A Pequena Dorrit - Charles Dickens
A Pequena Dorrit - Charles Dickens
A Pequena Dorrit - Charles Dickens
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro e
poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."
A PEQUENA DORRIT
Charles Dickens
Sumrio
Ah, Senhor Arthur, at que enfim - exclamou sem a mnima emoo. - Entre.
Arthur fechou a porta. O velho examinou-o luz da vela.
Est mais robusto do que antigamente, mas nunca se poder comparar ao seu
pai ou sua me.
Como vai a minha me?
Mantm-se no quarto, mesmo quando no faz tenes de se deitar: em quinze
anos, no chegaram a quinze as vezes que saiu.
Penetraram numa fria e tristonha sala de jantar.
Acho que ela no vai gostar que o senhor tenha viajado no Dia do Senhor continuou o velho com frieza -, mas, enfim, isso consigo! Vou anunciar a sua chegada.
Afastou-se, levando a vela, andando de lado como um caranguejo e de cabea
baixa, vestido de negro e de polainas compridas.
Como sou sentimental! - pensou Arthur que sentiu as lgrimas assomarem-lhe
aos olhos perante um acolhimento to glido. Fora ali que passara a infncia, silencioso e
aterrorizado, na companhia de uns pais que nunca se haviam entendido e que se evitavam
o mais possvel.
O velho voltou depressa, iluminou-lhe as escadas sombrias e abriu a porta de um
quarto imerso de escurido. Na penumbra da lareira, sentada num sof negro como um
atade, amparada por um grande almofado negro lembrando um cepo, encontrava-se a
me de Arthur, que envergava o seu vestido negro de viva. Deu-lhe um glido beijo e
mandou-o sentar-se do outro lado da mesinha. Quinze anos se haviam passado e via-se o
mesmo fogo, as mesmas cinzas e o mesmo cheiro a tinta negra pairava no quarto mal
arejado daquela mulher, agora enferma.
Minha me, que mudada est, a senhora, que era to ativa!
Para mim, o Universo reduziu-se a este quarto - replicou ela. - Graas a Deus
sempre desprezei as vaidades mundanas.
Aquela presena, aquela voz severa, faziam Arthur sentir o seu medo e timidez de
rapazinho.
Reumatismo ou doena nervosa, pouco importa - prosseguiu ela -, o facto que
as minhas pernas ficaram paralticas. J no saio do meu quarto. No saio desde. desde
quando - exclamou por cima do ombro.
Vai fazer doze anos no Natal - respondeu uma voz alquebrada, vinda da
escurido. - voc, Affery - perguntou Arthur, levantando a cabea.
A voz trmula respondeu que sim, que efetivamente era Affery, e uma velha
surgiu por um momento luz bruxuleante da lareira, antes de mergulhar de novo na
escurido.
Contudo, posso ainda ocupar-me dos nossos interesses!-prosseguiu a senhora
Clennam, apontando para uma cadeira de rodas, que se encontrava junto de uma grande
escrivaninha -, e dou graas Providncia por esta merc. Mas, para um domingo, j se
falou demasiado em negcios.
Na mesinha achavam-se alguns livros, o seu leno, as lunetas, assim como um
relgio antigo, que me e filho fitaram ao mesmo tempo.
Vejo, minha me, que recebeu a encomenda que lhe mandei depois da morte do
meu pai. Este relgio foi a sua maior preocupao e era seu desejo que eu o fizesse
chegar-lhe s mos.
Guardo-o como uma recordao do seu pai.
hora da morte, s exprimia este desejo: quase sem foras para o agarrar,
murmurou com dificuldade: "Para a tua me". E julguei que estava ainda a delirar, porque o
vi tentar abrir a caixa.
E no delirava?
No, estava perfeitamente lcido. Aps a sua morte, eu prprio abri o relgio,
pensando encontrar no interior qualquer recordao, mas s continha a tampa, de seda
bordada a prolas, que a senhora decerto viu.
A senhora Clennam abanou a cabea e repetiu:
Para um domingo, j falmos demasiado em negcios.
Depois, chamou:
Affery, so nove horas!
A velha voltou a aparecer e retirou a mesa, trazendo em seguida um tabuleiro com
biscoitos e manteiga, e, quase imediatamente, apareceu o velho, trazendo uma garrafa de
vinho do Porto, limo e especiarias, com os quais preparou um grogue quente e perfumado.
A doente, depois de acabar a sua merenda, ps as lunetas e, lendo em voz aterradora por
um dos livros, orou pela destruio de todos os seus inimigos. Depois estendeu a mo ao
filho:
Boa noite, Arthur. A Affery vai tratar de si. Cuidado com a minha mo, ela
sensvel.
Ele tocou-lhe ao de leve na mo: a me no poria entre os dois maior distncia se
vestisse uma couraa. E seguiu os dois criados pelas escadas.
Affery, quando voltaram, os dois, sala de jantar, perguntou-lhe se queria cear.
No, Affery, j comi.
Ento beba qualquer coisa, um clice de vinho do Porto.
Tambm recusou.
nessa noite, porm, teve um sonho bastante estranho e, sobretudo, muito real. To ntido
que se parecia mais com a realidade do que com um sonho.
O quarto de dormir do casal Flintwitch situava-se muito prximo dos aposentos da
senhora Clennam. Para se ter acesso a estes ltimos, desciam-se dois ou trs degraus do
outro lado da escada, de modo que Affery s tinha que dar alguns passos, quando a
senhora Clennam chamava por ela. Sendo assim, depois de ter cuidado da patroa, foi,
como de costume, deitar-se, enquanto o marido, coisa curiosa, no fora ainda para o
quarto conjugal.
Algumas horas mais tarde, a meio da noite, pareceu-lhe que acordava e que
verificava encontrar-se a cama sempre vazia. No seu sonho levantou-se, ento, espantada,
e desceu as escadas, tendo s apalpadelas chegado ao vestbulo, mergulhado na escurido,
avistou luz pela frincha da porta de um pequeno quarto que nunca era aberto e aproximouse, descala, em bicos de ps; a cena que julgou ver era to surpreendente, que ficou ali
especada, sentindo-se sufocar: havia dois Jeremy Flintwitch, sentados um em frente do
outro, o primeiro completamente desperto e olhando encolerizado para o segundo, que
ressonava numa cadeira. O Jeremy acordado, em quem imediatamente reconheceu o
marido, tal era o seu mau-humor, pegou nas tenazes que estavam na lareira e desferiu
uma pancada feroz no estmago do outro.
O que isto? O que se passa? Onde estou? - gritou o segundo Jeremy, em
sobressalto.
O companheiro fez-lhe um gesto ameaador, para o obrigar a calar-se.
H duas horas que dormes! Pega na tua capa, no teu chapu, no teu cofre e pete a mexer!
Mais um copinho de vinho do Porto antes de me ir - gemeu o ssia,
espreguiando-se -, tu prometeste, no te esqueas!
Toma, bebe-o depressa e oxal que sufoques!
tua!
O ssia esvaziou o copo com ar satisfeito e acabou de se vestir. Depois, pegou
numa caixa de ferro que se achava sobre a mesa e colocou-a debaixo do brao. Jeremy
observava o seu duplo com inquietao: certificou-se de que ele se aguentava de p, que
segurava firmemente no cofre e recomendou-lhe que o vigiasse com mais cuidado, at, do
que a sua prpria vida. Depois, dirigiu-se cautelosamente para a porta, a fim de lha abrir.
Affery, que previra este gesto, encontrava- se j nas escadas, entrevendo, pela fresta do
batente, o cu pontilhado de estrelas.
Foi ento que o sonho se tornou verdadeiramente muito bizarro: Affery teve tanto
medo de Jeremy, que lhe faltaram as foras para voltar ao quarto e ali ficou, como que
pregada ao cho, at que o marido, que subia, segurando uma vela, deu pela sua presena.
Olhou-a fixamente, sem dizer palavra, e continuou a avanar; ela, como que hipnotizada,
ps-se ento a recuar lentamente. E foi assim que, um a recuar e outro a avanar,
chegaram ao quarto. Logo que fechou a porta, Jeremy pegou na mulher pelo pescoo e
ps-se a aban-la com tanta violncia, que ela ficou arroxeada:
Ora bem, Affery, mulher - gritou o senhor Flintwitch. - Em que ests tu a
sonhar? Acorda, acorda! Deste agora em sonmbula? Adormeci l em baixo e, em pleno
pesadelo, venho dar contigo acordada! Affery, mulher - acrescentou com um esgar -, se
volto a encontrar- te a sonhar desta maneira, isso quer dizer que precisas de um bom
remdio E nem imaginas a dose que apanharias, minha velha, nem imaginas.
Na manh de segunda-feira, quando os campanrios da City deram as nove horas,
Jeremy fez rolar a poltrona da senhora Clennam para junto da grande escrivaninha e deixou
passar Arthur, que entrava.
Sente-se melhor esta manh, minha me?
Nunca mais me sentirei melhor - retorquiu ela com uma certa satisfao
amarga-, mas sei-o e suporto o meu destino.
De rosto sereno e impenetrvel, arrumou alguns papis.
Posso-lhe falar dos nossos negcios, minha me, sente-se com disposio para
isso? - perguntou Arthur.
Se me sinto com disposio - exclamou ela. - H mais de um ano que o seu pai
faleceu e, a partir dessa altura, fiquei ao seu dispor, aguardando a sua vontade!
Antes de poder deixar a China, tive muitos problemas a resolver; e depois viajei
um pouco, para repousar e descontrair-me.
Repousar e descontrair-se! - a me virou-se para ele como se no tivesse
compreendido, pois relanceou o quarto onde estava encerrada com ar escandalizado.
Alm disso, minha me, como a senhora era a nica testamenteira e como
dirigia a empresa, s me restava aguardar que tudo ficasse resolvido de acordo com os
seus desejos.
As contas esto feitas e todos os recibos verificados. Pode examin-los quando
quiser - respondeu ela.
intil; visto ter sido a senhora a resolver tudo. Posso continuar, minha me! A
senhora sabe que, de h alguns anos para c, o nosso negcio entrou em declnio. h
quarenta anos, esta casa fervilhava de atividade e, hoje, no nada. Fazemos as nossas
expedies por intermdio de outros e.
Julgo adivinhar o que vai dizer - interrompeu ela. - Deus me livre de me queixar
das amargas provaes que Ele me envia. Mereci-as, porque pequei, e aceito-as.
Como compreendeu, minha me, decidi retirar-me dos negcios. No tentarei
convenc-la a fazer o mesmo, seria tempo perdido, receio eu. Tentarei simplesmente
obter a sua indulgncia, caso tenha exercido sobre a senhora alguma influncia, por
mnima que seja; minha me, durante quarenta anos curvei-me sua vontade e s regras
que me imps. Isso sem qualquer proveito ou prazer; mas curvei- me, lembre- se disso!
Desgraado daquele que tivesse procurado clemncia no olhar inexorvel daquela
mulher Como lhe era necessria, a sua. religio de tristeza e de trevas, quebradas por
acessos de maldio, de vingana e de destruio!
Acabou, Arthur, ou tem ainda algo a acrescentar?
H ainda outra coisa, minha me: algo que h meses me persegue dia e noite e
cuja aluso me ainda mais penosa visto dizer respeito a todos ns.
A todos ns Ento, a quem?
senhora, a mim, ao meu falecido pai. Conheceu-o muito melhor do que eu; a
senhora era, mais enrgica e dominava-o; foi a senhora quem decidiu mand-lo para a
China dirigir os nossos negcios e manter-me aqui at aos vinte anos, antes de me deixar
ir ter com ele.
Ora bem! V direito ao assunto!
Ele baixou a voz e continuou, muito perturbado:
Queria perguntar-lhe se alguma vez suspeitou. A esta palavra, ela virou-se para
o filho e franziu os sobrolhos. Suspeitou de que o meu pai teria sido torturado por
algum secreto remorso?
No compreendo. Que mistrios.
No teria causado a algum qualquer dano que no teve possibilidade de reparar?
Ela olhou-o com clera, mas sem responder.
Se esta idia nunca lhe ocorreu, o que eu disse deve parecer-lhe medonho. Mas
tal suspeita obceca-me. Eu estava l, compreende, e li-lhe no rosto, quando me confiou o
relgio que lhe enviava como recordao, que tentara, em vo, escrever algumas palavras
para si! Em nome do cu, a senhora, que h quarenta anos conhece todos os nossos
assuntos, ajude-me a desvendar este mistrio!
Ela mantinha-se sempre silenciosa e recuou lentamente para o fundo da cadeira,
qual sombra feroz.
Se preciso reparar ou restituir, faamo-lo depressa! E para isso utilizaremos o
dinheiro que me cabe e do qual no disporei se no me pertencer com plena justia!
Junto da escrivaninha pendia o cordo de uma sineta; bruscamente, fez rolar a
poltrona para trs e puxou-o com violncia. Uma jovem acorreu imediatamente, muito
assustada.
Chame o Flintwitch!
Um instante mais tarde, aparecia o velho:
Com que ento, j a discutirem um com o outro!
Flintwitch, olhe para o meu filho! Mal entrou em casa ei-lo a difamar a memria
do pai em presena da me! Pede- me que lhe devasse o passado, receando que os bens
terrenos, que com tanto esforo adquirimos, sejam produto da desonestidade e perguntame a quem ser necessrio restitu-los! Viaja, diverte-se e depois atreve-se a falar de
reparao! Ser que h quinze anos no pago j pelos meus pecados! Se volta a falar
disso, Arthur, reneg-lo-ei, expuls-lo-ei para sempre da minha presena E se, apesar de
tudo, ousasse voltar, quando eu me sentisse a morrer, o meu corpo, sua aproximao,
sangraria.
Calou-se, em parte acalmada por estas palavras profticas.
Visto que me mandou chamar, poderei, porventura, saber a razo de tudo isto? perguntou Jeremy.
Pergunte minha me: o que eu disse dirigia-se exclusivamente a ela.
Oh! Oh! Muito bem! Se bem estou a compreender, o Arthur suspeitou do pai,
no verdade?
Basta, no falemos mais disso - atalhou a senhora Clennam.
Sim, sim, mas s mais uma coisa - insistiu o velho - disse-lhe que no havia
razo para suspeitar do pai?
Digo-lho agora.
Ah, agora Bom. E eu repito-lhe, Arthur, para que fique bem claro, no tem
qualquer fundamento suspeitar do seu pai. Bom. Tambm j o informou da sua deciso
quanto empresa?
Ele abandona os negcios.
A favor de.
De minha me, evidentemente concluiu Arthur.
Nesta desiluso que sofri, o meu nico consolo - replicou a senhora Clennam,
aps uma breve pausa - ser recompensar um velho servidor. O comandante abandona o
navio, Jeremy, mas continuaremos os dois, ou afundar-nos-emos com ele.
