A Cozinha No Candomble
A Cozinha No Candomble
A Cozinha No Candomble
INTRODUO
BASTIDE, Roger. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 231.
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A Cozinha no Candombl Espao Sagrado
Para a atual cincia da nutrio, a coco dos alimentos facilita a posterior etapa
de digesto e assimilao dos nutrientes, que esto presentes nos alimentos. Etapas essas
que acontecem no organismo humano atravs dos rgos do aparelho digestivo. A coco
dos alimentos facilita a mastigao, desativa fatores anti-nutricionais e algumas toxinas
presentes nos alimentos. A cozinha vista como um laboratrio permite a transformao dos
alimentos, dando-lhes outra qualidade nutricional. O fogo como agente transformador ocupa
lugar de destaque na culinria diettica bem como o processo de cozinhar os alimentos se
entrelaa com as transformaes da cultura na sociedade. Nesse contexto, relatamos o mito
yorub sobre o Orix Xang, um Orix ligado ao fogo, e o seu ensinamento aos seres
humanos sobre cozinhar os alimentos;
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Em pocas remotas, havia um homem
a quem Olorum e Exu ensinaram todos os segredos do mundo,
para que pudesse fazer o bem e o mal, como bem entendesse.
Os deuses que governavam o mundo, Obatal, Xang e If,
determinaram que, por ter se tornado feiticeiro to poderoso,
o homem deveria oferecer uma grande festa para os deuses,
mas eles estavam fartos de comer comida crua e fria.
Queriam coisa diferente:
comida quente, comida cozida.
Mas naquele tempo nenhum homem sabia fazer fogo
e muito menos cozinhar.
Reconhecendo a prpria incapacidade de satisfazer os deuses,
o homem foi at a encruzilhada e pediu ajuda a Exu.
Esperou trs dias e trs noites sem nenhum sinal,
at que ouviu uns estalos na mata.
Eram as rvores que pareciam estar rindo dele,
esfregando seus galhos umas contra as outras.
Ele no gostou nada dessa brincadeira e invocou Xang,
que o ajudou lanando uma chuva de raios sobre as rvores.
Alguns raios incendiados foram decepados e lanados no cho, onde
queimaram at restarem s as brasas.
O homem apanhou algumas brasas
e as cobriu com gravetos
e abafou tudo, colocando terra por cima.
Algum tempo depois, ao descobrir o montinho,
o homem viu pequenas lascas pretas. Era o carvo.
O homem disps os pedaos de carvo entre pedras e os acendeu com a
brasa que restara.
Depois soprou at ver flamejar o fogo.
E no fogo, cozinhou os alimentos.
Assim, inspirado e protegido por Xang,
o homem inventou o fogo
e pode satisfazer as ordens dos trs grandes orixs.
Os orixs comeram comidas cozidas e gostaram muito.
E permitiram ao homem comer delas tambm. 4
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 257-258.
BASTIDE, Roger. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.
332.
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demanda atividades que podem durar at vrios dias para sua preparao completa. Aes
que vo desde a compra e seleo dos alimentos e ingredientes necessrios at o momento
da festa pblica onde ela partilhada com todos 6 . Nesse sentido, a cozinha o local onde
essas aes da culinria ritual acontecem. A cozinha do Terreiro se torna um lugar sagrado,
onde a comida para os Orixs preparada e onde o Ax circula junto a cheiros, temperos e
sabores. Nas palavras de Santana Rodrigu, a cozinha, na frica conhecida como a casa
do fogo. Para a autora, o ato de cozinhar nos Terreiros simboliza tambm acender o fogo do
princpio, da origem do mundo e referenciar a ancestralidade. A cozinha dos Terreiros se
torna o altar onde o fogo aceso possibilita a transformao dos ingredientes que so
destinados aos Orixs e aos participantes da comunidade. Durante o preparo das refeies,
o Ax se espalha pelo local. Ainda em sua compreenso, a cozinha o local privilegiado
para o aprendizado dos segredos e dos ritos da tradio. um local onde se aprende a
abenoar a vida e os alimentos, um laboratrio sacralizado onde aes rituais buscam a
harmonia com os Orixs possibilitando sade e vida longa aos seres humanos 7 .
Ibidem, p. 332.
RODRIGU, Maria das Graas de Santana. Or pr : o ritual das guas de Oxal. So Paulo:
Summus, 2001. p. 91-95.
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Iniciadas, filha-de-santo. BASTIDE, Roger. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 310.
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RODRIGU, Maria das Graas de Santana. Or pr : o ritual das guas de Oxal. So Paulo:
Summus, 2001. p. 92.
