Jim Hougan - O Ultimo Merovingio#
Jim Hougan - O Ultimo Merovingio#
Jim Hougan - O Ultimo Merovingio#
MEROVNGIO
JIM HOUGAN
Traduo
Lcia Brito
2a Reimpresso
2000
Algumas pessoas ficam cada
mesmo quando continuam iguais.
Este livro para elas.
Jeff Bale
Kevin Coogan
Gary Horne
Pallo Jordan
Norman Mailer
Ron McRea
Robin Ramsay
Ben Sidran
Judy Sidran
Scott Spencer
Joe Uehlein
vez
melhores,
PRLOGO
2 de maio de 1945
Norte da Itlia
O major Angleton flutuou sobre Sant'Ambrogio no
cu sem lua, suspenso na noite por cordas de
nilon e um velame de seda negra. Ele podia
avistar uma linha de fogo ardendo ao longo do
cume arborizado acima da cidade, e indagou se a
causa seriam raios ou bombardeios. No havia
muito mais que ele pudesse ver, menos ainda
ouvir; restava o vento para sentir.
Construir a cidade de Dioce, cujos terraos so da
cor das estrelas.
medida que o major perdeu altura, o cheiro de
madeira queimada dos focos de incndio das
proximidades chegou at ele, um sopro de jacintos
e a fragrncia dos pinheiros. Os pinheiros eram
sombras que se distendiam contra a encosta
escura, at que, de repente, Angleton estava no
meio
deles,
passando
por
eles,
voando
lateralmente pela encosta do morro. E ento, com
um baque, chegou ao solo, avanando com passos
cambaleantes,
recolhendo
o
pra-quedas,
enrolando-o. O ar estava frio.
O destino do major era uma ampla villa caindo aos
pedaos, localizada entre terraos arruinados nos
declives acima de onde ele havia aterrissado. Uma
suave luz amarela escoava-se pelas janelas da
villa, iluminando os parreirais incultos que se
esparramavam em todas as direes. O major
Angleton sacou sua 45 e comeou a subir o morro
at sentir cascalhos esmagados sob os ps e
perceber que estava no ptio. Ao cruzar por uma
janela fechada, espiou entre as frestas da
veneziana. O homem que o haviam mandado
encontrar, execrado em casa e odiado na Europa,
um poeta de inestimvel talento e violento
perseguidor de judeus, estava sentado em uma
carcomida escrivaninha de biblioteca, cercado de
livros. Escrevia luz de um lampio de querosene
no que parecia um enorme dirio de couro. Na
parede de reboco rachado atrs dele, pendurada
torta, uma pintura de Poussin, pequeno e maravilhoso leo em moldura de madeira barata.
Uma brisa suave trouxe consigo o aroma de
glicnia, e o major Angleton percebeu que estivera
prendendo a respirao, embora no soubesse h
quanto tempo. A mo com a arma estava pegajosa
de suor.
Saindo da janela, foi para a porta da villa, tragou o
ar noturno gelado, abriu a porta e entrou. O poeta
ergueu o olhar, chocado ao deparar com um
homem armado diante de si to repentinamente,
lnto os olhos focaram o rosto do soldado, e o
13 de dezembro de 1998
Londres
Dumphy encolheu-se embaixo dos lenis quentes,
semidesperto, de costas para Clementine. Pde
sentir o frio do quarto fora da cama e percebeu a
luz cinzenta de Londres penetrando atravs das
janelas como uma nuvem. No dava para saber
que horas eram. Comeo da manh. Ou final. Ou
tarde. Sbado, em todo caso.
Ele resmungou alguma coisa sobre levantar (ou
talvez no) e esperou pela resposta. "Mmmm"
murmurou ela, ento arqueou as costas e rolou
para longe. "Sonhando..."
Ele sentou com um grunido abafado , piscando
para se acordar. Tirou as pernas da cama com um
giro, e apertou os olhos para espantar o sono e
se ps de p. Clementine choramingou e
ronronou l atrs, enquanto ele tremia pelo
cho gelado at o banheiro, onde escovou os
dentes e escarrou. Encheu as mos em
concha de gua da torneira e enfi ou oo rosto
dentro daquele frio. Jesus, arfou. E repetiu.
Cristo,
sussurou
e,
inspirando
profundamento, sacudiu a cabea como um
cachorro.
O homem no espelho tinha 32 anos de idade,
ombros largos e ossos salientes. Um metro e
oitenta e cinco de altura, olhos verdes e
cabelo liso e preto. Os olhos cintilaram na
superfcie
do
espelho,
enquanto
Dunphy,
pingando, puxou uma toalha do suporte, a seguir
"Dinheiro..."
"...bilhete para os Estados Unidos, e uma mala
cheia de roupas de alguma outra pessoa.
Provavelmente dele mesmo."
"Por que eu haveria de querer as roupas de uma
outra pessoa?"
Quando foi a ltima vez que voc viu algum
cruzar o Atlntico sem uma mala?"
"Olhe, Jesse..."
Bip-bip-bip. O telefone queria outra
moeda. "V para casa!"
"Olhe, no acho que isso seja uma grande idia!"
Bip-bip. "Apenas laa isso."
"Mas..."
Bip-bip. "No tenho mais trocados!"
Houve um estrondo do outro lado lado da linha,
um xingamento abafado, um zumbido, e fim. Jesse
Curry tinha se ido.
Dunphy recostou-se na cadeira, atordoado. Deu
uma
enorme
tragada no cigarro, segurou a fumaa por um
momento, e exalou. Inclinando-se para a frente,
apagou o toco de cigarro no cinzeiro e cravou os
olhos na parede.
No v at o seu apartamento. Tenho uma equipe
de limpeza.
Uma equipe de limpeza. E Clementine? Ser que
ainda estava dormindo? Ser que a levariam
embora junto com a roupa suja? Agarrou o
telefone, discou para o seu nmero e esperou. O
toque veio em rajadas longas e repulsivas
pontuadas por longos intervalos de silncio com
FORMATAO COMPLETA
4
N ove horas depois, Dunphy entrou no
Ambassadors Club, no segundo andar do saguo B
do aeroporto internacional John F. Kennedy. O clube
estava praticamente vazio. Largando a mala perto
de um sof de couro pudo, agarrou um punhado
de biscoitinhos, pediu um Bushmills a uma
5
Dunphy entrou com o T-bird em um desvio
direita ao sair de G. W. Parkway, na Chain Bridge,
fazendo a volta na rampa de sada rumo ao Dolley
Madison Boulevard. Apontou o Bird para o oeste e
dirigiu por cerca de um quilmetro e meio, ento
virou direita entrando na longa galeria de
rvores que leva portaria na extremidade do
complexo da CIA. Um enorme segurana negro
emergiu da guarita com uma prancheta e um
sorriso. "Bom dia", disse ele. "O senhor tem um
encontro agendado?"
"John Dunphy. Estou um pouquinho atrasado."
O guarda verificou na prancheta, foi at a traseira
do carro, anotou o nmero da placa e voltou para
a janela do motorista. "Preciso ver seus papis da
locao", disse ele, acenando com a cabea na
direo do adesivo da Hertz no pra-brisa. Dunphy
deu-lhe os papis e observou o guarda comear a
copiar as informaes em seu bloco com
meticulosas e esmeradas canetadas. Era como se
estivesse desenhando as letras, em vez de
escrev-las.
No que Dunphy estivesse com pressa. O ar
estava limpo, fresco e revigorante - exatamente do
"E ento?"
"Ento precisariam de uma conta bancria."
"E como isso era arranjado?"
"Eles me davam um depsito. E eu abria uma
conta no nome da empresa. Basicamente, eu
utilizava o Midland Bank em St. Helier nas ilhas
Normandas."
"Ento voc controlava todas as contas."
