O documento analisa um livro que discute como a beleza foi politizada e associada a ideais racistas e eugenistas no Brasil desde o século XIX. O livro examina como a ciência, a arte e a medicina definiam padrões de beleza que visavam branquear e "higienizar" a raça brasileira. Apesar de valorizar a beleza dos antigos gregos, esses ideais modernos eram excludentes e usados para controlar e normalizar os corpos.
O documento analisa um livro que discute como a beleza foi politizada e associada a ideais racistas e eugenistas no Brasil desde o século XIX. O livro examina como a ciência, a arte e a medicina definiam padrões de beleza que visavam branquear e "higienizar" a raça brasileira. Apesar de valorizar a beleza dos antigos gregos, esses ideais modernos eram excludentes e usados para controlar e normalizar os corpos.
Descrição original:
Resenha por Margareth Rago
Título original
FLORES, M.B.R. [RAGO, M.] Tecnologia e Estética Do Racismo
O documento analisa um livro que discute como a beleza foi politizada e associada a ideais racistas e eugenistas no Brasil desde o século XIX. O livro examina como a ciência, a arte e a medicina definiam padrões de beleza que visavam branquear e "higienizar" a raça brasileira. Apesar de valorizar a beleza dos antigos gregos, esses ideais modernos eram excludentes e usados para controlar e normalizar os corpos.
O documento analisa um livro que discute como a beleza foi politizada e associada a ideais racistas e eugenistas no Brasil desde o século XIX. O livro examina como a ciência, a arte e a medicina definiam padrões de beleza que visavam branquear e "higienizar" a raça brasileira. Apesar de valorizar a beleza dos antigos gregos, esses ideais modernos eram excludentes e usados para controlar e normalizar os corpos.
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Beleza fundamental?
Tecnologia e esttica do racismo:
cincia e arte na poltica da beleza. FLORES, Maria Bernadete Ramos. Chapec: Argos, 2007. 452 p.
J faz algum tempo que estamos
estranhando a importncia exagerada que assumem o corpo e a sexualidade no s em nossas festas de carnaval, mas tambm no imaginrio social. Nos discursos histricos sobre
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o povo brasileiro, mulheres sensuais e homens
vorazes logo ganham destaque, especialmente quando se discute a construo da identidade nacional. Nos textos de intelectuais como Paulo Prado e Gilberto Freyre, nos anos 20 e 30, ou retroce-dendo aos livros dos viajantes europeus, que aqui aportaram nos sculos XVII e XVIII, ou mesmo voltando ao texto inaugural, a carta de Pero Vaz de Caminha para el Rey do Imprio portugus, os corpos ganham destaque a partir de um olhar que sensualiza as formas, erotiza os gestos, mas tambm classifica, normatiza e condena. assim que as ndias nuas se tornam prximas da moura encantada em Freyre, libidinosas, excitveis e prontas a entregaremse aos colonizadores portugueses, segundo Prado, em meio promiscuidade sexual reinante no perodo colonial, participando como figuras
por dcadas a fio. Diante desse quadro mrbido e assustador, a preocupao com o saneamento da raa e com a produo de um povo higinico, saudvel, limpo e belo emerge especialmente nos textos dos mdicos e juristas, desde o sculo XIX, e adquire toda a centralidade nas discusses dos eugenistas, a tal ponto que Renato Kehl, principal expoente da eugenia no Brasil, publica um longo volume intitulado A cura da fealdade, em 1923, preocupado com as aparncias de um povo que, aos seus olhos, parecia muito feio. A perplexidade que esse texto produz, principalmente ao se considerar o prestgio atual das belssimas modelos brasileiras em todo o mundo, levou a historiadora Maria Bernadete Ramos Flores, professora titular do Departamento de Histria da Universidade Federal de Santa Catarina, a percorrer minuciosamente os estranhos caminhos das discusses tecidas pelos homens e mulheres cultos, no Brasil, desde o sculo XIX, referenciados pelas teorias racistas europias. O resultado um denso e elaborado estudo intitulado Tecnologia e esttica do racismo: cincia e arte na poltica da beleza, que vem a pblico numa edio cuidadosa, pela Editora Argos. Na poltica racista de domesticao dos corpos e produo de indivduos belos, mostra a autora, o desenvolvimento cientfico e tecnolgico alia-se s projees artsticas inspiradas desde a Grcia antiga. Historiadora perspicaz, Maria Bernadete evidencia como o culto ao corpo belo dos antigos apropriado e subvertido na Modernidade, tornando-se sujeio aos padres dominantes de existir, da aparncia subjetividade. Pedagogia dos corpos, educao dos sentidos, autocontrole e pouca expressividade emocional so temas que constituem um amplo repertrio das prticas da dominao. Leitora de Michel Foucault, para alm de outras importantes referncias filosficas, a autora mostra como, para alm das mentes, o poder incide sobre os corpos, os gestos e as individualidades, ameaando capturar a prpria vida. Desde a primeira parte do livro, intitulada Cincia e arte na poltica da beleza, passando por A questo sexual e A inveno da raa, terceira e quarta partes, a beleza do corpo que est em jogo. Mas de que beleza se trata? Que polticas se constituem para atingir esse ideal que se quer eterno e universal e que, no obstante, a autora demonstra sobejamente ser histrico? Os tratados de sexologia de mdicos
