A Pequena Dorrit - Charles Dickens

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro e
poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

A PEQUENA DORRIT
Charles Dickens

Traduo: Maria Da Graa Lima


Texto Fonte: Digital Source
Formatao/Converso ePub: Reliquia

Sumrio

Captulo I - REGRESSO CASA MATERNA


Captulo II - A PENITENCIRIA
Captulo III: O BECO DO CORAO-QUE-SANGRA
Captulo IV: DESGOSTOS DO CORAO
Captulo V - UM ADIVINHO
Captulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE
Captulo VII - UMA GRANDE NOTCIA
Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMLIA DORRIT
Capitulo IX - UMA SEQUNCIA DE DESGRAAS
Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIRIA
Captulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTRIOS
EPLOGO

Captulo I - REGRESSO CASA MATERNA


Passava-se em Londres, num domingo tardinha, numa tardinha como todas as
outras, lgubre e deprimente. S o badalar dos campanrios das igrejas agitava os edifcios
de tijolo e as ruas sombrias e desertas. Que espetculo desanimador para quem,
procurando distrair-se, olhasse pela janela! A cidade, ao crepsculo, parecia morta. Que
acabrunhamento para os trabalhadores londrinos que, aprisionados no escuro dos seus
cubculos estreitos e doentios, viam terminar em tristeza o seu nico dia de descanso!
Foi nesse momento que o senhor Arthur Clennam desceu da diligncia de Douvres.
O passageiro, um homem de cerca de quarenta anos, de rosto grave e tisnado, entrou num
caf para se aquecer e instalou-se perto de uma janela. Mas depressa ergueu a cabea
para escutar o badalar ininterrupto dos campanrios em torno dele, as suas queixas e os
seus gemidos. E, pouco a pouco, veio-lhe memria a recordao dos domingos sombrios
da sua juventude: recordou-se dos seus temores de menino, relembrou os seus domingos
no colgio, os trs ofcios religiosos a que era obrigado a assistir antes de poder engolir
um jantar bastante frugal, finalmente, os domingos passados em casa, na companhia de
uma me de rosto severo e corao impiedoso, o dia inteiro refugiada nos seus livros de
oraes.
Que Deus me perdoe - pensou - e perdoe aqueles que me educaram, mas como
odiava aqueles dias! E eis que, passados quinze anos na China, regressava a Londres num
desses horrveis domingos.
A noite ia caindo. Arthur observou, atravs do vidro, as sombrias casas defronte,
que se assemelhavam a prises: um rosto espreitava, ocasionalmente, por uma dessas
janelas imundas e logo desaparecia, como que para no ver a chuva, que comeara a cair.
O viajante abotoou a capa, ps o chapu e saiu. Em passo rpido, a despeito da
lama e dos charcos de gua suja, desceu em direo ao Tamisa por um emaranhado de
ruas tortuosas, percorreu os depsitos de mercadorias existentes ao longo do cais
silencioso e, algumas ruas mais longe, deteve-se em frente da casa que procurava. Era um
edifcio velho e isolado, de tijolo quase negro. A seguir ao alpendre, um porto enferrujado
fechava o patiozinho, votado ao abandono. Muitos anos antes, a casa comeara a inclinarse para um dos lados e tinham-na escorado com um gigantesco andaime, que continuava a
sust-la menos mal.
Nada mudou - murmurou o viajante -, sempre a mesma tristeza e desolao. E
sempre aquela luz, janela de minha me, como quando voltava do colgio!
Bateu. Ouviram-se uns passos arrastados e a porta foi aberta por um velhinho,
descarnado e encurvado, de olhar frio e penetrante.

Ah, Senhor Arthur, at que enfim - exclamou sem a mnima emoo. - Entre.
Arthur fechou a porta. O velho examinou-o luz da vela.
Est mais robusto do que antigamente, mas nunca se poder comparar ao seu
pai ou sua me.
Como vai a minha me?
Mantm-se no quarto, mesmo quando no faz tenes de se deitar: em quinze
anos, no chegaram a quinze as vezes que saiu.
Penetraram numa fria e tristonha sala de jantar.
Acho que ela no vai gostar que o senhor tenha viajado no Dia do Senhor continuou o velho com frieza -, mas, enfim, isso consigo! Vou anunciar a sua chegada.
Afastou-se, levando a vela, andando de lado como um caranguejo e de cabea
baixa, vestido de negro e de polainas compridas.
Como sou sentimental! - pensou Arthur que sentiu as lgrimas assomarem-lhe
aos olhos perante um acolhimento to glido. Fora ali que passara a infncia, silencioso e
aterrorizado, na companhia de uns pais que nunca se haviam entendido e que se evitavam
o mais possvel.
O velho voltou depressa, iluminou-lhe as escadas sombrias e abriu a porta de um
quarto imerso de escurido. Na penumbra da lareira, sentada num sof negro como um
atade, amparada por um grande almofado negro lembrando um cepo, encontrava-se a
me de Arthur, que envergava o seu vestido negro de viva. Deu-lhe um glido beijo e
mandou-o sentar-se do outro lado da mesinha. Quinze anos se haviam passado e via-se o
mesmo fogo, as mesmas cinzas e o mesmo cheiro a tinta negra pairava no quarto mal
arejado daquela mulher, agora enferma.
Minha me, que mudada est, a senhora, que era to ativa!
Para mim, o Universo reduziu-se a este quarto - replicou ela. - Graas a Deus
sempre desprezei as vaidades mundanas.
Aquela presena, aquela voz severa, faziam Arthur sentir o seu medo e timidez de
rapazinho.
Reumatismo ou doena nervosa, pouco importa - prosseguiu ela -, o facto que
as minhas pernas ficaram paralticas. J no saio do meu quarto. No saio desde. desde
quando - exclamou por cima do ombro.
Vai fazer doze anos no Natal - respondeu uma voz alquebrada, vinda da
escurido. - voc, Affery - perguntou Arthur, levantando a cabea.
A voz trmula respondeu que sim, que efetivamente era Affery, e uma velha
surgiu por um momento luz bruxuleante da lareira, antes de mergulhar de novo na

escurido.
Contudo, posso ainda ocupar-me dos nossos interesses!-prosseguiu a senhora
Clennam, apontando para uma cadeira de rodas, que se encontrava junto de uma grande
escrivaninha -, e dou graas Providncia por esta merc. Mas, para um domingo, j se
falou demasiado em negcios.
Na mesinha achavam-se alguns livros, o seu leno, as lunetas, assim como um
relgio antigo, que me e filho fitaram ao mesmo tempo.
Vejo, minha me, que recebeu a encomenda que lhe mandei depois da morte do
meu pai. Este relgio foi a sua maior preocupao e era seu desejo que eu o fizesse
chegar-lhe s mos.
Guardo-o como uma recordao do seu pai.
hora da morte, s exprimia este desejo: quase sem foras para o agarrar,
murmurou com dificuldade: "Para a tua me". E julguei que estava ainda a delirar, porque o
vi tentar abrir a caixa.
E no delirava?
No, estava perfeitamente lcido. Aps a sua morte, eu prprio abri o relgio,
pensando encontrar no interior qualquer recordao, mas s continha a tampa, de seda
bordada a prolas, que a senhora decerto viu.
A senhora Clennam abanou a cabea e repetiu:
Para um domingo, j falmos demasiado em negcios.
Depois, chamou:
Affery, so nove horas!
A velha voltou a aparecer e retirou a mesa, trazendo em seguida um tabuleiro com
biscoitos e manteiga, e, quase imediatamente, apareceu o velho, trazendo uma garrafa de
vinho do Porto, limo e especiarias, com os quais preparou um grogue quente e perfumado.
A doente, depois de acabar a sua merenda, ps as lunetas e, lendo em voz aterradora por
um dos livros, orou pela destruio de todos os seus inimigos. Depois estendeu a mo ao
filho:
Boa noite, Arthur. A Affery vai tratar de si. Cuidado com a minha mo, ela
sensvel.
Ele tocou-lhe ao de leve na mo: a me no poria entre os dois maior distncia se
vestisse uma couraa. E seguiu os dois criados pelas escadas.
Affery, quando voltaram, os dois, sala de jantar, perguntou-lhe se queria cear.
No, Affery, j comi.
Ento beba qualquer coisa, um clice de vinho do Porto.
Tambm recusou.

Arthur - sussurrou ela, baixando a voz -l porque eles me metem medo, no


razo para o senhor tambm ficar aterrorizado. Metade da fortuna pertence-lhe, no
verdade?
Sim, sim.
Ento, no se deixe intimidar. O senhor inteligente, resista-lhes. Ela
terrivelmente maldosa, sabe-o bem; e o meu marido, Jeremy Flintwitch, tambm ruim,
ol se ! E ele no a leva certa.
Os passos arrastados do velho Jeremy obrigaram-na a refugiar-se na extremidade
da sala.
Que ests tu a a fazer, Affery? - perguntou ele em voz esganiada. - Vai l
fazer a cama do menino Arthur. E mexe-te!
Tinha o pescoo to torcido que as pontas do leno palpitavam sob uma das
orelhas dir-se-ia um enforcado passeando-se com a sua corda.
Arthur seguiu Affery pelas escadas, que cheiravam a mofo, at ao ltimo andar da
casa. A grande mansarda onde entraram era ainda mais fria e mais sinistra do que as
outras dependncias, atulhadas de objetos desirmanados e partidos. Arthur foi abrir a
janela e contemplou o cu avermelhado por sobre uma floresta de velhas chamins
enegrecidas.
Affery - inquiriu, virando-se -, quem era aquela rapariga que estava no quarto de
minha me?
Que rapariga - perguntou, por sua vez, Afferry num tom bastante agudo.
Tenho a certeza de que era uma rapariga a pessoa que avistei, junto de si,
quase escondida no escuro.
Ah, ela A Pequena Dorrit! Mais um dos caprichos da sua me! Sabe Deus
porque se interessou por aquela rapariga! Mas diga-me, Arthur, esqueceu-se da sua antiga
namorada? rica e viva, podia agora casar com ela!
Que imagens a senhora Flintwitch acabara, de repente, de evocar: As de dois
garotos apaixonados Flora e Arthur, que os pais e o dinheiro haviam separado, muitos anos
atrs. Nessa altura, ele era to jovem e tinha tantas esperanas. Sonhou e imagem
longnqua de Flora, o seu primeiro amor, veio lentamente sobrepor-se a da jovem que
conhecera umas semanas antes em Marselha, a linda Cherry Meagles, cuja semelhana,
real ou imaginria, com Flora suscitara nele um interesse surpreendente. Debruou-se de
novo janela, o olhar virado para o cu em fogo e ali ficou por muito tempo, imerso nos
seus devaneios.
Quando a senhora Flintwitch sonhava, no era como Arthur, de olhos abertos. E

nessa noite, porm, teve um sonho bastante estranho e, sobretudo, muito real. To ntido
que se parecia mais com a realidade do que com um sonho.
O quarto de dormir do casal Flintwitch situava-se muito prximo dos aposentos da
senhora Clennam. Para se ter acesso a estes ltimos, desciam-se dois ou trs degraus do
outro lado da escada, de modo que Affery s tinha que dar alguns passos, quando a
senhora Clennam chamava por ela. Sendo assim, depois de ter cuidado da patroa, foi,
como de costume, deitar-se, enquanto o marido, coisa curiosa, no fora ainda para o
quarto conjugal.
Algumas horas mais tarde, a meio da noite, pareceu-lhe que acordava e que
verificava encontrar-se a cama sempre vazia. No seu sonho levantou-se, ento, espantada,
e desceu as escadas, tendo s apalpadelas chegado ao vestbulo, mergulhado na escurido,
avistou luz pela frincha da porta de um pequeno quarto que nunca era aberto e aproximouse, descala, em bicos de ps; a cena que julgou ver era to surpreendente, que ficou ali
especada, sentindo-se sufocar: havia dois Jeremy Flintwitch, sentados um em frente do
outro, o primeiro completamente desperto e olhando encolerizado para o segundo, que
ressonava numa cadeira. O Jeremy acordado, em quem imediatamente reconheceu o
marido, tal era o seu mau-humor, pegou nas tenazes que estavam na lareira e desferiu
uma pancada feroz no estmago do outro.
O que isto? O que se passa? Onde estou? - gritou o segundo Jeremy, em
sobressalto.
O companheiro fez-lhe um gesto ameaador, para o obrigar a calar-se.
H duas horas que dormes! Pega na tua capa, no teu chapu, no teu cofre e pete a mexer!
Mais um copinho de vinho do Porto antes de me ir - gemeu o ssia,
espreguiando-se -, tu prometeste, no te esqueas!
Toma, bebe-o depressa e oxal que sufoques!
tua!
O ssia esvaziou o copo com ar satisfeito e acabou de se vestir. Depois, pegou
numa caixa de ferro que se achava sobre a mesa e colocou-a debaixo do brao. Jeremy
observava o seu duplo com inquietao: certificou-se de que ele se aguentava de p, que
segurava firmemente no cofre e recomendou-lhe que o vigiasse com mais cuidado, at, do
que a sua prpria vida. Depois, dirigiu-se cautelosamente para a porta, a fim de lha abrir.
Affery, que previra este gesto, encontrava- se j nas escadas, entrevendo, pela fresta do
batente, o cu pontilhado de estrelas.
Foi ento que o sonho se tornou verdadeiramente muito bizarro: Affery teve tanto
medo de Jeremy, que lhe faltaram as foras para voltar ao quarto e ali ficou, como que

pregada ao cho, at que o marido, que subia, segurando uma vela, deu pela sua presena.
Olhou-a fixamente, sem dizer palavra, e continuou a avanar; ela, como que hipnotizada,
ps-se ento a recuar lentamente. E foi assim que, um a recuar e outro a avanar,
chegaram ao quarto. Logo que fechou a porta, Jeremy pegou na mulher pelo pescoo e
ps-se a aban-la com tanta violncia, que ela ficou arroxeada:
Ora bem, Affery, mulher - gritou o senhor Flintwitch. - Em que ests tu a
sonhar? Acorda, acorda! Deste agora em sonmbula? Adormeci l em baixo e, em pleno
pesadelo, venho dar contigo acordada! Affery, mulher - acrescentou com um esgar -, se
volto a encontrar- te a sonhar desta maneira, isso quer dizer que precisas de um bom
remdio E nem imaginas a dose que apanharias, minha velha, nem imaginas.
Na manh de segunda-feira, quando os campanrios da City deram as nove horas,
Jeremy fez rolar a poltrona da senhora Clennam para junto da grande escrivaninha e deixou
passar Arthur, que entrava.
Sente-se melhor esta manh, minha me?
Nunca mais me sentirei melhor - retorquiu ela com uma certa satisfao
amarga-, mas sei-o e suporto o meu destino.
De rosto sereno e impenetrvel, arrumou alguns papis.
Posso-lhe falar dos nossos negcios, minha me, sente-se com disposio para
isso? - perguntou Arthur.
Se me sinto com disposio - exclamou ela. - H mais de um ano que o seu pai
faleceu e, a partir dessa altura, fiquei ao seu dispor, aguardando a sua vontade!
Antes de poder deixar a China, tive muitos problemas a resolver; e depois viajei
um pouco, para repousar e descontrair-me.
Repousar e descontrair-se! - a me virou-se para ele como se no tivesse
compreendido, pois relanceou o quarto onde estava encerrada com ar escandalizado.
Alm disso, minha me, como a senhora era a nica testamenteira e como
dirigia a empresa, s me restava aguardar que tudo ficasse resolvido de acordo com os
seus desejos.
As contas esto feitas e todos os recibos verificados. Pode examin-los quando
quiser - respondeu ela.
intil; visto ter sido a senhora a resolver tudo. Posso continuar, minha me! A
senhora sabe que, de h alguns anos para c, o nosso negcio entrou em declnio. h
quarenta anos, esta casa fervilhava de atividade e, hoje, no nada. Fazemos as nossas
expedies por intermdio de outros e.
Julgo adivinhar o que vai dizer - interrompeu ela. - Deus me livre de me queixar

das amargas provaes que Ele me envia. Mereci-as, porque pequei, e aceito-as.
Como compreendeu, minha me, decidi retirar-me dos negcios. No tentarei
convenc-la a fazer o mesmo, seria tempo perdido, receio eu. Tentarei simplesmente
obter a sua indulgncia, caso tenha exercido sobre a senhora alguma influncia, por
mnima que seja; minha me, durante quarenta anos curvei-me sua vontade e s regras
que me imps. Isso sem qualquer proveito ou prazer; mas curvei- me, lembre- se disso!
Desgraado daquele que tivesse procurado clemncia no olhar inexorvel daquela
mulher Como lhe era necessria, a sua. religio de tristeza e de trevas, quebradas por
acessos de maldio, de vingana e de destruio!
Acabou, Arthur, ou tem ainda algo a acrescentar?
H ainda outra coisa, minha me: algo que h meses me persegue dia e noite e
cuja aluso me ainda mais penosa visto dizer respeito a todos ns.
A todos ns Ento, a quem?
senhora, a mim, ao meu falecido pai. Conheceu-o muito melhor do que eu; a
senhora era, mais enrgica e dominava-o; foi a senhora quem decidiu mand-lo para a
China dirigir os nossos negcios e manter-me aqui at aos vinte anos, antes de me deixar
ir ter com ele.
Ora bem! V direito ao assunto!
Ele baixou a voz e continuou, muito perturbado:
Queria perguntar-lhe se alguma vez suspeitou. A esta palavra, ela virou-se para
o filho e franziu os sobrolhos. Suspeitou de que o meu pai teria sido torturado por
algum secreto remorso?
No compreendo. Que mistrios.
No teria causado a algum qualquer dano que no teve possibilidade de reparar?
Ela olhou-o com clera, mas sem responder.
Se esta idia nunca lhe ocorreu, o que eu disse deve parecer-lhe medonho. Mas
tal suspeita obceca-me. Eu estava l, compreende, e li-lhe no rosto, quando me confiou o
relgio que lhe enviava como recordao, que tentara, em vo, escrever algumas palavras
para si! Em nome do cu, a senhora, que h quarenta anos conhece todos os nossos
assuntos, ajude-me a desvendar este mistrio!
Ela mantinha-se sempre silenciosa e recuou lentamente para o fundo da cadeira,
qual sombra feroz.
Se preciso reparar ou restituir, faamo-lo depressa! E para isso utilizaremos o
dinheiro que me cabe e do qual no disporei se no me pertencer com plena justia!
Junto da escrivaninha pendia o cordo de uma sineta; bruscamente, fez rolar a
poltrona para trs e puxou-o com violncia. Uma jovem acorreu imediatamente, muito

assustada.
Chame o Flintwitch!
Um instante mais tarde, aparecia o velho:
Com que ento, j a discutirem um com o outro!
Flintwitch, olhe para o meu filho! Mal entrou em casa ei-lo a difamar a memria
do pai em presena da me! Pede- me que lhe devasse o passado, receando que os bens
terrenos, que com tanto esforo adquirimos, sejam produto da desonestidade e perguntame a quem ser necessrio restitu-los! Viaja, diverte-se e depois atreve-se a falar de
reparao! Ser que h quinze anos no pago j pelos meus pecados! Se volta a falar
disso, Arthur, reneg-lo-ei, expuls-lo-ei para sempre da minha presena E se, apesar de
tudo, ousasse voltar, quando eu me sentisse a morrer, o meu corpo, sua aproximao,
sangraria.
Calou-se, em parte acalmada por estas palavras profticas.
Visto que me mandou chamar, poderei, porventura, saber a razo de tudo isto? perguntou Jeremy.
Pergunte minha me: o que eu disse dirigia-se exclusivamente a ela.
Oh! Oh! Muito bem! Se bem estou a compreender, o Arthur suspeitou do pai,
no verdade?
Basta, no falemos mais disso - atalhou a senhora Clennam.
Sim, sim, mas s mais uma coisa - insistiu o velho - disse-lhe que no havia
razo para suspeitar do pai?
Digo-lho agora.
Ah, agora Bom. E eu repito-lhe, Arthur, para que fique bem claro, no tem
qualquer fundamento suspeitar do seu pai. Bom. Tambm j o informou da sua deciso
quanto empresa?
Ele abandona os negcios.
A favor de.
De minha me, evidentemente concluiu Arthur.
Nesta desiluso que sofri, o meu nico consolo - replicou a senhora Clennam,
aps uma breve pausa - ser recompensar um velho servidor. O comandante abandona o
navio, Jeremy, mas continuaremos os dois, ou afundar-nos-emos com ele.
Jeremy agradeceu e asseverou-lhe a sua eterna dedicao, depois olhou para o
relgio e tocou a sineta.
Onze horas. Hora das suas ostras. Mas a senhora Clennam recusou-se a tocar
naquele prato, todavia muito apetitoso, acrescentando sem dvida este sacrifcio ao seu

rol no Grande Livro da Eternidade.


A jovem que respondera ao chamamento e trouxera as ostras era a que Arthur
entrevira, na vspera, no escuro. Devia ter vinte e dois anos, embora o rosto deixasse
transparecer mais maturidade e preocupaes do que seria natural naquela idade. Todavia,
era pequena de estatura e to franzina no seu apertado vestido, que a teramos, na
verdade, tomado por uma criana.
A Pequena Dorrit era costureira ao dia: por um salrio irrisrio, trabalhava das oito
horas da manh s oito horas da noite. O que ela fazia nesse intervalo, era um mistrio.
Serviam-lhe a refeio, que tomava sozinha, pois pretextava sempre qualquer trabalho a
terminar a fim de jantar isolada. Para costurar, instalava-se em recantos to afastados e
escapulia-se com tanta ligeireza, quando com ela cruzavam nas escadas, que mal se tinha
tempo de observar o seu rosto plido, difano e agitado, onde sobressaam lindos olhos cor
de avel. De cabea delicadamente inclinada, uma configurao frgil, umas mozinhas
incansveis, assim era a Pequena Dorrit no seu trabalho.
No decurso daquele dia, Arthur percorreu a casa de alto a baixo: achou-a to triste,
to lgubre e to poeirenta, que pegou nas malas e decidiu instalar-se no hotel. Contudo,
vinha todos os dias, para verificar contas e papis. Por vezes, encontrava a Pequena Dorrit
e a sua curiosidade em relao jovem era cada vez maior.

Captulo II - A PENITENCIRIA
Nessa poca, elevava-se junto da Igreja de So Jorge, no bairro de Southwark, a
Penitenciria. Era um edifcio retangular, que lembrava uma caserna, dividida em cubculos
miserveis e cercada por um ptio estreito e empedrado, rodeado por altos muros
eriados de pontas de ferro. Nela eram encerrados os que na altura no tinham condies
para liquidar as suas dvidas a credores impacientes. vinham, com freqncia,
acompanhados da famlia, instalar-se por algumas semanas naqueles cubculos exguos.
Um dia, muito tempo antes do incio da nossa narrativa, um cavalheiro de certa
idade, de ar muito amvel e desamparado, para l foi conduzido. Ao carcereiro que fechava
o porto de ferro declarou que decerto sairia dentro de um dia ou dois - o que toda a
gente pensa! Murmurara o carcereiro -, e que era at desnecessrio desfazer as malas. A
grande preocupao daquele homem tmido era a esposa:
Que pensa o senhor, ficar ela muito impressionada quando amanh me vier
esperar porta da priso? - perguntou ao carcereiro.
Este respondeu que, geralmente, tal no acontecia, mas que dependia do
temperamento das mulheres.
Ela muito delicada e inexperiente.
Nesse caso, evidentemente.
Est to pouco habituada a sair sozinha que pergunto a mim mesmo se
conseguir encontrar o caminho para aqui.
Talvez apanhe um fiacre - sugeriu o carcereiro.
Assim o espero. Mas quem sabe, hum, se isso no lhe ocorrer Diga-me,
receio... espero que no lhe seja proibido trazer os filhos, no verdade?
Os filhos - retorquiu o carcereiro. - Proibido! Santo Deus, o ptio est cheio de
midos! Parecem formigas Quantos tem?
Dois - balbuciou o prisioneiro, entrando no ptio.
O carcereiro seguiu-o com os olhos.
O senhor tambm uma criana, o que faz trs. E a sua mulher tambm,
aposto, o que faz quatro. E decerto que vem um a caminho, o que faz quatro e meio. E o
mais fraco de todos no o que 't p'ra vir. - pensou.
A famlia instalou-se no dia seguinte, convencida de que ficaria apenas por alguns
dias. Mas os negcios daquele devedor estavam to enredados - ele prprio no percebia
nada daquilo - que os guarda-livros e os conselheiros, que tentaram pr o assunto em
ordem, se viram por fim obrigados a desistir, em face da inexplicvel confuso dos papis.
Sair? - comentava o carcereiro. - Aquele nunca mais sair!

