. A sensao de um pesadelo.
A terapeuta trouxe de volta aquele sonho que ela contara havia
bastante tempo: aquele das ruas asfaltadas,
133
da aridez presente em tudo. Perguntou se ela percebia a diferena entre
os dois: neste, atual, havia a presena das cores, a beleza do momento,
mas ali estava tambm a facilidade com que as coisas podem se
esvanecer, podem se afastar da gente, indo para longe. E depois disse a
ela:
- Veja que a emoo triste, e at angustiante, que voc sente neste

100
sonho tem a ver com a sua experincia de j ter sentido o que , de um
momento para outro, perder os prprios sonhos coloridos de menina. E
tem a ver tambm com o que voc tem falado sobre o seu medo de
perder o que h de bom na sua vida hoje. Uma vez voc disse que no
enfeitaria uma festa de criana com bolas cor de cinza. O festivo, 0
bom da vida, parece que precisa de cores, acontece num dia de sol e no
chuvoso, como naquele outro sonho. Mas pode acabar, pode sumir. Isso
angustia. difcil viver sem a garantia de que possvel segurar para
sempre as coisas boas, no ?
- Sera que isso est ainda to presente pra mim?
Pensei que eu j estivesse aceitando essa histria de que a vida assim
mesmo, frgil!.
- A aceitao no uma questo de tudo ou nada.
A gente oscila mesmo diante de certas coisas que at podem ser
compreendidas, mas que o corao gostaria que fossem diferentes.
- Mas a gente vai ter de viver sempre assim?
134
- Acho que isso faz parte da nossa humanidade. E natural que se
queira conservar o que bom, e a gente se esfora para conseguir isso.
E preciso amadurecer muito para, embora querendo preservar para
sempre o que faz a gente feliz, compreender que isso no depende s
desse querer. As coisas podem vir a faltar. Perder tambm faz parte, e
isso faz sofrer.
- A outra opo seria a gente no querer nada, no se encantar com
nada, no esperar nada.
- Voc esta descrevendo aquela vida representada naquele seu velho
sonho cor de cinza.
- No, no quero. Isso muito ruim.
. - Talvez o segredo esteja em poder sentir o quanto a gente quer

101
aquelas coisas que tem, o quanto a gente ama certas pessoas, o quanto
elas so importantes, e isso tudo, no dia de hoje, e amanh de novo; em
sentir-se grato pelo que dado dia a dia; em tentar tomar a vida da
gente e dos outros, dia a dia, melhor. Acho que assim a gente sente que
a vida esta valendo a pena, sabe que a vida faz sentido, e comea at a
ver cores na vida.

Ainda varias vezes ela trouxe sonhos com o mesmo tema: coisas
que se perdem, que escapam. Um deles foi com um colar de coral: o
colar se desprende e cai no cho; em seguida ela v, de longe, que os
pedacinhos de coral, com aquela cor to bonita, esto todos
esparramados e
135
no ha quem consiga junt-los; depois que ela chora muito, aproxima-
se deles e se ouve dizendo: "Eu vou juntar tudo".
Nesse dia, ela comeou a dizer para a terapeuta o que ela havia
percebido no seu sonho.
- Houve um tempo na minha vida em que eu no queria nem me
lembrar das coisas que me haviam feito sofrer. Queria ficar longe delas.
Tudo o que eu tinha desejado, todos os meus planos estavam
esfacelados, estavam como os pedacinhos do colar do sonho,
esparramados no cho. E fui me distanciando deles. Sabe, eu tinha mes-
mo um colarzinho feito de pedacinhos de coral. Era muito bonito. Esse
colar est muito ligado minha adolescncia.
- To bonita e, num instante, toda arrebentada.
- E eu, depois, olhando de longe a minha vida, sem entender o
sentido de nada, com medo de sofrer mais. - Mas voc foi chegando
perto das coisas sofridas.
- Foi sofrido me aproximar; foi como aquele choro do meu sonho.

