Literaturas africanas: perspectivas e desafios no século XXI
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Literaturas africanas - Issaka Maïnassara Bano
Luanda, cidade-mundo, ou da estética do desenvolvimento desigual em Os transparentes, de Ondjaki
Adriana Cristina Aguiar Rodrigues¹
[...] era um prédio, talvez o mundo
(ONDJAKI, 2013, p. 69)
Em 2015, o coletivo de pesquisadores do Departamento de Estudos Literários Ingleses e Comparados da Universidade de Warwick, denominado WReC (Warwick Research Collective), publicava, pela Liverpool University Press, o livro intitulado Combined and uneven development towards: a new theory of world-literature, resultado do desafio, assumido pelos membros do grupo, de pensar e ressituar o campo dos estudos literários no novo milênio e as implicações culturais e literárias das teorias sistêmica e do desenvolvimento combinado e desigual para propor uma abordagem da produção literária mundial. No primeiro capítulo do livro – World-literature in the context of combined and uneven development
–, o grupo de pesquisadores parte da crise da literatura, entendida tanto como objeto da cultura subordinada às leis de mercado como enquanto campo de estudos cujos métodos institucionalizados e consolidados necessitam – como apontam diferentes estudiosos, entre eles Raymond Williams, em 1981, e Spivak, em 2003² – ser repensados, reorientados, reinventados.
É nesse contexto que o debate sobre as noções de literatura mundial
é introduzido no livro. Se inicialmente essa expressão situava-se no arco das discussões estabelecidas no campo dos estudos pós-coloniais e da contestação (após os debates multiculturais) de categorias como eurocentrismo
e nação
, que assinalavam os estudos de literatura comparada, atualmente o termo literatura mundial
passou a engendrar uma noção pandisciplinar, estendendo-se para além dessas duas áreas a que inicialmente era vinculado (WReC, 2015). Dissentindo de concepções, como as de David Damrosch (2003), que entendem a literatura mundial relativamente à circulação, às obras primas ou aos grandes autores, aos modos de produção e recepção da literatura, o WReC (2015, p. 7) situa as produções literárias como parte integrante de um único sistema literário em que o capitalismo é o substrato, definindo literatura mundial como a literatura do sistema-mundo capitalista moderno, optando, assim, por reinscrever a categoria de pesquisa na forma literatura-mundo
, com hífen.
Tal proposição deriva de desenvolvimentos teóricos advindos das ciências sociais, entre eles a teoria sistêmica articulada por Immanuell Wallerstein (2005), com base na qual a unidade de análise do cenário econômico, político e social que configura as relações mundiais deixa de ser o Estado-nação e passa a ser o sistema-mundo capitalista, interestatal. Conforme o sociólogo argumenta, o sistema moderno mundial (capitalista) é constituído por uma economia em incessante expansão, fundada em um mundo articulado por um complexo sistema de trocas econômicas (desiguais), cuja divisão internacional do trabalho é baseada na tensão entre centro, semiperiferia e periferia. Esse sistema único tem como característica a heterogeneidade cultural, política e econômica, não atribuída ao atraso de uma região em relação a outra, mas à própria natureza do sistema-mundo. O que o WReC faz, portanto, é se apropriar da teoria sistêmica para pensar a literatura mundial.
Essa concepção reflete ainda argumentos desenvolvidos por outro sociólogo, Fredric Jameson, especificamente no que se refere a uma modernidade singular
, que evoca, por sua vez, a teoria do desenvolvimento combinado e desigual – isto é, formas e relações capitalistas existindo ao lado de formas arcaicas de vida econômica e de relações sociais e de classe preexistente e desigual –, cuja genealogia se situa em teóricos como Marx, Engels, Lênin e Trotsky. Jameson revisita essa teoria, associando-a à noção de modernidade para afirmar que essa só pode ser conceituada adequadamente por referência ao capitalismo mundial, sendo a modernidade, como o próprio sistema-mundo, um fenômeno singular (WReC, 2015, p. 11). Não se trata, portanto, de uma categoria cronológica ou geográfica, mas de uma situação geral, globalmente dispersa, maneira pela qual relações sociais capitalistas mundiais são vividas simultaneamente, de forma singular, porém internamente heterogênea e desigual.
