Harmonia Coerciva

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09/11/2016

HARMONIACOERCIVA

HARMONIACOERCIVA
Aeconomiapolticadosmodelos
jurdicos(*)

LauraNader

Introduo
Osantroplogossubestimaramsistematicamenteopapeldasideologiasjurdicasnaestruturaoou
desestruturaodacultura.Oexemploqueescolhiparadissecarnestetrabalhoautilizaodomodelolegal
de harmonia como uma tcnica de pacificao. A seguir, delinearei minha compreenso da ideologia da
harmoniaedosfuncionamentoscoercivosdestaemtrsambientes:emprimeirolugar,entreoszapotecase
outros povos colonizados, como exemplo do controle cultural ou da pacificao no primeiro contato em
segundolugar,nosEstadosUnidos,duranteumperododevinteanosdemudanascrescentes,de1975ata
atualidade, a criao e utilizao da Alternative Dispute Resolution (ADR) ["Resoluo Alternativa de
Disputa"],ouestilosconciliatrios,comopartedeumapolticadepacificaoemrespostaaosmovimentos
da dcada de 60, que lutavam pelos direitos em geral e, finalmente, o cenrio internacional, para onde
migraramasmesmastcnicasdaADRparalidarcomasdisputasinternacionaisrelacionadasarios.
Osantroplogosexaminaramoconflitoemmuitosambienteseefetivamentedesenvolveramteorias
sobreoconflito.Noentanto,nochegamosadispordeteoriascompletassobreossignificadosdaharmonia.
Asetnografiastomaramaharmoniacomofatoconsumadoaobuscarexplicaradesarmonia.Recentemente,
observadoresdareadaantropologialegallevantaramquestessobreograuemque,enquantoobservadores
cientficos,fomoscapturadospelossistemasdepensamentodenossasprpriasculturas,deixando,talvez,de
reconhecer que os estilos de disputa so um componente das ideologias polticas, sendo, freqentemente,
resultado.deimposiooudifuso.Devidociladadosmodelospreferidos,culturalmenteconstrudos,tem
sidodifcilparaleigosecientistassociaisexaminarcomisenoosmodelosdeharmonia.Realmente,como
cada vez mais exemplificado, a harmonia e a controvrsia fazem parte das ideologias num mesmo
continuumenoso,necessariamente,benficasouadversas.
Oszapotecaseastcnicasdecolonizao
InicieiotrabalhodecamponasmontanhasdeOaxaca,emSierraMadre,Mxico,numvilarejoque
aindaestavaserecuperandodeumconfrontoentreumpequenogrupodeproslitosprotestanteseogrupo
majoritriodeparoquianoscatlicos.Orancoraindaestavapresentequandoachegueiem1957noentanto,
emtodaequalquerocasioinformavammesobreaconcrdiaimperantenovilarejo.Acontradioentreo
conflitorealeosvaloresdeharmoniaestevepresentedesdeoincio.Umafachadaslidaeraapresentadas
pessoasdeforaeofatoerabastantecomumnaquelesvilarejosdeOaxacaenvolvidosemdisputasinternas.
Eraminhafunoexplicaradiscrepnciaentreosdadosqueeucoletava,queapontavamprincipalmentepara
pessoas em conflito, e a caracterizao zapoteca mexicana da prpria cultura como sendo conciliatria e
harmonizadora.Eraparticularmenteimportanteexplicaressasideologiasdaharmonia,vistoqueaideologia
da harmonia transformouse numa caracterstica constante dos estudos antropolgicos da disputa em
diferentespartesdoglobo.Seriaporsereminerentementemaispacficosqueospovosnativosfalavamem
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harmonia e preferiam solues de compromisso? Ou quem sabe os antroplogos, como diziam alguns
crticos,haviamaceitadoovisdurkheimianosobreaharmoniadeinteresseseasmetascompartilhadas?
OsvilarejosmontanheseszapotecasdeRincnqueestudeiforamorganizadospelaCoroaespanhola
para serem politicamente independentes, autosuficientes e endgamos, permanecendo livres apenas na
medida em que so capazes de se administrarem. Os vilarejos com conflitos so mais vulnerveis
interferncia do Estado, por isso os tribunais zapotecas so lugares onde se constroem imagens do mundo
externoeondesedeclaraaautonomiadovilarejo.Disputarnodizrespeitoapenasasolucionarproblemas,
mastambmformaodeideologias.
Aofalarsobreseustribunais,oszapotecasmuitasvezesafirmamque"Umacordoruimmelhorque
uma boa briga". No fundo, o estilo harmnico, bem como as ideologias relacionadas, so, possivelmente,
acomodaesinternasconquistaedominao.medidaquecomeceiaacompanharaidiadoconceito
deharmonia,particularmentedomodelolegaldeharmonia,chegueiconclusodequeomodelolegalde
harmonia talvez tivesse sido introduzido pela Coroa e seus missionrios como instrumento de pacificao.
Depois,porsuavez,elepassaraafuncionarparaosindgenascomoinstrumentoderestriodaintromisso
do poder externo, superordenado. Nessa perspectiva, o exemplo zapoteca apareceria como contra
hegemnico:sosuastcnicasdecontroledopoderdoEstado(Nader:1990).
Quandoostericosfalamemhegemoniaoucontrolecultural,geralmentenoestodiscorrendosobre
todaacultura,mas,maisexatamente,sobreaquelapartedaculturaconstrudaemdeterminadomomentoe
queseretiramaisoumenoscomoseretiramascolniasdepessoasquesetransferemparaterrasdistantesou
nelassefixam.NaCasteladosculoXVIoacordoeraomeiopreferidoeidealparaacabarcomasdisputas.