102
Mas depois consegui refazer muita coisa. Sabe, estou feliz hoje em
dia.
- Acredito. Acho que voc tem tido urna fora grande para fazer da
sua vida uma coisa boa. No seu sonho voc se ouve dizer: "Eu vou
juntar tudo". Percebe a fora disso que voc fala no sonho?
- Percebo. Mas voc tem estado comigo esse tempo todo.
136
Lembra-se daquele terapeuta que foi procurar o colega supervisor?
Eles continuaram suas conversas, e vrios assuntos surgiram. Um dia,
falaram do quanto comum aparecer nas terapias o tema do perdo;
alis, culpa e perdo.
- S que a pessoa nem sempre pe as coisas nesses termos. Mas
ela fala de um ressentimento, de uma magoa profunda com relao a
algum; mas o que h de diferente nesse tipo de ressentimento e que
ele absorve a vida da pessoa. Ela precisa ter sempre diante de si o
dano que sofreu; aquilo precisa ser sempre realimentado, embora seja
ela quem sofra ao se lembrar. E bvio que quanto mais prxima a
pessoa que a prejudicou, o ressentimento maior, pois ela esperava
mais daquela pessoa. Se for o pai ou a me, a coisa se complica mais
ainda. Voc j deve ter notado com que dor uma pessoa fala:
"Minha me no gostava de mim; meu pai no gostava de mim". Ela
sente que foi lesada em algo fundamental. E isso pode ou no ter sido
real, mas foi assim que ela experienciou as coisas. H gente que passa
a vida atormentada com essa questo, o seu sentimento de no ter sido
amada; difcil perdoar essa rejeio por parte de quem significa
tanto. E isso acontece, mesmo que se diga que esses significados,
essas expectativas com relao ao que devem ser pai e me so apenas
culturais.
137

103
Pois a gente pertence a esta cultura, a este tempo, a este mundo, em
que aquelas palavras tm significados muito especiais.
- Tambm acho. Mas no s a que existe dificuldade pra perdoar
algo. Tenho visto como difcil, nas situaes mais diversas, lidar com
as questes que envolvem culpa e perdoar ou no perdoar.
- A pessoa sente que foi vtima de algo que fizeram a ela, e ela no
merecia aquilo. Mas sabe de uma coisa o no-perdo e um sorvedouro
de energia. O no-perdo, como um m, atrai a existncia para ele e a
consome. O cuidado fica absorvido por aquilo de que preciso sempre
se lembrar, por aquilo que preciso vingar; e a vida fica presa.
- Mas h pessoas que no perdoam nada, e, apesar disso, a vida
delas vai em frente, so empreendedoras bem-sucedidas.
- E voc no sente nelas qualquer coisa de amargo? Esto felizes
at o momento em que se lembram daquilo que permanece como um
n. Um pedao da vida est amarrado ali, e tudo o que tem a ver com
aquilo que tema do seu no-perdo sentido como fonte de desgaste,
de amargura.
- E, percebo isso na terapia. E sempre difcil, porque a pessoa diz que
no h razo para ela perdoar, ela no merecia o que aconteceu. E gasta
boa parte da sua energia alimentando seu no-perdo.
138
- E difcil mesmo. Sem considerar os casos pessoais, voc j pensou
naqueles casos em que povos inteiros esto envolvidos? Como que um
japons pode esquecer a bomba atmica dos americanos? Como um
americano pode esquecer os mortos de Nova York? Como um judeu pode
esquecer os alemes nazistas? Como um afego pode esquecer os russos? E
isso se a gente se lembrar s de coisas ainda muito prximas, afora todos os
genocdios que j aconteceram.
- No ha como esquecer. Vendo de longe, fala-se de povos, e isso

104
parece uma abstrao, at que a gente se lembra de que so pessoas, que
cada mulher, homem ou criana tinha um nome. Essas pessoas mereciam o
que aconteceu com elas? O perdo no pode ser esquecimento.
- Talvez algumas coisas, ao contrrio, devessem ser sempre lembradas
para que no acontecessem mais; para que no mais acontecessem com
ningum. Quando o no-esquecimento vem impregnado de vingana, o que
se consegue impor a mesma crueldade a outras pessoas, cuja "culpa"
consiste em ter nascido em determinado lugar. Ser que a histria do
mundo precisa mesmo ser feita assim?
- No sei se precisaria, mas tem sido feita assim: um povo dizima o outro,
um imprio destri o outro. - Ser que a humanidade isso?
139

- Acho que isso da humanidade. Mas, ainda que em cima das


desgraas que os homens impem uns aos outros, por cima das
destruies, se algo resta do que ainda se chama mundo, se algo se
constri, porque h os que sonham com um mundo diferente. Esses
tentam, dentro do que possvel a eles, constru-lo. A propsito, voc
se lembra da foto de uma menina vietnamita que corria nua numa
estrada, toda queimada pela bomba de napalm que os americanos
jogaram em seu povoado? Essa foto foi tirada em 8 de junho de 1972 e
at hoje corre o mundo. Aquela menina e Kim Phuc, ento com nove
anos. O fotgrafo, Nick Ut, ganhou o Premio Pulitzer com essa
imagem. Os dois mantm contato ate hoje. Ele no s fotografou a
menina; ele levou a menina e outras pessoas, em seguida, a um hospital
das redondezas. Depois ela foi transferida para o hospital de Saigon,
onde passou quatorze meses e fez dezessete cirurgias por causa das
queimaduras. H pouco tempo, Kim Phuc, numa entrevista, disse que a
partir de ento comeou a sonhar em como ajudar outras pessoas. A
menina da foto, aterrorizada naquela situao bestial, trabalha hoje na

