A Cozinha No Candomble

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1

A COZINHA NO CANDOMBL ESPAO SAGRADO

ARLETE RODRIGUES VIEIRA DE PAULA UNIVERSIDADE PRESIDENTE ANTNIO CARLOS

INTRODUO

No sistema religioso do Candombl, a comida de santo e todas as aes para seu


preparo e consumo ocupam um lugar de destaque, sendo o centro das oferendas aos
Orixs. Os Orixs precisam ser alimentados. preciso ofertar algo aos habitantes do Orum.
necessrio que o ritual de troca acontea para que o Ax possa ser retribudo e distribudo
para todos. Bastide afirma que o santo que j no cavalga um santo que est
desaparecendo: diz-se que voltou para a frica 1 . As comidas que compem as oferendas
fortalecem a comunicao entre os fiis e seus respectivos Orixs.
Toda a comida que preparada para os Orixs segue preceitos ritualsticos e votivos
de acordo com a tradio do Candombl. Toda essa atividade culinria acontece na cozinha
dos Terreiros, espao considerado sagrado dentro do sistema religioso dos Orixs. Nesse
contexto podemos pensar na cozinha do Candombl como um laboratrio sagrado, onde o
fogo, atravs das aes rituais, permite a criao de um cdigo alimentar que comunica algo
entre os seres humanos e os Orixs num mosaico que entrelaa as foras da natureza, a
herana ancestral e as necessidades humanas da comunidade religiosa do Candombl.
Nesse espao sagrado de alimentao e renovao se evidencia o papel da mulher como
nutridora e mantenedora da famlia de santo.

BASTIDE, Roger. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 231.

2
A Cozinha no Candombl Espao Sagrado

Em seu livro, O Cru e o Cozido, Lvi-Strauss evidencia que a utilizao do fogo


para cozinhar os alimentos um marco do incio da civilizao. Em sua compreenso, o par
de opostos cru e cozido, enquanto condies naturais dos alimentos, traz para alm disso
uma relao entre natureza e cultura. medida que o ser humano comeou a cozinhar os
alimentos, ele se distinguiu do mundo natural, numa aluso ao processo de construo da
cultura pelo ser humano. Estudando os mitos indgenas na Amrica, ele relata que a coco
dos alimentos percebida como uma operao mediadora entre os seres humanos e os
deuses, "entre o cu e a terra, a vida e a morte, a natureza e a sociedade" 2 .

Comeamos, assim, a compreender o lugar realmente essencial que cabe


culinria na filosofia indgena: ela no marca apenas a passagem da
natureza cultura; por ela e atravs dela, a condio humana se define em
todos os seus atributos, inclusive aqueles que como a mortalidade
podem parecer os mais indiscutivelmente naturais. 3

Para a atual cincia da nutrio, a coco dos alimentos facilita a posterior etapa
de digesto e assimilao dos nutrientes, que esto presentes nos alimentos. Etapas essas
que acontecem no organismo humano atravs dos rgos do aparelho digestivo. A coco
dos alimentos facilita a mastigao, desativa fatores anti-nutricionais e algumas toxinas
presentes nos alimentos. A cozinha vista como um laboratrio permite a transformao dos
alimentos, dando-lhes outra qualidade nutricional. O fogo como agente transformador ocupa
lugar de destaque na culinria diettica bem como o processo de cozinhar os alimentos se
entrelaa com as transformaes da cultura na sociedade. Nesse contexto, relatamos o mito
yorub sobre o Orix Xang, um Orix ligado ao fogo, e o seu ensinamento aos seres
humanos sobre cozinhar os alimentos;

Xang ensina ao homem fazer fogo para cozinhar

2
3

LVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitolgicos. So Paulo: Brasiliense, 1991. p. 69.