Como previra, cinco ou seis meses mais tarde, o endividado apareceu, uma manh,
esbaforido, pedindo que lhe fosse buscar um mdico: a mulher estava prestes a dar luz.
De forma que o terceiro filho nasceu na priso: era uma pequenita frgil, de quem, em
breve, todos os prisioneiros muito se orgulhavam e que ficou a ser chamada o Beb da
Penitenciria.
E, gradualmente, o cavalheiro foi-se habituando quela vida de recluso. comeou
mesmo a descobrir nela uma certa segurana: sentia-se ali protegido das desgraas que
era incapaz de enfrentar. A famlia encontrava-se agora instalada, os filhos mais velhos
brincavam no ptio e toda a gente conhecia o beb. o prprio prisioneiro admirava o
recluso.
E - Que homem distinto - dizia para consigo -, um autntico cavalheiro, que sabe
tocar piano, que fala francs e at italiano!
Quando a recm-nascida completou oito anos, a mulher do endividado, cuja sade
era frgil, faleceu. O marido encerrou-se no cubculo, saindo de l quinze dias mais tarde,
de cabelos grisalhos e, depois, a vida retomou o seu curso normal: as crianas
continuaram, como antes, a brincar no ptio, vestidas de preto.
O tempo passou. Bob, o carcereiro, envelhecia e a sade declinava.
Eu e o senhor - disse, numa noite de Inverno, ao devedor - somos os
pensionistas mais idosos daqui. Como todos estimam o senhor, gostaria que passasse a
ser o Pai da Penitenciria!
O senhor Dorrit acedeu e a tradio prosseguiu, de gerao em gerao de
prisioneiros - quer dizer, de trs em trs meses -, porque o idoso senhor de modos
afveis e cabelos brancos era o Pai da Penitenciria. Todos os recm- chegados lhe eram
apresentados, cerimnia que ele levava muito a srio recebia-os no seu quarto, com uma
certa condescendncia de homem a quem o destino oprimiu, dizendo:
Bem-vindo Penitenciria! Sim, sou o Pai da Penitenciria, tiveram a bondade de
me conceder esse ttulo!
Tornou-se habitual receber sub-repticiamente algumas boas moedas, com os
cumprimentos de um pensionista, daqueles que se iam embora. Recebia estas ofertas
como os tributos de admiradores a uma personagem oficial e acostumou-se, com toda a
naturalidade, ao que passou a ser uma espcie de mendicidade.
Tambm Amy, a menina que nascera na priso foi transmitida de gerao em
gerao, quer dizer, de braos em braos. O carcereiro Bob, o seu padrinho, afeioou- selhe bastante, reservando-lhe uma boa lareira no cubculo e respondendo s suas perguntas.
Ela depressa compreendeu que nem toda a gente tinha o hbito de viver encurralada em

ptios estreitos, rodeados de muralhas eriadas de pontas de ferro; mas tambm


depressa percebeu que, se ela tinha liberdade para sair pelo porto de ferro e franquear os
muros, o pai, esse, no podia. A partir de ento, comeou a olh-lo com ar de piedade e
compaixo. Experimentava os mesmos sentimentos com respeito sua caprichosa irm e
ao seu to indolente irmo, pelas pessoas sem vivacidade que os altos muros mantinham
prisioneiras e pelas crianas que ali brincavam.
Mas foi na ao que se manifestou o seu desejo de proteo, no dia em que o pai
ficou vivo. nessa altura tinha apenas oito anos e, de incio, tudo o que pde fazer foi ficar
junto do preso para cuidar dele. Mas, pouco a pouco, comeou efetivamente a assumir o
lugar de mais velha e de responsvel, suportando todas as preocupaes, todas as
inquietaes e todas as vergonhas daquela famlia arruinada.
Periodicamente, mandava o irmo e a irm para a escola primria; at ela
frequentou algumas aulas noturnas, de forma que, aos treze anos, era capaz de ler e de
escrever e de se encarregar das reduzidas despesas da famlia. Descobrindo, um dia, que
um professor de dana acabara de ingressar como pensionista, foi, muito polidamente,
solicitar-lhe que desse algumas aulas de dana sua irm Fanny, que mostrava grandes
desejos de aprender. O bom homem, nas dez semanas que permaneceu na Penitenciria,
consagrou todo o seu tempo jovem, que fez progressos extraordinrios. O sucesso deste
empreendimento impeliu a pobre jovem a fazer outra tentativa durante meses, aguardou a
chegada de uma costureira finalmente, apareceu uma modista, a quem a jovem se dirigiu:
Aprender costura! E para qu? Veja aonde isso me levou! priso.
Mesmo assim desejava aprender, minha senhora - insistiu ela.
E, alm disso, a menina to pequenina que.
verdade, sou muito pequenina! - soluou o Beb da Priso, cuja pequena
estatura dava j azo a gracejos.
A modista, que no fundo tinha um corao muito bondoso, fez dela sua aluna e, em
pouco tempo, uma hbil costureira.
Com o tempo, tambm o Pai da Penitenciria foi mudando. Quanto mais dependia
do dinheiro dos pensionistas mais ares se dava, em contrapartida, de nobre arruinado!
Aceitava os cobres, mas chorava se algum se atrevia a dizer que as filhas trabalhavam
para viver. Embora fosse necessrio engendrar toda a espcie de mentirazinhas para
manter, aos seus olhos, esta iluso de ociosidade distinta. A filha mais velha tornou-se
danarina: na famlia, havia um tio arruinado - arruinado pelo Pai da Penitenciria - que
sobrevivia tocando muito mal, clarinete, no velho teatro para onde Fanny foi contratada. E
contaram ao pai que a filha se ausentaria, durante o dia, para tomar conta do velho tio. O
Pai da Penitenciria aceitou esta explicao, sem fazer perguntas.

Faam como quiserem, minhas queridas, saiam vontade, tm razo, isto aqui
no nada alegre! - dizia-lhes, fingido que nem por um instante lhe ocorria que pudessem
sair para trabalhar.
Para o Beb da Priso, o mais difcil foi persuadir o irmo a trabalhar: deambulava
pela priso, fazia pequenos recados para os pensionistas e andava com rapazes pouco
recomendveis. Feliz com a sua sorte, teria, na verdade, continuado a viver assim at aos
oitenta anos! Amy, ajudada pelo padrinho, o carcereiro Bob, arranjou para ele um emprego
num notrio. Mas, ao fim de seis meses, Tip voltou, de mos nos bolsos, anunciando que
se fartara e desistira do emprego. Tip cansava-se de tudo: de cada vez que arranjava
trabalho - e arranjou muitos! - voltava, invariavelmente, algum tempo depois, declarando
que estava farto e que desistira de tudo. E voltava Penitenciria para retomar a sua vida
de moo de recados, como se a priso exercesse nele um fascnio irresistvel. Um dia,
contudo, anunciou que descobrira uma coisa ao seu jeito e, durante vrios meses, ningum
soube nada dele. Vrios boatos ambguos correram a seu respeito, mas a pequena Amy de
nada soube. Quando ele voltou, foi declarar tranquilamente irm que contrara algumas
dvidas, que voltava para a Penitenciria como recluso. Espantou-se por a ver desmaiar!
Tal era a vida e a histria do Beb da Penitenciria aos vinte e dois anos de idade.
A despeito dos laos que a prendiam casa natal, compreendera que melhor seria
esconder a toda a gente o lugar onde passara a existncia. E tal segredo aumentava ainda
mais a sua natural timidez.
Tal era a existncia da Pequena Dorrit, que voltava, agora, para casa, numa triste
noite de Setembro, observada distncia por Arthur Clennam. Avanava, como uma
sombra minscula, pelas ruas buliosas e bruscamente desapareceu pela porta da
Penitenciria.
Na rua, Arthur Clennam parara, aguardando que passasse algum transeunte, a fim
de lhe perguntar que lugar era aquele, quando surgiu um velho, que descreveu uma curva e
passou pelo alpendre. Avanava todo curvado, as costas abauladas e com ar preocupado.
Envergando um velho capote coado, que lhe caa at aos calcanhares, tendo a cobrir-lhe
os cabelos grisalhos e eriados um velho chapu ensebado e esburacado, segurava debaixo
do brao um estojo mole, que devia conter qualquer instrumento para venda e segurava
um mao de rap, de um penny, com o qual reconfortava o pobre nariz azulado.
Arthur bateu-lhe ao de leve no ombro, interpelando-o, e o velho virou- se, piscando
os olhos, como se tivesse percebido mal:
Hem, que diz?
Por favor, meu amigo, pode-me dizer que local este?

Este local a Penitenciria.


A priso para dvidas?
Sim, cavalheiro, a priso para dvidas - retorquiu ele, virando-se.
Desculpe, mas saber o senhor se toda a gente pode entrar e sair?
Entrar l, sim. - respondeu o velho, dando a entender que ningum de l podia
sair.
Perdoe-me a insistncia, o senhor frequenta bastante este local?
Conheo-o bem - respondeu ele, como que ofendido por estas perguntas.
O senhor vai-me desculpar. No fao estas perguntas por curiosidade
impertinente, o motivo que tenho srio. Conhece o nome Dorrit?
O meu nome, cavalheiro - respondeu ele simplesmente -, Dorrit.
Arthur tirou o chapu e apresentou-se; estava interessado por uma jovem a quem
chamavam a Pequena Dorrit e que acabava de ver entrar naquele recinto.
Essa jovem filha do meu irmo, William Dorrit. Chamo-me Frederick. Sei que
sua me, a senhora Clennam, protege a minha sobrinha e lhe d trabalho. sendo assim,
entre Arthur seguiu-o: franquearam os dois portes de ferro, que foram em seguida
aferrolhados, e penetraram na priso. A noite estava escura e as candeias do ptio e as
tristes velas que se lobrigavam nas janelas s a tornavam mais sombria.
E sobretudo, cavalheiro - disse Frederick, ao subirem as escadas -, no diga ao
meu irmo que a minha sobrinha costureira. O coitado no sabe que ela trabalha,
tentamos salvaguardar-lhe a dignidade.
Quando o velho abriu a porta do quarto, Arthur avistou a Pequena Dorrit e
compreendeu imediatamente a razo por que tinha tantas precaues em tomar as
refeies do meio-dia sozinha: trouxera a carne que lhe fora servida e estava a aquec-la
para o pai, que, de velho roupo e gorro preto, aguardava o jantar diante da mesa
cuidadosamente posta.
A jovem teve um sobressalto, ficou muito ruborizada e em seguida muito plida; o
visitante fez-lhe um sinal, suplicando-lhe que se tranquilizasse e que confiasse nele.
Este cavalheiro o senhor Clennam, que encontrei porta - explicou Frederick
ao irmo -, desejava cumprimentar-te, mas no se atrevia a entrar, com receio de te
incomodar.
O senhor Dorrit levantou-se e cumprimentou Arthur com a sua altivez
condescendente:
Muito me honra, cavalheiro, seja bem-vindo. Frederick, uma cadeira! Rogo-lhe
que se sente.

Era o mesmo cerimonial com que acolhia um novo pensionista.


O cavalheiro deve estar a par... , minha filha
decerto lhe disse que eu sou o Pai da Penitenciria.
Eu.
Sim, evidentemente - arriscou Arthur, que ignorava o facto.
E decerto sabe que a minha filha Amy nasceu aqui: que boa filha, cavalheiro, o
meu conforto e o meu amparo! Amy, minha querida, por favor, trazes-me a travessa?
Senhor Clennam, vai-me dar a honra de partilhar a minha humilde refeio. .
A Pequena Dorrit instalou-se junto do pai, mas parecia inquieta e perturbada e nada
conseguiu engolir. O olhar que deitava ao senhor Dorrit, a um tempo cheio de admirao e
de vergonha, de dedicao e de amor, tocou bem fundo no corao de Arthur. Mas o Pai da
Penitenciria continuou o seu discurso e o visitante ento compreendeu por que tinha a
jovem um ar to envergonhado e perturbado:
As pessoas so muito caridosas! a maior parte daquelas que vm aqui para me
serem apresentadas desejam agraciar-me com qualquer, hum, ofertazinha em honra do Pai
da Penitenciria. Na maioria das vezes do, hum, dinheiro que, devo confessar, sempre
bem-vindo!
Em face de um pedido to explcito, a jovem pousou a mo no brao do pai, numa
splica muda, depois desviou o seu rostozinho, crispado de vergonha.
Ouviu-se uma sineta e, ao mesmo tempo, a porta abriu-se, dando passagem a dois
jovens: eram Tip e Fanny, que vinham buscar os seus fatos que Amy cosera, lavara e
engomara. Quando a sineta tocou segunda vez, Frederick levantou-se.
Despache-se, senhor Clennam, em breve as portas fecharo. Depois, saiu com
os dois sobrinhos.
Clennam, antes de partir, meteu sub-repticiamente uma boa quantia na mo do
senhor Dorrit e em seguida desceu as escadas a correr, procura da Pequena Dorrit, que
desaparecera. Encontrou-a no ptio:
Perdoe-me por ter vindo aqui! Mas desejava tanto ser-lhe til, a si e sua
famlia! Se pudesse esperar ser merecedor da sua confiana, tal facto consolar-me-ia de
muitas decepes!
O senhor muito bondoso e, no entanto, preferia que no me seguisse. Mas
despache-se, a sineta j parou de tocar!
Espere! H quanto tempo conhece a minha me?
H dois anos, julgo eu!
Ela veio busc-la aqui?

No, ela no sabe onde vivo. No anncio, indiquei a morada de um amigo do meu
pai e foi assim que a senhora Clennam me descobriu e contratou.
A situao daquela criana impressionava-o tanto que se afastou a contragosto;
todavia, ao chegar ao porto, ele deparou-se-lhe fechado. Uma voz trocista ressoou atrs
de si:
Ento, apanhado na armadilha - perguntou Tip, o prisioneiro. - Ande, venha,
vamos procurar um stio onde pernoitar.
Mais tarde, acomodado numa tarimba, envolto nas trevas da Penitenciria, Arthur
cismava:
Quem sabe, quem sabe se razes misteriosas no levaram a minha me a
interessar-se por esta garota!
E a suspeita, que o perseguiu, voltou a perpassar-lhe inexplicavelmente o esprito.
No dia seguinte, quando acordou, espessas nuvens corriam pelo limitado cu que se
lobrigava da priso e a chuva fustigava os detritos e a poeira do ptio. Foi com alvio que
abandonou aquele antro de misria, depois de ter encarregado um moo de recados de
prevenir a Pequena Dorrit de que estaria sua espera em casa de Frederick, tio dela.
A casa do velho era pobre e respirava-se ali um ar doentio, trapos a secar pendiam
das guas-furtadas. Arthur encontrou Frederick na sua mansarda, bebendo o seu caf
numa mesa desengonada, enquanto Fanny se acabava de vestir no cubculo ao lado. Logo
que Amy chegou, um pouco mais tarde, Arthur ofereceu-se para a acompanhar durante
parte do trajeto. Ela aquiesceu, dando mostras de certo embarao, e aceitou o brao que
ele lhe estendia.
Partiram, assim, em direo Ponte de Ferro depois de percorrerem as artrias
buliosas, aquele lugar, de to calmo, parecia-lhes que se encontravam em pleno campo.
As rajadas de vento eram fortes e hmidas no cu, as nuvens, o fumo e o nevoeiro
perseguiam-se com fria, enquanto as ondas sombrias do rio se encapelavam. A Pequena
Dorrit parecia a mais pequena, a mais agradvel e a mais frgil das criaturas de Nosso
Senhor!
Ontem noite falou-me com tanta gentileza, senhor Clennam, que gostaria de
lhe agradecer. E tambm desejaria muito dizer-lhe que, - hesitou e estremeceu, de olhos
marejados de lgrimas - que. preciso no julgar mal o meu pai. Encontra-se h tanto
tempo recluso ali. A priso modificou-o e, precisamos de o compreender!
Acredite, minha filha, que nunca o julgarei com dureza.
No quero dizer com isto que ele tenha que se envergonhar de qualquer coisa!
Como sabe, muito respeitado - acrescentou, com ingnuo orgulho -, os que vo para a

Penitenciria tm imenso prazer em conhec-lo e toda a gente reconhece que superior


aos outros, mais por isso do que por ele ser pobre que lhe do presentes!
O seu rosto resplandecia de afeto e de fidelidade. Dirigiu ao seu novo amigo um
olhar suplicante:
Porventura, compreender melhor a minha atitude de ontem noite? Disse-lhe
que lamentava a sua vinda, pois bem, com efeito. para falar verdade. no lamento
absolutamente nada. Mas talvez tenha falado de uma maneira bastante confusa.
No se preocupe, acho que compreendi perfeitamente! - respondeu Arthur, um
pouco perturbado. - Mas diga-me antes: gostaria de ver o seu irmo Tip em liberdade?
Oh! Senhor Clennam, sentir-me-ia to, to feliz!
Pois bem, veremos... Esse amigo do seu pai de que me falou ontem, como se
chama ele?
Chamava-se Plornish, era estucador e morava no Beco do Corao-que-Sangra.
No lhe prometo nada, minha filha, mas pode contar comigo. Farei tudo o que
estiver ao meu alcance.
Voltaram a percorrer as ruas lamacentas. Clennam pensava na frgil figurinha que
lhe dava o brao e que ele - ele que se sentia to velho - considerava uma criana;
cismava no local miservel onde ela nascera, na sua solicitude para com os outros, na sua
inocncia.
De repente, ouviu-se um grito:
Mezinha! Mezinha!
Uma esquisita personagem, muito excitada, veio embater contra eles e caiu no
cho, entornando o cesto de batatas.
Oh, Maggie, s uma menina to desastrada! - exclamou a Pequena Dorrit.
Maggie levantou-se com ligeireza e ps-se a procurar as batatas, mas apanhava
mais lama do que tubrculos.
Arthur e a Pequena Dorrit ajudaram-na e, quando tudo ficou em ordem, ela enxugou
o rosto sujo com o xaile. Arthur pde ento examin-la: tinha cerca de trinta anos, larga
de ossos, traos grosseiros, olhos arregalados e era calva. Os olhos eram transparentes,
incolores e fixos, porque era quase cega, e um sorriso, igualmente imvel, iluminava-lhe
constantemente o pobre rosto. A Pequena Dorrit apresentou-a:
Esta a Maggie, a filha da minha velha ama, que morreu h muito tempo.
Maggie, diz -nos que idade tens.
Dez anos, mezinha!
Nem calcula como ela esperta e inteligente, no verdade? Maggie Ganha
sozinha o seu sustento!

E Maggie ria, muito feliz.


Escuta, Maggie, este senhor quer saber a tua histria, conta-lhe: a tua av no
era muito boa contigo.
E Maggie fingiu que bebia uma garrafa, dizendo egine, depois batia num beb
imaginrio com um cabo da vassoura e um atiador.
Aos dez anos - prosseguiu a Pequena Dorrit - teve uma febre maligna e, desde
ento, ficou assim.
Que lindo hospital - exclamou Maggie. To confortvel Com limonada, laranjas,
frango!
Quando voltou do hospital - continuou a Pequena Dorrit, como se estivesse a
contar uma histria a um garoto -, a av tratou-a ainda pior. Mas Maggie lutou tanto para
melhorar, que pouco a pouco foi sendo capaz de sair sozinha e agora ganha o seu
sustento.
Maggie ria s gargalhadas, batendo palmas, depois puxou- os at defronte de uma
mercearia, para lhes mostrar como sabia ler bem os cartazes. Quando Arthur Clennam viu
como o prazer fazia ruborizar o rosto da Pequena Dorrit sempre que Maggie acertava,
pensou que seria capaz de ali ficar uma eternidade a contemplar as duas.
Finalmente, chegaram priso e a minscula mezinha desapareceu com o seu
enorme beb por trs do porto de ferro, que em seguida foi aferrolhado.

Captulo III: O BECO DO CORAO-QUE-SANGRA


Arthur passou os dias seguintes a percorrer os ministrios, a fim de tentar
esclarecer a situao financeira do senhor Dorrit. Mas recambiavam-no de porta em porta,
de repartio em repartio, sem se dignarem prestar ateno ao seu caso. Uma manh,
quando saa desanimado de uma das reparties, cruzou-se, nas escadas, com dois
homens e um deles, muito excitado, ralhava em voz estridente, agitando os braos. Arthur
reconheceu o senhor Meagles, com quem viajara at Marselha e cuja filha, Cherry, muito o
impressionara, dada a sua semelhana com Flora. Tocou-lhe ao de leve no ombro; o
senhor Meagles virou-se, de rosto afogueado, e imediatamente se acalmou ao reconhecer
Clennam, a quem cumprimentou calorosamente.
Olhe-me para este indivduo! - acrescentou, indicando-lhe o companheiro.
O indivduo em questo, um homenzinho de cabelo grisalho e rosto ponderado,
tinha, contudo, uma aparncia das mais convenientes.
Chama-se Daniel Doyce; olhe para ele, ser que tem aspecto de criminoso? Ou
de um inimigo pblico? E, contudo, assim que o tratam nos ministrios. E sabe por qu?
Porque o mais hbil ferreiro e engenheiro que conheo H doze anos, fez uma descoberta
que seria da maior utilidade para o nosso pas e para a Humanidade e no pode calcular o
dinheiro e o tempo que desperdiou com ela! Mas logo que se dirigiu ao Governo para dar
a conhecer o seu invento, passou a ser considerado um malfeitor do qual preciso
desembaraar-nos o mais depressa possvel!
Arthur, que h alguns dias se familiarizara com os ministrios, compreendeu
perfeitamente a situao...
E o pior - exclamou o senhor Meagles excitando-se de novo - que ele nem
sequer se queixa!
evidente que me senti desiludido e penalizado - respondeu Doyce calmamente
-, muito natural. Mas sei que todos aqueles que se encontram na minha situao so
tratados da mesma forma. no podia fazer nada, eis tudo.
Clennam olhou para ele e captou-lhe no rosto um certo ar envelhecido e triste. O
senhor Meagles interveio:
Vamos! Vamos! Ao fim e ao cabo, de nada servem esses ares tristonhos. Onde
vai agora, Daniel - Volto para a oficina.
E se fssemos l todos? Decerto o senhor Clennam no se escusar a
acompanhar-nos ao Beco do Corao-que-Sangra.
Ao Beco do Corao-que-Sangra? Mas era justamente para a que eu ia respondeu Arthur.

O Beco do Corao-que-Sangra, entrada do qual se localizava a pequena oficina


de Daniel Doyce, era habitado por gente pobre. os trs amigos desceram os poucos
degraus e seguiram pelo beco, por entre duas fileiras de portas abertas, onde se
comprimiam criaturas enfezadas. Ao chegar casa do estucador Plornish, Arthur saudou
os companheiros e deixou-os, depois de ter prometido visitar em breve o senhor Meagles.
Depois, penetrou no corredor e bateu porta que lhe fora indicada. Uma mulher veio abrir,
trazendo um beb ao colo: o marido sara procura de trabalho, mas o cavalheiro podia
entrar e esperar. Arthur sentou-se e admirou o beb nos braos da me, assim como o
que se encontrava no cho.
Desculpe-me, cavalheiro, mas. O senhor vem por causa de trabalho? - perguntou
a senhora Plotnish, esperanada.
Havia tanta ansiedade na sua pergunta, que se possusse um pedao de muro, por
insignificante que fosse, o preferia mandar estucar de alto a baixo a ter que responder que
no. E, todavia, foi obrigado a isso! Uma sombra de decepo veio velar o rosto da jovem
mulher, enquanto ele contemplava o fogo, que se extinguia. - assim to difcil arranjar
trabalho, minha senhora?
Para o Plornish difcil, seja qual for o caso. Ele tem azar, essa que a
verdade! E, no entanto, no por no procurar nem por no querer trabalhar.
Em qualquer dos casos, era uma desgraa comum a todos os moradores do Beco
do Corao-que-Sangra.
Nesse momento, entrou um jovem de rosto um pouco ingnuo, emoldurado por
suas ruivas, o macaco pontilhado de manchas de cal: era Plornish. O visitante levantouse, dizendo que viera para falar da famlia Dorrit. Plornish examinou-o ento com
desconfiana, respondendo por monosslabos s suas perguntas: tomava-o, obviamente,
por um credor! Arthur apresentou-se finalmente.
Ah, o senhor Clennam? J me falaram do senhor! Sente-se, cavalheiro, e seja
bem-vindo. Veja o senhor, eu prprio tambm no tive sorte e fui parar Penitenciria e
foi a que conheci Miss Dorrit.
Conhecmo-la intimamente! - sublinhou a senhora Plornish, muito orgulhosa
desta intimidade.
Foi o pai quem eu conheci primeiro: que homem distinto e polido! Aquilo que
so maneiras e distino! O senhor percebe como que um cavalheiro como ele cria bolor
na Penitenciria? E talvez no saiba - disse, baixando a voz com admirao -, mas as
filhas no se atrevem a dizer-lhe que trabalham! Hem? Que categoria de homem, hem?
Sem verdadeiramente o admirar por esse facto - observou calmamente Clennam

-, lamento-o muito.
A observao pareceu sugerir a Plornish, pela primeira vez, que aquela atitude
talvez no fosse to admirvel como pensava.
E como conseguiu que Miss Dorrit entrasse ao servio de minha me?
Ela deu-me uns pequenos anncios que eu trouxe para o stio onde trabalhava:
quer dizer, para casa da senhora Clennam e tambm para casa do senhorio do Beco, o
senhor Casby.
O senhor Casby? Oh, mas um velho conhecimento! - exclamou Arthur, ficando
muito pensativo. - Mas voltemos ao objetivo da minha visita: gostaria que me ajudasse a
obter a liberdade do Tip.
Plotnish conhecia o credor que mandara o rapaz para a priso: era um alquilador de
uma rua vizinha. Ambos se dirigiram, pois, sua cavalaria e, aps demorados e hbeis
manejos, conseguiram que, mediante o pagamento de metade da dvida, a queixa fosse
retirada. Tip estava livre!
Senhor Plornish - disse Arthur, uma vez resolvido o assunto -, conto com a sua
discrio. Diga simplesmente ao Tip que se encontra em liberdade. Bem vistas as coisas,
pode acrescentar que foi um amigo que lha conseguiu e espera que, quanto mais no seja
pelo amor que tem irm, faa bom uso da sua liberdade!
No regresso, Plornish tentou esboar a Arthur um quadro da vida dos moradores
do Beco. todos se encontravam na penria, e, mais ainda, estavam enterrados nela at ao
pescoo E por que, ningum sabia diz-lo. Havia gente rica - e alguns muito ricos - que
dizia que os moradores do Beco eram imprevidentes; por exemplo, se viam algum
habitante do Beco subir - uma vez por ano - para a sua carroa com a famlia, a fim de
darem um passeio pelo parque, exclamavam e Julgava que era pobre, meu imprevidente
amigo!. Santo Deus, como aquilo custava! Era, ento, foroso endoidecerem de tristeza O
dia inteiro, as raparigas e as mulheres do Beco costuravam, mal ganhando o suficiente
para no morrerem fome. E mais ainda. Os velhos, que haviam trabalhado toda a vida,
iam parar ao asilo, onde eram tratados pior do que se fossem nada! E quem era o
responsvel por tudo aquilo, ah, isso ele desconhecia E mesmo os que poderiam fazer
qualquer coisa ficavam de braos cruzados; e como as coisas no se resolviam por si s,
pois bem.
O nome do senhor Casby despertara no esprito de Arthur uma certa curiosidade.
com efeito, o senhor Casby era o pai de Flora, a bem-amada da sua adolescncia. Era um
homem que gozava da reputao de ser prdigo em inquilinos semana e de conseguir
arrancar soldos de becos e ruelas dos quais nada se esperava.
Aps vrios dias de investigao e pesquisas, Arthur convenceu-se de que o caso

do Pai da Penitenciria no tinha soluo e tristemente renunciou idia de lhe propor


voltar a liberdade. Em qualquer dos casos, decidiu fazer uma visita ao senhor Casby.
Tambm esta casa no mudou - pensou Clennam, levantando a brilhante aldrava
de cobre.
Uma criada veio abrir-lhe a porta e mandou-o entrar para a antecmara silenciosa,
de pesados e bem polidos mveis. Ouvia-se, algures, o tique-taque solene de um relgio. A
lareira do salo tambm fazia tique-taque. Durante esse intervalo, um cavalheiro idoso,
sentado na poltrona, diante da lareira, fazia lentamente girar os polegares, aquecendo as
pantufas no rebordo da grade. Era o velho Christopher Casby, o rosto liso, os olhos azuis e
tranqilos, o crnio calvo e luzidio, coroado de longos cabelos grisalhos que lembravam
seda e lhe tinham suscitado a alcunha de Patriarca. E ele era to tristonho, to lento e to
imperturbvel, que a alcunha lhe assentava perfeitamente. Tinha, na verdade, um rosto que
logo lembrava o benfeitor da espcie humana, o pai do rfo e o amigo do desamparado. E
contudo; com aquele rosto, continuava a ser o velho Casby, rico e impiedoso proprietrio
de imveis. E era esse rosto que se virava agora para Arthur, perguntando:
Deseja ver-me, cavalheiro?
Levou certo tempo a reconhecer o antigo apaixonado da filha.
Como o tempo passa, senhor Clennam, envelhecemos, - j no somos novos respondeu Arthur que, muito incomodado por ter dado azo a uma resposta to pouco
espirituosa, se deu conta de se encontrar dominado por um grande nervosismo.
E o seu pai, tambm j se foi! - replicou o senhor Casby. - Fiquei muito
desolado ao saber da sua morte, muito desolado!
Arthur respondeu, utilizando as frmulas de cortesia em voga, que ele conhecia
perfeitamente. E continuaram assim, nessas delicadezas, at que o senhor Casby se
levantou para ir chamar a sua filha Flora.
Mal sara, quando a porta da entrada se abriu e um homenzinho trigueiro e vivaz se
precipitou no salo, para se deter a alguns centmetros de Clennam.
Ol - saudou.
Ol - respondeu Arthur, que no via nisso qualquer inconveniente.
O homenzinho vestia um fato cinzento-ferrugem, os seus olhinhos eram negros
como ties, exibia um pequeno queixo eriado de pelos, cabelos pretos e espetados como
garfos ou ganchos de cabelo. Transpirava, roncava, fungava, arquejava e soprava como
uma pequena locomotiva.
Se o senhor Casby perguntar pelo seu empregado Pancks - disse a Arthur -, quer
ter a fineza de o prevenir que j voltou?