105
Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura
(Unesco). Voc no acha que isso diz alguma coisa sobre o perdo?
- Tem tudo a ver. E se voc for atrs de motivos "racionais que
justifiquem o perdo, fica difcil compreend-lo,
140
embora ele no seja irracional. Ele s compreendido quando se leva
em conta que a generosidade tambm pode ser uma caracterstica
humana. Perdo dado e recebido. Se voc ficar na discusso do
"merece" ou "no merece", voc no chega a compreender o perdo.
- E h outra coisa. preciso humildade para aceitar ser perdoado; e
isso vale tambm para o poder se perdoar.

Numa das vezes em que os dois terapeutas se encontraram, a


conversa foi mais ou menos assim:
- Curioso, a Daseinsanalyse, que enfatiza tanto o vir-a-ser, as
possibilidades que se desdobram sempre, a condio de sonhador, o
projetar-se do Dasein, a mesma que, ao partir da concepo do
homem como ser-para-a-morte, enfatiza a finitude humana.
- Acontece que esses so caracteres constitutivos do Dasein. No h
como conceb-lo sem fazer referncia a eles. E, na terapia, percebe-se o
quanto a vida humana constituda por isto: precisar ir em frente,
desenvolver-se, fazer planos, realiz-los e saber que sempre vai ficar
faltando. E vai ficar faltando porque nao se pode tudo e porque o tempo
da gente se esgota. Nao fcil saber que assim a vida; e no fcil
trabalhar com isso na terapia. Parece que se lida o tempo todo com
esperana e falta.
141
- Dasein leva consigo a falta, que perpassa sua temporalidade,
impregnando o passado, o futuro e o presente. Ele olha para o passado e v

106
que este nem sempre foi to completo: ele no foi tudo, no teve tudo, no
fez tudo o que queria. Faltou. Olha para o futuro, vir-a-ser. E, exatamente
porque falta ser, Dasein se projeta, sonha, faz planos. As possibilidades so
abertas, mas o realizar-se de algumas elimina outras. A possibilidade futura
da no-realizao daquelas outras pode ser antecipada como falta. Algumas
possibilidades jamais sero realizadas porque nao haver tempo. A morte
limita l na frente. Olha para o presente e v que a vida limita a todo
momento. Ele no pode ser tudo, no pode ter tudo, no pode estar
concretamente em todos os lugares ao mesmo tempo. As circunstncias e
as suas prprias escolhas impem limites. E no presente que ele sente as
perdas (o que ficou no passado), a ausencia (algum ficou distante), a
saudade (queria ver de novo), e diz: "Sinto falta"; e sente tambm culpa
(faltou ter podido ser melhor), e diz:
"Estou em falta". E no presente tambm que ele sente que seu tempo se
esgota, e diz: "Vai ficar faltando".
- Gente, falta demais, finitude de todo lado.
- Pois . Finitude que sentida seja como uma limitao da
possibilidade de ser tudo, seja como a possibilidade da total falta de ser,
isto , o poder no mais ser na ameaa do nada vivida na angstia. E,
ao mesmo tempo, aquele chamado para realizar a prpria existncia.
142
- Isso existir, isso ser-no-mundo. E com isso que a gente lida na
terapia.

Quanto terapia daquela moa, certo dia ela falou logo ao chegar:
- Ontem comecei a olhar minhas agendas antigas e sabe o que vi?
Ha trs anos que venho aqui na terapia. Vi l o dia da primeira
entrevista. Quanta coisa aconteceu nesse tempo! Neste fim de ano, o
meu maiorzinho vai acabar a pr-escola; vai haver uma festinha de for-

