Poesia 9ano

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Poesia

9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Contedo
Fernando Pessoa ................................................................................................................................................4
O Menino da sua Me ....................................................................................................................................4
[O aldeo] .......................................................................................................................................................5
Se estou s, quero no star, ..........................................................................................................................5
O Mostrengo...................................................................................................................................................6
Mar Portugus ................................................................................................................................................6
Camilo Pessanha .................................................................................................................................................7
Floriram por engano as rosas bravas..............................................................................................................7
Quando voltei encontrei os meus passos.......................................................................................................7
Mrio de S-Carneiro..........................................................................................................................................8
Quasi ...............................................................................................................................................................8
O recreio .........................................................................................................................................................9
Irene Lisboa ..................................................................................................................................................... 10
Escrever ....................................................................................................................................................... 10
Monotonia ................................................................................................................................................... 11
Almada Negreiros ............................................................................................................................................ 12
Lus, o poeta salva a nado o poema ............................................................................................................ 12
Jos Gomes Ferreira ........................................................................................................................................ 13
V ................................................................................................................................................................... 13
XXV............................................................................................................................................................... 13
III .................................................................................................................................................................. 14
XIX ................................................................................................................................................................ 14
Jorge de Sena................................................................................................................................................... 15
Uma pequenina luz ...................................................................................................................................... 15
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya.................................................................................... 16
Cames dirige-se aos seus contemporneos .............................................................................................. 18
Sophia de Mello Breyner Andresen ................................................................................................................. 19
As pessoas sensveis .................................................................................................................................... 19
Porque ......................................................................................................................................................... 20

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Meditao do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal ....................................................... 20


Cames e a tena......................................................................................................................................... 21
Carlos de Oliveira............................................................................................................................................. 22
Vilancete castelhano de Gil Vicente ............................................................................................................ 22
Quando a harmonia chega .......................................................................................................................... 22
Herberto Helder .............................................................................................................................................. 23
Ruy Belo ........................................................................................................................................................... 24
Os estivadores ............................................................................................................................................. 24
E tudo era possvel....................................................................................................................................... 25
Algumas proposies com crianas ............................................................................................................. 25
Gasto Cruz...................................................................................................................................................... 26
Ode soneto coragem ................................................................................................................................ 26
cf. Romeo and Juliet, III. V. 1-36 .................................................................................................................. 26
Tinha deixado a torpe arte dos versos ........................................................................................................ 27
Nuno Jdice ..................................................................................................................................................... 28
Escola ........................................................................................................................................................... 28
Fragmentos .................................................................................................................................................. 28
O conceito de metfora............................................................................................................................... 29
com citaes de Cames e Florbela ............................................................................................................ 29
Contas .......................................................................................................................................................... 29
Federico Garca Lorca ...................................................................................................................................... 30
Romance Sonmbulo................................................................................................................................... 30
Carlos Drummond de Andrade ........................................................................................................................ 32
Receita de Ano Novo ................................................................................................................................... 32

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Fernando Pessoa
O Menino da sua Me
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
Duas, de lado a lado ,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braos estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os cus perdidos.
To jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho nico, a me lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino da sua me.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a me. Est inteira
E boa a cigarreira.
Ele que j no serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roar o solo,
A brancura embainhada
De um leno... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
L longe, em casa, h a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Imprio tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua me.
In Obra potica

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Fernando Pessoa
[O aldeo]
sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E to lento o teu soar,
To como triste da vida,
Que j a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
s para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no cu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Se estou s, quero no star,


Se estou s, quero no star,
Se no stou, quero star s.
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que no estou.
Ser feliz ser aquele.
E aquele no feliz,
Porque pensa dentro dele
E no dentro do que eu quis.
A gente faz o que quer
Daquilo que no nada,
Mas falha se o no fizer
Fica perdido na estrada.
In Obra potica

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Fernando Pessoa
Mar Portugus

O Mostrengo

mar salgado, quanto do teu sal


So lgrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mes choraram,
Quantos filhos em vo rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, mar!

O mostrengo que est no fim do mar


Na noite de breu ergueu-se a voar;
roda da nau voou trs vezes,
Voou trs vezes a chiar,
E disse, Quem que ousou entrar
Nas minhas cavernas que no desvendo,

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma no pequena.
Quem quer passar alm do Bojador
Tem que passar alm da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele que espelhou o cu.