Em seguida, aps um ronco e um pequeno jato de vapor, voltou a sair por outra
porta, deixando Arthur completamente estupefacto.
O aparecimento de Flora, alguns instantes mais tarde, decepcionou profundamente
Arthur. Na sua juventude, amara de alma e corao aquela mulher e cumulara-a dos
tesouros do seu afeto e da sua imaginao; e passados vinte anos, guardava, inaltervel,
no corao, aquela antiga e maravilhosa imagem do passado. Mas mal os seus olhos se
haviam pousado em Flora e j o seu amor de outrora se despedaava e desvanecia.
Flora, outrora alta e esbelta, engordara; a sua tez de lis tornara-se encarnada como
um pimento. Ela, cujas palavras e pensamentos haviam sido os encantos de Arthur,
parecia-lhe agora tagarela e estpida. As suas maneiras de menina ingnua e mimada
tinham perdido todo o encanto e tornavam-se agora ridculas.
O jantar foi um verdadeiro suplcio para Arthur, que depressa pretextou uma visita
me para no prolongar o sero e, alis, o senhor Casby comeava j a cabecear na sua
poltrona. Apertou a mo da nova Flora, que estava muito perturbada, e foi-se embora,
sentindo-se muito infeliz, acompanhado por Pancks, que ia na mesma direo que ele.
Quando se sentiu um pouco reanimado pelo ar fresco, entabulou conversa com o
homenzinho trigueiro que caminhava ao seu lado, roendo as unhas, imerso nos seus
pensamentos. Pancks cismava em negcios. Era, explicou a Clennam, a nica coisa que lhe
interessava no Mundo. Levantar-se cedo, trabalhar, engolir num pice as refeies e
trabalhar de novo, tal era a obrigao de um homem num pas industrializado. Ele prprio
s tinha uma distrao, colecionar os anncios procurando herdeiros. Sublinhava as frases
com bizarras fungadelas; Arthur interrogou-se, repentinamente, se aquilo no passava,
simplesmente, da maneira de rir de Pancks e se aquele homenzinho falava realmente a
srio.
Depois de ter deixado aquele curioso individuozinho, Clennam seguiu - em direo
s avenidas principais: sentia-se muito s e triste e procurava um pouco de luz e bulcio.
Nessa altura, um ajuntamento obrigou-o a recuar para o passeio.
Que se passa - perguntou ao seu vizinho.
um ferido! Acaba de ser atropelado pela mala-posta E estrangeiro, ningum
percebe o que ele diz!
Clennam avistou, no meio dos curiosos e dos tagarelas, um corpo que era
transportado numa maca improvisada e ouviu uma voz fraca a pedir gua em italiano.
Abriu caminho at ao desgraado e inclinou-se para ele:
J lhe trazem gua, acalme-se. Est gravemente ferido, meu amigo? - inquiriulhe Arthur.

Oh, sim, sim! a minha perna, senhor, a minha perna! Mas como bom
ouvirmos falar a nossa lngua materna!
Era um homenzinho tisnado, de cabelos negros, dentes brancos e um rosto cheio de
vivacidade.
No tenha medo - replicou Clennam - no o abandonarei enquanto no estiver
em boas mos.
Seguiu a padiola at ao hospital, que ficava perto, e entrou atrs dele. O cirurgio
examinou o ferimento, mas tranquilizou o ferido, prometendo-lhe que em breve voltaria a
andar; depois de ter tratado dele, mandou-o levar para uma boa cama. Clennam prometeu
a Cavaletto - tal era o seu nome, que voltaria no dia seguinte e deixou o hospital. Soavam
as onze horas, de forma que voltou diretamente para casa, o apartamento que alugara
perto de Covent Garden. Sentado diante da lareira quase apagada, voltou a mergulhar nos
seus devaneios e na sua tristeza. A vida parecia-lhe sombria e vazia. O nico momento de
felicidade que tivera na vida, o seu amor por Flora, acabava de se dissipar naquela noite e
j nada lhe restava. Tinha agora quarenta anos e a velhice aproximava-se, sem que alguma
vez tivesse conhecido ternura e conforto.
Desde a minha triste juventude, asfixiada naquele lar triste e sem amor, a
minha partida, o meu longo exlio, o meu regresso e o acolhimento de minha me, at esta
tarde com a pobre Flora, que encontrei eu, ento?
A porta abriu-se suavemente e ele teve um sobressalto, ao ouvir estas palavras,
que pareciam uma resposta:
A Pequena Dorrit.
A Pequena Dorrit continuava na soleira, muito intimidada. No vasto aposento
sombrio, que aos olhos de menina pobre pareceu magnificamente mobiliado, encontrava-se
sentado lareira o cavalheiro que ela procurava e que fitava agora com surpresa, o
cavalheiro bronzeado, srio, de sorriso to agradvel, de maneiras to ponderadas, cujo
olhar atento e inquiridor a perturbava sempre profundamente.
Minha pobre filha! - exclamou ele, mandando-a entrar. - Por aqui, meia-noite?
Veio sozinha?
No, no, senhor Clennam, trouxe a Maggie.
E Maggie, que esperava atrs da porta, surgiu ento, o rosto aberto num sorriso.
Arthur convidou-as a sentar e apressou-se a ir buscar lenha para atiar o fogo. O vestido
da Pequena Dorrit era muito ligeiro, os seus sapatos estavam bastante gastos e
cambados.
Aproxime-se do fogo, minha filha, est tanto frio!

Obrigada, senhor Clennam, no tenho frio - respondeu ela, escondendo os ps


debaixo da cadeira, para ocultar os sapatos. - Eu vim c, senhor Clennam, para lhe dar
uma notcia!
Sim, minha filha.
Ela estremeceu imperceptivelmente ao ouvi-lo trat-la de novo por minha filha.
Clennam deu-se conta e replicou:
Permita-me que lhe chame antes Pequena
Dorrit, visto esse ser o nome que d a si prpria.
Obrigada, senhor Clennam. E o que prefiro! A notcia que lhe trago que o
meu irmo se encontra em liberdade!
Arthur respondeu que se sentia muito feliz com a boa nova e que tinha a esperana
de que, doravante, Tip iria utilizar sabiamente a sua liberdade.
O que tambm gostava de lhe dizer
retorquiu a Pequena Dorrit - que no conheo o nome da pessoa que
generosamente lhe restituiu a liberdade. Mas se a conhecesse e se lhe pudesse falar, dirlhe-ia que nunca poderia saber o quanto eu fora tocada pela sua bondade e o quanto o meu
pai tambm o fora e ajoelhar-me-ia aos seus ps para lhe beijar a mo.
J a Pequena Dorrit pegava na mo de Clennam, de olhos marejados de lgrimas,
mas ele obrigou-a, com suavidade, a sentar-se de novo, muito comovido com a atitude e a
inflexo da jovem.
Vamos, Pequena Dorrit, vamos! Suponhamos que agradeceu a essa pessoa! Mas
diga agora a este seu amigo, por que razo anda na rua meia-noite e to longe da sua
casa?
A Maggie e eu fomos ao teatro ver a minha irm danar.
Maggie, que ressonava, despertou subitamente, - oh, sim O teatro um verdadeiro
paraso - exclamou, antes de mergulhar de novo no sono.
a primeira vez que saio de casa noite - disse a Pequena Dorrit,
estremecendo -, e Londres pareceu-me to grande, to vazia e to medonha!
Como Arthur voltava com uma bandeja com vinho, fruta e bolos, ela acrescentou:
Queria ainda dizer-lhe outra coisa, senhor Clennam. Espero que no fique
zangado. O senhor mandou um bilhete ao meu pai, anunciando-lhe que o iria ver amanh e.
- depois, juntando as mos, concluiu penosamente a frase - no adivinha o que lhe venho
pedir para no fazer?
Acho que sim, mas, confunde-me...
No lhe d dinheiro, suplico-lhe! E se ele pedir, finja que no percebe! Salve-o,

poupando-o dessa degradao! Ao v-lo no estado decadente em que se encontra, o senhor


no pode realmente avaliar como ele - disse a Pequena Dorrit a chorar escondendo o
rosto entre as mos.
Clennam, com a voz um pouco alterada pela emoo, prometeu jovem fazer o
que esta lhe pedia.
Obrigada, senhor Clennam, oh, obrigada! Precisamos agora de ir embora. Maggie,
acorda!
Arthur encheu o cesto de Maggie de guloseimas e depois acompanhou-as at
porta, perguntando:
Mas, onde dormiro vocs? A Penitenciria est fechada!
No se preocupe, dormiremos em casa da Maggie.
No vou deix-las ir embora sozinhas.
No, no, senhor Clennam, suplico-lhe!
A sua splica era to ardente, que ele no insistiu e, de corao oprimido, viu-as
mergulhar na noite fria.
Numa tarde chuvosa, ao pr do sol, a senhora Flintwitch teve outro sonho, to
singular como o anterior. Encontrava-se na cozinha e dormitava, espera que a gua para
o ch fervesse, os ps apoiados no guarda- fogo, quando julgou ouvir, atrs de si, um rudo
aterrador: uma espcie de deslizar, seguido de trs ou quatro batidas, como se fossem
vrios passos rpidos. Convencida de que a casa estava assombrada, subiu, a correr, as
escadas da cozinha e achou-se no vestbulo, donde ouviu gritos, que provinham do quarto
da senhora Clennam. Descalou ento os sapatos e subiu cautelosamente os degraus,
parando junto porta.
Ento, nada de tolices, senhora Clennam
gritava Jeremy Flintwitch -, no tenho nada a ver com isso!
Ento que lhe fiz eu, homem encolerizado?
O que me fez? Estava furiosa comigo!
Ralhei-lhe por que.
No Estava furiosa comigo?
Bom, como quiser - retorquiu ela, reprimindo a sua clera. - For porque esta
manh falou de mais com o Arthur. Decerto no o fez de propsito. - No admito isso.
Sim, fi-lo de propsito!
Considero intil argumentar com um velho casmurro e colrico como voc.
Acabemos com isto, de acordo?
Pois vou-lhe dizer porque o fiz, velha teimosa e colrica! Porque, aos olhos dele,
no ilibou o pai como devia! Porque antes de se encolerizar, a senhora, que .

Cale-se, Flintwitch! - gritou ela em voz sumida. - Era capaz de falar de mais!
Sucedeu-se um instante de silncio e depois Jeremy replicou suavemente:
Ento defenda o pai de Arthur antes de se defender a si prpria. No conte com
os mortos! Era o que faria se eu me tivesse vergado sua vontade. Mas eu no quero
submeter- me sua vontade.
J se falou de mais do assunto, Flintwitch. Agora acenda a vela, a Pequena
Dorrit est a chegar.
Justamente a Pequena Dorrit Continuar indefinidamente a vir c; a tomar
sempre ch aqui.
Sempre. Como se atreve a empregar tal palavra, quando a morte est to
prxima de ns?

Est bem! Mas sabe a senhora onde mora a Pequena Dorrit?


No.
E desejaria. interessar-lhe-ia saber?
No. No quero saber - respondeu calmamente a senhora Clennam. - Ela no mo

revelou e no procurarei saber mais nada. Agora basta, Jeremy.


Soou ento a sineta, Affery deslizou silenciosamente at cozinha e voltou a
sentar-se, cobrindo a cabea com o avental. Foi assim que o marido a encontrou,
adormecida diante da lareira.

Captulo IV: DESGOSTOS DO CORAO


Cumprindo a promessa que fizera ao senhor Meagles, Arthur dirigiu-se, um sbado,
para Twickenham, onde o amigo possua uma casa de campo. O tempo estava to bom
para a poca, que preferiu fazer o percurso a p e caminhava debaixo de um Sol radioso
que aquecia a charneca. Mergulhado nas suas reflexes, depressa foi alcanado por um
transeunte que o precedia e cujo vulto lhe pareceu, de repente, familiar.
Daniel Doyce! Como vai - exclamou Arthur, dirigindo-se a ele.
O senhor Doyce encaminhava-se igualmente para a casa do seu amigo Meagles e a
conversa entre os dois homens foi crescendo de animao. O inventor relatou a Clennam,
muito interessado, os anos da sua aprendizagem, os seus trabalhos, as suas pesquisas e
as dificuldades que se lhe depararam.
Acho que, neste caso, ser-me- necessrio arranjar um scio: at agora, tenhome aguentado muito bem, mas estou a envelhecer, sou obrigado a ir com mais freqncia
ao estrangeiro e no posso fazer tudo sozinho. Se houver oportunidade, falarei ao Meagles,
que saber aconselhar-me.
Chegaram, sempre conversando, encantadora vivenda dos amigos. A casa estava
circundada por um jardim magnfico, donde se via o serpentear de um rio. Logo que
assomaram ao porto de ferro, toda a famlia se precipitou para os receber, isto , o
senhor Meagles, a senhora Meagles e a filha, Cherry.
Cherry tinha vinte anos. Espessos caracis castanhos emolduravam-lhe o lindo
rosto, de grandes olhos cintilantes e meigos e um sorriso terno e feliz. Numa palavra, era
to bela como encantadora.
A tarde passou-se agradavelmente em passeios e conversas. Quando Clennam
voltou ao seu quarto, a fim de se vestir para o jantar, sentou-se diante da lareira, a
refletir. A questo que o atormentava decerto se encontrava h muito presente no seu
esprito, mas s agora assumia toda a sua acuidade: iria ou no apaixonar-se por Cherry?
Tinha o dobro da idade dela. Pois bem, que interessava isso? Sentia-se jovem de
corpo e de esprito. Mas a questo seria verdadeiramente essa: Decerto o senhor e a
senhora Meagles o aceitariam de bom grado para genro. Mas a jovem, que pensaria ela?
Ora, o senhor Clennam era um homem muito modesto, e quando fez a comparao
dos seus mritos com os da bela Miss Meagles, ficou completamente desesperanado,
mas, por fim, resolveu refrear os seus sentimentos para com ela.
noite, aps o jantar, pediu ao senhor Meagles que lhe concedesse meia hora para
conversarem e retiraram-se para o escritrio deste.
Senhor Meagles, o senhor est ao corrente da minha situao; por causas vrias,

abandonei a empresa de minha me, e neste momento; precisava de arranjar outro


emprego. Ora, vim a saber, pelo senhor Doyce, que este encarava a possibilidade de
arranjar um scio para o ajudar a dirigir a sua oficina. O senhor conhece-me: se acha que
eu seria a pessoa indicada, gostaria que tivesse a amabilidade de o informar que me ponho
sua inteira disposio.
A proposta encantou o senhor Meagles, que prometeu falar no assunto, no dia
seguinte, ao amigo.
Quando regressou ao quarto, Clennam ps-se janela e contemplou o rio, que
serpenteava, to tranqilo, por entre os juncos e os nenfares. E congratulou-se por ter
tomado a deciso de no se afeioar a Cherry. Era to bela, to digna de ser amada!
Como podia um homem de quarenta anos, tmido e grave, que em todo o lado se sentia
um estranho, sem amigos, sem uma famlia acolhedora, sem fortuna, esperar conquistar
aquela jovem? E, observando o rio, dizia para consigo que a gua era bem ditosa por no
conhecer a dor.
Na manh seguinte, Arthur saiu antes do pequeno almoo, para ir admirar o campo
das redondezas. Atravessou o rio na barcaa e passeou durante uma hora, depois voltou
para o barco. um cavalheiro esperava j na margem, com o seu co. Era um jovem de bela
aparncia, com cerca de trinta anos, rosto moreno e jovial. Todavia, Arthur ficou mal
impressionado com a maneira brutal com que calcava o cho, dando pontaps nas pedras,
e no lamentou ver-se livre da sua companhia quando desembarcou do outro lado do rio.
Ao chegar a hora do almoo, Arthur enveredou pelo atalho que subia at vivenda. Qual
no foi o seu espanto ao deparar-se-lhe, no jardim, o jovem, a quem uma criada anunciava
que Miss Meagles ainda no descera!
Mas mesmo agora nos encontrmos!
exclamou o desconhecido. - Permita-me que me apresente: Henry Gowan.
O jovem possua uma certa distino e uma voz agradvel. Contudo, se Arthur se
tivesse apaixonado por Chetry - mas no tinha -, ach-lo-ia bastante antiptico.
Nessa altura, apareceu Cherry: que ar radioso o seu rosto deixava transparecer!
Como acariciava aquele co, que to bem a conhecia! Quantas coisas exprimiam o seu
rubor, e a sua perturbao, os seus olhos baixos! Clennam nunca a vira assim.
Entraram os trs na sala de jantar: uma nuvem ensombrou o rosto do senhor
Meagles, que reprimiu um suspiro antes de cumprimentar Gowan. E Arthur deu-se conta de
que a mesma inquietao se espalhava pelo rosto do seu anfitrio sempre que via a filha
com o recm-chegado. Com respeito a Gowan, Arthur veio a saber que estava ligado s
famlias mais ricas do pas. Todavia, a sua fortuna pessoal era demasiado insignificante

para que lhe fosse concedido um desses cargos lucrativos e tranqilos das altas esferas
administrativas. De forma que se fizera pintor, mas lidava com a sua arte com tanta
desenvoltura, que no obtinha grande sucesso.
tarde, comeou a chover e o dia pareceu a Clennam muito tristonho. Quando
voltou para o quarto, afundou-se na poltrona e ali ficou por muito tempo, sem se mexer,
escutando a chuva que caa a cntaros sobre o telhado. Bateram porta. era Daniel Doyce,
que lhe vinha perguntar a que horas partia no dia seguinte. Quando a questo ficou
resolvida,

Clennam no se conteve e abordou um assunto que o atormentava:


Pareceu-me hoje que o nosso anfitrio estava um pouco sombrio.
Sim - respondeu Doyce.
Mas a filha no, creio eu.

No - retorquiu Doyce.
Ambos se calaram. Doyce, de olhos fixos na chama da vela, prosseguiu
lentamente:
O facto que o senhor Meagles por duas vezes levou a filha para o estrangeiro,
com o objetivo de a afastar de Gowan. Acha que ela sente uma extrema simpatia por ele
e receia que semelhante unio no d bons resultados.
Eles esto. - Clennam engasgou-se, tossicou e calou-se.
O senhor apanhou um resfriado - declarou Doyce, sem olhar para ele.
Decerto esto noivos, no verdade? - prosseguiu Clennam em tom
desprendido.
Ainda no, pelo que me foi dito. O rapaz declarou-se, mas nada ficou decidido.
Tudo o que h entre eles, viu-o o senhor, com os seus prprios olhos, esta tarde!
Ah! Vi bastante - exclamou Arthur. O senhor Doyce deu-lhe as boas- noites com
uma inflexo de homem que ouviu um grito de desespero e fez meno de responder com
qualquer coisa encorajadora. E a chuva caa a cntaros, fustigava o solo, pingava dos
ramos dos abetos e dos troncos nus de outras rvores. Caa pesadamente, tristemente.
Era uma noite de lgrimas.
A Pequena Dorrit no completara os vinte e dois anos sem conhecer um
apaixonado. este era o filho, muito sentimental, de um porteiro, a quem o pai esperava, na
devida altura, legar o cargo imaculado e a quem familiarizara, desde a infncia, com a
responsabilidade do ofcio, ambicionando manter o aferrolho na famlia E, enquanto
esperava, o jovem ajudava a me a manter uma pequena loja de tabaco, situada prximo
da priso.
Ainda o objeto da sua afeio se sentava na sua cadeirinha e brincava com
bonecas, e j o jovem John Chivery a contemplava com xtase. Quando cresceu o

suficiente para chegar aos buracos das fechaduras, ficava horas a admir-la, com um olho
s, enquanto o jantar que deveria levar ao pai arrefecia aos seus ps. Aos vinte e trs
anos, sempre fiel, oferecia todos os domingos, a tremer, charutos ao pai da sua bemamada.
John era baixinho, de pernas bastante fracas e cabelos de um louro muito plido.
Via mal de um olho (talvez aquele com que tantas vezes espreitara pela fechadura) e esse
parecia maior que o outro. O pequeno John era meigo e tinha a alma grande, potica,
expansiva e fiel.
Os pais de Chivery no ignoravam a inclinao do filho, inclinao que por vezes o
levara a mostrar-se irascvel com os clientes - facto este que prejudicava os negcios.
John saa, com inteno de se declarar, mas voltava, tarde, sem ter ousado falar.
Neste assunto, e como sempre, a Pequena Dorrit foi a ltima a saber. Fanny e Tip,
ao corrente daquela paixo, troavam do pobre rapaz, que tinha o arrojo de amar uma
jovem pertencente a uma famlia to superior dele. O senhor Dorrit, por seu turno, bem
tentava aparentar que nada sabia: a sua pobre dignidade no podia rebaixar-se a tanto!
Mas aceitava, e com alegria, os charutos de domingo. E, por vezes, condescendia at a dar
alguns passos pelo ptio com o doador, o que punha este ltimo muito orgulhoso e cheio
de esperana.
Sendo assim, num domingo, John saiu para a sua visita habitual, levando a sua
oferta de charutos. Vestira-se com esmero, um casaco cor de ameixa, uma enorme gola
de veludo sobre o colete de seda com ramagens douradas, umas calas to bem listradas,
que as suas pernas pareciam liras de trs cordas, e um vasto chapu de cerimnia.
Quando a senhora Chivery viu o seu pequeno John contornar a esquina da rua naquele
aparato, compreendeu para onde ia e piscou o olho ao marido.
O senhor Dorrit, a quem muito agradavam as visitas de domingo, recebeu os
charutos simulando uma grande surpresa, que nessas ocasies lhe era habitual:
Obrigada, John, obrigada! Mas diga-me a verdade, porque demasiado, no
posso. No. Ento no falarei mais disso. Ponha-os em cima da lareira, peo-lhe, John. E
sente-se, sente-se. No nenhum estranho aqui!
tmida pergunta do jovem se Miss Dorrit estava, o pai respondeu que Miss Amy
sara e que decerto se encontrava na Ponte de Fetro. H algum tempo que ia l com
freqncia. O apaixonado voltou a descer as escadas, encantado, e no tardou a chegar
ponte. avistou, ao longe, o vulto da sua bem-amada que, junto de um dos parapeitos,
contemplava pensativamente o rio. Estava to absorvida, que no o ouviu chegar. Quando
ele chamou a Miss Dorrit, teve um sobressalto e virou-se, tendo o seu rosto assumido

uma expresso de receio e como que desgosto, que espantou o pobre rapaz. Contudo,
recomps-se rapidamente e cumprimentou-o com a sua voz habitualmente meiga. Mas
quando soube que fora o pai que indicara a John o seu paradeiro, desfez-se em soluos e
afastou-se um pouco. O pequeno John ficou to assombrado com aquela reao, que se
ps a tremer dos ps cabea e se precipitou no seu encalo:
Escute, preciso de lhe dizer, Miss Amy - balbuciou ele, pensando ser aquela a
altura de finalmente esclarecer as coisas -, escute! o seguinte: h muito tempo - a mim
parece-me que foi h sculos! - que sinto o desejo profundo e ardente de lhe dizer uma
coisa. Permite-me que lha revele? Asseguro-lhe que no falarei sem o seu consentimento,
ou, que antes preferia saltar deste parapeito do que lhe causar o mnimo desgosto!
A Pequena Dorrit olhou-o e respondeu-lhe, toda a tremer, mas com voz tranqila:
Suplico-lhe, John Chivery, visto que tem a bondade de me pedir permisso para
continuar, suplico-lhe, no diga nada.
Nunca, Miss Amy?
No, suplico-lhe, nunca.
Oh, meu Deus! - exclamou John em voz sufocada.
Mas, em contrapartida; deixe-me explicar-lhe uma coisa: preciso que no nos
tome, a mim e a toda a minha famlia, por pessoas diferentes dos outros prisioneiros. No
sei o que fomos no passado, em qualquer dos casos, no lhes somos, nem nunca seremos,
superiores.
O pequeno John prometeu dolorosamente que se sentiria muito feliz por fazer tudo
o que ela desejasse.
Pelo que me toca - prosseguiu a jovem -, pense em mim o menos possvel,
quanto menos melhor ser. O senhor, de tal forma generoso, que sei que posso contar
consigo. Adeus, John, espero que um dia encontre uma boa esposa e que seja feliz, o John
bem o merece.
O pobre pequeno John, que j no podia mais, desfez-se em soluos.
Oh! No chore, suplico-lhe, no chore! Adeus, John, e que Deus o abenoe!
E o pequeno John afastou-se, a gola enorme levantada, porque chovia, o casaco cor
de ameixa abotoado, para esconder o colete e a bengala apontada em direo da casa
paterna. Amy, entretanto, sentara-se num banco, apoiando contra o muro rugoso a mo,
depois o rosto, como se sentisse a cabea pesada e o esprito oprimido.
No dia seguinte, a Pequena Dorrit foi procurar a irm Fanny ao teatro onde, todos
os dias, esta representava. Amy no estava acostumada queles lugares e sentiu-se
completamente perdida nos bastidores, no meio de um labirinto poeirento de traves, de
tabiques, de paredes de tijolos e de cordas, onde zumbia um enxame de gente. De sbito,

ressoou atrs dela a voz pouco cordial da irm:


Santo Deus, Amy, que fazes tu aqui? Nunca me passou pela cabea ver-te num
lugar destes, no meio dos artistas!
Conduziu a irm para um recanto mais afastado, onde se amontoavam cadeiras e
mesas douradas e onde jovens, sentadas um pouco por todo o lado, tagarelavam.
Ora ento, Amy, o que se passa? Decerto qualquer coisa a meu respeito que
te preocupa! - disse Fanny, como se estivesse a dirigir a uma av cheia de preconceitos.
No coisa importante - respondeu a irm -, mas desde que me falaste dessa
senhora que te deu.
Nessa altura, algum fez assomar a cabea por entre duas traves, gritando:
Ateno, meninas!
Todas as jovens se levantaram, sacudindo as saias, e Fanny fez o mesmo.
Desde que me falaste daquela senhora que te deu um bracelete, sinto-me
inquieta - prosseguiu Amy.
A voz fez-se ouvir de novo:
Vamos, meninas!
As jovens desapareceram num pice e, durante um bom pedao, ouviu-se msica e
passos cadenciados. Finalmente, o bulcio parou, as danarinas voltaram a aparecer e
vestiram-se para se irem embora. As duas jovens esperaram que o tio Frederick
arrumasse o clarinete e subisse e acompanharam-no at taberna onde ele habitualmente
jantava. Fanny declarou ento:
Agora, Amy, se no te sentes muito cansada, vem comigo at Harley Street,
Cavendish Square!
O ar com que pronunciou esta distinta morada e o movimento desdenhoso do seu
vistoso chapelinho deixaram Amy estupefacta.
Quando chegaram a essas ricas paragens, Fanny pareceu que escolhia a mais bela
das casas, bateu e pediu para ver a senhora Merdle. O lacaio empoado introduziu-as ento
num salo vasto e magnfico. O mais belo aposento que Amy vira na vida. A jovem,
extasiada, olhava para a irm, que lhe fez sinal para se calar, indicando um reposteiro; um
instante depois, uma mo cheia de anis ergueu o reposteiro e apareceu uma dama: uma
senhora bastante bela, muito majestosa e tambm muito desdenhosa, que convidou as
duas jovens a sentarem-se e, por seu turno, instalou-se no seu sof cor de prpura e ouro.
Senhora Merdle - disse Fanny, num misto de ousadia e de deferncia -, aqui, a
minha irm perguntou-me como tivera eu a honra de a conhecer. E como eu devia ainda
visit-la, tomei a liberdade de a trazer comigo, esperando que a senhora quisesse ter a

bondade de lhe explicar pessoalmente.


muito difcil explicar gente nova o que a alta sociedade. Para falar com
franqueza, difcil explic-lo. maior parte das pessoas Gostaria muito, evidente, que a
sociedade fosse menos dura e menos injusta, mas sabemos que o no , e, a menos que
nos disponhamos a viver nos Trpicos - disseram-me, contudo, que, l, o clima
maravilhoso! -, infelizmente temos que a aceitar! Visto que a sua irm deseja que lhe
relate as circunstncias - tudo em sua honra! - do nosso encontro, prazenteiramente que
a vou satisfazer. Tenho um filho de vinte e dois anos - casei-me muito nova -, muito
alegre, o que permitido gente nova, e muito impressionvel, o que bem lamentvel
para ns, que devemos obedecer s rgidas leis da alta sociedade!
Suspirou, como se ela prpria no fosse um dos pilares dessa alta sociedade
londrina.
Ora, quando soube que o meu filho ficara maravilhado com uma danarina e
quando soube de que teatro se tratava, fiquei muito surpreendida e bastante aflita. Mas
quando soube que a sua irm, contendo-lhe os mpetos, o levara a propor-lhe casamento,
experimentei uma angstia indescritvel. Dirigi-me, pois, ao teatro, para expor jovem em
questo a minha maneira de pensar e deparou-se- nos algum muito diferente, deve dizlo, do que imaginara e que, por seu turno, tambm se vangloriava da sua famlia!
Rematou com um dos sorrisos dos mais irnicos.
Disse-lhe, minha senhora - respondeu Fanny, corando levemente -, que me
encontrou numa situao que me muito inferior e que a minha famlia valia a do seu
filho.
isso - replicou a senhora Merle com frieza. - Expliquei ento sua irm que,
sendo o mundo como , se me tornava impossvel manter tais ligaes com essa famlia
de que ela tanto se orgulha.
Por favor, minha senhora, que a minha irm fique sabendo - interveio Fanny,
com um desdenhoso movimento do seu chapuzinho - que j tive a honra de informar o
seu filho que no desejo ter qualquer relacionamento com ele.
Mas evidentemente, ia diz-lo mais adiante! Finalmente, chegmos a um acordo
e a sua irm permitiu- me que lhe agradecesse com um ou dois testemunhos da minha
considerao, que lhe foram entregues pela minha costureira.
A Pequena Dorrit tinha um ar penalizado e o seu rosto, ao virar-se para a irm,
mostrava-se perturbado.
Por ocasio da sua ltima visita, Miss Dorrit ir-me- permitir que lhe diga adeus,
que lhe exprimirei minha bem grosseira maneira.
A senhora Merdle levantou-se da poltrona e fez deslizar qualquer coisa para a mo

de Fanny.
Adeus, Miss Dorrit, e os meus maiores desejos de felicidades para o futuro!
As duas raparigas levantaram- se, a mais velha com ar altivo e a mais nova
humilhada. Foram reconduzidas at porta pelo lacaio empoado e encontraram-se na
calada! Depois de caminharem em silncio por algum tempo, Fanny perguntou:
Ora bem, Amy, que tens tu a dizer?
Oh, no sei, Fanny - respondeu ela, desconcertada. - Ento aquele jovem no te
agradava?
Agradar-me? quase idiota!
Visto que me pediste a opinio, devo dizer-te, que fiquei muito penalizada por
teres aceite coisas daquela mulher. No te zangues.
Grande imbecil - respondeu-lhe a irm, sacudindo-lhe o brao -, no tens nenhum
carcter, nenhum amor-prprio! Como suportar que uma mulher to falsa e to insolente
calque impunemente a tua famlia aos ps? Nesse caso, ao menos obriga-a a pagar e
honra a tua famlia com esse dinheiro!
De repente, explodiu em desesperados soluos:
-Desprezas-me porque sou danarina, mas foste tu quem me proporcionou os
meios de o ser! E o teu irmo Tip, deixas que o insultem, porque trabalhou nas docas ou
em notrios, mas a culpa tambm tua! E deixas que insultem o teu pobre pai, porque ele
est preso: ser que alguma vez imaginaste os sofrimentos que ele suporta?
A injustia das suas censuras dilacerou o corao da Pequena Dorrit, mas nada
respondeu. Fanny acalmou-se finalmente e as suas lgrimas exprimiram o seu
arrependimento:
Perdoa-me, Amy, perdoa-me - exclamou, com a mesma veemncia com que
censurara a irm. - Ests tu a ver, estou mais em contacto com as pessoas do que tu e
possivelmente tornei-me demasiado orgulhosa e altiva, ser?
Sim, oh, sim - respondeu a Pequena Dorrit.
E enquanto te ocupavas do jantar e da roupa, eu s pensava na honra da famlia.
s uma pequena dona de casa muito tranqila, no verdade?
A Pequena Dorrit sorriu, sem nada dizer, mas tinha o corao triste e desolado.

Captulo V - UM ADIVINHO
O senhor Merdle era imensamente rico. Era visto em todo o lado em que os
negcios prosperassem, da Banca construo imobiliria. Era, evidentemente, deputado,
presidente de uma empresa, administrador de outra e diretor de uma terceira.
O seu principal desejo parecia satisfazer a sociedade. Contudo, era um homem
reservado, de fsico volumoso e grosseiro, que pouco brilhava na alta-sociedade e parecia
divertir-se pouco no meio dela. Mas exibia-se constantemente e gastava prodigamente
dinheiro com a sua pessoa. Desposara a senhora Merdle essencialmente para ter uma
mulher bela e vistosa, que exibisse com distino as jias que lhe comprava. Alis, ela
cumpria a sua misso s maravilhas. Do seu primeiro casamento, trouxera-lhe um filho, o
jovem Edmond Sparkler, que gozava de uma espantosa reputao de palerma: afirmava-se
que o seu crebro gelara nascena, que cara do alto de uma casa e que se ouvira o seu
crnio tachar-se. Tudo isto mantinha o senhor Merdle absolutamente imperturbvel. o
enteado era recebido em todos os saraus, e isso era a nica coisa que interessava.
Naquela noite, como acontecia com freqncia, havia um jantar na casa da Harley
Street. Encontrava-se ali a elite do Palcio, das Finanas, da Poltica, da Igreja, do Tesouro,
do Almirantado... enfim, toda a nata da sociedade.
Contaram-me - dizia um bispo a um oficial - que o senhor Merdle acabou de
realizar um golpe espantoso na Bolsa, cem mil libras!
O oficial ouvira dizer duzentas mil, o Tesouro, trezentas, o Tribunal, quatrocentas;
e a soma crescia de magnata para magnata.
Nesse jantar, a alta sociedade teve tudo o que se pode admirar, comer e beber. A
senhora Merdle estava magnfica e as jias resplandeciam- lhe no colo. Havia tanto p nas
perucas dos lacaios, que pairava por toda a parte e cobria as travessas com uma poeira
esbranquiada.
Entre os convidados achava- se um mdico muito clebre que, ao entrar, avistou o
senhor Merdle a um canto, isolado, onde bebia o seu ch.
Como vai hoje, melhor? - perguntou-lhe.
No, no me sinto melhor.
Ora bem, passarei amanh por sua casa.
Dois magnatas tinham escutado este breve dilogo que depois comentaram com o
mdico:
Acho que o senhor Merdle no est doente - disse este ltimo. - Tem uma
sade de ferro, uns tais nervos e sangue-frio, que me parece invulnervel. E, no entanto,
julga- se enfermo. Pelo que me toca, nada detectei. Talvez esteja a ser vtima de uma

misteriosa doena, mas no a descobri ainda.


Sofreria ele, na verdade, de uma misteriosa doena, que nenhum mdico descobrira
ainda? E neste intervalo, enquanto os convidados entravam e saam, os muros da
Penitenciria projetavam a sua sombra, bem real, sobre a famlia Dorrit.
O senhor Meagles encarregou-se com tanta diligncia das negociaes, que
Clennam lhe confiara que em breve o assunto estava encaminhado. Apareceu, uma bela
manh, para informar o amigo:
O nosso caro Doyce sente-se extremamente lisonjeado com a sua proposta e
sentir-se-ia muito feliz se o senhor aceitasse ser scio dele. Deseja, contudo, que, antes
de tomar uma deciso, examine todos os seus livros de contas e documentao, a fim de
que o senhor fique perfeitamente inteirado quanto pessoa a quem se vai associar. E para
lhe facultar inteira liberdade de ao, preferiu afastar-se alguns dias de Londres, dando-lhe
livre acesso ao seu escritrio.
Clennam agradeceu ao senhor Meagles, admirando a honestidade e a delicadeza do
amigo comum.
Ambos deram, pois, incio s investigaes no Beco do Corao-que-Sangra;
bastaram-lhes trs ou quatro dias para assimilar o funcionamento e as contas da fbrica,
de tal modo que Doyce, ao regressar, encontrou o assunto praticamente resolvido.
Precisaram de menos de quatro semanas para regularizar tudo e celebraram a nova
sociedade com um bom jantar, para o qual foram convidados os operrios e respectivas
famlias, assim como os moradores do Beco. Dois meses depois, Arthur tinha a impresso
de haver trabalhado a vida inteira para a empresa Doyce & Clennam!
Tinha um gabinete envidraado, donde via as mquinas e os operrios a trabalhar;
toda aquela atividade, aos seus olhos nova, descontraa-o, quando levantava a cabea dos
seus documentos comerciais: Recebeu algumas visitas: Flora veio v-lo acompanhada pelo
pai, o senhor Casby. semelhana da primeira vez, bombardeou-o com a sua tagarelice
incoerente mas cheia de gentileza e anunciou-lhe que, visto Arthur lhe ter recomendado
to calorosamente a Pequena Dorrit, a ia mandar a sua casa e dar-lhe trabalho.
Pancks tambm o veio ver. Deteve-se atrs da vidraa do gabinete, roendo as
unhas, o chapu enterrado at s orelhas e a sua sombra projetou-se sobre os livros e os
papis. Clennam convidou-o a entrar. Aps algumas saudaes sublinhadas com
fungadelas, Pancks declarou-lhe o objetivo da sua visita.
Senhor Clennam - comeou -, preciso de umas informaes.
A que propsito, senhor Pancks?
A propsito de A, B, C, Da, De, Di, Do, por ordem alfabtica, Dorrit! esse o

nome.
Clennam perscrutou-o com ar surpreendido e sobretudo desconfiado.
E o que quer o senhor saber?
Tudo o que puder e quiser dizer-me. Sublinhou a frase com algumas fungadelas.
Para o tranquilizar - prosseguiu, no seu estilo muito especial -, digo-lhe j que o
motivo bom. Nada tem a ver com o meu senhorio, o senhor Casby. Impossvel falar dele
neste momento. Ridculo, at. Mas bom. Melhor ser admiti-lo j.
Arthur olhava-o com curiosidade, refletiu por um momento e julgando que, ao fim e
ao cabo, iria obter todas as informaes que desejava, relatou tudo o que sabia da famlia
Dorrit. Pancks pareceu entusiasmado com o relato, soprando e resmungando cada vez
mais medida que o mesmo prosseguia. Arthur concluiu finalmente:
S acrescentarei mais uma coisa, senhor Pancks. Tambm tenho as minhas
razes para que falem o menos possvel dessa famlia e para saber dela o maior nmero
possvel de informaes. Faamos um acordo leal: disse-lhe o que sabia, mas o senhor
informar-me- das suas descobertas.
Combinado - respondeu Pancks, rindo.
Ver que cumprirei a minha palavra. E agora, tenho que me ir embora, o dia de
eu cobrar as rendas do Beco do Corao-que-Sangra. A propsito, quem aquele
estrangeiro coxo chamado Cavaletto? Quer alugar um quarto no Beco e diz que vem da
sua parte.
No se inquiete, respondo por ele. Sofreu um acidente e acaba de sair do
hospital. Pagar-lhe-ei o quarto, se for preciso.
O senhor Pancks, agora pronto para a partida, ps-se em movimento, desceu as
escadas soprando e entrou, como um pequeno rebocador, nas guas do Beco.
O seu trajeto por aquelas ruelas provocou, durante a tarde inteira, considerveis
ressacas. Entrava e saa, arengava com os que tinham a renda em atraso, exigia garantias,
ameaava-os de penhora ou de despejo, corria atrs dos atrasados, espalhando em seu
redor uma onda de pnico.
Naquela noite, os moradores do Corao-que-Sangra reuniram-se, para se
queixarem da dureza de Pancks.
Ah, se ao menos fosse o senhor Casby a receber as rendas, o caso era
diferente. Um cavalheiro com um olhar to bondoso e de rosto to venerando!
Mas, nesse mesmo instante, o senhor Casby, esse impostor, dizia a Pancks,
virando os polegares:
Que dia mau, Pancks, no me conseguiu grande coisa! A sua obrigao era terme trazido muito, muito mais dinheiro.

Na manh seguinte, a Pequena Dorrit dirigiu-se a casa de Flora Casby. Esta, que
tinha o melhor corao do Mundo, convidou a jovem a partilhar o pequeno-almoo,
composto de ch, galinha e presunto frito, e ps-se a tagarelar com ela. Tratou-a com
uma tal amabilidade, que esta ficou muito perturbada e teve que fazer aluso ao trabalho
de costura que nem sequer passara pela cabea de Flora dar-lhe. Em breve, porm,
recuperada a serenidade e posta vontade, a Pequena Dorrit contou boa Flora todas as
circunstncias da sua vida que normalmente tinha cuidado em ocultar. hora da refeio,
Flora pegou no brao da sua nova protegida e conduziu-a at sala de jantar, onde a
apresentou ao pai e ao senhor Pancks. A jovem, que se sentia j incomodada por se ver no
meio de estranhos, mais incomodada e inquieta ficou com a estranha atitude de Pancks.
Este no deixava de a olhar fixamente e s desviava os olhos para consultar um pequeno
livrinho que tirava com freqncia do bolso. Julgou, a princpio, que ele estava a fazer um
desenho seu e quis ver. Mas como ele s falava de negcios, imaginou, angustiada, que
devia ser um dos credores do pai.
Cerca de meia hora depois da refeio, Flora retirava-se para o seu quarto a fim de
repousar, o senhor Casby ressonava, de boca aberta, na poltrona, e a Pequena Dorrit
trabalhava tranquilamente num salo, quando Pancks apareceu diante dela e a abordou
polidamente.
No se sente um pouco aborrecida, Miss Dorrit?
No, senhor, obrigada.
Estou a ver que tem trabalho. Ento o que ?
Lenos, senhor.
Ah, sim, evidentemente, lenos. Ora bem, Miss, talvez esteja a interrogar-se
quem serei eu no verdade? Saber quem sou eu... Sou um adivinho
A Pequena Dorrit interrogou-se, repentinamente, se ele no seria doido e observou-o
com ar inquieto.
Deixe-me ver a palma da sua mo - continuou ele. - Ah Ah Que vejo eu? Anos
de trabalho, hem? Olha, que significam estes traos aqui? Uma priso. E ali, o que aquilo
de roupo cinzento e de gorro? Um pai. E aquele, com um clarinete? Um tio. E aquela, com
os seus sapatos de dana? Uma irm. E quem se agita aqui e ali sem fazer grande coisa?
Um irmo. E finalmente, aquela que se ocupa de todos os outros? Mas a menina, Miss
Dorrit!
Ela olhava-o com surpresa, dizendo para consigo que, a despeito dos seus olhos
penetrantes, aquele homem devia ser mais alegre e mais amvel do que a princpio
julgara. Mas ele continuou:

E ali, quem vejo eu naquele canto? Mas, sou eu! Que fao eu aqui E quem est
atrs de mim?
Virou a mo, como que para ver o que se achava nas costas. A Pequena Dorrit
sorriu.
mau? - perguntou.
Ora bem, Miss Dorrit, quem viver que veja! Um dia saber o que existe nas
costas da sua mo... Passou a mo pelos cabelos, que se eriaram de maneira aterradora,
e repetiu lentamente: - Quem viver que veja, lembre-se disso, Miss Dorrit!
Ao ver que ela se mostrava espantada pelo facto de ele estar to informado sobre
ela:
Chiu - ordenou, levando um dedo boca.
No diga nada a ningum, Miss Dorrit, nunca. Nunca se mostre surpreendida
quando me vir, ou coisa no gnero! Proceda sempre como se no me conhecesse.
A jovem hesitou, muito perturbada, mas finalmente aquiesceu. O senhor Pancks
esfregou as mos, como se tivesse realizado um bom negcio, dirigiu-se, arquejando, para
a porta e saiu, cumprimentando-a com amabilidade.
Os acontecimentos que se seguiram deixaram a Pequena Dorrit ainda mais
perplexa: a partir de E ento, encontrou Pancks em toda a parte. A princpio, apenas em
casa do senhor Casby e em casa da senhora Clennam. Uma semana depois, encontrou-o
no cubculo da priso, entabulando uma longa conversa com o porteiro. Depois, viu-o
passear pelo ptio, de brao dado com os prisioneiros. Uma noite, cantou no bar da priso
e ofereceu uma generosa rodada de cerveja. At ao dia em que chegou a Tip, com quem
conseguiu travar conhecimento! E I fingia sempre ignorar a Pequena Dorrit. Apenas uma ou
duas vezes dissera-lhe, furtivamente, de passagem:
Sou Pancks, o cigano, que l a sina.
Quanto Pequena Dorrit, trabalhava e cansava-se como sempre. Mas comeava a
operar-se nela uma gradual alterao. De dia para dia, mostrava-se cada vez mais
reservada, mais solitria. O seu nico desejo era que a ignorassem e a esquecessem.
Sempre que podia, retirava-se para o seu quarto, uma dependncia exgua no ltimo andar
da priso, sentava-se junto da janela e sonhava; as pontas de ferro que se eriavam sobre
o muro formavam desenhos e faziam ziguezagues quando as contemplava atravs das
lgrimas. Mas conservavam-se sempre ali, como uma marca indelvel.
Uma tarde, quando ali se encontrava, a desfrutar um pouco de repouso, ouviu os
passos de Maggie nas escadas e foi tomada de terror idia de quem poderia querer vla.

Depressa, mezinha - arquejou Maggie, fazendo assomar a cabea pela porta


entreaberta -, tem que ir v-lo, ele est l em baixo!
Quem, Maggie?
O senhor Clennam, quem havia de ser?
No me sinto bem, Maggie, vou-me deitar. Diz-lhe que eu j estou deitada e
apresenta-lhe as minhas desculpas e os meus agradecimentos.
E virou-se, para esconder as lgrimas. Maggie comeou imediatamente a
choramingar.
No coisa que se faa, mezinha! No coisa que se faa ao senhor Clennam
E, alm disso, ests a chorar e fazes-me chorar!
Para a decidir a ir transmitir o recado, a Pequena Dorrit foi obrigada a prometer a
Maggie que quando ela voltasse, lhe contaria uma linda histria.
Quando voltou, Maggie pediu sua mezinha que lhe contasse uma histria de
princesas, e ela comeou, com um sorriso um pouco triste:
Era uma vez um rei, muito belo e muito rico, que tinha tudo quanto desejava:
ouro, pedrarias, palcios. .
E hospitais - cacarejou Maggie. - E batatas no forno E frango com vinho do bom.
E tinha uma filha, a mais bela e a mais sensata de todas as princesas. No
longe do palcio situava-se uma choupana, onde vivia uma pobre e solitria mulher.
Uma velha?
No, no. Uma rapariga. E, todos os dias, a princesa passava, na sua carruagem,
diante da choupana e todos os dias via a rapariguinha, que fiava. Um dia, a princesa parou,
desceu e entrou na cabana. Ambas se olharam. Mas a princesa tinha a faculdade de
adivinhar todos os segredos e perguntou: Porque a mantns aqui? a rapariguinha
compreendeu que a princesa sabia de tudo e lanou-se-lhe aos ps, suplicando-lhe que a
no trasse. Depois, fechou a porta e os postigos e foi, toda a tremer, abrir um esconderijo
secreto e mostrou princesa... uma sombra...
Uma sombra?
Era a sombra de algum, que um dia, h muito tempo, por ali passara e que
partira para no mais voltar. Era uma sombra muito linda, a rapariguinha orgulhava-se
imenso dela e vigiava-a dia e noite. De olhos baixos, a rapariguinha confessou que nunca
conhecera ningum to bom e amvel e fora assim que tudo comeara. Guardando aquela
sombra, a rapariguinha no prejudicava ningum, s conservava uma recordao e ele
partira para aqueles que o esperavam.
Ento era um homem? - perguntou Maggie.