Dunphy riu. "S por alguns dias. Uma vez que eu
enviasse a papelada para o cliente, ele tirava meu
nome da conta. No que isso importasse. Na
maioria das vezes, eu abria essas contas com
menos de cem libras. No era o caso de eu ser
tentado ou coisa assim."
"Na maioria das vezes."
"Sim. Houve excees. Havia alguns clientes para
os quais eu tinha feito muitos trabalhos, e s vezes
eles me davam cheques bastante substanciais
para depositar. Mas eram excees - e eles sabiam
onde eu morava. Por assim dizer." Como quem?
"Como ns." Rhinegold e Esterhazy olharam
intrigados. "Montei uma meia dzia de companhias
para a agncia e, em cada ocasio, houve
substanciais depsitos em adiantamento. E da? Eu
ia escapulir?"
"Mas voc fez a mesma coisa para indivduos. E
empresas privadas."
"Claro. Era o meu disfarce. Era isso que a AngloErin Business Services fazia. Em pblico."
"E isso era inteiramente confidencial."
"Era para ser", disse Dunphy. "Mas...", cutucou
Esterhazy.
6
O interrogatrio ainda estava em andamento s 7
da noite quando o relgio de Rhinegold fez um
rudo alto e espalhafatoso, lembrando-o de que ele
deveria estar em algum outro lugar.
Os interrogadores afastaram suas anotaes,
fecharam suas pastas e puseram-se de p. "Acho
que voc deveria comer em seu hotel", disse
Rhinegold.
"Que bela idia!" aparteou Esterhazy. "Servio de
quarto! O ideal para relaxar!"
"Estaremos de volta s oito horas", acrescentou
Rhinegold.
"Vocs no acham que poderia ser um pouco mais
tarde?" perguntou Dunphy. "Meio-dia seria bom."
Esterhazy e Rhinegold fitaram-no com um olhar
inexpressivo.
"Preciso de algumas roupas", ele explicou. "Um par
de meias. As lojas no abrem antes das dez."
Nada. Nem mesmo um sorriso.
Dunphy suspirou. "Ok. No tem problema. Vou
lav-las na porra da banheira."
E lavou. Comprou uma garrafa de detergente para
roupas no 7-Eleven, voltou para o quarto do hotel
e encheu a banheira. Despindo-se, ajoelhou-se no
8
A nova tarefa de Dunphy chegou poucas semanas
depois de ter ido morar com Roscoe White, e no o
deixou
feliz.
Embora
provavelmente
fosse
impossvel ele retornar a Londres, no havia
nenhum motivo bvio pelo qual uma operao
idntica no pudesse ser dirigida de outra cidade,
e ser igualmente bem-sucedida. Genebra, por
exemplo, ou - melhor ainda - Paris. Ele pegou uma
mquina de escrever emprestada e escreveu um
memorando atrs do outro sobre o assunto, mas
jamais houve qualquer resposta. Finalmente,
recebeu uma diretiva concisa determinando que se
apresentasse para um curso de treinamento de
trs dias para os funcionrios de inspeo de
informaes, ou IROs.7
Bastou olhar em volta para Dunphy perceber que
seu futuro era sombrio. Com exceo dele mesmo,
todos os IROs estavam na faixa dos sessenta anos
e trabalhando em meio turno. Eram "jubilados",
funcionrios aposentados que apreciavam a
chance de suplementar seus cheques mensais
fazendo um expediente de algumas horas por dia
7 IRO: sigla para "information review officer", aqui traduzido por "funcionrio de
inspeo de informaes". A sigla ser mantida no ingls por fazer parte do jargo da
CIA. (N. da T.)
9
Foi Ruscoe quem deu a idia.
Estavam sentados no balco do OToole's, uma
espelunca irlandesa encardida no MacLean
Shopping Center, no muito longe da sede da CIA
(e, portanto, um ponto de encontro de agentes),
quando Roscoe perguntou - com um leve sorriso sobre o pedido FOIA que havia encaminhado a
Dunphy naquela mesma tarde.
"Qual deles?", perguntou Dunphy, sem realmente
prestar ateno. Ele estava esmiuando uma
fotografia pendurada na parede junto com o resto
da memorabilia, tudo necessitando de uma boa
limpeza. Havia uma bandeira desbotada do IRA,
um alvo para dardos com a imagem de Saddam
Hussein, alguns postais de Havana (assinados
Frank & Ruth) e uma espada cerimonial japonesa
com o que parecia sangue seco. Algumas
manchetes amareladas de jornal (JFK ENVIA ENVIA
CONSULTORES PARA O VIETN) haviam sido
coladas na parede ao lado de fotografias assinadas
e emolduradas de George Bush, William Colby e
Richard Helms.
Mas a imagem que prendeu a ateno de Dunphy
foi uma foto de trs homens sorridentes em uma
clareira na floresta. No cho diante deles estava a
cabea de um asitico que parecia decapitada. Na
verdade, ele fora enterrado de p e, embora seus
olhos estivessem vidrados, dava para ver que
ainda estava vivo. Uma legenda datilografada
"Agilizar solicitaes."
"Claro, se me pedem isso, e se acho que existe um
bom motivo para aprovar."
Dunphy sorveu sua cerveja pensativo. Depois de
um bom tempo, um sorriso desabrochou, e ele
virou-se para Roscoe. "Faa-me um favor", disse.
"Qual?"
"Voc recebe um pedido FOIA de um cara
chamado... no sei - como? - Eddie Piper! Quero
que voc agilize quaisquer pedidos que receba de
algum chamado Eddie Piper, certo?"
Roscoe deu uma pensada a respeito. "Certo."
"E mande-os para mim. Quero tratar de qualquer
coisa que Eddie pea."
Roscoe assentiu, depois lanou um olhar
desconfiado na direo de Dunphy. "Quem Eddie
Piper?", perguntou.
Dunphy sacudiu a cabea. "Sei l", disse ele.
"Acabei de inventar. A questo : voc vai fazer
isso?"
"Sim. Por que no? No tenho l grande coisa a
perder, no ?"
10
Alugar uma caixa postal usando um nome falso
era mais difcil do que Dunphy esperava, mas era
essencial para o seu plano. Embora no
pretendesse liberar um nico documento, no
havia como evitar a correspondncia entre a
agncia e Edward Piper. O recebimento de cada
pedido FOIA era acusado por escrito, e cada recusa
10 Drone: sigla para "data retrieval officer", aqui traduzido por "funcionrio de busca de
dados". No ingls, h um duplo sentido, pois "drone" a designao de aeronaves
pilotadas por controle remoto. (N. da T.)
11
Para surpresa de Dunphy, o arquivo era fininho,
consistindo quase inteiramente de documentos de
domnio pblico. Havia um obiturio de The
Observer, um punhado de recortes sobre o
assassinato e um exemplar surrado da primeira
edio de uma velha revista: Archaeus: A Revista
da Viticultura Europia.
Davis, Thomas
Curry, Jesse
Optical Magick
Inc.
Dunphy, Jack
Pound, Ezra
Jung, Carl
Sigisberto IV
a
143 Unidade Area Cirrgica
Dunphy estudou o carto, mais alarmado do que
lisonjeado por deparar consigo mesmo encaixado
entre Allen Dulles e Carl Jung. Dulles era uma
legenda, claro. Fora espio durante a Primeira
Guerra Mundial, e um superespio na Segunda,
operando a partir da Sua em ambos os casos.
Quando Hitler rendeu-se, Dulles juntou-se ao chefe
12
As guias do uniforme de Murray Fremaux
ergueram-se quando ele sacudiu os ombros,
inclinando-se para a frente no bar do Sheraton
Premiere.
"No existe essa coisa", disse ele, "de 143 a
Unidade Area Cirrgica. No existe. Nunca
existiu."
Dunphy sorveu a cerveja e suspirou.