Meus tetos negros do fim do mundo?


E o homem do leme disse, tremendo,
El-Rei D. Joo Segundo!
De quem so as velas onde me roo?
De quem as quilhas que vejo e ouo?
Disse o mostrengo, e rodou trs vezes,
Trs vezes rodou imundo e grosso,
Quem vem poder o que s eu posso,
Que moro onde nunca ningum me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?
E o homem do leme tremeu, e disse,
El-Rei D. Joo Segundo!

In Mensagem

Trs vezes do leme as mos ergueu,


Trs vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer trs vezes,
Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme.
De El-Rei D. Joo Segundo!

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Camilo Pessanha
Floriram por engano as rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas


No inverno: veio o vento desfolh-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que h pouco me enganavas?
Castelos doidos! To cedo castes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mos dadas? Teus olhos, que um
momento
Perscrutaram nos meus, como vo tristes!
E sobre ns cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, ptalas, de leve
Juncando o cho, na acrpole de gelos...
Em redor do teu vulto como um vu!
Quem as esparze quanta flor! do cu,
Sobre ns dois, sobre os nossos cabelos?

Quando voltei encontrei os meus passos

(A Aires de Castro e Almeida)


Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a hmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
To rediviva! nos meus olhos baos...
Olhos turvos de lgrimas contidas.
Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?
Onde fostes sem tino, ao vento vrio,
Em redor, como as aves num avirio,
At que a asita fofa lhes falea...
Toda esta extensa pista para qu?
Se h de vir apagar-vos a mar,
Com as do novo rasto que comea...
In Clepsidra

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Mrio de S-Carneiro
Quasi

Um pouco mais de sol eu era brasa,


Um pouco mais de azul eu era alm.
Para atingir, faltou-me um golpe dasa
Se ao menos eu permanecesse aqum...
Assombro ou paz? Em vo... Tudo esvado
Num baixo mar enganador despuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho dor! quasi vivido...
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princpio e o fim quasi a expanso...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi s iluso!
De tudo houve um comeo... e tudo errou...
Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elanou mas no voou...

Momentos dalma que desbaratei...


Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
nsias que foram mas que no fixei...
Se me vagueio, encontro s indcios
Ogivas para o sol vejo-as cerradas;
E mos dheri, sem f, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipcios...
Num mpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possu...
Hoje, de mim, s resta o desencanto
Das coisas que beijei mas no vivi

Um pouco mais de sol e fora brasa,


Um pouco mais de azul e fora alm.
Para atingir, faltou-me um golpe dasa
Se ao menos eu permanecesse aqum
In Disperso

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Mrio de S-Carneiro
O recreio
Na minhAlma h um balouo
Que est sempre a balouar
Balouo beira dum poo,
Bem difcil de montar...
E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia
(E j vai estando esgarada),
Era uma vez a folia:
Morre a criana afogada...
C por mim no mudo a corda
Seria grande estopada...
Se o indez morre, deix-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deix-lo
Balouar-se enquanto vive...
Mudar a corda era fcil...
Tal ideia nunca tive...
In Indcios de oiro

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Irene Lisboa
Escrever
Se eu pudesse havia de transformar as palavras
em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem msica.
Como um gesto, uma pancada brusca e sbria.
Para qu todo este artifcio da composio sinttica e mtrica?
Para qu o arredondado lingustico?
Gostava de atirar palavras.
Rpidas, secas e brbaras, pedradas!
Sentidos prprios em tudo.
Amo? Amo ou no amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou no.
E, como isto, continuando.
E gostava para as infinitamente delicadas coisas
do esprito
Quais, mas quais?
Gostava, em oposio com a braveza do jogo da
pedrada, do tal ataque s coisas certas e negadas
Gostava de escrever com um fio de gua.
Um fio que nada traasse.
Fino e sem cor, medroso.
infinitamente delicadas coisas do esprito!
Amor que se no tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreos e gostos fugitivos.
Ai! o fio da gua, o prprio fio da gua sobre
vs passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?
In Um dia e outro dia Outono havias de vir latente, triste

