Narrativa Africana PDF
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SRIE CONVERGNCIA
A NARRATIVA AFRICANA
DE EXPRESSO ORAL
(Transcrita em portugus)
A NARRATIVA AFRICANA
DE EXPRESSO ORAL
MINISTRIO DA EDUCAO
1989
Ttulo
A NARRATIVA AFRICANA DE EXPRESSO ORAL
_______________________________________________________________________________
1. edio, 1989
_______________________________________________________________________________
INSTITUTO DE CULTURA E LNGUA PORTUGUESA (PORTUGAL)
ANGOL-ARTES E LETRAS (ANGOLA)
_______________________________________________________________________________
Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa / Angol-Artes e Letras
Praa do Prncipe Real, 14-1. 1200 LISBOA (Portugal)
Angol Secretaria de Estudo da Cultura de Angola LUANDA (Angola)
Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases
_______________________________________________________________________________
Capa: Aguarela de Incio Matsinhe
Arranjo grfico: Maria Fernanda Carvalho
_______________________________________________________________________________
Tiragem
3000 exemplares
_______________________________________________________________________________
Composio e Impresso
Tipografia Minerva do Comrcio
Travessa da Oliveira Estrela, 10 1200 Lisboa
_______________________________________________________________________________
Depsito legal n. 22 913/88
A VALORIZAO DA CULTURA
E DA LITERATURA AFRICANAS
Escrever e editar estudos sobre a literatura africana
navegao em rio caudaloso, to arriscada como sedutora.
Arriscada, porque os preconceitos e escolhos so mltiplos,
quer na delimitao dos territrios oral e escrito, quer na opo a
fazer entre os diversos mtodos de abordagem, classificao de
gneros e narrativas, traduo para sistemas lingusticos e culturais
muito diferentes do original; sedutora, porque novas e maravilhosas
paragens se descobrem na revelao do imaginrio africano e no
alargamento das fronteiras tericas da literatura e da cultura ainda
demasiado indo-europeias e ocidentais para realizarem a
indispensvel funo de descreverem e proporem uma tica e uma
esttica universais.
Felizmente, para o conhecimento dos rios culturais dos pases
africanos lusfonos, novos e valiosos contributos vo surgindo desde
h anos, continuando o trabalho dos pioneiros como Cadornega ou
Carlos Estermann que transmitiram s culturas ocidentais
informaes desenvolvidas tanto sobre a histria dos povos de
frica como sobre as suas lendas e mitos.
Contributos que no domnio da historiografia e do ensasmo
literrio so tanto mais dignos de apreo quanto mais independentes
das interpretaes religiosas, ideolgicas e polticas que at h pouco
as condicionaram demasiado. Que o digam as diversas e
contraditrias leituras crticas do luso-tropicalismo e da negritude.
A literatura africana, como o demonstram os estudos recentes,
normalmente de provenincia universitria, merece ser encarada e
aprofundada segundo os critrios vigentes no resto do mundo
cultural e literrio.
S essa atitude de maturidade, pois nela, desde o
entendimento do que uma literatura nacional at inventariao
dos seus valores, correntes, periodologia, escolas, arrolamento e
valorao dos escritores, tudo releva da autonomia prpria da
INTRODUO
11
O Autor
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1. PARTE
CAP.I
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1 O VALE DO ZAMBEZE
1.1 Sinopse geogrfica e histrica
O rio Zambeze entra em territrio moambicano, vindo do
Zimbabwe, pela localidade do Zumbo, no noroeste da provncia de
Tete. At foz, num extenso delta que vai desde a barra de
Quelimane ao norte at barra do Luabo ao sul da Vila do Chinde,
pode-se afirmar que o rio tem trs zonas territoriais diferentes: as
terras altas e montanhosas at Cabora-Bassa, as terras planlticas at
ao estreito do Lupata e finalmente as terras baixas de aluvio, daqui
ao mar. O Zambeze tem sido navegvel at Cabora-Bassa.
Para o nosso trabalho, interessa-nos fundamentalmente o
territrio que passaremos a denominar de Baixo Zambeze e que
corresponde ao que vai do Lupata foz, embora a zona intermdia
esteja intimamente ligada a esta ltima.
Em conformidade com os termos da diviso administrativa
actual, ao territrio do Baixo Zambeze correspondem os seguintes
distritos:
Chemba e Mutarara, na provncia de Tete.
Morrumbala, Mopeia e Chinde, na provncia da Zambzia.
Sena, Cheringoma e Marromeu, na provncia de Sofala.
O territrio que denominamos de Baixo Zambeze caracterizase pelo facto de ser um territrio baixo e sem relevos. altamente
irrigado, quer pelas abundantes e vagarosas guas do prprio rio,
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grupo tribal marave 2. Para ser mais preciso, ter sido do cruzamento
entre os Tongas do Brue que pertenciam ao grupo chona, e os
Mananjas que pertenciam ao grupo marave, que surgiu um grupo
tnico com caractersticas partida hbridas, como so os senas e os
nhngues. Esse hibridismo verifica-se tanto ao nvel cultural como
ao nvel lingustico. E alis a partir da observao dos aspectos
etno-culturais e dos aspectos lingusticos, que os estudiosos
consubstanciam as suas posies, quanto s origens dos habitantes
do Vale do Zambeze 3. Neles encontramos amalgamados quer o que
existe de comum entre todos os grupos de origem bantu, quer o que
constitui as principais diferenas entre os dois grupos que
consideramos como os mais provveis intervenientes no surgimento
destas comunidades ribeirinhas.
Como no nosso propsito elaborar um tratado etnogrfico
sobre os bantos de Moambique, tentaremos apenas apresentar o que
caracteriza a colectividade de quem vamos estudar as respectivas
narrativas, os senas:
A habitao rectangular ou quadrada, raramente
redonda como sucede no resto do pas. Em lugares afectados pelas
cheias, ela assente em estacas permitindo a continuao da vida
num meio aqutico. Utiliza-se a parte inferior para guardar animais,
alfaias e outros instrumentos do trabalho.
A contagem decimal, o que constitui caso singular entre
os bantus, na medida em que em todo o territrio de Moambique e
2
O grupo tribal chona ocupava a parte sul do rio Zambeze, e era seu o famoso
imprio do Monomotapa (Muene Motapa), que abrangia um vasto territrio, incluindo
parte considervel do actual Zimbabwe e todo o centro de Moambique at ao sul do
Save. O grupo marave no era menos famoso, e ocupava toda a parte norte-noroeste do
mesmo rio. Eram ambos de origem banto, mas inimigos entre si, tendo a separ-los no
s o grande rio, como tambm alguns valores culturais e etnolgicos de certa monta: por
exemplo os maraves eram matrilineares e os chonas patrilineares. O imperador
Monomotapa doou aos portugueses os territrios do Vale de Zambeze no incio do sc.
XVI, para melhor se defender do seu inimigo vindo do outro lado do rio.
3
Tew, Mary Peoples of the Lake Niassa Region, London, Oxford University
Press, pp. 30 1950.
Rita-Ferreira, A. Povos de Moambique, Histria e Cultura, Porto, Ed.
Afrontamento.
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Quando acontece um elemento sair da povoao clnica por qualquer motivo, ele
no deixa de dever obedincia ao chefe da famlia.
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O casamento um dos momentos mais importantes na vida do indivduo, e uma
grande responsabilidade para o cl. Por isso ele um dos valores que melhor
sistematizado se encontra, desde as frmulas de escolha de parceira e o consequente
processo de aproximao at efectivao das cerimnias do enlace, h rigorosas etapas
que tm de ser ultrapassadas uma a uma:
a) Lupato, que um pequeno presente dado directamente rapariga pelo rapaz.
A aceitao do presente implica o desencadeamento dos outros passos em direco ao
casamento.
b) Mpete, que um presente dado pelo padrinho como primeiro acto oficial de
aproximao entre os familiares do rapaz e da rapariga.
c) Malimbico, um reforo do presente anterior em funo do bom sucesso ou
no do acto diplomtico do padrinho.
d) Chuma, uma ddiva de transaco. A partir deste momento, o contrato
pode ser celebrado, a rapariga passa a pertencer ao homem, aguardando apenas as etapas
finais que so irreversveis.
e) Machunguzo, o apetrechamento da noiva com o fim de efectuar a primeira
visita famlia do noivo.
f) Macuchafua, que se traduz por transferncia do fogo, constitui o acto
imediatamente anterior aos ritos do casamento e so ou podem manifestar-se de diversas
formas, desde a simples prestao de servio (no campo ou construo de uma habitao)
sogra, at ao actual sistema de pagamento em dinheiro ou bens adquiridos atravs da
emigrao. A partir deste momento, a noiva deixa de pertencer definitivamente sua
famlia.
O casamento um acto social e econmico, firmado entre duas famlias. Ele no
passa de uma troca de servio entre essas famlias: uma delas cedia outra a capacidade
procriadora que assegurar a reproduo de novos indivduos que por sua vez garantiro
a sobrevivncia do grupo familiar como um corpo organizado e produtor de bens.
Em compensao, o grupo que cedia a rapariga era recompensado atravs de
ddivas devidamente sistematizadas e que foram atrs mencionadas, que acabam por
servir muitas vezes para que um irmo dessa rapariga possa por sua vez adquirir tambm
a sua noiva.
Actualmente e no contexto poltico vigente que est a pressionar certos valores no
sentido da sua supresso, tem havido muitas reservas oficiais quanto a esse modo de
processar o acesso constituio de um lar. As instncias consideram essas prticas como
negativas. No entanto tem vindo a lume quer na imprensa, quer por outras vias, que as
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O comportamento do homem na sua comunidade encontrase de certa forma regulamentado num sistema bipartido: um
indivduo ter, na sua povoao, um certo grupo de pessoas com
quem pode estar vontade, a Kusseka nauo, o que significa,
pessoas com quem podemos rir; por outro lado a existncia de um
grupo de pessoas a quem se deve o maior respeito e deferncia, a
Kunhala nauo, o que significa, pessoas de quem nos devemos
esconder ou envergonhar.
No fazem circunciso e os ritos de iniciao masculina
no so to aparatosos como em outras partes de Moambique.
O comportamento mtico e a organizao da linguagem
ritual dirige-se para trs vectores fundamentais: Natureza,
Antepassados e um Ente Supremo de contornos difusos identificado
como Deus/Chuva (mulungo) 6.
a partir destes trs polos que se pode determinar o sentido da
linguagem mtico-artstica, a dimenso da personalidade individual
e colectiva e os parmetros do comportamento profano e sacro.
Quer isto dizer que as artes, as atitudes socio-polticas, as
actividades produtivas, a moral, a educao, a distribuio da
riqueza, etc. encontram-se em relao directa (e pressupe sempre
uma ligao) com os trs vectores mencionados.
Tomemos como exemplo a escultura: ela, mais do que uma
expresso esttica de inspirao artstica e criativa individual, um
instrumento icnico esteticamente elaborado e com funes mgicoreligiosas.
A confiana na Natureza que fornece os bens de subsistncia
fortemente abalada pelas constantes calamidades e doenas, o que
cria um sentimento de insegurana permanente. Da a necessidade de
um cdigo que permita o dilogo com as foras sobrenaturais,
prticas, apesar de oficialmente combatidas, continuam a ser seguidas camufladamente e
em alguns locais chegam mesmo a adoptar outras designaes.
6
A identificao em lngua sena, atravs da mesma palavra mulungo, de Deus
com chuva no deixa de constituir uma forma de a comunidade referir em termos mticos,
o funcionamento ambguo da chuva como elemento que traz fertilidade mas tambm
catstrofe.
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A perdiz e a galinha
comem do mesmo prato
Quem contigo come
quem te belisca
Quem mais desgraado
Do que o cgado?
Diante de um tronco cado exclama:
o fim do mundo
Em terra lamacenta brada:
A terra est podre
Despertai, gentes
Vede o bicho feroz
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curioso, por exemplo, que exista hoje entre a populao, a lenda acerca da sua
prpria origem afirmando ter sido a partir da Nwala wa Sena ou seja das runas da
porta de armas da fortaleza de S. Maral, ainda hoje existente.
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H documentos do sc. XVII que referem que a influncia que os nhacazungos
por sua vez exerciam sobre os portugueses era tal que muitos europeus se conduziam
como os naturais, tendo adoptado os seus hbitos, ritos e danas, chegando as suas
mulheres a retalhar o peito e os braos maneira das mulheres africanas. Para melhor
compreenso da questo, consulte-se:
Populao e Produes no Vale de Sena in Anais do Conselho Ultramarino,
1830. Lisboa, 4. srie, pg. 104.
Lobato, Alexandre Colonizao Senhorial da Zambzia, 1962 Lisboa,
Junta de Investigao do Ultramar.
Issacman, Allen O Vale do Zambeze, 1850, 1921 Tradio de resistncia 1979.
Vila ou Praa de S. Maral, in Arquivos de Angola 1935 Luanda, vol. 1
n. 3.
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CAP. II
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comearem a abanar com fora e vires grandes clares de fogo no cu, pega na tua
famlia e foge daqui. Chegou a hora de castigo dos homens de Chita.
Na realidade naquela mesma noite, uma tempestade assolou a regio, chuvas
torrenciais, relmpagos e trovoadas, ventos ciclnicos arrasaram por completo a aldeia de
chita. Passados quarenta dias, no seu lugar, surgiu um lago que tomou o nome da aldeia
que ali existia.