Acreditavase que aes judiciais eram estranhas a f crist. Provavelmente os missionrios espanhis
levaramessaidiaparaoNovoMundo,aopassoque,segundooshistoriadores,aquelamesmapocaviuum
crescimentodascondutasantagnicasnaEspanha.Seriaprecisoqueeuexaminasseasteoriasdaharmoniae
dacontrovrsiaparaverse,comoequandoosmodelosjurdicosdeharmoniaforamusadosparadominaros
povosatravsdesuasocializao,visandoaconformidadenoscontextoscoloniais.
Volteiaatenoparaasetnografiasclssicassobreasleisnasantigascolniasbritnicasdafricae
paraasetnografiasdasregiesdaPolinsiaedaMicronsianooceanoPacfico,buscandoasligaesentrea
evangelizao crist e as leis. O que achei, no incio, foi indicativo das observaes recentes dos
antroplogos:emprimeirolugar,queosmissionriossodosmaisambiciososcolonialistasemseudesejode
penetrar em todas as facetas da vida cultural e, em segundo lugar, que os antroplogos haviam tratado os
missionrioscomopartedocenrio,algocomparvelprecipitaopluviomtricaeselevaes,eportanto
perifricoparasuapesquisa.0examepreliminarfoiumtormento.Masumhistoriadordarealegal,Martin
Chanock (1985), foi quem sintetizou os dados sobre a presena missionria na Africa a partir de 1830,
revelando as primeiras ligaes entre as leis locais e as misses crists. Chanock usa o termo "justia
missionria" para chamar a ateno para o fato de que, desde o incio do sculo XIX, os missionrios
estavam fortemente envolvidos com a soluo de disputas, de acordo com a interpretao vitoriana da lei
bblica, que eles geralmente adequavam aos procedimentos ingleses, tal como os conheciam. Segundo
Chanock,osmissionriosgostavamdopapeldepacificadoresedepromulgarojulgamentocristoe,coma
colonizao,ostribunaisafricanosevoluramparaumalegislaoenfatizandoaconciliaoeoacordoque
funcionava apoiada em princpios da ideologia crist da harmonia, algo que mais tarde os antroplogos,
acharamqueeraodireitoconsuetudinrio.
O quadro se torna mais claro quando examinamos materiais da regio do Pacfico. Novamente, os
missionrioslchegaramnadcadade1820,enquantoosantroplogoschegarammuitodepois.Noentanto,
a pesquisa antropolgica recente comeou a documentar o trabalho contemporneo dos missionrios ao
influenciar as mentes e os processos de disputa dos povos nativos. Os melhores materiais so os da Nova
Guin,queofereceminsightseaspectosespecficossobreaformacomoaintroduodamoralidadecrist
(colonizao mental) afeta o processo de disputa, desse modo reestruturando a cultura e a organizao
nativas.OexcelentetrabalhodeMarieReay(1974)mostracomoaharmoniacoercivaconcorreparasilenciar
ospovosquefalamouagemdeformairada.Elanoscontaque:"Asmissestiveramumaparticipaoao
pacificarosclsguerreiroseaoproibiraviolncianasrelaesinterpessoais".difcilparaosetngrafos
compreender a colonizao mental, visto que esta acontece de forma vagarosa e crescente durante muitos
anos. Talvez a publicao mais penetrante tenha sido a anlise de Edward Schieffelin, de 1981, sobre a
retricaevanglicaesuasvinculaescomosprocessosdedisputa,ondeeleenfatizaafunodaretrica
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como "o veculo pelo qual a mensagem transformada em uma construo social sobre a realidade".
Encontramosexemplosmaisparaooeste,emqueo"Estado",travestidoemCompanhiaBritnicadasndias
Orientais,promoveuaarbitragemeoacordo,maistardedenominadosjustiapanchayathojegeralmente
aceitacomopretendendo,emtermospolticos,apacificao,ouumsilenciamentodapopulao.Conclu,a
partir desse trabalho comparativo, que altamente provvel que a ideologia da harmonia faa parte do
sistemadecontrolehegemnicoqueseespalhoupelomundotodocomacolonizaopolticaeuropiaea
evangelizaocrist.
ResoluoalternativadedisputasepacificaodoEstadonao
Nomeiodessetrabalhosobreoutrospovos,observadoresdocenriopolticodosEstadosUnidosno
final da dcada de 70 e nas de 80 e 90 perceberam que, em comparao com a intensa atividade poltica
pblicadosanos60einciodos70,osamericanosestavamapticosecontidos.Comeceiaestudarcomoa
ideologiadaharmoniaestestruturadanosEstadosnaesmodernosdotipodemocrticoocidental,ecomo
essasideologiassepropagamparaalmdasfronteirasnacionais.interessanteoprocessoatravsdoqualas
ideologias,quesoforasdemudana,somoldadasatravsdodiscurso,estendendosebemalmdasleis,
paraincluiroselosentreasleis,osnegcioseoseleitoresdacomunidade.
Os anos 60 foram descritos como confrontadores: uma poca em que muitos grupos sociais, nos
EstadosUnidos,sentiramseestimuladosaapresentarsuaspautas:direitoscivis,direitosdosconsumidores,
direitosambientais,direitosdamulher,direitosdosamericanosnatosetc.Foitambmumperododecrticas
custicasdeleiseadvogadosnoquesereferesquestesdosdireitoserecursos.Porm,duranteumperodo
detrintaanos,opaspassoudeumapreocupaocomajustiaparaumapreocupaocomaharmoniaea
eficincia,deumapreocupaocomaticadocertoedoerradoparaumaticadotratamento,dostribunais
paraaADR.Comoissoaconteceu?