"Oficialmente", acrescentou o coronel.
"Ahh", disse Dunphy, e inclinou-se para a frente.
"Me conte."
" uma unidade clandestina, sigilosa. Tinha seu
quartel-general no Novo Mxico."
E agora?
"No meio do nada."
Dunphy franziu o cenho. "Isso meio relativo.
Quer dizer, se eu estivesse de carro..."
"A cidade mais prxima Vegas, mas a cerca de
trezentos e vinte quilmetros a sudoeste. Estamos
falando de pleno deserto. Poeira, galhos secos e
plantas levadas pelo vento. Jackalopes."
Dunphy ficou pensando. "O que eles fazem?"
"Huu-huu!"
"A 143a."
Murray riu. "Eu estava respondendo. isso que
eles fazem. Fazem huu-huu - com quatro us', no
brincadeira."
"Murray..." disse Dunphy.
encontrou
as
13
Dunphy pegou a correspondncia na entrada para
a garagem, estacionou e entrou em casa. Era uma
piada manjada, mas ele no conseguia se conter e
gritava: "Querida, cheguei!"
Roscoe estava na mesa da sala de jantar, lendo a
Archaeus. Acusou a troa com um sorriso amarelo
e disse: "Me colocaram de licena administrativa."
"Jesus", disse Dunphy. "Ento assim que chamam
isso? Eu tambm."
"Quer saber a verdade?", perguntou Roscoe.
"Matta me deixou morto de medo. Estou pensando
em pedir aposentadoria antecipada."
"Mas, Roscoe, ns mal nos conhecemos."
Roscoe deu uma risadinha.
"Olha, cara, sinto muito, realmente", disse Dunphy.
"Eu que meti voc nisso." Houve uma longa pausa.
"No sei o que mais eu poderia dizer. Foi mal."
Roscoe sacudiu os ombros. "No se preocupe com
isso. Se quer saber a verdade, no estou to ligado
assim em espionagem."
Dunphy sacudiu a cabea.
"Fala srio! Redistribuir pedidos FOIA para os
seqelados da agncia..." Roscoe recuou ante o
olhar de Dunphy, recuperou o flego e prosseguiu.
"Com exceo dos aqui presentes, bvio! Mas
"BVM?"
"Bendita Virgem Maria. Estou falando de um
holograma. Como eu disse, doze metros de altura,
pairando no ar bem em cima da aldeia - assim no
mais, trs noites seguidas. E a lua por cima do
ombro dela! Uma linda viso, fazia voc cair em
prantos! Luz azul por tudo e..."
"E ento os ndios partiram."
"Foram embora de joelhos. Provavelmente ainda
esto caminhando."
"Optical Magick", murmurou Dunphy.
"Isso a. Fizeram Medjugorje tambm. Roswell.
Tremonton. Gulf Breeze. Diabos, fizeram todos os
grandes."
Dunphy sacudiu a cabea, como que para clarear
as idias.
"Eu sei", disse Brading. " de deixar maluco. No
que eles sejam perfeitos. Ningum perfeito." Ele
hesitou por um instante. "Quer ver uma coisa?"
Dunphy sacudiu os ombros, atordoado. "Claro."
Brading deu uma risadinha. "J volto", disse, e saiu
da sala, nitidamente entusiasmado. Voltou um
minuto depois com uma fita de vdeo no colo. Foi
at a TV, enfiou a fita no aparelho de videocassete
e apertou uns botes. "Veja isso."
Um teste padro bruxuleou, zumbiu e veio uma
contagem regressiva de dez a um. De repente, o
padro deu lugar imagem granulada e em pretoe-branco de um homem em traje espacial. Ou...
no. No era um traje espacial. Um cirurgio, ou
algum que parecia um cirurgio, usando um traje
14
O nimo de Dunphy fez a mesma trajetria do 727
em que ele voou. Elevou-se apressadamente na
decolagem (Optical Magick! Bim-bam-buum!),
nivelou-se em algum ponto de Indiana (Perto do
final do meu perodo de trabalho, comeamos a
fazer aqueles desenhos...), e ento comeou a
descer em Washington (Fizeram Medjugorje
tambm). Na hora em que aterrissou, Dunphy
estava com um nimo muito sombrio.
a maior quantidade de merda que j ouvi,
pensou ele. (Tremonton. Gulf Breeze. Todos os
15
15 Lo-Jack: sistema de rastreamento de veculos. (N. da T.)
O qu?
"Meu passaporte!"
"O que tem ele?"
"Perdi!"
A atendente sorriu. "Podemos fazer um novo", ela
disse, empurrando um formulrio na direo dele.
" s preencher isso e..."
"Preciso dele imediatamente."
A atendente encolheu os ombros. "Podemos
expedi-lo." "Maravilhoso", disse Dunphy. "Isso
brbaro."
"Mas tem uma taxa de cinqenta dlares."
Dunphy deu de ombros - "No tem problema" - e
puxou a carteira.
"E se voc vier buscar pessoalmente", disse ela,
"pode peg-lo dentro de 48 horas".
O sorriso de Dunphy desvaneceu-se em pnico.
Com a mandbula a tremer, ele disse: "Voc no
est entendendo. Quer dizer, estou em vo para
Paris dentro de algumas horas." Ele empurrou a
passagem atravs do balco, mas a atendente no
olhou.
"No tem jeito", ela disse.
"Oh, meu Deus - no faa isso", replicou Dunphy,
"tenho duas equipes de cmeras voando em..."
"Sinto muito..."
Dunphy empurrou seu carto profissional pelo
balco. "Voc tem algum assessor de imprensa
aqui? Algum com quem eu possa falar? Porque o
fato que estou com Ed plantado minha espera
em uma espelunca em Wencelas Square, e se eu
pensamento que jamais tivesse ocorrido a ningum neste mundo. Ou, pelo menos, ningum que
tivesse permanecido neste mundo.
Dunphy seria capaz de apostar nisso.
16
O avio de Dunphy chegou a Paris s 7 da manh,
deixando-o com duas horas livres antes do vo
para Praga. Ele passou parte do tempo vagando
pelo free-shop, depois parou para fazer umas fotos
para o passaporte. Finalmente, sentou em um
pequeno caf com balco de pedra e banquinhos
de concreto armado.
Era um lugarzinho horrendo, um purgatrio
francfono para turistas com jet-lag que entravam
e saam com as caras preocupadas e confusas
enquanto contavam o troco que no lhes era
familiar. Em um canto da sala, um ajudante de
garom argelino estava recostado na parede,
fumando cigarros turcos languidamente enquanto
observava as mesas se abarrotarem de xcaras e
pires usados. No alto da parede, um alto-falante
solitrio zumbia na cadncia de sintetizadores de
europop - um uivo danante de batida acelerada
que deixou Dunphy estonteado e deprimido.
Evidentemente, a idia era maximizar os lucros
por meio da acelerao da rotatividade dos
clientes, o que o caf alcanava deixando todos
que ali entravam profundamente infelizes - exceto
le propritaire, que entendia o princpio e o
"Maravilha."
"Mas primeiro preciso do depsito. Em dinheiro,
no para mim, para o Visa! Certo?"
"Sim", disse Dunphy, "est timo". Tomou um
golinho de Becherovka e sentiu as sobrancelhas
saltarem. "Que coisa essa?
"Ningum sabe. segredo. Os checos dizem que
feito com vinte ervas. No dizem quais."
"Gostei."
"Eu tambm. Agora, sobre o passaporte: voc no
perguntou quanto. O que significa problema! Ou
talvez... que voc no veio s pelos passaportes"
"Correto."
Max sorveu o licor, inspirou vigorosamente pelo
nariz e perguntou: "Sendo assim, de que estamos
falando?"
"Disso",
disse
Dunphy,
tirando
o
crach
Andrmeda de Gene Brading de dentro de sua
pasta e alcanando-o para o russo.
