Ficcoes Revista de Contos 15 PDF
Ficcoes Revista de Contos 15 PDF
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Fie ~ OES
REV I STA
D E CONTOS
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FiCES
REVISTA DE CONTOS N.o15
1 . SEMESTRE DE 2007
Direitos de autor:
Texto pedido a J acq lles Prvert por Georges Ribemont-Derraiglles para a revista Biflll', 1930 Edi tions Gallimard
1949; Copyright Russel & Volkening, Ine.; Copyright 1951,
1957 , 1967,1968 The Estate ofSaul Bellow; Copyright Jean
Giono; Copyright texto reimpresso com autorizao do autor
e dos agentes literrios do autor, Scovil Ch ichak Galen Literary
Agency, Ine.; Copyright Fay Weldon 1981; Copyright David
Godwin Associates; Copyright John Calder Publications
Fices
ficcoes @editol'ial-calllinho.pt
'lUl/Jw.jicroes.llet
Dil'ecclo
Lusa Costa Gomes
1117pressclo
Tipografia Lousanense, L.,j,
Distribuio
Editorial Caminho, SA
Tiragem
1800 exemplares
Depsito Legal
233 171/05
Edio
Editorial Caminho, SA
Av. Almirante Gago Coutin ho, 121
1700-029 Lisboa
'lUl/Jl/J. edito /'iaI-ca IIIiIIbo.pt
ndice
Jacques Prvert
Recordaes de famlia ou o
anjo da guarda prisional
23
Eudora Welty
45
Saul Bellow
81
Jean Giono
97
Philip K. Dick
A formiga elctrica
129
Fay Weldon
157
Harold Brodkey
169
Samuel Beckett
181
Fim-de-semana
Ouvido no eSCU1'0 I e II
Jacques Prvert
Recordaes de famlia
ou o anjo da guarda prisional
Vivamos numa casinha em Saintes-Maries-de-Ia-Mer onde o meu pai se tinha estabelecido como fabricante de ligaduras.
Era um grande sbio. Um homem muito como
deve ser e de uma rectido que impunha respeito; os
mosquitos picavam-no todas as manhs na mo esquerda e ele todas as noites picava as babas com um
palito japons e jorravam esguichinhos de gua. Era
bem bonito, mas fazia rir os meus irmos mais novos,
e o meu pai esbofeteava um deles ao acaso, fugia a chorar e ia fechar-se na cozinha que lhe servia de laboratrio.
A trabalhava silenciosamente e, ao p dele, Marie-Rose, a nossa velha criada, preparava o jantar. Tiras de
toucinho e ligaduras espalhavam-se pela bancada onde
bocais cheios de cerejas em aguardente conviviam com
outros onde havia bichas solitrias e bebs incompletos mergulhados em lcool.
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Jaeques Prve'rt
Distrada, a velha confundia s vezes a queijeira com
a mquina pneumtica ou ento esmagava candidamente o pur de castanhas com o mata-borro, e quando, melhor ou pior, a refeio estava pronta, o meu pai
tocava a trompa e sentvamo-nos todos mesa.
As moscas e todos os bichos rastejantes l da terra
fervilhavam sobre a toalha, as baratas saam do po com
muitas mesuras, e todo esse povo mido ia sua vidinha, escondia-se debaixo dos pratos, mergulhava na
sopa e estalava-nos nos dentes.
Havia tambm um padre; estava ali para a Educao; comia.
O meu pai foi o inventor de uma perna artificial
aperfeioada; o seu xito estava relacionado com o do
movimento revanchista; por isso, a todas as refeies,
evocava, abanando dolorosamente a cabea, o calvrio
das cegonhas francesas, cativas nos campanrios de
Estrasburgo .
O abade escutava com emoo e depois, levantando-se de repente, como um deus que sai da sua caixa,
de boca cheia e brandindo o garfo, lanava o antema
contra a escola sem Deus, os lares sem filhos, as raparigas sem calcinhas e a capital bria de ingratido.
E depois voltava-se perna, famosa perna.
- Compreende, senhor abade - dizia o meu pai -,
uma perna por assim dizer verdadeira, uma perna mais
verdadeira que as naturais. Uma perna de corredor, leve
e macia, uma perna peso pluma, a que se d corda como
a um despertador.
E, olhando para mim, olhando depois para os meus
irmos com uma imensa ternura, tentava adivinhar qual
de ns teria, mais tarde, a sorte de trazer ao peito a cruz
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Jacques Prvert
Um dia, o meu pai recebeu a condecorao da Rubola da legio de honra e perdeu muitos cabelos, gaguejou tambm um pouco e ganhou o hbito de falar
sozinho; o abade olhava para ele, abanando tristemente a cabea.
O abade era um homem de vestido, com olhos
muito hmidos e mos compridas, lisas e macilentas;
quando se agitavam, faziam pensar bastante em peixes
a morrer na pedra de um lava-loias. Lia-nos sempre a
mesma histria, triste e banal histria de um homem
de outros tempos, com uma pra no queixo, um cordeiro aos ombros e que morreu pregado em duas tbuas de salvao, depois de muito ter chorado a sua
sorte, noite, num jardim. Era um filho de famlia que
falava sempre do pai - o meu pai isto, o meu pai aquilo, o Reino do meu pai, e contava histrias aos infelizes
que o escutavam com admirao porque falava bem e
tinha instruo.
Descretinizava os cretinos e, quando as trovoadas
estavam quase a acabar, estendia a mo e a tempestade abrandava.
Curava tambm os hidrpicos, andava-lhes em cima
da barriga dizendo que caminhava sobre as guas, e a
gua que lhes saa da barriga transformava-a em vinho;
e aos que o queriam beber, dizia que era o seu sangue.
Sentado debaixo de uma rvore, parabolava: Bem-aventurados os pobres de esprito, os que no tentarem compreender, porque ho-de trabalhar no duro,
levar pontaps no cu e fazer horas extraordinrias que
lhes sero contadas mais tarde no reino do meu pai.
Entretanto, multiplicava-lhes os pes, e os desgraados passavam pelos talhos esfregando s o miolo na
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Jacques Prvert
Confortavelmente instalado na sua nuvem almirante, Deus pai, da casa deus pai, filho e esprito santo &
cia, d um imenso suspiro de satisfao, logo a seguir
estoiram obsequiosas duas ou trs nuvens subalternas
e Deus pai clama: Louvado seja eu, bendita seja a minha santa firma, o meu filho bem amado recebeu a cruz,
a minha empresa est lanada!
Faz imediatamente encomendas e as grandes manufacturas de escapulrios entram em transe, nas catacumbas recusa-se a entrada de pessoas e, entre as
famlias que merecem esse nome, de muito bom tom
ter pelo menos dois filhos devorados pelos lees .
- Ento, ento, seus saltimbancos, apanho-vos a rir
da nossa santa religio. E o abade, que estivera escuta atrs da porta, avana para ns, untuoso e ameaador.
Mas h muito que este personagem, que falava de
olhos baixos remexendo nas suas santas medalhas como
o guarda de uma priso nas suas chaves, deixara de nos
impressionar, e considervamo-lo um pouco como um
dos diferentes objectos que mobilavam a casa e a que o
meu pai chamava pomposamente recordaes de famlia: os armrios provenais, as banheiras de semicpio,
os marcos fronteirios, os palanquins e as grandes carapaas de tartaruga.
O que nos interessava, do que ns gostvamos, era
de Costal, o ndio, era de Sitting-Bull, era de todos os
caadores de escalpes; e que ideia singular a de nos dar
como mestre um homem de cara plida e meio escalpado.
- Seus desgraados, fazem chorar o vosso anjo da
guarda, no tm vergonha? - diz o abade.
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Jacques PrveTl
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-se, afogavam-se, safavam-se, voltavam a vestir-se e congratulavam-se, com uma pontualidade desoladora; tudo
se misturava, o po no capacho da entrada, o homem do
gs e os sinos pelos mortos, pelos que se casam.
Uma ou duas vezes por ms, um grande proprietrio organizava corridas de touros: eram a minha nica
distraco.
Punham-se os touros em fila, atrs de uma corda;
um homenzinho disparava um tiro de pistola, outro
cortava a corda e os touros partiam a galope e davam
vrias voltas igreja. O primeiro a chegar era castrado
com grande pompa e tomava o ttulo de boi.
Foi num dia de corridas que olhei de muito perto e
pela primeira vez para os olhos de uma menina. Estava
muito quente, muito abafado, havia pessoas que cheiravam a suor e a comida, outras que lutavam com
forquilhas e que chamavam os touros pelos nomes.
Um grande imbecil tinha metido a manpula no
corpete de uma mulher para, dizia ele, procurar um
trevo de quatro folhas; toda a vizinhana ria, a mulher
consentia, a mo subia e descia de novo at s ndegas,
os touros passavam e voltavam a passar a galope, e a
mulher dava uns gritinhos, e remexia as costas e o rabo.
Toda a gente gritava, berrava, e todos os gritos iam pelos
campos, envoltos em mosquitos e poeira.
Ao p de mim, uma menina, com os dentes ferrados na balaustrada, via os touros correr.
De repente, belisca-me o brao at quase fazer sangue e diz-me: Olha Hector, ele caiu.
Um jovem touro est estendido no cho, calmo, parecendo sonhar, enquanto os homens que apostaram
nele lanam pedras e beatas ao animal impassvel.
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Jacques Prvert
Jacques Prvert
Jacques Prvert
-me ao calhas, rasca. E depois retirmo-nos, metemo-nos a po bento, e possu-vos, canalha mida, fiz-vos
o truque dos esguichos de gua com um elevador de
pratos. Hoje, canalha pequena, estou farto, estou deriva, enrugado, lixado. Lixado, estou lixado, a srio,
devorado pela legio de honra ...
Mas cai do aparador, hirto, to hirto que parece que
o mvel que se parte e ele uma tbua a cair.
A porta abre-se de repenre e aparece o abade, de
barba, jovial, irreconhecvel, com um bon de polcia
todo arrogante sobre a tonsura e as grevas a aparecerem por baixo da sotaina.
- C estamos, diz, c estamos, ah, meus meninos,
meus queridos meninos! Ser paciente e ser imbecil so
duas coisas diferentes, no podia durar muito, finalmente a filha mais velha da Igreja acorda, uma verdadeira cruzada! Ladres, Hunos! Em 70 roubaram-nos os
pndulos para no se ouvir soar a hora da vingana, roubaram o plano da mulher-torpedo e o do embrulho quadrado. Selvagens! Pilharam e queimaram Joana d'Arc
e, se no os impedssemos, ainda tosquiavam o Leo de
Belfort 6 como um caniche. Mas felizmente vamos estando por c e aquele (apontando para o lustre) que est
l no Alto tambm vai estarido um pouco por c. No
verdade, meninos? Mas o que se passa?
E, debruando-se sobre o nosso pai, tenta reanim-lo e fala-lhe da perna, da famosa perna com que o pas
est a contar.
Mas no basta a histria de uma perna artificial e
sem dvida imaginria para acordar um morto. O abade
levanta-se e, com o dedo mindinho na costura da sotaina, recita a orao dos moribundos.
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Eudora Welty
Porque vivo no posto dos Correios
Eudora Welty (1909-2001) nasceu em Jackson, Mississpi, onde viveu a maior parte da sua vida e viria a morrer. Estudou na Universidade
do Wisconsin e na Universidade de Columbia. Comeou a publicar em
1936 e desde cedo estabeleceu uma slid a reputao como autora. Ao
longo da segunda metade do sculo xx manteve-se como um dos mais
estimados cones literrios do pblico americano. O seu percurso de escrita foi to longo como prolfero, incluindo coleces de co ntos, romances, memrias e ensaios crticos . Exps e publicou ainda uma interessante
obra fotogrfica sobre o Sul rural. Entre os seus muitos ttulos destacam-se A Cl/r/a;1I ofGreell, (lIIeI O/her S/or;es (1941), De//a IVec/d;lIg (1946),
Tbe Goldell App/es (1949), The POllder Hear/ (954), The 0p/;/JI;st's Dal/gMer
(972) e Olle Ifl;/e/"'S Beg;IIII;lIgs (1984). Foi escritora residente nas Universidades de Oxford e Cambridge, entre outras . Os seus contos obtiveram seis O. Henry Awards for Short Stories . Foi tambm galardoada com
a National Medal for Lirerature, o American Book Award, a Medalha
da Legio de Honra e o Prmio Pulitzer em 1969. Muitos consideram a
sua obra desditosamenre negligenciada pela comisso do Prmio Nobel.