A ADR engloba programas que enfatizam meios no judiciais para lidar com disputas. O enfoque,
geralmente,voltaseparaamediaoeaarbitragem.Estaveioaserconhecidacomojustiainformal.Uma
justiaquepromoveuoacordo,maisquevencerouperder,quesubstituiuoconfrontopelaharmoniaepelo
consenso,aguerrapelapaz,assoluesvencerouvencer.Atraiuparceirosmuitoinesperadospolticosde
direita preocupados com o sucesso das pautas de direitos, comunidades religiosas, grupos de psicoterapia,
firmas cansadas de pagar altas quantias por honorrios advocatcios, administradores e mesmo ativistas da
dcadade60.
APoundConference:PerspectivasdaJustianoFuturo,realizadanoestadodeMinnesotaem1976,
foi o momento decisivo em uma poca em que tanto o modelo de harmonia como o modelo de eficincia
vieram, oficialmente, a substituir o litgio, procedimento jurdico considerado ideal. A conferncia,
organizadaapartirdoescritriodopresidentedoSupremoTribunaldosEstadosUnidos,visavaesboaruma
alteraoculturalcomramificaesqueseestendiamparamuitoalmdalei.Dramatizouseumaformade
pensar(sobreasrelaessociais,sobreosproblemasestruturaisdadesigualdade,sobreassoluesdesses
problemas atravs de meios culturais). Veio tona uma preocupao central com a harmonia atravs da
reformadosprocedimentos.Eraumamudananamaneiradepensarsobredireitosejustia,umestilomenos
confrontador,mais"suave",menospreocupadocomajustiaecomascausasbsicasemuitovoltadoparaa
harmonia.Aproduodeharmonia,arebeliocontraaleiecontraosadvogados(vindamuitasvezesdos
prprios advogados), o movimento contra o contencioso, foi um movimento para controlar aqueles que
foramprivadosdosdireitoscivis.(Nader,1988)
OselementosdecontrolesomuitomaisdifusosqueoalcancediretodocontroledoEstado.Uma
intolernciapeloconflitoimpregnouaculturaparaevitar,noascausasdadiscrdia,massuamanifestao,
e, a qualquer preo, criar consenso, homogeneidade, concrdia. Como em O admirvel Mundo Novo, de
AldousHuxley,omodelodaharmoniaproduzumaespciedesomaculturalcomumefeitotranqilizador.O
curioso que a literatura antropolgica sobre as leis, mencionada mais acima, serviu de fonte para a
racionalizaodaeficciadosmodeloslegaisdeharmonia.
O discurso na Pound Conference foi rico em exemplos sobre o uso da linguagem para selecionar,
construir, comunicar e confundir. A retrica exaltou as virtudes dos mecanismos alternativos regidos por
ideologias de harmonia: os tribunais estavam abarrotados, os advogados americanos e o povo americano
eram muito litigantes, proclamavam eles. As alternativas foram descritas como agncias de acordo ou
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reconciliao e as pessoas que se opunham a essas reformas foram declaradas como sofrendo de "status
quosmo".
Nos anos subseqentes Pound Conferenc o pblico foi totalmente envolvido pela retrica da
resoluoalternativadedisputaouADR.Sualinguagemseguiaumcdigorestritoepreceitual,deacordo
comomodelodaretricaassertiva,fazendogeneralizaesamplas,sendorepetitiva,invocandoaautoridade
eoperigo,apresentandovalorescomofatos.Comeceiacoletarpalavraschave:aADRestavaassociadaa
paz,enquantoasoluomediantedisputajudicialerarelacionadaaguerra.Umaantagnica,aoutrano
antagnica. Em uma h confronto, insensibilidade, destruio da confiana e da cooperao e apenas
perdedores,enquantonaoutraacurasuaveesensveldosconflitoshumanosproduzapenasvencedores.As
alternativasestavamassociadasqualidadedesermoderno:"criandohojeotribunaldeamanh."
OsadvogadosemagistradoscompraramaretricadopresidentedoSupremoTribunal.(Nader,1993)
Os grupos empresariais queriam reduzir os milhes gastos com litgios intersocietrios e com o
procedimento probatrio e estavam em busca de novas formas de gerenciamento para as disputas com
empregados. As seitas protestantes crists compraramna porque faziam parte de uma longa tradio que
valorizava a harmonia em detrimento da contenciosidade. Os movimentos teraputicos encaixaramse
perfeitamenteeosprofissionaisteraputicosviramseupapelcorroborararetricadovencerouvencer,tal
comomuitosgrupospreocupadoscoma"construodacomunidade".
Desnecessrio dizer que a retrica da conferncia foi contestada por cientistas sociais como Mark
Galanter (1993) (e outros), que buscavam separar mito de prova consubstanciada. Eles verificaram que os
Estados Unidos investem mais dinheiro no cumprimento da lei que os tribunais, e que o litgio, conforme
avaliadopelasaveriguaescivis,permanecerarelativamenteestvel.Apremissadeumaexplosodelitgios
no vingou, nem as alegaes relativas a uma populao supostamente litigante, embora o litgio tivesse
passadoaserumapresenasimblicagraasacasosderesponsabilidadecivilpeloproduto,comoocorrera
com o dispositivo contraceptivo Dalkin Shield ou com o amianto. No entanto, enquanto os crticos
continuavamaexaminaraspremissasdaADR,omovimentofavorvelaumareformajurdicaavanavaa
todo vapor, relativamente intocado pelos crticos, instalandose em todos os nveis da vida americana, das
escolasaoslocaisdetrabalho,lares,hospitaisecentrosmdicos,eaindanasdiretoriasdeempresasbem
comonosalojamentosuniversitrios,salasdeaulaeinstnciasadministrativas.