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Irene Lisboa

Monotonia
Comear, recomear, interminamente repetir um
montono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalterveis, semelhantes, insistir sobre o cansao e a pobreza disto de viver...
Andar como os dementes pelos cantos a repisar
o que j ningum quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperana, por desfastio.
Pr a nu uma misria comum e conhecida, chmente, serenamente, indiferente beleza dos temas
e das concluses.
Monotonamente, monotonamente.
Monotonia. Arte, vida...
No serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hbil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri no te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constncia.
Monotonia, torna-me desinteressada.
In Um dia e outro dia outono havias de vir latente, triste

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Almada Negreiros
Lus, o poeta salva a nado o poema
Era uma vez
um portugus
de Portugal.
O nome Lus
H de bastar
toda a nao
ouviu falar.
Estala a guerra
E Portugal
chama Lus
para embarcar.
Na guerra andou
a guerrear
e perde um olho
por Portugal.
Livre da morte
ps-se a contar
o que sabia
de Portugal.
Dias e dias
grande pensar
juntou Lus
a recordar.
Ficou um livro
ao terminar
muito importante
para estudar.
Ia num barco
ia no mar
e a tormenta
v destalar.
Mais do que a vida
H de guardar
o barco a pique
Lus a nadar.
Fora da gua
Um brao no ar
na mo o livro

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h de salvar.
Nada que nada
sempre a nadar
livro perdido
no alto mar.
Mar ignorante
que queres roubar?
a minha vida
ou este cantar?
A vida minha
ta posso dar
mas este livro
h de ficar.
Estas palavras
Ho de durar
por minha vida
quero jurar.
Tira-me as foras
podes matar
a minha alma
sabe voar.
Sou portugus
de Portugal
depois de morto
no vou mudar.
Sou portugus
de Portugal
acaba a vida
e sigo igual.
Meu corpo Terra
de Portugal
e morto ilha
no alto mar.
H portugueses
a navegar
por sobre as ondas
me ho de achar.
A vida morta

aqui a boiar
mas no o livro
se h de molhar.
Estas palavras
vo alegrar
a minha gente
de um s pensar.
nossa terra
iro parar
l toda a gente
h de gostar.
S uma coisa
vo olvidar:
o seu autor
aqui a nadar.
fado nosso
nacional
no h portugueses
h Portugal.
Saudades tenho
mil e sem par
saudade vida
sem se lograr.
A minha vida
vai acabar
mas estes versos
ho de gravar.
O livro este
este o cantar
assim se pensa
em Portugal.
Depois de pronto
faltava dar
a minha vida
para o salvar
In Obras Completas
Poesia

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Jos Gomes Ferreira


V
(Encontrei na Brasileira do Rossio o Manuel Mendes
a primeira pessoa a quem li estes versos.)
Nunca encontrei um pssaro morto na floresta.
Em vo andei toda a manh
a procurar entre as rvores
um cadver pequenino
que desse o sangue s flores
e as asas s folhas secas...
Os pssaros quando morrem
caem no cu.
In Poeta Militante I

XXV
(Na praia. O menino aprende a linguagem
das nuvens.)
Aquela nuvem
parece um cavalo...
Ah! se eu pudesse mont-lo!
Aquela?
Mas j no um cavalo,
uma barca vela.
No faz mal.
Queria embarcar nela.
Aquela?
Mas j no um navio,
uma Torre Amarela
a vogar no frio

Educao literria | Poesia | 9. ano

onde encerraram uma donzela.


No faz mal.
Quero ter asas
para a espreitar da janela.
V, lancem-me no mar
donde voam as nuvens
para ir numa delas
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tomar mil formas
com sabor a sal
labirinto de sombras e de cisnes
no cu de gua-sol-vento-luz concreto e
irreal...
In Poeta militante II

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Jos Gomes Ferreira


III
(Todas as manhs, descia a Charca em direo ao
Colgio Colgio Francs, dirigido pelo Sr. Silva
sempre com um sorriso de fraque cnico e a palmatria
na gaveta da secretria.)
O tempo parou
no caminho para a escola
musgo de voo,
asas de gaiola.
s vezes no passado a morte assim.
Continua-se vivo.
S a gravidade muda de lei
pedra que para sem peso no ar do jardim
e no torno a v-la quebrar o vidro
que eu quebrei.