Jeremy agradeceu e asseverou-lhe a sua eterna dedicao, depois olhou para o
relgio e tocou a sineta.
Onze horas. Hora das suas ostras. Mas a senhora Clennam recusou-se a tocar
naquele prato, todavia muito apetitoso, acrescentando sem dvida este sacrifcio ao seu
Captulo II - A PENITENCIRIA
Nessa poca, elevava-se junto da Igreja de So Jorge, no bairro de Southwark, a
Penitenciria. Era um edifcio retangular, que lembrava uma caserna, dividida em cubculos
miserveis e cercada por um ptio estreito e empedrado, rodeado por altos muros
eriados de pontas de ferro. Nela eram encerrados os que na altura no tinham condies
para liquidar as suas dvidas a credores impacientes. vinham, com freqncia,
acompanhados da famlia, instalar-se por algumas semanas naqueles cubculos exguos.
Um dia, muito tempo antes do incio da nossa narrativa, um cavalheiro de certa
idade, de ar muito amvel e desamparado, para l foi conduzido. Ao carcereiro que fechava
o porto de ferro declarou que decerto sairia dentro de um dia ou dois - o que toda a
gente pensa! Murmurara o carcereiro -, e que era at desnecessrio desfazer as malas. A
grande preocupao daquele homem tmido era a esposa:
Que pensa o senhor, ficar ela muito impressionada quando amanh me vier
esperar porta da priso? - perguntou ao carcereiro.
Este respondeu que, geralmente, tal no acontecia, mas que dependia do
temperamento das mulheres.
Ela muito delicada e inexperiente.
Nesse caso, evidentemente.
Est to pouco habituada a sair sozinha que pergunto a mim mesmo se
conseguir encontrar o caminho para aqui.
Talvez apanhe um fiacre - sugeriu o carcereiro.
Assim o espero. Mas quem sabe, hum, se isso no lhe ocorrer Diga-me,
receio... espero que no lhe seja proibido trazer os filhos, no verdade?
Os filhos - retorquiu o carcereiro. - Proibido! Santo Deus, o ptio est cheio de
midos! Parecem formigas Quantos tem?
Dois - balbuciou o prisioneiro, entrando no ptio.
O carcereiro seguiu-o com os olhos.
O senhor tambm uma criana, o que faz trs. E a sua mulher tambm,
aposto, o que faz quatro. E decerto que vem um a caminho, o que faz quatro e meio. E o
mais fraco de todos no o que 't p'ra vir. - pensou.
A famlia instalou-se no dia seguinte, convencida de que ficaria apenas por alguns
dias. Mas os negcios daquele devedor estavam to enredados - ele prprio no percebia
nada daquilo - que os guarda-livros e os conselheiros, que tentaram pr o assunto em
ordem, se viram por fim obrigados a desistir, em face da inexplicvel confuso dos papis.
Sair? - comentava o carcereiro. - Aquele nunca mais sair!
Como previra, cinco ou seis meses mais tarde, o endividado apareceu, uma manh,
esbaforido, pedindo que lhe fosse buscar um mdico: a mulher estava prestes a dar luz.
De forma que o terceiro filho nasceu na priso: era uma pequenita frgil, de quem, em
breve, todos os prisioneiros muito se orgulhavam e que ficou a ser chamada o Beb da
Penitenciria.
E, gradualmente, o cavalheiro foi-se habituando quela vida de recluso. comeou
mesmo a descobrir nela uma certa segurana: sentia-se ali protegido das desgraas que
era incapaz de enfrentar. A famlia encontrava-se agora instalada, os filhos mais velhos
brincavam no ptio e toda a gente conhecia o beb. o prprio prisioneiro admirava o
recluso.
E - Que homem distinto - dizia para consigo -, um autntico cavalheiro, que sabe
tocar piano, que fala francs e at italiano!
Quando a recm-nascida completou oito anos, a mulher do endividado, cuja sade
era frgil, faleceu. O marido encerrou-se no cubculo, saindo de l quinze dias mais tarde,
de cabelos grisalhos e, depois, a vida retomou o seu curso normal: as crianas
continuaram, como antes, a brincar no ptio, vestidas de preto.
O tempo passou. Bob, o carcereiro, envelhecia e a sade declinava.
Eu e o senhor - disse, numa noite de Inverno, ao devedor - somos os
pensionistas mais idosos daqui. Como todos estimam o senhor, gostaria que passasse a
ser o Pai da Penitenciria!
O senhor Dorrit acedeu e a tradio prosseguiu, de gerao em gerao de
prisioneiros - quer dizer, de trs em trs meses -, porque o idoso senhor de modos
afveis e cabelos brancos era o Pai da Penitenciria. Todos os recm- chegados lhe eram
apresentados, cerimnia que ele levava muito a srio recebia-os no seu quarto, com uma
certa condescendncia de homem a quem o destino oprimiu, dizendo:
Bem-vindo Penitenciria! Sim, sou o Pai da Penitenciria, tiveram a bondade de
me conceder esse ttulo!
Tornou-se habitual receber sub-repticiamente algumas boas moedas, com os
cumprimentos de um pensionista, daqueles que se iam embora. Recebia estas ofertas
como os tributos de admiradores a uma personagem oficial e acostumou-se, com toda a
naturalidade, ao que passou a ser uma espcie de mendicidade.
Tambm Amy, a menina que nascera na priso foi transmitida de gerao em
gerao, quer dizer, de braos em braos. O carcereiro Bob, o seu padrinho, afeioou- selhe bastante, reservando-lhe uma boa lareira no cubculo e respondendo s suas perguntas.
Ela depressa compreendeu que nem toda a gente tinha o hbito de viver encurralada em
Faam como quiserem, minhas queridas, saiam vontade, tm razo, isto aqui
no nada alegre! - dizia-lhes, fingido que nem por um instante lhe ocorria que pudessem
sair para trabalhar.
Para o Beb da Priso, o mais difcil foi persuadir o irmo a trabalhar: deambulava
pela priso, fazia pequenos recados para os pensionistas e andava com rapazes pouco
recomendveis. Feliz com a sua sorte, teria, na verdade, continuado a viver assim at aos
oitenta anos! Amy, ajudada pelo padrinho, o carcereiro Bob, arranjou para ele um emprego
num notrio. Mas, ao fim de seis meses, Tip voltou, de mos nos bolsos, anunciando que
se fartara e desistira do emprego. Tip cansava-se de tudo: de cada vez que arranjava
trabalho - e arranjou muitos! - voltava, invariavelmente, algum tempo depois, declarando
que estava farto e que desistira de tudo. E voltava Penitenciria para retomar a sua vida
de moo de recados, como se a priso exercesse nele um fascnio irresistvel. Um dia,
contudo, anunciou que descobrira uma coisa ao seu jeito e, durante vrios meses, ningum
soube nada dele. Vrios boatos ambguos correram a seu respeito, mas a pequena Amy de
nada soube. Quando ele voltou, foi declarar tranquilamente irm que contrara algumas
dvidas, que voltava para a Penitenciria como recluso. Espantou-se por a ver desmaiar!
Tal era a vida e a histria do Beb da Penitenciria aos vinte e dois anos de idade.
A despeito dos laos que a prendiam casa natal, compreendera que melhor seria
esconder a toda a gente o lugar onde passara a existncia. E tal segredo aumentava ainda
mais a sua natural timidez.
Tal era a existncia da Pequena Dorrit, que voltava, agora, para casa, numa triste
noite de Setembro, observada distncia por Arthur Clennam. Avanava, como uma
sombra minscula, pelas ruas buliosas e bruscamente desapareceu pela porta da
Penitenciria.
Na rua, Arthur Clennam parara, aguardando que passasse algum transeunte, a fim
de lhe perguntar que lugar era aquele, quando surgiu um velho, que descreveu uma curva e
passou pelo alpendre. Avanava todo curvado, as costas abauladas e com ar preocupado.
Envergando um velho capote coado, que lhe caa at aos calcanhares, tendo a cobrir-lhe
os cabelos grisalhos e eriados um velho chapu ensebado e esburacado, segurava debaixo
do brao um estojo mole, que devia conter qualquer instrumento para venda e segurava
um mao de rap, de um penny, com o qual reconfortava o pobre nariz azulado.
Arthur bateu-lhe ao de leve no ombro, interpelando-o, e o velho virou- se, piscando
os olhos, como se tivesse percebido mal:
Hem, que diz?
Por favor, meu amigo, pode-me dizer que local este?
No, ela no sabe onde vivo. No anncio, indiquei a morada de um amigo do meu
pai e foi assim que a senhora Clennam me descobriu e contratou.
A situao daquela criana impressionava-o tanto que se afastou a contragosto;
todavia, ao chegar ao porto, ele deparou-se-lhe fechado. Uma voz trocista ressoou atrs
de si:
Ento, apanhado na armadilha - perguntou Tip, o prisioneiro. - Ande, venha,
vamos procurar um stio onde pernoitar.
Mais tarde, acomodado numa tarimba, envolto nas trevas da Penitenciria, Arthur
cismava:
Quem sabe, quem sabe se razes misteriosas no levaram a minha me a
interessar-se por esta garota!
E a suspeita, que o perseguiu, voltou a perpassar-lhe inexplicavelmente o esprito.
No dia seguinte, quando acordou, espessas nuvens corriam pelo limitado cu que se
lobrigava da priso e a chuva fustigava os detritos e a poeira do ptio. Foi com alvio que
abandonou aquele antro de misria, depois de ter encarregado um moo de recados de
prevenir a Pequena Dorrit de que estaria sua espera em casa de Frederick, tio dela.
A casa do velho era pobre e respirava-se ali um ar doentio, trapos a secar pendiam
das guas-furtadas. Arthur encontrou Frederick na sua mansarda, bebendo o seu caf
numa mesa desengonada, enquanto Fanny se acabava de vestir no cubculo ao lado. Logo
que Amy chegou, um pouco mais tarde, Arthur ofereceu-se para a acompanhar durante
parte do trajeto. Ela aquiesceu, dando mostras de certo embarao, e aceitou o brao que
ele lhe estendia.
Partiram, assim, em direo Ponte de Ferro depois de percorrerem as artrias
buliosas, aquele lugar, de to calmo, parecia-lhes que se encontravam em pleno campo.
As rajadas de vento eram fortes e hmidas no cu, as nuvens, o fumo e o nevoeiro
perseguiam-se com fria, enquanto as ondas sombrias do rio se encapelavam. A Pequena
Dorrit parecia a mais pequena, a mais agradvel e a mais frgil das criaturas de Nosso
Senhor!
Ontem noite falou-me com tanta gentileza, senhor Clennam, que gostaria de
lhe agradecer. E tambm desejaria muito dizer-lhe que, - hesitou e estremeceu, de olhos
marejados de lgrimas - que. preciso no julgar mal o meu pai. Encontra-se h tanto
tempo recluso ali. A priso modificou-o e, precisamos de o compreender!
Acredite, minha filha, que nunca o julgarei com dureza.
No quero dizer com isto que ele tenha que se envergonhar de qualquer coisa!
Como sabe, muito respeitado - acrescentou, com ingnuo orgulho -, os que vo para a
-, lamento-o muito.
A observao pareceu sugerir a Plornish, pela primeira vez, que aquela atitude
talvez no fosse to admirvel como pensava.
E como conseguiu que Miss Dorrit entrasse ao servio de minha me?
Ela deu-me uns pequenos anncios que eu trouxe para o stio onde trabalhava:
quer dizer, para casa da senhora Clennam e tambm para casa do senhorio do Beco, o
senhor Casby.
O senhor Casby? Oh, mas um velho conhecimento! - exclamou Arthur, ficando
muito pensativo. - Mas voltemos ao objetivo da minha visita: gostaria que me ajudasse a
obter a liberdade do Tip.
Plotnish conhecia o credor que mandara o rapaz para a priso: era um alquilador de
uma rua vizinha. Ambos se dirigiram, pois, sua cavalaria e, aps demorados e hbeis
manejos, conseguiram que, mediante o pagamento de metade da dvida, a queixa fosse
retirada. Tip estava livre!
Senhor Plornish - disse Arthur, uma vez resolvido o assunto -, conto com a sua
discrio. Diga simplesmente ao Tip que se encontra em liberdade. Bem vistas as coisas,
pode acrescentar que foi um amigo que lha conseguiu e espera que, quanto mais no seja
pelo amor que tem irm, faa bom uso da sua liberdade!
No regresso, Plornish tentou esboar a Arthur um quadro da vida dos moradores
do Beco. todos se encontravam na penria, e, mais ainda, estavam enterrados nela at ao
pescoo E por que, ningum sabia diz-lo. Havia gente rica - e alguns muito ricos - que
dizia que os moradores do Beco eram imprevidentes; por exemplo, se viam algum
habitante do Beco subir - uma vez por ano - para a sua carroa com a famlia, a fim de
darem um passeio pelo parque, exclamavam e Julgava que era pobre, meu imprevidente
amigo!. Santo Deus, como aquilo custava! Era, ento, foroso endoidecerem de tristeza O
dia inteiro, as raparigas e as mulheres do Beco costuravam, mal ganhando o suficiente
para no morrerem fome. E mais ainda. Os velhos, que haviam trabalhado toda a vida,
iam parar ao asilo, onde eram tratados pior do que se fossem nada! E quem era o
responsvel por tudo aquilo, ah, isso ele desconhecia E mesmo os que poderiam fazer
qualquer coisa ficavam de braos cruzados; e como as coisas no se resolviam por si s,
pois bem.
O nome do senhor Casby despertara no esprito de Arthur uma certa curiosidade.
com efeito, o senhor Casby era o pai de Flora, a bem-amada da sua adolescncia. Era um
homem que gozava da reputao de ser prdigo em inquilinos semana e de conseguir
arrancar soldos de becos e ruelas dos quais nada se esperava.
Aps vrios dias de investigao e pesquisas, Arthur convenceu-se de que o caso
Em seguida, aps um ronco e um pequeno jato de vapor, voltou a sair por outra
porta, deixando Arthur completamente estupefacto.
O aparecimento de Flora, alguns instantes mais tarde, decepcionou profundamente
Arthur. Na sua juventude, amara de alma e corao aquela mulher e cumulara-a dos
tesouros do seu afeto e da sua imaginao; e passados vinte anos, guardava, inaltervel,
no corao, aquela antiga e maravilhosa imagem do passado. Mas mal os seus olhos se
haviam pousado em Flora e j o seu amor de outrora se despedaava e desvanecia.
Flora, outrora alta e esbelta, engordara; a sua tez de lis tornara-se encarnada como
um pimento. Ela, cujas palavras e pensamentos haviam sido os encantos de Arthur,
parecia-lhe agora tagarela e estpida. As suas maneiras de menina ingnua e mimada
tinham perdido todo o encanto e tornavam-se agora ridculas.