Realizaramse conferncias voltadas para o meio ambiente, com o objetivo de verificar a
possibilidade de deslocar "a nfase de uma abordagem vencer ou perder para outra de equilbrio de
interesses". Os sindicatos foram inundados por planos de controle de qualidade, em que trabalhadores e
administrao, juntos, cooperavam harmonicamente, em uma situao vencer ou vencer. As reservas
indgenasamericanasforamconvencidasporemissriosdeWashingtonaencararolixonuclearcomouma
soluo vencer ou vencer saindo da misria econmica e ao mesmo tempo contribuindo para com oseu
pas. Grupos de ativistas do meio ambiente esto sendo pressionados mediante reunies de consenso,
tambmsupostamentedetipovencerouvencer.Problemasfamiliaressomediados,enquantonaCalifrnia
eemmuitosoutrosestadostalmediaoobrigatria.EmWashingtonhumEscritrioGovernamentalde
Planejamento de Conferncias de Consenso. Nas escolasguetos treinamse os "criadores de caso" a
solucionardisputas,quemsaberecheandoseusestmagoscomcafsdamanhquentinhos.Eagoratemos
umpresidentecognominado"PresidentedoConsenso".AsbasesdoposicionamentodopresidenteClinton
quanto ao consenso j foram documentadas pela antroploga Carol Greenhouse (1986), que estudou uma
comunidadebatistasulistadaGergia,fornecendonosossignificadosculturaisdeumaexplosodaADR.
Elasugerequeaequaocontemporneacristianismomaisharmoniainspirouaevitaodalei,aaverso
leieovalordoconsenso:"umaestratgiaquemodificouoconflito..."
Num esforo para pr fim aos movimentos da dcada de 60 que lutavam pelos direitos em geral e
para esfriar os protestos pela guerra do Vietn, a harmonia passou a ser uma virtude. O Presidente do
Supremo Tribunal, afinal de contas, argumentara que para serem mais "civilizados", os americanos teriam
queabandonaracentralidadedomodeloantagnico.Asrelaes,enoascausasbsicas,eacapacidadede
resolverconflitosinterpessoais,enoasdesigualdadesdepoderouainjustia,foramesoopontonodaldo
movimento ADR. Nesse modelo, os pleiteantes civis acabam tornandose "pacientes" que necessitam de
tratamento um projeto de pacificao. Quando as massas so vistas como "pacientes" que precisam de
ajuda,apolticapblicainventadaparaobemdo"paciente".
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Assim como os crticos das premissas da ADR, os crticos da ADR, na prtica, mencionam
conseqnciaseperigos.Nessascrticas,amediaoobrigatriadescritacomocontrolenadefinio"do
problema",nocontroledodiscursoedaexpressodificilmenteumaalternativaparaumsistemaantagnico
quefazomesmo.Osmesmoscrticosdescrevemamediao/negociaocomoalgodestruidordedireitosao
limitaradiscussodopassado,proibirairaeforarocompromisso.Emsuma,amediaoobrigatrialimita
aliberdadeporquefreqentementeexternalei,eliminaopesdeprocedimentos,removeaproteoigual
diantedeumaleiantagnicaeemgeralnosedpublicamente.(Grillo,1991)Oscasosnocostumamser
registrados a regulamentao limitada e quase no h prestao de contas, algo como a situao na
psicoterapia, por exemplo. Os crticos da ADR pendem para a preveno e as solues conjuntas. No
entanto,apesardascrticasedacrescenteconscientizaodasconseqncias,quenadatmdepropcias,a
ADRavanaeseinternacionaliza.
Naspartesrestantes,queroresumirmeutrabalhopreliminarsobreashegemoniasADR,sobretudono
que se refere s disputas internacionais relacionadas a rios. O que acontece quando um movimento de
reforma legal, aparentemente nofragmentado por diferenas de poder, tornase internacional? Deixemme
comearpelasnoesdaevoluojurdica.
Negociaodasdisputasinternacionaisrelacionadasarios
Osantroplogosdareajurdica,dostemposremotosatualidade,escalonaramosforosdesoluo
de disputa de modo que a autoajuda e a negociao situamse no ponto de partida de um continuam
evolutivo rumo civilizao. Com o desenvolvimento, verificase como as sociedades se afastam desses
procedimentos bilaterais para adotar a mediao, a arbitragem e, finalmente, a deciso judicial. (Hoebel,
1954)Essesmesmostrabalhosconsideramaexistnciadetribunaisumsinaldecomplexidade,evoluo,e
desenvolvimento da sociedade ou todas essas. Na dcada de 60, os cientistas sociais chegaram mesmo a
mencionaruma"ordemseqencialpadro"daevoluojurdicacadaumadelasconstituindoumacondio
necessriaparaaseguinte.(SchwarzeMiller,1964)Duranteamesmaera,ospoderescoloniaisconsideraram
odesenvolvimentodetribunaisnafricacomopartedasuamissocivilizadoraeoTribunalInternacional
de Justia passou a ser considerado o pice para os foros dedicados soluo de disputas internacionais
atravs da deciso judicial e da arbitragem posies ideologicamente coerentes com os trabalhos dos
tericossociaisevolucionistas.Noentanto,porvoltadosanos80e90,osprocessosmaiscivilizadossoos
meios"maissuaves",noantagnicos,comoamediaoeanegociao,semelhantesaomovimentonorte
americanodaADR.Aimpressoquesetemqueaordempreferencial,nosforosdedicadossoluodas
disputas, passa por uma alterao para espelhar a distribuio do poder internacional. Um jurista
especializadoemleisinternacionais(Gong,1984)peodedonaelasticidadedasnoesdecivilizao:
...osmenos"civilizados"estavamfadadosatrabalharemproldeumaigualdadequeumpadroelsticode"civilizao"
psforadeseualcanceparatodoosempre.Mesmoatingirostatusde"civilizado",comooJapoveioadescobrir,nosignificava
necessariamentetornarseigual.Os"civilizados"tinhamcomotornarseaindamais"civilizados".