107
matura; eles j esto ensaiando. Sei que vou ficar muito emocionada.
Minha amiga comentou comigo que, quando a menininha dela acabou o
pr, ao ver a menina no palco, ela chorava de emoo; seu marido at
falou: "Que isso, ela no est terminando a faculdade!". Mas me
assim, no ? que a gente v que um pedacinho da vida dele j ficou
pra trs; ele vai come<;ar a primeira serie e entra numa outra fase da
vida. No vai mais ser o meu menininho. E um pedao da vida da gente
tambm j foi. Comea outro ciclo.
- E assim mesmo. Certos acontecimentos marcam bem a passagem
do tempo. Hoje isso est muito presente para voc.
- E, fico boba de ver como o tempo esta passando rpido. Sabe, de
verdade, eu me surpreendi ao ver que estou aqui com voc h trs anos.
Vim porque me sentia
143
muito irritada com as crianas; no pensei que fosse acabar falando de
tantas outras coisas, enfim, voc sabe: a questo no era com as
crianas; eu estava mal comigo. Muita coisa se modificou durante esse
tempo. Mas tem hora que umas coisas ainda me pegam forte. Outro dia
meu pai esteve em casa no aniversrio do meu pequeno. Ele sempre vai
aos aniversrios. Mas nesse dia me dei conta de como ele envelheceu.
Meu pai era mesmo bem mais velho que os pais das minhas amigas.
Ele no acompanhou as mudanas que foram acontecendo. Ele era
sempre muito rgido. Lembra de quando passou Gabriela na televiso?
Ele no me deixava ver a novela; segundo ele, a novela era muito
apimentada pra uma mocinha da minha idade. Eu s via nas casas das
outras meninas ou quando ele no estava em casa. Coitado do meu pai.
Ele no tinha mesmo como agentar o que falaram de mim. No que
isso desculpe a surra que ele me deu. Pronto, cheguei aqui to bem
hoje, e j estou chateada. s comear a me lembrar disso. Sei que,

108
mesmo tendo se casado depois que se separou de minha me, e vive
bem hoje em dia, ele sente falta de mim e do meu irmo. A mulher dele
at falou pra mim outro dia: "Voc precisa vir mais vezes visitar seu
pai". Eu sei que talvez ele sofra por isso. Mas tambm, quem mandou
ele no saber se controlar naquele dia? Eu no merecia o que ele fez.
Essa lembrana sempre me deixa mal.
144
- Voc no pode perdoar seu pai?
- A gente j falou sobre isso. Um dia voc me perguntou se eu no
podia perdoar a menina imprevidente que eu tinha sido, lembra?
Foi quando eu disse que sentia tambm uma pontinha de culpa.
Mas a diferena e que eu era uma menina. Um adulto j deve saber
o que faz. No sei se ele merece perdo.
- E voc se lembra do dia do seu casamento, daquela frao de
segundo em que, ao passar por ele na igreja, voc s se lembrava do pai
bom que ele tinha sido? E voc me disse que ali no havia lugar para
mgoa. Lembra?
- Acho que disse isso sim, pois era assim mesmo que eu me sentia.
- E, naquela hora, o que voc sentia se confundia com perdo. Mas
pode ser que no fosse s confuso. Pode ser que o perdo estivesse
comeando a se instalar. E sabe por qu? Porque naquele momento a
sua vida estava plena. Voc no queria estragar aquilo ficando presa
numa coisa que foi to ruim no passado. E vai ver que perdoar e isto
mesmo: no ficar preso l atrs; e alguma coisa que solta, que liberta,
que faz at parecer que a gente saiu da realidade - como voc disse um
dia sobre aquele rpido momento na igreja. Lembra-se disso? Ser que
no era a realidade que estava diferente mesmo? Ser que a realidade
no pode ser diferente?
145

109
- Como voc se lembra do que eu falei?
- Eu me lembro porque me chamou a ateno ver o quanto voc
estava emocionada ao dizer essas coisas. Mas acho que s agora
que sua vida ja caminhou mais, talvez voc possa compreender o
que voc mesma dizia naquele dia. As coisas precisam de tempo. E
aqui est de novo o tempo de que voc estava falando quando che-
gou hoje.
- mesmo. Nada como o tempo para transformar as coisas.

Algumas semanas depois, j mais perto do final de uma sesso, a


moa disse que tinha ido a casa de seu pai, pois sua mulher lhe havia
telefonado dizendo que ele estava com urna gripe muito forte, meio
abatido. Como a escola de ingls onde ela da aula perto de l, aprovei-
tou e foi v-lo. Eles tomaram lanche juntos; a mulher dele fez um bolo
delicioso. Conversaram sobre a poltica, sobre as crianas. Da o assunto
passou para escola, criao de filhos.
Ela contou para a terapeuta o rumo que a conversa entre eles seguiu.
- Num certo momento, embora no tivesse sido a minha inteno
quando fui l acabei falando pra meu pai: "Lembra, pai, da surra que
voc me deu uma vez? Nossa, que horror foi aquilo! Parece que sinto a
dor at
146
hoje. E o pior que voc no tinha razo. O que e que aconteceu com
voc naquele dia?". Ento, nessa hora, a mulher dele fez um sinal pra
que eu no continuasse com aquela conversa. Mas foi ele quem
continuou e disse: "Filha, tambm no sei o que andava acontecendo
comigo naquele tempo; eram preocupaes demais, um nervosismo
sem conta. Eu me arrependi logo em seguida. Sempre evito pensar
nisso, porque no d para se consertar o que j ficou para trs. Sei que
foi um exagero meu. Vamos falar de outra coisa agora".