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salienta que a cozinha africana, dentro dos Terreiros, vai se imbricar com os cardpios dos
Orixs. Para ele, a cozinha dos Terreiros foi se tornando a grande
transmissora do
Seja fazendo o uso de ingredientes nacionais ou de outros vindos do almmar, conservando, recriando ou inventando alguns pratos, a africanidade
sugerida pelos pratos que compem a cozinha-de-santo no se explica
pelos ingredientes que entram na sua composio, mas pelas tcnicas,
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SOUSA JNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia
e dos povo do azeite. Prticas Teraputicas, etnobotnica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos;
BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradio afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, antisincretismo, reafricanizao, prticas teraputicas, etnobotnica e comida. Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999. p. 327-328.
11
LODY, Raul. Santo tambm come. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1998. p. 41.
12
Ibidem, p. 38-42.
13
SOUSA JNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia
e dos povo do azeite. Prticas Teraputicas, etnobotnica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos;
BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradio afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, antisincretismo, reafricanizao, prticas teraputicas, etnobotnica e comida. Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999. p. 342-343.
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maneiras, pelo tratamento recebido por eles. A cozinha um lugar de
ritual. 14
14
15
Ibidem, p. 339.
LVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitolgicos. So Paulo: Brasiliense, 1991. p. 257.
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de uma condio de estado biolgico para uma dimenso social, "de fato, o cru e o cozido, o
alimento e a comida, o doce e o salgado, ajudam a classificar coisas, pessoas e at mesmo
aes morais importantes no nosso mundo" 16 . Ainda em seu entender, h uma relao entre
a mulher e a comida no imaginrio brasileiro, bem como ambas, mulher e comida, tambm
esto interligadas com a sexualidade, "comer" tambm se refere ao ato sexual 17 . O autor
ainda acrescenta que as refeies e a sexualidade so percebidas como essncia social e
junto com a comensalidade andam de mos dadas 18 .
16
DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 51.
Ibidem, p. 60.
18
Ibidem, p. 62.
19
Ibidem, p. 62.
20
Antroploga americana, que desenvolveu seu trabalho de campo no Brasil, na Bahia e no Rio de
Janeiro em 1938 e 1939, tendo como guia e colaborador dison Carneiro.
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LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 349-350.
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terei foras para continuar e se tenho o direito de sobrecarregar as minhas
filhas com ela. 22
22
Ibidem, p. 127.
Ibidem, p. 200.
24
Ibidem, p. 201.
25
SODR, Jaime. Ialorix: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.).
Faraimar: o caador traz alegria: Me Stella, 60 anos de iniciao. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.
258-259.
26
AMARAL, Rita de Cssia. Awon Xir! A festa de candombl como elemento estruturante da
religio. In: MOURA, Carlos Eugnio Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fogo: escrito sobre
a religio dos orixs VI. So Paulo: Ateli Editora, 1998. p. 103.
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Seguindo com essa abordagem, recorremos mais uma vez ao estudo de Da
Matta sobre a questo da identidade brasileira no qual ele afirma haver em nossa sociedade
uma oposio casa/rua. Onde a rua representa o lugar do trabalho, da luta pela
sobrevivncia. A rua representa a realidade dura da vida. Na contramo, a casa representa:
a famlia, os laos consangneos, os valores morais, as tradies mais cultuadas. A casa
em sua compreenso vai alm de um espao fsico, se torna um espao moral. 27
Podemos perceber que a casa se torna o lugar tradicionalmente reservado
mulher. Mesmo nos tempos atuais, em que a mo de obra feminina significativa como
fora de trabalho produtivo, ocupando o espao "rua", o "espao casa" ainda percebido
como de responsabilidade da mulher. Nesse sentido, a mulher que trabalha fora de casa
tem dupla jornada de trabalho, em sua grande maioria. E se alm dessa dupla obrigao a
mulher fizer o santo, suas obrigaes para com o Terreiro lhe daro uma tripla jornada.
DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 23-29.
SODR, Jaime. Ialorix: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.).
Faraimar: o caador traz alegria: Me Stella, 60 anos de iniciao. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.
259.
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Ibidem, p. 249-250.
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podem durar vrios dias e se iniciam com a aquisio dos gneros alimentcios e
ingredientes necessrios para a execuo dos pratos especficos para cada Orix.
Aps a aquisio do material necessrio, seguem-se as operaes de limpeza,
de higienizao dos ingredientes, seguidas das aes de picar, amassar, misturar, moer,
triturar, deixar de molho e principalmente cozinhar. O fogo transforma os ingredientes em
pratos votivos atravs do trabalho litrgico realizado pelas iabasss. Todas essas atividades
so realizadas dentro dos ditames ritualsticos que abrange gestos e comportamentos que
so aprendidos durante o processo de iniciao. Conhecer as receitas, os preceitos
necessrios para o preparo da comida de santo, parte intrnseca do aprendizado ritual do
filho e filha de santo. A cozinha ritual, com seus odores e sabores, recria o cotidiano
alimentar dos filhos de santos e de seus Orixs. As atividades exercidas na casa do fogo
sacralizam o ato de comer e a comensalidade no sistema religioso do Candombl.