O jantar foi um verdadeiro suplcio para Arthur, que depressa pretextou uma visita
me para no prolongar o sero e, alis, o senhor Casby comeava j a cabecear na sua
poltrona. Apertou a mo da nova Flora, que estava muito perturbada, e foi-se embora,
sentindo-se muito infeliz, acompanhado por Pancks, que ia na mesma direo que ele.
Quando se sentiu um pouco reanimado pelo ar fresco, entabulou conversa com o
homenzinho trigueiro que caminhava ao seu lado, roendo as unhas, imerso nos seus
pensamentos. Pancks cismava em negcios. Era, explicou a Clennam, a nica coisa que lhe
interessava no Mundo. Levantar-se cedo, trabalhar, engolir num pice as refeies e
trabalhar de novo, tal era a obrigao de um homem num pas industrializado. Ele prprio
s tinha uma distrao, colecionar os anncios procurando herdeiros. Sublinhava as frases
com bizarras fungadelas; Arthur interrogou-se, repentinamente, se aquilo no passava,
simplesmente, da maneira de rir de Pancks e se aquele homenzinho falava realmente a
srio.
Depois de ter deixado aquele curioso individuozinho, Clennam seguiu - em direo
s avenidas principais: sentia-se muito s e triste e procurava um pouco de luz e bulcio.
Nessa altura, um ajuntamento obrigou-o a recuar para o passeio.
Que se passa - perguntou ao seu vizinho.
um ferido! Acaba de ser atropelado pela mala-posta E estrangeiro, ningum
percebe o que ele diz!
Clennam avistou, no meio dos curiosos e dos tagarelas, um corpo que era
transportado numa maca improvisada e ouviu uma voz fraca a pedir gua em italiano.
Abriu caminho at ao desgraado e inclinou-se para ele:
J lhe trazem gua, acalme-se. Est gravemente ferido, meu amigo? - inquiriulhe Arthur.
Oh, sim, sim! a minha perna, senhor, a minha perna! Mas como bom
ouvirmos falar a nossa lngua materna!
Era um homenzinho tisnado, de cabelos negros, dentes brancos e um rosto cheio de
vivacidade.
No tenha medo - replicou Clennam - no o abandonarei enquanto no estiver
em boas mos.
Seguiu a padiola at ao hospital, que ficava perto, e entrou atrs dele. O cirurgio
examinou o ferimento, mas tranquilizou o ferido, prometendo-lhe que em breve voltaria a
andar; depois de ter tratado dele, mandou-o levar para uma boa cama. Clennam prometeu
a Cavaletto - tal era o seu nome, que voltaria no dia seguinte e deixou o hospital. Soavam
as onze horas, de forma que voltou diretamente para casa, o apartamento que alugara
perto de Covent Garden. Sentado diante da lareira quase apagada, voltou a mergulhar nos
seus devaneios e na sua tristeza. A vida parecia-lhe sombria e vazia. O nico momento de
felicidade que tivera na vida, o seu amor por Flora, acabava de se dissipar naquela noite e
j nada lhe restava. Tinha agora quarenta anos e a velhice aproximava-se, sem que alguma
vez tivesse conhecido ternura e conforto.
Desde a minha triste juventude, asfixiada naquele lar triste e sem amor, a
minha partida, o meu longo exlio, o meu regresso e o acolhimento de minha me, at esta
tarde com a pobre Flora, que encontrei eu, ento?
A porta abriu-se suavemente e ele teve um sobressalto, ao ouvir estas palavras,
que pareciam uma resposta:
A Pequena Dorrit.
A Pequena Dorrit continuava na soleira, muito intimidada. No vasto aposento
sombrio, que aos olhos de menina pobre pareceu magnificamente mobiliado, encontrava-se
sentado lareira o cavalheiro que ela procurava e que fitava agora com surpresa, o
cavalheiro bronzeado, srio, de sorriso to agradvel, de maneiras to ponderadas, cujo
olhar atento e inquiridor a perturbava sempre profundamente.
Minha pobre filha! - exclamou ele, mandando-a entrar. - Por aqui, meia-noite?
Veio sozinha?
No, no, senhor Clennam, trouxe a Maggie.
E Maggie, que esperava atrs da porta, surgiu ento, o rosto aberto num sorriso.
Arthur convidou-as a sentar e apressou-se a ir buscar lenha para atiar o fogo. O vestido
da Pequena Dorrit era muito ligeiro, os seus sapatos estavam bastante gastos e
cambados.
Aproxime-se do fogo, minha filha, est tanto frio!
Cale-se, Flintwitch! - gritou ela em voz sumida. - Era capaz de falar de mais!
Sucedeu-se um instante de silncio e depois Jeremy replicou suavemente:
Ento defenda o pai de Arthur antes de se defender a si prpria. No conte com
os mortos! Era o que faria se eu me tivesse vergado sua vontade. Mas eu no quero
submeter- me sua vontade.
J se falou de mais do assunto, Flintwitch. Agora acenda a vela, a Pequena
Dorrit est a chegar.
Justamente a Pequena Dorrit Continuar indefinidamente a vir c; a tomar
sempre ch aqui.
Sempre. Como se atreve a empregar tal palavra, quando a morte est to
prxima de ns?
para que lhe fosse concedido um desses cargos lucrativos e tranqilos das altas esferas
administrativas. De forma que se fizera pintor, mas lidava com a sua arte com tanta
desenvoltura, que no obtinha grande sucesso.
tarde, comeou a chover e o dia pareceu a Clennam muito tristonho. Quando
voltou para o quarto, afundou-se na poltrona e ali ficou por muito tempo, sem se mexer,
escutando a chuva que caa a cntaros sobre o telhado. Bateram porta. era Daniel Doyce,
que lhe vinha perguntar a que horas partia no dia seguinte. Quando a questo ficou
resolvida,
No - retorquiu Doyce.
Ambos se calaram. Doyce, de olhos fixos na chama da vela, prosseguiu
lentamente:
O facto que o senhor Meagles por duas vezes levou a filha para o estrangeiro,
com o objetivo de a afastar de Gowan. Acha que ela sente uma extrema simpatia por ele
e receia que semelhante unio no d bons resultados.
Eles esto. - Clennam engasgou-se, tossicou e calou-se.
O senhor apanhou um resfriado - declarou Doyce, sem olhar para ele.
Decerto esto noivos, no verdade? - prosseguiu Clennam em tom
desprendido.
Ainda no, pelo que me foi dito. O rapaz declarou-se, mas nada ficou decidido.
Tudo o que h entre eles, viu-o o senhor, com os seus prprios olhos, esta tarde!
Ah! Vi bastante - exclamou Arthur. O senhor Doyce deu-lhe as boas- noites com
uma inflexo de homem que ouviu um grito de desespero e fez meno de responder com
qualquer coisa encorajadora. E a chuva caa a cntaros, fustigava o solo, pingava dos
ramos dos abetos e dos troncos nus de outras rvores. Caa pesadamente, tristemente.
Era uma noite de lgrimas.
A Pequena Dorrit no completara os vinte e dois anos sem conhecer um
apaixonado. este era o filho, muito sentimental, de um porteiro, a quem o pai esperava, na
devida altura, legar o cargo imaculado e a quem familiarizara, desde a infncia, com a
responsabilidade do ofcio, ambicionando manter o aferrolho na famlia E, enquanto
esperava, o jovem ajudava a me a manter uma pequena loja de tabaco, situada prximo
da priso.
Ainda o objeto da sua afeio se sentava na sua cadeirinha e brincava com
bonecas, e j o jovem John Chivery a contemplava com xtase. Quando cresceu o
suficiente para chegar aos buracos das fechaduras, ficava horas a admir-la, com um olho
s, enquanto o jantar que deveria levar ao pai arrefecia aos seus ps. Aos vinte e trs
anos, sempre fiel, oferecia todos os domingos, a tremer, charutos ao pai da sua bemamada.
John era baixinho, de pernas bastante fracas e cabelos de um louro muito plido.
Via mal de um olho (talvez aquele com que tantas vezes espreitara pela fechadura) e esse
parecia maior que o outro. O pequeno John era meigo e tinha a alma grande, potica,
expansiva e fiel.
Os pais de Chivery no ignoravam a inclinao do filho, inclinao que por vezes o
levara a mostrar-se irascvel com os clientes - facto este que prejudicava os negcios.
John saa, com inteno de se declarar, mas voltava, tarde, sem ter ousado falar.
Neste assunto, e como sempre, a Pequena Dorrit foi a ltima a saber. Fanny e Tip,
ao corrente daquela paixo, troavam do pobre rapaz, que tinha o arrojo de amar uma
jovem pertencente a uma famlia to superior dele. O senhor Dorrit, por seu turno, bem
tentava aparentar que nada sabia: a sua pobre dignidade no podia rebaixar-se a tanto!
Mas aceitava, e com alegria, os charutos de domingo. E, por vezes, condescendia at a dar
alguns passos pelo ptio com o doador, o que punha este ltimo muito orgulhoso e cheio
de esperana.
Sendo assim, num domingo, John saiu para a sua visita habitual, levando a sua
oferta de charutos. Vestira-se com esmero, um casaco cor de ameixa, uma enorme gola
de veludo sobre o colete de seda com ramagens douradas, umas calas to bem listradas,
que as suas pernas pareciam liras de trs cordas, e um vasto chapu de cerimnia.
Quando a senhora Chivery viu o seu pequeno John contornar a esquina da rua naquele
aparato, compreendeu para onde ia e piscou o olho ao marido.
O senhor Dorrit, a quem muito agradavam as visitas de domingo, recebeu os
charutos simulando uma grande surpresa, que nessas ocasies lhe era habitual:
Obrigada, John, obrigada! Mas diga-me a verdade, porque demasiado, no
posso. No. Ento no falarei mais disso. Ponha-os em cima da lareira, peo-lhe, John. E
sente-se, sente-se. No nenhum estranho aqui!
tmida pergunta do jovem se Miss Dorrit estava, o pai respondeu que Miss Amy
sara e que decerto se encontrava na Ponte de Fetro. H algum tempo que ia l com
freqncia. O apaixonado voltou a descer as escadas, encantado, e no tardou a chegar
ponte. avistou, ao longe, o vulto da sua bem-amada que, junto de um dos parapeitos,
contemplava pensativamente o rio. Estava to absorvida, que no o ouviu chegar. Quando
ele chamou a Miss Dorrit, teve um sobressalto e virou-se, tendo o seu rosto assumido
uma expresso de receio e como que desgosto, que espantou o pobre rapaz. Contudo,
recomps-se rapidamente e cumprimentou-o com a sua voz habitualmente meiga. Mas
quando soube que fora o pai que indicara a John o seu paradeiro, desfez-se em soluos e
afastou-se um pouco. O pequeno John ficou to assombrado com aquela reao, que se
ps a tremer dos ps cabea e se precipitou no seu encalo:
Escute, preciso de lhe dizer, Miss Amy - balbuciou ele, pensando ser aquela a
altura de finalmente esclarecer as coisas -, escute! o seguinte: h muito tempo - a mim
parece-me que foi h sculos! - que sinto o desejo profundo e ardente de lhe dizer uma
coisa. Permite-me que lha revele? Asseguro-lhe que no falarei sem o seu consentimento,
ou, que antes preferia saltar deste parapeito do que lhe causar o mnimo desgosto!
A Pequena Dorrit olhou-o e respondeu-lhe, toda a tremer, mas com voz tranqila:
Suplico-lhe, John Chivery, visto que tem a bondade de me pedir permisso para
continuar, suplico-lhe, no diga nada.
Nunca, Miss Amy?
No, suplico-lhe, nunca.
Oh, meu Deus! - exclamou John em voz sufocada.
Mas, em contrapartida; deixe-me explicar-lhe uma coisa: preciso que no nos
tome, a mim e a toda a minha famlia, por pessoas diferentes dos outros prisioneiros. No
sei o que fomos no passado, em qualquer dos casos, no lhes somos, nem nunca seremos,
superiores.
O pequeno John prometeu dolorosamente que se sentiria muito feliz por fazer tudo
o que ela desejasse.
Pelo que me toca - prosseguiu a jovem -, pense em mim o menos possvel,
quanto menos melhor ser. O senhor, de tal forma generoso, que sei que posso contar
consigo. Adeus, John, espero que um dia encontre uma boa esposa e que seja feliz, o John
bem o merece.
O pobre pequeno John, que j no podia mais, desfez-se em soluos.
Oh! No chore, suplico-lhe, no chore! Adeus, John, e que Deus o abenoe!
E o pequeno John afastou-se, a gola enorme levantada, porque chovia, o casaco cor
de ameixa abotoado, para esconder o colete e a bengala apontada em direo da casa
paterna. Amy, entretanto, sentara-se num banco, apoiando contra o muro rugoso a mo,
depois o rosto, como se sentisse a cabea pesada e o esprito oprimido.
No dia seguinte, a Pequena Dorrit foi procurar a irm Fanny ao teatro onde, todos
os dias, esta representava. Amy no estava acostumada queles lugares e sentiu-se
completamente perdida nos bastidores, no meio de um labirinto poeirento de traves, de
tabiques, de paredes de tijolos e de cordas, onde zumbia um enxame de gente. De sbito,
de Fanny.
Adeus, Miss Dorrit, e os meus maiores desejos de felicidades para o futuro!
As duas raparigas levantaram- se, a mais velha com ar altivo e a mais nova
humilhada. Foram reconduzidas at porta pelo lacaio empoado e encontraram-se na
calada! Depois de caminharem em silncio por algum tempo, Fanny perguntou:
Ora bem, Amy, que tens tu a dizer?
Oh, no sei, Fanny - respondeu ela, desconcertada. - Ento aquele jovem no te
agradava?
Agradar-me? quase idiota!
Visto que me pediste a opinio, devo dizer-te, que fiquei muito penalizada por
teres aceite coisas daquela mulher. No te zangues.
Grande imbecil - respondeu-lhe a irm, sacudindo-lhe o brao -, no tens nenhum
carcter, nenhum amor-prprio! Como suportar que uma mulher to falsa e to insolente
calque impunemente a tua famlia aos ps? Nesse caso, ao menos obriga-a a pagar e
honra a tua famlia com esse dinheiro!
De repente, explodiu em desesperados soluos:
-Desprezas-me porque sou danarina, mas foste tu quem me proporcionou os
meios de o ser! E o teu irmo Tip, deixas que o insultem, porque trabalhou nas docas ou
em notrios, mas a culpa tambm tua! E deixas que insultem o teu pobre pai, porque ele
est preso: ser que alguma vez imaginaste os sofrimentos que ele suporta?