110
A terapeuta permaneceu em silencio, e ela continuou:
- Depois eu me toquei; acho que no era uma boa hora pra falar
dessas coisas com ele. De verdade, no fui l a fim de perturbar meu
pai. Mas quando vi j estava falando. Acho que essa pergunta estava
entalada havia muito tempo. Tambm, se for esperar a hora boa pra fa-
lar, essa hora no vai chegar nunca. Do lado dele, ele no tolera essa
lembrana; do meu lado, sempre preferi fazer de conta que j tinha
esquecido. S sei que falei. Por um momento ficou uma situao meio
ruim. E a mulher dele: "Quer mais bolo?". E eu: "No, obrigada". Eu
me levantei e fui at a cadeira em que ele estava sentado e dei um beijo
na testa dele. Com as duas mos ele segurou a minha e me disse:
"Obrigado ... , princesa".
147
Ela estava muito emocionada ao contar isso, e a palavra princesa
saiu com dificuldade. Ela disse ento:
- Era assim que ele me chamava. Que saudade eu tinha disso!
A terapeuta tambm estava emocionada, e ficaram em silncio por
algum tempo.
Ela falou, depois:
- No houve explicaes, mas em algum nvel vocs se entenderam
naquela hora; alguma coisa foi recuperada.

bom nos lembrarmos de algo. Embora os momentos de terapia


dessa moa trazidos aqui em nossa conversa tenham privilegiado os
assuntos que, como ela dizia, tinham a ver com aquele "mexer em
coisas velhas" da sua vida, claro que sua terapia nunca se reduziu a
tratar s desses temas. A vida, como sabemos, nao para. Ela nao espera
que algumas coisas estejam resolvidas para que outras se apresentem
pedindo cuidado.

111
Muitas vezes ela comentou sobre sua me, sempre muito amiga,
procurando ajud-la, mas mal dando conta dos prprios problemas.
Parece que hoje ela quem precisa de ajuda. Seu irmao foi tambm
lembrado muitas vezes, como o companheiro de infncia, como uma
pessoa com quem ela pode contar. Sua amiga, aquela das tradues, que
a levou para dar aulas - trabalho esse que est andando bem -, aparece
freqentemente em
148
suas conversas. Seu marido e o da amiga se conheceram e, algumas
vezes, os dois casais saem para jantar.
Algumas coisas complicadas tambm apareceram.
Foi preciso lidar com situaes um pouco difceis com uma colega da
escola de ingls, que se sentiu preterida quando as aulas foram
oferecidas a ela.
Algumas vezes, tambm, ela se queixou do marido, embora,
segundo ela, a vida deles seja agora muito melhor. Mas, diz ela,
ningum se modifica completamente.
Ela gostaria de sair mais, pois atualmente eles tm uma bab que
pode ficar com as crianas. Mas, geralmente, ele esta cansado para sair
a noite, porque trabalha demais no consultrio, no hospital e ainda faz
um doutorado. Ela fica chateada com isso, j discutiram; mas ele diz
que, no momento, a vida dele tem de ser assim e ela precisa ter
pacincia. Mas, por outro lado, ela sente muito orgulho pelo trabalho
dele: ele extremamente cuidadoso com seus pacientes e todo mundo
diz que um dos mais competentes na sua especialidade. Ao comentar
sobre isso, um dia ela falou:
- No fundo, acho que eu queria ter tudo numa s pessoa. Claro que
sei que no possvel!. s vezes, vejo uns outros amigos dele, e tem
at um cara que trabalha tambm com tradues, e ento eu penso - me

112
da um pouco de vergonha de falar isto -: Ah, se eu ainda fosse a
namoradeira que eu era quando garota". Mas passou esse tempo. Eu
amo o meu marido.
149
- Uma pessoa a quem no faltasse nada! Ou, ento, procurar sempre
algo em outras pessoas. Seria assim? - A primeira coisa no existe: uma
pessoa no pode ser tudo. E a outra eu no quero.
- Pois , a gente procura em algum aquilo que se considera mais
importante como caracterstica: beleza, atrao fsica, cultura, bom
humor, carter; mas pode ser preciso abrir mo de alguma coisa.
Alguma falta sempre vai haver. O importante a gente saber se gosta da
pessoa da maneira como ela .
- No meu caso, vejo que h outros homens interessantes, mas dele
que eu gosto.