Sim, acho que sim - respondeu timidamente a Pequena Dorrit. - E a rapariga


disse ainda: Quando eu morrer, a sombra ir comigo para o caixo e ningum voltar a
encontr-la. O tempo passou. Mas um dia, a princesa, ao passar pela cabana, viu que a
roca j no girava e que a rapariguinha se no encontrava l. Disseram-lhe que acabara de
morrer. Ento, a princesa entrou na cabana e foi abrir o esconderijo: l dentro, j nada
havia. A rapariguinha no se enganara: a sombra fora com ela para o tmulo e dormiam
agora juntas. Pronto. A histria acabou, Maggie.
Maggie ficou muito tempo a fit-la, enquanto o Sol poente as iluminava com os
seus raios dourados.
Se Arthur Clennam no tivesse tomado a resoluo de no se apaixonar por Cherry,
viveria num estado doloroso de lutas interiores! A mais penosa dessas lutas seria,
certamente, travada contra o seu desejo de detestar Henry Gowan: aquele esprito
generoso entristecia-se por se ver capaz de tais dios! Mas no estava apaixonado, no o
decidira assim.
Alis, era Daniel Doyce quem falava de Gowan com mais freqncia. Os dois
scios partilhavam o mesmo apartamento, numa casa tranqila perto da City e quando
Doyce voltava das suas visitas a Twickenham - Clennam escusava-se amiudadamente e
ficava em Londres -, transmitia- lhe as suas inquietaes com respeito ao casamento de
Miss Meagles e a opinio desfavorvel que tinha do jovem. O senhor Meagles estava to
desolado com a situao, que encarava a possibilidade de, uma vez mais, levar a filha para
o estrangeiro, agora por um ano, a fim de a afastar de Gowan.
Num sbado primaveril, os dois scios dirigiram-se para Twickenham; o mais velho
de trem e, o mais novo, a p. O Sol j se punha quando Clennam, que atravessara os
prados que circundavam o rio, se aproximou do termo do seu percurso. Tudo era quietude
e beleza: a espessa folhagem, a erva luxuriante, pontilhada de flores silvestres, as ilhotas
verdes no meio do rio, os canios e os nenfares. Vozes distantes chegavam-lhe aos
ouvidos, como uma msica nas ondulaes da gua e na atmosfera da tardinha. Clennam
acabara de parar novamente para contemplar aquela paisagem, cuja serenidade era como
um blsamo para o seu corao, e pusera-se de novo a caminho, quando avistou, perto
dali, um vulto: era Cherry. Esta trazia algumas rosas na mo e parecia esper-lo. Ao
aproximar-se, Clennam viu que ela se mostrava dominada por uma emoo inusitada e
compreendeu que se dirigira ao seu encontro para lhe falar. Ela estendeu-lhe a mo.
Boa tarde, senhor Clennam. A tardinha estava to bonita, que vim andando at
aqui, na certeza de que o iria encontrar.
A sua mo estremeceu no brao de Clennam e tambm as rosas tremeram:

Permita-me que lhe oferea uma rosa. Foi sobretudo para si que, ao sair do
jardim, as apanhei.
Arthur tirou duas rosas e enveredaram pela alameda ladeada de grandes rvores,
caminhando, por um momento, em silncio. A jovem perguntou-lhe, finalmente, se estava
a par da viagem ao estrangeiro que o seu pai planeava, acrescentando, aps uma
hesitao, que desistira dela. Clennam imediatamente compreendeu que o casamento fora
decidido.
Senhor Clennam - disse, em voz ainda hesitante-, desejaria tanto desabafar
consigo, mas. mal sei por onde comear!
O senhor Gowan - interveio Arthur - tem bons motivos para se sentir feliz. Deus
abenoe a sua esposa e o abenoe a ele!
Cherry desfez-se em lgrimas, tentando agradecer- lhe; ele pegou-lhe na mo, para
a tranquilizar, e, nesse instante, sentiu que renunciava realmente, pela primeira vez,
esperana que, ao preo de tantos sofrimentos; subsistia ainda no seu corao.
Oh, senhor Clennam, diga-me que no me censura!
Eu, censur-la, minha querida filha! Evidentemente que no!
Ela olhou-o, para lhe agradecer, com tanta confiana, e estava to linda, com os
seus olhos brilhantes de lgrimas, que Arthur preferiu virar a cabea e contar as rvores
da alameda.
Senhor Clennam, seria capaz de me fazer um grande favor? Sabe como a minha
partida vai ser dolorosa para os meus pais. Amamo-nos tanto, que nem sequer
compreendo como sou capaz de os deixar - concluiu, desfazendo -se em soluos.
Minha querida filha, acontece sempre isso, em todas as famlias, quando nos
casamos.
O senhor o melhor amigo do meu pai e gostaria imenso que se lembrasse dele
quando eu partisse, que lhe fizesse companhia sempre que pudesse. A ele e a minha me.
E que lhes dissesse, na altura em que os deixar, o quanto os amei. Prometa-me!
Prometo-lhe, fique descansada.
Gostaria tanto que um dia o meu pai e o senhor Gowan se compreendessem e
se estimassem! Tudo farei para isso. Se o senhor puder usar a grande influncia que tem
sobre o meu pai para que ele veja a verdadeira faceta daquele que me querido, ficar-lheia to reconhecida!
Clennam prometeu igualmente que o faria, lamentando, no ntimo, a jovem, que
corria atrs de uma tal quimera!
Tinham chegado ltima rvore da alameda. Ento ela deteve-se e olhou-o:

Caro senhor Clennam, no poderia, no meio da minha felicidade, suportar a


mnima desavena entre ns. Se tem algo a perdoar-me - qualquer desgosto que
involuntariamente lhe tenha causado -, suplico- lhe que o seu nobre corao me perdoe
esta noite!
Ele inclinou-se para o seu rosto cheio de candura e beijou-a, dizendo:
Deus testemunha de que nada tenho a perdoar-lhe!
Momentos depois, saram da alameda e as rvores pareciam inclinar-se na sombra
que ficava atrs deles, como a estrada do seu passado.
Noite avanada, Arthur passeava pela margem do rio. Pegou ento nas rosas, que
conservara apertadas contra o corao, e lanou-as suavemente gua. Plidas e irreais
claridade da Lua, afastaram- se, rio fora, como os mais nobres sentimentos que os nossos
coraes guardaram se afastam de ns, ao sabor das ondas da eternidade.

Captulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE


No meio de todo aquele vaivm, a casa da City mantinha a sua enfadonha tristeza:
a doente continuava a levar uma vida montona. Que pensamentos, que sonhos, que
recordaes, poderiam morar no aposento escuro daquela mulher? Ningum sabia.
Fhntwitch teria, porventura, sido o nico a poder arrancar-lhe o seu segredo, se ela fosse
menos inflexvel! Quanto a Affery, contemplava, aturdida, a patroa e o marido e vivia
aterrorizada.
Uma noite, conclura a Pequena Dorrit um longo dia de trabalho no quarto da
senhora Clennam e estava a p-lo em ordem, para se ir embora, quando a velha, que
cismava, sentada na poltrona, lhe pousou a mo no brao. A Pequena Dorrit ficou muito
perturbada.
Diz-me, Pequena Dorrit, agora tens amigos?
Muito poucos, minha senhora. Alm da senhora, apenas Miss Flora e. tambm
outra pessoa.
O senhor Pancks, talvez, - inquiriu a senhora Clennam, que achava as visitas
daquele to freqentes como bizarras.
Oh, no! Algum muito diferente.
Vamos - disse a senhora Clennam, quase sorridente -, nada tenho a ver com
isso. Pergunto-te porque me interesso por ti! e porque fui tua amiga, julgo eu, quando no
tinhas outras.
Na verdade, assim , senhora Clennam. Sem a senhora e sem o trabalho que me
deu, nada nos restaria.
Ns, - repetiu a senhora Clennam, de olhos fixos no relgio do marido. - Ento
quantos so vocs?
Atualmente, apenas o meu pai e eu.
Tu e os teus suportaram muitas privaes? Perguntou ela, fazendo girar o
relgio nas mos.
Por vezes tivemos bastantes dificuldades na vida -respondeu a jovem com a sua
voz meiga -, mas decerto h muita gente em piores condies.
Eis uma bela frase - respondeu a senhora Clennam com vivacidade -; s uma
boa rapariga, sensata e reconhecida.
E, com uma doura surpreendente, puxou o rosto da pequena costureira e deu-lhe
um beijo na testa.
Agora, vai-te embora, Pequena Dorrit, ou chegars muito tarde a casa, minha
pobre filha!

Affery, que espreitava pelo buraco da fechadura, por pouco no desmaiou de


espanto ao contemplar esta cena. Acompanhou a jovem at porta e em seguida ficou no
alpendre, vendo-a afastar-se, ainda muito espantada. A noite estava tempestuosa e
chuvosa, o vento fazia bater os postigos desengonados e girar os cata-ventos
enferrujados. Affery mantinha-se especada no alpendre, sem saber o que fazer, quando
uma sbita rajada lhe fechou a porta nas costas.
Meu Deus - gemeu Affery. - E a minha patroa l dentro sozinha, sem poder
abrir-me a porta!
Estava ali a choramingar, o nariz afundado no avental, quando deixou escapar um
grito: uma mo acabava de se abater sobre o seu ombro.
Virou-se: atrs dela encontrava-se um homem envergando um trajo de viagem, um
vasto manto e chapu de pele. Tinha ar de estrangeiro, com os seus cabelos e bigodes de
um negro de azeviche e o seu grande nariz adunco.
O terror de Affery provocou- lhe o riso e o seu rosto teve um esgar.
Que tem voc - perguntou, em bom ingls. - O que lhe meteu medo?
O senhor. E a tempestade e tudo E a gota o vento, que me fechou a porta, no
posso entrar.
Ah Ah - retorquiu o cavalheiro, sem se comover. - Diga-me, boa mulher, conhece
algum por aqui chamado Clennam?
meu senhor, se conheo! Ela est l dentro, paraltica e sozinha, e o outro
malandro que tambm saiu e, oh, acho que vou endoidecer!
O forasteiro recuou alguns passos, para examinar a casa, reparando na longa e
estreita janela junto da porta da entrada:
O tiazinha, diga-me francamente - a franqueza faz parte do meu temperamento
-, quer que lhe abra a porta?
Sim, sim e que Deus o abenoe, faa-o sem demora!
Um momento, boa mulher - respondeu ele, retendo-a com a sua mo lisa e
branca. - Como est a ver - indicou o manto e as botas que estavam molhados -, acabo
de desembarcar do vapor que, devido ao mau tempo, sofreu um atraso: diabo da
tempestade! Ora o assunto que tenho a tratar muito urgente. Pois ento, deixe-me
fazer-lhe uma proposta honesta - a honestidade faz parte do meu temperamento. Descubra-me a pessoa com quem quero falar e abrir-lhe-ei a porta.
Affery aceitou alegremente: o forasteiro saltou lentamente para o rebordo da
janela, levantou o caixilho e penetrou na residncia. O seu olhar assustara tanto a velha,
que esta julgou que ele ia assassinar a patroa. Felizmente, depressa assomou porta e

perguntou:
E agora, boa mulher, quer ter a bondade de me conduzir presena desse gnio
mau de que mesmo agora me falou?
E Affery, tremendo de pavor, precipitou-se para a taberna vizinha, a fim de avisar
Flintwitch.
Quando o casal chegou, arquejando, porta, o desconhecido, avistando de repente
Jeremy na escurido, estremeceu e recuou:
Com os diabos! - exclamou. - Que faz voc aqui?
O senhor Flintwitch, a quem estas palavras eram dirigidas, olhou, espantado, para o
estrangeiro e virou-se para a mulher, a quem se ps a sacudir brutalmente, esperando,
daquela forma, arrancar-lhe uma explicao. O estranho, um pouco recomposto da
surpresa, apanhou a touca de Affery e fez observar aos Flintwitch que a senhora Clennam
os chamava h j alguns minutos. Jeremy largou a mulher, que fugiu pelas escadas e foi
acender uma vela. O homem examinava-o sempre com ateno, depois reassumiu o seu
habitual sorriso ambguo.
O senhor Flintwitch conduziu-o ento para o seu gabinete de trabalho e disse-lhe,
com os seus pavorosos rodeios:
s suas ordens!
Chamo-me Blandois. Deve ter recebido de Paris um aviso.
No recebemos de Paris nenhum aviso em nome de Blandois - respondeu
Jeremy.
O senhor Blandois puxou da carteira, depois deteve-se, para dizer, com os seus
olhos cintilantes de riso:
O senhor parece-se espantosamente com um dos meus amigos: mesmo agora o
tomei por ele, mas estava enganado, reconheo sempre os meus erros, faz parte do meu
temperamento. Contudo, que extraordinria semelhana!
Verdade? - interrogou maldosamente Jeremy.
O senhor Blandois puxou ento de uma carta e estendeu-a a Flintwitch:
Aqui est uma letra de cmbio. Julgue-a por si mesmo. Pelo que me toca,
infelizmente sou um cavalheiro e no um homem de negcios!
Flintwitch pareceu satisfeito com o documento e convidou-o a sentar- se, um tanto
impressionado com os seus ares sobranceiros. Do que o senhor Blandois naquele momento
precisava era de um hotel. porm, nas proximidades, unicamente o que estava aberto era
uma estalagem pouco elegante, mas o senhor Blandois contentar-se-ia com ela e em
breve saam os dois.
Depois de o estrangeiro mudar de fato e descansar, voltou, para apresentar as suas

saudaes senhora Clennam, e, no percurso, pensava:


Blandois, meu velho, a sorte vai voltar! Ah Ah! Com os diabos! J entraste hoje
com o p direito, tens intuio, maneiras e um fsico atraente, vencers! Vingar-te-s!
O ch estava pronto quando entrou no quarto da senhora Clennam e Flintwitch
apresentou-o patroa, que o cumprimentou e o convidou a sentar-se.
Agradeo-lhe, cavalheiro, a gentileza da sua visita. No passo de uma pobre
mulher doente, isolada do mundo, e o senhor Flintwitch, aqui presente, o nico scio que
me resta. ingls, cavalheiro?
Santo Deus, no, minha senhora! Para falar verdade, no perteno a nenhum pas
e tenho viajado um pouco por todo o lado.
No tem quaisquer laos, provavelmente?
Minha senhora - respondeu Blandois, franzindo maldosamente os sobrolhos -, no
sou casado nem nunca o serei.
Affery, que servia o ch, virou-se para ele nesse momento. Ento, o seu olhar foi
atrado pela expresso dos olhos do estrangeiro e foi incapaz de desviar o rosto. ficou ali
especada, de bule na mo, fascinada. A senhora Clennam foi a primeira a falar:
Affery, que tens tu?
No sei, minha senhora. No sou eu, ele.
O que quer dizer esta boa mulher? - exclamou o senhor Blandois, tornando-se
muito plido, depois muito afogueado, o olhar toldado de clera.
No se preocupe, cavalheiro, ela quase idiota - respondeu Jeremy,
aproximando-se da mulher com um ar to ameaador que ela fugiu, cobrindo a cabea
com o avental.
O homem voltou a sentar-se, estendeu galantemente senhora Clennam uma
chvena de ch e debruou-se por cima da mesinha.
Oh, mas que relgio curioso a senhora tem! A senhora Clennam levantou
vivamente os olhos.
Perdoe-me se tenho a ousadia de o examinar: estou a ver que equipado com
uma caixa dupla. Olha uma velha guarnio de seda bordada a prolas. Coisinha pitoresca.
E que hbito extraordinrio, este, de bordar iniciais: N. T. E. Deviam ser as iniciais de
alguma beldade!

No, no so as iniciais de um nome.


De uma divisa, talvez - disse o senhor Blandois com desprendimento.
De uma frase, cavalheiro. Significa No Te Esqueas.
E, naturalmente, a senhora no se esquece!

Flintwitch parou de beber o ch, segurando a chvena, e a grande boca


escancarada.
No, cavalheiro, no me esqueo - respondeu a senhora Clennam. - Uma vida to
montona como a minha no permite que me esquea. Saber que sentem, como todos os
filhos de Ado, pecados a expiar e alcanar a paz com Deus, tambm no permite
esquecer. Julgo que um homem como o senhor, habituado sociedade e aos prazeres, no
pode compreender uma mulher como eu; a minha vida rege-se por guias que deram as
suas provas - prosseguiu, olhando para o monte de livros pousado na mesinha-decabeceira.
Aquela mulher parecia aproveitar todas as ocasies para discutir, para argumentar
contra um adversrio invisvel: qui, o seu prprio julgamento, que tudo reconduzia a ela
prpria e s suas iluses.
O senhor Blandois escutava-a com a maior das atenes. Quando chegou o
momento das despedidas e depois de ter cumprimentado a senhora Clennam, disse de
repente, em tom jocoso:
Mas este quarto um verdadeiro aposento antigo! Santo Deus, minha senhora,
permitir-me- que veja esta bela casa antiga? Compreende, adoro o pitoresco!
Durante a visita,
ateno: com freqncia
retorcer-lhe os bigodes.
retrato, que representava

Blandois no tirara os olhos de Jeremy, observando- o com


o velho encontrava o seu olhar trocista e via um riso diablico
De sbito, o visitante parou e olhou com interesse para um
o senhor Clennam.

Ah Ah! o esposo da senhora! E decerto o primeiro proprietrio daquele notvel


relgio, no? - zombou.
Sim, cavalheiro, pertenceu- lhe - respondeu Jeremy com frieza.
Devem ter sido muito felizes. - disse Blandois.
To felizes como qualquer outro casal, julgo eu - replicou o outro. - No estou
dentro do assunto. Todas as famlias tm segredos.
Realmente verdade - exclamou o outro, dando-lhe palmadinhas nos ombros. Ah! Com mil diabos, certas famlias tm mesmo segredos terrveis, senhor Flintwitch!
E desatou a rir estrondosamente. Os seus modos tornavam-se, assim, cada vez
mais grosseiros, mas Jeremy permanecia impassvel. E quando Blandois lhe deu o brao e
o convidou a beber um copo com ele, o velho aceitou sem hesitar.
Chegados estalagem, os dois homens instalaram-se numa pequena saleta e
abriram uma garrafa de vinho do Porto. Blandois mandou vir copos grandes e brindou, com
uma jovialidade aparatosa. Jeremy tambm brindou, mas sem dizer palavra. Em resumo,

Blandois depressa compreendeu que daquela forma no faria soltar a lngua do velho,
muito pelo contrrio. E logo ps termo s expanses.
Adeus, meu bom Flintwitch. Antes de se ir embora, quero dar-lhe - e beijou-o
ruidosamente nas duas faces - a minha palavra de cavalheiro. Com mil troves, voltarnos-emos a ver!
No dia seguinte, no o vendo, Jeremy foi pedir notcias dele estalagem e soube,
com surpresa, que voltara a partir para o continente. Mas tinha a certeza de que o senhor
Blandois regressaria.

Captulo VII - UMA GRANDE NOTCIA


H muito que Arthur no via a Pequena Dorrit. Uma tarde, enfim, encontrou-a no
quarto da Penitenciria e esperou pacientemente que todos se afastassem para se
aproximar da jovem, que cosia, perto da janela, na companhia de Maggie. Quando o
visitante se sentou ao seu lado, a Pequena Dorrit ps-se a tremer tanto que no conseguia
agarrar na agulha. Arthur pegou-lhe na mo.
H algum tempo que quase no a vejo, Pequena Dorrit!
Ando muito ocupada, senhor Clennam.
Mas soube que esta manh foi ver o senhor e a senhora Plornish. Porque no
aproveitou para tambm me visitar?
Eu. Eu no sei. Pensei que o senhor tambm devia andar ocupado. No tem
andado, ultimamente?
Ele contemplou aquele corpinho trmulo, aquele rosto inclinado, aqueles olhos que
se baixavam sempre que encontravam os seus e sentiu, ao observ-la, tanta inquietao
como ternura:
Minha filha, vejo-a to mudada!
No conseguindo dominar por mais tempo a sua emoo, ela retirou a mo e ficou
ali, de rosto baixo, tremendo da cabea aos ps.
Minha querida Pequena Dorrit - disse ele, cheio de compaixo.
Ela desfez-se em pranto, Clennam aguardou um pouco, antes de prosseguir:
No posso suportar v-la chorar assim; apenas posso desejar que essas
lgrimas lhe tragam algum alvio.
A Pequena Dorrit reanimou-se um pouco e respondeu:
Sim, senhor Clennam, isso. O senhor to bondoso.
Finalmente, ousou levantar os olhos para ele, mas pareceu impressionada ao
contemplar-lhe o rosto e perguntou em voz alterada:
Senhor Clennam, est doente?
Evidentemente que no.
Nem contrariado, nem preocupado? Foi a vez de ele no saber o que replicar.
Finalmente, disse:
Para falar com franqueza, tive algumas contrariedades, mas j as resolvi. Notase assim tanto? No sabia. No, estava convencido de que conseguia dominar a minha
fisionomia!
No desconfiou que ela lhe lia os pensamentos melhor que ningum e que o olhar
dela o perscrutava de forma to penetrante.

O meu rosto traiu-me, mas tal facto permite-me, assim, que desabafe com a
minha amiguinha, a Pequena Dorrit, o que para mim um privilgio e um prazer. Devo,
pois, confessar que, esquecendo a minha solenidade e a minha idade, imaginei que me
apaixonara por algum.
Algum que eu conhea, senhor Clennam?
No, minha filha, no. Ora bem - prosseguiu, recordando a impresso que sentira
naquela tarde de rosas, na alameda, a impresso de que era um velho para quem a ternura
morrera -, dei-me conta do meu erro e tornei-me mais razovel. Fiz uma retrospectiva da
minha vida: verifiquei que j trepara a colina da vida, que atravessara o planalto e que
descia rapidamente pela outra encosta. Compreendi que, para mim, j passara o tempo do
amor gracioso e cheio de esperanas e que nunca mais brilharia.
Ah, se ele soubesse! Se ele pudesse ver as feridas que infligia no corao paciente
da Pequena Dorrit!
Enfim, tudo acabou e no quero pensar mais nisso. Mas porque falei eu de tudo
isto minha amiguinha?
Porque tem confiana em mim, assim o espero. Porque sabe que tudo o que lhe
disser respeito, tambm a mim diz, a mim, que lhe estou to reconhecida!
Ele ouviu a sua voz palpitante, contemplou-lhe o rosto afogueado, os olhos claros e
sinceros e nem a mnima suspeita da verdade lhe perpassou o seu esprito. No, ele via
nela apenas a figurinha dedicada, com os seus sapatos gastos e o seu pobre vestido, na
priso criana de corpo frgil e alma herica, cuja histria familiar cintilava com um brilho
tal que tudo o resto desaparecia na sombra.
Mas por que razo, Pequena Dorrit, por que razo se isola desta maneira? Digame.
Sinto-me melhor aqui. o meu lugar, aqui sou til - respondeu ela num fio de
voz.
Mas tem mesmo a certeza de no ter nenhum segredo a confiar-me, de no
querer encontrar junto de mim esperana e conforto?
Um segredo? No, no tenho segredos - respondeu ela muito perturbada.
De sbito, Maggie interveio:
Mezinha, se no tens nenhum segredo a dizer-lhe, conta-lhe ento o da
princesa!
A princesa tinha um segredo - perguntou Clennam, surpreendido.
Arthur interrogou Dorrit com o olhar e espantou-se por a ver to afogueada e to
perturbada: ela explicou-lhe que no passava de uma histria de fadas sem interesse que

um dia inventara para Maggie. ele no insistiu, mas continuou:


Pequena Dorrit, s mais uma coisa: sou um homem de idade, poderia ser seu
pai ou seu tio, no receie desabafar comigo. Sei que neste momento a sua nica
preocupao se relaciona com o seu pai, mas, um dia, poderia vir a interessar-se por outra
pessoa, sentir um novo afeto.
No, no, no.
A Pequena Dorrit ficara muito plida e abanava lentamente a cabea, com ar de
tranqila desolao de que ele por muito tempo se recordou.
Neste momento, no lhe peo confidncias. apenas lhe rogo que me conceda,
sem hesitao, a sua total confiana.
Poderia fazer menos por si, que to bom?
E confiaria absolutamente em mim? No esconder nenhum desgosto, nenhuma
inquietao? E tem a certeza de que neste momento nada a perturba?
No, senhor Clennam, pode acreditar em mim.
Ao proferir estas palavras com uma firme convico, mostrava-se profundamente
plida.
Nesse momento, fizeram-se ouvir, nas escadas arruinadas, uns rangidos
significativos, um rudo semelhante a uma pequena locomotiva a vapor e, antes que
Maggie abrisse a porta, surgiu um senhor Pancks mais agitado do que nunca:
Pancks, o cigano - disse, arquejante -, que l a sina.
Ficou ali especado, sorrindo e resfolegando, com ar espantosamente satisfeito com
a sua pessoa, e puxou uma tal fumaa do charuto, que por pouco no se engasgou.
Clennam julgou que ele estava embriagado, mas depressa se deu conta de que a causa da
sua desmedida excitao no era o lcool.
Como vai, Miss Dorrit? E o senhor Clennam? Nunca me senti to satisfeito
como hoje. Hem, Miss Dorrit?
Aparentava um prazer insacivel em contempl-la. Os seus olhinhos negros
lanavam chispas e estava to carregado de eletricidade, que todo o seu corpo parecia
irradiar pequenas fascas estaladias. Miss Dorrit parecia um pouco assustada e no sabia
o que dizer. Pancks ps-se a rir, apontando para Clennam.
No se preocupe com ele, Miss, dos nossos: diante dele pode, sem receio,
reconhecer-me, no verdade, senhor Clennam? Hem, Miss Dorrit
A exaltao do indivduo depressa se comunicou a Clennam e Miss Dorrit viu-os,
surpreendida, trocar olhares fugazes.
E. Oh! A propsito, Miss Dorrit - disse Pancks -, lembra-se de que deveria
inteirar-se do que existia nas costas da sua mozinha? Ora bem, vai sab-lo, minha

amiguinha, vai sab-lo! Senhor Clennam, fizemos um acordo, respeitei-o, se tiver a


bondade de me conceder alguns minutos. Miss Dorrit, desejo-lhe uma boa noite.
Arthur seguiu-o pelas escadas com tanta precipitao, que pouco faltou para cair
por cima dele e vir a rolar at ao ptio.
Em nome do Cu, que se passa? - perguntou Arthur.
Um momento, senhor Clennam, venha comigo at bomba!
Dirigiram-se para a bomba de gua. O senhor Pancks, metendo a cabea por sob o
cano, pediu a Clennam que bombeasse com fora, depois endireitou-se, molhado,
resmungando e resfolegando e enxugou-se com o leno. Sentindo-se ento um pouco mais
calmo, tirou do bolso umas tiras de papel.
Espere! - exclamou Clennam. - Descobriu alguma coisa?

Assim julgamos - respondeu ele, empertigando-se.


Algum est envolvido, algum cometeu qualquer fraude, qualquer espoliao?
De modo nenhum!
Deus seja louvado! - exclamou Clennam.

Ento mostre-me l isso!