como o Dr. Hernani de Iraj, autor de Morpholgia
da mulher: a plstica feminina no Brasil, em quarta edio, em 1937 (p. 104), e Sexo e beleza (p. 109), por exemplo, discutem a fisiologia do corpo feminino, informam sobre as necessidades sexuais masculinas e condenam a prostituio e a homossexualidade, revelando um medo atvico da degenerescncia fsica e moral. Maria Bernadete examina minuciosa e ironicamente a obra cientfica e a artstica desse mdico, que tambm pintor e que, como tal, se diz contrrio a toda expresso das vanguardas artsticas, revelando que o ideal de beleza feminina expresso numa e noutra obra no se diferencia, atravessado pelos mesmos preconceitos e pelo mesmo regime de verdades e valores morais. Trabalhando com a categoria feminista do gnero, a autora no se restringe s questes femininas. Nesse sentido, destaca como, obcecados com a higienizao de todo o povo brasileiro, com o branqueamento da raa e com a domesticao das mulheres, os doutores tambm definem o corpo masculino belo, enquanto estigmatizam o seu oposto, o do homem pobre, feio e preguioso. Assim, anormais masculinos ou femininos passam a habitar inmeras pginas desse livro, atravs dos discursos das elites, polarizando com os ideais de pureza e limpeza. Autoritrias, estas entendem que embelezar toda uma populao implica corrigir e adestrar os diferentes, para torn-los um todo homogneo e coeso imagem do Homem. Como afirma Kehl, O homem capaz de talhar no mrmore a Vnus, capaz tambm de moldar plasticamente toda a humanidade (p. 62). O que se quer como melhoria do povo resulta em pedagogia totalitria da populao, em biopolticas, pode-se acrescentar. Em sua fico de 1945 intitulada O presidente negro ou o choque das raas: romance americano do ano 2228, Monteiro Lobato prope a esterilizao dos negros como mtodo radical para branquear a raa, entendendo como possvel o conserto do mundo pela eugenia, como nos mostra a autora (p. 410). Se a cultura deriva da raa e do meio, ou vice-versa, intil esta natureza dionisaca brasileira, j que falta ao Jeca a disciplina apolnea para criar a vida, a arte, a cultura, o progresso, a tcnica, o pensamento racional, parafraseia ela, ironizando o discurso masculino racista. Lobato, porm, no exceo regra. Nem mesmo o feminismo liberal entra em dissonncia com esse iderio nacionalista e
escritora paulista Adalzira Bittencourt, apresentada em seu romance Sua Excia: a presidente da repblica no ano de 2500, imagina um Brasil grandioso, moderno, racionalmente organizado, branco e assptico. Governado por uma mulher, no menos autoritrio e racista, como deixa bem claro a historiadora que, sem abandonar o feminismo, no faz concesses em suas crticas contundentes. Nesse pas imaginrio, em que as mulheres estariam no poder, sem deixar de cumprir a sagrada misso materna, os negros seriam devolvidos frica e a pobreza seria eliminada, tanto quanto a feira. A esttica tomou conta de tudo! Toda feira fora removida! No s as pessoas se tornaram belas. As cidades eram as mais modernas do mundo, sob a atuao das engenheiras, ironiza a autora pgina 415. Livro erudito, Tecnologia e esttica do racismo... investiga com cuidado cada tema, por sua vez desdobrado em mltiplas temticas e referncias que enriquecem em grande parte a produo que se vem realizando no interior da Histria Cultural. Menos voltada para a anlise das lutas sociais entre as classes, essa historigrafia introduz novos temas e permite novas abordgens, descortinando as manifestaes do poder l onde menos se espera, nas prticas discursivas, no corpo, na sexualidade, nos sonhos ou nas fantasias.
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A leitura desse excelente trabalho nos leva
a perguntar pelas razes histricas de tanto incmodo diante da feira, tanto quanto sugere um estranhamento pelo modo como a beleza foi naturalizada e associada a ideais autoritrios, racistas e eugnicos, to distantes daquilo que valorizavam os antigos gregos e romanos. Talvez se possa dizer que se trata aqui de uma histria do impossvel, se perguntarmos como tudo isso foi possvel, como essas concepes to excludentes e hierarquizadoras ganharam crdito e tornaram-se hegemnicas em toda, ou quase toda a sociedade, repetidas como verdades, sem maiores questionamentos. E mais, leva-nos a perguntar pela sua continuidade e desdobramentos em nossos dias, quando a ditadura do corpo e da beleza deixa de atingir apenas as mulheres, exigindo esbeltez, agilidade, flexibilidade e adequao aos novos padres estticos tambm dos homens, heterossexuais, gays, negros, brancos, orientais, jovens e velhos. O crescimento das academias de ginstica, dos programas de body health, das dietas e receitas de reeducao alimentar e da cirurgia plstica est a, mostrando que o espao pblico se torna uma grande passarela, onde a exigncia nmero um para a aceitao e o sucesso a prpria expresso corporal. Mais uma volta no parafuso? Margareth Rago Universidade Estadual de Campinas