Max acomodou os culos em cima do nariz e virou
a ID em suas mos, estudando-a. No disse nada
durante cerca de um minuto, e ento olhou para
Dunphy. "Voc sabe o que isso?"
"Claro. um holograma - como aqueles em cima
da sua mesa. por isso que estou aqui. Calculei
que, se algum pode fazer uma coisa dessas,
voc."
Max sacudiu a cabea. "No apenas um
holograma. um holograma arco-ris."
"Que o qu?"
"Voc pode ver na luz comum, luz branca, como
agora." "Difcil de copiar?"
provvel
que
funcione."
Dunphy ficou pensando. Finalmente disse: "Esse
pessoal inclemente, Max. Voc no d uma
garantia ou algo assim?"
Max riu. "Claro! Qualquer garantia que voc
deseje! Igualzinho a uma mquina de lavar roupa!"
"Estou falando srio."
"Eu
tambm",
disse
ele,
subitamente
compenetrado. "Mas complicado. como
imprimir dinheiro e no s dinheiro americano. Me
refiro aos difceis. Francos, marcos, florins
holandeses..." Ele pegou o crach e levou-o para
perto dos olhos. "Veja um filamento! Ali!"
"E da?"
"Da... pode ser uma imperfeio. Ou, talvez, um
filamento de segurana. Preciso olhar no
microscpio. Se um filamento de segurana,
pode haver uma microimpresso nele. Umas
palavras repetidas vrias vezes."
"Como o qu?"
Max deu uma risadinha." 'Atire nesse homem'."
"Muito engraado", disse Dunphy, e parou. Ento
sacudiu a cabea. "Olhe: faa o que tiver que
17
Fios de chuva. Guincho de pneus. Um esboo de
aplausos. E ento a comissria de bordo deu as
boas vindas dizendo: "Aeroporto de Heathrow,
Londres."
Uma hora depois, Dunphy estava chacoalhando
atravs do West End na Piccadilly Line, pensando
na ltima vez que havia pego o metr. Por um
lado, quase nada havia mudado. Na poca, estava
em fuga por causa de um assassinato, e estava
em fuga por causa de um assassinato agora. No
que qualquer coisa estivesse realmente igual: h
quatro meses, ele estava se mandando por causa
do assassinato de outra pessoa; agora, estava
escapando de seu prprio. E isso fazia toda a
diferena.
Ou deveria fazer. De fato, ele estava tendo
dificuldade em se concentrar. Sua mente estava
em tudo ao mesmo tempo. No importava no que
"Ai, Jesus!"
"Seu canalha", disse ela.
Ela foi para cima dele de novo, dessa vez com a
direita, mas ele a pegou bem na hora e puxou-a
para si. "No faa isso", disse ele. "Machuca." Ele
sacudiu a cabea para clarear as idias. Ento a
fria abandonou-a to repentinamente como
quando chegara. Lgrimas brotaram em seus
olhos enquanto ela aquietava-se nos braos dele.
"Eu senti tanta falta de voc", ela disse. "Voc me
deixou to infeliz."
Entraram juntos, passando direto da sala para a
cama. Caindo nos braos um do outro, fizeram
amor com a urgncia dos desesperados. E depois
novamente. Ento a luz comeou a enfraquecer, e
ele tambm at que de repente era noite, e
Clementine o sacudia para que acordasse.
Foram a um restaurante grego na Charlotte Street,
com muito aroma de lenha e velas. Em uma mesa
de canto, Dunphy tentou explicar, da maneira mais
circunspecta e inarticulada, por que teve que
deixar a Inglaterra. "Foi uma daquelas coisas que...
bem, voc sabe, foi algo que... bem, para falar a
verdade, no havia nada que eu pudesse fazer a
respeito. Quer dizer... as pessoas para quem eu
trabalho, ou trabalhava.."
"Para quem voc trabalhava exatamente? Voc
no disse."
"Bem... era... na verdade, era uma agncia do
governo."
"Ento voc um espio."
"Simon!"
Dunphy olhou em volta. "O que devo fazer? Fechar
os olhos? Rodopiar? O qu?"
"Simon estava fazendo cursos de psicologia. um
departamento grande, mas... ele talvez tenha tido
aula com Schidlof."
"Voc pode ligar para ele?"
Ela sacudiu a cabea. "Acho que ele no tem
telefone. E no sei o sobrenome."
Dunphy deixou cair os ombros. "Assim a coisa fica
mais difcil."
"Mas poderamos v-lo."
"Onde?"
"No mercado em Camden Lock. Os pais dele tm
uma espcie de quiosque. Acessrios para
encanamentos, uniformes velhos. As miudezas de
sempre."
"Voc me apresenta?", ele perguntou.
"Se voc comprar uma jaqueta do Sgt. Pepper para
mim - com certeza."
No domingo estava frio, e um vento encanado
enregelante soprava furiosamente na sada do
metr. Subindo pela longa escada rolante at a
rua, Dunphy e Clementine encostaram-se um no
outro, retesando-se contra a ventania.
"Mas que porra infernal", disse Clem. "Estou
congelando e ainda nem estou l fora!" Ela
agarrou o brao direito dele com fora, com as
duas mos, como se ele pudesse tentar escapar, e
saltitou para impedir que os dedos dos ps
congelassem.
18
Ele no conseguia dormir.
Ficou deitado ao lado de Clementine observando
as luzes dos carros subirem pelas paredes e
deslizarem pelo teto. Som de msica infiltrava-se
pelas vidraas vindo de algum ponto da rua, uma
velha cano de Leonard Cohen, repetida sem
parar. E ento, de repente, nada - o silncio
atingiu-o como um motor de navio que desligado
no mar.
instante) e dar-lhe uma porrada atrs da cabea o que Dunphy tambm fez, acertando uma
pancada no osso mastide, logo atrs do ouvido
de Curry, com a coronha da Walther.
Clem ganiu de surpresa enquando Curry
cambaleava, gingava e tombava contra a parede,
soltando a arma. Segurando a parte de trs da
cabea com a mo direita, ele se dobrou e gemeu,
com um som baixo e triste.
Dunphy virou-se para Clementine: "Voc est
bem?" Ela fez que sim com a cabea e ele pde
ver que era mentira. O olho esquerdo estava
inchado e a lateral do rosto contundida. "Oh,
minha nossa", murmurou Dunphy.
Curry ergueu os olhos, estremecendo em meio
dor. "No fui eu", disse ele. "Foi Freddy. Pergunte a
ela."
"Freddy que se foda", disse Dunphy. "Quero saber
como voc me achou."
Curry cerrou os dentes por causa da dor e se
endireitou, tremendo. "Tnhamos seus cartes de
crdito monitorados." "Besteira."
"Vou mentir a respeito disso? Por que eu iria
mentir sobre isso, porra?"
"No sei."
"Acho que sofri uma concusso." "No me importo.
Agora, conte como voc me achou." "J falei.
Rastreamos seus cartes de crdito. Mas que
estupidez! Isso que estupidez. Isso que
trapalhada..."
"No usei meus cartes, Jesse!"
"Ela usou. Comprou um casaco."
O qu?
Curry olhou de esguelha para Clementine e riu
com escrnio. "Ela comprou um casaco. Em
Camden Lock. Oh-My-Darlin' comprou um..."
Clem foi para cima dele, mas Dunphy conteve-a
pelo brao. "Vamos", disse. "Temos que ir."
"E ele?", perguntou Clem. "Vir atrs de ns."
Dunphy pensou a respeito. Finalmente disse: "No,
no vir."
"Por que no?"
"Porque vou atirar nele."
Os olhos de Clem se arregalaram e Curry ficou
plido. "Eeiiii", disse ele, encostando-se na parede.