Ainda hoje os pescadores tm medo de l entrar para pescar. As mulheres no
lavam a roupa no lago. De noite, ouve-se batuque e cantigas de mulheres, vindas debaixo
de gua. H quem j tenha visto surgirem das guas, galinhas e outros animais
domsticos. Tudo isto testemunha que a vida daquela gente m continua a decorrer
debaixo da gua como forma de castigo do Alm.
B A origem da morte
Noutro tempo, tendo visto Deus que os homens se interrogavam sobre o seu
futuro, mandou o camaleo para os informar que viveriam eternamente. O camaleo
partiu. Passado algum tempo, arrependeu-se Deus da sua mensagem e enviou a miripode
(Zongololo) para dizer aos homens morrereis como todos os animais.
Como o camaleo muito lento, deixou-se ultrapassar pelo zongololo que
chegou primeiro e transmitiu a mensagem que recebeu. O camaleo apareceu depois com
a outra mensagem que j no servia.
Os homens furiosos deram tabaco ao camaleo e este morreu. E os homens nunca
mais tiveram que se interrogar se morreriam ou no.
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2.6.4 A classificao
O problema da classificao das narrativas constituia sempre
uma preocupao dos estudiosos da Literatura Oral. que sem
classificao, dificilmente se pode ter bases para manejar os diversos
elementos constitutivos das narrativas, mesmo que se possua o
instrumental de elementos estruturais.
Por isso mesmo, cada estudioso prope ou adopta formas de
classificao bem concretas. O prprio Propp sentiu este problema e
dele faz meno na sua Morfologia do Conto, chegando a criticar
algumas tentativas que misturavam critrios de natureza diversa,
como por exemplo a moral da histria e as personagens. Propp
props uma classificao geral em narrativas mticas sobre animais e
sobre costumes. Os professores Autti Aarne, finlands, e Stith
Thompson, americano, propem atravs do seu Motif-Index of Folk
Litterature, constitudo por seis volumes, um critrio de
classificao baseado, em primeiro lugar, na subdiviso das
narrativas em trs grupos: Animal Tales, histrias de animais, Tales
of Supernatural, histrias de encantamento e Ordinary Tales,
histrias populares, e por outro lado, na sistematizao do elemento
formador da histria. A lista dos temas formadores de histria de
2499 motivos 14, numerados e compreendidos nas diversas
subdivises dos trs grupos gerais. Por exemplo no grupo referente
histria de animais a srie que vai de 1-99 refere-se a animais
selvagens; 100-149 animais selvagens e domsticos; 150-199
homem e animais selvagens, etc. Com este trabalho eles tentaram
sistematizar os elementos temticos da literatura oral universal.
Dividindo-os em vinte e quatro sries, que correspondem a tantas
letras do alfabeto ingls e tentando articular a letra com um nmero,
tentaram descrever o mximo de temas formadores possveis. As
vinte e quatro sries correspondem aos seguintes motivos; A
Mitologia; B Animais; C Tabu; D Magia; E Morte; F
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Narrativas Mitolgicas
Narrativas do Maravilhoso Puro
Fbulas Biolgicas
Narrativas sobre Animais
Narrativas Etiolgicas
Narrativas Humorsticas ou Faccias
Narrativas Moralistas
visvel a dificuldade que Wundt teve para manter um certo
rigor nos critrios adoptados. forado por exemplo a falar de
narrativas do maravilhoso puro em oposio s narrativas sobre
animais ou narrativas humorsticas. Na prtica, essa oposio no
se verifica, o maravilhoso pode manifestar-se nestas ltimas, uma
questo de opo do prprio contador, condicionado naturalmente
pelo contexto como foi referido anteriormente a incluso de
motivos do quotidiano ou a manuteno de elementos tradicionais.
As narrativas humorsticas, por exemplo, preferem motivos do
quotidiano.
As classificaes que temos vindo a apresentar so aquelas que
consideramos as mais pertinentes, apesar das limitaes que se lhes
reconhece. Muitas outras propostas existiro para confirmar a
dificuldade na matria. Adoptaremos naturalmente o critrio que
nos parea o mais funcional para responder aos objectivos que nos
propusemos. Neste sentido, verificamos que quase todas as
propostas de classificao apresentadas dizem respeito a questes
temticas. Da tambm a dificuldade de manter um s critrio
rigorosamente fiel, na diviso das narrativas por reas. que a
matria temtica de natureza varivel e por isso situada a nvel da
realizao dos motivos, consequentemente mais fluida nas mo do
pesquisador.
Denise Paulme, que trabalhou sobre narrativas africanas,
soube interpretar essa dificuldade e, sem fugir pertinncia das
classificaes de carcter temtico, apresenta uma classificao
trabalhando com elementos estruturais, reconhecendo contudo a
necessidade da articulao entre a classificao estrutural e a
temtica.
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Quer isto dizer que nesta linha esto aquelas narrativas que
pretendem abordar problemas ligados aos costumes da comunidade,
castigando os maus e premiando os bons.
A articulao entre a classificao morfolgica e temtica o
melhor instrumento para se entrar no campo da anlise e
interpretao do sentido das narrativas.
A narrativa oral , e j tivemos ocasio de o afirmar por outras
palavras, a mais importante forma de expresso da psicologia
colectiva no quadro de toda a tradio oral de um povo. As vrias
categorias narrativas j referenciadas (contos, mitos, lendas, etc.)
assim como os processos da sua transmisso, adaptao, contexto
narrativo, os processos pessoais de contar (entoao, mmica) a
recepo, reaco e projeco, podem determinar o ndice
intelectual da prpria comunidade, bem como o grau de
sedimentao de influncias exteriores. Alm disso, sabemos que a
narrativa funciona como registo que documenta a sobrevivncia de
usos, costumes, frmulas jurdicas, valores morais e sociais
vigentes ou esquecidos pelo tempo. Alis a ilogicidade que muitas
vezes patenteada por algumas sequncias narrativas no passa de
uma reminiscncia de valores a nvel do universo narrativo que h
muito desapareceram da sociedade.
A narrativa oral um tecido complexo que busca a sua
formao atravs da fuso de elementos regionais, representados
pelo narrador, da histria e geografia locais bem como da
linguagem actual e com elementos universais representados pelos
temas, pelos valores colectivos quer morais quer culturais e pela
obedincia a uma estrutura esquemtica herdada.
Toda a narrativa incorpora mais ou menos nitidamente quatro
aspectos da vida da comunidade, que convm ter em mente:
Aspectos geogrficos representados pelas localizaes da
aco, referncias de relevos, rios, florestas, savanas, etc., e pela
indicao implcita ou explcita dos aspectos ligados s questes de
habitao, organizao poltica e social.
Aspectos econmicos atravs do comportamento dos
elementos da sociedade quanto produo de bens alimentares,
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98
101
RESUMO DA NARRATIVA
No princpio, o cu e a terra estavam juntos. No havia nem
nuvens, nem trovoadas, nem chuva, nem noites, nem dias.
A Cobra Grande reinava nas profundezas das guas e os bichos
temiam-na e respeitavam-na.
O Sol e a Lua pairavam na juno entre o cu e a terra. Eles
eram marido e mulher. Viviam sempre juntinhos, abraados e os
seus brilhos afugentavam qualquer escurido eternamente.
O tempo no podia ser medido, por isso no se sabe por quanto
tempo durou aquilo tudo.
Um dia a Lua pediu ao Sol um filho. O Sol disse que no,
temendo perder as atenes da sua amada. A Lua comeou a
entristecer-se aos poucos e a chorar lgrimas amargas que aos
poucos a foram tornando fria, fria.
A Cobra da gua soube das desgraas da Lua, consolou-a e
brincou com ela s escondidas.
Das brincadeiras da Cobra da gua com a Lua resultou uma
gravidez que ps o Sol muito furioso. A Lua teve que pedir
proteco Cobra da gua at que nasceram dois seres muito
estranhos. Eles no eram parecidos com qualquer outro bicho at ali
existente no reino da Cobra da gua: eram o homem e a mulher. A
Lua deixou-os sobre a proteco da Cobra da gua e regressou para
junto do Sol.
O homem e a mulher comearam a dizimar os outros bichos.
Uns para comer, outros por prazer.
Todos os seres vivos juntaram-se e insistiram junto da Cobra
Grande para que expulsasse o homem e a mulher da gua. A Cobra
construiu uma almadia bem grande e nela colocou o homem e a
mulher. Foi assim que o homem e a mulher foram expulsos das
guas donde vieram e nasceram.
O homem e a mulher sentiram fome e no tinham que comer.
Andaram e a almadia foi ter a um rochedo. A mulher colheu alguns
gros e comeou a pilar, pilar. Quando pilava, o pilo batia na cara
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Quadro n. ??
FUNES
Modelo Tipo
MOTIVOS
Textuais
E.I.
(estado inicial)
Equilbrio
Felicidade
Perturbao
Confronto,
antagonismo
emergente,
resultante de
uma carncia
Transformao
Agresso
Resoluo
Punio
Desqualificao
E. F.
(estado final)
Novo equilbrio
mas em
situao de
carncia.
Temtico
Actualizao Narrativa
A ausncia de
elementos
csmicos e a
perenidade.
O cu e a terra estavam
juntos. A cobra grande
reinava sobre as guas. O
Sol e a Lua viviam felizes
um amor eterno.
A Lua pede filhos ao Sol
que recusa. A Lua fica
triste e consolada pela
cobra grande, de quem
tem dois seres.
A necessidade
de ter filhos
perturba o
amor feliz e
desencadeia
uma srie de
contradies.
O cime
provoca a perseguio dos
seres.
Os seres
dizimam os bichos das guas
A traio
punida.
O extermnio de seres
mais fracos
desqualificado.
O fruto de
amores
clandestinos
maldito.
O surgimento
de elementos
csmicos
criando uma
nova situao.
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2. PARTE
CAP. I
Histrias do Coelho
111
I
NARRATIVAS DO TIPO ASC - 1
As narrativas que classificamos de ASC-1 so fundamentalmente
de entretenimento. Para o nosso corpus, recolhemos cinco verses,
com as quais elabormos um estudo comparativo, procurando
estabelecer as variaes e, dentro do possvel, os factores que
determinaram as transformaes.
Na regio do Vale do Zambeze o coelho o heri mais
frequente para narrativas deste gnero. Em outras regies de
Moambique, os contadores tm podido utilizar outros animais de
pequeno porte para personagens das mesmas aventuras, tais como o
sapo, o camaleo, a andorinha, o cgado, a tartaruga, etc. 1. Seria
impensvel, por exemplo, encontrar no Vale do Zambeze, como
narrativa local, contos como aqueles que Henry Junod, grande
etnlogo suo que viveu no sul de Moambique em fins do sc.
XIX, recolheu, onde o prprio coelho enganado pela andorinha e
pela galinha respectivamente.
Em outras partes do mundo, podemos verificar que os povos
fazem de outros animais igualmente pequenos seus heris
favoritos: na frica Ocidental, a aranha, no Brasil a tartaruga
(o famoso jabuti), em Portugal geralmente a raposa. Por isso, as
histrias do coelho esperto, que vamos analisar, encontram
correspondncia em todas as culturas populares, porque o
imaginrio das comunidades sempre criou situaes em que os
pequeninos podem, atravs da inteligncia, da agilidade e da
argcia, suplantar antagonistas poderosos.
1
Dizemos que os contadores tm podido, porque essa possibilidade de escolha lhes conferida pela cincia etno-cultural da colectividade, que caracteriza esses animais
como seus heris preferidos.
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Quadro n. 1
O Coelho e a Hiena
FUNES
MOTIVOS
Modelo Tipo
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Felicidade
Instvel =
Euforia
Uma amizade
que um dos
parceiros quer
modificar.
E. I.
(estado inicial)
Os dois amigos
amam a mesma
rapariga, o que
suficiente
para se
tornarem
adversrios.
A utilizao da
inteligncia e
da esperteza
leva um dos
parceiros a
agredir o outro
parceiro que
demonstra a sua
ingenuidade e
estupidez.
A esperteza e a
inteligncia
devem triunfar
sobre ingenuidade e estupidez.
P.
Perturbao
T.
Transformao
Antagonismo
emergente e
inevitvel.
Agresso
R.
Resoluo
Triunfo/
Desqualificao
S. F.
Situao final
Felicidade
Estvel =
Euforia +
O triunfo
merecedor de
prmio.
Os dois chegam ao p da
rapariga, que v o coelho
montado na hiena.
A rapariga fica indignada com o
atrevimento da hiena.
A hiena apercebe-se do ridculo
em que tinha cado e foge
envergonhada.
O coelho casa com a rapariga.
117
119
Quadro n. 2
O Coelho e o Cgado
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
Textuais
Instabilidade
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
H uma amizade
pouco slida.
Um dos parceiros
pretende afastar o
outro do usufruto do
Antagonismo produto do trabalho
Inevitvel.
de ambos.
A artimanha
descoberta pelo
outro parceiro que
por sua vez prepara
a sua para se vingar,
o que faz.
A peleja prossegue,
vencendo aquele dos
contendores que
tiver lanado mo de
um maior nmero de
artimanhas.
Confronto
R.
Triunfo de
um dos
contendores
como
inevitvel
S. F.
Felicidade
Euforia
120
121
Quadro n. 3
O Coelho e o Leo
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
Textuais
Instabilidade
Antagonismo
Agresso
Triunfo/
Eliminao
Triunfo
Intranquilo
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Uma relao de
utilidade sem
grande
consistncia.
Amizade
perturbada porque
um dos parceiros
no pretende
manter a situao
de servidor.