Recentemente, aconteceu o seguinte. Ela chegou e foi logo dizendo:


- Sabe quem eu vi sbado? Voc nao vai acreditar.
Fui a uma festa e o "maledeto" estava l. -Quem?
- Ora, aquele canalhazinha do meu colgio. Eu o vi na hora em que
entrei na casa. Ele estava num canto da sala. Logo vi uma amiga
que estava numa sala ao lado e puxei meu marido para irmos falar
com ela. Ele sabe dessa histria toda, mas no conhece o cara.
Fiquei assustada com a surpresa, mas aos poucos passou o susto. De
onde estava, eu o enxergava, e enquanto conversava com ela pude
reparar bem nele. Continua muito bonito; deve malhar todos os
dias. Parece que o tempo no passou
150
pra ele. Estava com uma menina linda, esse tipo de aspirante a modelo.
E, at nisso, parece que o tempo no passou pra ele. E voc sabe como

113
mulher, eu queria saber por que ele estava na festa, mas no queria
perguntar diretamente pra minha amiga. Ento, perguntei: "Quem
aquela garota ali?". E ela disse: "Pra falar a verdade, no sei; ela veio
com o fulano. S sei que ele convidado do aniversariante. o chefe
dele, e chefe tem de ser convidado, n?. E eu disse:

claro!". E demos risada.


- E alem do susto, voc sentiu alguma outra coisa?
- Olhe, sempre imaginei que, se um dia encontrasse, eu ficaria
muito emocionada; sentiria o dio que j tive dele ou, quem sabe,
at alguma sobra do amor que eu sentia naquele tempo. Mas sabe
de uma coisa? Parecia que ele era personagem de alguma histria
que me contaram, parecia que ele nunca fez parte da minha vida.
Eu o olhei durante algum tempo, observei seus gestos, vi seu modo
carinhoso com a menina e pensei: "Conheo bem isso". Naquela
poca eu tinha quinze anos; a garota que estava ali no devia ter muito
mais que isso. Voc perguntou se senti alguma -coisa. Eu senti foi pena
da menina.
- E depois, como foi ?
- Depois pensei: vou l. E, quando vi, eu j estava indo em direo
sala onde ele estava. Meu marido continuou conversando com
algum. Cheguei porta e
151
percebi que ele nao me reconheceu imediatamente. Dos quinze anos
para c claro que mudei. Eu conhecia as pessoas que estavam perto
dele, mas ningum era muito amigo. Entao, dei s um oi geral e fiquei
l parada, com um copo de vinho na mo. S ento ele me reconheceu.
Levantou e veio falar comigo. E me disse: "Olha quem est aqui; nunca
mais vi voc desde que saiu do colgio; incrvel, est ainda mais bonita
do que antes; como esta voc?". Respondi calmamente: "tima; d

114
licena, meu marido esta me esperando ali; eu fiquei de levar este vinho
pra ele". Voc acredita que, tantos anos depois, s havia isso pra ser dito
a ele - eu ia levar um copo de vinho pro meu marido -, mas com que
prazer eu disse isso! Sa dali e voltei para a outra sala, devagar, toman-
do o vinho que eu levava. Era como o vinho de uma comemorao.
Quando fui pra perto de onde ele estava, no sabia claramente o que eu
queria fazer l. Mas depois de ter falado com ele, soube exatamente o
que fui fazer. Eu precisava encar-lo. Precisava v-lo de perto pra ter
certeza de que estava livre dele. E precisava tambm que ele me visse
pra ele saber que no acabou comigo. O que o tempo faz com as coisas!
- E o passar do tempo propicia o espao para que o
significado das coisas se desdobre. Um acontecimento se d
num determinado dia, numa determinada hora, mas o que ele
vai significar para a pessoa no se esgota
152
2.
ali. O significado se prolonga, e pode mudar enquanto o tempo passa.
Um dia, aquele rapaz foi para voc um grande amor; depois, foi o
causador de um grande sofrimento. E hoje, o que ele para voc?
- Acho at estranho dizer isto, pois sofri tanto por ele. Mas hoje ele
nada. E a at me sinto mal, pois eu penso: "Ento por que sofri
tanto? Pra chegar a este dia e ver que ele nao significa mais nada?
Entao, por que ja no vi isso l atrs?".
- Porque foi atravs dele que voc, adolescente, conheceu o melhor
e o pior da vida. No d para se dizer que isso tenha sido nada. A sua
histria tem a marca dele, embora hoje ele signifique outra coisa para
voc. Eu acho que, ao dizer que ele no significa mais nada, voc esta
querendo dizer que ele j no tem nenhum poder sobre voc, nem de
seduo, nem de estragar a sua vida. Mas, de qualquer forma, ele
significa algo, sim: algum que j teve esse poder e para quem voc
pode olhar agora e dizer: "Eu sobrevivi, a minha vida foi em frente".

