Povos Tribais Da Convenção 169 OIT - Marés
Povos Tribais Da Convenção 169 OIT - Marés
Povos Tribais Da Convenção 169 OIT - Marés
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1. PRELIMINARES
A legislação brasileira sobre povos e comunidades tradicionais, à exceção
de povos indígenas e quilombolas, é intencionalmente imprecisa e deixa parecer que os
direitos se resumem a pequenas concessões de benefícios discricionários dos Poder
Público como a criação de reservas extrativistas ou de desenvolvimento sustentável e, o
*
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1998). Integra o Programa de Mestrado e
Doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, onde é professor titular de Direito Agrário e
Socioambiental. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da
Universidade Federal de Goiás. Contato: [email protected].
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
coloniais haveria de ser feita pela inclusão, assimilação, integração das pessoas,
indivíduos integrantes das comunidades, ao mercado de trabalho, como trabalhadores
livres, liberando, por outro lado as terras para a exploração capitalista.
Por isto mesmo esta preocupação não era somente voltada à América Latina
e aos povos camponeses que mantinham sua autossubsistência com forte tradição
étnica, mas também para as colônias africanas mantidas pelos países europeus e cuja
organização do trabalho era precária e muito próxima à escravidão (NASH, 1976). O
conjunto de medidas adotadas pela OIT na primeira metade do século XX não resultou
grandes mudanças no espectro colonial, nem nas colônias africanas e asiáticas, nem na
colonialidade latino-americana onde os Estados Nacionais independentes continuaram a
manter forte colonização aos povos originários e outros formados no processo de
exploração escravagista ou mesmo de trabalhadores mais ou menos livres e que tinham
a possibilidade de buscar terras, ainda que não proprietárias, para prover seu sustento.
Foi assim que, finalmente, em 1957 a OIT adotou a Convenção nº 107,
sobre a “Proteção e Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e
Semitribais de Países Independentes”, que foi promulgada no Brasil em 1966 pelo
Decreto nº 58.824, de 14 de julho, distinguindo dois grupos, os indígenas, ou
originários, e os tribais e semitribais, que se constituíram no processo colonizador6. No
Brasil, alguns anos depois foi sancionada a Lei nº 6.001, em 19 de dezembro de 1973,
conhecida como Estatuto do Índio, com preocupações parecidas, mas voltada
exclusivamente aos povos chamados de indígenas7. A partir deste ponto a palavra
‘indígena’ firmou-se na América Latina para designar somente os povos e comunidades
que tivessem uma ascendência aos habitantes do continente anteriores a chegada da
colonização, tendo como marca o ano de 1492.
OIT, ONU, OEA, UNESCO, etc. Na OIT pela revogação da Convenção 107. Na ONU e
na OEA pela formalização de Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas,
principalmente, na UNESCO, pelo reconhecimento do patrimônio cultural indígena.
aos direitos coletivos dos povos, do meio ambiente, da proteção do patrimônio cultural e
dos conhecimentos tradicionais. Os termos e as normas constitucionais passaram a ser
objeto de conversas nas rodas populares e nas aldeias, o rígido sistema de exclusividade
dos direitos individuais dava lugar ao reconhecimento de direitos coletivos e até mesmo
do entendimento de Estados Plurinacionais e Multiétnicos, como no Equador (2007) e
Bolívia (2009).
Estes avanços sofreram reações dos setores conservadores muitas vezes 163
direitos coletivos, está claro que foi uma transformação radical. A OIT teve que se
debruçar sobre o que isto significaria, deixando de tratar das relações de trabalho
integradoras e se preocupando com os direitos coletivos dos povos, inclusive o de não
se submeter a regras empregatícias e de manter a vida segundo os chamados usos,
costumes e tradições em um território que lhes propicie esta condição.
Apesar das reivindicações terem partido de movimentações indígenas, a
OIT manteve o conceito ampliado para além daqueles de ancestralidade anterior a
166 conquista, como, de resto sempre tratou desde seus inícios com o conceito de
“trabalhadores indígenas”, separando, agora, como já fizera em 1957, as categorias
“indígena” e “tribais”, sem nenhuma diferenciação de direitos. Tanto os indígenas como
os tribais têm os mesmos direitos e a ambos se aplica o conjunto da Convenção. A
diferença entre um e outro é somente o período da etnogênese, se anterior ou posterior a
conquista.