Tem que saber. - comeou por declarar Pancks desdobrando febrilmente os
papis. - Onde est a genealogia? Onde est o anncio nmero quatro? Ah! C est! Tem
que saber que hoje fica tudo praticamente concludo. Mas do ponto de vista legal, s
estar dentro de dois ou trs dias. Uma semana no mximo. Ocupo-me dia e noite no
assunto, h j. no sei. No diga nada. Atrapalhar-me-ia. Di-lo- a ela. Mas para isso tem
que aguardar o meu consentimento. Ento onde est o total? Ah, ei-lo! Olhe, cavalheiro.
Aqui est o que eu tinha para lhe anunciar! Aqui est a fortuna que pertence ao Pai da
Penitenciria!
Alguns dias depois, o senhor Pancks revelou a Clennam tudo o que soubera acerca
da fortuna da famlia Dorrit. O pai da jovem era herdeiro, de direito, de bens muito
considerveis, cuja existncia ignorava, que ele nunca reclamara e que s tinham
aumentado. Os seus direitos eram agora bem claros, deixara de haver obstculos, as
portas da Penitenciria escancaravam-se, os muros desapareciam. Algumas assinaturas e
ele converter-se-ia num homem extremamente rico.
Senhor Clennam, nunca imaginei, quando lhe falava dos anunciozinhos que
colecionava, que um dia iria culminar nos Dorrit, de Dorset. Mas, agora, vou passar-lhe o
assunto. Autorizo-o a que informe a famlia, tudo est em regra. Miss Dorrit deve ir, esta
manh, a casa de Miss Flora Casby. Quanto mais cedo lhe disser, melhor ser!
Arthur vestiu-se rapidamente e saiu to depressa que logo se viu em casa do

Patriarca, onde foi introduzido na antecmara de Flora.


Ela preparava o ch do pequeno-almoo e ficou muito surpreendida com aquela
visita matinal. Arthur explicou-lhe ento o motivo da sua presena e a boa sorte da jovem
amiga de ambos. Flora juntou as mos, ps-se a tremer e desfez-se em lgrimas de
simpatia e contentamento. J se ouviam os passos da Pequena Dorrit nas escadas. um
instante depois, surgia. Arthur bem se esforou por serenar, no conseguindo reassumir a
sua expresso habitual, de modo que, ao olhar para ele, a jovem deixou cair o trabalho.
Senhor Clennam, Que se passa? - exclamou ela.
Nada, nada. Quero eu dizer. Nenhuma desgraa! Pelo contrrio! Venho anunciarlhe uma grande felicidade, uma felicidade maravilhosa!
Uma grande felicidade? Uma felicidade maravilhosa?
Clennam rodeou-lhe a cintura com o brao, porque ela estava prestes a desmaiar,
os seus grandes e luminosos olhos fixos nele.
Querida Pequena Dorrit. O seu pai.
O seu rosto plido reanimou-se a estas palavras, mas s exprimia sofrimento. A
sua respirao era fraca e precipitada, o corao batia-lhe desordenadamente.
O seu pai ficar livre no fim da semana. Ainda no sabe, precisamos de lho
dizer. Oua, dentro de algumas horas, passar a ser um homem livre!
Ela reanimou-se um pouco e entreabriu os olhos.
E no tudo! O seu pai, ao recuperar a liberdade, ser um homem rico.
herdeiro de uma grande fortuna. Dou graas ao cu por a ter recompensado a si, a mais
valorosa e a melhor das raparigas!
Como ele a abraava, apoiou a cabea no ombro de Arthur, rodeou-lhe o pescoo
com um dos braos, dizendo: Pai! Pai! e desmaiou.
Mas depressa voltou a si, ansiosa por dar a notcia ao pai.
Venha comigo falar com o meu pai! Suplico-lhe, anuncie-lhe o senhor! - foram
as suas primeiras palavras, quando recuperou os sentidos.
Meteram-se num trem e dirigiram-se para a Penitenciria. Foi, para a jovem, um
percurso estranhamente irreal, atravs das velhas e miserveis ruas, julgava estar a ser
transportada para um mundo flutuante de riqueza e de sumptuosidade. Quando Arthur lhe
disse que em breve andaria no seu prprio trem, que veria paisagens muito diferentes e
dissipadas as suas provaes dirias, pareceu assustada. Mas quando ele lhe falou do pai,
que tambm passearia de trem, que conheceria a riqueza, desfez-se em lgrimas de
alegria e de ingnuo orgulho.
Quando o senhor Chivery, que estava de planto, lhes abriu a porta, ficou aturdido
com a expresso dos seus rostos. Dois ou trs pensionistas com quem se cruzaram

tambm os observaram e, em poucos instantes, espalhou-se pela priso inteira a notcia


de que o Pai da Penitenciria ia ser libertado.
O senhor Dorrit, no seu velho roupo e com o velho gorro na cabea, encontrava-se
sentado junto da janela, apanhando sol, e lia o jornal. Virou-se, as lunetas na mo,
surpreendido por ouvir passos nas escadas quela hora. A chegada da filha e de Clennam,
a expresso de ambos, tudo era to esquisito, que os olhou sem se levantar, sem dizer
palavra, de boca aberta e lbios trmulos.
Pai, se soubesse a feliz nova que me deram esta manh!
Que foi que esta manh te anunciaram de to feliz, minha querida?
Soube-o pelo senhor Clennam, pai. Uma boa nova que lhe diz respeito. Se ele no
tivesse sido to cuidadoso ao anunci-la, julgo que no a teria suportado. a emoo.
Estava transtornada, as lgrimas banhavam-lhe o rosto. O velho levou de sbito a
mo ao corao e olhou para Clennam.
Acalme-se, senhor Dorrit - disse este -, e pense no que lhe poderia acontecer de
bom.
De bom. Que. - perguntou ele, a mo esquerda pousada no corao e tentando,
com a direita, pousar as lunetas na mesa -, que coisa boa para mim aqui.
Qual a maior felicidade que lhe poderia acontecer? Fale, no tenha receio.
Olhava fixamente para Clennam e, ao fit-lo daquela maneira, parecia transformarse num homem muito velho e derrotado. O sol iluminava o muro, defronte da janela, e as
suas pontas de ferro. O velho retirou a mo do peito e apontou para o muro.
Ele ruiu - disse Clennam -, desapareceu! O velho ficou imvel, olhando sempre
para Clennam.
Agora - prosseguiu Arthur -, vai tomar posse dos recursos que lhe permitiro
usufruir daquilo de que por tanto tempo foi privado. Senhor Dorrit, dentro de alguns dias
ficar em liberdade e muito rico. As minhas mais calorosas felicitaes.
Pegou-lhe na mo e apertou-a. A filha envolveu-o nos braos e encostou o rosto ao
dele.
V-lo-ei como nunca o vi, sem essa nuvem sombria a pairar-lhe sobre a cabea.
meu querido pai! Deus seja louvado!
Ele conservara-se sempre imvel, sem pronunciar uma nica palavra. Limitava-se a
fix-los sucessivamente. E, de sbito, ps-se a tremer, como se sentisse frio. Arthur saiu
precipitadamente para ir buscar uma garrafa de vinho. Quando voltou, viu a jovem que
obrigava o velho pai a sentar-se num cadeiro e lhe desabotoava a camisa e a gravata.
Encheram-lhe um grande copo de vinho e levaram-no aos seus lbios. Depois de o ter

engolido encostou-se e ps-se a chorar, escondendo o rosto no leno.


Para tentar acalmar as emoes, Clennam relatou detalhadamente as pesquisas de
Pancks.
Ele ser, hum, largamente recompensado - disse Dorrit, levantando-se e andando
de um lado para o outro, dominado por uma grande agitao. - E reembols-lo-ei das
despesas que fez, cavalheiro. E, hum, todas as que foram feitas por nossa causa. Ningum
ser esquecido:
Deteve-se, para abraar a filha.
Precisas de encontrar uma modista, minha querida, e de te desfazeres o mais
depressa possvel desse vestido demasiado simples. pouco apresentvel. E a tua irm,
Amy, o teu irmo e o teu tio, precisamos de os encontrar!
Continuava a dar voltas pelo quarto, quando entusisticas aclamaes ressoaram
pelo ptio.
A notcia j se espalhou! - disse Clennam, espreitando pela janela. - Aparea a
essa boa gente, senhor Dorrit!
Sim, hum. Mas, Amy, minha querida, teria preferido - disse, retomando o seu
vaivm febril - encontrar-me um pouco mais apresentvel. Abotoa-me o colarinho da
camisa, minha querida. Senhor Clennam, quer ter a bondade de, hum, de me dar a gravata
azul, est na gaveta. Minha filha, abotoas-me o casaco? Assim parece mais largo.
Passou a mo trmula pelos cabelos grisalhos e, amparado pelos dois, assomou
janela. Respondeu com saudaes aos vivas das pessoas.
Pobre gente! - disse para consigo com compaixo.
A Pequena Dorrit desejava fervorosamente que o pai se acalmasse um pouco e
repousasse e pediu a Arthur que, antes de se ir embora, esperasse at ele se deitar.
Finalmente, o velho, cansado, estirou-se na cama e a filha sentou-se fielmente
cabeceira, abanando-lhe e refrescando-lhe a testa. Em breve, ele adormecia.
A Pequena Dorrit aproximou-se ento de Arthur e perguntou-lhe meigamente:
Senhor Clennam, antes de se ir embora ele ter de pagar todas as dvidas?
Evidentemente, minha filha, todas.
Todas as dvidas que foram a causa do seu encerramento aqui, da minha vida
passada aqui e outras coisas?
Evidentemente.
Isso parece-me terrvel, ter desperdiado tantos anos, ter sofrido tanto e,
mesmo assim, ser obrigado, no final, a pagar as suas dvidas.
Cansada de tantas emoes, comeou gradualmente a afrouxar o abanar do leque
e, por fim, pousou a cabea no travesseiro, perto do pai. Clennam levantou-se

cautelosamente, abriu e fechou a porta do quarto silencioso e, sem fazer rudo, deixou a
priso, atravessando as ruas buliosas e levando consigo aquela paz.
Chegou o dia em que o senhor Dorrit e a famlia deveriam abandonar para sempre
a priso. O lapso de tempo fora curto, mas o senhor Dorrit queixara-se bastante de nunca
mais chegar ao fim e mostrara-se imperioso com o advogado, e, tendo este respondido
com humildade que fazia tudo o que estava ao seu alcance, Fanny interviera secamente,
lembrando-lhe que o dinheiro no contava e que no devia esquecer com quem falava.
O tio Frederick mostrara to pouco interesse pela fortuna recm-adquirida, que se
interrogaram se realmente havia compreendido o que se passava. O irmo obrigou-o a
vestir-se de novo dos ps cabea e ordenou-lhe que queimasse as roupas velhas. Quanto
a Tip e a Fanny, no precisavam de lies para se transformarem em jovens elegantes,
vestidos moda; cada um alugou um cabriol e instalaram-se no melhor hotel das
redondezas, que, alis, consideraram absolutamente insignificante. O senhor Dorrit
reembolsou todas as despesas feitas e deu aos prisioneiros grandes provas da sua
liberalidade, distribuindo ofertas pelos necessitados. Deu um grande banquete em honra de
todos os pensionistas, tendo-se bebido sade de uns e de outros no meio de uma
enorme emoo.
Chegou finalmente o dia da partida. O senhor Dorrit avanava com uma dignidade
solene e graciosa, apoiado no brao do irmo Frederick. Murmurou-lhe ao ouvido:
Meu caro Frederick, se conseguisses assumir um pouco de, distino - desculpame, meu caro Frederick -, mas na tua posio.
No - respondeu o outro, abanando a cabea -, tu, consegue-lo, mas eu, eu
esqueci completamente!
Justamente, meu caro, precisas de te lembrar, tens que pensar na tua posio.
Hem - exclamou Frederick.
Na tua posio, meu caro Frederick.
Na minha...
Olhou para o irmo, depois para ele prprio e deu um profundo suspiro:
Ah, verdade! Evidentemente, sim, sim.
Queres saber uma coisa, meu caro Frederick? - rematou o senhor Dorrit. Pergunto a mim mesmo o que ir ser desta boa gente sem mim.
Atrs dos dois irmos vinha Tip Dorrit, de brao dado com a irm Fanny. Os
presos e os carcereiros uniam-se no ptio, a rode-los, assim como o senhor Pancks,
Casby, o Patriarca, em pessoa, a filha Flora e John Chivery, muito comovido.
No meio dos espectadores, a pequena procisso, encabeada pelos dois irmos,

dirigiu-se lentamente para o porto de ferro. O senhor Dorrit, de ar nobre e melanclico,


dava pancadinhas na cabea das crianas, chamava pelos respectivos nomes os que
ficavam para trs, a todos testemunhava a sua imensa benevolncia e parecia envolvido
pela frase em letras de ouro "Consola-te, meu povo! Suporta o teu fardo!"
Trs vigorosos hurras anunciaram finalmente que haviam franqueado o porto de
ferro e que a Penitenciria ficara rf. Mal os ecos tinham deixado de ressoar pelos muros
e j a famlia se encontrava na carruagem e o lacaio retirava o estribo.
Foi s nesse momento - apenas nesse momento - que Fanny exclamou:
Santo Deus! Onde est a Amy?
O pai julgava que ela se encontrava com a irm. A irm pensava que ela se
encontrava algures. Todos esperavam encontr-la, como sempre, no lugar adequado e na
altura adequada. Aquela partida era, possivelmente, o primeiro ato das suas vidas em
comum que haviam realizado sem a ajuda dela.
Oh - exclamou de repente Fanny, chocada. -Que vergonha! L est aquela
pequena Amy, no seu vestido velho e horrvel que ela se obstinou em conservar, a despeito
dos meus rogos! E, para nos envergonhar, dirige-se para aqui vestida daquela maneira, e,
ainda por cima, com o senhor Clennam!
E Clennam assomou portinhola, trazendo nos braos o corpinho inerte.
Esqueceram-se dela - disse com uma inflexo de piedade e de censura. - Corri
ao quarto dela, a porta estava aberta e ela desmaiada no cho. Deve ter sido incapaz de
suportar mudar de vestido e desmaiou, com tantas emoes.
Obrigada, senhor Clennam - respondeu Fany, desfazendo-se em lgrimas. -Acho
que fui to m com ela, por no me lembrar de a esperar!

Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMLIA DORRIT


O Outono chegara e uma lmpida manh brilhava pelos picos elevados dos Alpes: a
neve que cara recentemente ofuscava, o ar era to puro e to leve que, ao respir-lo,
iramos julgar que uma vida nova tivera incio.
Nos cumes desertos do desfiladeiro do Grande So Bernardo, no convento que,
noite, serve de abrigo seguro aos viajantes, eram horas de retomar o caminho. Os monges
limpavam a neve que se acumulara em frente da porta e ao longo do atalho puxavam-se
as mulas para fora das estrebarias atavam-se os guizos, carregavam-nas com as
bagagens; as vozes dos guias e dos cavaleiros ecoavam como se fossem msica, pelo ar
lmpido. Alguns tinham-se j posto a caminho e, no vasto e branco planalto, minsculos
vultos de homens e de mulas avanavam, ao tilintar cristalino dos guizos e ao soar de
vozes harmoniosas.
Uma nobre caravana, que fizera a excurso na vspera, ps-se a caminho,
dirigindo-se de novo para o vale, onde haviam deixado as bagagens. Envergando peles e
caras fazendas, aquela famlia, que se compunha de dois cavalheiros idosos, de duas
jovens encantadoras e de um garboso cavaleiro, era acolhida em todo o lado com a maior
das deferncias. Em cada etapa, um mensageiro partia frente, a fim de se certificar se
os aposentos de luxo se encontravam preparados na estalagem que os aguardava. Era o
arauto do cortejo familiar. Atrs dele, vinham a grande e a pequena carruagem, ocupadas
pela famlia Dorrit. No fim, seguia o grande carroo com a restante criadagem, as
bagagens mais pesadas e toda a lama e poeira que as outras viaturas no tinham
acumulado.
Todo este squito se comprimia no ptio do hotel de Martigny, no regresso da
excurso que a famlia fizera montanha. Mas uma surpresa imprevista aguardava o
senhor Dorrit no hotel: dois viajantes desconhecidos jantavam num dos aposentos que lhes
estavam reservados!
O estalajadeiro, de chapu na mo, especado no meio do ptio, jurava, por tudo
quanto lhe era sagrado, ao mensageiro, que se sentia penalizado, aflito, desnorteado, mas
que a nobre dama insistiria tanto com ele para lhe facultar o aposento por uma curta meia
hora, que ele no fora capaz de resistir. A curta meia hora passara, a dama e o
companheiro tinham acabado a sobremesa e a sua chvena de caf, a conta estava paga,
a carruagem atrelada, iam partir. Mas por um horrvel acaso, que decerto se devia
maldio divina, ainda se encontravam l.
Nada teria podido aumentar ainda mais a indignao do senhor Dorrit do que ouvir
estas desculpas. Pareceu-lhe que uma mo assassina acabara de atingir a dignidade da

famlia. Porque o sentimento desta dignidade era nele to agudo, que estava sempre a vla ameaada.
Ser possvel, senhor - perguntou, rubro de clera -, que tenha tido, hum, o
arrojo de pr um dos meus aposentos disposio de outra pessoa?
Mil perdes! O estalajadeiro suplicava ao cavalheiro para no se zangar! Se o
cavalheiro quisesse ter a suprema bondade de aguardar cinco minutos no outro salo que
lhe fora reservado.
No, homenzinho! Nem sequer porei o p em sua casa! Como se atreveu a agir
comigo desta maneira? Por quem me toma, pois, para no me tratar, hum, para no me
tratar como faz com os outros cavalheiros?
Miss Fanny interrompeu o pai com grande aspereza, declarando ser evidente que a
impertinncia daquele homem se devia a uma razo particular, que ele teria que
confessar!
Entretanto, o estalajadeiro deslizara at ao salo em causa para lhe explicar a
delicadeza da sua situao e depressa voltou a descer as escadas, precedendo a dama e o
seu companheiro. Este dirigiu-se ao senhor Dorrit:
Desculpe-me, no tenho o dom da palavra, mas aquela dama - alis, a minha
me manda-me dizer-lhe que espera sinceramente no ter dado azo a mal-entendidos!
O senhor Dorrit, ainda ofegante, em virtude da afronta de que fora vtima, saudou o
cavalheiro e a dama com ar frio, categrico e sem apelo.
No, mas realmente, diga-me meu velho - prosseguiu o cavalheiro, aproximandose de Tip.
Tentemos os dois conciliar a situao. Na verdade, a minha me no quer
algazarras! A culpa no foi deste bom homem, mas dela. Hem? Ento isto vai, meu velho,
fica combinado!
Edmond - chamou a dama -, explicaste. mas acho que melhor ser eu a
apresentar-lhe as minhas desculpas! - disse ela dirigindo-se graciosamente para o senhor
Dorrit.
De repente, a dama, aproximando o lornho dos olhos, ficou petrificada e sem
conseguir pronunciar palavra, ao ver as duas meninas Dorrit. Miss Fanny, no primeiro plano
do quadro grandioso composto pela famlia, pela equipagem da famlia e pelos servidores
da famlia, pegara no brao da irm, como a querer mant-la ao seu lado e assumir um ar
distinto, olhando a dama de alto a baixo.
Esta - que era a senhora Merdle - recomps-se rapidamente, concluiu as suas
desculpas cheias de considerao ao senhor Dorrit, que a elas respondeu de modo

igualmente gracioso, e subiu para a carruagem, depois de ter dirigido s duas jovens um
fascinante sorriso de despedida, como faria a duas meninas de alta linhagem que nunca
tivera o prazer de encontrar, mas que considerava absolutamente encantadoras.
Quanto ao jovem Edmond Sparkler, que ficara petrificado ao mesmo tempo que a
me, foi quase impossvel arranc-lo da imobilidade com que fixava Fanny e o seu quadro
familiar. Quando conseguiram dobr-lo o suficiente para o fazerem passar pela portinhola,
os seus olhos colaram-se lucarna traseira da carruagem e a se fixaram at o trem ter
desaparecido.
Este encontro foi, para Miss Fanny, to agradvel, que o seu humor se suavizou
consideravelmente, o que a todos surpreendeu.
A Pequena Dorrit tinha, neste grupo, um papel de silncio e meditao absoluta.
Sentada, na carruagem, em frente do pai, recordava-se do velho quarto da Penitenciria e a
sua vida atual parecia-lhe um sonho. Tudo o que via era novo e maravilhoso, mas irreal.
Tinha a impresso de que aquelas paisagens montanhosas e aquelas regies pitorescas se
dissipariam a qualquer momento e que a carruagem, numa curva brusca da estrada, se
deteria, com um solavanco, diante do velho porto gradeado da priso.
Para si, o mais estranho era sentir uma distncia to grande entre ela e o pai. De
incio, tentara manter, ao seu lado, o mesmo lugar, ocupando-se dele. Mas este dera-lhe a
entender que os criados estavam ali para desempenhar essa tarefa, que uma jovem da
alta-roda se no devia rebaixar executando essas ocupaes subalternas, que devia
manter-se no seu lugar! Obedecera, sem murmurar, e achava-se, pois, sentada no canto
de uma carruagem luxuosa, as mozinhas pacientes cruzadas no regao, contemplando,
atravs da janela, cumes to irreais como a sua prpria vida interior.
Depois de terem passado pelos Alpes, dirigiram-se para a Itlia. Para a Pequena
Dorrit cada dia era um sonho que tinha incio em qualquer aposento decorado com frescos.
Atravs da janela, enquadrada pelas folhas amareladas de uma vinha, contemplava
algumas laranjeiras plantadas em vasos, nas lajes fendidas do terrao, e, mais abaixo, o
ptio, rodeado de colunas, com as carruagens e os criados. E depois, ao longo do dia,
estradas ladeadas de vinhas e oliveiras, aldeias brancas, to lindas mas to pobres, lagos
azuis e palcios em runas. Por vezes, pernoitavam, durante semanas inteiras, em
esplndidos aposentos, davam todos os dias banquetes, visitavam maravilhas, percorriam
palcios imensos, descansavam nos cantos sombrios de velhas igrejas, onde, entre as
lamparinas de ouro, o incenso fumegava. Depois deixavam as cidades e retomavam a
estrada ladeada de vinhas e de oliveiras.
A caravana familiar acabou, assim, por chegar a Veneza, onde permaneceu por
algum tempo, porque estava previsto passarem seis meses num faustoso palcio do

Grande Canal.
Nessa cidade de sonho, de ruas pavimentadas de gua, onde o lgubre silncio dos
dias e das noites apenas quebrado pelo badalar surdo dos campanrios das igrejas, pelo
marulhar da gua e pelos chamamentos dos gondoleiros, a Pequena Dorrit tinha todo o
tempo para sonhar. A famlia corria para os divertimentos e para os saraus, mas ela,
demasiado tmida para assistir s festas, pedia simplesmente que a deixassem tranqila.
Por vezes, quando conseguia escapar aos servios da sua tirnica criada de quarto, metiase numa das gndolas sempre amarrada porta do palcio, e pedia para ser conduzida
atravs daquela cidade estranha. Mas o seu refgio preferido era a varanda do seu quarto
que, situado no ltimo andar, pairava por sobre o canal. Permanecia ali tardinha,
contemplando o pr do Sol, as longas faixas violetas que abrasavam o horizonte, a luz que
banhava os edifcios tornando-os como que transparentes e iluminados a partir do interior.
Via extinguirem-se aquelas maravilhas e, enquanto as gndolas negras transportavam os
convidados para a msica e para os bailes, debruava-se varanda e contemplava a gua,
como se todo o seu passado a repousasse, fundado algures.
Arthur Clennam, que h muito no via a me, dirigiu-se, uma tardinha, em passos
lentos, para a triste casa da sua juventude. Acabava de entrar na rua estreita e ngreme
para a qual dava o alpendre, quando algum o alcanou, to rente que quase foi atirado
contra a parede. Como ia mergulhado nos seus pensamentos, o encontro apanhou-o
desprevenido e o outro teve tempo de dizer, com rudeza: Perdo, foi sem querer! e de
ultrapass-lo, antes que pudesse compreender o que lhe acontecera.
A rua descia quase a pique antes de virar bruscamente, e o homem, que, sem
estar embriagado, parecia agitado por qualquer bebida forte, percorreu-a rapidamente;
Clennam perdeu-o quase imediatamente de vista. No tinha a inteno de o seguir, mas
sentia apenas vontade de o observar um pouco mais de perto e estugou o passo para virar
a esquina. Quando a atingiu, contemplou a rua inteira. nem vivalma. E, contudo, no havia
nenhuma sombra nem nenhuma esquina que o pudessem ocultar ao seu olhar e no ouvira
qualquer porta fechar-se. Cismando naquela estranha personagem, entrou no ptio. o
homem encontrava-se ali, apoiado contra o gradeado da pequena cerca, e olhava para as
janelas da senhora Clennam, rindo em silncio. Um instante depois, avanava, lanando a
capa por cima do ombro, e batia ruidosamente porta.
Clennam avanou rapidamente e subiu, por seu turno, os degraus. O homem
observou-o com ar fanfarro, aps o que bateu de novo.
O cavalheiro muito impaciente! - observou Arthur.
Assim . Com os demnios! do meu temperamento ser impaciente!