Dunphy deu de ombros. "No posso evitar. No
tenho escolha."
"Me amarre!"
"No tem corda."
"Use um cinto, pelo amor de Deus!"
Dunphy sacudiu a cabea. "No daria certo. Voc
escaparia logo."
"Voc no pode simplesmente atirar nele", disse
Clem.
"Por que voc no vai l para fora?" sugeriu
Dunphy.
"No! Voc vai atirar nele!"
"No vou."
"Vai sim!" gritou Curry. "No saia!"
Dunphy manteve os olhos em Curry, mas as
palavras foram dirigidas a Clem. "Apenas v l
para fora e veja se a barra est limpa. No vou
feri-lo."
Clementine olhou-o nos olhos. "Promete?"
"Palavra de escoteiro."
Relutante, Clem esgueirou-se porta afora at o
prtico. Quando a porta fechou-se atrs dela,
Dunphy deu um passo na direo de Curry e
depois outro. De repente, as pontas dos ps deles
se tocaram, a Walther na mo de Dunphy, o brao
solto ao longo do corpo.
As costas de Curry ficaram pressionadas contra a
parede, e Dunphy viu que o colarinho da camisa
dele estava encharcado de sangue no lugar onde
ele levara a coronhada.
"Isso uma piada", disse Curry. "Certo?"
Dunphy sacudiu a cabea.
"Nos conhecemos h tempo", protestou Curry.
"Muito tempo."
Um puff baixinho e derrisrio escapou dos lbios
de Dunphy.
"Eu sei o que voc est procurando", insistiu Curry.
"Poderia contar as coisas que voc quer saber."
"Sim, mas voc mentiria", replicou Dunphy. "E, de
qualquer modo, vai haver um monte de tiras por
aqui, portanto, bem, no uma boa hora."
"Mas..." Os olhos de Curry ficaram redondos
quando a boca da Walther pressionou sua rtula.
"Agente firme", disse Dunphy, "vai levar apenas
um segundo".
"Pelo amor de Deus, Jack!"
"Chega de lamria, isso no vai matar voc." E
atirou.
19
20
A viagem de St. Helier para Saint-Malo foi
turbulenta, o mar do Canal coalhado de ondas
espumosas. Sentando em urna mesa do
restaurante da primeira classe, bebendo caf,
Dunphy inspecionou os companheiros de viagem e
indagou qual, se que algum deles, estava
seguindo-o.
Ao deixar o banco, ele quase esperava encontrar
Blmont espera na esquina, mas claro que o
francs no estava por l. Apenas para se
certificar, Dunphy havia pego txis de uma ponta
da ilha at a outra, instruindo os motoristas a
pegar estradas que mais pareciam vias rurais. E,
enquanto os motoristas consideravam-no um
excntrico, ficou evidente, por todos os volteios
que fizeram, que ningum estava na cola deles.
"Obrigado."
"Que nome voc quer?"
"Veroushka Bell."
Ele sorriu e anotou o nome no verso do envelope
contendo as fotos. "Ela russa?"
"No. Apenas romntica."
"Melhor ainda." Ele ergueu os olhos, subitamente
srio. "O passaporte de Veroushka, como o seu,
certo?"
Dunphy assentiu.
" virgem, de uma embaixada. No digo de qual.
Mas jamais foi emitido, ento no tem histrico
problemtico. Pode ir a qualquer lugar, exceto
talvez no ao Canad. Certo?"
"No estamos indo para o Canad."
"Ento no tem problema."
"Faa um favor", pediu Dunphy, conduzindo Max
at a porta. "Pea."
Dunphy foi at a mesa no canto da sala e,
arrancando uma folha do bloco de carta do hotel,
anotou o nmero do quarto em que estava. Por fim
selou a folha dentro de um envelope, endereou-a
para Veroushka e deu a Max. "Certifique-se de que
ela receba isso quando pegar o passaporte."
Ele saiu somente uma vez ao longo dos trs dias
seguintes, para comprar revistas em uma lojinha
na Fraumnterstrasse. No resto do tempo, resistiu
ao resfriado no conforto do quarto de Max no
hotel, sentado na janela acima do rio, ouvindo as
bolinhas duras de neve bater contra o vidro. As
nicas pessoas que viu foram as que arrumaram a
cama, trocaram as toalhas ou entregaram os
O qu?
"Gucci no produz coisas bsicas."
Ele decidiu mudar de assunto. "Voc ficaria
surpresa", disse ele. "E, de qualquer modo, temos
um problema bem maior do que isso que voc
obviamente considera como meu consumismo."
"E o que seria?"
"Fui seguido de Jersey."
Ela no disse nada por um longo instante,
enquanto ele preparava drinques para os dois no
minibar. Finalmente ela perguntou: "Por quem? O
que querem?"
Ele chacoalhou o gelo na bebida dela e a entregou.
Ento sentou na beira da cama e contou sobre
Blmont.
"Ento voc um fraudador!" Mais uma vez os
olhos arregalados, e o olhar atnito.
"O dinheiro no era dele", disse Dunphy. "Ele no
merece."
"Talvez no, mas..."
"E, visto que ele no fez por merec-lo, como eu
poderia roubar dele?" Dunphy usou os dedos para
colocar o verbo entre aspas.
Clementine lanou uma espcie de olhar em
branco. "Belo argumento", disse ela (um tanto
secamente, ele achou). "E o que faremos agora?"
Dunphy caiu de costas na cama, de modo que se
viu fitando o forro esdrxulo do teto. As fronhas
exalaram o odor do lavaroupas. "Eles no
conhecem voc", ele respondeu, tanto para si
quanto para Clementine. "De modo que no
21
Do poro do Zuni Storchem at a escada da
estao de trem mal dava um quilmetro e meio,
mas custou cem libras para Dunphy chegar l. O
turco que dirigia o caminho primeiro ficou
surpreso por encontrar um empresrio americano
no poro do hotel. Mas, ao ver o dinheiro, ficou
mais do que feliz em ajudar Dunphy a fugir do que
este afirmou ser um marido ciumento.
Os trens para Zug partiam ao longo de todo o dia,
e teria sido fcil Dunphy chegar l na hora do
almoo. Mas a ficaria com muitas horas livres
antes de Clem chegar, e Zug no parecia um bom
local para matar tempo. A nica coisa que ele
sabia sobre a cidade era que se tratava do lar do
arquivo mais secreto do mundo, uma fonte de
informaes to importantes - ou to perigosas que no podia ser guardado na Amrica. E, visto
que o arquivo era ao mesmo tempo o ponto focal
de sua investigao e o motivo para ele ser
caado, ficar zanzando por Zug no parecia uma
boa idia.
Melhorar entrar e sair.
Ento, estava em pauta uma viagem de um dia, e
ele sabia exatamente onde queria ir: Einsiedeln.
Para ver a senhora do holograma - la protectrice.
modernos, pelo menos) Nossa Senhora dos SemTeto). De qualquer forma, a Madona Negra.
A cidade em si era uma estao de esqui ou, se
no uma estao exatamente, um lugar onde
algumas pessoas iam esquiar; contudo, no
muitas, ao que parecia. Dunphy passou por dois ou
trs hoteizinhos a caminho do mosteiro, mas havia
apenas uns poucos carros nas ruas e no muitos
pedestres. Ele teve a impresso de que era uma
aldeia pacata e prspera, cujo nico motivo para a
fama era a peculiar esttua em seu seio.
A cerca de seis quarteires da estao de trem,
essa impresso deu lugar ao assombro, quando ele
emergiu da rua elevada em uma praa de vasta
proporo. No centro da praa, a uns cinqenta
metros talvez, havia uma fonte com a gua
congelada. Alm da fonte, situado no topo de uma
vasta extenso de degraus, estava o mosteiro em
si. Ladeado por um cordo de lojas de souvenirs
vendendo quinquilharias e postais, o prdio era to
gracioso quanto volumoso. Ao v-lo pela primeira
vez, Dunphy ficou atnito por causa do tamanho e
tambm
pela
simplicidade
e
falta
de
ornamentao do prdio. Lindo e imensamente
simples ao mesmo tempo, fez Dunphy pensar em
uma Mona Lisa escavada em pedra.