Apesar de mais
pequeno, um dos
parceiros
consegue agredir
fisicamente o
parceiro mais
forte.
Um dos parceiros,
o mais frgil,
consegue triunfar
sobre o mais forte
e poderoso
atravs da astcia.
O vencedor no
vive em paz
porque perseguido.
122
124
Quadro n. 4
O Coelho e o Leo
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
MOTIVOS
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Instabilidade
Uma amizade
muito prejudicada por causa
das rivalidades.
As relaes entre
os parceiros so
perturbadas
porque cada um
pretende dar uma
lio ao outro.
Maliciosidade
Os dois parceiros
pem prova,
perante os pais da
rapariga, as suas
capacidades e a
sua astcia.
T.
R.
S. F.
125
Quadro n. 5
O Coelho e o Sapo
FUNES
MOTIVOS
Modelo Tipo
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
E. I.
Situao
Interesseira
Uma amizade
baseada apenas
num interesse
comum.
Um dos parceiros
resolve livrar-se
do outro comprometendo-o. O
objectivo ficar
com o produto do
roubo s para si.
Sem poder
defender-se, um
dos parceiros
acaba por arcar
com as
responsabilidade
s do roubo.
O parceiro
ingnuo que se
deixou enredar
eliminado.
P.
T.
Antagonismo
Unilateral
Agresso
R.
Triunfo/
Desqualificao
S. F.
Felicidade
Final
O parceiro
O coelho fica com todo o
triunfante fica marfim para si.
com o produto do
roubo.
127
Quadro n. 6
O Coelho e o Macaco
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
Textuais
Amizade
inconsistente
Antagonismo
Agresso
R.
Triunfo/
Autofagia
S. F.
Felicidade
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
As frices
acabaram por
surgir porque um
dos parceiros no
se aplicava ao
trabalho. Alm
disso na altura da
colheita, o mesmo
parceiro limita-se
a comer o que
colhe.
Um dos parceiros
resolve dar uma
lio ao outro
marcando-o para
o resto da vida.
Um dos parceiros
aceita ser mutilado sem se
aperceber que
estava a cair numa armadilha.
Comeu a sua
prpria cauda.
129
Anlise Comparativa
O esquema estrutural das seis narrativas que apresentamos
oferece uma identidade que no carece de demonstrao.
As variaes que podemos, pontualmente, verificar, numa ou
noutra narrativa, dizem respeito a uma articulao semntica estreita
entre o sentido operativo de uma dada constante com a sua
respectiva actualizao narrativa.
Por nos parecer que aquela que etnologicamente corresponde
ao padro das narrativas deste gnero, escolhemos a narrativa do
Coelho e da Hiena como ponto de partida e primeiro termo de
comparao na nossa anlise. Obrigam-nos vrias razes: por um
lado uma razo de ordem metodolgica exige que, se vamos
trabalhar na anlise das transformaes, partamos sempre de um
ponto fixo que nos sirva de referncia. Por outro lado, j tivemos
ocasio de dizer que o coelho e a hiena eram personagens com
caracterizao j feita partida e a sua escolha para contracenarem
pode determinar a marcha da prpria narrativa. Nesta narrativa, os
circunstantes esto avisados pela cincia colectiva sobre os papis a
desempenhar pelas personagens. No h surpresas, gradual
situao de euforia para o coelho corresponder a cada vez maior
desgraa para a hiena.
A substituio da hiena por outra personagem para contracenar
com o coelho no pode ser encarada como uma simples operao de
superfcie, em que tudo se mantm na mesma, excepto o nome do
parceiro do coelho. Muitas vezes, esses novos parceiros possuem
uma caracterizao prvia que se no coaduna com o papel que
devem desempenhar em narrativas ao lado do coelho.
Tomemos comparativamente a segunda narrativa em que entra
o cgado para o lugar da hiena. Analisando o respectivo quadro
estrutural, verificamos que h algumas modificaes a nvel das
constantes que no permitem que a actualizao narrativa seja to
linear como no caso da primeira narrativa.
130
135
136
II
NARRATIVAS DO TIPO DESC-1
Recolhemos para o nosso corpus quatro narrativas que
classificamos como sendo do tipo DESC-1, isto quer dizer que tm o
mesmo gnero de personagens que as narrativas que acabmos de
analisar, mas o seu esquema estrutural inverso. Por outro lado,
tnhamos definido que o grupo anterior se caracterizava
essencialmente pelo seu aspecto ldico e de entretenimento. No
presente grupo, porm, aparece-nos com maior nitidez a
preocupao didctica, atravs da punio das transgresses. O
coelho, que continua sendo a personagem central, j no sai ileso e
triunfante. As suas maldades so punidas, o que nos faz pensar que o
peso dos valores transgredidos exige que se ponha de parte a
tipologia da personagem.
Por isso, o eixo dessas narrativas desloca-se da rea de
entretenimento e aventuras para a de interdies e transgresses:
tirar a vida prpria me por motivos explcitos ou no. Nas
narrativas do tipo ascendente, o desenlace da histria est
fortemente colado a caractersticas das personagens, como tivemos
oportunidade de referir. Neste caso, em que as narrativas so do
tipo descendente verificamos que tudo est dependente da prpria
temtica, passando para o segundo plano, o valor tipolgico da
personagem. Alm disso, verificamos que no h grande variao
dos motivos temticos, que se reflecte, naturalmente, na
actualizao narrativa.
Estruturalmente, podemos esquematizar as quatro narrativas,
da seguinte forma:
137
139
Quadro n. 1
O Coelho e a Hiena
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
Textuais
Estabilidade
Combinao
dolosa
Transgresso
Confronto
Punio
Solido
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Existncia de
uma amizade.
Um dos parceiros
engana o outro
por no ter
cumprido com o
combinado:
Matar a me.
A modificao
do
comportamento
do parceiro leva
o que cumpriu
com o
combinado
desconfiana.
Descoberta do
engano.
Eliminao da
me pelo
parceiro
enganado.
Ruptura
140
141
Quadro n. 2
O Coelho e a Hiena
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
Textuais
Estabilidade
Combinao
dolosa
Transgresso
MOTIVOS
Temtico
Existncia de
O coelho e a hiena eram
uma amizade e muito amigos e trabalhavam
trabalho comum. para o mesmo patro.
Um dos parceiros
no cumpre o
que tinham
combinado:
Matar as mes.
Descoberta do
truque.
A
hiena
comeou
a
emagrecer, ao passo que o
coelho engordou, porque
todos os dias ia comer junto
da sua me. A hiena
desconfiou, seguiu o seu
amigo e descobriu tudo.
A me poupada
pelo filho
eliminada pelo
parceiro
enganado.
Confronto
Consequncia do
desmascarament
o
Punio
Actualizao Narrativa
Ruptura
A hiena disse: Tu no s
bom amigo; a partir de hoje
seremos inimigos.
142
144
Quadro n. 3
O Coelho e o Gato Bravo
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
MOTIVOS
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Estabilidade
Existncia de
uma amizade,
trabalho e amor
maternal.
Transgresso
Resolvem ambos
os parceiros
combinar a morte
das respectivas
mes.
Um dos parceiros
no cumpre com
o combinado e o
truque
descoberto.
Eliminao da
me poupada
pelo filho de
forma dolosa.
Punio
Solido
Confronto
Ruptura
145
148
Quadro n. 4
O Coelho e o Canguru
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
MOTIVOS
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Uma amizade
perene e total.
Os dois parceiros
combinaram
matar as mes
para se
apropriarem das
suas provises.
Um dos parceiros
no cumpre com
o combinado e o
truque
No
descoberto.
cumprimento da
combinao e
confronto
Estabilidade
Transgresso
Punio
Ruptura
149
Anlise Comparativa
Verificamos partida que os sintagmas narrativos sofrem
variaes pouco sensveis, mesmo quando h mudana de
personagens que emparceiram com o coelho. Desta forma,
tentaremos, nesta anlise, debruarmo-nos sobre a variao dos
paradigmas, descrevendo-os e tentando explicar o seu valor
etnogrfico.
Observamos que o carcter jocoso encontrado nas narrativas do
tipo ascendente, desaparece por completo. Estas narrativas do tipo
descendente no possuem a componente de entretenimento
evidenciada para que a outra componente, a da exemplaridade, possa
aparecer. No por acaso que a maior parte das narrativas que tm
como objectivo central a exemplaridade de costumes ou de valores
comunitrios e etnogrficos, esto estruturalmente esquematizadas
de forma descendente. que a punio final sobrepe-se s
aventuras patentes na aco.
A rigidez estrutural e a quase invariabilidade temtica levamnos a fazer alinhar estas narrativas num grupo que tambm fazem
parte as narrativas de costumes e dos monstros comedores de
homens. nossa opinio que este grupo de narrativas pode muito
bem ter sido, uma atenuao gradual de narrativas mitolgicas que
foi sendo efectuada ao longo dos tempos e localmente, devido a
conjunturas etnolgicas apropriadas.
Havia uma amizade entre dois parceiros. Essa amizade decorria
de uma actividade comum, o trabalho, que podia ser agrcola, ou de
recoleco, ou caa, bem como na segunda narrativa, um trabalho
no especificado, com indcios de assalariamento. Claro que no
universo das narrativas de tradio oral, as actividades produtivas
mais conformes com a sua origem so as de recoleco, caa, pesca
e agricultura. Por isso, o assalariamento na segunda narrativa, um
indcio claro da introduo de uma actividade de natureza urbana.
No entanto, convm realar o facto de que a adopo do
assalariamento se verifica ao nvel da actualizao narrativa e de
tal forma pontual que no chega a interferir no sistema de
150
Tal como sucedeu com a utilizao do cavalo como parceiro do coelho, numa
das narrativas do tipo ascendente, aqui menciona-se o canguru. Ora este animal no
existe no Vale do Zambeze e no sabemos mesmo se conhecido. Pensamos, por isso,
que teria havido uma tentativa da sua introduo pelos povos da Oceania, quando
passaram pelo Vale do Zambeze, sem ter havido xito.
151
III
NARRATIVAS DO TIPO CICL-1
A finalizar o captulo sobre as histrias do coelho, vamos
apresentar seis narrativas em que ele entra em confronto com mais
do que um parceiro. As narrativas deste grupo voltam a ser
essencialmente de aventuras e entretenimento e o seu esquema
estrutural resulta da juno do sistema ascendente ao sistema
descendente, numa alternncia de sequncias potencialmente elevada
ao infinito. Geralmente, os narradores preferem terminar as
narraes numa estrutura do tipo ascendente. Porm, nada impede
que teoricamente possamos considerar a existncia de uma narrativa
cclica que termine numa sequncia descendente. J tivemos ocasio
de afirmar que as possibilidades de associao, na literatura de
tradio oral, so surpreendentemente abundantes. Pensamos que o
carcter fundamentalmente ldico das verses que possumos
explicar a preferncia dos narradores em terminar pela sequncia
ascendente, que uma terminao de triunfo do coelho sobre todos
os restantes animais.
Nestas narrativas retoma-se a importncia tipolgica da
personagem e a sua caracterizao tem influncia sobre o significado
dos sintagmas narrativos.
Como resumo estrutural podemos apresentar as narrativas que
vamos analisar da seguinte forma:
1 O coelho desafia a comunidade animal.
2 Os animais utilizam todos os esforos ao seu alcance para
o apanharem, mas este, usando de manhas e truques, consegue
escapar.
154
157
Quadro n. 1
Ano do Sol
FUNES
Modelo Tipo
Textuais
E. I.
Instabilidade
P.
Falta de
Solidariedade
T.
R.
Confronto
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Existncia de
grande sofrimento
entre os animais
por causa de uma
calamidade
natural.
A unio de todos
para enfrentar a
calamidade
excepto um deles.
O refractrio
impedido de usufruir do trabalho
dos outros. Ele
vai responder com
manhas
enganando-os. O
mais pequeno dos
guardas consegue
aprision-lo.
H uma alegria
geral pela priso
do elemento
perseguido e a sua
condenao por
Punio
todos exigida.
iminente.
Adiamento da Para escapar ao
punio
seu fim, o
elemento perseguido tem de
recorrer a novos
truques.
160
Quadro n. 1 (continuao)
FUNES
Modelo Tipo
S. F.
Textuais
MOTIVOS
Temtico
A ingenuidade de
ter aceite a
Reposio da satisfao da ltima
situao inicial
vontade do
de instabilidade condenado leva-os
e perseguio.
a permitir mais
Triunfo
uma vez a fuga do
precrio.
condenado. Mas a
perseguio
continua.
Actualizao Narrativa
161
10
163
Quadro n. 2
Dia de Festa
MOTIVOS
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
Textuais
Instabilidade
Actualizao da Narrativa
Um dos sbditos
resolve no
cumprir com o que
foi decidido e
actua utilizando a
Desobedincia nica fora de que
poderia dispor: a
esperteza.
A perseguio
quase coroada de
xito. O elemento
perseguido recorre
a novos truques.
O truque surte
Reposio da efeito e o elemento
situao inicial perseguido logra
escapulir-se.
de
instabilidade e
perseguio.
T.
Confronto
R.
Punio
iminente.
Punio
adiada.
S. F.
Temtico
164
165
Quadro n. 3
O Coelho e os Macacos
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
(1)
T. (1)
R.
S. F. (1)
E. I. (2)
Textuais
Instabilidade
Agitao
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Existncia de uma
situao de
constante
confronto.
O elemento
perseguido
apanhado e preso
de forma a ser
submetido a
julgamento.