XIX
(De p, humilhado diante do quadro preto.)
Errei as contas no quadro,
preguia de giz negro
e to bom parecer estpido!
Minado pelo sonho
liberdade secreta,
rosto de espelho opaco.
Assim tambm a noite
que eu via atravs das janelas fechadas
sozinho na cama quente de solido.
E tantas, tantas somas de estrelas erradas.
In Poeta militante III

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Jorge de Sena
Uma pequenina luz
Uma pequenina luz bruxuleante
no na distncia brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de ns e a multido em volta
une toute petite lumire
just a little light
una piccola... em todas as lnguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de ns
entre o bafo quente da multido
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a no veem
s a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exata
que bruxuleia firme
que no ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e muda.
Muda como a exatido como a firmeza
como a justia.
Brilhando indefectvel.
Silenciosa no crepita
no consome no custa dinheiro.
No ela que custa dinheiro.
No aquece tambm os que de frio se juntam.
No ilumina tambm os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectvel prxima dourada.
Tudo incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo pensamento realidade sensao saber: brilha.
Tudo treva ou claridade contra a mesma treva:
brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou no:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exatido como a firmeza

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como a justia.
Apenas como elas.
Mas brilha.
No na distncia. Aqui
no meio de ns.
Brilha.
In Poesia II

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Jorge de Sena
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
No sei, meus filhos, que mundo ser o vosso.
possvel, porque tudo possvel, que ele seja
aquele que eu desejo para vs. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advm
de nada haver que no seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vs.
E possvel que no seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo possvel,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos parea a liberdade e a justia,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicao honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
no tem conta o nmero dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de nico,
de inslito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente secular justia,
para que os liquidasse com suma piedade e sem efuso de sangue.
Por serem fiis a um deus, a um pensamento,
a uma ptria, uma esperana, ou muito apenas
fome irrespondvel que lhes roa as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados to anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas no restasse memria.
s vezes, por serem de uma raa, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que no tinham cometido ou no tinham conscincia
de haver cometido. Mas tambm aconteceu
e acontece que no foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por nvios caminhos quais se diz que so nvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este herosmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
h mais de um sculo e que por violenta e injusta

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

ofendeu o corao de um pintor chamado Goya,


que tinha um corao muito grande, cheio de fria
e de amor. Mas isto nada , meus filhos.
Apenas um episdio, um episdio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou no sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum smen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ningum
vale mais que uma vida ou a alegria de t-la.
isto o que mais importa essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que ho de falar-vos tanto
no seno essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
algum est menos vivo ou sofre ou morre
para que um s de vs resista um pouco mais
morte que de todos e vir.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ningum, sem terror, sem ambio,
e sobretudo sem desapego ou indiferena,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angstia, um dia
mesmo que o tdio de um mundo feliz vos persiga
no ho-de ser em vo. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos sculos
de opresso e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolvel.
Sero ou no em vo? Mas, mesmo que o no sejam,
quem ressuscita esses milhes, quem restitui,
no s a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juzo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que no viveram, aquele objeto
que no fruram, aquele gesto
de amor, que fariam amanh.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre t-lo com cuidado, como coisa
que no s nossa, que nos cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memria do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros no amaram porque lho roubaram.
In Poesia II

Educao literria | Poesia | 9. ano

17

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Jorge de Sena

Cames dirige-se aos seus contemporneos


Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e tambm as metforas, os temas, os motivos,
os smbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma lngua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois no me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar at
outros ladres mais felizes.
No importa nada: que o castigo
ser terrvel. No s quando
vossos netos no souberem j quem sois
tero de me saber melhor ainda
do que fingis que no sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverter para o meu nome. E mesmo ser meu,
tido por meu, contado como meu,
at mesmo aquele pouco e miservel
que, s por vs, sem roubo, havereis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto h de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladres,
iguais a vs, de joelhos, porem flores no tmulo.