Galgando os degraus um por um, ele virou-se no
topo para ter uma vista da praa, da cidade e das
montanhas adjacentes. Uma brisa suave encheu
seus pulmes com o aroma molhado de neve
derretida, e feno, e estrume. Passando os olhos
pelo livreto, ele viu que o mosteiro havia sido uma
quando
sua suspeita
foi confirmada.
Na
extremidade da praa, uma minivan preta estava
parada no frio com o motor ligado, fiapos de
fumaa saam em espirais do cano de descarga.
Em sua lateral, um timbre peculiar, uma coroa com
uma aurola, ladeada por anjos, e as palavras:
MONARCH ASSURANCE
ZUG
Ele encontrou-se com Clementine (ou Veroushka,
como ela agora preferia ser chamada) no
estacionamento da parada de trem em Zug. Ela
estava dirigindo um Golf Volkswagen alugado e
contou, excitada, que j havia se registrado no
Ochsen Hotel - que era "fabuloso" - e que "dera
um passeio" pela cidade.
"Existem mais empresas registradas em Zug do
que gente!", ela falou, cheia de entusiasmo. "Voc
sabia disso?"
"-r", replicou Dunphy, olhando por cima do
ombro. "E onde fica o hotel?"
"Descendo pela Baarstrasse - que significa Rua da
Cerveja - que onde estamos. E a beira do rio fica
a um pulinho de distncia."
Dunphy ajustou o espelho lateral para ver se ela
fora seguida, mas no conseguiu descobrir. A
Baarstrasse era uma rua movimentada, e havia
montes de carros atrs deles. "Por que haveramos
de querer ir na margem do rio?"
"Porque linda", disse ela, "e porque estou com
fome. E onde ficam os melhores restaurantes."
na
Alpenstrasse."
"Ento uma companhia de seguros."
"No."
"O que ento?"
Dunphy sacudiu a cabea. "No sei ao certo",
respondeu. "Uma espcie de arquivo especial."
"De quem?"
"Da companhia", disse Dunphy.
"Voc se refere..."
" companhia para qual eu trabalhava."
22
Quase uma hora se passou antes do primeiro
arquivo chegar, e quela altura Dunphy estava
praticamente paralisado pela parania. Embora
soubesse que no telefonariam para Matta s duas
da manh, pela primeira vez ocorreu-lhe que o
Arquivo Especial poderia ter uma cpia do
cadastro pessoal de Brading. Afinal de contas,
eram eles que haviam emitido o crach. Se
tivessem uma cpia, ento a mulher com quem ele
havia falado, Hilda, poderia estar desconfiada o
bastante para buscar o cadastro e, nesse caso, no
mesmo instante veria que Dunphy estava se
GABINETE DO DIRETOR/QUARTEL-GENERAL
LANGLEY
PARA CIA/COS/LONDRES
EMBAIXADA AMERICANA ANEXO 1130
DE
PRIORIDADE
APNDICES: NENHUM
ASSUNTO: SCHIDLOF
REFERNCIA: ANDRMEDA
1. ULTRA-SECRETO/TEXTO ULTRA-INTEIRO
2. FONTE
UNILATERALMENTE
CONTROLADA
RELATA CONTATO TELEFNICO COM CIDADO
BRITNICO /SCHIDLOF LEO/ 5 DE SETEMBRO.
CONTATO PESSOAL SUBSEQENTE EM NOVA YORK
7-8
DE SETEMBRO.
3. SCHIDLOF
DECLARA-SE
RESIDENTE
EM
LONDRES.
4. SCHIDLOF EST DE POSSE DE MATERIAL
CONFIDENCIAL ANDRMEDA.
5. QUEM SCHIDLOF?
A resposta foi emitida por Jesse Curry na tarde
seguinte. Desprovida de cabealho, dizia:
SOLICITAO DE VISTO (E DADOS QUEM QUEM)
INDICAM QUE LEO SCHIDLOF UM ANALISTA
JUNGIANO E MEMBRO GRADUADO DO KING'S
de
que
Ezra
talvez
seja
excessivamente franco - de fato, que talvez seja
excessivamente bombstico - para governar nosso
I NTERNACIONAL
12 DE MAIO DE 1942
M EU CARO C ARL ,
Q UANDO VOC LER
12 DE OUTUBRO DE 1946
E EIS QUE TRIUNFAMOS .
E ZRA EST RECOLHIDO
W ASHINGTON , D.C. L ,
NO
ASILO
FEDERAL
EM
NO
S T . E LIZABETH ' S ,
PERMANECER SOB OS CUIDADOS DO DR . W INFRED
O VERHOLSER , QUE UM DOS NOSSOS . E MBORA AINDA
NO TENHA TIDO A OPORTUNIDADE DE VISITAR O
GRANDE HOMEM EM SEU REFGIO PSIQUITRICO , FUI
INFORMADO POR FONTE SEGURA QUE E ZRA RECEBEU
UMA ESPCIE DE SUTE NA QUAL MANTM - SE RODEADO
POR ADMIRADORES DE TODOS OS CANTOS DO GLOBO .
W INNIE GARANTE QUE NENHUM PRIVILGIO FOI NEGADO
A ELE ( E NEM SER ), SALVO A LIBERDADE DE DESLOCAR SE FORA DO LOCAL . S EUS JANTARES SO PREPARADOS
POR FORNECEDORES EXTERNOS , E UM FLUXO DE
VISITANTES
DESLOCA - SE
CONSTANTEMENTE
PELAS
DEPENDNCIAS , TANTO QUE ELE COMEOU A SE QUEIXAR
DE QUE NO TEM TEMPO DE ESCREVER , DE TO
MOVIMENTADA QUE SUA AGENDA . I SSO PELO MENOS
EST MUITO BEM ...
23
Ela estava um minuto atrasada.
Ou ele estava um minuto adiantado. Em todo caso,
Dunphy se viu parado defronte ao caf na
Alpenstrasse, olhando esquerda e direita, como
um veado preparando-se para se atirar em uma
estrada movimenta e atravess-la. A qualquer
segundo, Hilda indagaria o que havia acontecido
com ele. Dieter e Rhinegold comeariam a se
reanimar. O cara que havia achado a carta relataria o que tinha visto. E ento um peloto sairia
do Arquivo Especial em grande agitao,
deslocando-se para o norte, sul, leste e oeste at
encontr-lo.
Onde est ela, afinal?, ele indagou. Pegando o
dinheiro.
Certo. O dinheiro. Dunphy lembrou, e no foi a
primeira vez, que havia realmente um bocado de
"Quo antiga?"
Dunphy sacudiu os ombros. "De acordo com eles,
Francis Bacon foi um de seus membros."
Clementine zombou. "Voc est me
gozando." "No, no estou."
Ela pareceu em dvida. "Bem, isso so
quatrocentos anos."
Dunphy sacudiu a cabea. "Dizem que ele foi um
membro. No dizem que foi o primeiro membro.
Pode ser mais antiga que isso. Talvez muito mais
antiga." Ele olhou pela janela para o que poderia
ser um postal da Swissair: cus azuis e montanhas
acastanhadas, cobertas de neve. Era um belo
mundo a trinta e cinco mil ps de altura.
Mas em terra era perigoso.
Ajustando a inclinao da poltrona, ele recostou-se
e fechou os olhos. grande demais, pensou. O que
quer que seja, grande demais. Jamais sairemos
dessa. Abriu os olhos e olhou pela janela de novo,
pensando: no importa o quanto eu descubra. O
que vou fazer com isso - ir polcia? Ir imprensa?