A injustia das suas censuras dilacerou o corao da Pequena Dorrit, mas nada
respondeu. Fanny acalmou-se finalmente e as suas lgrimas exprimiram o seu
arrependimento:
Perdoa-me, Amy, perdoa-me - exclamou, com a mesma veemncia com que
censurara a irm. - Ests tu a ver, estou mais em contacto com as pessoas do que tu e
possivelmente tornei-me demasiado orgulhosa e altiva, ser?
Sim, oh, sim - respondeu a Pequena Dorrit.
E enquanto te ocupavas do jantar e da roupa, eu s pensava na honra da famlia.
s uma pequena dona de casa muito tranqila, no verdade?
A Pequena Dorrit sorriu, sem nada dizer, mas tinha o corao triste e desolado.
Captulo V - UM ADIVINHO
O senhor Merdle era imensamente rico. Era visto em todo o lado em que os
negcios prosperassem, da Banca construo imobiliria. Era, evidentemente, deputado,
presidente de uma empresa, administrador de outra e diretor de uma terceira.
O seu principal desejo parecia satisfazer a sociedade. Contudo, era um homem
reservado, de fsico volumoso e grosseiro, que pouco brilhava na alta-sociedade e parecia
divertir-se pouco no meio dela. Mas exibia-se constantemente e gastava prodigamente
dinheiro com a sua pessoa. Desposara a senhora Merdle essencialmente para ter uma
mulher bela e vistosa, que exibisse com distino as jias que lhe comprava. Alis, ela
cumpria a sua misso s maravilhas. Do seu primeiro casamento, trouxera-lhe um filho, o
jovem Edmond Sparkler, que gozava de uma espantosa reputao de palerma: afirmava-se
que o seu crebro gelara nascena, que cara do alto de uma casa e que se ouvira o seu
crnio tachar-se. Tudo isto mantinha o senhor Merdle absolutamente imperturbvel. o
enteado era recebido em todos os saraus, e isso era a nica coisa que interessava.
Naquela noite, como acontecia com freqncia, havia um jantar na casa da Harley
Street. Encontrava-se ali a elite do Palcio, das Finanas, da Poltica, da Igreja, do Tesouro,
do Almirantado... enfim, toda a nata da sociedade.
Contaram-me - dizia um bispo a um oficial - que o senhor Merdle acabou de
realizar um golpe espantoso na Bolsa, cem mil libras!
O oficial ouvira dizer duzentas mil, o Tesouro, trezentas, o Tribunal, quatrocentas;
e a soma crescia de magnata para magnata.
Nesse jantar, a alta sociedade teve tudo o que se pode admirar, comer e beber. A
senhora Merdle estava magnfica e as jias resplandeciam- lhe no colo. Havia tanto p nas
perucas dos lacaios, que pairava por toda a parte e cobria as travessas com uma poeira
esbranquiada.
Entre os convidados achava- se um mdico muito clebre que, ao entrar, avistou o
senhor Merdle a um canto, isolado, onde bebia o seu ch.
Como vai hoje, melhor? - perguntou-lhe.
No, no me sinto melhor.
Ora bem, passarei amanh por sua casa.
Dois magnatas tinham escutado este breve dilogo que depois comentaram com o
mdico:
Acho que o senhor Merdle no est doente - disse este ltimo. - Tem uma
sade de ferro, uns tais nervos e sangue-frio, que me parece invulnervel. E, no entanto,
julga- se enfermo. Pelo que me toca, nada detectei. Talvez esteja a ser vtima de uma
nome.
Clennam perscrutou-o com ar surpreendido e sobretudo desconfiado.
E o que quer o senhor saber?
Tudo o que puder e quiser dizer-me. Sublinhou a frase com algumas fungadelas.
Para o tranquilizar - prosseguiu, no seu estilo muito especial -, digo-lhe j que o
motivo bom. Nada tem a ver com o meu senhorio, o senhor Casby. Impossvel falar dele
neste momento. Ridculo, at. Mas bom. Melhor ser admiti-lo j.
Arthur olhava-o com curiosidade, refletiu por um momento e julgando que, ao fim e
ao cabo, iria obter todas as informaes que desejava, relatou tudo o que sabia da famlia
Dorrit. Pancks pareceu entusiasmado com o relato, soprando e resmungando cada vez
mais medida que o mesmo prosseguia. Arthur concluiu finalmente:
S acrescentarei mais uma coisa, senhor Pancks. Tambm tenho as minhas
razes para que falem o menos possvel dessa famlia e para saber dela o maior nmero
possvel de informaes. Faamos um acordo leal: disse-lhe o que sabia, mas o senhor
informar-me- das suas descobertas.
Combinado - respondeu Pancks, rindo.
Ver que cumprirei a minha palavra. E agora, tenho que me ir embora, o dia de
eu cobrar as rendas do Beco do Corao-que-Sangra. A propsito, quem aquele
estrangeiro coxo chamado Cavaletto? Quer alugar um quarto no Beco e diz que vem da
sua parte.
No se inquiete, respondo por ele. Sofreu um acidente e acaba de sair do
hospital. Pagar-lhe-ei o quarto, se for preciso.
O senhor Pancks, agora pronto para a partida, ps-se em movimento, desceu as
escadas soprando e entrou, como um pequeno rebocador, nas guas do Beco.
O seu trajeto por aquelas ruelas provocou, durante a tarde inteira, considerveis
ressacas. Entrava e saa, arengava com os que tinham a renda em atraso, exigia garantias,
ameaava-os de penhora ou de despejo, corria atrs dos atrasados, espalhando em seu
redor uma onda de pnico.
Naquela noite, os moradores do Corao-que-Sangra reuniram-se, para se
queixarem da dureza de Pancks.
Ah, se ao menos fosse o senhor Casby a receber as rendas, o caso era
diferente. Um cavalheiro com um olhar to bondoso e de rosto to venerando!
Mas, nesse mesmo instante, o senhor Casby, esse impostor, dizia a Pancks,
virando os polegares:
Que dia mau, Pancks, no me conseguiu grande coisa! A sua obrigao era terme trazido muito, muito mais dinheiro.
Na manh seguinte, a Pequena Dorrit dirigiu-se a casa de Flora Casby. Esta, que
tinha o melhor corao do Mundo, convidou a jovem a partilhar o pequeno-almoo,
composto de ch, galinha e presunto frito, e ps-se a tagarelar com ela. Tratou-a com
uma tal amabilidade, que esta ficou muito perturbada e teve que fazer aluso ao trabalho
de costura que nem sequer passara pela cabea de Flora dar-lhe. Em breve, porm,
recuperada a serenidade e posta vontade, a Pequena Dorrit contou boa Flora todas as
circunstncias da sua vida que normalmente tinha cuidado em ocultar. hora da refeio,
Flora pegou no brao da sua nova protegida e conduziu-a at sala de jantar, onde a
apresentou ao pai e ao senhor Pancks. A jovem, que se sentia j incomodada por se ver no
meio de estranhos, mais incomodada e inquieta ficou com a estranha atitude de Pancks.
Este no deixava de a olhar fixamente e s desviava os olhos para consultar um pequeno
livrinho que tirava com freqncia do bolso. Julgou, a princpio, que ele estava a fazer um
desenho seu e quis ver. Mas como ele s falava de negcios, imaginou, angustiada, que
devia ser um dos credores do pai.
Cerca de meia hora depois da refeio, Flora retirava-se para o seu quarto a fim de
repousar, o senhor Casby ressonava, de boca aberta, na poltrona, e a Pequena Dorrit
trabalhava tranquilamente num salo, quando Pancks apareceu diante dela e a abordou
polidamente.
No se sente um pouco aborrecida, Miss Dorrit?
No, senhor, obrigada.
Estou a ver que tem trabalho. Ento o que ?
Lenos, senhor.
Ah, sim, evidentemente, lenos. Ora bem, Miss, talvez esteja a interrogar-se
quem serei eu no verdade? Saber quem sou eu... Sou um adivinho
A Pequena Dorrit interrogou-se, repentinamente, se ele no seria doido e observou-o
com ar inquieto.
Deixe-me ver a palma da sua mo - continuou ele. - Ah Ah Que vejo eu? Anos
de trabalho, hem? Olha, que significam estes traos aqui? Uma priso. E ali, o que aquilo
de roupo cinzento e de gorro? Um pai. E aquele, com um clarinete? Um tio. E aquela, com
os seus sapatos de dana? Uma irm. E quem se agita aqui e ali sem fazer grande coisa?
Um irmo. E finalmente, aquela que se ocupa de todos os outros? Mas a menina, Miss
Dorrit!
Ela olhava-o com surpresa, dizendo para consigo que, a despeito dos seus olhos
penetrantes, aquele homem devia ser mais alegre e mais amvel do que a princpio
julgara. Mas ele continuou:
E ali, quem vejo eu naquele canto? Mas, sou eu! Que fao eu aqui E quem est
atrs de mim?
Virou a mo, como que para ver o que se achava nas costas. A Pequena Dorrit
sorriu.
mau? - perguntou.
Ora bem, Miss Dorrit, quem viver que veja! Um dia saber o que existe nas
costas da sua mo... Passou a mo pelos cabelos, que se eriaram de maneira aterradora,
e repetiu lentamente: - Quem viver que veja, lembre-se disso, Miss Dorrit!
Ao ver que ela se mostrava espantada pelo facto de ele estar to informado sobre
ela:
Chiu - ordenou, levando um dedo boca.
No diga nada a ningum, Miss Dorrit, nunca. Nunca se mostre surpreendida
quando me vir, ou coisa no gnero! Proceda sempre como se no me conhecesse.
A jovem hesitou, muito perturbada, mas finalmente aquiesceu. O senhor Pancks
esfregou as mos, como se tivesse realizado um bom negcio, dirigiu-se, arquejando, para
a porta e saiu, cumprimentando-a com amabilidade.
Os acontecimentos que se seguiram deixaram a Pequena Dorrit ainda mais
perplexa: a partir de E ento, encontrou Pancks em toda a parte. A princpio, apenas em
casa do senhor Casby e em casa da senhora Clennam. Uma semana depois, encontrou-o
no cubculo da priso, entabulando uma longa conversa com o porteiro. Depois, viu-o
passear pelo ptio, de brao dado com os prisioneiros. Uma noite, cantou no bar da priso
e ofereceu uma generosa rodada de cerveja. At ao dia em que chegou a Tip, com quem
conseguiu travar conhecimento! E I fingia sempre ignorar a Pequena Dorrit. Apenas uma ou
duas vezes dissera-lhe, furtivamente, de passagem:
Sou Pancks, o cigano, que l a sina.
Quanto Pequena Dorrit, trabalhava e cansava-se como sempre. Mas comeava a
operar-se nela uma gradual alterao. De dia para dia, mostrava-se cada vez mais
reservada, mais solitria. O seu nico desejo era que a ignorassem e a esquecessem.
Sempre que podia, retirava-se para o seu quarto, uma dependncia exgua no ltimo andar
da priso, sentava-se junto da janela e sonhava; as pontas de ferro que se eriavam sobre
o muro formavam desenhos e faziam ziguezagues quando as contemplava atravs das
lgrimas. Mas conservavam-se sempre ali, como uma marca indelvel.
Uma tarde, quando ali se encontrava, a desfrutar um pouco de repouso, ouviu os
passos de Maggie nas escadas e foi tomada de terror idia de quem poderia querer vla.
Permita-me que lhe oferea uma rosa. Foi sobretudo para si que, ao sair do
jardim, as apanhei.
Arthur tirou duas rosas e enveredaram pela alameda ladeada de grandes rvores,
caminhando, por um momento, em silncio. A jovem perguntou-lhe, finalmente, se estava
a par da viagem ao estrangeiro que o seu pai planeava, acrescentando, aps uma
hesitao, que desistira dela. Clennam imediatamente compreendeu que o casamento fora
decidido.
Senhor Clennam - disse, em voz ainda hesitante-, desejaria tanto desabafar
consigo, mas. mal sei por onde comear!
O senhor Gowan - interveio Arthur - tem bons motivos para se sentir feliz. Deus
abenoe a sua esposa e o abenoe a ele!
Cherry desfez-se em lgrimas, tentando agradecer- lhe; ele pegou-lhe na mo, para
a tranquilizar, e, nesse instante, sentiu que renunciava realmente, pela primeira vez,
esperana que, ao preo de tantos sofrimentos; subsistia ainda no seu corao.
Oh, senhor Clennam, diga-me que no me censura!
Eu, censur-la, minha querida filha! Evidentemente que no!
Ela olhou-o, para lhe agradecer, com tanta confiana, e estava to linda, com os
seus olhos brilhantes de lgrimas, que Arthur preferiu virar a cabea e contar as rvores
da alameda.
Senhor Clennam, seria capaz de me fazer um grande favor? Sabe como a minha
partida vai ser dolorosa para os meus pais. Amamo-nos tanto, que nem sequer
compreendo como sou capaz de os deixar - concluiu, desfazendo -se em soluos.
Minha querida filha, acontece sempre isso, em todas as famlias, quando nos
casamos.
O senhor o melhor amigo do meu pai e gostaria imenso que se lembrasse dele
quando eu partisse, que lhe fizesse companhia sempre que pudesse. A ele e a minha me.
E que lhes dissesse, na altura em que os deixar, o quanto os amei. Prometa-me!
Prometo-lhe, fique descansada.
Gostaria tanto que um dia o meu pai e o senhor Gowan se compreendessem e
se estimassem! Tudo farei para isso. Se o senhor puder usar a grande influncia que tem
sobre o meu pai para que ele veja a verdadeira faceta daquele que me querido, ficar-lheia to reconhecida!
Clennam prometeu igualmente que o faria, lamentando, no ntimo, a jovem, que
corria atrs de uma tal quimera!
Tinham chegado ltima rvore da alameda. Ento ela deteve-se e olhou-o:
perguntou:
E agora, boa mulher, quer ter a bondade de me conduzir presena desse gnio
mau de que mesmo agora me falou?
E Affery, tremendo de pavor, precipitou-se para a taberna vizinha, a fim de avisar
Flintwitch.
Quando o casal chegou, arquejando, porta, o desconhecido, avistando de repente
Jeremy na escurido, estremeceu e recuou:
Com os diabos! - exclamou. - Que faz voc aqui?
O senhor Flintwitch, a quem estas palavras eram dirigidas, olhou, espantado, para o
estrangeiro e virou-se para a mulher, a quem se ps a sacudir brutalmente, esperando,
daquela forma, arrancar-lhe uma explicao. O estranho, um pouco recomposto da
surpresa, apanhou a touca de Affery e fez observar aos Flintwitch que a senhora Clennam
os chamava h j alguns minutos. Jeremy largou a mulher, que fugiu pelas escadas e foi
acender uma vela. O homem examinava-o sempre com ateno, depois reassumiu o seu
habitual sorriso ambguo.
O senhor Flintwitch conduziu-o ento para o seu gabinete de trabalho e disse-lhe,
com os seus pavorosos rodeios:
s suas ordens!