H a utilizao de
um truque que
Punio adiada.
permite ao
Continuidade
elemento
da instabilidade
perseguido
inicial
escapulir-se.
Confronto
Punio
iminente
167
Quadro n. 3 (continuao)
FUNES
Modelo Tipo
P.
T.
Textuais
Deslealdade
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Eliminao dos
filhos do seu
senhor sem
motivo
aparente.
Para escapar a
uma punio, o
elemento
culpado procura
uma sada
Truque agressivo
atravs de
artimanhas.
O truque surte
efeito e a
ingenuidade
paga por um
crime no
cometido.
R. (2)
S. F. (2)
Agresso
Triunfo
168
170
Quadro n. 4
O Coelho e os Ces Selvagens
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
Textuais
Instabilidade
Intriga
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Existncia de
uma situao de
permanente
confronto com
terceiros.
H uma
perturbao na
confiana entre
dois amigos.
A fora contra a
manha.
O truque surte
efeito e o
perseguidor
desviado do seu
objectivo.
Confronto
Punio
adiada
Triunfo
A perseguio
imediata cessa
mas a
instabilidade
continua.
171
173
174
Quadro n. 5
O Coelho e as Cinzas
FUNES
Modelo Tipo
Textuais
E. I. (1)
Instabilidade
P.
Dissolidarizao
T.
Confronto
R. (1)
Execuo do
truque
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Quadro n. 5 (continuao)
FUNES
Modelo Tipo
Textuais
S. F. (1)
E. I. (2)
Punio
adiada
P. (2)
Novo
antagonismo
T. (2)
R. (2)
S. F. (2)
E. I. (3)
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
O triunfo
passageiro. A
instabilidade
continua.
Descoberta da
armadilha.
A luta agora
entre a fora e a
manha.
A artimanha.
A ingenuidade
punida.
Novo
confronto
Novo Triunfo
Eliminao
176
178
Quadro n. 6
O Coelho e o Cgado
FUNES
Modelo Tipo
Textuais
E. I.
Instabilidade
P.
T.
R.
MOTIVOS
Temtico
Luta entre o
trabalho e o
oportunismo.
xodo
Confronto
Demanda da
justia
Actualizao Narrativa
Ineficincia da
justia legal.
Recurso ao
truque para o
efeito.
Surgimento de
uma aliana.
179
Quadro n. 6 (continuao)
FUNES
Modelo Tipo
S. F.
Textuais
Triunfo
MOTIVOS
Temtico
Punio do
oportunismo
Actualizao Narrativa
180
ANLISE COMPARATIVA
J tivemos a oportunidade de falar sobre as caractersticas
estruturais das narrativas do Tipo CICL-1. Importa agora proceder
comparao das variaes que fomos verificando nos motivos
temticos, tentando ao mesmo tempo, interpretar o sentido das
combinaes que constituem as variantes.
A comear pela situao inicial, temos que a instabilidade se
caracteriza normalmente ou pela existncia de uma calamidade
natural (fome, seca, cheias) a que o coelho no liga importncia,
recusando-se a participar, com os restantes animais, no seu combate;
ou ento, a situao inicial apresenta-se j integrada no segundo
sintagma, o da perturbao. Nestes casos, o coelho surge logo no
incio da narrao numa situao de perseguido por razes implcitas
de ter provocado, humilhado ou enganado os restantes animais.
Inclumos, no primeiro caso, as narrativas apresentadas nos quadros
nmeros 1, Ano de Sol, nmero 5, O Coelho e as Cinzas e nmero 6,
O Coelho e o Cgado. Para ns, o esquema original de narrativas do
tipo cclico devia obedecer ou ento associar-se a uma situao
inicial de calamidade. As restantes narrativas do mesmo grupo,
consideramo-las derivadas do grupo anterior, elas introduzem um
elemento etnogrfico de valor: a denncia das prepotncias dos
grandes, a narrativa nmero 2, Dia de Festa.
A falta de solidariedade do coelho, face ao trabalho colectivo,
de combate a uma calamidade natural, vai contra os princpios e os
valores defendidos pela comunidade. Desta forma e dada a
abundncia de verses que existem sobre o tema, temos de aceitar
que, ou se dilui a razo subjacente que justifique essa falta de
solidariedade, se considerarmos que o coelho um heri, ou ento
que devemos aplicar um sinal de sentido contrrio ao explcito na
narrativa. Com efeito, toda a narrativa apresenta um confronto
entre o indivduo e a colectividade. Em aparncia, a colectividade
nada praticou que linearmente justifique o triunfo do seu
adversrio, nem o indivduo praticou algo transcendente para
ganhar colectividade. Esta aparente contradio refora a nossa
181
11
O truque dos ossos atirados aos ces e principalmente a cena do buraco em que
o coelho se esconde, tentando convencer o co selvagem que este tinha agarrado uma raiz
em vez da sua perna, so sintagmas universalmente cristalizados e surgem em muitas
narrativas do gnero como ltimo recurso, numa situao de apuros.
Na literatura escrita, Mrio de Andrade recorre mesma cena na sua obra
Macunama, inspirado naturalmente nas narrativas de tradio oral brasileira, como
alis toda a obra em si.
No nosso corpus temos mais narrativas que utilizam a cena do buraco. O truque
em si mais ldico do que simblico.
182
Alm dos mais sacrificados que so a hiena e o macaco, surgem tambm como
vtimas directas do coelho, sofrendo e pagando por actos que no praticaram, o javali, o
elefante, o hipoptamo ou mesmo o leopardo e o leo, e raras vezes o prprio homem.
184
CAP. II
Heris Desprezados
Raparigas Casadoiras
187
188
189
190
191
192
196
Quadro n. 1
As Donzelas de Marranche
Narrativas do tipo CRUZ-2
FUNES
MOTIVOS
Modelo Tipo
Textuais
Textuais
Actualizao Narrativa
E.I.
Euforia
(oponente)
Carncia
(heri)
Partida
despreocupada
com a excluso
do heri.
P.
T.
Desobedincia
e consequente
agresso
Tomada
gradual do
controlo da
situao
R.
Salvamento
S.F.
Triunfo
(heri)
Punio
(oponente)
Ignorncia
deliberada da
excluso.
Heri cumpre a
sua misso
Qualificao do
heri e
consequente
desqualificao
do oponente
197
199
Quadro n. 2
A Menina Bonita
Narrativas do tipo ESPI-2
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
Textuais
Carncias
Transgresso
Partida
Revelao
Salvamento
Estabilidade
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Falta de noivo
adequado.
Hesitao na
escolha.
Aceitao de
um pretendente
desconhecido e
exterior ao cl.
O heri
desvenda a
situao real de
perigo.
200
202
Quadro n. 3
Os Dois rfos
Narrativa do tipo ESPI-2
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
P.
T.
R.
S. F.
MOTIVOS
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Carncia
Falta de um
noivo adequado.
Hesitao na
escolha.
Transgresso
Partida
Revelao
Salvamento
Estabilidade
Heri salva a
irm.
Vida em
segurana.
203
ANLISE COMPARATIVA
Mediante os trs quadros apresentados, pretendemos
demonstrar a organizao estrutural de trs narrativas cujo tema gira
volta de um eixo comum: os perigos que podem aparecer quando
os passos para o casamento no so conduzidos dentro dos
parmetros culturais definidos pela comunidade.
O heri comum s trs verses o irmo mais novo. Este heri,
menosprezado partida pelos oponentes, representa a conscincia
colectiva que vigia de perto a preservao dos valores sagrados que
permitem a manuteno da tribo. O heri vence os seus adversrios
com ou sem auxiliares mgicos, o que constitui variaes textuais.
No que diz respeito s narrativas que estamos a analisar, em todas
elas o sobrenatural (auxiliar mgico) manifesta-se atravs da arca
(ou gaiola) voadora. Este facto leva-nos a pensar numa
contaminao de motivos de narrativas do maravilhoso de origem
asitica, a partir do tapete voador. Por outro lado, apesar de a arca
(ou gaiola) funcionar como um auxiliar mgico, a narrativa no faz
qualquer referncia explcita ou implcita de quem seja o seu dador,
nem sequer descreve o percurso feito pelo heri para se tornar
merecedor do auxlio sobrenatural, tal como feito nas narrativas do
gnero. por isso que pensamos que a ausncia de mais dados
sobre a aquisio de auxiliares mgicos e o consequente contacto
do heri com seres sobrenaturais comprovam que o motivo do
tapete voador uma introduo ulterior. O carcter srio das
narrativas no permite que o heri usasse de manhas como nas
histrias do coelho, para vencer os seus adversrios. Alm disso, a
utilizao dos auxiliares voadores para fugir de adversrios
poderosos um motivo Universal, presente em todas as
civilizaes nos reportrios do maravilhoso.
A presena de animais selvagens e ferozes simboliza o perigo
de um mundo desconhecido, funesto, que traz a calamidade. No
por acaso que os ritos de terror so representados atravs de figuras
204
209
211
212
213
214
215
216
Quadro n. 1
O Rapaz do Conho
Narrativa do tipo ASC-2
FUNES
Modelo Tipo
E. I
P.
T.
R.
S. F.
Textuais
MOTIVOS
Temtico
Actualizao Narrativa
Abandono e
desprezo.
Desafio ao
cepticismo geral.
Obteno dos
auxiliares mgicos.
Carncia
Insistncia
Ultrapassagem
das barreiras
Cumprimento da
misso.
Triunfo.
Euforia plena.
Qualificao
Abundncia
217
220
isso, por favor, tudo tem explicao. O rapaz estava renitente. Ela
desesperada, rebolou a seus ps e suplicou de joelhos agarrada s
suas pernas. Perante esta atitude, o rapaz cedeu. Foram. A irm
preparou-lhe um bom banho e introduziu-o num bom quarto onde
estendeu uma boa esteira. Tirou tudo o que de bom tinha dado ao
outro. E depois foram conversar, e esclareceram o que se tinha
passado.
Acabada a conversa, a irm foi para o seu quarto e chorou
amargamente.
Expulsou o impostor e tudo voltou normalidade, tendo o
rapaz casado com uma rapariga da povoao.
222
Quadro n. 2
Os Dois rfos
Narrativa do tipo COMP-2
FUNES
MOTIVOS
Modelo Tipo
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
E. I.
Carncia
Falta da Me
Falta de riqueza
1 Afastamento
Separao
atravs do
casamento e
emigrao.
2 Agresso
Deslealdade.
P.
3 Esquecimento
T.
Revelao
R.
Autenticao
O heri recupera
a sua posio de
irmo.
(Recuperao de
posio perdida).
S. F.
Estabilidade
Reconciliao
Felicidade
223
ANLISE COMPARATIVA
As duas narrativas apresentam-se organizadas numa estrutura
semelhante. A sua linha de evoluo ascendente. No entanto,
preferimos atribuir segunda a designao de complexa porque nela
encontramos uma certa descontinuidade nas sequncias, o que nos
permite estabelecer sequncias de certa forma autnomas, mas
interligadas por fora da presena de um mesmo tipo de heri.
Um dos aspectos que mais chama a ateno na primeira
narrativa a presena de vrias referncias geogrficas reais. Este
facto no tem por objectivo garantir a verosimilhana da histria
contada, mas to somente evidenciar a competncia do contador em
situar aquilo que conta numa realidade social actualizada, em
princpio, a sua 10. A utilidade deste processo reside na possibilidade
que os auditores tm de identificar os passos das personagens com
os seus prprios, avaliando-lhes as dificuldades em comparao com
as que algumas vezes eles prprios tero sentido num mesmo espao
geogrfico. Ou ento porque assim mais fcil imaginar essas
mesmas dificuldades.
Por outro lado, na segunda narrativa, devemos salientar a
referncia directa emigrao. Assim, e por razes histricas que j
explicmos na primeira parte, a cidade da Beira entrou para o
universo imaginrio da tradio oral. Narrativas, canes, ditos,
provrbios passaram a incorporar o nome da cidade da Beira como
uma etapa na vida dos rapazes, antes do casamento.
Comparativamente, teremos que a referncia aos lugares
geogrficos na primeira narrativa dependem da competncia do
narrador, so por isso aleatrias e funcionam como uma simples
amplificao, enquanto que na segunda narrativa, a referncia
geogrfica de natureza colectiva, assumida como uma passagem
ritual necessria entre dois estados: solteiro/casado. Trata-se pois de
uma assimilao em que se processou uma substituio interna de
10
parte.
224
11
229
CAP. III
230
INTRODUO
O presente captulo quanto a ns, aquele que possui maior
complexidade. Com efeito, as duas narrativas que apresentamos,
aparentemente so da mesma natureza; mas um olhar mais atento
acaba por evidenciar mais diferenas que semelhanas. Por isso
mesmo, hesitmos bastante em junt-las dentro do mesmo captulo,
acabando por nos decidir pela incluso, apenas a partir da
semelhana externa quanto caracterizao sumria das
personagens 1.
Em linhas gerais, podemos apresentar as diferenas
fundamentais, antes de entrarmos propriamente na anlise
comparativa das variaes, porque, no fundo, estamos convencidos
que, embora haja aproximaes, as duas narrativas no constituem
verses variadas de uma mesma narrativa, como tem sucedido com
as narrativas dos captulos precedentes.
No primeiro texto estudado, encontramos um universo que
pode representar algo comum a todas as civilizaes: para garantir a
sobrevivncia das colectividades, a Natureza exige sacrifcios reais e
rituais; a comunidade dispe-se a consentir tais sacrifcios, incluindo
a oferenda dos seus elementos mais preciosos, por exemplo, a morte
das donzelas 2.