18

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Sophia de Mello Breyner Andresen


As pessoas sensveis
As pessoas sensveis no so capazes
De matar galinhas
Porm so capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
74
Porque no tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor no foi lavada
Porque no tinham outra
Ganhars o po com o suor do teu rosto
Assim nos foi imposto
E no:
Com o suor dos outros ganhars o po
vendilhes do templo
construtores
Das grandes esttuas balofas e pesadas
cheios de devoo e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

In Obra potica

Educao literria | Poesia | 9. ano

19

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Sophia de Mello Breyner Andresen

Meditao do Duque de Gandia sobre a


morte de Isabel de Portugal
Nunca mais
A tua face ser pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poder nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroos
Do teu ser. Em breve a podrido
Beber os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mo na sua mo.

Porque
Porque os outros se mascaram mas tu no
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que no tem perdo.
Porque os outros tm medo mas tu no.

Nunca mais amarei quem no possa viver


Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glria, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparncia
E nem sequer me resta a tua ausncia,
s um rosto de nojo e negao
E eu fecho os olhos para no te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer

Porque os outros so os tmulos caiados


Onde germina calada a podrido.
Porque os outros se calam mas tu no.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos do sempre dividendo.
Porque os outros so hbeis mas tu no.
Porque os outros vo sombra dos abrigos
E tu vais de mos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu no.

20

In Obra potica

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Sophia de Mello Breyner Andresen


Cames e a tena
Irs ao Pao. Irs pedir que a tena
Seja paga na data combinada
Este pas te mata lentamente
Pas que tu chamaste e no responde
Pas que tu nomeias e no nasce
Em tua perdio se conjuraram
Calnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou seu ser inteiramente
E aqueles que invocaste no te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela pacincia cuja mo de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto
Irs ao Pao irs pacientemente
Pois no te pedem canto mas pacincia
Este pas que te mata lentamente.

In Obra ootica

Educao literria | Poesia | 9. ano

21

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Carlos de Oliveira

Vilancete castelhano de Gil Vicente


Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperana;
a falta de confiana
s da morte conhecida.
Se a lgrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remdio na vida.
E pois que outro preo tem
depois do mal a bonana,
nunca se perca a esperana
enquanto a morte no vem.

Quando a harmonia chega


Escrevo na madrugada as ltimas palavras deste livro: e tenho o
corao tranquilo, sei que a alegria se reconstri e continua.
Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente que
desperta no rumor das casas, foras surgindo da terra inesgotvel,
crianas que passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e
irrevogvel, a humanidade est na rua.
E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao encontro
da luz, parece de repente uma ave de fogo.
In Terra da harmonia

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Herberto Helder
No sei como dizer-te que minha voz te procura
e a ateno comea a florir, quando sucede a noite
esplndida e vasta.
No sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
eu no sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espao
e o corao uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilho de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solido
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
E ento no sei o que dizer
junto taa de pedra do teu to jovem silncio.
Quando as crianas acordam nas luas espantadas
que s vezes se despenham no meio do tempo
no sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a gua sobrenatural, o leve e abstrato
correr do espao
e penso que vou dizer algo cheio de razo,
mas quando a sombra cai da curva sfrega
dos meus lbios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave qualquer
coisa extraordinria.
Porque no sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim o sol, o fruto,
a criana, a gua, o deus, o leite, a me,
o amor,
que te procuram.
In A colher na boca

Educao literria | Poesia | 9. ano

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Ruy Belo

Os estivadores
S eles suam mas s eles sabem
o preo de estar vivo sobre a terra
S nessas mos enormes que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra
Outros riro e outros sonharo
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles que chamo irmo
na vida que em seus gestos principia
Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles so a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
o que sobra agora da cidade
Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a deciso do gesto
o muro oposto pela gravidade
Ode martima que chamo ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza certo muito pode
mas um homem de p pode bem mais

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Ruy Belo
E tudo era possvel
Na minha juventude antes de ter sado
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia j o rebentar do mar
das pginas dos livros que j tinha lido
Chegava o ms de maio era tudo florido
o rolo das manhs punha-se a circular
e era s ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma sada
Quando foi isso? Eu prprio no o sei dizer
S sei que tinha o poder de uma criana
entre as coisas e mim havia vizinhana
e tudo era possvel era s querer