Chamo-me Blandois. Deve ter recebido de Paris um aviso.
No recebemos de Paris nenhum aviso em nome de Blandois - respondeu
Jeremy.
O senhor Blandois puxou da carteira, depois deteve-se, para dizer, com os seus
olhos cintilantes de riso:
O senhor parece-se espantosamente com um dos meus amigos: mesmo agora o
tomei por ele, mas estava enganado, reconheo sempre os meus erros, faz parte do meu
temperamento. Contudo, que extraordinria semelhana!
Verdade? - interrogou maldosamente Jeremy.
O senhor Blandois puxou ento de uma carta e estendeu-a a Flintwitch:
Aqui est uma letra de cmbio. Julgue-a por si mesmo. Pelo que me toca,
infelizmente sou um cavalheiro e no um homem de negcios!
Flintwitch pareceu satisfeito com o documento e convidou-o a sentar- se, um tanto
impressionado com os seus ares sobranceiros. Do que o senhor Blandois naquele momento
precisava era de um hotel. porm, nas proximidades, unicamente o que estava aberto era
uma estalagem pouco elegante, mas o senhor Blandois contentar-se-ia com ela e em
breve saam os dois.
Depois de o estrangeiro mudar de fato e descansar, voltou, para apresentar as suas
Blandois depressa compreendeu que daquela forma no faria soltar a lngua do velho,
muito pelo contrrio. E logo ps termo s expanses.
Adeus, meu bom Flintwitch. Antes de se ir embora, quero dar-lhe - e beijou-o
ruidosamente nas duas faces - a minha palavra de cavalheiro. Com mil troves, voltarnos-emos a ver!
No dia seguinte, no o vendo, Jeremy foi pedir notcias dele estalagem e soube,
com surpresa, que voltara a partir para o continente. Mas tinha a certeza de que o senhor
Blandois regressaria.
O meu rosto traiu-me, mas tal facto permite-me, assim, que desabafe com a
minha amiguinha, a Pequena Dorrit, o que para mim um privilgio e um prazer. Devo,
pois, confessar que, esquecendo a minha solenidade e a minha idade, imaginei que me
apaixonara por algum.
Algum que eu conhea, senhor Clennam?
No, minha filha, no. Ora bem - prosseguiu, recordando a impresso que sentira
naquela tarde de rosas, na alameda, a impresso de que era um velho para quem a ternura
morrera -, dei-me conta do meu erro e tornei-me mais razovel. Fiz uma retrospectiva da
minha vida: verifiquei que j trepara a colina da vida, que atravessara o planalto e que
descia rapidamente pela outra encosta. Compreendi que, para mim, j passara o tempo do
amor gracioso e cheio de esperanas e que nunca mais brilharia.
Ah, se ele soubesse! Se ele pudesse ver as feridas que infligia no corao paciente
da Pequena Dorrit!
Enfim, tudo acabou e no quero pensar mais nisso. Mas porque falei eu de tudo
isto minha amiguinha?
Porque tem confiana em mim, assim o espero. Porque sabe que tudo o que lhe
disser respeito, tambm a mim diz, a mim, que lhe estou to reconhecida!
Ele ouviu a sua voz palpitante, contemplou-lhe o rosto afogueado, os olhos claros e
sinceros e nem a mnima suspeita da verdade lhe perpassou o seu esprito. No, ele via
nela apenas a figurinha dedicada, com os seus sapatos gastos e o seu pobre vestido, na
priso criana de corpo frgil e alma herica, cuja histria familiar cintilava com um brilho
tal que tudo o resto desaparecia na sombra.
Mas por que razo, Pequena Dorrit, por que razo se isola desta maneira? Digame.
Sinto-me melhor aqui. o meu lugar, aqui sou til - respondeu ela num fio de
voz.
Mas tem mesmo a certeza de no ter nenhum segredo a confiar-me, de no
querer encontrar junto de mim esperana e conforto?
Um segredo? No, no tenho segredos - respondeu ela muito perturbada.
De sbito, Maggie interveio:
Mezinha, se no tens nenhum segredo a dizer-lhe, conta-lhe ento o da
princesa!
A princesa tinha um segredo - perguntou Clennam, surpreendido.
Arthur interrogou Dorrit com o olhar e espantou-se por a ver to afogueada e to
perturbada: ela explicou-lhe que no passava de uma histria de fadas sem interesse que
cautelosamente, abriu e fechou a porta do quarto silencioso e, sem fazer rudo, deixou a
priso, atravessando as ruas buliosas e levando consigo aquela paz.
Chegou o dia em que o senhor Dorrit e a famlia deveriam abandonar para sempre
a priso. O lapso de tempo fora curto, mas o senhor Dorrit queixara-se bastante de nunca
mais chegar ao fim e mostrara-se imperioso com o advogado, e, tendo este respondido
com humildade que fazia tudo o que estava ao seu alcance, Fanny interviera secamente,
lembrando-lhe que o dinheiro no contava e que no devia esquecer com quem falava.
O tio Frederick mostrara to pouco interesse pela fortuna recm-adquirida, que se
interrogaram se realmente havia compreendido o que se passava. O irmo obrigou-o a
vestir-se de novo dos ps cabea e ordenou-lhe que queimasse as roupas velhas. Quanto
a Tip e a Fanny, no precisavam de lies para se transformarem em jovens elegantes,
vestidos moda; cada um alugou um cabriol e instalaram-se no melhor hotel das
redondezas, que, alis, consideraram absolutamente insignificante. O senhor Dorrit
reembolsou todas as despesas feitas e deu aos prisioneiros grandes provas da sua
liberalidade, distribuindo ofertas pelos necessitados. Deu um grande banquete em honra de
todos os pensionistas, tendo-se bebido sade de uns e de outros no meio de uma
enorme emoo.
Chegou finalmente o dia da partida. O senhor Dorrit avanava com uma dignidade
solene e graciosa, apoiado no brao do irmo Frederick. Murmurou-lhe ao ouvido:
Meu caro Frederick, se conseguisses assumir um pouco de, distino - desculpame, meu caro Frederick -, mas na tua posio.
No - respondeu o outro, abanando a cabea -, tu, consegue-lo, mas eu, eu
esqueci completamente!
Justamente, meu caro, precisas de te lembrar, tens que pensar na tua posio.
Hem - exclamou Frederick.
Na tua posio, meu caro Frederick.
Na minha...
Olhou para o irmo, depois para ele prprio e deu um profundo suspiro:
Ah, verdade! Evidentemente, sim, sim.
Queres saber uma coisa, meu caro Frederick? - rematou o senhor Dorrit. Pergunto a mim mesmo o que ir ser desta boa gente sem mim.
Atrs dos dois irmos vinha Tip Dorrit, de brao dado com a irm Fanny. Os
presos e os carcereiros uniam-se no ptio, a rode-los, assim como o senhor Pancks,
Casby, o Patriarca, em pessoa, a filha Flora e John Chivery, muito comovido.
No meio dos espectadores, a pequena procisso, encabeada pelos dois irmos,
famlia. Porque o sentimento desta dignidade era nele to agudo, que estava sempre a vla ameaada.
Ser possvel, senhor - perguntou, rubro de clera -, que tenha tido, hum, o
arrojo de pr um dos meus aposentos disposio de outra pessoa?
Mil perdes! O estalajadeiro suplicava ao cavalheiro para no se zangar! Se o
cavalheiro quisesse ter a suprema bondade de aguardar cinco minutos no outro salo que
lhe fora reservado.
No, homenzinho! Nem sequer porei o p em sua casa! Como se atreveu a agir
comigo desta maneira? Por quem me toma, pois, para no me tratar, hum, para no me
tratar como faz com os outros cavalheiros?
Miss Fanny interrompeu o pai com grande aspereza, declarando ser evidente que a
impertinncia daquele homem se devia a uma razo particular, que ele teria que
confessar!
Entretanto, o estalajadeiro deslizara at ao salo em causa para lhe explicar a
delicadeza da sua situao e depressa voltou a descer as escadas, precedendo a dama e o
seu companheiro. Este dirigiu-se ao senhor Dorrit:
Desculpe-me, no tenho o dom da palavra, mas aquela dama - alis, a minha
me manda-me dizer-lhe que espera sinceramente no ter dado azo a mal-entendidos!
O senhor Dorrit, ainda ofegante, em virtude da afronta de que fora vtima, saudou o
cavalheiro e a dama com ar frio, categrico e sem apelo.
No, mas realmente, diga-me meu velho - prosseguiu o cavalheiro, aproximandose de Tip.
Tentemos os dois conciliar a situao. Na verdade, a minha me no quer
algazarras! A culpa no foi deste bom homem, mas dela. Hem? Ento isto vai, meu velho,
fica combinado!
Edmond - chamou a dama -, explicaste. mas acho que melhor ser eu a
apresentar-lhe as minhas desculpas! - disse ela dirigindo-se graciosamente para o senhor
Dorrit.
De repente, a dama, aproximando o lornho dos olhos, ficou petrificada e sem
conseguir pronunciar palavra, ao ver as duas meninas Dorrit. Miss Fanny, no primeiro plano
do quadro grandioso composto pela famlia, pela equipagem da famlia e pelos servidores
da famlia, pegara no brao da irm, como a querer mant-la ao seu lado e assumir um ar
distinto, olhando a dama de alto a baixo.
Esta - que era a senhora Merdle - recomps-se rapidamente, concluiu as suas
desculpas cheias de considerao ao senhor Dorrit, que a elas respondeu de modo
igualmente gracioso, e subiu para a carruagem, depois de ter dirigido s duas jovens um
fascinante sorriso de despedida, como faria a duas meninas de alta linhagem que nunca
tivera o prazer de encontrar, mas que considerava absolutamente encantadoras.
Quanto ao jovem Edmond Sparkler, que ficara petrificado ao mesmo tempo que a
me, foi quase impossvel arranc-lo da imobilidade com que fixava Fanny e o seu quadro
familiar. Quando conseguiram dobr-lo o suficiente para o fazerem passar pela portinhola,
os seus olhos colaram-se lucarna traseira da carruagem e a se fixaram at o trem ter
desaparecido.
Este encontro foi, para Miss Fanny, to agradvel, que o seu humor se suavizou
consideravelmente, o que a todos surpreendeu.
A Pequena Dorrit tinha, neste grupo, um papel de silncio e meditao absoluta.
Sentada, na carruagem, em frente do pai, recordava-se do velho quarto da Penitenciria e a
sua vida atual parecia-lhe um sonho. Tudo o que via era novo e maravilhoso, mas irreal.
Tinha a impresso de que aquelas paisagens montanhosas e aquelas regies pitorescas se
dissipariam a qualquer momento e que a carruagem, numa curva brusca da estrada, se
deteria, com um solavanco, diante do velho porto gradeado da priso.
Para si, o mais estranho era sentir uma distncia to grande entre ela e o pai. De
incio, tentara manter, ao seu lado, o mesmo lugar, ocupando-se dele. Mas este dera-lhe a
entender que os criados estavam ali para desempenhar essa tarefa, que uma jovem da
alta-roda se no devia rebaixar executando essas ocupaes subalternas, que devia
manter-se no seu lugar! Obedecera, sem murmurar, e achava-se, pois, sentada no canto
de uma carruagem luxuosa, as mozinhas pacientes cruzadas no regao, contemplando,
atravs da janela, cumes to irreais como a sua prpria vida interior.
Depois de terem passado pelos Alpes, dirigiram-se para a Itlia. Para a Pequena
Dorrit cada dia era um sonho que tinha incio em qualquer aposento decorado com frescos.
Atravs da janela, enquadrada pelas folhas amareladas de uma vinha, contemplava
algumas laranjeiras plantadas em vasos, nas lajes fendidas do terrao, e, mais abaixo, o
ptio, rodeado de colunas, com as carruagens e os criados. E depois, ao longo do dia,
estradas ladeadas de vinhas e oliveiras, aldeias brancas, to lindas mas to pobres, lagos
azuis e palcios em runas. Por vezes, pernoitavam, durante semanas inteiras, em
esplndidos aposentos, davam todos os dias banquetes, visitavam maravilhas, percorriam
palcios imensos, descansavam nos cantos sombrios de velhas igrejas, onde, entre as
lamparinas de ouro, o incenso fumegava. Depois deixavam as cidades e retomavam a
estrada ladeada de vinhas e de oliveiras.
A caravana familiar acabou, assim, por chegar a Veneza, onde permaneceu por
algum tempo, porque estava previsto passarem seis meses num faustoso palcio do
Grande Canal.
Nessa cidade de sonho, de ruas pavimentadas de gua, onde o lgubre silncio dos
dias e das noites apenas quebrado pelo badalar surdo dos campanrios das igrejas, pelo
marulhar da gua e pelos chamamentos dos gondoleiros, a Pequena Dorrit tinha todo o
tempo para sonhar. A famlia corria para os divertimentos e para os saraus, mas ela,
demasiado tmida para assistir s festas, pedia simplesmente que a deixassem tranqila.
Por vezes, quando conseguia escapar aos servios da sua tirnica criada de quarto, metiase numa das gndolas sempre amarrada porta do palcio, e pedia para ser conduzida
atravs daquela cidade estranha. Mas o seu refgio preferido era a varanda do seu quarto
que, situado no ltimo andar, pairava por sobre o canal. Permanecia ali tardinha,
contemplando o pr do Sol, as longas faixas violetas que abrasavam o horizonte, a luz que
banhava os edifcios tornando-os como que transparentes e iluminados a partir do interior.
Via extinguirem-se aquelas maravilhas e, enquanto as gndolas negras transportavam os
convidados para a msica e para os bailes, debruava-se varanda e contemplava a gua,
como se todo o seu passado a repousasse, fundado algures.
Arthur Clennam, que h muito no via a me, dirigiu-se, uma tardinha, em passos
lentos, para a triste casa da sua juventude. Acabava de entrar na rua estreita e ngreme
para a qual dava o alpendre, quando algum o alcanou, to rente que quase foi atirado
contra a parede. Como ia mergulhado nos seus pensamentos, o encontro apanhou-o
desprevenido e o outro teve tempo de dizer, com rudeza: Perdo, foi sem querer! e de
ultrapass-lo, antes que pudesse compreender o que lhe acontecera.
A rua descia quase a pique antes de virar bruscamente, e o homem, que, sem
estar embriagado, parecia agitado por qualquer bebida forte, percorreu-a rapidamente;
Clennam perdeu-o quase imediatamente de vista. No tinha a inteno de o seguir, mas
sentia apenas vontade de o observar um pouco mais de perto e estugou o passo para virar
a esquina. Quando a atingiu, contemplou a rua inteira. nem vivalma. E, contudo, no havia
nenhuma sombra nem nenhuma esquina que o pudessem ocultar ao seu olhar e no ouvira
qualquer porta fechar-se. Cismando naquela estranha personagem, entrou no ptio. o
homem encontrava-se ali, apoiado contra o gradeado da pequena cerca, e olhava para as
janelas da senhora Clennam, rindo em silncio. Um instante depois, avanava, lanando a
capa por cima do ombro, e batia ruidosamente porta.