Já no campo dos estudos literários, a hipótese do coletivo de pesquisa de Warwick dialoga, em parte, com a tese de Pascale Casanova (2002), no que tange à existência de um espaço literário internacional ou de uma república mundial das letras
estruturada por assimetrias de circulação e troca, e a de Franco Moretti (2000), no que toca à sistematicidade heteronômica e desigual da produção literária mundial. Em síntese, a noção desenvolvida pelo WReC (2015) implica compreender: um sistema mundial único, porém radicalmente desigual, uma modernidade singular, combinada e desigual e uma literatura que, de múltiplas maneiras, registra essa desigualdade combinada, tanto em sua forma como em seu conteúdo.
Saltando do capítulo que abre o livro para o que o encerra, intitulado Ivan Vladislavic: traversing the uneven city
, é possível acompanhar de forma mais detida as implicações do conceito de literatura-mundo proposto pelo WReC na análise (paradigmática, e não exemplar, como os próprios autores destacam) que é feita de coletâneas de contos de Vladislavic, gênero literário declaradamente preferido pelo autor como a forma representativa apropriada à realidade extrema da cidade de Joanesburgo. Como o título do capítulo sugere, os autores analisam o que denominam estética do desenvolvimento desigual
ou expressões culturais da lógica contraditória da modernidade capitalista globalizada
(WReC, 2015, p. 144) na contística desse escritor sul-africano, apontando como preocupações formais e temáticas de sua obra expressões estéticas das contradições e paradoxos da modernidade desigual incorporada na vida cotidiana da África do Sul pós-apartheid (WReC, 2015, p. 146).
Na forma como são entendidos pelo WReC, os contos de Vladislavic, ao registrarem a profunda e perturbadora incompatibilidade entre o tecido construído das cidades sul-africanas e a política aspiracional da nova
África do Sul, mesclam elementos do formalismo real com outros do que a crítica convencionou chamar realismo mágico africano
para compor a aura de um espaço (Joanesburgo) e tempo histórico particular (a era do capitalismo tardio ou milenar) que permite ao leitor testemunhar e refletir sobre uma estrutura global formada ao longo do desdobramento da modernidade. Dito de outra forma, a cidade de Joanesburgo é, portanto, chave para entender a compulsão histórica sob a qual modos culturais operam em condições de desenvolvimento desigual (WReC, 2015, p. 145).
A questão colocada pelos membros do WReC é se essa cidade pós-apartheid pode ser descolonizada, liberada das divisões do trabalho e da vida que sua forma material construída, seu design e layout, suas estradas e redes de comunicação continuam a codificar e institucionalizar. Na esteira de James Graham, os pesquisadores assentem que o retrato da Joanesburgo criado por Vladislavic gira em torno da contradição, isto é, o dinamismo e a multiplicidade do espaço da cidade são bastante reais, mas sua potencialidade social é comprometida pelos limites impostos pelo peso morto do passado: ainda que as pessoas façam uso da antiga cidade, a memória dela, com suas divisões e desigualdades codificadas dentro de seu próprio tecido, continua ecoando no presente (WReC, 2015, p. 146).
Tanto o primeiro capítulo como o último do livro assinado pelo WReC situam as questões que buscamos analisar neste texto, isto é, os modos como o romance Os transparentes (2013), de Ondjaki, enquanto forma literária e manifestação cultural, apropria-se de condicionamentos político-econômicos decorrentes da inserção de Angola na economia neoliberal e da transição de sua capital, Luanda, para uma forma de metrópole – o que Achille Mbembe e Sarah Nuttall (2008) denominam afrópolis
. Considerando que a forma literária romanesca é, conforme defendem os membros do coletivo, o gênero em que o desenvolvimento combinado e desigual se manifesta mais nitidamente, devido à sua associação fundamental com a ascensão do capitalismo e seu status nas sociedades periféricas e semiperiféricas, além de sua plasticidade e hibridismo, que permitem incorporar, entre outros aspectos, diferentes formas culturais não literárias e arcaicas (WReC, 2015, p. 16), nosso objetivo aqui é, de modo análogo ao procedimento adotado pelo coletivo de Warwick, analisar a narrativa em tela, interpretando-a na chave estética do desenvolvimento desigual, da literatura-mundo.
Lançado em Portugal em 2012, pela Editora Caminho, e no Brasil em 2013, pela editora Companhia das Letras, o romance é composto por oito partes (em que a última é a continuação da primeira), seccionadas por páginas escuras que abrem cada uma delas com narrativas orais curtas. Essa estrutura sugere semelhança com o conteúdo da narrativa, cujo enredo decorre, principalmente, dos acontecimentos envolvendo as personagens de um edifício de sete andares, sobre o qual é dito: era um prédio, talvez o mundo
(ONDJAKI, 2013, p. 69). É com base nesse espaço ficcional localizado no coração de Maianga, historicamente um dos primeiros bairros de Luanda, que o leitor pode acompanhar, então, condicionamentos econômicos, políticos e sociais de um país da África austral inserido na lógica contraditória da modernidade capitalista globalizada.