Ibidem, p. 163

3
Em pocas remotas, havia um homem
a quem Olorum e Exu ensinaram todos os segredos do mundo,
para que pudesse fazer o bem e o mal, como bem entendesse.
Os deuses que governavam o mundo, Obatal, Xang e If,
determinaram que, por ter se tornado feiticeiro to poderoso,
o homem deveria oferecer uma grande festa para os deuses,
mas eles estavam fartos de comer comida crua e fria.
Queriam coisa diferente:
comida quente, comida cozida.
Mas naquele tempo nenhum homem sabia fazer fogo
e muito menos cozinhar.
Reconhecendo a prpria incapacidade de satisfazer os deuses,
o homem foi at a encruzilhada e pediu ajuda a Exu.
Esperou trs dias e trs noites sem nenhum sinal,
at que ouviu uns estalos na mata.
Eram as rvores que pareciam estar rindo dele,
esfregando seus galhos umas contra as outras.
Ele no gostou nada dessa brincadeira e invocou Xang,
que o ajudou lanando uma chuva de raios sobre as rvores.
Alguns raios incendiados foram decepados e lanados no cho, onde
queimaram at restarem s as brasas.
O homem apanhou algumas brasas
e as cobriu com gravetos
e abafou tudo, colocando terra por cima.
Algum tempo depois, ao descobrir o montinho,
o homem viu pequenas lascas pretas. Era o carvo.
O homem disps os pedaos de carvo entre pedras e os acendeu com a
brasa que restara.
Depois soprou at ver flamejar o fogo.
E no fogo, cozinhou os alimentos.
Assim, inspirado e protegido por Xang,
o homem inventou o fogo
e pode satisfazer as ordens dos trs grandes orixs.
Os orixs comeram comidas cozidas e gostaram muito.
E permitiram ao homem comer delas tambm. 4

Os Orixs se alimentam das oferendas feitas pelos seres humanos. Sem a


alimentao que vem do Aiy, o Orum no se manifesta. Os Orixs no comem qualquer
coisa, nem preparados de qualquer modo. Bastide afirma:

Cada orix tem seus pratos preferidos. Os deuses no so apenas


comiles, mas tambm finos gourmets. Sabem apreciar o que bom e,
como o comum dos mortais, no comem de tudo. 5

O autor distingue dois momentos no ritual religioso do Candombl: o sacrifcio e


a comida. Embora a comida tambm seja feita com partes dos animais de sacrifcio, ela
4

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 257-258.
BASTIDE, Roger. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.
332.
5

4
demanda atividades que podem durar at vrios dias para sua preparao completa. Aes
que vo desde a compra e seleo dos alimentos e ingredientes necessrios at o momento
da festa pblica onde ela partilhada com todos 6 . Nesse sentido, a cozinha o local onde
essas aes da culinria ritual acontecem. A cozinha do Terreiro se torna um lugar sagrado,
onde a comida para os Orixs preparada e onde o Ax circula junto a cheiros, temperos e
sabores. Nas palavras de Santana Rodrigu, a cozinha, na frica conhecida como a casa
do fogo. Para a autora, o ato de cozinhar nos Terreiros simboliza tambm acender o fogo do
princpio, da origem do mundo e referenciar a ancestralidade. A cozinha dos Terreiros se
torna o altar onde o fogo aceso possibilita a transformao dos ingredientes que so
destinados aos Orixs e aos participantes da comunidade. Durante o preparo das refeies,
o Ax se espalha pelo local. Ainda em sua compreenso, a cozinha o local privilegiado
para o aprendizado dos segredos e dos ritos da tradio. um local onde se aprende a
abenoar a vida e os alimentos, um laboratrio sacralizado onde aes rituais buscam a
harmonia com os Orixs possibilitando sade e vida longa aos seres humanos 7 .

De dia, o cru vai se transformando em cozido, enquanto o saber vai se


espraiando. Aprender os preceitos - como Ia 8 - uma possibilidade de
viver a transmisso e o processo de aprendizagem. Esta se d no s no
cozinhar em si, mas no modo de ser, no jeito nag de ver o mundo;
cozinhar um mtodo, se aprende uma cosmologia. 9

Na histria do Candombl, a cozinha dos Orixs se mistura com a cozinha das


fazendas escravocratas, onde as escravas negras eram as cozinheiras. Difcil precisar a
fronteira entre a cozinha africana e a cozinha ritual. Atravs do tempo histrico, a culinria
africana foi se adaptando ao que havia de alimentos e ingredientes no Brasil e ao que era
possvel importar da prpria frica. Com os navios negreiros vieram os africanos e tambm
plantas que foram sendo cultivadas aqui em solo brasileiro. Sob esse aspecto, Sousa Jnior
6