Clennam avanou rapidamente e subiu, por seu turno, os degraus. O homem
observou-o com ar fanfarro, aps o que bateu de novo.
O cavalheiro muito impaciente! - observou Arthur.
Assim . Com os demnios! do meu temperamento ser impaciente!
interessa! No percebes o que ela decidiu quando nos encontrmos em Martigny? Procedeu
como se nunca nos tivesse visto. E porqu? Porque, agora, passei a ser um partido muito
conveniente para o filho! E eu quero vingar-me da sua falsidade e da sua insolncia: farei
daquele cretino do Sparkler meu escravo E verg-la-ei tambm!
Mas dar-te-s tu conta, Fanny, das conseqncias de tal comportamento?
No pensei ainda nelas, minha querida, cada coisa no seu devido tempo respondeu ela, com uma indiferena cheia de soberba. - Chegmos. E o nosso Sparkler
tambm, que grande coincidncia!
Com efeito, o apaixonado encontrava-se ali, de p na sua gndola, segurando um
carto de visita e perguntando aos lacaios se estava algum em casa. Os gondoleiros das
jovens, a quem a perseguio exasperara, provocaram ento uma suave coliso entre as
duas barcas: o galante executou uma pirueta para trs e apenas pde exibir sua amada
a sola dos sapatos, enquanto o resto do corpo se balanava nos braos dos seus criados.
A partir daquele dia, a vida de Fanny passou a ser uma longa sequncia de
angstias e perplexidades. A famlia emigrara para Roma, onde a senhora Merdle vivia,
alis, e o apaixonado seguira-a, naturalmente. E toda a gente em breve ficou a saber quem
era a terna senhora do corao do senhor Sparkler, embora muito caprichosa com ele,
Fanny, todavia, no o repelia. Ligara-se suficientemente a ele para se sentir comprometida
sempre que ele se mostrava ridculo, isto , com muita freqncia. Envergonhava-se dele,
no se decidia nem a repeli-lo nem a encoraj-lo e, torturada pelo receio de a senhora
Merdle tirar partido da sua confuso, voltava para os saraus num profundo estado de
perturbao e de agitao.
Querida Fanny, o que se passa? - perguntava Amy, ao v-la precipitar-se para o
toucador e tentar raivosamente chorar.
O que se passa, grande palerma! Se no fosses to tapadinha, no me
perguntavas! Quem me dera morrer!
o senhor Sparkler, minha querida?
O senhor Sparkler - repetiu Fanny, vincando bem as slabas com um desprezo
sem limites, como se fosse a ltima pessoa, face da Terra, em quem lhe ocorreria
pensar. - No, menina-morcego, no ele!
Arrependendo-se logo pela maneira como interpelara a irm, desfez-se em soluos
dizendo que a obrigavam a mostrar-se odiosa.
Escuta-me, meu pequeno anjo - disse finalmente -, isto no pode continuar
assim, preciso de lhe pr termo, de uma maneira ou doutra! Percebes, minha querida?
Sim. - respondeu Amy, que no compreendia muito bem.
E querers tu aconselhar=me, minha querida - prosseguiu a outra, enxugando os
olhos.
Sim oh, s a minha tbua de salvao!
Depois de ter abraado com grande ternura a sua tbua de salvao, pegou num
frasco de perfume, deitou algumas gotas num lencinho e refrescou a fronte e os olhos.
Meu tesouro, o que te vou dizer decerto te ir espantar: a despeito da nossa
fortuna, esbarramos, falando do ponto de vista social, com grandes obstculos. No me
compreendes muito bem, no verdade? Quero eu dizer que, ao fim e ao cabo, a alta
sociedade considera-nos novos-ricos -deu uma pancadinha na testa da irm e murmurou -.
E a questo que ponho a mim prpria a seguinte deverei eu decidir-me a assumir a
tarefa de superar esses obstculos em nome da nossa famlia?
Mas de que maneira? - perguntou a Pequena Dorrit com inquietao.
Nunca suportarei que a senhora Merdle me atormente ou me trate com
condescendncia! Prosseguiu Fanny, cada vez mais exaltada e ficando com a testa
avermelhada, fora de lhe dar pancadinhas. - No podemos negar que o Sparkler tenha
uma boa situao ou que pertena a uma excelente famlia. Que ele seja inteligente ou
no. de qualquer dos modos, seria incapaz de suportar um marido inteligente! No poderia
sujeitar-me a uma tal autoridade.
Oh, minha querida Fanny! - exclamou Amy, experimentando um certo terror
perante o que estava a pressentir. - Se amasses algum, no pensarias dessa maneira! Se
o amasses!
Fanny deixou de torturar a testa e olhou para ela:
Oh, na verdade! Santo Deus, h certas pessoas que mostram uns ares de
conhecerem a fundo determinados assuntos.
Mas, Fanny, mereces um marido muito superior ao senhor Sparkler!
Ora, Amy, s sei que queria ter uma posio mais definida e mais firme para
me impor quela mulher insolente!
E para isso, Fanny, casarias com o filho? e sujeitar-te-ias a ser infeliz para toda
a vida?
No seria uma vida desgraada, seria a vida que mais me convm, Sim, que me
convm plenamente.
Havia na sua voz uma entoao ligeiramente amarga, ao pronunciar aquelas
palavras. Levantou-se e contemplou-se no grande espelho, com um risinho orgulhoso,
batendo as mos por cima da cabea:
A sua distino Vai conhecer a minha. Serei a rival dela e isso significar o
objetivo da minha vida! E a danarina que ela desprezou por completo e que em nada se
pareceu comigo. Oh, no danar diante dos seus olhos enquanto viver!
Algumas semanas depois, ficou decidido o casamento. A Pequena Dorrit, ao
inteirar-se da notcia, pousou a cabea no ombro da irm e ps-se a chorar. Fanny, a
princpio, riu-se, mas em breve apoiava o rosto contra o de Amy e punha-se tambm a
chorar - um pouco. Foi a ltima vez que deixou transparecer os poucos sentimentos que
fora obrigada a reprimir em virtude daquele casamento. A partir daquela altura, enveredou,
com o seu andar imperioso obstinado, pelo caminho que escolhera.
O casamento foi magnfico: nunca o cnsul britnico em Roma celebrara algum
que se lhe igualasse. Depois, os recm- casados partiram para Florena, onde o senhor
Dorrit se lhes devia juntar, a fim de os acompanhar at Londres. Fanny subiu para a sua
deslumbrante carruagem. E, depois de ter rolado alguns minutos pela superfcie lisa de um
pavimento uniforme, comeou a sofrer solavancos ao longo de um Lodaal de Desencanto
e atravs de uma longa, longa avenida de runas e de destroos. Dizem que muitas outras
carruagens de npcias seguiram o mesmo trilho e que ainda o percorrem.
A nica nuvem negra daquela estada foi o conflito que travou no ntimo, uma noite,
quando regressava de carruagem: passaria ou no diante da Penitenciria, para rever o
velho e familiar porto de ferro? Resolveu no passar por l e surpreendeu o cocheiro com
a violncia com que se ps a seguir pela Ponte de Waterloo, trajeto que o teria conduzido
ao seu antigo domiclio. Mas a questo gerara dentro dele um conflito que o deixou
vagamente descontente a noite inteira. Mesmo mesa do senhor Merdle se sentiu pouco
vontade e envergonhava-se das idias que lhe ocupavam o esprito, idias to deslocadas
no meio de uma reunio to distinta!
O banquete de despedida correu no meio de grande fausto e rematou da maneira
mais brilhante a sua estada. Fanny aliava sua juventude e sua beleza uma tal
segurana no seu papel de anfitri, que parecia estar casada h vinte anos. O pai sentiu
que a podia deixar, sem inquietaes, trilhar os caminhos da distino e desejou ter outra
filha como aquela.
Minha querida - disse-lhe, despedida -, a nossa famlia conta contigo para,
hum, manter a sua dignidade. sei que nunca a desiludirs.
No, pap - respondeu Fanny -, pode contar comigo. Transmita minha querida
irm todo o meu carinho e diga-lhe que lhe escreverei em breve.
O senhor Merdle aproximou-se furtivamente do senhor Dorrit e insistiu em
acompanh-lo at ao fundo das escadas. Todos os protestos do senhor Dorrit resultaram
em vo, teve a honra de ser acompanhado at porta por aquele homem eminente que,
como lhe repetiu o senhor Dorrit ao apertar-lhe a mo, o cumulara verdadeiramente de
atenes durante a sua memorvel visita. Desta forma se despediram e o senhor Dorrit
subiu para a carruagem, a transbordar de orgulho com a grandiosidade daquela partida.
Tambm a sua chegada ao hotel se rodeou de solenidade. Cerca de meia dzia de
lacaios ajudaram-no a descer da carruagem e atravessou o hall com uma tranqila
magnificncia quando - horror - uma viso o petrificou. o minsculo John Chivery,
vestido com a sua mais bela fatiota, o imenso chapu debaixo do brao e a bengala de
marfim na mo, aguardava-o, com uma caixa de charutos!
Este jovem insistiu em esperar pelo senhor - disse o porteiro. - Assevera que o
cavalheiro ficaria muito contente por o ver.
O senhor Dorrit lanou ao rapaz um olhar furibundo, mas disse, fazendo apelo a
toda a calma que lhe restava:
Ah! o pequeno John, Se no me engano, o pequeno John, no verdade?
Sim, senhor Dorrit, sou eu respondeu John.
Este jovem pode subir - disse aos criados -, receb-lo-ei l em cima.
nasceu aqui.
Esta no sentia vergonha nem dele nem do que ele dizia. Estava plida e
aterrorizada, mas a sua nica preocupao era acalm-lo e ajud-lo. Mantinha-se ao seu
lado, o rosto virado para ele e suplicava-lhe que fosse com ela.
Nascida aqui! - repetiu ele, pondo-se a chorar. - Criada aqui, senhoras e
senhores, a minha filha. Filha de um pai desgraado mas que permaneceu, hum, um
cavalheiro. Pobre, sem dvida, mas, hum, sempre orgulhoso. Sempre orgulhoso. Tornou-se
habitual que os meus admiradores pessoais - apenas os meus admiradores pessoais desejem testemunhar a sua vontade de reconhecer a minha posio quase, hum, oficial
aqui, cumulando-me, hum, de pequenas ofertas, que vulgarmente tm a forma, hum, de
testemunhos pecunirios. Ao aceitar essas humildes homenagens julgo, julgo no estar,
hum, a comprometer-me e manter, como direi, a minha, hum, dignidade pessoal. Senhoras
e senhores, que Deus os abenoe a todos!
A maior parte dos convidados abandonara a sala e a Pequena Dorrit e o pai ficaram
completamente ss. Finalmente, ela conseguiu convenc-lo a sair, obrigou-o a subir para
um trem e levou-o para casa. A larga escadaria do seu palcio romano reduzia-se, aos
seus olhos enfraquecidos, aos degraus estreitos da priso de Londres e consentiu que
apenas a filha e o irmo lhe tocassem. Ambos o levaram para o quarto e o meteram na
cama. E, a partir daquele momento, o seu pobre esprito traumatizado passou somente a
conhecer a Penitenciria. Quando ouvia passos na rua, tomava-os pelos dos prisioneiros
andando no ptio. Quando chegava a hora de habitualmente se abrirem as portas, sentia-se
to impaciente por ver, o seu amigo Bob, que precisaram de inventar que Bob - que
morrera h muito, o bom homem - apanhara uma constipao e no podia sair.
Depressa caiu num estado de abatimento to profundo, que nem conseguia levantar
a mo. Certa vez, perguntou se Tip fora solto, mas parecia ter se esquecido dos dois
filhos ausentes. Porm, aquela que tanto fizera por ele e que disso fora to pouco
recompensada esteve sempre presente no seu esprito.
De forma que, durante dez dias, a Pequena Dorrit se inclinou sobre o seu
travesseiro, a face encostada do pai. Por vezes, sentia-se to esgotada que por uns
escassos minutos se deixava adormecer. Depois acordava para contemplar, de olhos
marejados de lgrimas, aquele que se encontrava junto dela e para ver uma sombra, mais
negra do que a sombra do muro da Penitenciria, espalhar-se pelo rosto amado.
Uma tarde, os reflexos das grades da priso e o ziguezague de ferro do cimo do
muro desapareceram, o rosto emoldurado pelos cabelos grisalhos foi-se gradualmente
transformando numa rplica macilenta da Pequena Dorrit e, depois, mergulhou no descanso
eterno.
consultando o relgio -, a mar no espera por ningum, tenho que partir, meu caro amigo.
Tem a minha absoluta confiana. At breve!
Os dois homens trocaram um cordial aperto de mo e Doyce subiu para o trem, no
meio das aclamaes dos seus companheiros de trabalho. O senhor Cavaletto, o pequeno
italiano aleijado, tambm ali se encontrava, porque Clennam lhe arranjara um emprego na
empresa. Arthur pediu-lhe que o acompanhasse, a fim de o ajudar a pr os papis em
ordem. E quando se azafamavam no escritrio, o esprito de Clennam foi invadido por
aquilo que tanto o preocupava h algumas semanas. essa estranha e inquietante
personagem que encontrara em casa da me, naquela misteriosa noite.
Conhece Blandois? - inquiriu Arthur.
No, no - respondeu energicamente o italiano -, conheo o Rigaud!
Clennam tirou de uma gaveta um anncio, que desdobrou em cima da secretria;
era um anncio da Polcia, com o retrato de Blandois, dizendo que um cavalheiro
estrangeiro desaparecera, uma noite, no bairro da City, em Londres. Entrara na casa de
Clennam & Cia. la pelas nove horas e os moradores da casa afirmavam que sara um
pouco antes da meia-noite. Depois, desaparecera sem deixar vestgios. Rogava-se
insistentemente a qualquer pessoa que o tivesse visto que participasse imediatamente
Polcia.
Cavaletto debruou-se sobre o retrato e exclamou:
Sim, sim, ele, no h duvida! Mas, naquela altura, chamava-se Rigaud!
muito importante para mim - disse Clennam, profundamente agitado. - Digame, onde o conheceu?
Cavaletto largou o anncio e respondeu, parecendo contrariado:
Em Ciclia - em Marselha.
Que fazia ele?
Era um prisioneiro, e na verdade acho, sim - sussurrou o homenzinho -, que era,
que era um assassino.