1
A maior parte das narrativas sobre os dois irmos apresenta-os como sendo
absolutamente iguais sob o ponto de vista fsico. Quase sempre gmeos. O seu
antagonismo situar-se- no plano do carcter.
233
234
238
241
Quadro n. 1
Os Filhos da Cobra Bona
Narrativa do tipo COMP-3
FUNES
MOTIVOS
Modelo Tipo
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
E. I.
Carncia
Ausncia de
Filhos.
Filhos
concebidos fora
do tempo por
interveno
sobrenatural.
Me e filhos
vivem o dia a
dia.
Partida dos
filhos.
O falso heri no
segue as
recomendaes
dadas e
transgride.
O heri segue as
recomendaes,
cumpre.
O inesperado
P. (1)
E.I. (2)
P. (2)
Transformao
em espelho
Estabilidade
Separao
Confronto
indirecto
atravs da
ultrapassagem
das provas
difceis
242
Quadro n. 1 (continuao)
Os Filhos da Cobra Bona
FUNES
Modelo Tipo
E. I. (3)
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Instabilidade
Terror entre os
habitantes de uma
determinada
povoao.
Desafio
P. (3)
Transformao em
cruzamento
R.
S. F.
MOTIVOS
Confronto
directo e
indirecto
Desqualificao do falso
heri e
qualificao
do heri
Punio do
falso heri e
prmio ao
heri
O falso heri
desmascarado e o
heri aclamado
como vencedor.
O falso heri
condenado a
desaparecer. O
heri torna-se
poderoso.
243
2 OS TRS IRMOS
Uma mulher que tinha trs filhos vivia sozinha, sem marido. A
sua idade no permitia cuidar bem do campo de milho. No entanto
ela verificou que havia bichos estranhos que davam cabo da sua
plantao.
Um dia, resolveu mandar o filho mais velho verificar o que se
passava. O rapaz partiu. O rapaz andou, andou e a meio do caminho
encontrou uma velha leprosa que pedia comida. O rapaz disse:
Deixa-me em paz, velha horrenda, tenho pressa. Dizendo isso
empurrou-a com um p. Quando chegou machamba viu muitos
cavalos do cu a comerem o milho. O rapaz ficou assustado, fugiu e
voltou para junto da me, contou o que vira e recusou-se a voltar l.
A me ficou muito triste porque o filho mais velho no tinha
coragem. Mandou ento o filho do meio. Este andou, andou. E
encontrou uma velha leprosa que lhe pediu de comer. O rapaz disse:
Deixa-me em paz, velha leprosa, que tenho pressa. E deu-lhe um
pontap. L no campo, encontrou os cavalos do cu. O campo estava
a desaparecer. Eles eram muito vorazes. O rapaz fugiu e foi contar
me o que vira, jurando que nunca mais l punha os ps. A me
lamentou a cobardia dos filhos. S lhe restava o mais novo. No
fundo, ela j no tinha esperanas de salvar fosse o que fosse do
campo de milho.
O rapaz mais novo l foi. Andou, andou. Encontrou a velha
leprosa: Bom dia, av, disse o rapaz e tratou-lhe das feridas, tirou
do seu po e partiu metade e deu-o velha.
A velha ficou muito agradecida e disse-lhe: Vai e no temas.
Ele no sabia que aquela velha era uma feiticeira e apareceu ali para
ver se ele tinha bom corao.
Chegou ao campo e viu os cavalos do cu a comerem o milho.
O rapaz arranjou um corno curvo e soprou com fora, como se fosse
uma trombeta. Os cavalos fugiram. E ele colheu o milho que restava
e levou-o para junto da me.
Os irmos ficaram despeitados e disseram: Agora a nossa me
s vai ter olhos para o nosso irmo mais novo e tudo o que de bom
244
245
248
Quadro n. 2
Os Trs Irmos
Narrativa do tipo ACS-3
FUNES
Modelo Tipo
E. I.
MOTIVOS
Textuais
Temtico
Actualizao Narrativa
Carncia
Viuvez,
incapacidade de
cuidar do campo
devastado.
P.
Despeito
A harmonia
familiar quebrada
por causa da
rivalidade que
surge entre os
irmos.
T.
Confronto
Vrias tentativas
para aniquilar o
heri.
Triunfo
O heri ultrapassa
todos os obstculos
vencendo os
adversrios.
O heri acede ao
poder e riqueza.
R.
S. F.
Apoteose
249
Anlise Comparativa
Como j tivemos ocasio de dizer, apenas o primeiro texto
aquele que apresenta aspectos mais conformes com os pressupostos
de significao e simbologia que nos propomos analisar. Mostrmos
tambm, em linhas gerais, em que pontos o segundo texto se desvia
do primeiro: Enquanto o primeiro texto junta estruturalmente duas
narrativas, sem no entanto, se perder a linha temtica de cada uma (a
histria dos dois irmos e a histria do monstro comedor de
pessoas), o segundo texto tem como tema principal a histria dos
irmos, o monstro surge como um adjuvante das personagens do mal
e funciona como aglutinador das provas difceis que o heri deve
ultrapassar; por outro lado, o primeiro texto mantm mais equilbrio
constante ao nvel da linguagem sria, incorporando os auxiliares
mgicos ao longo de toda a narrativa, o segundo texto inicia-se num
plano semelhante mas acaba por preterir esses aspectos iniciais
adoptando uma posturalidade ldico-jucosa, em que a personagem
recorre astcia do tipo histrias do coelho que analismos atrs:
por fim, podemos dizer que a maior diferena vista desarmada
estar exactamente no facto de o segundo texto apresentar um
monstro quase humanizado, que vive fora do seu habitat mtico, tem
esposa, sogros e filhos. Em termos comparativos, no existe grande
diferena de significao entre o monstro e os animais de grande
porte que o coelho ludibria e vence.
Passando agora anlise mais aprofundada, e comeando pela
primeira narrativa, logo no comeo da narrao vemos o nascimento
mitolgico do heri, a cobra Bona fecundou a mulher que era
estril e de idade avanada 5.
Sempre que h um nascimento mitolgico, isto , fora do
normal, a criana, ou crianas no tero as caractersticas do homem
5
Chamamos a ateno do leitor para a narrativa que nos serviu de exemplo inicial
nesta segunda parte do trabalho: a cobra da gua teve dois filhos, o homem e a mulher, a
partir da relao com a lua. Esta cobra da gua ou cobra Bona uma figura benfica que
gradualmente se foi transformando ao nvel referencial passando a ser identificada com o
monstro de vrias cabeas, comedor de pessoas.
250
Por razes que tentaremos explicar mais adiante, nesta narrativa no h nem luta
directa entre os dois irmos, nem o heri destri o falso heri. Mas os motivos temticos
que preenchem as funes de confronto entre o falso heri com o heri, bem como a
apoteose final correspondendo destruio do falso heri, esto presentes com outra
actualizao narrativa.
251
254
Quer isto dizer, que os dois irmos mais velhos no representam, por
isso, duas personagens diferentes, mas sim uma mesma personagem
intensificada nas suas caractersticas, atravs do processo de
duplicao. Assim, a reiterao da transgresso do filho mais velho,
pelo filho do meio, funciona como uma redundncia que intensifica
as caractersticas da figura do falso heri, aqui representado por duas
personagens siamesas. E tal como na primeira narrativa, a
transgresso provoca o desmerecimento quanto obteno de
auxiliares mgicos.
Analisando a partida, verificamos que, nesta narrativa, ela se d
aps as transgresses e insucesso dos dois mais velhos na
ultrapassagem das provas difceis, contrariamente ao sucesso do
irmo mais novo. O mesmo no aconteceu na primeira narrativa, em
que a partida antecede as provas difceis. Por outro lado, ainda nesta
narrativa, o irmo mais novo insiste em partir com eles, apoiado pela
me. So duas modificaes a considerar. A natureza herica do
filho mais novo assumida logo no momento da partida, a me
concordou, porque sabia que os dois filhos mais velhos no
conseguiriam salvar-se dos perigos sem a ajuda do mais novo. As
provas difceis j tinham sido apresentadas s personagens. Na
narrativa anterior, a partida, alm de no ser do mesmo tipo, os dois
irmos separam-se antes de se confrontar com as provas de
qualificao. A enunciao, de facto, faz uma pequena referncia
diferena de carcter entre os dois, mas tirando isso, a qualificao
das personagens posterior partida. Pensamos que no se trata de
uma simples e arbitrria forma de ordenamento dos motivos
temticos na estrutura textual da narrativa. Na histria dos dois
irmos analisada em primeiro lugar, o que parte deixa plantado um
arbusto indicador dos perigos que ir correr. E o segundo s parte
quando o arbusto comea a murchar, sinal de inxito diante da
provao. Na histria dos trs irmos, porm, atendendo mesmo ao
facto de que os trs, nesta narrativa, representam, na realidade, dois,
verificamos que a partida originada por um despeito perante um
fracasso anterior diante das provas. Os dois irmos mais velhos
perdem em benefcio do irmo mais novo, o seu prprio estatuto
256
No primeiro texto, um dos gmeos diz: Me, chegou a minha hora, tenho que
partir, para procurar a vida...
No segundo texto, os dois mais velhos afirmam: Vamos embora daqui, pois o
nosso irmo vai ser o mais querido, nada temos a fazer aqui...
257
H aspectos nesta narrativa que tm a ver com a vida real recente, tais como,
procurar emprego, o que pressupe uma forte influncia da realidade actual ou passada
prxima. No captulo que se vai seguir, o nosso estudo ir debruar-se fundamentalmente
sobre este tipo de narrativas.
11
Como j tivemos ocasio de referir, a influncia exterior na tradio oral do
Vale enorme. Tal como Denise Paulme descobriu narrativas africanas que incorporam a
temtica da Cinderela, so inmeras as narrativas com motivos temticos de narrativas
clssicas de origem europeia ou asitica, no Vale.
258
259
3. PARTE
Narrativas de Costumes
260
INTRODUO
As narrativas que constituem corpus que vamos analisar a
partir deste momento no so do mesmo gnero das at aqui
analisadas. Estas oferecem caractersticas que podemos sistematizar
da seguinte maneira:
1. No possuem personagens tpicas, volta das quais se
constri a histria. A sua histria gira volta de valores etnoculturais especficos.
2. A sua aco decorre num espao e num tempo que
podem ser identificados. Quer isto dizer que procuram criar a iluso
de actualidade reportada atravs da aproximao da realidade social.
De toda a forma, porm, no rejeitam a carga mtica. Ocupam assim
uma posio de charneira entre o imaginrio mtico e a realidade
social do dia a dia.
3. Proporcionam uma maior liberdade ao narrador, pelo
que nos surgem narrativas que, sob o ponto de vista discursivo, se
encontram bem elaboradas e mais ricas quanto linguagem e aos
elementos figurativos.
Atendendo s caractersticas apontadas, que nos permitem
considerar este grupo de narrativas diferente dos anteriores, e por
questes metodolgicas, achmos que o trabalho beneficiaria se
constitussemos uma terceira parte apresentando uma abordagem
analtica diferente. Assim, procuraremos agrupar as narrativas por
ncleos de valores que funcionam como polarizadores da histria.
Dado o carcter oral do nosso objecto de anlise, importante
frisar que cada enunciao faz reviver o universo da narrativa num
contexto diverso. A iluso da realidade que s vezes parece
261
CAPTULO I
1 O Casamento
1.1 O RAPAZ QUE RAPTOU UMA RAPARIGA
Era uma vez. Foi h muito tempo, muito tempo mesmo. Um
rapaz resolveu no seguir os costumes dos mais velhos. Ele comeou
a conversar com uma rapariga s escondidas. Essa rapariga vivia na
mesma povoao do rapaz. Conversaram, conversaram, durante
algum tempo. Depois combinaram fugir. E fugiram juntos para a
Beira. L, o homem ia trabalhar para ganhar a vida e ela ficava a
guardar a casa. Como era s escondidas, ningum sabia de nada. Por
isso, nenhuma cerimnia foi efectuada, nem para o casamento, nem
para a partida.
Um dia, quando as pessoas acordaram, verificaram que o rapaz
e a rapariga tinham desaparecido. As pessoas lamentaram muito e
diziam: H-de acontecer-lhes uma desgraa.
Eles chegaram cidade da Beira. O homem foi trabalhar. E ia
trabalhar todos os dias. A mulher ficava em casa.
Um dia, quando o homem regressou do emprego encontrou a
mulher muito doente. Doa-lhe o corpo todo. A gente das
vizinhanas nunca tinha visto semelhante doena.
O homem no desanimou e disse: Vou aos brancos. Pegou
na sua mulher e foi ao hospital falar com os brancos. O doutor disselhe: Nunca vi uma doena destas. No vou dar remdios. Esta
doena de feitio. Ningum sabia, na verdade, que aquela
rapariga estava tratada e por isso, s com a devida autorizao dos
264
importncia, porque pensou que era a dor que estava a ditar tudo o
que disseram.
No dia do enterro, comeou a sentir que lhe nasciam plos por
todo o corpo e uma cauda. Toda a gente fugiu dele. O rapaz tinha-se
transformado em hiena e foi servir de co me da rapariga que era
feiticeira.
por isso que hoje todos os rapazes tm receio de raptar as
suas namoradas, fugindo com elas para longe, sem realizar as
cerimnias necessrias.
Narrativa contada por Chanaze Guta, camponesa
de 70 anos de idade residente em Mopeia,
Zambzia, Moambique.