Ibidem, p. 332.
RODRIGU, Maria das Graas de Santana. Or pr : o ritual das guas de Oxal. So Paulo:
Summus, 2001. p. 91-95.
8
Iniciadas, filha-de-santo. BASTIDE, Roger. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 310.
9
RODRIGU, Maria das Graas de Santana. Or pr : o ritual das guas de Oxal. So Paulo:
Summus, 2001. p. 92.
7

5
salienta que a cozinha africana, dentro dos Terreiros, vai se imbricar com os cardpios dos
Orixs. Para ele, a cozinha dos Terreiros foi se tornando a grande

transmissora do

conhecimento ancestral e da energia do Ax atravs dos ritos consagrados a cada Orix


na preparao de seus quitutes. 10
Completando e reforando essa idia, Lody diz que a cozinha, enquanto espao
sagrado, um local importante para a continuidade da vida dos Orixs, atravs dos pratos
votivos e os preceitos rituais assegurado a renovao do Ax 11 . O autor ainda esclarece
que a cozinha tambm o espao onde os utenslios usados nos preparos das comidas-desanto so guardados. Esses utenslios so separados dos da cozinha domstica, so
sacralizados e apesar do uso atual de aparelhos eletrodomsticos, o que predomina so os
vazilhames de madeira, cermica e de fibras naturais. H tambm vrios tipos de foges,
mas o fogo a lenha presena quase certa 12 .
Sousa Jnior traz mais detalhes mostrando que o preparo da comida de santo
no perdeu seus fundamentos ligados tradio e ao conhecimento ancestral pela
incorporao dos aparelhos eletrodomsticos usados atualmente. Ao se adaptar ao ritmo
urbano dos habitantes, principalmente, das grandes cidades, com o uso de massa pronta,
industrializada, para fazer acaraj, o fiel no invalida os rituais sagrados que so feitos para
o preparo do prato de Ians 13 .

Seja fazendo o uso de ingredientes nacionais ou de outros vindos do almmar, conservando, recriando ou inventando alguns pratos, a africanidade
sugerida pelos pratos que compem a cozinha-de-santo no se explica
pelos ingredientes que entram na sua composio, mas pelas tcnicas,

10

SOUSA JNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia
e dos povo do azeite. Prticas Teraputicas, etnobotnica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos;
BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradio afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, antisincretismo, reafricanizao, prticas teraputicas, etnobotnica e comida. Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999. p. 327-328.
11
LODY, Raul. Santo tambm come. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1998. p. 41.
12
Ibidem, p. 38-42.
13
SOUSA JNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia
e dos povo do azeite. Prticas Teraputicas, etnobotnica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos;
BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradio afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, antisincretismo, reafricanizao, prticas teraputicas, etnobotnica e comida. Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999. p. 342-343.

6
maneiras, pelo tratamento recebido por eles. A cozinha um lugar de
ritual. 14

Para alm de um espao domstico, a cozinha , em nossa sociedade brasileira,


um espao essencialmente feminino. Na cozinha ritual esto as mulheres que sabem o
segredo das culinrias votivas. Na cozinha ritual, esto as iabasss, filhas-de-santo que
cozinham para os Orixs.

As refeies: mulher, ritual e preparo

A cozinha um lugar de mulheres? Em nossa sociedade, cabe mulher, em


geral, o papel de nutridora do grupo familiar? Acreditamos que sim. Desde os primeiros
cuidados com o recm-nascido, que inclui o aleitamento e todas as atividades relativas
manuteno e continuidade de sua vida, at a responsabilidade pelas refeies domsticas
no grupo familiar na rotina da vida a mulher ocupa esse lugar de obrigao para com o
preparo dos alimentos e preservao da sade e da vida. Essa relao se estende em
nossa sociedade ao aspecto de reproduo tambm. H um imbricamento entre mulher,
comida e sexualidade. Lvi-Strauss, estudando as populaes indgenas nas Amricas
relata a relao, percebida nos relatos mitolgicos, entre alimentos e sexualidade. Atravs
da linguagem, esses aspectos esto interligados em que h expresses que significam ao
mesmo tempo copular e comer. "Quando as referncias so femininas, o cdigo sexual
passa ao estado latente e se dissimula sob o cdigo alimentar." 15
Sob esse aspecto, Da Matta afirma que uma das formas de expresso da
sociedade brasileira mais significativas feita atravs do "cdigo da comida" que situa "a
mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional". Para ele, a sociedade
expressa atravs do binmio comidas e mulheres. O autor cita Lvi-Strauss em sua
oposio cru/cozido ressaltando como estes dois aspectos naturais dos alimentos vo alm

14
15

Ibidem, p. 339.
LVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitolgicos. So Paulo: Brasiliense, 1991. p. 257.