Clennam recuou, como se tivesse recebido uma pancada. Cavaletto arremessou-se
ento aos seus ps, suplicando-lhe que o ouvisse:
Tambm estive preso, senhor Clennam! Fiz um pouco de contrabando entre a
Itlia e a Frana e colocaram-nos na mesma cela. Ele fora acusado de ter assassinado a
mulher, mas as provas contra ele no eram suficientes e depois vim a saber que fora
liberto. Aqui est o que sei, senhor Clennam! um assassino e um homem infame acrescentou levantando-se de um salto.
Escute - disse Clennam com gravidade. - Esse homem desapareceu.
Tanto melhor! Graas a Deus!
No, no, meu amigo. Preciso absolutamente de saber o que foi feito dele.
Cavaletto, voc, que o conhece, poderia encarregar-se de o encontrar? Prestar-me-ia o
maior de todos os favores e a minha dvida para consigo seria eterna!
o meu benfeitor, senhor Clennam, sou eu que estou em dvida para consigo.
com prazer que o farei! No sei onde procur-lo, nem por onde comear, mas coragem!
Parto imediatamente!
E sobretudo, Cavaletto, nem uma palavra a quem quer que seja!
Prometido - exclamou Cavaletto, afastando-se.
Trs meses se haviam passado desde que os dois irmos tinham sido enterrados
no mesmo tmulo no cemitrio dos estrangeiros, em Roma.
Em Londres, nesse lapso de tempo, continuava a ascenso brilhante do senhor
Merdle. Tratava-se, agora, de se tornar nobre e por todo o lado as pessoas se
interrogavam se seria feito baronete, par ou lorde. Em determinados crculos, falava-se da
sua sade, que parecia atorment-lo constantemente sem que ningum conseguisse
detectar qualquer doena.
Aquela noite era a primeira do Vero e a mais longa do ano. O mdico do senhor
Merdle oferecera um grande jantar. Ao ficar sozinho, depois de se ter despedido dos
convidados, instalou-se num pequeno salo para ler. Era quase meia-noite, quando a sua
ateno foi bruscamente desviada por um toque na porta. Desceu para abrir: na soleira
encontrava-se um homem em mangas de camisa, muito agitado e arquejante.
Venho dos banhos turcos da tua vizinha, senhor doutor, quer acompanhar-me
com urgncia? Encontraram este bilhete na mesa.
No papel estava escrito o endereo e o nome do mdico, mas, ao reparar na letra,
este pegou imediatamente no chapu e seguiu o homem.
Ao chegarem aos banhos, eram aguardados por todos os empregados do
estabelecimento, que andavam num vaivm pelos corredores.
Que toda a gente se mantenha distncia - disse o mdico. - Voc, meu amigo,
conduza-me depressa!
Enveredaram por um corredor de cabinas; o mensageiro deteve-se junto da ltima
porta e afastou-se, para dar passagem ao mdico.
A um canto, achava-se uma banheira, cuja gua acabava de ser esvaziada. Estirado
nessa banheira, coberto com um lenol, que sobre ele fora apressadamente atirado,
achava-se o cadver de um homem de constituio pesada, traos grosseiros e vulgares.
Fora aberta uma das bandeiras da porta, para deixar sair o vapor que enchia o quarto. Ao
fundo da banheira, o mrmore branco estava manchado de horrveis sulcos vermelhos. E,
influncia que ela exercera nas suas melhores resolues. Parecia-lhe que estava agora a
pagar por se ter afastado dela e permitido que algo se interpusesse entre ela e a
recordao das suas virtudes.
A porta abriu-se e apareceu a cabea do senhor Chivery pai.
Vou sair, senhor Clennam. Posso fazer alguma coisa por si?
No, muito obrigado.
Desculpe-me por ter aberto a porta, mas o senhor no me ouviu. Bati umas
cinco ou seis vezes e o senhor no respondeu.
Saindo do seu torpor, Arthur, pela janela, apercebeu-se de que o ptio j fora
invadido pelas trevas e que devia ser tarde.
Chegou o seu processo. Mas queria-lhe dizer outra coisa, senhor Clennam. No
ligue ao meu filho, peo-lhe, se ele parecer um pouco difcil. O meu filho um rapaz de
corao, senhor Clennam, e muito atilado, eu e a minha mulher podemos garanti-lo.
Pronunciadas estas misteriosas palavras, o senhor Chivery retirou-se. No tinham
decorrido dez minutos quando, por seu turno, John Chivery assomou porta:
Aqui est a sua mala de mo e o seu ba - disse pousando-os no cho com
grande cuidado.
Agradeo-lhe infinitamente essas atenes. Est agora disposto a apertar-me a
mo, espero eu.
John recuou, a mo fechada, com uma expresso severa pintada no rosto e,
contudo, tinha os olhos marejados, provavelmente de lgrimas de piedade.
Porque est zangado comigo - perguntou Clennam. - E, ao mesmo tempo, porque
me faz estes favores? Deve haver algum mal-entendido entre ns.
No um mal-entendido, cavalheiro, de modo nenhum. E se o regulamento o
permitisse, se eu fosse mais forte e se o senhor no estivesse nessa infeliz situao,
poderamos resolver o assunto com uma luta!
Arthur olhou-o, estupefacto, depois, soltando um profundo suspiro, voltou a sentarse na velha e coada poltrona.
Trata-se de um mal-entendido - disse em tom cansado -, esqueamos o
assunto.
Ao cabo de um instante, John replicou com mais suavidade:
Desculpe-me, cavalheiro. Sabe que alguns destes mveis me pertencem? Ora
bem, se quiser, empresto-lhos. Pertenciam a um cavalheiro: um grande homem. que viveu
aqui e que j morreu. Decerto ignorava que o fui ver, quando se encontrava em Londres:
foi suficientemente bondoso para me mandar sentar e pedir notcias da minha famlia. Mas
achei-o muito mudado. Perguntei-lhe como estava a Miss Amy.
pela miss
franco comigo? Julga o senhor que tudo o que fiz esta manh foi por sua causa? Ora bem,
no foi. Ento, porque no fala com sinceridade?
Afirmo-lhe que no estou a compreender. Olhe para mim. Considere a situao
em que me encontro. Iria ainda acrescentar s minhas faltas a de ser ingrato ou traidor
para consigo? Asseguro-lhe que no estou a compreender!
A incredulidade que se lia no rosto de John foi-se gradualmente transformando em
dvida.
Senhor Clennam - disse olhando-o atentamente -, quer o senhor dizer que no
sabe?
Mas no sei o qu, John?
Jesus, ele pergunta o qu! Senhor Clennam est a ver aquela janela E aquele
muro E aquele ptio? Dia aps dia, noite aps noite, semana aps semana, ms aps ms,
tudo aquilo foi testemunha!
Mas testemunha de qu - perguntou Clennam.
Do amor de Miss Dorrit!
Por quem?
Por si - replicou John, voltando a sentar-se, muito plido, na poltrona.
Arthur ficou imvel, como se tivesse recebido uma pancada na cabea, o olhar fixo
em John, os lbios entreabertos, incapaz de articular palavra.
Eu - exclamou, finalmente, em voz alta.
Ah! - gemeu o pequeno John. - Sim, o senhor.
Arthur, ao responder, tentou sorrir:
pequeno vulto, envolto numa capa negra. Pareceu-lhe que a capa se desfazia e tombava no
cho e nessa altura julgou estar a ver a Pequena Dorrit, envergando o seu velho e coado
vestido. Julgou v-la tremer, unir as mos, sorrir e desfazer-se em lgrimas.
Despertou e deu um grito. A Pequena Dorrit encontrava-se ajoelhada aos seus ps,
de olhos marejados de lgrimas:
Oh, meu melhor amigo! Querido senhor Clennam, espero que no v chorar! A
no ser de jbilo por me ver. Aqui estou eu de novo!
Como ele a abraava, afirmou-lhe:
No me disseram que estava doente!
Ser possvel que esteja aqui E com esse vestido?
Pensei que o preferiria a outro qualquer! S ontem cheguei a Londres com o meu
irmo e imediatamente procurei saber notcias suas. No pensou em mim na passada
noite? Pois eu pensei em si com tanta inquietao!
Desde que me aqui encontro, Pequena Dorrit, penso em si todos os dias, a cada
hora, a cada minuto!
verdade! verdade!
E ao ver-lhe o rosto radioso, que corava de alegria, sentiu-se envergonhado, ele, o
J me sinto suficientemente desonrado, minha Pequena Dorrit, no quero atolarme tanto e arrast-la, a si, to querida, to generosa, to boa, na minha queda. Deus a
abenoe. No falemos mais no assunto.
Abraou-a como se fosse sua filha.
Sinto-me muito mais velho, muito mais derrotado e muito mais indigno do que
antigamente. temos que esquecer o que eu fui e ver apenas ao que agora estou reduzido.
Adeus, minha filha.
No tenho coragem para lhe pedir que me esquea, mas compreenda que j passou
a poca em que tinha algo em comum com esta priso.
Oh! No me diga - exclamou ela, desfazendo-se em soluos - que no posso
voltar! No me abandone assim!
Ressoou a sineta, anunciando que as portas se iam fechar. Arthur agarrou na capa
negra e cobriu ternamente os ombros da Pequena Dorrit.
Dir-lho-ia se tivesse coragem! Mas no seria capaz de banir para sempre esse
querido rosto e abandonar toda a esperana de o rever. Somente no venha com muita
freqncia. A priso um lugar impuro.
Acompanhou-a at porta, porque a sineta estava prestes a calar-se e o porto
fechou-se pesadamente atrs dela, com um ranger pungente. O ltimo dia da semana
concedida por Rigaud Blandois passou pelos muros da penitenciria, pelos telhados e
campanrios da City londrina. Durante o dia inteiro, nenhuma visita veio perturbar a velha
casa Clennam. Mas no momento em que o Sol se punha, um homem atravessou o alpendre
e dirigiu-se para a casa arruinada. Era Blandois, que comparecia ao encontro.
Ao seu toque imperativo, Flintwitch veio abrir e conduziu-o diretamente ao quarto
da senhora Clennam: esta, como de costume, encontrava-se impassivelmente sentada no
seu sof preto, enquanto Affery passejava a um canto, a cabea inclinada sobre a agulha.
Blandois, com a sua insolncia habitual, afundou-se pesadamente numa poltrona.
Ento, minha senhora, tudo em ordem? A senhora Clennam e Jeremy
entreolharam-se e tambm para Affery, sobre quem Jeremy descrevia uma espiral em
direo ao banquinho em que a velha estava sentada.
Vamos - disse, esfregando as mos -, comecemos sem mais delongas: Affery,
mulher, temos assuntos a tratar, de modo que pe-te a mexer.
De sbito, porm, para estupefao de todos,
Affery arrojou a costura ao cho, precipitou-se para a janela aberta e inclinou-se
para o vo, gritando:
No, no me irei embora, Jeremy, no. Ficarei aqui! Quero ouvir tudo o que no
sei e dizer tudo o que sei, Mesmo que tenha de morrer! Quero, quero e quero!
Jeremy, aps
ameaador:
alguns
minutos
me certificar de que a senhora era efetivamente a dama que eu procurava. Aps o que
prometi ao Jeremy voltar e, delicadamente, retirei-me.
A senhora Clennam mantinha-se impassvel, de olhar sombrio.
E um dia regresso sem me fazer anunciar. Nessa altura, informo-a de que tenho
algo para lhe vender que poderia, caso a no comprasse, compromet-la, minha senhora, a
si, por quem sinto uma profunda estima. E, sem fornecer mais detalhes, pedi mil libras,
acho eu. Foi isso, minha senhora?
Obrigada a responder, ela retorquiu, contrariada:
Sim, o senhor exigiu essa quantia.
Ora bem, agora, exijo-lhe duas mil! Eis o que acontece a quem deixa protelar os
negcios. Mas voltemos a essa segunda entrevista. No chegmos a um acordo. Eu, que
tenho um temperamento jovial, desapareci, laia de partidinha, como se me tivessem
assassinado! Decerto a senhora teria oferecido metade da soma para me encontrar e
desse modo dissipar as suspeitas que comeavam a nascer. Infelizmente, o seu querido
filho estragou a minha brincadeira. Como conseqncia, minha senhora vim aqui pela
ltima vez. Ouve bem? P-la ltima vez! E, antes de tudo, precisamos de liquidar a minha
conta do hotel. Vamos! O dinheiro!
Veja a conta e pague-a, Flintwitch - ordenou a senhora Clennam.
Jeremy apanhou a conta que Blandois lhe atirara cara, examinou, com olhar turvo,
o montante, tirou do bolso um pequeno saco de pano e deps a quantia na mo do outro.
Blandois fez tilintar moedas, atirou- as ao ar, apanhou-as de novo e proferiu:
Esta msica, para o arrojado Rigaud Blandois, como o gosto da carne crua
para o tigre. Ento, minha senhora, qual a sua resposta?
J lhe disse, cavalheiro, no somos assim to ricos como o senhor imagina e as
suas exigncias so desmedidas. Neste momento, no estou em condies de satisfazer o
seu pedido, mesmo que o desejasse.
Desejasse? Mas diga-me, minha senhora, se o deseja, que eu saberei o que
fazer! Diga-o! Rpido!
Ela respondeu, no mesmo tom imparcial:
Parece que est de posse de um papel que eu desejo ardentemente recuperar.
Para mim, pode valer uma certa quantia em dinheiro, mas no poderei dizer quanto. Somos
pobres e no quero arruinar-me por um papel cujo contedo desconheo. Fale com mais
clareza, caso contrrio pode ir para onde lhe aprouver.
Ele fixou-a demoradamente com um sorriso diablico.
A senhora uma mulher corajosa! Pois ento, vou-lhe contar, minha senhora,
esqueas. No, no me esqueo. Mas essa mera frase significa algo mais para mim do
que para ele. No me esqueo de que fui designada pela Providncia para cumprir os seus
desgnios.
Enquanto pegava no relgio com aquela nova liberdade de movimentos, da qual
parecia no se dar conta, Rigaud gritou, fazendo estalar desdenhosamente os dedos:
Vamos, minha senhora, o tempo passa! Sei tudo isso; vamos ento ao que
interessa, minha muito piedosa senhora, ao dinheiro roubado!
Que miservel o senhor ! - respondeu ela, escondendo o rosto entre as mos. Que erro fatal cometeu Flintwitch que o fez entrar de posse dessa clusula?
Ah! Ah! Que estranha coincidncia! Ento estou de posse de um papelinho
escrito pelo seu punho, assinado pela senhora e pelo meu velho intriguista: um aditamento
ao testamento que o velho tio lhe ditou, no qual legava mil guinus jovem beldade, que a
senhora condenou morte lenta, mil guinus mais jovem das filhas que o seu protetor
teria aos cinquenta anos, ou ento, no caso de no as ter, mais jovem das filhas de seu
irmo. E qual era o nome do homem que sustentou e ajudou a jovem rf? Diga-o, minha
cara senhora! Frederick Dorrit! E quanto a esse aditamento ao testamento que Gilbert
Clennam lhe ordenou que escrevesse e assinasse antes da sua morte, e quem, em
seguida, se apoderou dele, pelo dinheiro e para impedir que fosse executado? Foi a
senhora, piedosa dama, ajudada pelo seu velho cmplice!