115
Ele significa URV ponto de inflexo: a partir dele deu-se uma mudana
brusca na direo da sua vida.
- isso mesmo. Aquele cara na minha frente, nesse dia da festa, me
fez ver o quanto eu cresci, como me distanciei daquela mesquinharia
toda. Por falar em mesquinharia, me lembrei agora de uma coisa em
que nunca mais tinha pensado; acho que eu no tinha contado
153
aqui que, naquela ocasio, o meu grupinho mais amigo tinha posto nele o
apelido de coisa-ruim, e depois o apelido virou o coisinha. Agora percebo o
quanto meus amigos viam nele a sua capacidade de fazer mal e, ao mesmo
tempo, a pouca coisa que ele era. Mas o que interessa voc tem razo,
que ele entrou mesmo na minha vida, fez parte dela. E hoje ele representa
pra mim, sabe o que? Representa o poder que uma pessoa tem de estragar a
vida de outra e, ao mesmo tempo, representa um marco que me faz lembrar
do poder de renovao que a vida tem.
- Talvez fosse isso que voc estivesse comemorando ao tomar aquele
vinho, no ?
- At que essa sua idia boa. Quando fui em direo a ele naquela
sala, peguei aquele vinho da bandeja que uma moa estava levando, sei l
por que. Era s pra nao ficar com as mos abanando. Estava muito
insegura. Na hora, inventei aquela histria: eu ia levar o vinho pro meu
marido. Queria que ele soubesse que eu estava casada, que estava feliz,
apesar dele. Mas foi o melhor vinho que j tomei. Foi de fato uma
comemorao.

Bem, voc ainda se lembra daquela moa que um dia dizia para a
terapeuta: "Mas est tudo certo, tudo no lugar, tenho tudo, mas sabe como
, fica sempre uma coisa que eu no sei bem o que , mas no me falta
nada; claro que tenho uns probleminhas com as crianas, voc sabe o que

116
criana, mas isso todo mundo tem, nao ?".

154
gostoso imagin-la, tempos depois, tomando aquela taa de vinho.
Nos a vimos, tempos atrs, sem querer pensar no passado - guas
passadas no movem moinhos, como dizia sua me -; vivendo um
presente inspido - o que interessa o dia de hoje, e, por falar em hoje,
no sei o que vou mandar minha empregada fazer para o jantar ... , vida
de dona de casa essa -; sem sonhos para o futuro - quem sabe se meu
marido resolve viajar comigo um pouco pra qualquer lugar a... o resto a
gente vai levando.
No decorrer dessa terapia, nos a vimos, aos poucos, se apropriando
de sua histria: desde a menina alegre cuja vida, de um momento para
outro, tomou um rumo to inesperado e sofrido, at a mulher capaz de,
novamente, desejar e realizar coisas importantes para ela.
Ns vemos hoje que a h um percurso em direo a algo a ser feito,
mas so muitos os momentos de retomada do passado.
Em alguns momentos, o que a terapeuta faz permanecer com ela
nas suas lembranas dolorosas, pois estas no devem ser negadas,
porque fazem parte da sua histria e neg-las seria perder o contato
consigo mesma.
Em outros momentos, retoma com ela as suas questes sobre a
lgica daquilo tudo, sobre o merecer ou no o sofrimento, sobre o acaso
ou o destino, percebendo sempre que essas nao so curiosidades
intelectuais, mas que
155
a sua pergunta principal subjacente sempre aquela: "Por que eu?".
E, em todo o tempo, ela mantm para a paciente a perspectiva de
que sua vida est aberta.