Nas suas prprias palavras, as relaes humanas so o objecto central
da sua fico, e partilha com Mark Twain, William Faulkner e Flannery
O'Connor um sublime sentido de humor de matiz sulista . Eram pblicas e recprocas a adm irao e a estima de Eudora por Faulkner, com
quem disse ter aprendido a escrever a fala do Mississpi. Outras relaes
interessantes no mbito literrio incluem as suas amizades com Katharine
Anne Porter e Eli sabeth Bowen e uma acesa rivalidade com Carson
McCullers . consensualmenre considerada uma das mais relevanres figuras da literatura norte-americana do scu lo xx, e mestre do gnero
do conto. Why I Live at the PO" foi originalmente publicado na colectnea A CIII"/a;1I of Greell aliei O/her S/or;es, 1941. Porq!lell;vo 110 posto elos
Correios tornou-se um clssico da literatura americana e do conto universal.
24
Eudo'/"ct Welty
fotgrafo dos olhos de boga em quem ela dizia que confiava. Voltou para casa vinda de uma dessas vilrias l
para o Illinois e para nossa completa surpresa trouxe
com ela uma criana de dois anos.
A Me disse que lhe apetecia esgan-la s por um
segundo. Ento tinhas aqui esta criana loira, maravilhosa e nem sequer escreveste tua me uma nica
palavra sobre o assunto, disse a Me . Envergonhas-me . Mas claro que no envergonhava nada.
A Stella-Rondo nas calmas simplesmente tira o chaptt, haviam de o ver. Diz ela: Mas, Me, a Shirley-T.
adoptada, posso provar.
Como?, diz a Me, mas eu s disse H'm! Ali
estava eu, ao calor do fogo, a tentar fazer esticar dois
frangos para cinco pessoas e ainda mais uma criana
completamente inesperada para a confuso, sem o mais
mnimo aviso nem nada.
O que que queres dizer com "H'm!"?, diz a
Stella-Rondo, e diz a Me: Olha que eu ouvi, Mana.
Eu disse oh, no queria dizer nada, s que fosse l
quem fosse a Shirley-T., era a carinha chapada do Av
se ele cortasse a barba, coisa que, claro, ele nunca faria
na vida. O Av o pai da Me e de amuos.
A Stella-Rondo ficou fula! Disse: Mana, no preciso de te dizer que tens muito descaramento e sempre
tiveste e agradeo que de futuro nunca mais te refiras
minha filha adoptada.
Muito bem, disse eu. Muito bem, muito bem.
Claro que reparei logo que ela tambm sai ao lado de
Mr. Whitaker. Aquele franzir do sobrolho. Parece uma
mistura de Mr. Whitaker com Av.
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Eudo!'(/, lflelt)'
dele . Pensa que eu disse de propsito que ele devia cortar a barba depois de ele me ter arranjado o posto dos
Correios, e eu j lhe disse e mais que redisse, e ele simplesmente continua como se no me estivesse a ouvir.
O Av deve ter ficado surdo de todo.
Ento escolheu um belo dia para ficar surdo, disse
o Tio Rondo, e enquanto o diabo esfrega um olho disparou para o jardim.
Pois o que ele tinha feito foi beber outra garrafa
daquela receita da farmcia. Faz sempre isso no 4 de
Julho, isso certinho, e fica horrivelmente caro. Depois cai na rede e ressona. Ento insistiu em ir aos ziguezagues at rede, que parecia um tolinho.
O Av acordou com um grito horrvel e ali mesmo, sem se mexer do lugar, tentou virar o Tio Rondo
contra mim. Ouvi tudinho o que ele disse. Oh, disse
ao Tio Rondo que eu s tinha aprendido a ler aos oito
anos e que no sabia como que eu conseguia ter o
correio em ordem no posto dos Correios, quanto mais
ainda l-lo todo, e disse que se o Tio Rondo ao menos
fizesse uma ideia de tudo o que ele tinha tido de fazer
para me arranjar aquele emprego! E disse que por outro lado achava que a Stella-Rondo tinha uma mente
brilhante e merecia respeito por ter sado da vila. Durante todo esse tempo estava deitadinho na rede, a
baloiar-se todo contente e encaracolar a barba e o desgraado do Tio Rondo a pedir-lbe por f/tdo que andasse
mais devagar com a rede, que estava a ficar mais tonto
que eu sei l o qu a olhar para ela. Mas disso mesmo
que o Av gosta numa rede. Por isso, por enquanto o
Tio Rondo estava demasiado tonto para se pr contra
mim. o nico irmo da Me e quando se lhe enfia uma
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Eudol'a Welt)'
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No te preocupes, que nem morta a hs-de vestir, porque por acaso pertence ao meu enxoval e
Mr. Whitaker tirou vrias dzias de fotografias minhas
com ele vestido, diz a Stella-Rondo. Mas afinal qual
a ideia do Tio Rondo de andar em plena luz do dia
vestido com uma pea do meu enxoval e nem gua
vai, sabendo que eu acabei de chegar a casa esta manh
depois da minha separao e pendurei o meu nglig
na porta da casa de banho, mais nervosa que sei l o
qu?
Sei l eu, e o que queres tu que eu faa?, digo eu .
Que me atire da janela?
No, no quero nada disso. S acho que o Tio Rondo fica mesmo idiota com aquilo, mais nada, diz ela.
D-me volta ao estmago.
Ento, fica o melhor que pode, digo eu. O melhor que qualquer pessoa podia ficar, em boa verdade. Eu defendi o Tio Rondo, por favor lembrem-se .
E disse Stella-Rondo, Eu c acho que o melhor era
no criticar tanto, se fosse a ti e voltasse para casa com
uma criana de dois anos da qual nunca tinha dito uma
nica palavra, e sem nenhuma explicao para a minha
separao.
Eu pedi-te mal entrei nesta casa para no te referires mais nenhuma vez minha filha adoptada e tu
deste-me a tua palavra de honra que no, era a nica
coisa que a Stella-Rondo dizia, e ps-se a arrancar os
pelinhos todos das sobrancelhas com uma daquelas pinas baratas da Kress.
Ento limitei-me a bater com a porta e fui l para
baixo e fiz Pickle de tomate verde. Algum tinha que o
fazer. Claro que a Me tinha deixado sair os dois pre31
ElIdora f,lIelty
Eudom vVelty
Eudom Welty
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Eudom IVelty
38
E'lldom f,lIelty
da janelinha com um par de tesouras e me cortes a barba. Sou esperto demais para ti!
Somos todos, diz a Stella-Rondo.
Mas a eu digo, J que s to esperta, onde est
Mr. Whitaker?
Ento diz o Tio Rondo , Agradecia-te que a partir
de agora parasses de ler todas as encomendas que eu
recebo em postais e de dizer a toda a gente em China
Grove o que que achas que as pessoas tm , mas eu
digo, Eu c tiro as minhas concluses e continuarei a
tir-las no futuro. Digo, Se as pessoas gostam de escrever os seus segredos mais ntimos em postais de um
cntimo, no h nada neste mundo que as possa impedir, Tio Rondo.
E se pensas que algum dia ns voltamos a escrever um postal ests redondamente enganada, diz a
Me.
Ai deitam fora o beb com a gua do banho, digo eu. Mas j que esto todos decididos a cortar com
os Correios dos Estados Unidos, pensem nisto: O que
que a Stella-Rondo agora h-de fazer se quiser escrever a Mr. Whitaker a pedir-lhe que venha atrs dela?
Uah! , diz a Stella-Rondo. J sabia que ela ia chorar. Deu-lhe um fanico ali mesmo na cozinha.
H-de ser interessante ver quanto tempo ela se
aguenta, digo eu. E agora, estou de partida.
Adeus , diz o Tio Rondo.
Sinceramente, diz a Me, pensar que a minha
famlia havia de discutir no 4 de Julho, ou no dia a seguir, por a Stella-Rondo ter deixado Mr. Whitaker e
ter a criancinha adoptada mais querida do mundo!
Havamos de estar todos contentes!
41
Eudor(l Welt)'
gonal, como eu gosto. Ouvem o rdio? Todas as notcias da guerra. Rdio, mquina de costura, suportes para
livros, tbua de engomar e o candeeiro grande de piano - sossego, disso que eu gosto. Trepadeiras de feijo-manteiga plantadas na frente toda onde esto os
arames.
Claro que no h muito correio. Naturalmente a
minha famlia a gente mais importante de China
Grove, e se eles preferem desaparecer da face da terra,
apesar de todo o correio que recebem ou que escrevem,
no serei eu a abrir a boca. Algumas pessoas aqui da
vila esto do meu lado e outras esto contra mim. Eu
sei quem quem. H sempre gente que capaz de
deixar de comprar selos s para cair nas boas graas do
Av.
Mas aqui estou eu, e aqui hei-de ficar. Quero que o
mundo saiba que estou feliz. E se a Stella-Rondo entrasse por a neste instante, de joelhos, e tentasse explicar os incidentes da sua vida com Mr. Whitaker, eu
punha simplesmente os dedos em ambos os ouvidos e
recusava-me a OUV1r.
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Saul Bellow
Saul Bellow
rada para os espetos de arquivo, lembrando-lhe os buracos os furos dos rolos de papel das pianolas. Ele tambm no tinha grande ar de caador; o seu aspecto era
inteiramente citadino, apertado na gabardina de conspirador irlands. Era esguio sem ser alto, de costas rgidas, as pernas de aspecto descuidado metidas num par
de calas velhas de fazenda j pudas e esfiapadas nas
bainhas. Com a sua rigidez, mantinha a cabea para a
frente, a cabea avanava, de modo que tinha a cara corada pela inclemncia do tempo; e era uma cara de
homem de interior, com olhos cinzentos que persistiam
num qualquer pensamento, parecendo no entanto evitar o definitivo de uma concluso. Usava umas patilhas
que surpreendiam um pouco pelo encaracolado spero
do cabelo loiro e o efeito assertivo do seu comprimento.
No era to manso como parecia, nem to novo; e no
entanto no havia da sua parte esforo para parecer
aquilo que no era. Era um homem instrudo; era solteiro; era, em certos aspectos, simples; sem excesso,
gostava de beber; no tinha tido sorte. Nada era deliberadamente ocultado .
Sentia que estava hoje com mais sorte do que de
costume. Quando de manh se tinha apresentado no
emprego estava espera de ser enfiado no escritrio da
Assistncia numa tarefa burocrtica, pois trabalhara
como empregado de escritrio no centro, e ficou contente por, pelo contrrio, lhe calhar a liberdade das ruas
e gostou, pelo menos a princpio, do vigor do frio e at
do vento agreste que soprava. Mas, por outro lado, a
distribuio dos cheques no estava a avanar. certo
que era um trabalho de cidade; ningum estava espera que as pessoas se esforassem demasiado num tra48
49
Saul Bellow
Saul Bellow
Scml Bellow
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Saul Bellow
do por fora da gabardina, os bolsos a abarrotar de cadernetas de cheques e de impressos. Devem ter compreendido que no era nenhum estudante empregado
s tardes por algum cobrador de dvidas, tentando fazer-se passar astutamente por funcionrio da Assistncia, reconheceram que era um homem mais velho, que
sabia por si prprio o que era a necessidade, que tivera das dificuldades da vida uma experincia acima da
mdia. Era bem evidente para quem reparasse nos
vincos que tinha debaixo dos olhos e aos cantos da
boca.
- Algum conhece este invlido?
- N, s'nhor - via em todos os lados cabeas a abanar e sorrisos de negao. Ningum o conhecia. E talvez fosse verdade, considerou ele, calado ali em p na
terrena, odorosa, humana soturnidade do lugar, enquanto o murmrio continuava. Mas nunca poderia ter
realmente a certeza.
- O que tem esse tal homem? - disse o cabea de
barretina.
- Nunca o vi. A nica coisa que posso dizer-lhe
que no pode ir buscar o dinheiro dele pessoalmente .
Hoje o meu primeiro dia nesta rea.