No foi pelo dinheiro, miservel - gritou ela, fazendo um esforo para se
levantar. - Se Gilbert Clennam, que ficara senil, imaginou dever recompensar o crime, no
deveria eu impedi-lo? Esse Frederick Dorrit a causa de tudo, foi ele quem arrastou a
pobre jovem para a msica e para o canto, atividades satnicas! Se no tivesse feito dela
uma cantora, nunca o pai de Arthur a teria conhecido! No procurei destruir esse papel,
guardei-o aqui durante anos e a qualquer momento podia mandar executar a doao.
Quando, finalmente, o mandei destruir - pelo menos assim julguei -, a criminosa morrera
h muito e Frederick Dorrit, arruinado e senil, j recebera o seu justo castigo. A filha no
existia; quanto sobrinha, o que fiz por ela valeu mais do que o dinheiro, do qual no teria
sabido tirar partido.
Aps um momento de silncio, acrescentou, olhando para o relgio:
Ela est inocente. Ter-lho-ia legado, por minha morte.
Poder-me-ia ainda dizer, venervel dama, a que homem confiou a pequena
cantorazinha? Ser um homem que conhece bem o nosso velho tratante e que com ele se
avistou, no faz muito tempo?
Sou eu que lhe vou dizer - exclamou subitamente Affery. - Vi-o no primeiro dos
meus sonhos! o irmo gmeo do Jeremy! Esteve aqui na noite em que o Arthur voltou
para casa e o Jeremy entregou-lhe um cofre de ferro que ele levou, j a noite ia avanada.
Socorro! Assassino! Salvem-me do Jeremy!
O senhor Flintwitch precipitara-se para ela, mas Blandois reteve-o e impediu-o de
ir mais longe.
O qu - exclamou. - Atacar uma dama que tem tanta queda para os sonhos?
Ah! Ah! Ah! Como se parece com o seu irmo, meu Flintwitchezinho! E exatamente como
eu o conheci, na taberna, em Anvers! Uma esponja famosa! Morava numa pequena
mansarda, rente ao telhado onde intervalava o seu conhaque e o seu tabaco com doze
sestazinhas e um ataque de delirium dirios, at ao dia em que o ataque foi forte de mais
e voou para o cu. Ah! Ah! Ah! Como consegui apossar-me dos papis que se
encontravam no cofre de ferro! Que importncia tem! O que interessa que se
encontram em lugar seguro!
A senhora Clennam olhou, estupefacta, para Flintwitch que arrumado no seu canto,
cofiava o queixo. Finalmente, tomou a palavra:
No precisa de me fitar com esses olhos arregalados! a mulher mais
orgulhosa do Mundo e quis fazer vergar toda a gente! Mas eu bem lhe disse que no sabia
do que eu era capaz! Bem me ralam os seus olhos arregalados! Escutei a clusula I
escondera-a da senhora num lugar secreto. H muito que a aconselhara a indicar-me esse
lugar, a fim de que pudesse tir-la e queim-la. Mas a senhora, teimosa que nem uma
mula, negou-se sempre. Quando o Arthur voltou, a senhora comeou, finalmente, a sentir
medo e tive oportunidade de a ir buscar adega. Porm, tudo aquilo me deixara muito
enervado, quis mostrar-lhe que eu era o mais forte. queimei, diante de si, um velho papel
e confiei a clusula ao meu irmo, que naquela noite partia de Inglaterra para Anvers. Mas
aquele imbecil, aquela esponja de conhaque, no soube calar-se! Eu bem desconfiei, no dia
em que vi aparecer o Blandois!
A senhora Clennam desviou lentamente o olhar e inclinou a cabea.
Reembolso-o desse cofre e desse segredo, cavalheiro. Mas, de momento, no
tenho disponvel a quantia que me pede. Quanto aceitaria hoje, quanto aceitaria mais tarde
e que garantia terei eu do seu silncio?
Meu anjo - retorquiu Blandois -, disse-lhe quanto queria e que o tempo
escasseava. Antes de c vir entreguei a outra pessoa cpias desses papis. Se no pagar
antes de as portas da Penitenciria se fecharem, ser demasiado tarde. Arthur Clennam
t-los- lido.
Ela deu um grito e levantou-se, vacilou um instante, como se fosse cair, mas
manteve-se firme.
Que quer dizer, monstro, que quer dizer? Diante daquele vulto fantasmagrico,
semelhante a uma morta que se tivesse levantado do tmulo, Rigaud recuou e falou em
tom mais brando.
Miss Dorrit - disse - est muito afeioada ao preso. Neste momento, cuida dele.
Deixei, para ela, um pequeno embrulho, que dever entregar ao detido no caso de ningum
o ir buscar antes da hora do fecho. Est ver como o tempo voa?
Violentamente agitada, a senhora Clennam correu para o armrio, que abriu com
brutalidade, e pegou num xaile, com que se cobriu. Affery arrojou-se aos seus ps e
agarrou-se-lhe ao vestido:
No, no, minha senhora, fique aqui! Onde quer ir? No saia, vai cair morta na
rua!
A patroa libertou-se dela, disse a Blandois que esperasse e saiu a correr. Por
alguns instantes, ficaram emudecidos, depois Affery precipitou-se no seu encalo. Jeremy
saiu lentamente do quarto, avanando de lado, como um caranguejo silencioso. Rigaud,
vendo-se sozinho, estirou-se no banco estofado, diante da janela.
O sol j se pusera e o vulto espectral ia avanando pelas ruas, que o crepsculo
obscurecera. Ao atingir as artrias principais, atraiu todos os olhares. As pessoas viravamse, estupefactas, passagem daquele vulto magro e esgazeado, que avanava em passo
rpido e titubeante, envolto no seu estranho vestido preto. Em dada altura, parou, para se
informar do caminho, e depressa se viu rodeada por um crculo de rostos curiosos:
Porque me cercam? - perguntou, a tremer. Uma voz trocista respondeu:
Porque voc maluca!
Tenho tanta lucidez de esprito como qualquer um de vs. Procuro a Penitenciria.
Isso mostra que voc maluca, porque fica mesmo em frente do seu nariz!
No meio das gargalhadas, um jovem de rosto meigo aproximou-se da pobre mulher
e pegou-lhe no brao.
Venha, vou acompanh-la.
Era o pequeno John. conduziu-a ao cubculo, que a ela pareceu um refgio aprazvel,
depois do turbilho do exterior.
Queria ver a Miss Dorrit. Ela est c?
John olhou-a com interesse.
Sim, est c. Mas quem a senhora?
Sou a senhora Clennam.
A me do senhor Clennam? - perguntou o jovem.
Sim. - respondeu ela, aps alguma hesitao.
isso endureceu-me ainda mais. Mas respeitou-me sempre e cumpriu sempre as suas
obrigaes para comigo. Por nada deste mundo desejaria ser derrubada do lugar que aos
seus olhos sempre ocupei, nem lhe ser apresentada como algum desprezvel. Se isso
tiver que ser feito, nunca mais terei coragem para o encarar!
Soou a primeira sineta, anunciando que as visitas haviam acabado.
Escute - disse a senhora Clennam em sobressalto. - Tenho outra coisa a pedirlhe. O homem que lhe trouxe este embrulho aguarda, em minha casa, para que eu pague
pelo seu silncio e s pagando, posso impedir que o Arthur venha a inteirar-se disto. A
quantia que me exige demasiado elevada para mim, neste momento no a tenho e ele
ameaa-me de, se no lhe pagar, vir ter consigo. Quer acompanhar-me e dizer-lhe que
est a par de tudo. Quer ajudar-me nesta aflio?
A Pequena Dorrit aceitou de bom grado e ambas alcanaram a rua por unias
escadas que evitavam que passassem pelo cubculo.
Era uma bela noite estival, o cu mostrava-se sereno e lindo, todo afogueado pelos
cambiantes do crepsculo e sulcado pelas grandes faixas dos ltimos raios.
As duas mulheres percorreram as ruas silenciosas e desertas e aproximaram-se da
casa, quando ouviram um estrpito medonho, que lembrava o ribombar de um trovo.
Que barulho este? Entremos, depressa! - gritou a senhora Clennam.
Atravessaram o alpendre e faziam meno de se aproximar, quando a Pequena
Dorrit soltou um grito e reteve a companheira pelo brao. Durante um instante fugaz,
viram a velha casa diante delas e o homem que fumava, debruado no parapeito da janela.
Ouviu-se novo fragor, a casa ergueu-se, subiu, cobriu-se de fendas e ruiu. Ensurdecidas,
sufocadas, cegas, as duas mulheres protegiam o rosto, mantendo-se como que
paralisadas. Por um instante, a coluna de poeira dissipou- se, deixando entrever as
estrelas. Quando levantaram a cabea, gritando por socorro, o enorme bloco das chamins
que ainda se mantinha de p, como uma torre na tempestade, tremeu, fendeu-se e abateuse sobre o monte de runas, como que para calcar mais profundamente o miservel que
haviam esmagado.
A senhora Clennam rolou pelo solo. A partir desse instante, nunca mais conseguiu
mexer um dedo ou pronunciar uma palavra. Sobreviveu nesse estado ainda trs anos, antes
de morrer, como uma esttua, mergulhada no seu silncio.
Affery, que sara para as esperar, chegou justamente a tempo de receber a sua
velha patroa nos braos. O mistrio dos rudos que ouvira em casa estava esclarecido:
aquele velho prdio anunciava-lhe a sua queda iminente.
Os cabouqueiros que trabalharam dia e noite retiraram, ao segundo dia, os horrveis
despojos do corpo do estrangeiro. Mas em vo procuraram os restos de Flintwitch. Foram
EPLOGO
Num magnfico dia de Outono, o recluso da Penitenciria, depauperado mas
restabelecido, escutava uma voz que lia para ele. Os campos dourados haviam sido
mondados e lavrados, os frutos maduros de Vero tinham desaparecido, as mas
avermelhavam nos pomares e as bagas carmesins da sorveira salpicavam a folhagem
amarelada.
Inaltervel e nua, ignorando as estaes com o seu rosto marcado pela pobreza e
pela preocupao, a Penitenciria no fora alegrada por nenhum ornamento. As flores
podiam desabrochar, os seus tijolos e grades exibiam sempre as mesmas searas mortas.
Clennam, todavia, ao escutar a voz que lia para ele, ouvia ressoar nela a Natureza-Me e
todas as msicas com que se embalam criaturas humanas. Quando a voz se calou, tapou
os olhos com a mo, murmurando que a luz era demasiado forte.
Isso depressa acabar, querido senhor Clennam. As cartas que o senhor Doyce
lhe manda vm cheias de amizade e encorajamento e o seu advogado tambm diz que
tudo se vai resolver.
Querida filha! Querida menina! Minha boa amiga! Diga-me a verdade, Pequena
Dorrit, veio c muitas vezes quando eu no a podia ver?
Sim, vim c algumas vezes, mas sem entrar no quarto.
Quantas?
Bastantes - respondeu ela timidamente.
Todos os dias?
Acho - disse ela, depois de hesitar - que vim pelo menos duas vezes por dia.
Ele pegou-lhe na mozinha e abraou-a com fervor.
Querida Pequena Dorrit, no s o meu cativeiro que vai acabar, mas tambm o
meu sacrifcio. Precisamos de nos mentalizar que nos iremos separar para cada um seguir
o seu caminho. No se lembra do que dissemos quando regressou?
Oh, no, no esqueci! Mas aconteceu uma coisa. Sente-se melhor hoje?
Otimamente.
O suficiente para saber a grande fortuna que me calhou?
Sentir-me-ia to feliz! Nenhuma fortuna demasiada para Pequena Dorrit!
Esperei com impacincia para lhe dizer! Tem a certeza que no vai aceitar?
Nunca!
Ela olhou-o em silncio, com uma expresso no seu rosto afetuoso que ele no
compreendeu.
O que antes de tudo lhe quero dizer sobre a Fanny vai deix-lo desolado: a pobre
Fanny perdeu tudo. S lhe restam os honorrios do marido. Tudo o que o pap lhe deu, pelo
casamento, desapareceu, porque o seu dinheiro estava depositado nas mesmas mos. E o
meu pobre irmo! Tambm ele perdeu tudo. E a quanto imagina que a minha prpria
fortuna ascende?
Como Arthur a olhava com apreenso, pousou-lhe a cabea no ombro:
No tenho nada de nada. Sou to pobre como quando aqui vivia. Quando o pap
voltou a Inglaterra, confiou todos os seus bens nas mesmas mos e tudo se dissipou. Oh
meu melhor amigo, mais querido dos meus amigos, tem a certeza de que no quer
agora partilhar a minha fortuna?
Ele estreitou-a contra o peito, deixando correr lgrimas de emoo, enquanto ela
lhe punha os braos em redor do pescoo.
Nunca mais nos separaremos, meu querido Arthur! At ao fim dos nossos dias,
nunca mais! Amo-o tanto! Preferiria passar a minha vida aqui, consigo, saindo todos os
dias para ganhar o nosso sustento, do que possuir a maior riqueza do Mundo! Oh! Se o
meu pobre pai pudesse saber como sou feliz, neste quarto onde ele por tantos anos
sofreu!
Algumas semanas mais tarde, numa bela e soalheira manh, a Pequena Dorrit e
Arthur Clennam subiam os degraus da Igreja de So Jorge, situada perto da penitenciria.
Junto ao altar, eram aguardados por Daniel Doyce: regressado dos pases distantes onde
fizera prosperar as suas descobertas restitura a Arthur a sua fortuna, a sua liberdade e o
seu lugar de scio.
E o casamento foi celebrado diante de um grupo bastante comovido. o senhor
Pancks dava muito galantemente um dos braos a Miss Flora e o outro a Maggie, enquanto
atrs deles se encontravam John Chivery e o seu pai e outros carcereiros que por uns
minutos tinham acorrido a admirar a felicidade do Beb da Penitenciria.
Ao sarem, a Pequena Dorrit e o marido detiveram-se, por um instante, nos degraus
do prtico, para contemplarem o fresco panorama da rua, banhada pela lmpida claridade
outonal. Iam conhecer uma modesta vida de bondade e ventura, inseparveis e
abenoados. Desceram, pois, prazenteiramente, as ruas tumultuosas e, enquanto
penetravam nas sombras e na claridade, o bulcio, a cupidez, a arrogncia, a obstinao e
a vaidade prosseguiam a sua louca ronda.
FIM
Formatao/Converso ePub