As leis brasileiras evitaram o termo ‘povos’ utilizado pela Convenção 169 e
trataram todos como populações, comunidades, grupos, etc, acrescentados de
tradicionais, ou não. Durante as discussões para a aprovação da Convenção no Senado
brasileiro houve a tentativa de retirar os termos ‘povo’ e ‘território’ pelo temor de
afrontar a soberania nacional, mas a emenda não foi aceita11 (ISA, 2017). O Brasil
demorou onze anos para aprovar a Convenção, em boa parte sob o argumento destes
dois termos e mais ainda pelo fato da Convenção reconhecer a ‘propriedade’ coletiva
das terras indígenas e tribais, o que se alegava ser contraditória com a natureza pública
federal das terras indígenas estabelecida na Constituição brasileira. O debate foi muito
intenso com a participação ativa de técnicos da OIT que demonstravam ser estes
conceito relativos às legislações nacionais pertinentes e em especial a palavra ‘povo’
havia sido esclarecida no corpo da Convenção que não tinha o mesmo significado que
adquiria no Direito Internacional, como povos com direitos à autodeterminação de se
constituir em Estados. Sendo assim, os termos ‘povos’, ‘território’ e ‘propriedade’,
devem ser entendidos nos limites da Constituição brasileira e interpretada não pela ótica
do direito internacional e direito civil, mas como categorias de direito público brasileiro,
coletivo.
O termo povos tribais utilizado na Convenção 169, diferenciando de povos
indígenas deve ser entendido no mesmo sentido que populações, grupos ou
comunidades tradicionais não indígenas usadas pelas leis brasileiras. Por isso não cabe
nenhuma dúvida que a Convenção 169 da OIT, publicada pelo Decreto nº 5.051, de 19
conceito, com o nomen yuris, mas com sua própria existência. Pode ser que um povo
indígena não saiba que a sociedade envolvente ou hegemônica o chame de indígena,
mas nem por isso deixa de ser indígena no conceito da Lei. Igual argumento vale para
todos os povos, foi a Lei quem lhes deu um nome genérico que eles somente saberão
quanto e se tiverem acesso à Lei, que, de resto, é obrigação do poder público fazer
conhecer.
Todas as Leis brasileiras que se referem a povos tradicionais adotam a 171
Estes dois direitos, de ser e de estar são, portanto, estruturados sobre os dois
pressupostos, a autoidentificação e a consulta previa.
7. QUEM SE AUTO-IDENTIFICA?
Como descrito acima, a única forma possível de reconhecer um povo
tradicional é a consciência que ele mesmo tem de si mesmo, isto é, de ser um grupo
diferenciado da sociedade nacional e dos outros grupos existentes. Entretanto, esta
172 consciência não é do nome pelo qual as leis e tratados os chamam. As palavras
“indígena” “quilombola” “povos tradicionais” “tribais” são criações ocidentais,
modernas, hegemônicas, atribuídas a grupos de comunidades e povos que podem não
saber como são chamados pelos outros. É o caso exemplar dos indígenas que se
identificam como povo, mas são chamados pelos outros por nomes nem sempre
condizentes com sua identificação. Durante muitos anos o povo Panará foi chamado de
Krenacore ou Kreen-Akrore, mas este nome era como seus inimigos os chamavam,
depreciativamente por isso se rebelaram contra o nome que lhes foi dado (ISA, 2018).
A autoidentificação ou autoconsciência ou auto-atribuição, etc. tem que ser
entendida como a consciência de ser um grupo diferenciado, de ver a sociedade
hegemônica e os outros grupos como diferentes, como outros. David Kopenawa, o
grande pensador Yanomami, sempre se refere aos outros, aos brancos, quando fala de
coisas fora do mundo Yanomami, é evidente a consciência de si, como povo, como
grupo diferenciado (KOPENAWA; ALBERT, 2015). Isto é muito fácil verificar em
relação aos povos indígenas, mas mesmo se for formulada a pergunta “você se auto
identifica como indígena?” talvez a resposta seja negativa, embora haja a absoluta
consciência de que pertence a um grupo diferente, talvez até não haja a consciência de
que sua ancestralidade seja anterior à colonização, porque responderá que sempre esteve
ali, simplesmente, pode nem saber quando começou a colonização.