- Talvez que deram um nmero errado.
- No me parece. Mas onde mais posso perguntar por ele? - sentia que esta persistncia os divertia
profundamente e, de certa maneira, partilhava o divertimento deles, que os enfrentasse com tal tenacidade. Apesar de mais baixo, de fraca figura, no era
pessoa para se rebaixar, no recuou em nada e devolveu-lhes o olhar, os olhos cinzentos, divertido e tambm com uma certa coragem. Na bancada um dos
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homens disse alguma coisa numa voz abafada, as palavras impossveis de captar, e uma mulher respondeu
com uma risada incontida, esganiada, que foi rapidamente interrompida.
- Bem, ento ningum me vai dizer nada?
- Ningum sabe.
- Pelo menos, se ele mora aqui, paga a renda a algum. Quem que administra o prdio?
- A Greatham Company. Fica na Rua Trinta e
Nove.
Grebe tomou nota no seu bloco . Mas, de novo na
rua, com um pedao de papel empurrado pelo vento
agarrado perna, enquanto deliberava o caminho a tomar, pareceu uma pista bem fraca a seguir. Provavelmente o tal Green no alugava apartamento nenhum,
mas apenas um quarto. s vezes chegava a haver vinte
pessoas num apartamento; o administrador conhecia
apenas o inquilino. E nem o administrador poderia dizer
quem eram os que alugavam os quartos. Havia stios
em que as camas eram usadas vez, guardas-nocturnos, condutores de autocarros ou cozinheiros de refeies rpidas nos bares da noite, que saem depois de
passarem o dia a dormir e cedendo a cama a uma irm,
a um sobrinho ou talvez a algum desconhecido, acabado de chegar no autocarro. Havia nesta terrvel parte
da cidade, roda pela maldio, situada entre Cottage
Grove e Ashland, um grande nmero de forasteiros que
transitava de casa para casa e de quarto para quarto.
Quando os vamos, como haveramos de os reconhecer?
No andavam de trouxa s costas, nem tinham um ar
pitoresco . No vamos seno um homem, um negro,
caminhando na rua ou viajando num elctrico, como
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Saul Bellow
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Sa:ul Bellow
zia era verdade . Mas agia como se fosse uma mentirosa. A expresso dos olhos pequenos era escusa e enquanto barafustava parecia estar tambm a manipular e a
calcular.
- Mandam-me assistentes sociais da universidade,
de calas de seda, a ver se me convencem a desistir daquilo a que tenho direito. Elas so melhores do que eu?
Quem lhes disse? Despeam-nas. Elas que se ponham
a andar e se casem e j no preciso cortar a electricidade do subsdio da gente.
O supervisor-chefe, o Sr. Ewing, no conseguia cal-la e permanecia de braos cruzados frente do pessoal, a cabea mais do que calva, dizendo aos subordinados, como o ex-director de escola que ele era:
- No tarda nada cansa-se e vai-se embora.
- No vai, no - disse Raynor a Grebe. - Vai conseguir o que quer. Sabe mais da Assistncia do que o
Ewing . H anos que est nas listas e consegue sempre
o que quer porque arma sempre uma cena destas .
O Ewing sabe isso. Daqui a pouco cede. Isto s para
salvar a face. Se ele arranja m publicidade, o comissrio chama-o pedra, l na sede. Ela conseguiu afund-lo; h-de acabar por afundar toda a gente, incluindo
naes e governos.
Grebe replicou com o seu sorriso caracterstico, discordando por completo. Quem acataria as ordens de Staika e que mudanas haveria de conseguir a gritaria dela?
No, o que Grebe via nela, o poder que fazia com
que as pessoas a ouvissem, que o grito dela exprimia
a guerra da carne e do sangue, talvez um pouco louco
e certamente feio, sobre este local e esta situao. E a
princpio, para ele, depois de sair para a rua, o esprito
65
Saul Bellow
estavam-se completamente nas tintas. Mas no conseguiam ir at ao fundo de coisa nenhuma, mesmo que
quisessem. Ningum chegaria a saber nem um dcimo
daquilo que se passava com esta gente. Anavalhavam
e roubavam, praticavam toda a casta de crimes e abominaes de que alguma vez se ouviu falar, homens com
homens, mulheres com mulheres, pais com filhos, piores do que animais. Faziam as coisas sua maneira e os
crimes esvaam-se como fumo. Nunca houve nada assim na histria do mundo inteiro.
Era um discurso longo, afundando-se a cada palavra na sua fantasia e paixo e tornando-se crescentemente absurdo e terrvel: um amlgama de sugesto e
inveno, um imenso n cego, entrelaado, desesperado, uma roda humana de cabeas, pernas, barrigas,
braos, girando pela sua loja.
Grebe sentiu que devia interromp-lo. Disse, terminante:
- Que est voc para a a dizer? S lhe perguntei se
conhecia este homem!
- Isto no nem metade. H seis anos que aqui
estou. Se calhar no quer acreditar. Mas, e se fosse verdade?
- Seja como for - disse Grebe - deve haver uma
maneira de encontrar uma pessoa.
Os olhos muito juntos do italiano tinham-se mantido estranhamente concentrados, tal como os seus
msculos, enquanto esteve debruado sobre o balco
tentando convencer Grebe. Agora, desistiu do esforo
e sentou-se no seu banco.
- Ah .. . suponho que sim. Uma vez por outra. Mas
como lhe digo, nem a polcia consegue nada.
67
Saul BeUow
Encontrou sem problema nenhum a casita de madeira numas traseiras; partilhava um terreno com outra casa, com a um metro de permeio . Grebe conhecia
estes lotes com duas barracas. Tinham sido construdas em grande nmero antes de se fazer o aterro dos
pntanos e de as ruas terem sido levantadas, e eram
todas iguais - um passadio de tbuas ao longo da cerca, bastante abaixo do nvel da rua, trs ou quatro estacas com uma bola na ponta para os estendais, madeira
esverdinhada, com telhas de madeira apodrecidas, e um
lano de escadas muito muito comprido para a porta
das traseiras.
Um rapaz de uns doze anos deixou-o entrar para a
cozinha e l estava o velhote, sentado mesa numa
cadeira de rodas.
- Ah, o homem do Governo - disse ele para o rapaz quando Grebe sacou dos cheques. - Vai buscar a
minha caixa dos papis - arranjou um espao em cima
da mesa.
- Oh, no se incomode - disse Grebe. Mas Field
exibiu os seus papis: carto da Segurana Social, certificado da Assistncia, cartas do hospital estadual de
Manteno e uma passagem reserva da Marinha, datada de San Diego, 1920.
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Saul Bellow
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Saul Bellow
origem ao crescimento forado; enormes multides tinham-no igualmente derrubado. Objectos antes novos,
to concretos que nunca poderia ter ocorrido a ningum
que representassem outras coisas, tinham-se esfarelado . Portanto, reflectia Grebe, o segredo deles tinha sido
revelado. E era que se representavam a si prprios por
consenso, e eram naturais e no sobrenaturais por consenso, e quando as prprias coisas ruam o consenso tornava-se visvel. A no ser assim, o que fazia com que as
cidades no parecessem estranhas? Roma, que era quase
permanente, no sugeria pensamentos deste gnero.
Seria ela duradouramente real? Mas em Chicago, onde
os ciclos eram to rpidos e o que era familiar morria e
voltava a erguer-se mudado, e voltava a morrer de novo
da a trinta anos, o consenso ou a aliana via-se, e era-se forado a pensar acerca das aparncias e das realidades. (Lembrou-se de Raynor e sorriu. Raynor era uma
rapaz esperto.) Compreendido isto, muitssimas coisas
se tornavam inteligveis. Por exemplo, porque haveria
o Sr. Field de conceber um esquema daqueles. Claro,
se as pessoas viessem a concordar em criar um milionrio, passaria a existir um milionrio real. E se quisermos saber o que inspirou o Sr. Field a pensar nisto, ora,
ele tinha vista da janela da sua cozinha o plano, os
verdadeiros ossos de um esquema de sucesso - o metro
sobre pilares com os seus cOl'lfetti de sinais azuis e verdes. As pessoas consentiam em dar dinheiro e andar em
carruagens ruidosas, portanto era um sucesso. E, no
entanto, que absurdo parecia; e com to pouca realidade, no comeo. E no entanto Yerkes, o grande financeiro que o construra, tinha percebido que conseguiria
convencer as pessoas a faz-lo. Visto em si mesmo, como
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Sa:ul Bellow
se parecia com um esquema de um esquema, to prximo de uma aparncia. Ento por que ficar admirado
com a ideia do Sr. Field? Ele tinha compreendido um
princpio. E ento Grebe lembrou-se tambm de que
o Sr. Yerkes tinha criado o Observatrio Yerkes e que o
dotara com milhes. E como que no verdadeiro museu que era o seu palcio de Nova Iorque ou no seu iate
rumo ao mar Egeu lhe veio a ideia de dar dinheiro aos
astrnomos? Ter ficado fascinado com o sucesso da sua
bizarra empresa e, portanto, pronto a gastar dinheiro
para descobrir onde que no universo o ser e o parecer
eram idnticos? Sim, queria saber o que duradouro; e
se a carne de que somos feitos a erva de que fala a
Bblia; e ofereceu dinheiro para ser queimado na chama dos sis. Muito bem, ento, continuou Grebe a pensar, estas coisas existem porque as pessoas consentem
em coexistir com elas - chegmos at aqui - e h tambm uma realidade que no depende de nenhum consentimento, mas no seio da qual o consentimento um
jogo. Mas ento e a necessidade, a necessidade que
mantm to vastos milhares em posio? Responde-me
l a isto, meu cavalheirinho privado, minha alma decente - usava estas palavras contra si prprio, sarcstico.
Por que se d consentimento misria? E porqu to
dolorosamente feia? Porque h lima coisa que sombria
e permanentemente feia? Neste momento suspirou e
desistiu, pensando que bastava, no momento presente, ter no bolso um cheque real para um Sr. Green que
devia ser inquestionavelmente real. Se ao menos os vizinhos dele no pensassem que tinham de o esconder.
Desta vez deteve-se no primeiro andar. Acendeu um
fsforo e descobriu uma porta. De imediato, um ho-
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Saul Bellow
A !nocum do S1:
Oreen
Saul Bellow
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via algum em p em cima de um monte de pneus usados no estaleiro de sucata da casa ao lado.
- Mas voc a senhora Green? - ocorreu-lhe agora
perguntar. Mas j ela subia as escadas com o cheque, e
era demasiado tarde, caso tivesse feito asneira, caso se
tivesse metido nalgum sarilho, para desfazer a coisa.
Mas no ia preocupar-se com isso. Embora pudesse no
ser a Sr." Green, estava convencido de que o Sr. Green
estava no andar de cima. Quem quer que fosse, aquela
mulher representava Green, que ele desta vez no veria. Bem, meu idiota chapado, disse para si, com que
ento pensas que o encontraste? E da? Talvez o tenhas
realmente encontrado - e isso que tem? Mas era importante que houvesse um Sr. Green real a quem no
pudessem impedi-lo de chegar, s por parecer vir como
emissrio de aparncias hostis. E embora o sentimento
de ridculo demorasse a desaparecer, e ainda lhe fizesse
arder a cara, havia, apesar disso, tambm um sentimento de jbilo. Porque afinal, disse, ele podia ser encontrado!
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Jean Giono
Jean Giono
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J ean Giono
***
No ano seguinte houve a Guerra de 14, onde estive cinco anos. Um soldado de Infantaria no podia propriamente pensar em rvores. Para dizer a verdade, a
coisa no deixou marcas em mim; considerei aquilo uma
espcie de mania, uma coleco de selos, e esqueci.
Sado da guerra, vi-me senhor de um subsdio de
desmobilizao ridculo, mas com o grande desejo de
respirar um bocado de ar puro. Sem nenhuma ideia
preconcebida, salvo essa mesma, retomei o caminho
daquelas paragens desertas.
A regio no mudara. No entanto, para l da aldeia morta, vislumbrei ao longe uma espcie de nevoeiro
cinzento que recobria o cume como um tapete. Desde
a vspera que voltara a pensar no pastor que plantava
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***
A partir de 1920, nunca estive mais de um ano sem
visitar Elzard Bouffier. Nunca o vi esmorecer ou duvidar. E, no entanto, sabe Deus se no o prprio Deus
que o provoca! No lhe fiz o clculo aos dissabores.