Tal como a ADR, nos Estados Unidos, transferiu a retrica de "justia" para "harmonia", assim
tambm, no plano internacional, a noo de negociao "madura" vem substituindo o Tribunal Mundial
enquanto "padro de conduta civilizada". Por que essa valorizao recente da negociao? O que Edward
Said (1978) reconhece em sua noo de "superioridade flexvel de posio" que a valorizao de uma
forma cultural em relao a outra est, freqentemente, ligada a desequilbrios no poder. Agora que os
"primitivos"tmtribunais,adotamosnegociaesinternacionaisouADR.
No contexto atual, um novo padro de negociaes internacionais est sendo promovido, j que o
padroanteriordedecisojudicial/arbitragemnoTribunalMundialtornousemenostilparaasnaesmais
poderosas. Desde o surgimento de novas naes, muitas delas de "terceiro mundo", verificouse uma
disposio para utilizar o Tribunal Internacional para a representao de novos interesses. A influncia do
Terceiro Mundo no Tribunal comeou a ter efeito a partir de 1964. Vrias decises foram proferidas em
favor do "Terceiro Mundo" e dos Estados pscoloniais. Em 1966, o Tribunal deliberou a favor dos
pleiteantesliberianoseetopesecontraafricadoSulem1974,emproldaNovaZelndiaedaAustrliae
contraaFranaem1984,aNicarguamoveuumaaocontraosEstadosUnidos,queseretiraramdocaso
e, logo depois, os Estados Unidos se retiraram do acordo de acatar voluntariamente as determinaes do
Tribunal. Tanto a Unio Sovitica, em meados da dcada de 60, como os Estados Unidos, em meados da
dcadade80,deixaramdecontribuirfinanceiramenteparaainstituio,demonstrandoassimumaatitudede
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indiferena em relao s leis internacionais. Alguns perceberam que a clientela do Tribunal estava
desaparecendo.
AADRestimulouosurgimentodeequipesdenegociaointernacional.Osnovosprofissionaiseram
oriundosdevrioscampos:direito,economia,psicologiasocial,cinciapoltica,psicoterapiararosdentre
eleseramantroplogos.Oqueessesnegociadorestinhamdenovortoeraofatodepraticaremamediao
ouanegociaoafinal,essesmodelosdeprocessamentodedisputavinhamsendoutilizadoshaviamuito
tempo.Oqueelestinhamemcomumeraumarepugnnciapelosprocessosantagnicosconfrontantes,pelos
tribunaiscomoformadelidarcomosproblemasdasmassas,pelajustiafeitaatravsdequaisquermtodos
devencerouperder.
Provavelmente, o mais conhecido negociador internacional da histria recente norteamericana o
expresidente dos Estados Unidos Jimmy Carter. Carter publicou um discurso sobre a negociao em um
livro intitulado: Negotiation: the alternative to hostility (1984). Na obra, menciona os casos mais
conhecidos: o tratado do canal do Panam, o Salt II, a paz no Oriente Mdio, as relaes com a China.
JimmyCarterfalavaapartirdaprticaedeumainclinaoparaapaz,quetalvezsebaseassemaisemsuas
crenasreligiosasqueemsuasnoesdejustianumasociedadecivil.
Aquelesqueescrevemsobreumsistemaemergentedenegociaesinternacionaisignoramtotalmente
o Tribunal Mundial e focalizam, em vez disso, as funes de um sistema de negociaes "que deveria
contribuirparaaestabilidadeeparaocrescimentodosistemaderelaesinternacionais".Paraessaspessoas,
asnegociaesinternacionaisdeixamdeserumaatividadedegovernoparagovernoparatornaremsefuno
internacional de governos, organizaes no governamentais, personalidades pblicas etc., cuja meta
principal a estabilidade internacional. Embora a estabilidade internacional possa ser uma bela coisa, ela
tambm pode significar injustia e manuteno de desigualdades. A implicao, global em grande parte
dessaliteraturadohemisfrionorte,quetudopodesernegociadoedeveslo.
Aliteraturasetornaefetivamenteinteressantequandooanalistatratadetalhadamentedasinstncias
empricas.nessescasosespecficosquetodarefernciaaoTribunalInternacionalseesvanece,substituda
porexpressescomo"aprendizadomtuo","partilhadeinformaes","harmonizao"e"cooperao".Os
acordos de soma zero se tornam "hostis" e as informaes, a anlise e a soluo atrapalham o "dilogo
construtivo". Em tais condies, os jogos mentais passam a ser um componente central desse processo de
negociao da ADR. Defrontamonos, por exemplo, com expresses como "percepo de envenenamento
txico" em lugar de "envenenamento txico", e perguntas como: "De que forma utilizar ou neutralizar a
conduta?"
Uma pesquisa a respeito de disputas relativas a recursos hdricos indica a transio dos foros de
soluodedisputassugeridamaisacima,afastandosededecisesjudiciais/arbitragenseaproximandoseda
negociao. A evoluo melhor relatada no caso da bacia do rio Danbio e passa de (1) procedimentos
decisriosjudiciaisearbitragensinternacionaispara(2)planejamentoabrangentedabaciacomoumtodo,
comcomissesdabaciahdricanegociandodeformacooperativapara(3)acordosbilateraisresultantesde
barganhas internacionais para (4) organizaes no governamentais atuantes independentemente da
existnciadefronteiraspolticasouburocrticas.Taltransioespelhadeformamarcantea"privatizao"da
justiaatravsdoscentrosdeADRnosEstadosUnidos.