266
ANLISE
Estruturalmente uma narrativa do tipo descendente. H uma
transgresso passvel de punio, o que modifica os sinais das
funes correspondentes aos estados inicial e final, tornando-os
contrrios entre si. De um estado inicial, embora no enunciado, mas
onde se vislumbra uma certa estabilidade, a narrativa termina
apresentando o estado de carncia extrema. A relao nitidamente
de (+) para o estado inicial e de () para o estado final. Trata-se de
uma narrativa com uma estrutura simples e lgica em narrativas do
gnero em que o didactismo pela via punitiva o mtodo escolhido.
Apesar de ser uma narrao da 3. pessoa, as marcas da opinio
sabedora do narrador esto patentes em cada passo. Logo na
perturbao, ele afirma: Um rapaz resolveu no seguir os
costumes.... Deste modo, o leitor informado partida acerca do
acto negativo da personagem, para melhor compreender a sua
punio final. indisfarvel o sentido desaprovador do narrador.
Depois, pela prpria narrao, tomamos conhecimento dos valores
violados, atravs da enunciao: Namoro s escondidas, a fuga, a
ausncia dos rituais, quer para o casamento, como para a partida.
A fuga, que constitui o culminar das transgresses, introduz
uma srie de dados opinativos, no plano da enunciao, tais como:
As pessoas lamentaram muito, onde o narrador concede
competncia ao grupo para ajuizar e prever desgraas para quem
prevarica. uma das formas a que a tradio oral recorre para tornar
suficientemente competente e com pertinente autoridade a
transmisso de valores. Todo o grupo sabe, pois, que quem
transgride no pode alegar desconhecimento.
No texto, a punio do transgressor tem o seu incio com a
doena estranha da mulher, que assim corresponsabilizada pela
transgresso, atravs do papel de vtima, num ambiente estranho,
onde ningum lhe pode valer. Os vizinhos desconhecem a doena e
o doutor branco no pode aplicar uma teraputica a uma doena que
reconhece ser de feitio. Ainda no papel de vtimas, os coveiros
fogem espavoridos, pois jamais tinham ouvido um cadver cantar.
267
270
Celeiro aqui quer significar uma espcie de cabaz muito grande feito de palha,
que serve para guardar e conservar os cereais.
271
274
ANLISE
Ao nvel estrutural , como a narrativa anterior, do tipo
descendente. Ela parte de uma situao inicial de carncia, o rapaz
no tem condies fsicas e sociais para arranjar uma rapariga para
casar. Contudo, beneficiando da cumplicidade do pai, a personagem
tenta ultrapassar essa situao por meios fraudulentos, o que
constitui uma transgresso. Essa transgresso acarreta uma punio
final que se caracteriza pela reposio do estado inicial mas de forma
definitiva. Por outro lado, a rapariga, que parte de um estado inicial
de euforia por ter realizado a sua aspirao de casar, termina
frustrada nessa aspirao, como forma de punio por no ter
cumprido com as formas etno-culturais do casamento. Ela deixou-se
convencer por um meio estranho cultura autctone, uma
fotografia. nessa perspectiva que o final inicitico se dirige s
raparigas.
Quanto ao rapaz, a situao inicial de carncia no se inverte
em euforia final; pelo contrrio, a carncia intensificada no fim,
com o desmascarar da tentativa de fraude.
Podemos sistematizar os elementos considerados interdio e
que foram transgredidos: a utilizao de um retrato como substituto
do pretendente, ter sido o pai do rapaz a efectuar a primeira
abordagem e ter ido procurar uma rapariga de fora da sua prpria
povoao (no texto povoaes estrangeiras). A ocultao do
pretendente e a sua substituio por uma imagem o eixo da
transgresso, visto que impede a avaliao real do pretendente pela
outra parte contratante. E introduz assim um processo contratual
com bases fraudulentas. Deste modo a rapariga merece
compreenso e no punida pelo facto de ter penetrado nos
aposentos dos sogros para desvendar o mistrio de vez.
Temos afirmado que as narrativas de tradio oral no
efectuam caracterizaes fsicas das suas personagens. Mas esta
narrativa comea com um esboo descritivo de como era Bengala e
das consequncias sociais que da advinham. Julgamos que essa
caracterizao funciona como redundncia de um simples
275
277
279
ANLISE
, estruturalmente, do tipo descendente. A rapariga transgride
uma interdio, a de nunca penetrar nos aposentos dos sogros, e por
isso punida.
A personagem caracterizada logo no incio da narrao como
tendo dois defeitos que a impeliram a cometer a transgresso.
Partindo de uma situao inicial de normalidade, em que se inicia o
processo conducente ao casamento, ficamos desde logo a prever,
pela informao do carcter dela, que no ter um final eufrico. Por
isso a situao final de carncia uma concluso lgica para uma
personagem desta narrativa.
Com a informao prestada logo no incio desta narrao, no
resta ao narrador muitas possibilidades de digresso. por isso que
esta narrativa linear. Tudo gira volta de um valor consagrado,
principalmente em sociedades matrilineares. A interdio do espao
ntimo da sogra. Deste modo, o narrador utiliza afirmaes
categricas tais como: No disse nada porque queria justificao
que servem para consubstanciar valores etnogrficos presentes no
texto. Ainda na mesma linha, podemos colocar a comparao que a
sogra faz entre o acto da rapariga e o ser despida em praa pblica.
Esta narrativa no traz elementos exgenos nem denuncia
marcas de interferncia colonial ou urbana, nem mesmo sobre
emigrao. A histria no o exigia e o narrador ateve-se
essencialmente aos objectivos de atacar de uma forma exemplar,
defeitos que certas raparigas podem levar para casa dos seus
maridos 10.
10
11
284
ANLISE
Trata-se da mais bela narrativa de quantas recolhemos e
traduzimos. Ela uma composio estruturalmente complexa, como
complexa a sua significao. Pela densidade da mensagem que nos
quer apresentar e pela forma como a narrao nos apresentada, esta
narrativa est muito prxima da rea ficcional da literatura escrita, o
que significa um plano de elaborao discursiva bastante elevado.
Tentando simplificar o eixo por onde gira a histria, podemos
afirmar que se trata de uma surpreendente oposio entre a beleza e
o trabalho domstico. Dizemos porque a beleza no tem ocupado, no
contexto etno-cultural das narrativas que temos vindo a analisar, um
papel de relevo que chegasse a ombrear com o valor do trabalho que
uma mulher deve desempenhar depois de casada. Surpreendente
ainda, porque nos parece evidente que a enunciao deixa que a
primazia conquistada pela beleza no tome o sentido de
transgresso, pelo que o estado inicial vai no sentido do triunfo da
beleza, triunfo esse reiterado no estado final em forma de espiral.
Dado o carcter exemplar das narrativas do gnero, era lgico
que na oposio beleza/trabalho fosse este ltimo, o elemento
triunfador dando assim narrativa uma estrutura descendente, na
qual a rapariga bonita deveria sair punida, por no saber trabalhar, j
que o trabalho o elemento cultural com maior valor para o grupo.
No entanto, contrariando uma lgica que temos vindo a
detectar nas narrativas at aqui analisadas, verificamos que apesar de
a rapariga ter transgredido duas interdies explcitas: A substituio
da tarefa principal da mulher, o trabalho, pela cultura da beleza; e o
facto de ter aceite casar com um estrangeiro, a narrao no parece
desamparar a personagem, mas pelo contrrio nota-se uma certa
adeso mesma. A rapariga inocentada, partida, quando se
centra toda a responsabilidade da situao dela na sua me. Por outro
lado, o noivo no fica com ela numa situao fraudulenta como tem
acontecido nas narrativas anteriores. O noivo est consciente de tudo
e no se importa, pelo que a sogra que assume o papel de vilo, ao
tentar obrigar a rapariga a trabalhar contra a vontade do filho.
285
12
2 A Poligamia
2.1 O CASTIGO
Certa vez, h muito tempo, antes mesmo das avs dos nossos
avs terem nascido, houve uma grande cheia no rio 13. At hoje,
nunca mais houve uma cheia semelhante. Nessa altura, antes das
guas terem subido, os homens, como era seu hbito todos os anos,
fixaram-se nas ilhas. Uns pescavam, outros trabalhavam noutras
coisas como concertar redes. Os homens desse tempo s iam Beira
para casar, no regresso, e no tornavam l.
O rio encheu e surpreendeu todos os homens nas ilhas. O rio
encheu de noite. E os homens morreram todos.
As mulheres ficaram sem um nico homem. Elas passaram a
realizar todos os trabalhos. Faziam o que lhes pertencia e o que
pertencia aos homens. Mas no podiam fazer filhos. E comearam a
envelhecer e a morrer. Fazer filhos trabalho do homem, a mulher
sozinha nada pode fazer. E por isso estavam a desaparecer.
Andavam todas muito tristes.
Um dia, passaram, por aquela povoao, dois irmos que
viviam nas povoaes do outro lado do rio. Esses irmos vinham da
Beira. O rio estava cheio. Os dois irmos no podiam atravessar.
Eles ficaram acampados e comiam peixe. Todos os dias comiam
peixe, peixe, peixe. J no podiam comer mais peixe. Ento
resolveram ir procurar alguma machamba de milho. Encontraram
uma, perto de uma povoao. Essa povoao era onde viviam as
mulheres. Os dois irmos comearam a roubar milho. Mas de
repente caram numa cova funda. Essa cova era uma armadilha feita
pelas mulheres.
Passado algum tempo chegaram as mulheres. Os dois irmos
nem tiveram tempo de tentar a fuga. As mulheres chegaram. Eles
pensaram que iam morrer. Olharam para a cara das mulheres, e elas
13
Rio Zambeze, as cheias do rio Zambeze foram muitas vezes catastrficas, antes
da construo das barragens de Kariba no Zimbabwe e Cabora Bassa, em Moambique.
289
290
ANLISE
uma narrativa etiolgica. Fala-nos da origem da poligamia. E
como a generalidade de narrativas do gnero, estruturalmente
descendente, porque a origem das coisas sempre resultante de um
castigo, se atendermos enunciao que nos informa ter sido um
castigo o que aconteceu aos homens. No entanto, h na profundidade
do texto uma espcie de inverso de sentidos que tentaremos
demonstrar, na medida em que, contrariamente linha descendente,
se nota uma via ascendente, pelo facto de que a povoao que sofria
da carncia de homens para garantir a continuao da espcie,
ultrapassa essa carncia no final.
nossa opinio que o narrador reconstruiu esta narrativa a
partir de sequncias pertencentes a dois ncleos temticos
diferentes. Ele foi feliz nessa juno na medida em que, apesar de
ter empobrecido o carcter mtico que qualquer narrativa de origens
possui, no a tornou banal. Por outro lado, o encaixe das sequncias
resultou.
O primeiro ncleo refere-se eliminao dos homens atravs
de uma catstrofe natural, as cheias do rio. Essa catstrofe deixa as
mulheres sem possibilidades de dar continuidade espcie. O que
quer dizer que a povoao estava condenada a desaparecer. Este
ncleo temtico universal e dos mais antigos nas civilizaes da
humanidade. As causas desta degradao so reportadas s
transgresses de vrios tipos cometidas pelas pessoas do grupo, quer
atravs do aparecimento de um heri maravilhoso que passa a
chefiar o grupo, quer atravs de actos hericos do prprio grupo 14.
O segundo ncleo que se encaixa no primeiro, j foi motivo de
anlise quando abordmos as narrativas dos monstros no terceiro
captulo da segunda parte do trabalho.
No entanto, o narrador esvazia em grande parte as caractersticas
deste ncleo temtico. Ele eliminou primeira vista o antagonismo
14
16
294
ANLISE
uma narrativa em que a histria tem a funo de veicular um
dilema 17. A sua estrutura de difcil apreenso, embora haja um
esboo de linha ascendente. Dificilmente se poder dizer que haja
transgresses que venham perturbar o estado estvel do polgamo
com as suas mulheres. Embora ele enfrente um dilema, que tem de
resolver para manter essa estabilidade, no nos parece que tenha sido
submetido a esse dilema como uma forma de enfrentar uma prova
difcil que permite a requalificao da personagem.
A poligamia um dado social e cultural adquirido, mas no
deixa por isso de sugerir algumas situaes conflituosas que convm
prevenir. E como o casamento no resulta de um sentimento mais ou
menos emocional que nas civilizaes ocidentais se chama de amor,
mas sobretudo de um evidente jogo de interesses social e
culturalmente sacralizados, o conflito em poligamia deve ser
entendido nessa perspectiva.
Assim, o amor de um polgamo deve ser avaliado em termos de
a mulher ser ou no ser favorita perante o homem. Trata-se de uma
questo que s pode ser lida luz dos valores da comunidade,
porque ela encerra uma viso na relao homem/mulher, que nada
tem a ver com sentido do amor conjugal tal como o entendemos 18.
A utilizao do terceiro prato vem na linha de que o terceiro
elemento simboliza o equilbrio em caso de conflito. Salientamos
tambm a importncia que se d na cultura sena, ao cego, que
encerra dentro de si uma sabedoria acima do homem normal, a sua
linguagem enigmtica, prxima da linguagem mgico-religiosa dos
sacerdotes.