Pode-se imaginar no entanto que, para tal proeza, tenha sido preciso vencer a adversidade; que, para garantir
a vitria de uma tal paixo, tenha sido preciso lutar
contra o desespero. Tinha plantado, durante um ano,
mais de dez mil ceres. Morreram todos. No ano seguinte, abandonou os ceres para retomar as faias que
se deram ainda melhor que os carvalhos.
Para ter uma ideia mais ou menos exacta deste carcter excepcional preciso no esquecer que se manifestava numa solido total; to total que, para o final
da vida, tinha perdido o hbito de falar. Ou talvez no
visse qual a necessidade?
Em 1933, recebeu a visita de um guarda-florestal
muito assarapantado. O funcionrio intimou-o a no
fazer lume fora de casa, pelo risco de pr em perigo o
crescimento daquela floresta natural. Era a primeira vez,
disse-lhe esse homem ingnuo, que se via uma floresta
crescer sozinha. Nessa poca, ia ele plantar as faias a
doze quilmetros de casa. Para evitar o trajecto de ida
e volta, pois j tinha setenta e cinco anos, estava a pensar construir uma casota de pedra no prprio local das
suas plantaes. Foi o que fez no ano seguinte.
Em 1935, uma verdadeira delegao administrativa veio observar a floresta natural. Havia uma alta
personalidade das guas e Florestas, um deputado, tcnicos. Pronunciaram-se muitas palavras inteis. Deci-
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A sua condio era sem esperana. Esperavam a morte: situao que no predispe virtude. Mas tudo
mudara. O prprio ar. Em vez das rajadas secas e brutais, corria uma brisa macia e carregada de perfumes.
Vinha das alturas um rudo como de gua: era o vento
na floresta. Enfim, coisa espantosa, ouvi o verdadeiro
rudo da gua correndo num tanque. Vi que tinham
feito uma fonte, que era abundante e, o que mais me
comoveu, tinham plantado junto dela uma tlia que
tinha j os seus quatro anos, j grossa, smbolo incontestvel de uma ressurreio.
Alm disso, Vergons mostrava os sinais de um trabalho para o qual a esperana era necessria. A esperana voltara, portanto. Limparam as runas, abateram
as lanos das paredes desmoronadas e reconstruram
cinco casas. O lugar contava agora com vinte e oito habitantes, incluindo quatro jovens casais. As casas novas, rebocadas de fresco, eram cercadas de hortas onde
cresciam, misturados, mas bem alinhados, os legumes
e as flores, as couves e as roseiras, os alhos-porros e a
erva-bezerra, o aipo e as anmonas . Agora era um stio
onde se queria viver.
A partir dali, fiz o caminho a p. A guerra de que
acabvamos de sair no permitira o desenvolvimento
pleno da vida, mas Lzaro est fora do sepulcro . Pelas
baixas encostas da montanha, via pequenos campos de
cevada e de centeio verdejantes; ao fundo dos vales estreitos, verdejavam prados. Bastaram os oito anos que
nos separam dessa poca para que a terra resplandesa
de sade e de bem-estar. No lugar das runas que eu
vira em 1913, erguem-se agora quintas bem compostas, bem rebocadas, que denotam uma vida feliz e con-
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Philip K. Dick
A formiga elctrica
Philip Kindred Dick (1928-1982), americano nascido a 16 de Dezembro em Chicago, no estado do Illinois, foi um dos mais importantes
e influentes aurores da fico cientfica do sculo xx, reputao que hoje
extravasa as prprias fronteiras do gnero. Admirado pela intensidade e
originalidade da sua viso, mais do que por qualquer mrito est ilstico,
Dick dedicou a sua carreira literria explorao da natureza da realidade, do livre-arbtrio, dos limites da percepo e do que ser-se humano, num rom consistentemente opressivo e obsessivo, alimentado pelas
alucinaes paranicas que desde cedo o afligiram (e cada vez mais com
o uso de substncias psicotrpicas e um intensificar do ambiente de incerteza gerado pela g uerra-fria). Muiros destes temas fazem-se notar em
Tbe elec/rie (111/, um dos seus conros mais representativos, surgido em Outubro de 1969 no Magazille 01 Fali/riS)' & Scimce Fie/ioll e aqui publicado
pela primeira vez em Portugal. Dos seus romances mais importantes,
sobressaem The Mali iII /he High Castle (1962), The Three S/iglllaftl 01 Pallller
Elc/ri/eh (1965), Ubik (1969), Fio/(} M)' TeaIJ, Tbe Po/itelllall Src/ (1974),
A Sft/lll1er Darkl)' (1977) e VAUS (1980), se ndo este o acrnimo de Vas/
!le/i've Livillg lll/elligmee S)'s/elll, fruro de uma sr ie de revelaes
psicticas quasi-religiosas que marcaram de forma impressionante a fase
final da sua carreira. Dick veio a falecer a 2 de Maro de 198 2 em consequncia de um acidente vascular cerebral, e a escassos meses do recon hec im ento por um pblico mais vasto arravs de Blac/e RI/llller, a
adaptao cinematogrfica de inspirao lIoire do seu romance Do
Allc/roids Drealll 01 Elee/rie Sheep?
Philif) K. Dick
A formiga elctrica
squib.
- No, no; foi um tirante do leme do sqllib que se
partiu no meio do trnsito em hora de ponta e o senhor. ..
- Eu lembro-me - voltou-se na cama quando a
porta da enfermaria se abriu; surgiram ento um mdico de branco e duas enfermeiras de azul, que se aproximaram da cama. - J falamos - disse Poole, e desligou
o fone. Respirou fundo, ansioso.
- No devia estar j a fonar - disse o mdico enquanto lhe consultava a ficha. - Mr. Garson Poole, proprietrio da Tri-Plan Electronics. Fabricante de dardos
identificadores aleatrios que perseguem as suas vtimas num raio circular de mil e quinhentos quilmetros,
reagindo a padres nicos nas ondas enceflicas. um
homem de sucesso, Mr. Poole. Mas, Mr. Poole, voc no
nenhum homem . Voc uma formiga elctrica.
- Meu Deus - disse Poole, aturdido.
- Por isso no o podemos tratar aqui, agora que
descobrimos. Soubemos, claro, assim que examinmos
o ferimento na mo direita; vimos os componentes electrnicos e fizemos logo uma radiografia ao tronco, o
que, claro, corroborou a nossa hiptese.
- O que - perguntou Poole. - uma formiga elctrica? - mas ele sabia; podia decifrar o termo.
Respondeu uma enfermeira:
- Um rob orgnico.
- Estou a ver - disse Poole. Suores glidos afloraram-lhe pele por todo o corpo.
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PhilijJ K. Dich
A fonniga elctTica
***
Na estao de servio, substituram-lhe a mo perdida.
Revelou-se fascinante, a mo; examinou-a longamente antes de deixar os tcnicos instal-la. superfcie, parecia orgnica - na verdade, era-o superfcie.
Pele natural cobria carne natural, e sangue verdadeiro
preenchia as veias e os capilares. Contudo, por baixo
de tudo isto, cintilavam fios e circuitos, componentes
miniaturizados ... observando atentamente o pulso, viu
portas de sobrecarga, motores, vlvulas multinvel, tudo
muito pequeno. Complicado. E mais - a mo custava
quarenta sapos. O ordenado de uma semana, presumindo que o iria deduzir do salrio da companhia.
- Isto tem garantia? - perguntou aos tcnicos enquanto lhe fundiam a seco ssea da mo ao resto
do corpo.
- Noventa dias, peas e mo-de-obra - disse um
dos tcnicos. - A menos que sujeita a estragos inusitados ou intencionais.
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PhilijJ K. Dieh
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A formiga elctrica
Sou uma aberrao , compreendeu. Um objecto inanimado a imitar um animado. Mas, sentia-se vivo.
E, no entanto, ... sentia-se diferente, agora. Em relao a si. E por isso em relao a todos, em especial Danceman e Sarah, toda gente na Tri-Plan.
Acho que me vou matar, disse para si. Mas se
calhar estou programado para no o fazer; seria uma
grande perda que o meu dono teria de absorver. E no
la querer.
Programado. Algures aqui dentro, pensou, h
uma matriz instalada, uma grelha que filtra certas
ideias, certos actos. E que me obriga a outros. No sou
livre. Nunca o fui, mas agora sei; e isso muda tudo.
Escurecendo a janela, acendeu a luz do tecto, comeou a tirar cuidadosamente a roupa, pea a pea. Observara atentamente os tcnicos da estao de servio a
ligarem-lhe a mo nova: tinha agora uma ideia mais ou
menos precisa de como o corpo tinha sido montado .
Dois painis principais, um em cada coxa; os tcnicos
tinham-nos retirado para verificar os circuitos complexos que escondiam . Se fui programado, concluiu,
talvez a matriz se encontre a.
O labirinto de circuitos confundiu-o. Preciso de
ajuda, disse para si. Vamos l ver... qual o cdigo
de fone do computador classe BBB que alugamos no
escritrio?
Pegou no fone e ligou para o computador na sua
localizao permanente em Boise, no Idaho.
- A utilizao deste computador tem um custo base
de cinco sapos por minuto - anunciou uma voz mecnica pelo fone . - Por favor, segure o seu carto de crdito universal diante do ecr.
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PhilijJ K. Dich
Ele obedeceu.
- Ao sinal sonoro, estar ligado ao computador continuou a voz. - Por favor faa o seu pedido o mais
rapidamente possvel, tendo em conta que a resposta
ser dada em termos de um microssegundo, enquanto
a pergunta ... - Poole baixou ento o som. Mas depressa voltou a aument-lo quando a entrada udio vazia
do computador surgiu no ecr. Naquele momento, o
computador tinha-se tornado um ouvido gigante para
o escutar - e escutar cinquenta mil outros utilizadores
espalhados pela Terra.
- Faz-me um exame visual- ordenou ao computador. - E diz-me onde encontrar o mecanismo de programao que controla o meu raciocnio e comportamento.
Ficou espera. No ecr do fone, um enorme olho
activo, multilenticulado, observou-o; e ele exps-se
diante do computador, ali no seu apartamento de uma
assoalhada.
Disse o computador:
- Retire o painel torcico. Faa presso sobre o esterno, e solte-o.
Ele obedeceu. Saiu-lhe uma parte do peito; estonteado, pousou-a no cho.
- Estou a detectar mdulos de controlo - disse o
computador -, mas no sei quaL .. - deteve-se enquanto
o olho vagueou pelo ecr do fone. - Detecto um rolo
de fita perfurada instalado por cima do mecanismo cardaco. Est a v-lo? - Poole esticou o pescoo, espreitou. Tambm o via. - Vou ter de desligar - informou
o computador. - Assim que examinar os dados disponveis, contact-Io-ei para lhe dar a resposta. Bom
dia.
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A formiga elctrica
Philif) K. Dick
A formiga elctrica
PhilijJ K. Dick
A fO,,.'m.iga elct'l'ica
- Ento sabe,
- Sei - respondeu Danceman - que devia chamar-lhe Poole em vez de Mr. Poole. Mas prefiro o ltimo, e assim continuar a ser.
- H quanto tempo sabe? - perguntou Poole.
- Desde que tomou conta da empresa. Disseram-me que os verdadeiros donos da Tri-Plan, instalados
no Sistema de Prxima, queriam a Tri-Plan gerida por
uma formiga elctrica que pudessem controlar. Queriam uma formiga brilhante e enrgica ...
- Os verdadeiros donos? - era a primeira vez que
ouvia falar deles. - Temos dois mil accionistas. Espalhados por todo o lado.
- Marvis Bey e o marido Ernan, de Prx 4, controlam cinquenta e um por cento das aces com direito
de voto. Tem sido assim desde o princpio.
- Por que no sabia eu disto?
- Disseram-me para no lhe contar. Era preciso que
pensasse que a poltica da empresa era toda sua. Com
a minha ajuda. Na verdade, transmitia-lhe o que os
Beys me transmitiam a mim.
- Sou um fantoche - disse Poole.
- De certa forma - Danceman anuiu. - Mas para
mim, ser sempre Mr. Poole .