O livro inicia-se com a descrição-narração de duas personagens, um Cego e um menino VendedorDeConchas que tenta atender ao desejo do mais-velho de descobrir a cor do fogo, que seus olhos não podem ver, mas sua pele sente, enquanto ambos buscam escapar a uma grande explosão. Aos poucos o leitor nota que essa é a ameaça que paira sobre Angola da especulação petrolífera e da Luanda imagem-reservatório do óleo negro, canteiro de obras cercado por tapumes e andaimes e minada por crateras escavadas por uma Comissão Instaladora do Petróleo Encontrável em Luanda (CIPEL), com a colaboração dos Estados Unidos, da Rússia, França, Índia e do Brasil (ONDJAKI, 2013, p. 161). É esse tom apocalíptico que envolve o conteúdo da narrativa até o seu final, quando o capítulo inicial é retomado e o leitor pode, então, acompanhar a ruína dessa cidade do século XXI.
Ao discorrer sobre a inserção da África subsaariana no sistema-mundo capitalista, Monié, Amorim e Gayer (2007) analisam que, durante o secular processo de unificação desse sistema, as relações entre essa parte do continente e o resto do planeta foram caracterizadas pela sua crescente participação nas redes econômicas, comerciais, financeiras e político-diplomáticas que moldaram uma inserção de caráter periférico na divisão internacional do trabalho. Não obstante as tendências que caracterizam as últimas décadas e as transformações que ilustram a complexidade crescente das relações entre o continente e o resto do mundo – como diversificação dos fluxos comerciais, constituição de novas redes político-econômicas, participação dos representantes das culturas africanas na indústria cultural global –, a evolução dessas relações na longa duração evidencia a perpetuação de sistemas de exploração e opressão que especializaram essa região periférica, caracterizada pela importação de bens de maior valor agregado e pela oferta de matéria-prima – o que representa até hoje entre 75% e 80% das receitas de exportação (MONIÉ; AMORIM; GAYER, 2007).
Angola, inserida nesse contexto geoeconômico, apresenta características semelhantes às descritas por Monié, Amorim e Gayer (2007). Da independência política, em 1975, até 1988 o Estado procurou aproximar-se do bloco socialista, apresentando uma economia fortemente afetada pelos entraves oriundos do colonialismo, da Guerra Fria e da guerra civil. A partir de 1990, pressionado por desdobramentos de eventos internacionais e locais, o governo do MPLA (Movimento Popular Pela Libertação de Angola) dá uma guinada, inserindo-se na economia neoliberal (sob a tutela do Banco Mundial e do FMI), mas permanecendo, ainda, no modelo primário-exportador, reforçado, sobretudo, pelas expectativas quanto à sua potencialidade no cenário energético global, para o qual já vinha despontando como importante fornecedor de petróleo desde meados de 1970 (MONIÉ; AMORIM; GAYER, 2007).
As mudanças político-econômicas, juntamente com o fim do conflito civil, em 2002, fizeram com que o PIB do país saltasse de 8.022 milhões de dólares, em 1988, para 11.204, em 2002, e 112.700 milhões de dólares, em 2012³. Nesse cenário, o governo lançou, em 2003, um programa nacional de reconstrução, que favoreceu um boom no setor de construção civil, repaginando o cenário urbano de Luanda com arranha-céus de paredes espelhadas, condomínios habitacionais e cidades-satélites financiadas, especialmente, por linhas de créditos petrolíferos com a China. Todavia, Claudia Gastrow (2017a) argumenta que as perspectivas materiais, geográficas e populacionais dessa cidade emergente foram moldadas em pactos entre as elites angolanas e o capital internacional que recapitularam as antigas tensões sobre a pertença nacional, fazendo surgir, nas margens urbanas, vastas zonas de realojamento para os despojados pelo redesenvolvimento. Frederic Monié (2012) corrobora o ponto de vista dessa antropóloga sul-africana, ao afirmar que, embora, por um lado, o petróleo seja a matéria-prima que coloca a África subsaariana no cenário energético global e a pujança do atual boom petrolífero contribua para a aceleração do crescimento econômico, levanta, por outro lado, sérios questionamentos quanto ao potencial desenvolvimentista e aos impactos da atividade sobre os espaços e as