7
de uma condio de estado biolgico para uma dimenso social, "de fato, o cru e o cozido, o
alimento e a comida, o doce e o salgado, ajudam a classificar coisas, pessoas e at mesmo
aes morais importantes no nosso mundo" 16 . Ainda em seu entender, h uma relao entre
a mulher e a comida no imaginrio brasileiro, bem como ambas, mulher e comida, tambm
esto interligadas com a sexualidade, "comer" tambm se refere ao ato sexual 17 . O autor
ainda acrescenta que as refeies e a sexualidade so percebidas como essncia social e
junto com a comensalidade andam de mos dadas 18 .

Como verdadeiras comunhes onde o encontro transforma as pessoas


nele engajadas porque faz com que todos participem de uma mesma
substncia comum, o prato comido ou a pessoa amada que, sabemos, vira
'comida' em nossa sociedade. E as mulheres desempenham, conforme
sabemos, um papel bsico nesses dois processos. 19

No sistema religioso do Candombl, como podemos pensar o papel da mulher


na cozinha? No Candombl, a cozinha sacralizada tambm um lugar de mulheres? A esse
propsito Ruth Landes 20 em suas notas afirma que na Bahia os homens so minoria na
prtica religiosa do Candombl, sendo que as mulheres ocupam um lugar de destaque na
liderana dos Terreiros, "circunstncias histricas e culturais da escravido baiana
favoreceram um matriarcado, bem como outros aspectos especiais da vida do negro." 21
Reforando a sua teoria de um matriarcado no Candombl, citamos um trecho
de seus dilogos com Me Menininha onde a prpria diz:

Minha falecida tia tornou a tocar o cho herdou o cargo da me dela,


a grande Jlia tocou de novo o cho e Jlia fundou o templo depois de
chegar ao Brasil. Primeiro serviu como sacerdotisa no Engenho Velho
me e filha serviam juntas Sabe como na Europa, minha senhora. Ns,
as mes, somos como as casas reais, passamos o nosso cargo somente a
pessoas da famlia, em geral as mulheres sacudiu a cabea e suspirou
Candombl uma grande responsabilidade. s vezes, fico pensando se

16

DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 51.
Ibidem, p. 60.
18
Ibidem, p. 62.
19
Ibidem, p. 62.
20
Antroploga americana, que desenvolveu seu trabalho de campo no Brasil, na Bahia e no Rio de
Janeiro em 1938 e 1939, tendo como guia e colaborador dison Carneiro.
21
LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 349-350.
17

8
terei foras para continuar e se tenho o direito de sobrecarregar as minhas
filhas com ela. 22

A autora cita que Me Menininha no se casou oficialmente para no ficar sob o


poder que delegado ao marido num pas catlico de herana latina patriarcal, pois as
mulheres do Candombl devem se submeter apenas aos seus Orixs 23 . Reforando esse
raciocnio, Landes diz que as sacerdotisas almejavam um amante que lhes fosse til
financeiramente e fornecessem respeitabilidade social junto a polticos. "O casamento
significa outro mundo, algo assim como ser branco." 24
O estudo de Ruth Landes retrata um momento histrico no Candombl, quando
se estabeleceram as grandes lideranas do sacerdcio baiano, onde a predominncia das
mulheres era vista a olhos nus. A liderana se estabelece como matriarcado. "No Brasil, em
relao ao Candombl, instalou-se um matriarcado importante e bem-vindo o que no
elimina a participao masculina" 25 . Mas a cozinha continua sendo um lugar reservado s
mulheres, onde homens no so proibidos, mas so raros. Mantendo-se inclusive o tabu da
menstruao. Mulheres menstruadas no podem cozinhar. A esse propsito citamos
Amaral:

Depois de limpos os bichos, cozinham-se as carnes, separa-se o que cada


orix deseja, e, no dia seguinte, so preparadas as comidas que sero
servidas assistncia da festa, no ajeun. preciso lembrar que as
mulheres que cozinham as comidas de santo no podem, sob nenhuma
hiptese estar menstruadas, o que tambm pode representar um problema
para a casa, que precisa estar ciente das datas de menstruao de suas
filhas antes de marcar qualquer obrigao a que estas devam estar
presentes. Por este motivo, a iabass quase sempre uma mulher que j
esteja na menopausa, garantindo-lhe as condies necessrias ao pleno
desempenho de suas funes. 26

22

Ibidem, p. 127.
Ibidem, p. 200.
24
Ibidem, p. 201.
25
SODR, Jaime. Ialorix: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.).
Faraimar: o caador traz alegria: Me Stella, 60 anos de iniciao. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.
258-259.
26
AMARAL, Rita de Cssia. Awon Xir! A festa de candombl como elemento estruturante da
religio. In: MOURA, Carlos Eugnio Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fogo: escrito sobre
a religio dos orixs VI. So Paulo: Ateli Editora, 1998. p. 103.
23

9
Seguindo com essa abordagem, recorremos mais uma vez ao estudo de Da
Matta sobre a questo da identidade brasileira no qual ele afirma haver em nossa sociedade
uma oposio casa/rua. Onde a rua representa o lugar do trabalho, da luta pela
sobrevivncia. A rua representa a realidade dura da vida. Na contramo, a casa representa:
a famlia, os laos consangneos, os valores morais, as tradies mais cultuadas. A casa
em sua compreenso vai alm de um espao fsico, se torna um espao moral. 27
Podemos perceber que a casa se torna o lugar tradicionalmente reservado
mulher. Mesmo nos tempos atuais, em que a mo de obra feminina significativa como
fora de trabalho produtivo, ocupando o espao "rua", o "espao casa" ainda percebido
como de responsabilidade da mulher. Nesse sentido, a mulher que trabalha fora de casa
tem dupla jornada de trabalho, em sua grande maioria. E se alm dessa dupla obrigao a
mulher fizer o santo, suas obrigaes para com o Terreiro lhe daro uma tripla jornada.

A presena maternal, protetora e de poder da mulher, em especial negra


ou mulata, no candombl, reserva um espao propcio ao exerccio de suas
habilidades intelectuais, msticas e mticas sem esquecer a beleza realada
pelos parmetros da esttica africana e da sensualidade, valores inclusos
nos ritos afro-brasileiros. 28

O autor - tambm og - ainda ressalta as responsabilidades da me-de-santo,


que inclui abnegao e servios de amor ao prximo. Para ele, a condio de me-de-santo
se enquadra bem na "condio feminina", pela prpria natureza da mulher, quanto
possibilidade da maternidade. Cita tambm a fertilidade e os seios grandes e generosos da
mulher africana, fazendo a relao das amas de leite no perodo da escravatura e sua
funo como nutridora dos filhos brancos do engenho 29 .
Conseqentemente, cabe, principalmente, mulher o trabalho de nutrir a famliade-santo. As iabasss, cozinheiras dos Terreiros, executam as atividades especficas da
cozinha ritual sob o comando da me ou do pai-de-santo. Essas atividades culinrias votivas
27

DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 23-29.
SODR, Jaime. Ialorix: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.).
Faraimar: o caador traz alegria: Me Stella, 60 anos de iniciao. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.
259.
29
Ibidem, p. 249-250.
28

10
podem durar vrios dias e se iniciam com a aquisio dos gneros alimentcios e
ingredientes necessrios para a execuo dos pratos especficos para cada Orix.
Aps a aquisio do material necessrio, seguem-se as operaes de limpeza,
de higienizao dos ingredientes, seguidas das aes de picar, amassar, misturar, moer,
triturar, deixar de molho e principalmente cozinhar. O fogo transforma os ingredientes em
pratos votivos atravs do trabalho litrgico realizado pelas iabasss. Todas essas atividades
so realizadas dentro dos ditames ritualsticos que abrange gestos e comportamentos que
so aprendidos durante o processo de iniciao. Conhecer as receitas, os preceitos
necessrios para o preparo da comida de santo, parte intrnseca do aprendizado ritual do
filho e filha de santo. A cozinha ritual, com seus odores e sabores, recria o cotidiano
alimentar dos filhos de santos e de seus Orixs. As atividades exercidas na casa do fogo
sacralizam o ato de comer e a comensalidade no sistema religioso do Candombl.

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