Parte da parede do fundo desvaneceu-se. E com ela,
vrias pessoas nas mesas prximas.
Atravs da grande montra lateral do bar, o horizonte nova-iorquino apagou-se da existncia.
Perguntou Danceman, ao reparar na sua cara:
- O que foi?
Disse Poole, em voz rouca:
- Olhe em volta. V alguma coisa diferente?
111
PhilijJ K. Dieh
A formiga elctrica
Philip K. Dick
bea de leitura. Rodou ento a tira cortada num ngulo recto em relao ao leitor, firmou-a com um micro-soldador, e voltou a ligar a fita esquerda e direita.
Tinha efectivamente introduzido vinte minutos de tempo morto no decurso da sua realidade. Teria efeito - segundo os seus clculos - poucos minutos depois da
meia-noite.
- Ests a consertar-te? - perguntou Sarah timidamente.
Respondeu Poole:
- Estou a libertar-me - para alm desta, planeava
vrias alteraes. Mas primeiro precisava de comprovar a sua teoria; uma fita em branco, sem furos, no
representava estmulos, e nesse caso a amncia de fita ...
- Essa cara - disse Sarah. Comeou a pegar na bolsa, no casaco, na revista attd-vid enrolada. - Vou-me
embora; bem vejo como te sentes por me encontrares
aqUl.
- Fica - disse ele. - Eu vejo um Capito Kirk contigo - vestiu a camisa. - Lembras-te quando h uns anos
havia - o qu? - vinte ou vinte e dois canais de televiso? Antes de o Governo ter mandado fechar os independentes?
Ela acenou com a cabea.
- Como seria - disse ele - se esta televiso projectasse todos os canais no ecr de raios catdicos ao mesmo tempo? Conseguiramos perceber alguma coisa, da
confuso?
- No me parece.
- Talvez pudssemos aprender a faz-lo. Aprender
a ser selectivos; sermos ns a apreender o que quisssemos e o que no quisssemos. Imagina as possibilida114
A formiga elcl'l'ica
***
Viram o Capito Kirk at ao fim, e depois foram
para a cama. Mas Poole sentou-se encostado s almofadas, a fumar e a cismar. A seu lado, Sarah dava voltas, inquieta, estranhando que ele no apagasse a luz.
Onze e cinquenta. Estava para acontecer a qualquer
instante.
- Sarah - disse ele. - Preciso da tua ajuda. Dentro
de pouqussimos minutos vai acontecer-me qualquer
coisa estranha. No ir demorar muito, mas quero que
me observes com ateno. V se eu ... - gesticulou.
- Mostro alguma diferena. Se pareo adormecer, ou
se digo disparates, ou ... - quis dizer, se desapareo. Mas
no disse. - No te vou fazer mal, mas acho que seria
boa ideia se tivesses uma arma. N o trouxeste a tua
arma antiassaltos?
- Est na mala - estava agora completamente desperta; sentada na cama, olhava-o com um medo frentico, com a luz do quarto iluminando-lhe os amplos
ombros bronzeados e cobertos de sardas.
Ele foi buscar-lhe a arma.
115
PhilijJ K. Dick
A fO'r'l/liga elcl'rica
Para se controlar, pensou: Vou fazer uma enciclopdia; vou tentar fazer uma lista de tudo o que comece
por "a". Vejamos. Ponderou. Anans, automvel,
acksetron, atmosfera, Atlntico, acepipes de tomate,
anncios, fartou-se de pensar, escorregando-lhe as categorias pelo esprito tomado de medo .
De sbito, acenderam-se as luzes .
Estava deitado no sof da sala, e a luz suave do Sol
jorrava da nica janela. Dois homens debruavam-se
sobre ele com as mos cheias de ferramentas. Tcnicos
de manuteno, apercebeu-se ele. Tm estado a mexer em mlm.
- Est consciente - disse um dos tcnicos. Ps-se
de p e afastou-se; Sarah Benton, tremendo de ansiedade, tomou o seu lugar.
- Graas a Deus! - disse ela, a sua respirao hmida junto ao ouvido de Poole. - Tive tanto medo;
acabei por ligar para o Mr. Danceman por volta.
- Que aconteceu? - interrompeu Poole bruscamente. - Comea do princpio e, por amor de Deus, fala
devagar. Para que eu possa assimilar tudo.
Sarah recomps-se, deteve-se para esfregar o nariz,
e lanou-se ento com nervosismo:
- O senhor desmaiou. Ficou cado, como se estivesse
morto. Esperei at s duas e meia e o senhor no se
mexeu. Fonei ao Mr. Danceman, infelizmente acordando-o, e ele chamou a equipa de manuteno de formigas elctricas ... quer dizer, a equipa de manuteno de
robs orgnicos, e estes dois senhores chegaram por
volta das quatro e quarenta e cinco, e tm estado a
mexer em si desde ento. So seis e um quarto da manh. Estou cheia de frio e quero ir para a cama; no sou
117
PhilijJ K. Dick
A formiga elctrica
PhilijJ K Dick
***
Sentado mesa da cozinha, no canto ao fundo da
diviso, Garson Poole bebia caf diante de Sarah. H
muito que os tcnicos se tinham ido.
- No vais fazer mais experincias contigo, pois no?
- perguntou Sarah, ansiosa.
Resmungou Poole:
- Gostava de controlar o tempo. De o inverter.
Vou cortar um segmento de fita, pensou, e reinseri-lo de pernas para o ar. As sequncias causais vo
ento correr no sentido oposto. Recuarei ento pelos
degraus do telhado, at ao apartamento, onde empurrarei a porta fechada, e recuarei at ao lava-loua, de
onde irei retirar uma pilha de pratos sujos . Vou sentar-me a esta mesa, diante da pilha, encher cada prato com
comida gerada no estmago ... e a transferir a comida
para o frigorfico . No dia seguinte, tiro a comida do frigorfico, meto-a em sacos, levo os sacos ao supermercado, e distribuo a comida pela loja. Por fim, ao balco,
pagam-me dinheiro por isto, da caixa registadora.
A comida ser embalada em grandes caixas de plstico,
e levada da cidade para as fbricas hidropnicas no
Atlntico, para a serem repostas nas rvores e arbustos ou nos corpos de animais mortos, ou enfiadas bem
120
A fO'I"'IIliga elctrica.
fundo no cho . Mas o que provaria isso tudo? Um vdeo em marcha-atrs .. . No saberia mais do que sei
agora, que no basta.
o que eu quero, percebeu, a derradeira e absoluta realidade, por um micras segundo que seja. Depois j no importa, porque tudo ser conhecido; no
restar nada para ver ou compreender.
Sou capaz de experimentar outra modificao,
disse para si. Antes de tentar cortar a fita. Vou perfur-la e ver o que aparece a seguir. Vai ser interessante
porque no saberei o que significam os furos criados.
Com a ponta de uma microferramenta, abriu vrios buracos, ao acaso, na fita. To junto ao leitor quanto
conseguiu ... no queria esperar.
- Gostava de saber se tambm as vs - disse para
Sarah. Pelos vistos no, na medida em que lhe foi possvel extrapolar. - Podem aparecer coisas - disse-lhe.
- s para te avisar; no quero que tenhas medo.
- Valha-me Deus - disse Sarah, num tom metlico.
Ele consultou o relgio de pulso . Passou-se um
minuto, e um segundo, um terceiro.
E ento ...
No centro da sala surgiu um bando de patos verdes e negros. Grasnaram, excitados, levantaram do cho
e esvoaaram contra o tec to numa massa fremente de
penas e asas, frenticos com o impulso, o instinto imenso, de fugir.
- Patos - disse Poole, maravilhado. - Fiz um bando de patos bravos com um furo.
Surgia agora algo diferente. Um banco de jardim
com um idoso maltrapilho nele sentado, a ler de um
jornal todo rasgado e dobrado. Levantou os olhos , di121
PhilijJ K. Dick
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A formiga elcl'l'ica
fundo no cho, Mas o que provaria isso tudo? Um vdeo em marcha-atrs", No saberia mais do que sei
agora, que no basta.
"o que eu quero, percebeu, " a derradeira e absoluta realidade, por um microssegundo que seja. Depois j no importa, porque tudo ser conhecido; no
restar nada para ver ou compreender.
"SOU capaz de experimentar outra modificao,
disse para si. "Antes de tentar cortar a fita. Vou perfur-la e ver o que aparece a seguir. Vai ser interessante
porque no saberei o que significam os furos criados.
Com a ponta de uma microferramenta, abriu vrios buracos, ao acaso, na fita. To junto ao leitor quanto
conseguiu ... no queria esperar.
- Gostava de saber se tambm as vs - disse para
Sarah. Pelos vistos no, na medida em que lhe foi possvel extrapolar. - Podem aparecer coisas - disse-lhe.
- s para te avisar ; no quero que tenhas medo.
- Valha-me Deus - disse Sarah, num tom metlico.
Ele consultou o relgio de pulso. Passou-se um
minuto, e um segundo, um terceiro.
E ento .. .
No centro da sala surgiu um bando de patos verdes e negros. Grasnaram, excitados, levantaram do cho
e esvoaaram contra o tecto numa massa fremente de
penas e asas, frenticos com o impulso, o instinto imenso, de fugir.
- Patos - disse Poole, maravilhado. - Fiz um bando de patos bravos com um furo.
Surgia agora algo diferente. Um banco de jardim
com um idoso maltrapilho nele sentado, a ler de um
jornal todo rasgado e dobrado. Levantou os olhos, di121
Philip K. Dick
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A formiga elct'fica
PhilijJ K. Dick
A formiga elcl'rica
parte, e Danceman tambm. Nova Iorque resplandecia na noite, e os sqltibs em redor precipitavam-se por
cus nocturnos, dias, cheias e seca. A manteiga desfez-se-lhe em lquido na lngua e, ao mesmo tempo, assaltaram-no cheiros e sabores hediondos: a presena acre
de venenos, limes e folhas de erva estival. Afogou-se;
caiu; recostou-se nos braos de uma mulher, deitado
numa enorme cama branca que ao mesmo tempo lhe
tinia estridente ao ouvido: o sinal de alarme de um elevador defeituoso num dos velhos hotis arruinados da
baixa. Vivo, vivi, no viverei jamais, disse para si, e
com os pensamentos chegaram-lhe tod as as palavras,
todos os sons; chiaram e fugiram insectos, e ele afundou-se num complexo corpo de maquinaria homeosttica situada algures nos laboratrios da Tri-Plan.
Quis falar com Sarah. Abrindo a boca, tentou produzir palavras - uma sequncia especfica tirada da
enorme massa daquelas que, brilhantes, lhe iluminavam
o pensamento, queimando-o com o seu significado.
A boca ardia-lhe. Estranhou porqu.
***
Paralisada de encontro parede, Sarah Benton abriu
os olhos e viu a espiral de fumo que se elevava da boca
semicerrada de Poole. O robi desfaleceu, caindo lentamente, de joelhos e cotovelos, numa pilha intil. Percebeu, sem o examinar, que ele tinha morrido.
Foi Poole, com as prprias mos , compreendeu.
E no podia sentir dor; assim dissera. Ou, pelo menos, no muita; talvez um pouco. Seja como for, acabou-se.
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Philip K. Dick
A formiga elcl'rica
Talvez se voltar a juntar as pontas da fita , pensou , Mas no sabia como. E o prprio Poole comeava
j a tornar-se indefinido,
O vento da madrugada soprou sua volta, Ela no
o sentiu; tinha comeado, agora, a deixar de sentir.
Os ventos continuaram a soprar.
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Fay Weldon
Fim-de-semana
Fay Weldon
Fim-de-semana
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Fay Weldon
Fay Weldon
plantas, bebidas, televiso porttil e tudo o que a classe mdia requer para os seus fins-de-semana no campo.
A carrinha, em vez de acelerar, arrastava-se pesadamente e irritava Martin. Ele raramente dizia uma palavra
rspida, mas Martha, boa maneira das esposas, conseguia perceber o seu estado de esprito pelo que ele no
dizia, mais do que pelo que ele dizia, e pela inclinao
da cabea, e pela forma como os seus olhos risonhos, com
ps de galinha, pareciam ainda mais enrugados e alegres
- e, claro, pelo modo como ele falava do carro dela.