Isso se dá também com os outros povos, os não indígenas. A sua
consciência é de que é um grupo humano diferente e que tem que se auto proteger
contra os outros, quem quer que seja estes outros, brancos, hegemônicos, Estado,
proprietários, outros povos tradicionais, etc. Também é relativamente fácil reconhecer
os quilombolas, mas antes de que a sociedade hegemônica os reconheça, eles mesmo
tem consciência de que são grupos diferentes, embora possam não ter conhecimento da
palavra quilombola, que lhes foi atribuída como categoria genérica. Então se pode dizer,
nestes dois casos que não é a consciência de ser indígena ou quilombola que os
Convenção em relação à consulta tem duas pontas claramente visíveis, por um lado a
proteção dos direitos dos povos e de suas opções de desenvolvimento e autonomia, quer
dizer é o povo que tem que dizer se pretende aceitar alterações em suas condições de
vida ou não. Por outro lado, se a consulta é marcada em todas as suas fases pela boa-fé
as propostas têm que ser sempre muito bem informadas e os povos têm que ter o tempo
necessário para entendê-las corretamente.
As vezes os Estados Nacionais e os empreendedores não entendem o artigo
176 6º da Convenção e imaginam que a consulta pode se dar com um chefe tribal ou com o
órgão estatal de responsável pela proteção dos direitos ou ainda com uma exposição das
maravilhas tecnológicas da modernidade. Não se trata disso. Se trata de uma consulta
profunda sobre alterações que ocorrerão na vida dos povos. Os povos entenderam este
dispositivo melhor do que os Estados. Por isso não aceitaram que os Estados Nacionais
formulassem os termos desta consulta em leis ou decretos gerais, mas passaram a
defender a ideia de que cada povo deveria descrever como gostaria de ser consultado,
em que tempo, em que circunstância e amplitude. Passaram então, cada povo, elaborar o
passaram a chamar protocolos de consulta (CEPEDIS, 2018)14.
Esta decisão de formular os próprios protocolos de consulta como leis
internas a cada povo, cogentes para os Estados Nacionais que desejem consultá-los
cumprindo a obrigação da Convenção toma corpo em toda América Latina, tem
repercussões profundas nas relações dos povos com os Estados Nacionais. É uma
inovadora forma de relacionamento entre povos e Estado. Somada às constituições
latino-americanas, esta inciativa dos povos promovem uma revisão tanto na chamada
Teoria do Direito, como na Teoria do Estado na América Latina.
9. CONCLUSÃO
Os povos indígenas e tribais são povos e comunidades tradicionais,
conforme consta de leis brasileiras, que também podem se chamar de sociedades
tradicionais, e que são sociedades com condições sociais, culturais e econômicas que os
diferenciam e distinguem da sociedade nacional hegemônica, e que se regem, total ou
parcialmente, por seus próprios costumes, tradições, hierarquias e economia interna,
mantendo leis de convivência. São reconhecidos por sua autoconsciência de grupo.
Estes povos, embora divididos em indígenas e tribais pela Convenção 169,
não têm diferenças de direitos, porque todos têm direitos a existir e a viver em um
território determinado onde possam reproduzir-se cultural e economicamente. As
diferenças que a Lei brasileira estabelece para os indígenas e os quilombolas e que estão
expressas na Constituição federal não minoram os direitos estabelecidos pela
Convenção a todos os outros, muito especialmente a autoidentificação e a consulta
prévia.
Assim, a questão não é ter um nomen yuris geral, mas ser um grupo ou
comunidade com as características acima definidas, reivindicando os direitos de existir e
estar num lugar determinado, ainda quando não saibam que uma lei internacional e 177
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombolas, Quebradeiras de Coco Babaçu,
Indígenas, Ciganos, Faxinalenses e Ribeirinhos: movimentos sociais e a nova tradição.
Proposta (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 29, n.107/108, p. 25-38, 2006.
MARÉS. Carlos. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá.
1998.
MOONEN, Frans. Rom, Cinti e Calon: Os assim chamados ciganos. Recife: Núcleo de
Estudos Ciganos. 2000.
SILVA, Liana Amim Lima da. Consulta prévia como afirmação do direito à livre
determinação dos povos tradicionais. Tese de doutoramento disponível na Biblioteca
de Teses da PUCPR. Curitiba: PPGD/PUCPR. 2017.
TARREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco et alii (org). Estados e Povos na América
Latina Plural. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2016.
TÁRREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco, OLIVEIRA, Daniel Gonçalves de. Terra
versus território: pensar conflitos sobre territorialidades quilombolas a partir da
realidade Kalunga. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Goiás. Vol. 41, N. 2 (2017).