Vo me trancar em um manicmio.
"Um centavo por seus pensamentos", props
Clem.
Ele estava pensando: Esses caras vo nos matar.
Mas o que disse foi: "Voc est pagando caro
demais."
Clem ergueu seu clice e bebeu, depois colocou-o
na bandejinha sobre o colo. "Voc no me falou
por que estamos indo para Tenerife", disse.
"Tenho um amigo l."
"E?!"
Dunphy remexeu-se na cadeira, embaraado.
"Havia cartas", disse. "E alguns outros arquivos
que no consegui ler mas no importa. Sei do que
se trata."
"Como?"
"Porque entrevistei um cara que figura neles."
"Entrevistou? Quando?"
"H poucas semanas. Ele mora no Kansas."
"E o que ele disse?"
"Disse que passou toda a sua carreira militar, vinte
anos, mutilando gado."
Clem olhou de um jeito esquisito.
"E isso foi s uma parte. Tem coisa ainda mais
estranha. OVNIs e crculos nas lavouras, a
baboseira mais maluca que j se ouviu."
Clementine deu uma risadinha. Nervosa.
"Mas o fato que nada disso tem importncia",
disse Dunphy. "No mesmo. Tudo isso apenas..."
O qu?
Ele tentou achar a palavra certa. "Um show de
luzes."
O olhar intrigado revelou que ela no entendeu.
"Fumaa e espelhos", ele explicou. "Fazem isso
para causar um efeito."
"Quem faz?"
"A Sociedade Madalena."
"Mas pensei que voc tinha dito que o homem que
entrevistou..."
"Era um militar. Era. Mas aquilo era s fachada."
"E o efeito?" ela comeou. "Que tipo de efeito?"
"Psicolgico."
19 Tira-gosto.
P. Guidry
T. Conway
J. Sozio
J. MacLeod
Dr. S. Amirpashaie (operao)
Temperatura: -5o Ventos: sudoeste, 4-10 ns
Visibilidade: 18 quilmetros
Presso baromtrica 30.11 e subindo
Espcime black angus capturado no rancho
pertencente a um certo Jimmy Re, Platte 66,
Loteamento 49, a 16,3 quilmetros a nortenoroeste de Silverton. Anestesia administrada pelo
capito Brown. Extrao do tecido ocular, olhos,
lngua, rgos auditivos internos e externos.
Incises de 6,5 cm realizadas nas regies axilares
inferiores e rgos digestivos removidos. Orifcio
anal extrado, cavidade aspirada com pistola a
vcuo.
rgos
reprodutores
amputados.
Perfuraes de 2,5 cm no trax e peito. Coluna
vertebral secionada em trs partes usando serra a
laser. Animal drenado e devolvido ao pasto.
Nenhum contato com civis.
Havia dzias de relatrios como esse que, quando
lidos ao lado das fotos, se transformavam em algo
nauseante. Quando Clem retornou com um
exemplar de The Independent, Dunphy fechou o
arquivo e deixou-o de lado.
"Leitura feliz?", perguntou ela.
"No", disse Dunphy. " muito medonho."
Estendendo a mo atravs da mesa, ela pegou o
arquivo e comeou a dar uma olhada, demorando-
24
Europa e frica foram sumindo atrs deles
medida que o avio rumava para o alto-mar, sobre
o Atlntico, com Dunphy fitando um mundo de
azul-sobre-azul da janela. H lugares onde voc
pode se perder, pensou ele. Acontece o tempo
todo. Voc se instala em locais onde as pessoas
que esto sua caa no tm influncia. Lugares
como... Kabul. Pyongyang. Bagd.
O problema era que lugares como Kabul no
costumavam oferecer as comodidades que Dunphy
e Clem consideravam elementares. Coisas como...
o sculo XX. Amendoim torrado com mel. Sistema
de gua e esgoto decente. Melhor ento arriscar a
sorte em uma localidade como Tenerife que,
embora remota, tinha amendoim torrado com mel
em quantidade.
Localizada a cerca de cem milhas da ponta mais
ao sul do Marrocos, Tenerife a maior ilha do
arquiplago das Canrias. Famosa por sua
paisagem espetacular e diversificada (que vai de
praias banhadas de sol mais alta montanha "da
Espanha"), a ilha tinha m-fama por causa de seus
resorts tursticos desleixados e pela vida noturna
decadente que em geral comeava logo aps o
N.
Por um momento, Dunphy nutrira a possibilidade
de que tivesse enxotado-os de alguma maneira.
Mas qual era a probabilidade disso? O Loiro no
parecera realmente apavorado - mais incomodado
do que qualquer coisa. Desse modo...
Deveriam ter ligado antes de Madri. Tinham
algum espera deles no aeroporto. O que
significava...
Com um esgar, Dunphy puxou as cortinas e
verificou as fechaduras das portas envidraadas
duplas que conduziam ao jardim. As fechaduras
no eram grande coisa. Um bom pontap faria
com que se abrissem voando pelos ares.
Voltando para a sala de estar, pegou a novemilmetros que Boylan havia dado e enfiou-a no
bolso. Clem ainda estava se movimentando ao
som da msica.
"Jack?" ela chamou.
Sim.
"Vamos ficar bem, no vamos?"
Tommy apareceu de manh, pouco depois das
dez. Visto que no havia nada para comer na casa
de Slade, saram para buscar meias-luas no
mercado local, depois foram para las Amricas de
carro.
"Bem que poderamos ir ao Tiller", sugeriu Tommy.
"O caf de Boylan to bom quanto qualquer um
e duas vezes mais forte."
Deixaram o Deux Chevaux vermelho de Tommy
em um estacionamento perto do Cinema Dumas e
desceram a colina at o Broken Tiller a p. O
"Por um pervertido."
O que quer que Tommy tenha dito em resposta
escapou a Dunphy quando ele apertou o boto de
Play, e as pequenas bobinas comearam a girar.
- Amarelo queimado.
Amarelo queimado?
Sim.
Bem, se voc acha, mas... no acha que um
pouco...
O qu?
Amarelo?
Sabia que voc iria dizer isso! Mas no, no acho.
Acho que vai ficar maravilhoso com o kirman.
Oh, certo! Voc tem o kirman!
Levou um tempinho para Dunphy identificar as
vozes, e mais um pouco para adivinhar sobre o
que estavam falando - no caso, de uma cadeira
que Schidlof havia mandado forrar.
A segunda conversa era relativamente clara:
Schidlof marcando uma consulta mdica para o
que suspeitava que fosse bursite. Ento o caf de
Dunphy apareceu, de repente e vindo do nada.
Curvado
sobre
o
toca-fitas,
escutando
atentamente pelos fones de ouvido, ele no tinha
ouvido Miguel se aproximar.
"Obrigado", disse ele, um pouco alto demais. E
tomou um gole. Uau!
A terceira e quarta ligaes eram de estudantes
perguntando se Schidlof poderia remarcar seus
encontros com eles. A quinta ligao foi feita por
Schidlof, e era internacional. Dunphy contou
25
Ele estava mal do estmago. Mal da cabea. Mal
de tudo. Sua coluna lombar parecia quebrada e as
costelas estavam estilhaadas.
Estava sentado em algum lugar, os olhos nos
joelhos, com medo de olhar para cima. Com medo
quase de respirar. E ento uma onda de tontura e
nusea tomou conta dele e causou nsia de
vmito, uma golfada seca. O mundo deslizou para
dentro de sua viso.