Affery, de candeia na mo, entreabriu a porta e perguntou quem acabava de bater


com tanta violncia quela hora:
Como, Arthur - exclamou, muito espantada, avistando-o primeiro. -, foi o
senhor? Ah, meu Deus, no! - prosseguiu, ao ver o outro. - ele de novo!
Evidentemente, outra vez ele, senhora Flintwitch! Abra a porta e deixe-me
abraar o meu caro Jeremy Diga-lhe que o velho Blandois regressou! O seu pequerrucho, o
seu bem-amado! Abra a porta, minha linda, e deixe-me apresentar os meus respeitos
sua patroa. A senhora ainda viva? Ora bem, tanto melhor!
E, para estupefao de Arthur, Affery abriu a porta. O desconhecido, sem mais
cerimnias, entrou no hall, fazendo soar os taces.
Diga-me, Affery, suplico-lhe - perguntou Arthur em tom severo -, quem este
senhor?
Diga-me, Affery, suplico-lhe - repetiu Blandois -, quem este, ah ah ah. senhor?
Muito oportunamente, ouviu-se a voz da senhora Clennam, que pedia aos dois
homens que subissem. Deparou-se-lhes a idosa mulher sentada, aprumada e impassvel, na
sua poltrona.
Pois ento apresente-me o senhor seu filho, minha senhora - comeou Blandois , julgo que tem queixas contra a minha pessoa!
Cavalheiro - interrompeu Arthur -, seja o senhor quem for e seja qual for a
razo da sua visita, se eu fosse o dono da casa, t-lo-ia j posto na rua!
Mas no o dono da casa, Arthur - interveio a me. - Se eu tiver qualquer
objeo a fazer, serei eu a levant-la, no se preocupe! O senhor Blandois foi-nos
recomendado pelos nossos correspondentes de Paris, que so inteiramente fidedignos,
desconheo a razo da sua visita de hoje, mas provvel que se trate de algum assunto
relacionado com a nossa empresa e ser para ns um dever e um prazer atend-lo. Eis
porque lamentvel que o seu carcter insensato tenha achado motivos para se ofender.
Flintwitch entrou nesse momento. O visitante levantou-se, rindo grosseiramente, e
abraou-o.
E como lhe corre a vida, meu lindo Flintwitch? Num mar de rosas? Tanto
melhor, tanto melhor! Tem uma aparncia maravilhosa, jovem e fresco como um rebento!
Ah, que lindo, que bom menino - e f-lo rodopiar, como um pio, aps o que o empurrou
para o outro extremo da sala e voltou a sentar-se.
O espanto, a clera e a vergonha embargaram a voz de Arthur. Flintwitch
reassumiu a sua compostura, de respirao ofegante, mas o rosto sempre impassvel. A
senhora Clennam fez, nessa altura, um breve gesto de despedida com a mo e disse:

Arthur, poderia deixar-nos a ss para tratarmos dos nossos negcios?


Obedeo-lhe, minha me, mas contrariado. Senhor Flintwitch, com bastante
surpresa e repugnncia que deixo. o seu assunto de negcios ser tratado no quarto de
minha me! Boa noite.
No momento em que se dispunha a sair, Blandois exclamou em voz estridente:
Outrora, meu lindo Flintwitch, tive um amigo que ouviu contar tantas histrias
horrorosas sobre a cidade de Londres, que nunca teria ficado sozinho, noite, com duas
pessoas que talvez tivessem interesse em desembaraar-se dele, no, palavra de honra,
nem mesmo numa casa to respeitvel como esta. No verdade, Jeremy?
Desdenhando responder-lhe e, alis, incapaz de o fazer, tal a clera que o
dominava, Clennam saiu aps um relancear ao visitante, o qual fez estalar os dedos em
sinal de despedida, enquanto o nariz e os bigodes se lhe encarquilhavam, num sorriso
diablico.
Nesse intervalo, em Veneza, outros problemas muito diferentes agitavam Miss
Fanny Dorrit. No decurso de um dos seus passeios de gndola, as duas irms verificaram
que eram seguidas por outro barco, que executava, em torno delas, uma manobra singular,
ora interceptando-lhes o caminho, ora detendo-se e deixando-as partir de novo. Amy
estava absolutamente estupefacta ao ver a irm assumir grandes ares, puxar de um
soberbo leque dourado e preto e, indolentemente apoiada na popa, abanar-se com
graciosidade. Acabou, pois, por perguntar o que se passava.
aquele palerma! - respondeu Fanny laconicamente.
Quem? - inquiriu a Pequena Dorrit.
Minha querida filha, tens compreenso lenta! o jovem Sparklet, quem havia de
ser?
E, como a gndola os ultrapassava de novo, Fanny disse, com um riso cheio de
coqueteria:
Minha querida, alguma vez viste imbecil como este?
preciso confessar que o senhor Sparkler, de olhos grudados nela, como uma
grande bolha no vidro, na verdade no tinha o que poderamos chamar garboso.
Achas que nos vai seguir at casa - perguntou Amy.
Minha querida filha, como hei de saber o que ser capaz um idiota que morre de
amores? Mas provvel que nos siga!
Ento morre de amores por ti - perguntou ela com ingenuidade. - Mas tu, minha
querida Fany, quais so as tuas intenes a seu respeito?
Escuta-me, minha patetazinha! aquela falsa e insolente senhora Merdle que me

interessa! No percebes o que ela decidiu quando nos encontrmos em Martigny? Procedeu
como se nunca nos tivesse visto. E porqu? Porque, agora, passei a ser um partido muito
conveniente para o filho! E eu quero vingar-me da sua falsidade e da sua insolncia: farei
daquele cretino do Sparkler meu escravo E verg-la-ei tambm!
Mas dar-te-s tu conta, Fanny, das conseqncias de tal comportamento?
No pensei ainda nelas, minha querida, cada coisa no seu devido tempo respondeu ela, com uma indiferena cheia de soberba. - Chegmos. E o nosso Sparkler
tambm, que grande coincidncia!
Com efeito, o apaixonado encontrava-se ali, de p na sua gndola, segurando um
carto de visita e perguntando aos lacaios se estava algum em casa. Os gondoleiros das
jovens, a quem a perseguio exasperara, provocaram ento uma suave coliso entre as
duas barcas: o galante executou uma pirueta para trs e apenas pde exibir sua amada
a sola dos sapatos, enquanto o resto do corpo se balanava nos braos dos seus criados.
A partir daquele dia, a vida de Fanny passou a ser uma longa sequncia de
angstias e perplexidades. A famlia emigrara para Roma, onde a senhora Merdle vivia,
alis, e o apaixonado seguira-a, naturalmente. E toda a gente em breve ficou a saber quem
era a terna senhora do corao do senhor Sparkler, embora muito caprichosa com ele,
Fanny, todavia, no o repelia. Ligara-se suficientemente a ele para se sentir comprometida
sempre que ele se mostrava ridculo, isto , com muita freqncia. Envergonhava-se dele,
no se decidia nem a repeli-lo nem a encoraj-lo e, torturada pelo receio de a senhora
Merdle tirar partido da sua confuso, voltava para os saraus num profundo estado de
perturbao e de agitao.
Querida Fanny, o que se passa? - perguntava Amy, ao v-la precipitar-se para o
toucador e tentar raivosamente chorar.
O que se passa, grande palerma! Se no fosses to tapadinha, no me
perguntavas! Quem me dera morrer!
o senhor Sparkler, minha querida?
O senhor Sparkler - repetiu Fanny, vincando bem as slabas com um desprezo
sem limites, como se fosse a ltima pessoa, face da Terra, em quem lhe ocorreria
pensar. - No, menina-morcego, no ele!
Arrependendo-se logo pela maneira como interpelara a irm, desfez-se em soluos
dizendo que a obrigavam a mostrar-se odiosa.
Escuta-me, meu pequeno anjo - disse finalmente -, isto no pode continuar
assim, preciso de lhe pr termo, de uma maneira ou doutra! Percebes, minha querida?
Sim. - respondeu Amy, que no compreendia muito bem.
E querers tu aconselhar=me, minha querida - prosseguiu a outra, enxugando os

olhos.
Sim oh, s a minha tbua de salvao!
Depois de ter abraado com grande ternura a sua tbua de salvao, pegou num
frasco de perfume, deitou algumas gotas num lencinho e refrescou a fronte e os olhos.
Meu tesouro, o que te vou dizer decerto te ir espantar: a despeito da nossa
fortuna, esbarramos, falando do ponto de vista social, com grandes obstculos. No me
compreendes muito bem, no verdade? Quero eu dizer que, ao fim e ao cabo, a alta
sociedade considera-nos novos-ricos -deu uma pancadinha na testa da irm e murmurou -.
E a questo que ponho a mim prpria a seguinte deverei eu decidir-me a assumir a
tarefa de superar esses obstculos em nome da nossa famlia?
Mas de que maneira? - perguntou a Pequena Dorrit com inquietao.
Nunca suportarei que a senhora Merdle me atormente ou me trate com
condescendncia! Prosseguiu Fanny, cada vez mais exaltada e ficando com a testa
avermelhada, fora de lhe dar pancadinhas. - No podemos negar que o Sparkler tenha
uma boa situao ou que pertena a uma excelente famlia. Que ele seja inteligente ou
no. de qualquer dos modos, seria incapaz de suportar um marido inteligente! No poderia
sujeitar-me a uma tal autoridade.
Oh, minha querida Fanny! - exclamou Amy, experimentando um certo terror
perante o que estava a pressentir. - Se amasses algum, no pensarias dessa maneira! Se
o amasses!
Fanny deixou de torturar a testa e olhou para ela:
Oh, na verdade! Santo Deus, h certas pessoas que mostram uns ares de
conhecerem a fundo determinados assuntos.
Mas, Fanny, mereces um marido muito superior ao senhor Sparkler!
Ora, Amy, s sei que queria ter uma posio mais definida e mais firme para
me impor quela mulher insolente!
E para isso, Fanny, casarias com o filho? e sujeitar-te-ias a ser infeliz para toda
a vida?
No seria uma vida desgraada, seria a vida que mais me convm, Sim, que me
convm plenamente.
Havia na sua voz uma entoao ligeiramente amarga, ao pronunciar aquelas
palavras. Levantou-se e contemplou-se no grande espelho, com um risinho orgulhoso,
batendo as mos por cima da cabea:
A sua distino Vai conhecer a minha. Serei a rival dela e isso significar o
objetivo da minha vida! E a danarina que ela desprezou por completo e que em nada se

pareceu comigo. Oh, no danar diante dos seus olhos enquanto viver!
Algumas semanas depois, ficou decidido o casamento. A Pequena Dorrit, ao
inteirar-se da notcia, pousou a cabea no ombro da irm e ps-se a chorar. Fanny, a
princpio, riu-se, mas em breve apoiava o rosto contra o de Amy e punha-se tambm a
chorar - um pouco. Foi a ltima vez que deixou transparecer os poucos sentimentos que
fora obrigada a reprimir em virtude daquele casamento. A partir daquela altura, enveredou,
com o seu andar imperioso obstinado, pelo caminho que escolhera.
O casamento foi magnfico: nunca o cnsul britnico em Roma celebrara algum
que se lhe igualasse. Depois, os recm- casados partiram para Florena, onde o senhor
Dorrit se lhes devia juntar, a fim de os acompanhar at Londres. Fanny subiu para a sua
deslumbrante carruagem. E, depois de ter rolado alguns minutos pela superfcie lisa de um
pavimento uniforme, comeou a sofrer solavancos ao longo de um Lodaal de Desencanto
e atravs de uma longa, longa avenida de runas e de destroos. Dizem que muitas outras
carruagens de npcias seguiram o mesmo trilho e que ainda o percorrem.

Capitulo IX - UMA SEQUNCIA DE DESGRAAS


Os recm-casados, sua chegada a Harley Street, Cavendish Square, em Londres,
foram conduzidos, pelo mordomo em pessoa, at aos luxuosos aposentos do primeiro
andar, onde o senhor Merdle os aguardava para dar as boas-vindas noiva e receb-la na
sua nova residncia.
A senhora Sparkler, uma vez instalada nos seus aposentos - um santurio de
penas, de sedas, de chitas da Prsia e outros finos tecidos -, sentiu que o seu triunfo, at
ali, era absoluto. Ocupara os prprios aposentos da senhora Merdle, que haviam sofrido
alguns retoques, para os tornar ainda mais dignos da sua nova ocupante. E enquanto se
pavoneava por eles, rodeada de todos os acessrios que o luxo proporciona, via-se prestes
a eclipsar e a destronar a sua rival. Feliz Fanny! estava-o decerto. Agora j no falava em
querer morrer!
Na manh seguinte, o senhor Merdle mandou aprontar a carruagem para ir
apresentar os seus cumprimentos ao senhor Dorrit, que se instalara num hotel de
Grosvenor Square. A carruagem cintilava, os cavalos resplandeciam, os arreios brilhavam
uma equipagem digna de um Merdle! Os transeuntes matinais olhavam-no quando rolava
pelas ruas e diziam, com voz cheia de respeito:
L vai ele a passar!
A chegada do banqueiro ps o hotel inteiro e o corao do senhor Dorrit num
desassossego; e, contudo, o importante homem mostrou-se como sempre tmido e pouco
vontade. Mal conseguia manter conversa, no sabia o que dizer nem que fazer do seu
corpo volumoso e desajeitado. Porm, encantou o senhor Dorrit, ao convid-lo a sentar- se
sua mesa e ao pr o seu banco disposio: o senhor Dorrit explicou que viera, com
efeito a Londres, para, muito em especial, velar pelos seus interesses; procurava um
banco onde depositar a sua fortuna, a fim de a fazer aumentar. O senhor Merdle ofereceuse ento para se encarregar desses depsitos e para que partilhassem dos lucros dos seus
brilhantes negcios, o que, bem entendido, o senhor Dorrit aceitou com alegria! Depois,
dirigiram-se os dois City, o que para o senhor Dorrit foi um encanto, percorrer Londres
na carruagem do ilustre banqueiro, diante de quem todas as cabeas se descobriam.
noite, jantou na Harley Street, no meio de uma brilhante sociedade, que cumulou
o casamento da filha dos mais venerveis cumprimentos. No dia imediato, no outro e em
todos os dias que se seguiram, teve ensejo de assistir a novos jantares e os cartes de
visita no deixaram de chover sobre o senhor Dorrit. De forma que o seu orgulho
aumentava de hora para hora; a promoo social que frua graas quele casamento subialhe cabea.

A nica nuvem negra daquela estada foi o conflito que travou no ntimo, uma noite,
quando regressava de carruagem: passaria ou no diante da Penitenciria, para rever o
velho e familiar porto de ferro? Resolveu no passar por l e surpreendeu o cocheiro com
a violncia com que se ps a seguir pela Ponte de Waterloo, trajeto que o teria conduzido
ao seu antigo domiclio. Mas a questo gerara dentro dele um conflito que o deixou
vagamente descontente a noite inteira. Mesmo mesa do senhor Merdle se sentiu pouco
vontade e envergonhava-se das idias que lhe ocupavam o esprito, idias to deslocadas
no meio de uma reunio to distinta!
O banquete de despedida correu no meio de grande fausto e rematou da maneira
mais brilhante a sua estada. Fanny aliava sua juventude e sua beleza uma tal
segurana no seu papel de anfitri, que parecia estar casada h vinte anos. O pai sentiu
que a podia deixar, sem inquietaes, trilhar os caminhos da distino e desejou ter outra
filha como aquela.
Minha querida - disse-lhe, despedida -, a nossa famlia conta contigo para,
hum, manter a sua dignidade. sei que nunca a desiludirs.
No, pap - respondeu Fanny -, pode contar comigo. Transmita minha querida
irm todo o meu carinho e diga-lhe que lhe escreverei em breve.
O senhor Merdle aproximou-se furtivamente do senhor Dorrit e insistiu em
acompanh-lo at ao fundo das escadas. Todos os protestos do senhor Dorrit resultaram
em vo, teve a honra de ser acompanhado at porta por aquele homem eminente que,
como lhe repetiu o senhor Dorrit ao apertar-lhe a mo, o cumulara verdadeiramente de
atenes durante a sua memorvel visita. Desta forma se despediram e o senhor Dorrit
subiu para a carruagem, a transbordar de orgulho com a grandiosidade daquela partida.
Tambm a sua chegada ao hotel se rodeou de solenidade. Cerca de meia dzia de
lacaios ajudaram-no a descer da carruagem e atravessou o hall com uma tranqila
magnificncia quando - horror - uma viso o petrificou. o minsculo John Chivery,
vestido com a sua mais bela fatiota, o imenso chapu debaixo do brao e a bengala de
marfim na mo, aguardava-o, com uma caixa de charutos!
Este jovem insistiu em esperar pelo senhor - disse o porteiro. - Assevera que o
cavalheiro ficaria muito contente por o ver.
O senhor Dorrit lanou ao rapaz um olhar furibundo, mas disse, fazendo apelo a
toda a calma que lhe restava:
Ah! o pequeno John, Se no me engano, o pequeno John, no verdade?
Sim, senhor Dorrit, sou eu respondeu John.
Este jovem pode subir - disse aos criados -, receb-lo-ei l em cima.

O pequeno John seguiu-o, sorridente e cheio de gratido. Entraram no aposento do


senhor Dorrit e os criados retiraram-se.
E agora, cavalheiro - exclamou o senhor Dorrit, virando-se para ele e pegando-o
pelo colarinho -, quer fazer o favor de me dizer o que significa isto?
A estupefao e o terror que se estamparam no rosto do desgraado rapaz - que
contava, antes, ser abraado - foram to evidentes que o senhor Dorrit o largou e limitouse a fix-lo, com um olhar furioso.
Como se atreve - interrogou, - Como se permitiu vir aqui? Como ousa insultarme?
Insult-lo, senhor Dorrit - exclamou John. - Oh!
Sim, cavalheiro - replicou o senhor Dorrit -, insultar-me. Vir aqui uma afronta,
uma impertinncia, uma audcia! A sua presena, aqui, no desejada! Quem o mandou?
Que, hum, que diabo veio fazer aqui?
Pensei, senhor Dorrit - respondeu John, de rosto plido e alterado -, que o senhor
no recusaria ter a bondade de aceitar uma pequena oferta.
Para o diabo com as suas ofertas! - exclamou o senhor Dorrit, desvairado pela
fria. Eu, hum, eu no fumo.
Peo-lhe desculpa, senhor Dorrit. Antigamente fumava.
Repita isso! - gritou o senhor Dorrit, absolutamente fora de si -, repita isso e
pego no atiador!
John Chivery recuou at porta.
Pare, cavalheiro - gritou o senhor Dorrit.
Pare! Sente-se. Diabos o levem, sente-se John Chivery! deixou-se cair numa
cadeira perto da porta, enquanto o senhor Dorrit andava de um lado para o outro.
Por que razo veio c? - insistiu.
Ora, por nada, senhor Dorrit. Oh, meu Deus! S para lhe dizer que esperava que
estivesse bem de sade e para saber como se encontrava Miss Amy.
E que tem o senhor com isso?
De direito, nada, senhor Dorrit. Asseguro- lhe que no esqueo o profundo
abismo que existe entre ns. Tambm eu tenho o meu amor- prprio e no tomaria a
liberdade de vir c se soubesse que isso o contrariava desta maneira!
O senhor Dorrit sentiu-se envergonhado. Dirigiu-se janela e durante algum tempo
conservou-se de testa apoiada no vidro. Quando se virou, tinha o leno na mo, acabava de
enxugar os olhos e parecia cansado e doente.
Pequeno John, lamento imenso o meu comportamento, mas h recordaes,

hum, que no so recordaes felizes e o senhor, hum, no deveria ter vindo.


Agora compreendo-o bem, cavalheiro, mas antes no, e Deus testemunha em
como no era com ms intenes!
Sim, sim, disso tenho eu a certeza - respondeu o senhor Dorrit. - Venha de l
essa mo, John.
John apertou-lhe a mo, mas agora sem entusiasmo e, a despeito das amveis
perguntas do senhor Dorrit, mostrou, at ao fim do encontro, um rosto plido e alterado.
O Sol da manh seguinte viu a comitiva do senhor Dorrit na estrada de Douvres e o
do dia a seguir, em Calais. A partir da altura em que o senhor Dorrit teve o canal da
Mancha a interpor-se entre ele e John Chivery comeou a sentir-se em segurana e achou
o ar estrangeiro mais fcil de se respirar do que o de Inglaterra.
O senhor Dorrit chegou a Roma j o Sol se pusera h muito e ningum em casa o
esperava naquela noite. De forma que, quando a numerosa comitiva se deteve porta do
palcio, s ali se encontrava o porteiro para o receber. Miss Dorrit sara? No, estava em
casa.
Bom - disse o senhor Dorrit aos criados, que comeavam a aparecer -, ocupemse da carruagem, eu prprio vou ter com Miss Dorrit, quero-lhe fazer uma surpresa.
Subiu a grande escadaria em passos lentos e em vo a procurou em vrias
dependncias, antes de lobrigar luz numa pequena antecmara. Era um recanto guarnecido
de tapearias e que, a contrastar com os escuros aposentos que precisava de percorrer,
parecia delicado e colorido. O senhor Dorrit deteve-se por trs da tapearia que servia de
porta olhando sem ser visto e sentiu um aperto no corao, cimes. Por que seria, ento
ali, s se encontravam a filha e o irmo dele? Este, na cadeira junto lareira, aquecia-se
ao fogo de lenha; ela, instalada junto duma mesinha, bordava. A cena, se a desenquadrasse
do seu mbito, assemelhar-se-ia s de outrora: ele, o pai, assim passara muitos seres,
diante de um fogo de lenha, com a filha sentada ao seu lado. Contudo, da miservel vida
de antigamente nada tinha a desejar. Ento, por que aquele aperto no corao?
Sabe, meu tio, acho que est a rejuvenescer. Sim, falando com toda a
sinceridade.
O tio Frederick abanou a cabea e disse:
Desde quando, minha querida, desde quando?
Desde h algumas semanas - respondeu a Pequena Dorrit, manejando a agulha que se mostra to alegre, to atual, to interessado!
graas a ti, minha querida! No sabes. o bem que me fazes. Tens sido to
amvel e to meiga para mim que eu. Sim, sim, nunca o esquecerei, nunca!
Por um instante, ela pousou o trabalho, para o fitar, e aquele olhar impressionou

ainda mais o pai, aquele homem to fraco, to cheio de contradies, de hesitaes, de


inconsequncias.
Contigo senti-me vontade, percebes tu? Minha pomba - dizia o velho. - sei que
impacientava a Fanny. E no me espanto nem me queixo disso, estou perfeitamente ciente
de que deixo todos embaraados; de forma que tentei isolar-me o mais possvel. O meu
irmo William - prosseguiu, com admirao - digno de se dar com os monarcas, mas o
teu tio, no, minha querida. Mas eis o teu pai, Amy! Meu caro William, bem-vindo sejas!
Enquanto falava, virara a cabea e avistara o irmo, porta. A Pequena Dorrit
levantou-se, com uma exclamao de alegria, e correu a abraar o pai, que tinha um ar
um pouco impaciente e mal-humorado.
Sinto-me feliz por finalmente encontrar-vos - disse -, enfim, por encontrar, hum,
algum para me receber! Obrigado, Amy - continuou, e como ela o ajudasse a tirar o
manto; posso faz-lo sozinho, escusas, hum, de te incomodar. possvel arranjarem-me
um pedao de po e um copo de vinho, caso vos no incomode demasiado?
Meu querido pai, dentro de instantes a ceia estar pronta.
Durante este breve dilogo, a filha observara-o com mais ateno do que o
habitual, como se o achasse mudado ou fatigado. O pai deu-se conta disso e esse facto
irritou-o, porque me olhas desse modo? Pensars tu - disse em tom acusador - que no
estou com boa cara?
Querido pai, estava a pensar que parece um pouco cansado.
Pois ento, enganas-te. Ah, No me sinto fatigado. Ah, hum, sinto-me bem
melhor do que quando parti!
Sentou-se diante da lareira e enquanto se conservava assim, com a filha apertada
contra ele, caiu numa pesada sonolncia, que nem sequer durou um minuto e da qual
despertou em sobressalto.
Frederick - disse virando-se para o irmo -, aconselho-te a ires-te deitar
imediatamente.
Mas, William, quero ficar aqui contigo, enquanto ceias.
Frederick - retorquiu ele -, peo-te que te vs deitar. Ests bastante fraco e,
hum, h muito que deverias estar na cama!
Ah, est bem - respondeu o velho, cujo nico desejo era agradar- lhe. -Est bem,
est bem, vou j.
Meu caro Frederick - disse ele num surpreendente tom de superioridade -, custame ver-te to depauperado. Ah Isso preocupa-me. O teu aspecto no nada bom.
Deverias ter cuidado. Boa noite, meu caro irmo.

Depois de ter mandado embora o irmo de uma maneira to graciosa, foi


acometido por uma sbita modorra e teria batido com a cabea nas achas se a filha o no
segurasse.
O teu tio divaga muito, Amy - disse, voltando a si. Nunca, hum, se mostrou
to incoerente, hum, e to atabalhoado a falar. Durante a minha ausncia esteve doente?
No, pai.
No reparaste como ele mudou, Amy? Mostra-se completamente abatido,
completamente! Meu pobre irmo, to afeioado e to envelhecido! Na verdade, hum,
cruelmente abatido!
A ceia, servida na mesinha, fez com que deixasse de pensar no assunto. Pela
primeira vez de h muito tempo, ela sentou- se ao seu lado, a ss com ele, serviu-lhe a
carne, encheu-lhe o copo, como tinha o costume de fazer na priso. Receava olhar para ele
e ofend-lo de novo mas entretanto percebeu que, por duas ou trs vezes, durante a
refeio, a observava furtivamente e olhava sua volta, como se precisasse de se
certificar de que no se encontrava no velho quarto da enxovia. Nessas alturas, levava a
mo cabea, como que procura do seu velho gorro preto.
A ceia foi muito frugal, mas o velho conservou-se longo tempo mesa, falando
sem cessar da pseudo-arruinada sade do irmo. Parecia querer assim expulsar do esprito
certas recordaes, descrevendo, com insistncia, as riquezas e a alta sociedade que o
haviam extasiado durante a sua permanncia em Londres e lembrando a elevada posio
que a sua famlia devia manter. Desejava mostrar filha como soubera passar sem ela e,
ao mesmo tempo, queixar-se dela de uma forma um tanto caprichosa, como se fosse
possvel ela ignor-la, estando ele ausente.
Quando ela lhe props acompanh-lo at ao quarto, virou-se, encolerizado, dizendo
que no precisava de ajuda.
Sou o teu pai e no o teu velho e caduco tio! - mas prosseguiu com tanta
brusquido com que replicara - No me deste um beijo, Amy. Boa noite, minha querida!
Dois dias depois, a senhora Merdle, que se preparava para partir para Inglaterra,
dava um grande jantar de despedida, para o qual, naturalmente, convidara o senhor Dorrit e
a filha, assim como gente da alta sociedade.
O senhor Dorrit, durante o dia, no saiu dos seus aposentos e Amy arranjara-se j
para o jantar quando ele apareceu. Vestira-se com grande elegncia, mas parecia
engelhado e muito envelhecido. Como se enfastiava quando ela lhe perguntava como se
sentia, atreveu-se apenas a beij-lo na face antes de o acompanhar a casa da senhora
Merdle, o corao oprimido pela angstia.