Vamos l, velha sucata! No ds mais que isto?
Ests mesmo velha, o teu problema esse. Pra de te
queixar. Sempre a queixares-te. s uma subida. Tens
a anca larga. Nunca vais conseguir passar a.
Martha preocupava-se com a idade, a tendncia
para se lamentar e a largura das ancas. Achava que os
comentrios eram para ela. Estaria certa? As crianas
no reparavam em nada: era apenas uma risota alegre
e engraada, o pai a dizer umas graas sobre o carro da
me, multada por andar a conduzir embriagada. A me
com as razes da melancolia algures muito fundo debaixo do seu eu do dia-a-dia agitado e ocupado. Ocupado : ah, to ocupado!
Martin limitava-se a rir se ela dizia alguma coisa
sobre a forma como ele falava da carrinha dela e advertia-a a no ser paranica. No fiques como a tua me,
querida. A m e de Martha, j para o fim, pensava que
as pessoas conspiravam contra ela. Tinha levado uma
vida isolada e cheia de desconfiana, e tornara a infncia de Manha um tempo frio e solitrio . Para Martha,
a vida agora, em comparao, era maravilhosa.
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Fim-de-se1Iwna
Fim-de-se1llana
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Fay Weldon
F/l-de-se'//lana
ao menos sabe-se o que tem dentro. Guarda-o em armrios altos; imenso espao; para cima e para baixo no
escadote. Cuidado! No escorregues. No partas nada.
Os acidentes no existem. So lapsos freudianos:
coisas acintosas e do mau feitio .
Martin no suporta o mau feitio . Martin gosta de
senhoras magras. Dieta. Martin gos ta bastante da secretria. Dieta. Martin admira pernas magras e peito
grande. Como conseguir as duas coisas? Impossvel. Mas
tenta, oh, tenta, ser o que deverias ser, no o que s.
Por dentro e por fora.
Martin traz flores e chocolates; leva Martha de surpresa a passar fins-de-semana fora . Que maravilha!
O melhor marido do mundo: olhem para os seus olhos
sorridentes, alegres e afveis; vejam l. Mas os cantos
da boca descem numa espcie de amuo. No faz mal.
Olhem para os olhos. Amor. Deve ser amor. Casaste
com ele. 11t. E tu mereces o verdadeiro amor, no?
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Fay Weldon
Fim-de-semana
Fay Weldon
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FI/,-de-se1J/ana
tambm. E Janet lavava a banheira e punha as crianas todas sentadas, com cadeiras para todos mesmo para
o mais pequenino, e mantinha-as calmos e contentes,
de modo que os crescidos - bem, os homens - podiam
continuar a sua conversa e as suas piadas e o seu gosto
por fins-de-semana no campo, enquanto Janet olhava
fixamente para o espao, como se estivesse agradecida
pelo descanso, bastante feliz.
Janet tambm fazia jardinagem. Mondava os morangueiros, enquanto os homens iam dar o seu passeio;
os seus ps grandes, firmes e quadrados, pisavam uma
planta ou coisa assim, mas no faz mal, oh, no faz mal.
Adorvel Janet, que compreendia.
Agora Janet desaparecera e havia a Katie.
Katie conversava com os homens e ia passear com
eles e mexia no cinzeiro, muito impaciente, quando
Martha tentava levantar os copos volta dele.
Os pratos eram uma maada, insinuava Katie com
os seus modos, e a vida domstica era uma maada, e
algum que se interessasse por esse tipo de coisas era
idiota. Como Martha. A cinza devia poder ficar onde
estava, mesmo que fosse na manteiga, e as conversas
no deviam ser nunca interrompidas.
Truz, truz. Katie e Colin chegaram uma e um
quarto da madrugada de sbado, logo depois de Martha se ter ido deitar. No se importam? Foi o luar.
No conseguimos resistir. Deviam ter visto Stonehenge!
No vos incomodmos? Mas que gente to madrugadora!
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Fay Weldon
Martha arranjou rapidamente umas omeletas. Foram-se os ovos da noite de sbado. (<<Martha faz uma
omeleta ptima!: Martin. Querida, faz uma das tuas
omeletas de cogumelos. Mas faz os cogumelos parte,
no te esqueas, com limo. Se no a gua dos cogumelos mistura-se com o ovo e estraga tudo. ) Os cogumelos do jantar de domingo. Mas seria indelicado
dizer alguma coisa.
Martin ficou maravilhosamente animado ao ver
Colin e Katie. Foi buscar a garrafa de usque. Copos.
Gelo. Jarro de gua. Esperar. Mais outro lava-loia cheio
para lavar, quando eles acabarem. Duas da manh.
No faas isso esta noite, querida.
um instantinho.
Grande sorriso. Nem uma pontinha de pena de si
prpria. Ter pena de si prpria pode estragar o fim-de-semana a toda a gente. Martha sabe que para o pequeno-almoo para sete ser exequvel o lava-loia tem
de estar livre de pratos. Refeio complicada, o pequeno-almoo. Principalmente se o bacon, os ovos e os
tomates tm de ser todos cozinhados em frigideiras separadas . (<<Frigideiras separadas quer dizer sabores separados! : Martin.)
Ela corre de um lado para o outro em camisa de
noite. Bom, se fosse a Katie - mas h qualquer coisa
de to prtico em Martha. Reparem que at tranquilizante; mas a camisa de noite exgua, o traseiro avantajado e os trinta e oito anos fazem um conjunto um tanto
ou quanto embaraoso. Martha consegue v-lo nos
olhos de Colin e de Katie. Nos de Martin tambm.
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Fn-de-se1Ilana
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Fa)' Weldon
trabalhava que nem um mouro toda a semana na cidade simplesmente para ter uma vista do campo ao fim-de-semana. Ridculo estrag-la, decorando-a com
toalhas hmidas! Mas agora Martha tinha comprado
mais toalhas, assim talvez ficasse toda a gente contente. Levava nove toalhas hmidas aos domingos noite
num saco de plstico e tratava delas em Londres.
Nesta manh de sbado, logo a seguir ao pequeno-almoo, Katie foi l fora ao carro - ela e Colin tinham
um Lamborghini novo; difcil imaginar Katie em qualquer coisa menos interessante - e voltou acenando com
uma toalha Yves St. Laltrent nova. Olhem! Trouxe a
minha prpria toalha, queridos .
No trouxeram mais nada. Nada de fruta, carne,
vegetais, nem mesmo po, e claro, nem uma caixa de
chocolates. Tinham ido para a cama num grande entusiasmo na noite anterior, e o quarto de hspedes arfava e
abanava; bem, quem que queria lavar a loia quando
podia fazer aquilo? Mas ento e as crianas? Ficariam
confusas? Primeiro Colin e Janet, agora Colin e Katie!
Martha murmurou parte destes seus pensamentos
a Martin, que se mostrou bastante escandalizado.
Colin o meu melhor amigo. No espero que traga
nada e Martha sentiu-se mesquinha. E por amor de
Deus, no podes proteger os midos do sexo para sempre. No sejas to pudica. De forma que Martha se
sentiu tambm estpida. Mesquinha, refilo na e estpida.
Janet tinha telefonado a Martha durante a semana. Tinham vendido a casa, sem lhe perguntarem nada,
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Fi1/I.-de-se1/zana
e mudaram-na com as crianas para um pequeno apartamento. A Katie estava a tentar convencer o Colin a
diminuir a sua penso, disse Janet .
No faz bem a ningum ser materialista, confidenciou Katie . Eu no tenho nada. Nem casa, nem
famlia, nem laos, nem bens. Olha para mim! Sou s
eu e uma mala de roupa. Mas Katie parecia muito contente com o seu eu, e as roupas eram fantsticas. Katie
bebia bastante e ficava muito engraada. Toda a gente
se ria, incluindo Martha. Katie tinha sido casada duas
vezes. Martha admirava-se, como que algum podia
chegar aos trinta e tais sem nada de seu, nem marido,
nem crianas, nem patrimnio, e no se importar.
Ateno, que a Martha via bem o poder de tal desamparo. Se Colin era tudo o que Katie tinha no mundo , como podia Colin abandon-la? E a qu? Para onde
iria ela? Como viveria? Ah, a espertalhona da Katie!
A minha chvena de ch est suja, disse Katie, e
Martha apressou-se a limp-la, pedindo desculpa, e
Martin levantou o sobrolho, a Martha, no a Katie.
Gostava que ttSasses perfume, disse Martin a Martha, em tom de censura. Katie usava imenso . Martha,
contudo, parecia nunca ter tempo para o pr. Martin
comprava-lhe frascos e mais frascos . Martha saltava da
cama todas as manhs para acudir a alguma emergncia - um gato que mia, uma criana que tosse , um
despertador que no toca, o carteiro a bater porta quando que Martha podia pr perfume? Isso aborrecia
Martin na mesma. Ela devia fazer mais para o seduzir.
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Fay Weldon
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Fi1/t-de-se'/l1ana
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Fel)' Weldon
por mais leve, era registada por Martin como uma cena.
E fazer uma cena era de uma ingratido!
Isto que era viver! Ou no era? Amigos interessantes em grandes carros e vida no campo e bebidas
antes do almoo e rosas e msica dos pssaros. No
bebas demais, disse Martin, e contou-lhes da apreenso
da carta de conduo de Martha.
As crianas tinham fome, por isso Martha abriu uma
lata de feijo e salsichas e aqueceu tudo. (<<Martha, eles
tm que comer essa porcaria? No podem esperar? :
Martin.)
Katie tinha fome; disse-o para se pr do lado das
crianas. Ela era muito boa com crianas - a maior parte das crianas. No gostava l muito das filhas de
Colin e Janet. Ela assim dizia, e ele aceitava. Ele via-as agora apenas uma vez por ms, no uma vez por
semana.
Deixa-me fazer o almoo , disse Katie a Martha.
Tu fazes tanta coisa, coitadinha!
E tirou do frigorfico tudo o que Martha tinha guardado para o piquenique do almoo do dia seguinte:
queijo Camembert e salada e salame, e fez uma salada de
tomate maravilhosa em dois minutos, e abriu o vinho
branco . No est l muito frio, querida. No devia estar a gelar?, e tinha tudo na mesa em cinco minutos
competentes, admirveis . No precisamos de mais
nada, querida! , disse Martin. Tens uma graa com os
teus sbados defish and chiPs! O que podia ser melhor
do que isto? Ou mais simples?
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Fi'm-de-selllana
Nada, a no ser que o bufete do almoo de domingo para nove pessoas desaparecera, em lugar do peixe
para seis, de sbado, E o peixe esticaria? No. Katie
tinha bebido bastante . Beijocava a testa de Martin .
Marthazinha, to engraada!, disse ela. Faz-me lembrar aJanet. At gosto bastante daJanet . O Colin no
queria que lhe lembrassem Janet, e sublinhou-o. Querido, aJanet um facto da vida, disse Katie. Se pensasses mais nela, talvez conseguisses pagar-lhe menos.
E bocejou e esticou o corpo esguio e sem filhos e sorriu
para Colin com os olhos convidativos e marotos de menina pequena, e Martin olhava para ela com admirao.
Martha levantou-se e deixou-os e agarrou numa lata
de tinta e passou uma demo de tinta branca acetinada na parede da casa de banho. A superfcie branca
agradava-lhe. Era boa a pintar. Conseguiu uma superfcie lisa e plana. As suas pernas latejavam. Tinha medo
de estar a ficar com varizes.
L fora no jardim as crianas jogavam bctdmi12ton.
Estavam de mau-humor, mas aliviadas por poderem
olhar para cima e ver a me a trabalhar, como era costume; sempre a tornar melhores e mais agradveis as suas
vidas; a organizar, planear, prever, a desviar o mal, a
fazer todos os preparativos, como uma me galinha,
esgaravatando e irritando - parte do aborrecido panorama natural do mundo.
N o sbado noite Katie foi cedo para a cama: levantou-se da cadeira e espreguiou-se e bocejou e espreitou para a cozinha onde Martha estava a lavar as
panelas. Colin tinha levantado a mesa e Katie tinha
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Fi1n-de-se1nana
Fay Weldon
Fi1//,-de-se1//ana
amargamente, deitou-lhe fogo com um fsforo, Desvaneceram-se em fumo no ar, Mary e Joanna e Janet,
As cinzas caram no cho (Martha varreu-as quando
Colin e Katie saram), Volta para ela, disse Katie.