117
Voc poderia perguntar se toda a mudana na vida dessa moa se
deve terapia. No possvel afirmar isso. Alis, parece que ela
demonstrava desde menina uma fora, um modo de ser decidido para
lidar com certas coisas. Isso j se manifestava quando ela resolveu
terminar aquele namoro - "um dia eu pensei: preciso acabar com isto,
no isto que eu quero pra mim" -; depois, vemos sua firmeza ao
aceitar o convite da amiga para fazer as tradues alguma coisa
dentro de mim disse: vai em frente" -; aparece a mesma resoluo
quando, ao conseguir finalmente falar com o pai sobre a injustia que
ele cometeu, e, ao ver que ele no tinha condies de conversar sobre
aquilo, fez apenas a coisa mais simples e talvez a nica que coubesse ali
como desfecho, como ultrapassagem de uma situao que ela sentiu que
no fazia mais sentido manter - "eu me levantei e fui at a cadeira em
que ele estava sentado e dei um beijo na testa dele" -; isso est tambm
naquele sonho em que ela se ouve dizendo diante dos pedacinhos do
seu colar de coral - "eu vou juntar tudo".
E aquela amiga que aparece depois de tanto tempo e possibilita a
ela a volta a uma profisso? E o seu marido,
156
descrito no comeo como algum meio desligado, que nao era dado a
romantismos, e que, entretanto, corresponde ao desejo dela de ter o
casamento to sonhado? A esto, no mnimo, dois fatores que
favoreceram a retomada de seus sonhos, alm de todas as circunstncias
que ns desconhecemos e que podem t-la ajudado.
Mas, certamente, a terapia tem sido a ocasio em que suas queixas,
seus medos, suas esperanas tm encontrado ouvidos.
No comeo, ela vem para a terapia completamente sem vigor, sem
compreender o que se passa com ela "Mas sabe como , fica sempre
uma coisa que eu no sei bem o que ... tem hora que eu no sei o que

118
me d, parece que eu nao agento". Em outros momentos, ela se v
confusa, precisando compreender o porqu de certas situaes - "Por
que aconteceu aquilo comigo no colgio? Por que meu pai me tratou
daquela forma?". Em outras horas, ela tem medo de perder o que h de
bom em sua vida - "Tenho vivido com esta impresso de que no h
garantia de nada, que eu posso perder o que tenho".
No s faltavam a ela respostas para tantas coisas; ela havia
tambm passado muito tempo sem se aprofundar em suas questes.
A terapia para ela o espao favorvel para a coragem de fazer as
perguntas. Porque terapia tambm isto: ocasio em que a pessoa, sob
as mais diversas formulaes,
157
faz as perguntas essenciais do ser humano pelo significado das coisas.
O que ? Por qu? Para que?

Quando tais perguntas so feitas na terapia, aquilo pelo que elas


indagam diz respeito ao que mais de perto toca a existncia da pessoa
que pergunta, ou seja: aquilo tudo pelo que ela foi, e ou pode vir a ser
atingida, e os prprios sentimentos, mais claros ou mais confusos,
relativos a si mesma e ao outro o que isso que eu sinto? Por que
ser que sinto isso? Por que as pessoas me maltratam? Por que a vida
faz isso comigo? O que me espera no futuro? Por que no consigo ser
como eu gostaria? O que falta em mim? Por que eu fao o que sinto
que no bom pra mim? Por que maltrato a pessoa que amo? Por que
tudo d errado comigo? Por que sou eu que agento tudo dos outros?
Por que tenho de ser este peso para os outros? Por que me abandonam?
Por que ningum me entende? Por que a morte? E o que depois? Para
que a vida? Para que serve o que fao? Ser que vale a pena viver?
Para que? Para que esse esforo todo? Se tudo acaba, ento para que?

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Por que fao perguntas desse tipo? O que significa tudo isso? Enfim,
cada um pergunta pelo seu particular "ser-no-mundocom-os-outros" .
A terapia toma-se o espao propcio para as indagaes, porque o
terapeuta as legitima e amplia. Paciente e
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terapeuta se empenham num trabalho de procura, que vai em busca de
compreenso da existncia do paciente. E nesse caminho sincero de
procura que o paciente pode vir a aceitar que: para algumas perguntas
nao h respostas; o fato de no haver resposta no justifica que a vida
pare de se desenvolver; para se desenvolver, para ir em frente, a vida
necessita de sentido; e entre incompletudes e incertezas que esse
sentido poder ser descoberto ou ento retomado.

Se prossegussemos, esta seria uma conversa sem fim. Agora com


voc continuar o assunto. Que outros encaminhamentos poderiam ser
dados nos exemplos trazidos aqui? O que mais voc pensa sobre
terapia?
Quero ainda contar uma coisa pra voc: quanto quela moa, passei
aos poucos a querer bem a ela, como se ela existisse mesmo. De um
ponto em diante, ela passou a ser o paciente que pode estar no
consultrio de qualquer um de ns.
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