Algumas proposies com crianas


A criana est completamente imersa na infncia
a criana no sabe que h de fazer da infncia
a criana coincide com a infncia
a criana deixa-se invadir pela infncia como pelo sono
deixa cair a cabea e voga na infncia
a criana mergulha na infncia como no mar
a infncia o elemento da criana como a gua
o elemento prprio do peixe
a criana no sabe que pertence terra
a sabedoria da criana no saber que morre
a criana morre na adolescncia
Se foste criana diz-me a cor do teu pas
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infncia
embora nunca mais eu saiba como ela se diz
In Obra potica

Educao literria | Poesia | 9. ano

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Gasto Cruz
Ode soneto coragem
O silncio coragem
no consente
o amor da linguagem
o silncio
um incndio grande e a nossa fala
estremece de palavras abraadas
H um amor do que se diz do fogo
onde sempre se esgota a nossa voz
dizer palavras lutar se a luta
reconhece as palavras que produz
se as acende nas ruas
do sentido que o corao dos homens conseguiu
impor-lhes em silncio incndio grande
a lngua maior incndio os homens
sobre a fala esgotada
coragem
o fogo
maior incndio o amor

sobre

In A doena

cf. Romeo and Juliet, III. V. 1-36


A cotovia
um rouxinol ainda
Os ouvidos no ouvem essa
ave que divide
e a luz que conduz a mntua no canta
Esse canto alterado
como um simples acidente da boca
era um som diferente nos teus mudos
ouvidos
da to ameaada madrugada

A tua boca ouve


a noite nessa ave
porm na manh que se transforma noutro
o canto que escurece como a luz a dor pouco
antes entre outro canto fugitiva
Vejo-te contra a pele como se no pudesse
ocultar-te de todo o movimento
dum incndio
e a cotovia exprime
impede a tua perda
In Teoria da fala

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Gasto Cruz
Tinha deixado a torpe arte dos versos
Tinha deixado a torpe arte dos versos
e de novo procuro esse exerccio
de soluos
Devo agora rever a noite que te oculta
como pude esquecer que de tal modo
teria de exprimir
tudo o que j esquecera e sopra sobre
mim
como numa plancie o crepsculo
Tinha esquecido a arte dos tercetos
e toda a
outra
mas fechaste-te nela e eu descubro
no seu esse veneno esse discurso
Devo pois ver de novo como muda
como os sinais da voz a noite que perdura
tu deitas-te eu ensino minha vida
esse extinto exerccio
In Teoria da Fala

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Nuno Jdice
Escola
Fragmentos
O que significa o rio,
a pedra, os lbios da terra
que murmuram, de manh,
o acordar da respirao?

1
Aceita o transitrio; nada do que
definitivo, dura, te pode atingir

O que significa a medida


das margens, a cor que
desaparece das folhas no
lodo de um charco?

O dourado dos ramos na


estao seca, as gotas
de gua na ponta dos
cabelos, os muros de hera?

A linha envolve os objetos


com a nitidez abstrata
dos dedos; traa o sentido
que a memria no guardou;

Algo de visvel perpassa


nos limites do ser.

De noite, o vento partiu


um dos vidros das traseiras.
4
S o rudo da noite sobrevive
luz e ao furor matinais.
5

e um fio de versos e verbos


canta, no fundo do ptio,
no coro de arbustos que
o vento confunde com crianas.
A chave das coisas est
no equvoco da idade, na
sombria abbada dos meses,
no rosto cego das nuvens.

(Se aquelas nuvens, no horizonte,


chegassem at mim...)
6
O fragmento, porm, exprime
o estilhaar da intensidade.
7
No ltimo fragmento, fixa
o efmero e repousa.
In Meditao sobre runas

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Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

Nuno Jdice
O conceito de metfora
com citaes de Cames e Florbela
Transforma-se a imagem no objeto visto:
amada no ramo pousada, ave e memria,
peas espalhadas num lugar sem histria
que o poema arruma sem nada ter previsto.
Deito essa imagem num velho travesseiro,
toco-a com os dedos de um verso antigo
e digo-lhe: Amo-te ainda; vem comigo!,
quando ela me oferece o seu corpo inteiro.
83

Nada do que aqui est tem um fundo


na realidade em que nasce esta linguagem;
o verso engana em cada imagem,

Contas

e s dentro dele faz sentido o mundo.