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1
Todas estas convenções e recomendações, a exceção da Convenção 29 que continua em vigor,
foram derrogadas por sessões recentes, as recomendações em 2002 e 2004 e as Convenções em
2018. Todas as Convenções e Recomendações citadas neste texto têm como fonte as páginas web da
OIT da ILO, em sua versão em inglês.
2
O termo colonialidade é utilizado no sentido que usa Aníbal Quijano (Quijano, 2005).
3
O Brasil aderiu a este tratado em 1943.
4
Aqueles que não são assalariados nem estão em busca de emprego. Vivem comunitariamente.
5
As terras dos povos tradicionais não rendem mercadorias reprodutoras de capitais, nem ela mesma
pode ser transformada em mercadoria, por estarem fora do mercado de terras, por isso são estranhas
ao sistema e consideradas nefastas.
6
A versão em língua portuguesa desta Convenção tem uma história interessante. Em 1960 houve a
sua aprovação em Portugal pelo Decreto- Lei nº 43.281, publicado no Diário Oficial português em
29 de outubro de 1960, em sua versão francesa e uma tradução, que foi a versão adotada pela OIT
para a língua portuguesa. No Brasil a Convenção foi ratifica em 1966, com uma tradução que não é a
oficial da OIT, trata-se de uma tradução feita no Brasil para valer como Lei interna. As diferenças de 179
traduções não são substanciais, mas guardam um relativo interessa linguístico. A versão portuguesa
utiliza a palavra aborígene, a brasileira indígena, a francesa aborigènes, a inglesa indigenous, a
alemã eingeborene, mas, apesar das diferenças todos os termos podem ser considerados sinônimos
de nativo. Mas isto marca uma mudança de terminologia, porque todos estes termos se referem a
pessoas e grupos que descendem de populações que habitavam o país antes da colonização, portanto
originários, e não aqueles povos que se constituíram no processo colonizador, que passaram a ser
chamados de tribais ou semi-tribais.
7
Na Lei Brasileira a palavra índio que nada tem a ver com indígena, passou a designar o indivíduo,
enquanto a coletividade continuou a ser chamada de indígena. Na Lei 6001/73 a palavra índio é
apresentada como sinônimo de silvícola e o termo comunidade indígena como grupo tribal.
8
Ambos casos as constituições foram escritas com forte influência dos camponeses e indígenas que
estiveram em armas durante o processo revolucionário, mas ainda não havia uma unidade indígena
reivindicativa continental.
9
O primeiro, e até o momento único, país africano a ratificar a Convenção foi a pequena República
Centro-Africana, que o fez em 2010.
10
A palavra índio se refere ao erro de Cristóvão Colombo ao imaginar que havia chegado às Índias
pelo Ocidente, por isso Índias Ocidentais, e silvícola para amenizar, quem sabe, o termo selvagem.
11
A ratificação da Convenção não permite aprovação parcial ou com censura, portanto a proposta na
realidade era para não ser aprovada a Convenção
12
RE 349703/ RS - Rio Grande do Sul. Relator p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES. Julgamento:
03/12/2008.
13
São eles, sendo o último um conjunto de todos: I - povos indígenas; II - comunidades quilombolas;
III - povos e comunidades de terreiro/povos e comunidades de matriz africana; IV - povos ciganos;
V - pescadores artesanais; VI – extrativistas; VII - extrativistas costeiros e marinhos; VIII – caiçaras;
IX – faxinalenses; X – benzedeiros; XI – ilhéus; XII – raizeiros; XIII – geraizeiros; XIV –
caatingueiros; XV – vazanteiros; XVI – veredeiros; XVII - apanhadores de flores sempre vivas;
XVIII – pantaneiros; XIX – morroquianos; XX - povo pomerano; XXI - catadores de mangaba;
XXII - quebradeiras de coco babaçu; XXIII - retireiros do Araguaia; XXIV - comunidades de fundos
e fechos de pasto; XXV – ribeirinhos; XXVI – cipozeiros; XXVII – andirobeiros; XXVIII -
caboclos; e XXIX - juventude de povos e comunidades tradicionais.
14
Os protocolos de consulta e sua repercussão no Direito Estatal é objeto de uma pesquisa em curso
pelo Grupo de Pesquisa Meio Ambiente: Sociedades tradicionais e sociedade hegemônica, ligado ao
Programa de Pós Graduação em Direito da PUCPR.