17
296
299
ANLISE
Logo na situao inicial evidencia-se a natureza do estado de
carncia em que o homem vivia, mas a mulher, que a figura central
da narrativa, vivia em euforia. O narrador diz: Como todas as
mulheres grvidas, ela atormentava o marido com os mais diversos
desejos. Os desejos de uma mulher grvida so uma realidade
psicolgica universal. Mas em comunidades de tradio oral, d-se a
esses desejos um carcter sagrado. Por isso devem ser satisfeitos
para que a criana seja abenoada pelos antepassados mortos. Se os
desejos no forem satisfeitos, podem cair, sobre o casal ou a criana,
desgraas imprevistas. Mas o narrador pretende com o comentrio
inicial demonstrar de que forma que um preceito etno-cultural
pode ser transformado em tormento passvel de dar legitimidade ao
divrcio. Toda a narrativa tenta consubstanciar esta tese do narrador,
que as mulheres abusam do direito sagrado de desejarem o que
quiserem, durante a gravidez. Desta forma, a linha estrutural da
narrativa segue uma via descendente, centrando-se na mulher, apesar
de ser o homem que pratica a aco. que o homem movimenta-se
em funo do mando da mulher, por isso, recai sobre ela a punio
final, com a devoluo aos respectivos familiares, sem a criana. Na
comunidade sena, o comportamento dos cnjuges encontra-se
devidamente regulamentado. A sua transgresso pode levar ao
divrcio consuetudinariamente aceite. Existem numerosas narrativas
que procuram ilustrar as razes que podem legitimar o repdio de
um ou outro dos cnjuges 21.
Nesta narrativa, o narrador mostra-se conhecedor dos limites
das obrigaes conjugais do homem, numa situao concreta e
sagrada. O homem tem obrigao de satisfazer os desejos da sua
21
homem.
23
24
303
305
ANLISE
Trata-se de uma narrativa de estrutura em ampulheta ou
cruzamento. No entanto, verifica-se que a linha descendente est mais
carregada do que a linha ascendente. Isso resulta de um jogo de
contrastes com componentes desiguais, que o narrador utiliza. A partir
de um estado inicial de carncia para todas as personagens, o narrador
tenta, de uma forma contgua, introduzir um movimento perturbao
sobreposto manuteno desse mesmo estado inicial. Quer isto dizer
que, quando a personagem pai, resolve modificar, s para si, o estado
de carncia, numa situao de euforia, o pano de fundo com que se
inicia a narrao, no se modifica. A perturbao deste modo
encoberta, ela funciona fora do texto porque s os auditores (leitores)
que tomam conhecimento da situao real. As restantes personagens
permanecem na ignorncia, at que a fraude descoberta.
As normas de comportamento de cada elemento de uma famlia
encontram-se devidamente regulamentadas, por isso, o acto de
dessolidarizao atrai naturalmente, a consequente punio, por se
tratar de uma transgresso. Mas no caso concreto da presente
narrativa, o facto de o transgressor ser o pai, constitui-se numa
circunstncia agravante. Um pai ou um marido tm obrigaes que
vo no sentido contrrio do comportamento do pai ou marido da
narrativa.
luz dos valores da comunidade, a punio que lhe dada no
final no podia ser mais exemplar. Ele repudiado pela mulher, no
recebe de volta nada dos bens materiais que a sua famlia teve que
dispender nas diversas fases do casamento e perde o direito aos
filhos, que vo com a mulher 25.
Trata-se de uma narrativa com ntidas pretenses realistas 26. O
narrador evita em toda a narrativa, utilizar elementos fantsticos. D25
27
A fome est presente no imaginrio africano, formando um ncleo temtico
com muitas verses, o que significa que desde tempos imemoriais este flagelo persegue
os Africanos. As causas da fome, nas narrativas da comunidade sena, esto regularmente
relacionadas com catstrofes provocadas pelo rio, ou ento pelas guerras. Hoje,
infelizmente, as causas continuam a ser as mesmas: guerras e calamidades naturais, o que
tragicamente curioso.
28
Este grupo de narrativas geralmente contado por mulheres. Um conto similar,
recolhido em Tete, fala da crueldade de um pai que arrebatava as papas que a mulher
preparava para os filhos, at que um dia a mulher preparou papas com veneno e o homem
morreu.
Uma outra verso recolhida em Quelimane fala do homem que impedia que o
filho pequeno, de peito ainda, pudesse mamar o leite da me, porque, a pretexto de
carinhos, ele esgotava todo o leite.
307
4. PARTE
Aspectos Discursivos
308
INTRODUO
A narrativa de tradio oral uma manifestao verbal do
homem, que est para alm de um simples acto de comunicao.
Ela uma realizao literria, da mesma maneira que a literatura na
concepo consagrada em sociedades com escrita. Desta forma,
torna-se necessrio que, ao encerrarmos a nossa dissertao, nos
debrucemos especialmente sobre este aspecto, determinando os
principais recursos estticos dos contos analisados e o seu
funcionamento. No poderamos ignorar, igualmente, que as
nossas narrativas foram recolhidas numa lngua africana sem
escrita, tendo sido traduzidas para o portugus e, sofreram, alm
disso, um processo de fixao grafmica. Deste modo,
dedicaremos um captulo do nosso trabalho aos principais
problemas que se pem traduo e fixao de um texto de
transmisso oral atravs da escrita.
Como afirmmos na introduo ao nosso trabalho, o nosso
corpus constitudo por narrativas recolhidas na sua maior parte,
ou quase totalidade, se considerarmos a competncia lingustica e o
fenmeno de interferncias, em lngua sena 1. Ao efectuarmos a
traduo dos textos, confrontmo-nos com questes muito
concretas, que iam desde o campo metodolgico at ao campo
conceptual. Por isso se tornou necessrio que, no final do trabalho,
se elaborasse uma resenha sobre os principais problemas surgidos
com a operao em causa. Caso contrrio, estaramos a incorrer no
erro de induzir o leitor a ler as narrativas de uma forma
transparente e linear, ignorando por completo que elas so o fruto
de uma traduo.
No que diz respeito aos recursos estticos mais evidentes e
organizao e funcionamento da narrativa enquanto processo de
criao verbal, iremos abordar a problemtica do narrador tal como
1
O autor do presente trabalho bilingue desde a infncia. O seu pai sempre lhe
falou em portugus, pelo que aprendeu a falar portugus como lngua primeira. Mas a sua
me sempre lhe falou em sena, pelo que tambm aprendeu o sena como lngua primeira,
esta lngua era alis a lngua dominante da famlia.
309
310
1 A TRADUO
O Corpus que nos serviu de base foi recolhido, como j
afirmmos anteriormente, em situaes de excepo. Quer isto dizer
que todas as narrativas nos foram facultadas por
informadores/contadores que sabiam e aceitavam contar fora do
contexto etno-cultural. Por isso, em termos de recolha, a situao
no foi a ideal porque condicionou a naturalidade vivencial que
permite a libertao dos factores de dinamizao criativa tanto para
o narrador como para o pblico. A situao descrita constituiu para
ns o primeiro ponto fraco porque empobrecedor do sistema literrio
oral quando transposto para a escrita. Com efeito, nenhum narrador
ser capaz de demonstrar todas as suas potencialidades criativas
actualizando narrativas de propsito para um gravador de som ou, na
melhor das hipteses, para um atento e insistente tomador de notas.
Nem o pblico presente comparticipar da mesma forma na narrativa
como o tem feito nas condies naturais 2.
Se as condies de recolha no nos foram particularmente
favorveis, o facto de termos traduzido as narrativas de uma lngua
africana sem escrita para o portugus, tambm foi uma operao
desfavorvel. Partindo da simples razo de que a lngua sena se situa
no universo etno-cultural das lnguas africanas de origem bantu e de
que o portugus uma lngua indo-europeia, via latim, etnoculturalmente integrada no universo da civilizao judaico-crist,
veremos que a transposio de valores de um sistema para o outro
no uma operao de simples equivalncias lxico-semnticas.
Quer isto dizer que a traduo nas condies do nosso trabalho no
pode ser considerada uma simples operao lingustica de
2
314
2 AS MARCAS DA ENUNCIAO
A abordagem dos aspectos textuais pertencentes ao sistema
literrio oral deve iniciar-se com um problema, o da morte do
narrador e de todas as marcas extra-lingusticas. Tratando-se de
textos efmeros no possvel efectuar o seu estudo no prprio acto
da actualizao narrativa. E a figura do narrador, essencial em cada
recriao da narrativa, no pode ser devidamente avaliada depois de
uma recolha propositada para a posterior fixao pela escrita. Este
acto cristaliza no s as potencialidades do narrador como sujeito
produtor do texto, como cristaliza igualmente todos os elementos
extra-lingusticos que so eliminados no acto da fixao.
Os narradores que funcionaram como nossos informadores nas
narrativas que seleccionmos, no tiveram, certamente, o mesmo
grau de competncia. No entanto, o duplo processo de cristalizao
acima citado, adicionado ao problema de filtrao atravs do sujeito
tradutor, fez com que aparentemente tivessem resultado textos
equilibrados, quer sob o ponto de vista estilstico, quer sob o ponto
de vista vocabular. Nem a nossa condio de bilingue permitiu evitar
situaes semelhantes, porque a fixao de um texto vindo de um
sistema oral por um sistema escrito, numa outra lngua, no resulta
nunca num reflexo directo entre texto-origem e texto meta. O
tradutor fixador, elaborando simultaneamente duas operaes,
dificilmente apaga a sua presena, porque o seu acto impregnado
de factores de filtraco que podem manifestar-se tanto ao nvel da
escolha do vocabulrio e da estruturao de texto resultado como
pode chegar a influenciar a prpria ideologia da mensagem 7.
nosso dever confessar que temos conscincia da morte
inevitvel do narrador na fixao grafmica. Morte no sentido de no
termos conseguido transpor para a escrita toda a riqueza inerente ao
7
sistema literrio oral que em parte nos foi dado observar no acto da
recolha, se bem que no em condies ideais.
No entanto, e ainda ligado ao narrador, podemos observar que
mesmo ao nvel dos textos que transcrevemos, o mesmo no se
apresenta no mesmo plano de grupo para grupo de narrativas do
corpus.
Nas histrias do coelho, a sua presena mais esbatida,
esmagada pela natureza estereotipada das mesmas. Com efeito, estas
histrias variam muito pouco os seus motivos temticos, limitandose os narradores a funcionar como simples actualizadores de textos
pr-construdos.
Curiosamente, no na rea verbal que se pode situar o talento
do contador, mas sim na postura extra-lingustica. Mesmo os
indcios caracterizadores, que eventualmente podemos encontrar, do
tipo coelho muito esperto, hiena gulosa, o macaco vaidoso,
etc. etc. constituram-se desde h muito como enunciados
aglutinados a essas personagens tipo. Nas histrias do coelho, nada
surpreendente. E o papel do narrador , por isso, muito pouco
acentuado enquanto sujeito da enunciao.
No segundo grupo, nota-se uma maior interveno do narrador,
no s atravs de alguns comentrios a favor ou a desfavor de
alguma situao. Esses comentrios podem funcionar como uma
antecipao da moralidade que a narrativa pretende transmitir
provocando assim, muitas vezes, a interrupo da histria. O heri
desprezado que constitui o ncleo volta de quem giram as aces
das narrativas deste grupo o que maior polarizao de comentrios
favorveis provoca ao narrador. Muitas vezes o narrador assume o
papel das desventuras do heri desprezado dramatizando-a de tal
forma que consegue comover o auditrio, principalmente na
interpretao das canes intercalares de que transcrevemos os
versos. Mas o seu envolvimento afectivo tambm se verifica em
relao aos outros elementos das narrativas deste grupo, de uma
forma mais acentuada que nas narrativas do grupo anterior.
Nas narrativas do terceiro grupo, respeitantes aos monstros
comedores de pessoas, as caractersticas da narrao, no que diz
317
319
4 RECURSOS RETRICOS
No plano da figurao retrica, nossa opinio que o contador
de uma narrativa de tradio oral no tem a particular preocupao
de embelezar esteticamente o discurso, recorrendo a figuras da
linguagem verbal, como no sistema literrio escrito.
A principal base esttica do sistema literrio oral reside no
plano do discurso. Quer isto dizer que mais importante a forma
como o narrador joga com a conteno e disteno dos factos,
revelando ou sugerindo cenas, de forma a provocar maior ou menor
tenso e expectativa no auditor. Por outro lado, constitui recurso de
peso toda a comunicabilidade a que o narrador pode recorrer e que
se situa no plano extra-lingustico 8.
No entanto, no deixa de ser pertinente referir a presena de
alguns aspectos da linguagem figurada, e determinar a sua funo no
sistema oral.
Comearemos pela mais frequente: a repetio. Esta figura
no tem uma funo idntica da que possui na literatura escrita. A
repetio serve para garantir a memorizao dos motivos temticos
e para estabelecer a ligao entre os diversos segmentos narrativos
prevenindo o seu encadeamento lgico. A repetio , de todas as
figuras da linguagem, a que mais abunda nas narrativas de
tradio oral.
Podemos ilustrar os dois tipos de funcionalidade da repetio
nas narrativas do nosso corpus.
1 Nas canes intercalares, a repetio nos poemas tem a
funo redundante e ritual prpria da poesia universal.
2 Na ligao das sequncias, como garantia da estruturao
lgica dos factos: O coelho e a hiena eram amigos. E como eram
amigos resolveram plantar feijo; e quando resolveram plantar
feijo, etc., etc..