Por isso te escondo aqui, figura desejada,
e tudo o resto pouco mais do que nada.

Uma noite, quando a noite no acabava,


contei cada estrela no cu dos teus olhos;
e nessa noite em que nenhum astro brilhava
deste-me sis e planetas aos molhos.

Nessa noite, que nenhum cometa incendiou,


fizemos a mais longa viagem do amor;
no teu corpo, onde o meu encalhou,
fiz caminho de nufrago e navegador.
Tu s a ilha que todos desejaram,
a lagoa negra onde sonhei mergulhar,
e as lentas contas que os dedos contaram
por entre cabelos suspensos do ar
nessa noite em que no houve madrugada,
desfiando um tero sem deus nem tabuada.
In Rimas e contas

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Federico Garca Lorca


Romance Sonmbulo
A Gloria Giner
e Fernando de los Ros
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O barco sempre no mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra na cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranas verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
No alto, a lua cigana.
As coisas a esto olhando
e ela no pode olh-las.
*
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de geada
chegam com o peixe de sombra
que abre caminho alvorada.
A figueira esfrega o seu vento
com a lixa de seus ramos,
e o monte, gato gardunho,
eria suas pitas acres.
Mas quem vir? E por onde?...
Ela ainda est na varanda,
verde carne, tranas verdes,
sonhando com o mar amargo.
*

30

Compadre, quero trocar


meu cavalo por sua casa,
meus arreios por seu espelho,
sua manta por minha faca.
Compadre, venho a sangrar
desde as gargantas de Cabra.
Ah, se eu pudesse, rapaz,
este contrato fechava.
Eu, porm, j no sou eu,
nem minha j minha casa.
Compadre, quero morrer
com honra na minha cama.
De ferro, se puder ser,
e tendo lenis de holanda.
No vs a ferida que tenho
do peito at garganta?
Trezentas rosas morenas
leva o teu peitilho branco.
Teu sangue ressuma e cheira
em volta de tua faixa.
Porm, eu j no sou eu.
*
Nem minha j minha casa.
Deixai-me subir ao menos
at s altas varandas,
deixai-me subir!, deixai-me
at s verdes varandas.
Balaustradas da lua
por onde ressoa a gua.

Educao literria | Poesia | 9. ano

Agrupamento de Escolas Andr Soares

J sobem os dois compadres


l acima, s altas varandas.
Deixando um rasto de sangue.
Deixando um rasto de lgrimas.
Tremulavam nos telhados
candeeirinhos de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
*

Verde que te quero verde,


verde vento, verdes ramos.
Os dois compadres subiram.
O longo vento deixava
na boca um gosto esquisito
de fel, menta e alfavaca.
Compadre, diz-me onde est
tua menina amargurada?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
cara fresca, negras tranas,
nesta to verde varanda!
*

Sobre o rosto da cisterna


balouava-se a cigana.
Verde carne, tranas verdes,
com olhos de fria prata.
Um sincelo de luar
sustenta-a sobre a gua.
A noite tornou-se ntima
como uma pequena praa.
Guardas civis embriagados
na porta davam pancadas.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O barco sempre no mar.
E o cavalo na montanha.
(trad. Jos Bento) In Obra potica

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Agrupamento de Escolas Andr Soares

Carlos Drummond de Andrade


Receita de Ano Novo
Para voc ganhar belssimo Ano Novo
cor do arco-ris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparao com todo o tempo j vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para voc ganhar um ano
no apenas pintado de novo, remendado s carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
at no corao das coisas menos percebidas
(a comear pelo seu interior)
novo, espontneo, que de to perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
voc no precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
no precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
No precisa
fazer lista de boas intenes
para arquiv-las na gaveta.
No precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperana
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justia entre os homens e as naes,
liberdade com cheiro e gosto de po matinal,
direitos respeitados, comeando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que merea este nome,
voc, meu caro, tem de merec-lo,
tem de faz-lo novo, eu sei que no fcil,
mas tente, experimente, consciente.
dentro de voc que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
In Discurso da primavera e algumas sombras

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Educao literria | Poesia | 9. ano

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