Volta para ela. No me importo. Sinceramente, gostava mais de estar sozinha. s uma bela velharia. Vai-te l embora . Vai s tuas coisas, eu vou s minhas.
Quem que se importa? Bolas, Katie, que cena! Ela
est na fotografia apenas por acaso. No est l de propsito para incomodar. E sinto-me mal em relao a ela.
Tem estado a passar um mau bocado. E tu no, Colin?
Ela sabe mesmo acertar onde di, digo-te. No tens direitos tambm? Para no falar de mim. muito, esperar um bocadinho de lealdade?
Antes do almoo estavam reconciliados, l em cima
no quarto. Harry e Beryl Elder chegaram ao meio-dia
e meia. Harry no gostava de andar pressa aos domingos; Beryl estava toda nervosa e a pedir desculpas
pelo atraso. Tinham trazido alcachofras do jardim deles. Que maravilha! , exclamou Martin . Frutos da
terra? Vamos fazer uma sopa maravilhosa! No te aflijas, Martha. Eu fao.
No te aflijas. Era claro que Martha no tinha estado a sorrir o suficiente. Estava em risco, Martin insinuava, de arruinar o fim-de-semana a toda a gente.
Surgiu uma emergncia no jardim logo a seguir - um
ulmeiro que provavelmente tinha apanhado a doena
do ulmeiro holands - e Martha acabou de cozinhar as
alcachofras. A tampa soltou-se do copo misturador e
havia creme de alcachofra por todo o lado. Vamos almoar l fora , disse Colin. menos trabalho para
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Fi1/~-de-se'/l1ana
sol, exclamando: Ah, isto que vida, Fez caf, solicitamente, e a tampa do moinho de caf soltou-se e
espalharam-se gros de caf por toda a cozinha especialmente pela fila de livros de culinria que Martin dava
a Martha todos os Natais. Pelo menos no tinham que
ser levados no regresso todos os fins-de-semana. (<<Os
ladres no tero o bom senso de roubar esses: Martin.)
Beryl adormeceu e Katie observou-a com ar trocista. A boca de Beryl estava aberta e ela tinha imensas
obturaes, e os tornozelos eram grossos e a cintura
estava a desaparecer, e no cuidava de si prpria. Adoro
mulheres, Katie suspirou. Ficam to bonitas a dormir. Quem me dera ser uma me-da-Terra.
Beryl acordou sobressaltada e insistiu com o marIdo para irem para casa, o que ele claramente no queria fazer, e por isso no fez. Beryl achava que tinha de
regressar porque a me ia aparecer mais tarde. Disparate! Depois, Beryl tentou impedir que Harry bebesse
mais vinho feito em casa, e todos se riram dela. Ele ia a
guiar; Beryl no podia, e ele tinha realmente na testa
uma cicatriz feia de um acidente de viao anterior. No
interessa.
Ela mesmo chata para ele, coitadinha, riu-se
Katie, quando eles finalmente se foram embora. Eu
nunca me vou casar. E Colin olhou para ela desejoso
porque queria casar com ela mais que tudo no mundo,
e Martha levantou as chvenas de caf.
Oh, no f aas isso , disse Katie . Senta-te l,
Martha, fazes-nos sentir maL>E Martin lanou-lhe um
olhar tal que Martha se sentou e Jenny chamou por ela
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Fa)' Weldon
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Harold Brodkey
~rona: fala
uma rapariga
Hamld Bmdhey
tia-me justificada na minha sensao de arrebatamento e convico e aventura pela forma como ela agia, a
sua sensao do romantismo de estar numa cidade to
estranha quanto eu a achara quando tinha olhado pela
janela e tinha visto o palcio ou a torre.
Tivemos de mudar de comboio em Verona, uma cidade escurinha e pequenina no sop dos Alpes. Quando l chegmos, tnhamos vindo a fazer compras e mais
compras pela pennsula itlica acima; eu estava tonta
de tantas compras e novas aquisies: mal sabia quem
era, tinha tantas coisas novas: o meu reflexo em qualquer espelho ou montra era resplandecente de fresco e
novo, chegava a ser um disfarce, reluzente, achava eu.
Tinha sete ou oito anos. Quase me parecia que estvamos num filme ou nas pginas de um livro: s as palavras e imagens mais simples e mais cheias de luz podem
sugerir o que eu pensava que ento ramos. Andvamos ali rebrilhando; rebrilhvamos em toda a parte .
Aqttelas roupas . fcil comprar uma criana. Eu tinha
um vestido novo, de malha, azul e vermelho, caro como
o raio, imagino; meias-calas, tambm vermelhas; um
casaco vermelho de loden l com um capuz e um gorro
de malha para usar por baixo do capuz; umas maravilhosas luvas forradas; umas botas forradas de pele e uma
bolsa ou saco de plo, e uma saia de xadrez - e camisas
e um cachecol, e havia ainda mais: um relgio, uma
pulseira: mais e mais.
Nos comboios tnhamos compartimentos privados,
e a Mam trazia jogos na carteira e coisas para comer, e
o Pap cantava-me msicas de Natal, desafinado; e s
vezes eu ficava to concentrada na minha felicidade que
de repente corria o perigo real de fazer chichi pelas per160
Ha1'Old Brodkey
e era um bocado cmico, mas o Pap olhava com admirao: e por isso eu no disse nada.
Pegou-me na mo e contou-me uma histria para
eu no me aborrecer enquanto caminhvamos de sala
em sala no museu/castelo, e depois samos para a neve
l fora, para a luz suave de quando neva, a luz que vem
atravs da neve; e eu estava vestida de vermelho e tinha umas botas, e os meus pais eram novos e bonitos e
tambm tinham botas; e podamos ficar ali fora neve
se quisssemos; e ficmos. Fomos para uma praa, uma
piazza - a Scaligera, acho; no me recordo - e quando
estvamos a chegar, o nevo comeou a regougar e depois abrandou, a cair pesado e depois tnue, e depois
parou: e estava muito frio e havia pombos por toda a
praa, em cada cornija e telhado, e por todo o lado sobre a neve no cho, deixando pequenas pegadas ao andar, enquanto o ar tremia naquele peso e densidade e
inteno determinada e cinzenta de mesmo-depois-de-nevar e mesmo-antes-de-nevar. Nunca tinha visto tantos pombos nem um stio to isolado e assombrado
como aquela piazza, eu no meu casaco novo na borda
mais remota do mundo, a borda de sabe-se l que histria, a borda da beleza estranha e dos jogos do Pap,
o extremo, a aresta branca de uma estao.
Eu estava meio louca de prazer, de qualquer forma,
e ento o Pap trouxe cinco ou seis cones feitos de papel de jornal, embrulhados, torcidos; e neles havia gros
de uma coisa que parecia milho, sementes brancas e
amarelas de alguma coisa; e deitou-me algumas na mo
e disse-me que estendesse a mo; e depois recuou.
Ao princpio no se passou nada, mas eu confiava nele
e esperei; e ento vieram os pombos. De asas pesadas.
163
Harold Brodkey
Desajeitados corpos pombinos. E patas de ave vermelhas, irreais. Voaram at mim, abrandando no ltimo
instante; desceram sobre o meu brao e comeram da
minha mo. Eu tinha vontade de me encolher, mas no
me encolhi. Fechei os olhos e mantive o brao firme; e
senti-os debicar e comer - da minha mo, essas criaturas livres, essas coisas voadoras. Gostei daquele momento. Gostei da minha felicidade. Se estava enganada
quanto vida e aos pombos e minha prpria natureza, naqltela altura no tinha importncia.
Apiazza estava muito silenciosa, com neve; e o Pap
deitava-me gros nas duas mos e depois nas mangas
do casaco e nos ombros do casaco, e eu fiquei extasiada
numa imobilidade ainda maior, com esta ideia dele. Os
pombos agitavam-se pesadamente no ar pesado, havia
cada vez mais e mais, e pousavam-me nos braos e nos
ombros; olhei para a Mam e depois para o meu pai e
para os pssaros pousados em mim.
Oh, fico doente ao falar de tudo isto. A felicidade
existe. Deixa-me sempre um pouco maldisposta. Faz-me perder o equilbrio.
Os pssaros pesados, e os edifcios estranhos, e a
Mam ali ao p, e o Pap tambm: a Mam est satisfeita por eu estar feliz e est um pouco ciumenta; tem
cimes de tudo o que o Pap faz; uma mulher com
uma energia imensa; a vida no suficientemente grande para ela; est ensopada em desperdcio e boniteza.
Ela sabe coisas. No entanto torna-se inflexvel, e tonta, por vezes, e caprichosa; mas algum, e consegue
muitas coisas, e quando est por perto, sentimo-la, no
possvel escapar-lhe, to marcante, ressoa tanto, o
esprito dela to poderoso no espao em volta.
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r~mna:
Hamld Brodhey
da noite quando o comboio chocalhava a subir uma encosta muito ngreme; e l fora, visveis porque o nosso
compartimento estava escuro e o cu limpo e a lua cheia,
havia montanhas, uma paisagem de montanhas por
toda a parte, montanhas grandes, gigantescas, impossveis, muito ngremes e pontiagudas e brancas de neve,
e absurdas, espetando-se para um cu azul-tinta e a enterrar-se em sombras azuis, azuis, milagrosamente profundas. No sei dizer como era: nunca tinha visto nada
assim: eram coisas altas: e ns estvamos l no alto no
comboio e subamos ainda mais, e nada daquilo era verdade, mas era, percebem. Pousei as mos na janela e
fiquei a olhar aquelas maravilhas selvagens, oblquas,
improvveis, brancura e vertigem e luar e as sombras
lanadas pelo luar, que no eram reais, no eram familiares, no eram pombos, mas um mundo limpo.
Ficmos sentadas muito tempo, a Mam e eu, a olhar,
e ento o Pap acordou e olhou tambm. Que bonito, disse, mas no percebeu realmente. S eu e a Mam
que percebamos. Ela disse-lhe:
- Quando era pequena, estava sempre aborrecida,
amor - pensava que nunca me ia acontecer nada - e
agora estas coisas esto a acontecer - e tu aconteceste.
- Acho que ele ficou estupefacto com o amor dela a
meio da noite; sorriu-lhe, oh, to prontamente que eu
tive cimes, mas fiquei calada, e depois de um bocado,
no seu silncio e assombro perante ela, perante ns,
comeou a parecer diferente de ns, da Mam e de mim;
e depois voltou a adormecer; eu e a Mam, no; ficmos sentadas janela e a olhar durante toda a noite,
ficmos a olhar as montanhas e a Lua, o mundo limpo.
Ficmos juntas a olhar.
167
Hamld Bmdkey
168
Samuel Beckett
Traduo de M. S. Loureno
Samuel Bechelt
parece, sobrevoa, ela desaparece, toda branca na brancura, desce, volta a entrar. Vazio, silncio, calor, brancura, espera, a luz baixa, tudo sombrio ao mesmo
tempo, cho, parede, abbada, corpos, digamos vinte
segundos, todos os cinzentos, a luz apaga-se, tudo desaparece. Baixa ao mesmo tempo a temperatura, para
atingir o seu mnimo, digamos zero, no instante em que
se atinge o negro, o que pode parecer estranho. Espera, mais ou menos tempo, luz e calor regressam, tudo
se torna branco e quente ao mesmo tempo, cho, parede, abbada, corpos, digamos vinte segundos, todos
os cinzentos, atingem o seu nvel inicial, donde partira
a queda. Mais ou menos tempo porque podem intervir, a experincia mostra-o, entre o fim da queda e o
princpio da subida pausas de dimenses variadas, indo
duma fraco de segundo at ao que teria parecido,
noutros tempos, noutros lugares, uma eternidade.