Estava em uma oficina de algum tipo. Luzes
fluorescentes bruxuleavam e zumbiam, e um
cheiro pungente e desagradvel enchia o ar. Tinta
para madeira. A cabea dele martelava como se a
estivessem espremendo e soltando, espremendo e
soltando. Quase contra vontade, ele ergueu os
olhos e viu mveis. Montes deles. E peas de
tecido. Arames e molas. Uma loja de estofados. E
ento, lentamente, e de incio parecendo vir de
muito longe, um som de palmas encheu a sala.
Dunphy virou-se na direo dele.
Roger Blmont estava sentado em uma poltrona
verde estofada, aplaudindo to lentamente que
cada palma comeava a se desfazer antes que a
sucessora cortasse o ar. Estava sorrindo e, como
sempre, impecavelmente vestido. Relgio Breitling
e sapatos Cole-Haans, calas de vinco afiado e...
camisa azul-cobalto.
"Certo. Fui at eles - duzentas pratas a hora, e adivinhe? Disseram que era s eu. Ningum mais
estava reclamando. Ningum mais foi lesado.
Agora, por que isso?"
"Peguei s o que eu precisava" respondeu Dunphy.
"Voc precisava de meio milho?"
"Sim. Precisava."
Blmont sustentou o olhar por um instante, em
seguida sacudiu a cabea, como que para
desanuvi-la. "Certo, voc precisava de um monte
de grana. Por que eu?"
"Porque..." Voc um porco, pensou Dunphy. "O
dinheiro estava l", disse ele. "Estava na conta.
Era fcil, s isso."
"Voc quer dizer que parecia fcil", disse Blmont,
e Dunphy concordou. "E agora, de quem voc est
fugindo, quando no est fugindo de mim?"
Dunphy sacudiu a cabea.
"No da polcia", refletiu Blmont. "No em
Londres, em todo caso. De quem ento?"
"Qual a diferena? Isso no sobre mim. sobre
o dinheiro que eu peguei."
"No. No s sobre o dinheiro", retrucou
Blmont.
Dunphy lanou um olhar desconfiado.
" sobre amizade", insistiu o corso, a voz enfeitada
com
falsa
sinceridade
suficiente
para
o
lanamento de uma campanha de telemarketing
da Hezbollah.
Dunphy quase riu. "Voc to imbecil!" comeou.
Blmont atingiu-o com uma fora que Dunphy
jamais havia experimentado na vida, um murro
espera.
"Enforcamento
seria
interessante", disse ele, a seguir parou e largou o
fio. "Por outro lado..." O corso pegou um pedao de
cano de uma polegada que parecia ter um metro
de comprimento. Dunphy calculou que o
espancariam at a morte com aquilo, at ver que o
26
Ele queria ficar ali, ali no cho, at curar-se ou
morrer. Parecia que Dunphy estava quebrado por
dentro e por fora e que a nica coisa que poderia
fazer em segurana era permanecer ali. Mas pouco
depois seus olhos recaram sobre a bandeira de
27
Passaram o entardecer no trem, viajando no
Eurostar, saindo da estao de Waterloo rumo
Gare du Nord. Chegaram um pouco depois das
nove da noite, pegaram um txi para o Quartier
Latin, depois caminharam uns poucos quarteires
at a lie St. Louis. Ali encontraram um hotelzinho
elegante no Quai de Bethune. O funcionrio das
reservas lanou um olhar ctico sobre Dunphy,
cujo nariz quebrado sugeria encrenca, mas ficou
to encantado com Clem quanto estava
desconfiado do namorado dela. Apesar dos
resmungos e sussurros da gerente, uma mulher
emaciada cujas bochechas pintadas fizeram
Dunphy lembrar de circo, acharam uma sute para
eles no terceiro andar.
E por que no? Custava quinhentos dlares.
"Vamos ficar com ela", disse Dunphy, pagando
adiantado, e em dinheiro.
Era uma sute surpreendentemente ampla para
Paris, com paredes de cor ocre, tapetes berberes e
fotografias em preto-e-branco de msicos de jazz
nas paredes. Clem foi tratar de seu banho e
Dunphy ficou de p diante das janelas abertas,
bebericando uma garrafa de 33, fitando a Margem
Esquerda do outro lado do Sena. Ele teve a
impresso de estar na mesma altura que a metade
dos telhados de Paris.
28
Acharam um txi a poucos quarteires de
distncia e foram com ele at Saint-Clothilde,
porque foi primeiro lugar que ocorreu a Dunphy e
porque no ficava perto do hotel deles. Sem nem
olhar direito para as torres pontudas da igreja,
seguiram para o metr a poucos quarteires dali e
mergulharam em seu interior. Meia hora depois,
29
Voc f do Eagles?", perguntou Dunphy.
"Apenas de uma cano", respondeu Gomelez,
borrifando uma orqudea. "Faz muito sentido para
mim."
Estavam parados na estufa da villa, replantando e
adubando as orqudeas Dendrobium do velho. As
35 "Voc pode fazer o check out a hora que quiser, mas ver que difcil ir
embora. Trecho da cano Hotel Califrnia, do Eagles. (N. da T.)
" 'O reino dele vem e vai' ", recitou Dunphy, "
'depois vem de novo...' " Ele no conseguiu
lembrar o resto, mas Gomelez o conhecia como a
palma de sua mo.
" 'Depois vem de novo, quando, ferido na essncia,
ele o ltimo, ainda que no o ltimo, blasonado e
sozinho. Essas muitas terras ento sero uma e ele
seu rei at que, falecido, ele gere filhos para
sempre, ainda que mortalmente imvel e
celibatrio.' Voc conhece o Apcrifo?"
Dunphy assentiu. "Eu o vi. Mas me parece que ele
se perde no ltimo trecho."
"Como assim?"
"A parte sobre ter filhos e ser celibatrio. Como se
pretende que isso seja levado a cabo?"
Gomelez ficou carrancudo. "Essa a parte fcil",
disse ele. Como?
"Doei uma amostra de esperma para o Instituto de
Eugenia em Ksnacht. Isso foi h sessenta anos.
preservado criognicamente."
"Tem certeza?"
Gomelez sorriu. "Acredite em mim. Eles nunca
jogam nada fora."
"Ento por que precisam de voc? A sociedade,
quero dizer. Por que no podem simplesmente..."
"A profecia explcita. O reino s pode ser
restaurado por um descendente da linhagem que
seja ferido e blasonado."
"Blasonado?", perguntou Clem.
Gomelez remexeu-se na cadeira. "Tenho uma
marca de nascena no peito", explicou. "Mas isso
"O qu?!"
"Eu disse que no estaremos em nenhum pas da
terra."
Eram duas da manh quando o velho foi at o
quarto deles, escoltado pelos cachorros. "Hora de
partir", sussurrou.
Seguiram juntos para o saguo e desceram a
escada em espiral at a biblioteca. Virando
esquerda na seo judaica, entraram na salinha
onde Gomelez monitorava os sinais do espao
sideral. Acendendo a lmpada, ele foi at a mesa,
desligou a impressora, mexeu em uma srie de
interruptores e girou lentamente uma srie de
botes do analisador de espectro. Diante dele, a
luz verde de um osciloscpio comeou a tremer e
oscilar.
"O que voc est procurando?" perguntou Dunphy.
"A freqncia e amplitude do bracelete", disse ele.
"Acho que em torno de oitocentos e cinqenta
kilohertz, mas eles a trocam seguidamente, e
seria, bem, seria mortal se eu errasse."
Dunphy e Clem observaram enquanto o velho
sintonizava o espectro. Muitas vezes o osciloscpio
dava um salto e Dunphy pensava: essa! Mas no
era.
"H uma estao de rdio pirata em Zuoz" disse
Gomelez, "e os patrulheiros tambm tm rdios.
Tem uns radioamadores na rea e algumas
instalaes militares. Aqui! essa! Peguei."
Retirando um bloquinho de notas da primeira
gaveta da escrivaninha, conferiu a freqncia ali
anotada com a leitura digital da mquina. " a