8
321
12
CONCLUSO
Tratando-se do primeiro trabalho de flego que feito sobre o
sistema literrio oral de uma determinada zona de Moambique,
estamos conscientes de que no conseguimos responder cabalmente
a todas as questes que se nos puseram e em algumas deixamos
pistas a retomar. Nem to pouco a nossa competncia cientfica
permite que o trabalho se apresente de uma forma completamente
equilibrada em todos os seus pontos. Contudo, fica-nos a esperana
de que o nosso contributo no passe despercebido, e que muitas
outras no especificadas sero retomadas para que se complete o que
ficou para completar. O estudo da literatura moambicana obriganos a que, antes de nos virarmos para a sua componente escrita, no
nos esqueamos que quase 90% da sua populao se rege pelo
sistema oral. E mesmo os escritores mais representativos da nova
literatura escrita no escapam ao peso do sistema oral. Em
Moambique, s entenderemos cabalmente a literatura escrita se
formos capazes de passar pela literatura de tradio oral. essa a
nossa convico mais profunda.
E nesse sentido que deixamos aqui o nosso modesto
contributo.
Coimbra 1986
324
APNDICE
As narrativas que a seguir vamos apresentar, esto organizadas
por grupos temticos de carcter geral. O nosso objectivo tentar em
forma de apndice, demonstrar a universalidade de alguns temas.
Como se constata, a partir de verses que recolhemos na regio do
Vale do Zambeze, pudemos, medida que procedamos s
investigaes, encontrar variantes narradas nas mais diversas partes
do Mundo. Para no tornar fastidiosa esta parte, na medida em que
pretendemos apenas provar o que defendemos no incio do trabalho,
sobre a origem das narrativas, resolvemos apresentar trs grupos de
variantes subordinadas ao seguintes temas: O adultrio da mulher, a
prudncia e a lealdade. As narrativas so transcritas acompanhadas
de algumas notas, mas no procedemos a qualquer tipo de anlise,
pois pensamos que no iramos acrescentar muito mais quilo que j
foi dito ao longo desta dissertao.
Um segundo apndice constitudo por duas narrativas, diz
respeito a amostras que so tidas como sendo africanas mas que se
pode provar a sua origem exgena atravs de elementos mitemticos
neles presentes e que se identificam como no fazendo parte da
cultura do Vale do Zambeze.
325
326
Passarinho, passarinho
Vai Beira
E traz-me de l lindos panos
Outro homem veio e perguntou: Quando? Ela disse: Depois
do jantar.
Foi ao rio, tirou a gua e regressou a casa. Tomou banho, ps
lindos panos e esperou.
O primeiro chegou. Comearam a brincar, sem dar pelo tempo
que estava a passar. Entretanto chegou o segundo. A mulher disse
que estava a brincar com o outro. O segundo disse que queria brincar
tambm. E entrou. Brincaram, brincaram.
O marido no tinha ido a casa das outras esposas como tinha
afirmado. Andava a mulher a brincar com os dois homens, quando o
marido regressou e bateu porta. Ficaram todos muito atrapalhados.
Mas a mulher pensou logo em meter um dos homens debaixo da
tarimba, ao outro meteu-o no celeiro que estava pendurado no
interior do tecto.
O marido entrou e a mulher fingiu: Tu no tens nenhum
respeito por mim. Dizes que vais e deixas-me a chorar. Quando
comeo a habituar-me ideia que vou ficar muito tempo sem te ver,
voltas e bates porta. O que vo pensar os vizinhos? Ainda hoje
disse a toda a gente que tu no estavas c. E agora vo ouvir que
algum bateu porta a esta hora da noite. E disse aquilo e comeou
a chorar, a chorar. O marido j no sabia que dizer, to grande era a
sua confuso. Sentou-se no bordo da tarimba ps a cabea entre as
mos e disse: Tu mulher no consegues compreender o que tenho
aqui, e batia no peito acrescentando: S aquele que est ali no alto
quem pode dizer Ele estava a referir-se ao Alm.
Mas o homem que estava no celeiro, sentindo-se descoberto
apressou-se a dizer: Eu no sei nada, eu no sei nada, pergunta
quele que est debaixo da tarimba que foi quem primeiro chegou.
O marido confirmou as suas suspeitas. Convocou os familiares
da mulher, exigiu as suas coisas e repudiou-a.
327
Reg. pelo Prof. Smith Thompson in Motif-Index of folk literature, IV, 418,
Bloomington. 1934.
Reg. do Prof. D. P. Rotunda, Motif-Index of the Italian Novella in Prosa,
Bloomington. 1942.
330
333
334
um conto de origem oriental que foi levado para frica pelos rabes. Uma
verso igualzinha em que a ona substituda pela hiena foi-me contada por minha av,
mestia de indiano e preta. De frica passou pela boca dos escravos para a Amrica. O
Prof. Aurlio Espinosa conseguiu reunir 310 verses da sia, Europa, frica e Amrica.
340
II
1.1 OS TRS AMIGOS
Havia numa povoao uma rapariga muito bonita. Muitos rapazes
pretendiam casar com ela, mas de todos eles, os mais renhidos eram
trs amigos. Estes trs amigos, nunca se tinham separado desde a
infncia. Tudo o que empreendiam, faziam-no juntos. O que era de
um era de outro.
Como todos sabem, quando chega a altura, os homens tm que
ir Rodsia ganhar dinheiro para poderem edificar a sua casa e
arranjar uma rapariga para constituir famlia 6. Foi o que aconteceu
aos trs. Nenhum deles tinha confessado aos outros os seus amores
secretos para com a rapariga bonita.
Antes de partirem, foram ao feiticeiro para se tratarem a fim de
que tudo corresse bem e pudessem regressar sos e salvos e com
dinheiro suficiente para as suas aspiraes.
O feiticeiro deu ao primeiro um espelho 7 e disse: Sempre que
tiveres saudades da terra e quiseres reviver os momentos passados na
tua povoao, s olhares para o espelho.
Ao segundo, o feiticeiro deu uma boceta e disse: Todos os
teus desejos sero satisfeitos quando invocares esta caixinha. Se
correrem qualquer perigo e algum de vs morrer, ters poderes de o
ressuscitar.
No h dvidas que este lindo conto apresenta elementos que o aparentam com
o conto das Mil e uma Noites intitulado Os Trs Irmos de que Junod encontrou
uma verso no sul de Moambique com o ttulo Os Trs Navios. H porm elementos
muito prprios dos senas impregnados nele. Tero sido os rabes os divulgadores deste
conto ou ele vem de uma origem primitiva comum face ao sempre agudo problema do
casamento? Uma coisa certa, na verso Sena, a rapariga tem uma palavra a dizer o que
no acontece em outras verses.
343
12
Nem a autora das Mil e uma Noites, nem o contador da verso recolhida por
Junod conseguiram encontrar um final to lgico como este. Na realidade qualquer que
seja a origem deste conto, ele foi de tal maneira assimilado pelos valores Sena que
veicula elementos etnolgicos ligados a tabus do casamento intimamente referidos aos
prprios Senas. A outra diferena que nas duas verses referidas, tratava-se de trs
irmos que amavam a mesma rapariga. Na verso Sena eram trs amigos, o que constitui
um trunfo precioso para ter o final que teve.
interessante verificar que o contador evita dizer qual dos trs casou com a rapariga,
dizendo apenas um deles.
344
14
15
Ouvimos pessoalmente das gentes mais idosas, relatos que no fazem parte do
que poderamos chamar de ciclos temticos de narrativas, mas que evocam a tomada de
conscincia da entrada de valores diferentes, atravs de simples episdios, algumas
vezes aparentemente ingnuos.
349
defraudar uma lei injusta e por outro lado, para punir a perversidade
o rei sabia que estas coisas s acontecem quando algum faz uma
grande maldade, dando-se-lhe uma leitura judaico-crist, pelo
menos no que diz respeito ao segundo caso, em que a simples
transformao tida como indcio de malvadez. S a civlizao
judaico-crist que, ao que sabemos, condena o travestismo, como
sendo um acto impuro. H ainda um ltimo aspecto que reitera a
presena da viso judaico-crist, na narrativa: queremos referir a
forma como punida a mulher adltera atravs da morte. Na
sociedade africana, a mulher adltera repudiada e os seus
familiares obrigados a devolver ao homem ofendido, todos os bens
materiais por si gastos no processo do casamento. Por outro lado so
ntidas as linhas paralelas entre a situao da personagem Manico
perante a mulher do rei com o episdio tambm bblico de Jos no
Egipto perante a mulher do Fara.
350
BIBLIOGRAFIA
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lvares, Pedro Antnio O Regime dos prazos da Zambzia. Separata do
Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. 1916. Srie 34, n. 4-6.
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Tipografia das Misses Franciscanas.
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Adrea, Eugnio de Oliveira Soares Navegao nos rios Zambeze, Chire e
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Lobato, Alexandre Colonizao Senhorial da Zambzia, Estudos
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Melo e Castro, Francisco Os Rios de Sena, in Anais do Conselho do
Ultramar, Srie 11, 1867.
351
354
NDICE
PREFCIO..........................................................................................................................5
INTRODUO...................................................................................................................8
I Parte
Captulo I ALGUNS DADOS HISTRICOS, GEOGRFICOS E ETNOGRFICOS SOBRE O VALE DO ZAMBEZE .........................................19
1 O VALE DO ZAMBEZE ..........................................................................................20
1.1 SINOPSE GEOGRFICA E HISTRICA ...............................................................20
1.2 COMUNIDADES TNICAS E LNGUAS ..............................................................23
Captulo II REFLEXES SOBRE AS NARRATIVAS DE TRADIO
ORAL..........................................................................................................39
2 NARRATIVAS DE TRADIO ORAL..................................................................40
2.1 A ORALIDADE E A ESCRITA............................................................................43
2.2 AS NARRATIVAS DE EXPRESSO ORAL COMO FORMAS LITERRIAS DA ORALIDADE ..................................................................................45
2.3 O PROBLEMA CONCEPTUAL SOBRE A DESIGNAO DA PRODUO LITERRIA NA ORALIDADE.............................................................46
2.4 NATUREZA E CARACTERSTICAS DAS NARRATIVAS DE TRADIO ORAL .......................................................................................................49
2.5 A ORIGEM DAS NARRATIVAS DE TRADIO ORAL .................................55
2.6 A ESTRUTURA DA NARRATIVA DE EXPRESSO ORAL .............................62
2.6.1 Os elementos Constantes e os Variveis As Transformaes: O
Mtodo Formalista ................................................................................62
2.6.2 As Limitaes do Mtodo Formalista. O Estruturalismo .........................70
2.6.3 As Funes e os Motivos Temticos, Natureza e Articulao .................76
2.6.4 A Classificao.........................................................................................82
355
II Parte
Captulo I HISTRIAS DO COELHO ......................................................................111
I NARRATIVAS DO TIPO ASC - 1...............................................................................112
1.1 O COELHO E A HIENA .......................................................................................115
1.2 O COELHO E O CGADO ...................................................................................118
1.3 O COELHO E O LEO .........................................................................................121
1.4 O COELHO E O LEO .........................................................................................123
1.5 O COELHO E O SAPO .........................................................................................126
1.6 O COELHO E O MACACO...................................................................................128
ANLISE COMPARATIVA ............................................................................................130
356
ANLISE COMPARATIVA..........................................................................................224
Captulo III OS MONSTROS COMEDORES DE HOMENS ...................................230
INTRODUO...............................................................................................................231
1 OS FILHOS DA COBRA BONA ...........................................................................235
2 OS TRS IRMOS.................................................................................................244
ANLISE COMPARATIVA ............................................................................................250
III Parte
NARRATIVA DE COSTUMES .....................................................................................260
INTRODUO...............................................................................................................261
Captulo I
1 O CASAMENTO ......................................................................................................264
1.1 O RAPAZ QUE RAPTOU UMA RAPARIGA ...................................................264
ANLISE.............................................................................................................267
1.2 O RAPAZ DA FOTOGRAFIA ............................................................................271
ANLISE.............................................................................................................275
1.3 A RAPARIGA QUE ERA CURIOSA .................................................................278
ANLISE.............................................................................................................280
1.4 A RAPARIGA DE MWALA WA SENA ........................................................281
ANLISE.............................................................................................................285
2 A POLIGAMIA ........................................................................................................289
2.1 O CASTIGO.........................................................................................................289
ANLISE.............................................................................................................291
2.2 AS DUAS MULHERES.......................................................................................294
ANLISE.............................................................................................................295
3 O COMPORTAMENTO DOS CNJUGES ..............................................................297
3.1 OS DESEJOS DA MULHER GRVIDA............................................................297
ANLISE.............................................................................................................300
3.2 NO TEMPO DA FOME .......................................................................................303
ANLISE.............................................................................................................306
357
IV PARTE
ASPECTOS DISCURSIVOS ..........................................................................................308
INTRODUO...............................................................................................................309
1 A TRADUO .......................................................................................................311
2 AS MARCAS DA ENUNCIAO ........................................................................316
3 O TEMPO E O ESPAO ........................................................................................318
4 RECURSOS RETRICOS.....................................................................................320
CONCLUSO ........................................................................................................324
APNDICE.............................................................................................................325
1.1 OS DOIS AMANTES ..........................................................................................326
1.2 A MULHER ESPERTA ......................................................................................328
1.2.1 Cascudo, Lus da Cmara Brasil......................................................329
1.2.2 Cascudo, Lus da Cmara Brasil .......................................................331
2.1 O RAPAZ E A CAVEIRA ..................................................................................334
2.2 HLI CHATELAIN ............................................................................................335
3.1 O ESCRAVO TRAIDOR ....................................................................................336
3.2 CASCUDO, LUS DA CMARA Brasil........................................................339
1.1 OS TRS AMIGOS .............................................................................................341
1.2 NKZI WA R (A MULHER DO REI) .........................................................345
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................351
358