Muitos dos autores que escrevem sobre negociao internacional partem do subentendido de que
existe uma "cultura diplomtica universal" de negociadores, uma cultura comum de administradores
governamentaisnacionais,a"comunidadecientfica"internacionalegruposambientalistas.Oqueseafirma
seruniversal,pensoeu,umaperspectivahegemnicadadisputa.Ahegemoniamaisrecentesedesenvolveu
nosEstadosUnidosduranteadcadade70eapartirdessemomentopassouaserexportadaparaomundo
inteiroumahegemoniaaquemerefirocomoideologiadaharmonia,umaharmoniacoerciva,cujafuno
primriaapacificao.Doisadvogadosinternacionais(LaylineBianchi,1959)colocaramaquestonos
seguintestermos:
Numa poca em que as foras da lei e da ordem necessitam de um reconhecimento cada vez maior no cenrio
internacional, a noo de que os Estados desejosos de submeter disputas internacionais relativas a rios deciso judicial so
imprudentestemumaconotaobastanteestranha[...]adeclaraodequeostribunaissoinadequados[...]traianostalgiapor
uma concepo de direito internacional em rpido declnio, em que o poder declarado tem mais eficcia que os princpios
reconhecidosdejustia.
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Quando os casos que deveriam ser decididos judicialmente so negociados como ilustrado pela
disputaentreEstadosUnidoseMxicoemtornodorioColorado,nadcadade40,asconexesexplcitas
entredireitointernacionaleoTribunalMundial,direitossobreguasterritoriaisevantagensdanegociao
paraosmaispoderosostornasebvia.
Sintetizado, o caso da bacia do rio Danbio adquire tonalidades totalmente diferentes. Linnerooth,
quesintetizouocasoDanbio(1990),subentendeaexistnciadeuma"culturadenegociaouniversal",ou
o que denomina "cultura comum", composta por administradores governamentais nacionais, comunidades
cientficas internacionais e grupos ambientalistas emergentes. A linguagem usada para descrever como os
interesses conflitantes e antagnicos poderiam ser negociados reveladora da influncia da terapia na
ideologiadaADR:expressescomo"aprendizadomtuo"e"partilhadeinformaes"maisparecemterapia
de casal que o desenredar de conflitos relativos poluio dos rios. Quando o discurso da terapia forte,
poucoseconsideramasdisputasque,defato,somamzero.Aomesmotempo,nosereconheceofatodeque
a negociao bilateral talvez coloque a nao mais forte em posio vantajosa relativamente nao mais
fraca. Com efeito, partindose desse ponto de vista qualquer coisa pode ser negociada, mesmo que seja
necessrio primeiro moldar as "percepes" e afastlas de "informaes, anlises e solues", com o
objetivodeoferecermecanismosparao"dilogoconstrutivo".OcasodoDanbiointeressanteportratarse
deumadasbaciashdricasmaisinternacionaisdomundo,envolvendooitopasesribeirinhosemaisde70
milhesdepessoas.Ospasesribeirinhosricos,maisprximosdanascente,usamoDanbiosobretudopara
despejo industrial e de resduos e com propsitos energticos. Os pases menos desenvolvidos usam o rio
paraabastecimentodeguapotvel,irrigao,pesca,turismoetc.Maisumavez,aautoradefendeaadoo
deumadisputadetipovencerouvencerporaquelesquepartilham"umacertaracionalidadeprofissional",
portanto capazes de "traduzir a ordem, suas imagens retricas e as expectativas sociais". Em suma, a
privatizaodajustiainternacional.
Emtodososcasosqueexaminei,aregraqueapartemaisfracavembuscadaleieamaisforte
prefiranegociar.
OrioDouro,poucoacimadafronteiraespanholaportuguesa,umexemplo,(Dellapenna,1992)A
planejadausinaderesduosnuclearesemAldeavillaficarsituadaamenosdeumquilmetrodePortugal,e
toda contaminao do rio Douro acabar em Portugal. Setenta por cento da gua doce de superfcie de
PortugalvmderiosquenascemnaEspanha,enquantoaEspanha,virtualmente,norecebenenhumagua
docedesuperfciedePortugal.AposiofracadePortugalnoofereceriabonsprognsticosparaumacordo
bilateral justo, literalmente em decorrncia do diferencial de energia de gua doce entre as duas naes e,
particularmente,porqueaEspanhajtransgrediuinequivocamenteodireitoconsuetudinriointernacional.
NocasodoValledeMexicali,umadasregiesagrcolasmaisricasdoMxico,oprotestoenvolveum
planoexclusivamenteamericanoparalimitaroescoamentodaguasubterrneadequeoMxiconecessita
paramantersuaslavouras.Oamericanoqueescreveusobreaquesto(D.Haydes,1991)advogaousoda
negociao a fim de possibilitar uma soluo de tipo vencer ou vencer, e o mesmo autor censura as
autoridadespblicasmexicanasporameaaremolitgiointernacionalnoTribunalMundialdizendoque"Tal
desenvolvimentoestemdesacordocomogerenciamentoordenado,controladoeinternacionalderecursos."
Nohindciosdequeostribunaisinternacionaisviessema"agirracional,lgicaehumanitariamente".Ao
contrrio,odescasopelaleitotal.
OcasodorioJordo,noOrienteMdio,aindamaiscomplexoeenvolveoLbano,aJordnia,Israel
eaSria,comdesigualdadesflagrantesnoconsumodegua.Asituaopassoudenegociaesmediadasa
ao unilateral a conflito violento, sem que se considerasse a hiptese de um acordo atravs de deciso
judicial.