Mesma observao para a outra pausa, entre o fim da
subida e o princpio da queda. Dos extremos, enquanto duram, a estabilidade perfeita, o que coluna calor
pode parecer estranho, a princpio. Sucede tambm, a
experincia mostra-o, que queda e subida se interrompem em qualquer nvel e fazem uma pausa, mais ou
menos longa, antes de retomarem ou inverterem a subida agora queda, a queda subida, estas por sua vez para
serem completadas ou para pararem pouco depois e
fazerem uma pausa, mais ou menos longa, antes de
retomarem ou de novo inverterem, e assim sucessivamente, antes de chegar a um ou outro extremo. Com
estes altos e baixos, ressubidas e redescidas a sucederem-se em ritmos sem nmero, no raro que a passagem se faa do branco ao negro e do calor ao frio e
172
vice-versa. S os extremos so estveis como acentuado pela pulsao a ser observada quando uma pausa
ocorre num estado intermedirio, seja qual for o seu
nvel e durao. Ento tudo vibra, cho, parede, abbada, corpos, cinzento branco ou fumo ou entre os dois,
como calhar. Mas raro, a experincia mostra-o, que a
passagem se faa assim. E muitas vezes, quando a luz
comea a baixar e com ela o calor, o movimento prossegue continuo at que, ao fim de uns vinte segundos,
o negro fechado atingido e ao mesmo tempo digamos grau zero. Mesma observao para o movimento
inverso, em direco ao calor e brancura. Segue-se na
ordem das frequncias a queda ou a subida com pausas
mais ou menos longas nestes cinzentos de febre, sem
que em nenhum momento se inverta o movimento.
No impede que uma vez rompido o equilbrio, o de
cima como o de baixo, a passagem ao seguinte seja infinitamente varivel. Mas sejam quais forem as incertezas, o regresso mais cedo ou mais tarde a uma calma
temporria parece assegurado, de momento, no negro
ou a grande brancura, com temperatura aferente, mundo prova ainda da convulso sem trguas . Reencontrado por milagre depois que ausncia nos desertos
perfeitos j no o mesmo, deste ponto de vista, mas
no h outro. Exteriormente nada mudou e o pequeno
edifcio duma referenciao sempre aleatria igual, a sua
brancura fundindo-se na brancura circundante. Mas
entra e a calma mais breve e nunca duas vezes o mesmo tumulto. Luz e calor continuam ligados como se fornecidos por uma nica e mesma fonte da qual nenhum
trao ainda. Ainda no cho, dobrado em trs a cabea
contra a parede em B, o cu contra a parede em A, os
173
Samuel Bechett
NOTAS
Esta traduo e es tas notas foram comeadas em 1968 perto de Estremoz, em casa de uma amiga memria de quem so dedicadas.
I/II(/gill(/o /II0l't(/ ill/(/gill(/ foi traduzido de Ttes MOl'tes pgs. 51-57 Imagination morte imaginez, Ed . Minuit (1967) por autorizao de
quem se publica a presente verso portuguesa.
Samuel Beckett ajudou o tradutor com comentrios que se publicaro a
seguir. Mr. Francis Warner, St. Peter's College, Oxford, esclareceu-me
muitos pontos obscutos da tcnica de Beckett. Prof. Breon Mitchell, Indiana Univers ity, EUA, discutiu comigo diversas passagens e ajudou a
melhorar outras .
A traduo portuguesa (1110 palavras) foi feita do original francs e constantemente comparada com a verso ing lesa de Beckett. A traduo portug uesa pretende estar em equilbrio entre a imitao e a traduo literal.
Beckett ajudou a que o texto portugus se aproximasse mais do g nero
imitao com as sugestes que a seguir se transcrevem.
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Samuel Bechetl
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1.' Parte:
Nenhum trao . . . .. . imagina.
2.' Parte:
IU1as . .. .. tumulto.
3.' Parte:
Reencontrado ...... dormir.
4.' Parte:
Faz .... . . fazem .
1.' Parte:
Enunciao dos temas. A vida e a imaginao. A estrurura desta parte
parece ser a de um dilogo, digamos entre X e Y Na verso inglesa fcil
reconstituir o d ilogo :
X - No trace of life anywhere
Y - path
X - No difficulty there
Y - 1magination not dead yet
X-yes
Y - dead
X-Good
X - 1magination dead imagine.
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Sa:muel Bechett
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Samuel Bechett
M. S. LOlIl'eno
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Samuel Beckett
Ouvido no escuro I e II
The last time y01t went out the snow lay on the groltnd.
Yott now Iying in the dark stand that morning on the sill
having pttlled the door gently to behind you. Yott lean back
against the doo r with bowed head making ready to set out.
By the time yOlt open yom' eyes your feet have disappeared and
the skirts of yOllr greatcoat come to rest on the s1t1face of the
snow. The dark scene seems lit Irom below. Yott see yourself at
that last outset leaning against the door with c/osed eyes
waiting for the word from yOlt to go. You? To be gone. Then
the snowlit scene. Yo/t lie in the dark with c/osed eyes and see
YOltt'Self there as described making ready to strike out and away
across the expanse oflight. Yott hear again the c/ick ofthe door
pulled gently to and the silence before the steps can start. Next
thing yOlt are on your way across the white pasture afrolic with
lambs in spring and strewn with red placentae. YoII take the
course y01l always take which is a beeline for the gap or l'agged
point in the quickset that forms the western fringe. Thither
182
Ouvido no escuro I
Samuel Becketl
fi"om yottr entel'ing the pasttlre yOll need nonna"y fi"om eighteen
htmdred to two thomand paces depending on yotlr httmo1t1 and
the state of the grolmd. Btlt on this last morning many mM'e
wil! be necessary. Many many more. The beeline is so familiar to yotlr feet that if necessary they could keep to it and yOll
sightless with errar on at'rival ofnot more than a feUJ feet north
ar south. And indeed withottt any stlch necessity zmless Iram
within this what they normal!y do and not only here. Foryou
advance if not with c/osed eyes thOllgh this as ofien as not at
least with them fixed on the momentary grotmd before yotlr
fiet. That is al! of nature yOll have seen. Since you fina"y
bowed your head. The fleeting gt'otmd before yottr feet . From
time to time. YoZI do not colmt yottr steps any more. For the
simpIe reason they mmzber each day the same. Average day in
day Otlt the same. The way being always the same. You keep
cOlmt of the days and every tenth night multiply. And add.
Your father's shade is not with yozl anymore. It fel! Otlt long
ago. Yott do not hear yotlr footfa"s any mOI'e. Unhearing
tmseeing yOlt go your way. Day afieI' day. The same way. As
if there were no othel' any more. For yOll there is no other any
more. Yott used never to halt except to make yOll1' reckoning.
So as to plod on Iram nottght anew. This need removed as we
have seen there is nane in theory to halt anymore. Save perhaps
a moment at the olltermost point. To gather yoztrself together
for the retzlrn. And yet yOtl do. As never before. Not for
tiredness. Yott are no more tired now than yOlt always were.
Not becattse of age. Yoll are no older now than yOll always
were. And yet yOll halt as never before. So that the same
htmdred yards yotl ttSed to caveI' in a matter of three to /our
minutes may now take yOZl anything fi'om fifieen to twenty.
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Ouvido no escum I e II
Samuel Beckett
The foot falls Itnbidden in Illidstep 01' next for lifi cleaves to
the groltnd bringing the body to a stand. Then a speechlessness
UJhereof the gist, Can they go on? 01' bette/'; Shall they go on?
The barest gist. Stilled UJhen finally as alUJays hitherto they
do. Yott lie in the dark UJith closed eyes and see the scem. As
YOtt cottld not at the time. The dark cope ofsky. The dazzling
land. You at a standstill in the midst. The qttarterboots sttnk
to the tops. The skirts of the greatcoat resting on the snoUJ. ln
the old bOUJed head in the old block hat speechless Illisgiving.
Halfiuay across the pastttre on yoltr beelim to the gap. The
tmerring feet fasto Yott look behind yotl as yOtl cottld not then
and see their trail. A great sUJel'ue. Withershins. Almost as if
all at once the heart too heavy. ln the end too heavy.
Ouvido no escu?"O I e II
Ouvido no escuro II
Flor da idade adulta. Prova um cheirinho dela. De
costas no escuro recordas. Ah, recordas. Dia de Maio
sem nuvens. Ela vai ter contigo pequena casa de Vero. Toda de troncos. De pinheiro e abeto. Seis ps de
comprido. Oito do cho ao vrtice. rea vinte e quatro
ps quadrados at ltima casa decimal. Duas luzes
pequenas multicolores frente a frente. Vitrais pequenos
em losango. Sob cada um deles um peitoril. Ali nos dias
de Vero depois da refeio do meio-dia gostava o pai
de se retirar com o Ptmch e uma almofadinha. Desabotoada a cintura das calas sentava-se num peitoril e vi187
Samuel Beckelt
would chltckle for no other 1"eason than to hear )1011 tI")' to chuckle
too. Sometimes )lOtt tm'lZ )10m' head and look out throttgh a rosered pane. You press )lour little nose agaimt the pane and ali
withottt is rosy. The )lears have flowlZ and there at the same
place as then )10/1 sit in the Moom of adttlthood bathed in
rainbow light gazing befol"e )lOtl. She is late. YoII dose )lo/Ir
e)les and tlJl to calmlate the volume. Simpie sums )1011 find a
help in times of tiollble. A haven. YoII arrive in the end at
seven c/lbic )lards approximatel)l. Even still in the timeless dark
)1011 find figures a comfort. Yott assume a certain heart rate
and reckon how man)l th1t1J7ps a day. A week. A month. A
)leal: And ass1t1ning a certain lifetime a lifetime. Till the last
th1t1J7p. But for the moment with hardl)l more than se'vent)l
American billion behind )10/1 )1011 sit in the little SllIJZmerhome
uJOI"king Otlt the volume. Seven ctlbic )lards approximately. This
strikes )lati for some reason as improbable and )lOti set abotit
)lottr mm anew. But )lOtt have not got velJI far when her light
step is heard. Light for a woman of her size. Yotl open with
quickening pulse )lotlr e)les and a moment later that seems an
eternit)l herface appears at the window. Mainl)l blue in this
position the natural palio r )lOtt so admire as indeed for it no
doubt wholl)l blm )10m' own. For natlwal pallor is a propert)l
)lOlt have in common. The violet lips do not rettt1'1Z )lotlr smile.
Now this window being flmh with )lotlr e)les Irom where )10/1
sit and the floor as near as no mattel' with the o/lfer gro/md
)lOtt cannot but wonder ii she has not sltl1ken to heI' knees.
Knowing fi'07ll experience that the height 01" length )l01t have
in colnmon is the mm ofequal segments. For when bolt lIPright
01' l)ling at fitll strech )lOtl deave fi'071t to fi'071t then )loltr knees
toltch and )lotl1'pltbes and tbe bas of)lott1 beads mingle. Does
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Samuel Becketl
it follow from this that the loss 01 height for the bod)' that sits
is the same as for it that kneels? At this point asSltming levei
01seat adjmtable as in the case 01certain piano stools )'Ott c/ose
)'ottr e)'es the bette1" with mental measttre to measttre and compare the first and second segments namel)' fi'om sole to kneepad
and thence to pelvic girdle. How given )'Ott were both moving
and at rest to the c/osed e)'es in )'ottr waking hottrs! B)' da)'
and b)' night. To that perfect dark. That shadowless ligbt.
Simpl)' to be gone. Orfo1" a./fair as now. A single leg appears.
Seen fi'om above. Yo/t separate the segments and la)' dJelJZ side
b)' side. lt is as iiYOtt half sttnJZised. The ttpper is the longer
and the sitter's loss the greater when seat at knee leveI. Yo/t
leave the pieces l)'ing there and open )'0111' e)'es to find heI" sitting
belore )'Otl. All dead still. Themb)' lips do not ret/t1'll )'om'
smile. Yoltr gaze moves dowJZ to the breasts. Yolt do not remellZber
them so big. To the abdomen. Same impressionoDissolve to )'o/tr
lather's straining agaimt the 1mbltttoned waistband. Can it
be she is with child withottt )'OM having asked for as lJZ1tch as
her hand? Yolt go back into )'om' mind. She too did )'011 bltt
know it has c/osed heI" e)'es. So )'011 sit lace to fotce in the little
sftmmerhollse. With e)'es c/osed and hands on knees. ln the
Moom 01 )'oft1' adltlthood. l n that I'ainbow light. That dead
still.
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Ouvido no escuro I e II
I
I
I Susan Sonrag
I Goerges
I J ane Bowles I E.
I Alben Camus I
I Pau l
PVP: 12,00