Um caso final se refere prolongada disputa em torno do rio Ganges, entre Bengala Oriental/
Bangladeshendiaeofereceumexemploclarodapolticadenegociaointernacionaledasvantagensda
negociaobilateralparaapartemaisforte.OrioGangescorredandiaparaBengalaOrientaleabastece
BengalaOrientaleBangladeshcomparteconsiderveldaguapotvelaliconsumida.Noinciodadcada
de50,ogovernoindianocomeouaplanejarunilateralmenteaconstruodarepresaFarakka,umdiqueque
desviariaaguadorioGanges.Em1960andiafinalmenteaceitoudarinciosnegociaesbilateraiscom
oPaquisto,masem1961jderaincioconstruododique.BengalaOriental,duranteesseperodo,ficou
marginalizada.Depoisdeumasriedenegociaesfracassadas,ogovernodeBangladeshtentouapresentar
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seucasoperanteaAssembliaGeraldaONU.Andiaseops,argumentandoqueaquestododiqueeraum
"assunto bilateral". A ndia no podia conseguir apoio moral para sua ao unilateral, enquanto o
Bangladesh, um dos pases mais pobres do mundo, tinha pouca influncia poltica para usar no cenrio
internacional.
Cadanaotinhasuaprpriasoluoprediletaparaoproblema.AsoluodeBangladeshenvolveria
aparticipaodoNepal,enquantoandiapreferiamanterasquestesrelativasaguaestritamenteentreela
prpria e um Bangladesh mais fraco. Conforme descrito por Khurshida Begum (1988), "as negociaes
pacficas, estritamente bilaterais, so uma ferramenta hegemnica para a ndia". No decorrer das
negociaes, uma srie de "discrepncias" entre os fatos ,relatados' pela ndia e por Bangladesh revela
exatamenteopropsitoparaoqualosjulgamentosjudiciriossousados:discrepnciasdefato:Almdisso,
osgravesefeitosdaescassezdeguadequesequeixavaoBangladeshcolocariamocasonacategoriade
violaodosdireitoshumanos.Maisumavez,somoslembradosdoargumentorelativofunodadeciso
judicial nas disputas internacionais relacionadas a recursos hdricos: uma forma de equilibrar as
discrepnciasdepoder,reconhecendo,aomesmotempo,queadecisojudicialnopodesersimplesmente
equiparadaamelhoresresultadosparaapartemaisfraca.
Em suma, um exame desses e de outros escritos sobre o Tribunal Mundial indica que as opinies
contrriasaoTribunaltmsidoestridentes,emespecialentreospartidriosdapolticadosEstadosUnidos
naAmricaCentralnadcadade80.Noentanto,umartigode1991sugerequeoregistrodosprocessosdo
tribunalest,novamente,indicandooseuuso,enquanto,aomesmotempo,alegislaosobreDireitodoMar
das Naes Unidas dispe sobre a formao de um rgo jurisdicional especializado: o assim chamado
TribunaldeHamburgo,basicamenteumrgojurisdicionalduplo.OTribunaldeHamburgotemdefensores
fortes:oscincomembrospermanentesdoConselhodeSeguranaqueapiamessa"soluoalternativapara
os litgios existentes perante todo o rgo jurisdicional do Tribunal Mundial", algo pouco tranqilizador
quantoaopapeldoTribunalMundialenquantoniveladordepoder.Comefeito,aimprensarecentefalaem
"governar o mundo sem governos", ressaltando a necessidade de um novo sistema de governo, tendo em
vista o declnio dos governos nacionais, das organizaes intergovernamentais e das Naes Unidas. No
entanto, na literatura relativa a "negociao moderna", vemse poucos indcios de que os "negociadores
modernos"otalnovosistemadegovernoestejamexaminandocriticamentesuastrajetriasouavaliandoo
significadomaisamplodeseutrabalho.
Aideologiacomercialeaideologiadaharmonia
Antes de concluir, mencionarei brevemente o trabalho muito preliminar sobre as relaes ou as
possveiscongrunciasentreaideologiacomercialeaideologiadaharmonia.Grandepartedalinguagem
semelhante: negociar, fazer um negcio etc. e devemos lembrar que o comrcio, de acordo com a teoria
clssicadavantagemcomparativa,umasituaodetipovencerouvencer.OGATTumcasointeressante
deseexaminar.
O Acordo Geral de Tarifas e Comrcio GATT surgiu nos anos subseqentes Segunda Guerra
Mundial. Duas escolas de pensamento conduziram o movimento para uma organizao comercial global.
(Jackson, 1989) Primeiro havia aqueles que achavam que uma tal organizao promoveria o crescimento
econmico graas expanso do comrcio. Em segundo lugar, havia aqueles que achavam que uma
organizaocomercialinternacionalpromoveriaestabilidadeglobaleevitariaaguerra.Em1947,aminuta
do documento constitutivo do GATT foi elaborada em Genebra, escrita na expectativa de que uma
organizao internacional formal, a OIC, supervisionasse sua implantao. Periodicamente, o GATT
patrocina"ciclos"ougrandesconjuntosdenegociao.Almdasquestestarifrias,osciclosmaisrecentes
abordaramaquestodosprocedimentosdesoluodedisputa.
TantoaOICcomooGATTforamconcebidosemumapocaemquea"regradalei"eraconsiderada
oforomaisaltamentedesenvolvidoparaasoluodedisputas.EraapocadoinciodasNaesUnidasera
aindaapocadorecminstitudoTribunalInternacionaldeJustia.VriasautoridadespblicasdosEstados
Unidos envolvidas na elaborao da minuta do documento constitutivo da OIC e do GATT, pareciam
fortemente comprometidas com o princpio da regra da lei, considerando o uso efetivo da arbitragem e
mesmoorecursoaoTribunalMundialemdeterminadascircunstncias.Oingressodeumgrandenmerode
naespscoloniaisnoGATT,noinciodadcadade60,instigouumposicionamentodiferenteemrelao
soluodedisputas,ehumnmeroextensodeescritossobreoafastamentodolegalismoeaprogressiva
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adoo do pragmatismo. Conciliao eis o termo utilizado para descrever as atividades do GATT entre
1963e1970,quandoadecisojudicialsemanteveemestadodeamortecimento,continuandoatadcadade
70,quandoospainisdeespecialistascresceramempopularidade.Pertodofinaldadcadade80,amaioria
dasnaespareciaindicarumaprefernciapelaimplementaodeprocedimentosmaislegalistas.
H uma certa ironia no fato de que no momento exato em que o GATT est pendendo para uma
abordagem mais "baseada em regras" (que supostamente no seria alviareira para os PMDs), acordos
comerciais alternativos, como o NAFTA esto sendo formalizados. Mas, voltando ao GATT, vemos uma
categoria internacional de negociadores e tecnocratas moldando um plano de ao para uma categoria
internacional de empresas atravs de acordos comerciais internacionais o que alguns chamaram
estrangulamento da soberania nacional por intermdio da livre supremacia das multinacionais. O prprio
GATT tem sua prpria escola de treinamento em Genebra para adestrar os negociadores presumveis dos
novos Estados membros a cultura negociadora internacional. Alguns falam em fabricar seriamente o
consenso.(Ikenberry,1989)
Mais uma vez, trabalhos antropolgicos como o de Philip Gulliver (1979) so invocados para
oferecerumajustificativacientficaparaisso.
Comentriosconclusivos:aeconomiapolticadosmodelosjurdicos
Asoscilaesentreomodelodaharmoniaeomodelodoconflitonaabordagemdasdisputasforam
descritasporvriosautoreseparecequeaestruturao,peloEstado,deprocessosalternativosparaasoluo
de disputas funciona, de fato, para acalmar os receios de conflitos armados de classes e desentendimentos
raciais.Damesmaforma,asagnciasinternacionaisusamtcnicasdesoluodedisputasparapromovera
ordemeaestabilidademundiais.Ointeressedechamarseaatenoparaousodaharmoniaoudemodelos
adversrios no tanto descrever o modo como funcionam esses sistemas, mas entender por que as
flutuaes nas ideologias jurdicas, associadas a uma tolerncia para com a controvrsia ou uma busca de
harmonia, vm tona de tempos em tempos e quais as conseqncias disso. Certamente, a histria da
substituiodosmodelosantagnicospormodelosdeharmonianosignificaqueaideologiadaharmonia
seja benigna. Pelo contrrio, a harmonia coerciva das trs ltimas dcadas foi uma forma de controle
poderoso, exatamente devido aceitao geral da harmonia como benigna. A histria das condies que
determinam as preferncias na soluo das disputas so "compromissos mveis" geralmente envolvendo
desequilbriosnopoder.
As ambigidades que cercam o estudo dos componentes culturais do direito tm sido abundantes,
mesmo entre os antroplogos, em cuja disciplina a cultura desempenha um papel central. Quando o
antroplogodeoutrostempossepropunhaescreversobreoutrasculturas,culturaeraumconceitoutilizado
para descrever tradies partilhadas, passadas de uma gerao para outra. J no nos referimos a culturas
comoseelasfossemunidadesisoladaseconsensuais.Hojeostericosfazemumadistinoentreacultura
hegemnica, ou seja, a formulao da cultura por grupos fundamentalmente dominantes. Com hegemonia,
Gramsciqueriadizer(BoggsinGreer,1982)"aimpregnao,detodaasociedadecivilincluindotodauma
gama de estruturas e atividades, como sindicatos trabalhistas, escolas, igrejas e a famlia por todo um
sistema de valores, atitudes, crenas, moralidade etc., que, de uma forma ou de outra, corrobora a ordem
estabelecidaeosinteressesdeclassequeadominam."Idiascomoharmoniaoupolticasconfrontantesou
eficinciapodemsurgirlocalmente,espalharseouseremimpostas,recombinadaseutilizadasparacontrolar
ouoporresistnciaaocontroleetercomoresultadoadistribuiodopoderatravsdorecursogerado.
Argumentei, neste trabalho, que as ideologias de soluo de disputas so um mecanismo usado h
muitotempoparaserealizaratransmissodeidiashegemnicas.Osprocessosdedisputanopodemser
explicadoscomoumreflexodealgumconjuntoprdeterminadodecondiessociais.Elesrefletem,mais
exatamente,osprocessosdeconstruoculturalquepodemserumarespostanecessidade,umprodutodos
interessespreponderantesouumresultadodoconflitodeclasses.Aharmoniacomoconcepogeraldevida
deveria ser investigada minuciosamente no que se refere construo das leis, tal como o conflito foi
investigadominuciosamentenoqueserefereaodesenvolvimentodalei.Osdoisdeveriamserexaminados
com respeito s noes de um mundo novo, para que possamos diferenciar um mundo de justia de um
mundo de estabilidade. Como observou o falecido Roger Keesing (1994:306) em um dos seus ltimos
ensaios:
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"As conceituaes antropolgicas de cultura" foram digamos assim inocentes (no sentido de ingenuidade, no de
culpabilidade)notocantesfrentesdebatalhadateoriasocial.Nossasformasdeconceituaroqueantigamentesedenominava
mundo"primitivo"aindaadmitemumconjuntodepremissas,oriundodosculoXIX,sobreocartercoletivoecompartilhadode
"costumes".
Oqueesperoterapontadonestaanlisequeosantroplogoseoutrostericossociaisprecisamusaridiasadequadasdoque
sejacultura,idiascapazesdefavoreceroentendimentodenossodinmicomundo.
Traduo:CludiaFleith

NOTAS
*.VersodaconfernciaproferidanaXIXReuniodaAssociaoBrasileiradeAntropologia,especialmentepreparadaparaa
RBCS.
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