A senhora Merdle recebeu-os com todas as deferncias. Estava magnfica, de


excelente humor, o jantar era requintado e os convivas dos mais selectos. A Pequena
Dorrit, oculta por um enorme par de suas negras e uma imensa gravata branca, perdeu
completamente o pai de vista, at que um criado lhe veio entregar um bilhete, escrito pelo
punho da senhora Merdle; esta pedia-lhe que o lesse imediatamente: Venha falar com o
senhor Dorrit, receio que no se esteja a sentir bem.
Levantou-se discretamente e foi ter com ele, mas, nessa altura, o pai, que a
julgava ainda sentada, debruou-se por cima da mesa e ps- se a cham-la em voz
estridente:
Amy, Amy, minha filha - gritou. Esta atitude fora to inesperada, a expresso e
a voz to estranhas, que imediatamente se fez um profundo silncio.
Amy, minha filha - repetiu ele -, no te importas de ir ver se o Bob est de
servio?
Ela encontrava-se ao seu lado, quase ao alcance da mo, mas ele obstinava-se em
julg-la sentada e chamava, debruado por cima da mesa.
Amy! Amy! Estou a sentir-me mal. Ah No sei bem o que tenho. Quero ver o
Bob. Ah! De todos os carcereiros, ele to meu amigo como teu. Vai ver se o Bob est
no cubculo e pede-lhe que venha c.
Todos os convidados, consternados, tinham-se levantado.
Querido pai, no estou ali, estou aqui, ao seu lado.
Oh! Ests aqui, Amy! Hum, bom ah, Vai chamar o Bob.
Ela tentou pux-lo com doura, mas ele resistia:
Estou a dizer-te, minha filha - repetiu ele com irritao -, que no posso subir
aquelas escadas estreitas sem o Bob. Ah! Manda chamar o Bob, o melhor dos carcereiros,
hum, manda cham-lo.
Olhou confusamente em seu redor e, tomando subitamente conscincia de todos os
rostos que o cercavam, dirigiu-se a eles:
Senhoras e senhores, a mim que compete, hum, dar-vos as boas-vindas
Penitenciria. Sendo assim, sede bem-vindos! O espao aqui. Ah. um pouco exguo, os
vossos passeios poderiam ser mais longos; mas dentro de algum tempo haver mais
espao, dentro de algum tempo. E, bem vistas as coisas, o ar, aqui, bastante bom. Os
que conhecem bem a Penitenciria tm a bondade de dizer que eu sou, hum, o seu pai. Os
desconhecidos chamam-me o Pai da Penitenciria. certo que se os anos de, ah, de
permanncia constituem um direito a esse ttulo to, hum, honroso, posso efetivamente
aceitar tal distino. Apresento-vos a minha filha, senhoras e senhores. A minha filha, que

nasceu aqui.
Esta no sentia vergonha nem dele nem do que ele dizia. Estava plida e
aterrorizada, mas a sua nica preocupao era acalm-lo e ajud-lo. Mantinha-se ao seu
lado, o rosto virado para ele e suplicava-lhe que fosse com ela.
Nascida aqui! - repetiu ele, pondo-se a chorar. - Criada aqui, senhoras e
senhores, a minha filha. Filha de um pai desgraado mas que permaneceu, hum, um
cavalheiro. Pobre, sem dvida, mas, hum, sempre orgulhoso. Sempre orgulhoso. Tornou-se
habitual que os meus admiradores pessoais - apenas os meus admiradores pessoais desejem testemunhar a sua vontade de reconhecer a minha posio quase, hum, oficial
aqui, cumulando-me, hum, de pequenas ofertas, que vulgarmente tm a forma, hum, de
testemunhos pecunirios. Ao aceitar essas humildes homenagens julgo, julgo no estar,
hum, a comprometer-me e manter, como direi, a minha, hum, dignidade pessoal. Senhoras
e senhores, que Deus os abenoe a todos!
A maior parte dos convidados abandonara a sala e a Pequena Dorrit e o pai ficaram
completamente ss. Finalmente, ela conseguiu convenc-lo a sair, obrigou-o a subir para
um trem e levou-o para casa. A larga escadaria do seu palcio romano reduzia-se, aos
seus olhos enfraquecidos, aos degraus estreitos da priso de Londres e consentiu que
apenas a filha e o irmo lhe tocassem. Ambos o levaram para o quarto e o meteram na
cama. E, a partir daquele momento, o seu pobre esprito traumatizado passou somente a
conhecer a Penitenciria. Quando ouvia passos na rua, tomava-os pelos dos prisioneiros
andando no ptio. Quando chegava a hora de habitualmente se abrirem as portas, sentia-se
to impaciente por ver, o seu amigo Bob, que precisaram de inventar que Bob - que
morrera h muito, o bom homem - apanhara uma constipao e no podia sair.
Depressa caiu num estado de abatimento to profundo, que nem conseguia levantar
a mo. Certa vez, perguntou se Tip fora solto, mas parecia ter se esquecido dos dois
filhos ausentes. Porm, aquela que tanto fizera por ele e que disso fora to pouco
recompensada esteve sempre presente no seu esprito.
De forma que, durante dez dias, a Pequena Dorrit se inclinou sobre o seu
travesseiro, a face encostada do pai. Por vezes, sentia-se to esgotada que por uns
escassos minutos se deixava adormecer. Depois acordava para contemplar, de olhos
marejados de lgrimas, aquele que se encontrava junto dela e para ver uma sombra, mais
negra do que a sombra do muro da Penitenciria, espalhar-se pelo rosto amado.
Uma tarde, os reflexos das grades da priso e o ziguezague de ferro do cimo do
muro desapareceram, o rosto emoldurado pelos cabelos grisalhos foi-se gradualmente
transformando numa rplica macilenta da Pequena Dorrit e, depois, mergulhou no descanso
eterno.

Esta morte ps o tio quase louco.


meu irmo! William, William! Tu partes antes de mim! Tu partes e eu
fico! Tu to superior, to distinto, to nobre!
Meu tio, meu querido tio, poupe-se, poupe-me, suplico-lhe
E fazendo um apelo s poucas foras que ainda restavam ao seu pobre corao,
cumulou-a de todo o seu afeto, enaltecendo-a e abenoando- a.
Velaram num quarto contguo at perto da meia- noite, calmos e tristes; depois de
ela o ter conduzido ao seu quarto, onde se estirou na cama completamente vestido,
separaram-se, esgotados. Ento, ela deitou-se na sua cama e mergulhou num sono
profundo.
Havia luar, mas a noite j ia avanada quando a Lua surgiu. E quando apareceu no
cu tranqilo, iluminou a cmara morturia. Dois vultos calmos achavam-se no quarto,
dois vultos igualmente imveis e impassveis. Um, repousava na cama. O outro, de
joelhos, sucumbira sobre o primeiro quando o fora velar. Os dois irmos encontravam-se
agora em presena de Deus Pai, pairando muito acima dos preconceitos crepusculares
deste mundo, muito acima das nvoas e das sombras.
Daniel Doyce partiu para um pas distante, um desses pases ditos brbaros, que
necessitava dos servios de um ou dois engenheiros inventivos e resolutos. Sendo esse
pas brbaro, no lhe ocorrera enterrar um grande objetivo nacional num mistrio, pelo
contrrio, para o realizar, procurava os homens a ele adequados e tratava-os com
considerao, manifestando assim uma espantosa cegueira poltica da qual a Inglaterra
soubera bem precaver-se.
Arthur, antes da partida do amigo, fez-lhe um relatrio completo da situao
econmica da empresa. Doyce examinou as contas e admirou a maneira engenhosa como
haviam sido feitas.
Esta ordem e esta regularidade, Clennam, so magnficas.
Sinto-me feliz com a sua aprovao, Doyce. Agora, no que se refere gesto
dos capitais durante a sua ausncia.
O scio interrompeu-o com um gesto:
Fica inteiramente nas suas mos!
O senhor Pancks aconselha-me, justamente, certos depsitos, a respeito dos
quais.
O senhor Pancks? - interrogou Doyce, acenando com a cabea, em ar de
assentimento.
Sim, sim, um homem atilado Mas acho que chegou a altura - acrescentou,

consultando o relgio -, a mar no espera por ningum, tenho que partir, meu caro amigo.
Tem a minha absoluta confiana. At breve!
Os dois homens trocaram um cordial aperto de mo e Doyce subiu para o trem, no
meio das aclamaes dos seus companheiros de trabalho. O senhor Cavaletto, o pequeno
italiano aleijado, tambm ali se encontrava, porque Clennam lhe arranjara um emprego na
empresa. Arthur pediu-lhe que o acompanhasse, a fim de o ajudar a pr os papis em
ordem. E quando se azafamavam no escritrio, o esprito de Clennam foi invadido por
aquilo que tanto o preocupava h algumas semanas. essa estranha e inquietante
personagem que encontrara em casa da me, naquela misteriosa noite.
Conhece Blandois? - inquiriu Arthur.
No, no - respondeu energicamente o italiano -, conheo o Rigaud!
Clennam tirou de uma gaveta um anncio, que desdobrou em cima da secretria;
era um anncio da Polcia, com o retrato de Blandois, dizendo que um cavalheiro
estrangeiro desaparecera, uma noite, no bairro da City, em Londres. Entrara na casa de
Clennam & Cia. la pelas nove horas e os moradores da casa afirmavam que sara um
pouco antes da meia-noite. Depois, desaparecera sem deixar vestgios. Rogava-se
insistentemente a qualquer pessoa que o tivesse visto que participasse imediatamente
Polcia.
Cavaletto debruou-se sobre o retrato e exclamou:
Sim, sim, ele, no h duvida! Mas, naquela altura, chamava-se Rigaud!
muito importante para mim - disse Clennam, profundamente agitado. - Digame, onde o conheceu?
Cavaletto largou o anncio e respondeu, parecendo contrariado:
Em Ciclia - em Marselha.
Que fazia ele?
Era um prisioneiro, e na verdade acho, sim - sussurrou o homenzinho -, que era,
que era um assassino.
Clennam recuou, como se tivesse recebido uma pancada. Cavaletto arremessou-se
ento aos seus ps, suplicando-lhe que o ouvisse:
Tambm estive preso, senhor Clennam! Fiz um pouco de contrabando entre a
Itlia e a Frana e colocaram-nos na mesma cela. Ele fora acusado de ter assassinado a
mulher, mas as provas contra ele no eram suficientes e depois vim a saber que fora
liberto. Aqui est o que sei, senhor Clennam! um assassino e um homem infame acrescentou levantando-se de um salto.
Escute - disse Clennam com gravidade. - Esse homem desapareceu.
Tanto melhor! Graas a Deus!

No, no, meu amigo. Preciso absolutamente de saber o que foi feito dele.
Cavaletto, voc, que o conhece, poderia encarregar-se de o encontrar? Prestar-me-ia o
maior de todos os favores e a minha dvida para consigo seria eterna!
o meu benfeitor, senhor Clennam, sou eu que estou em dvida para consigo.
com prazer que o farei! No sei onde procur-lo, nem por onde comear, mas coragem!
Parto imediatamente!
E sobretudo, Cavaletto, nem uma palavra a quem quer que seja!
Prometido - exclamou Cavaletto, afastando-se.
Trs meses se haviam passado desde que os dois irmos tinham sido enterrados
no mesmo tmulo no cemitrio dos estrangeiros, em Roma.
Em Londres, nesse lapso de tempo, continuava a ascenso brilhante do senhor
Merdle. Tratava-se, agora, de se tornar nobre e por todo o lado as pessoas se
interrogavam se seria feito baronete, par ou lorde. Em determinados crculos, falava-se da
sua sade, que parecia atorment-lo constantemente sem que ningum conseguisse
detectar qualquer doena.
Aquela noite era a primeira do Vero e a mais longa do ano. O mdico do senhor
Merdle oferecera um grande jantar. Ao ficar sozinho, depois de se ter despedido dos
convidados, instalou-se num pequeno salo para ler. Era quase meia-noite, quando a sua
ateno foi bruscamente desviada por um toque na porta. Desceu para abrir: na soleira
encontrava-se um homem em mangas de camisa, muito agitado e arquejante.
Venho dos banhos turcos da tua vizinha, senhor doutor, quer acompanhar-me
com urgncia? Encontraram este bilhete na mesa.
No papel estava escrito o endereo e o nome do mdico, mas, ao reparar na letra,
este pegou imediatamente no chapu e seguiu o homem.
Ao chegarem aos banhos, eram aguardados por todos os empregados do
estabelecimento, que andavam num vaivm pelos corredores.
Que toda a gente se mantenha distncia - disse o mdico. - Voc, meu amigo,
conduza-me depressa!
Enveredaram por um corredor de cabinas; o mensageiro deteve-se junto da ltima
porta e afastou-se, para dar passagem ao mdico.
A um canto, achava-se uma banheira, cuja gua acabava de ser esvaziada. Estirado
nessa banheira, coberto com um lenol, que sobre ele fora apressadamente atirado,
achava-se o cadver de um homem de constituio pesada, traos grosseiros e vulgares.
Fora aberta uma das bandeiras da porta, para deixar sair o vapor que enchia o quarto. Ao
fundo da banheira, o mrmore branco estava manchado de horrveis sulcos vermelhos. E,

no rebordo, encontrava-se um frasco de ludano vazio e um canivete.


Cortou a veia jugular - declarou o mdico, levantando-se. - A morte ocorreu h
pelo menos meia hora.
Virou-se para as roupas pousadas no sof. O seu olhar atento foi atrado por um
bilhete dobrado, que emergia de um chapu. Pegou nele e o observou-o.
Est dirigido a mim - disse.
Desdobrou-o, leu-o calmamente e depois saiu. Sentiu alvio quando experimentou o
ar fresco da noite, enquanto caminhava, e foi at obrigado a sentar-se na soleira de uma
porta, porque, a despeito da sua grande experincia, sentia-se prestes a desmaiar.
Se todas estas centenas - disse para consigo fitando o cu tranqilo, pontilhado
de estrelasse todos esses milhares de pessoas arruinadas que ainda dormem pudessem ao
menos saber a catstrofe que as espera, que grito medonho haveria de subir ao cu contra
uma alma miservel!
No dia seguinte, a notcia da morte do senhor Merdle espalhou-se rapidamente e os
mais variados rumores propagaram-se pela cidade, mas s ao meio-dia foi revelado que se
tratava de suicdio. E, medida que o dia chegava ao fim, os murmrios tornavam-se cada
vez mais ameaadores. Dizia-se que deixara, no estabelecimento de banhos, uma carta
dirigida ao mdico, cujo contedo seria revelado no dia seguinte sindicncia e que seria
como um trovo desabando sobre os milhares de pessoas que havia enganado. Inmeros
seriam os homens de todas as profisses e de todos os ofcios que iriam ser atingidos
pela sua falncia!
Ir-se-ia em breve saber que a doena do falecido senhor Merdle dissimulava, muito
simplesmente, o roubo, a escroqueria e a falsificao.

Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIRIA


Anunciado por passos rpidos e por uma respirao ruidosa, o senhor Pancks surgiu
no escritrio de Arthur Clennam. A investigao terminara, a carta fora levada ao
conhecimento pblico. O banco fora falncia e, em seu redor, s se via runa e
devastao.
No meio dos papis em desordem e das cartas por abrir, Arthur mantinha-se
imvel. a cabea apoiada nos braos cruzados, prostrado e desesperado. Pancks, ao v-lo,
foi invadido pelo desnimo e apoiou, por seu turno, a cabea nos braos.
Fui eu quem o convenceu a fazer esse depsito, senhor Clennam, bem o sei.
Diga-me tudo o que quiser. O que me disser no poder ser pior do que aquilo que digo a
mim prprio!
Oh Pancks! pancks! No fale assim! E eu que arruinei o meu scio! Arruinei o
Doyce! O honesto, o infatigvel velho, que toda a vida trabalhou para sobreviver!
Era to angustioso o espetculo da sua desolao que Pancks, num gesto de
desespero, comeou a arrancar os cabelos.
Censure-me - gritou Pancks -, chame-me doido, miservel, injurie-me, insulteme, far-me-a bem!
E dizer que ontem - replicou Clennam -, ontem, apenas, tinha a firme inteno
de vender, de converter em valor monetrio e de resolver o assunto!
Senhor Clennam, investiu. investiu tudo - perguntou Pancks, hesitando
penosamente.
Tudo.
O senhor Pancks ps-se a puxar os cabelos espetados com uma tal fora, que
arrancou algumas madeixas e meteu-as raivosamente no bolso.
Tenho que tomar imediatamente uma resoluo - disse Clennam, enxugando
algumas lgrimas silenciosas -, tenho que reparar o meu crime o mais rapidamente
possvel, mesmo que deva passar o resto dos meus dias na priso.
Nos dias seguintes, a despeito dos protestos do seu advogado, chocado com uma
atitude to incomum no mundo dos negcios, enviou a todos os credores uma carta, na
qual declarava ser ele o nico responsvel pela falncia e em que ilibava o seu scio, o
senhor Doyce. Passava para este a sua parte na casa e s guardava para ele as suas
roupas, os seus livros e o dinheiro que lhe restava no bolso.
No dia a seguir ao da publicao da carta encontrou, entrada do Beco, a senhora
Plornish e o advogado.
Senhor Clennam, no v - suplicou a mulher do estucador. - Os oficiais de

diligncias aguardam-no porta!


Devo sofrer as conseqncias dos meus atos - respondeu ele. - Quanto mais
depressa, melhor.
Ao menos espere um pouco! - interveio o advogado. - Se o prenderem hoje,
envi-lo-o para a Penitenciria, que demasiado exgua e limitada.
Preferia - respondeu Clennam - ser encarcerado na Penitenciria do que em
qualquer outra priso.
O advogado levou as mos ao cu:
Incrvel! Mas gostos no se discutem. Vamos, ento.
Ao longo do Beco dos Coraes-que-Sangram olhavam-no com renovada simpatia:
Clennam tornara-se um dos seus, a partir de ento adquirira, entre eles, direito de
cidadania. Depararam-se-lhe os oficiais de diligncias porta e subiu para o trem que o
deveria conduzir at ao porto gradeado que lhe era to familiar.
O senhor Chivery estava de servio no cubculo e tambm l se encontrava o
pequeno John. Arregalaram os olhos ao verem Clennam:
Nunca me senti to desgostoso por o ver - disse o Chivery pai, apertando-lhe a
mo.
Arthur sentou-se a um canto, aguardando que fossem concludas as formalidades.
De repente, sentiu uma mo pousar-lhe no ombro: era o pequeno John, que lhe fazia sinal
para o seguir.
Venha, senhor Clennam, arranjei um quarto para si.
E conduziu-o ento pela velha entrada, to bem conhecida, subiu os degraus altos e
penetrou na antiga alcova do senhor Dorrit.
Aqui est, senhor Clennam - disse. Arthur, completamente alterado, estendeu-lhe
a mo, sem dizer palavra.
No sei se lhe posso apertar a mo - disse John. - No, acho que no posso.
Mas julguei que iria preferir este quarto. Agora deixo-o.
A surpresa que Arthur sentiu perante esta singular atitude fez com que, ao ficar a
ss, a emoo que lhe despertava a recordao daquela que encontrara ali com tanta
freqncia o invadisse. E, de sbito, a ausncia dela deixou-o to desolado que se virou
contra a parede, para chorar, balbuciando:
Oh, Minha Pequena Dorrit!
Durante a tarde inteira permaneceu mergulhado num sombrio torpor, relembrando
as anteriores etapas da sua vida. Espantou-se ao verificar que a imagem da Pequena Dorrit
lhe vinha com tanta persistncia ao esprito e avaliou a importncia que tivera para ele a

influncia que ela exercera nas suas melhores resolues. Parecia-lhe que estava agora a
pagar por se ter afastado dela e permitido que algo se interpusesse entre ela e a
recordao das suas virtudes.
A porta abriu-se e apareceu a cabea do senhor Chivery pai.
Vou sair, senhor Clennam. Posso fazer alguma coisa por si?
No, muito obrigado.
Desculpe-me por ter aberto a porta, mas o senhor no me ouviu. Bati umas
cinco ou seis vezes e o senhor no respondeu.
Saindo do seu torpor, Arthur, pela janela, apercebeu-se de que o ptio j fora
invadido pelas trevas e que devia ser tarde.
Chegou o seu processo. Mas queria-lhe dizer outra coisa, senhor Clennam. No
ligue ao meu filho, peo-lhe, se ele parecer um pouco difcil. O meu filho um rapaz de
corao, senhor Clennam, e muito atilado, eu e a minha mulher podemos garanti-lo.
Pronunciadas estas misteriosas palavras, o senhor Chivery retirou-se. No tinham
decorrido dez minutos quando, por seu turno, John Chivery assomou porta:
Aqui est a sua mala de mo e o seu ba - disse pousando-os no cho com
grande cuidado.
Agradeo-lhe infinitamente essas atenes. Est agora disposto a apertar-me a
mo, espero eu.
John recuou, a mo fechada, com uma expresso severa pintada no rosto e,
contudo, tinha os olhos marejados, provavelmente de lgrimas de piedade.
Porque est zangado comigo - perguntou Clennam. - E, ao mesmo tempo, porque
me faz estes favores? Deve haver algum mal-entendido entre ns.
No um mal-entendido, cavalheiro, de modo nenhum. E se o regulamento o
permitisse, se eu fosse mais forte e se o senhor no estivesse nessa infeliz situao,
poderamos resolver o assunto com uma luta!
Arthur olhou-o, estupefacto, depois, soltando um profundo suspiro, voltou a sentarse na velha e coada poltrona.
Trata-se de um mal-entendido - disse em tom cansado -, esqueamos o
assunto.
Ao cabo de um instante, John replicou com mais suavidade:
Desculpe-me, cavalheiro. Sabe que alguns destes mveis me pertencem? Ora
bem, se quiser, empresto-lhos. Pertenciam a um cavalheiro: um grande homem. que viveu
aqui e que j morreu. Decerto ignorava que o fui ver, quando se encontrava em Londres:
foi suficientemente bondoso para me mandar sentar e pedir notcias da minha famlia. Mas
achei-o muito mudado. Perguntei-lhe como estava a Miss Amy.

Como est ela?


Pensava que o sabia sem precisar de inquirir a algum como eu. Mas ele
considerou a pergunta como um atrevimento da minha parte - respondeu John, engolindo
em seco. - Compreendi ento que fora indiscreto em visit-lo.
O silncio pairou de novo e novamente John o quebrou:
Desculpe-me, cavalheiro, mas por quanto tempo mais tenciona estar sem comer
nem beber?
Neste momento no tenho vontade nenhuma.
Precisa de se alimentar, cavalheiro. Vou fazer ch. Quer que lhe traga uma
chvena ou prefere beb-lo no meu quarto?
Arthur levantou-se e seguiu-o at ao quarto dele, que outro no era do que o antigo
quarto da Pequena Dorrit, restaurado, mas assemelhando-se recordao que Arthur
guardava dele.
John olhou-o fixamente, mordendo os dedos.
Vejo que se lembra deste quarto, no verdade, senhor Clennam?
Se me recordo dele? Deus abenoe aquela que c viveu!
O jovem Chivery precipitou-se para fora da dependncia, a fim de ir buscar gua.
O quarto falava a Arthur numa voz to eloqente e to triste! Pousou a mo na
parede insensvel, dizendo muito baixinho: Pequena Dorrit! Olhou pela janela que se situava
por cima do muro eriado de pontas e, pensando no pas onde ela vivia, rica e feliz,
abenoou-a, atravs da bruma estival.
John depressa voltou, trazendo comida, e serviu o ch, mas Clennam foi
absolutamente incapaz de engolir o que quer que fosse, alm de um pouco de ch. John
examinou-o por uns instantes e depois disse finalmente, apertando com nervosismo um
bolinho entre os dedos:
Se no quer cuidar da sua sade, ao menos faa-o por outra pessoa.
Para falar verdade, no sei por quem - respondeu Arthur, suspirando.
Senhor - retorquiu John, exaltando-se -, espanta-me que um cavalheiro to
franco como o senhor se rebaixe a dar uma tal resposta! Reprimi as minhas emoes,
sabendo que tinha que o fazer e no pensar mais nelas. Quando o vi chegar esta manh,
desencadeou-se dentro de mim um turbilho de sentimentos, mas finalmente consegui
venc-los. E agora, que me sentia to desejoso de lhe mostrar que dentro de mim apenas
existe um pensamento quase sagrado e que paira acima de tudo, o senhor repele-me com
a resposta que deu minha aluso to delicada!
Arthur, boquiaberto, olhou-o, aturdido, e perguntou apenas:

Que se passa John, o que quer dizer?


No me atrevo a pensar que haja ainda qualquer esperana, depois das palavras
que foram trocadas, mesmo se no se levantasse entre ns barreiras intransponveis. Mas
no razo para crer que no tenho nem memria, nem pensamento, nem recordao
sagrada!
Por incompreensvel que fosse este discurso, a sua inflexo era to sincera, punha
to claramente a descoberto uma profunda ferida, que Arthur prestou ateno.
Ser possvel - perguntou, depois de ter refletido bem - que esteja a fazer
qualquer aluso a Miss Dorrit?

pela miss

absolutamente possvel, cavalheiro! Certamente que conhece a minha paixo


Dorrit, um amor que raia o sacrifcio!
No, eu...
Ento, quando eu digo para cuidar da sua sade por outra pessoa, porque no

franco comigo? Julga o senhor que tudo o que fiz esta manh foi por sua causa? Ora bem,
no foi. Ento, porque no fala com sinceridade?
Afirmo-lhe que no estou a compreender. Olhe para mim. Considere a situao
em que me encontro. Iria ainda acrescentar s minhas faltas a de ser ingrato ou traidor
para consigo? Asseguro-lhe que no estou a compreender!
A incredulidade que se lia no rosto de John foi-se gradualmente transformando em
dvida.
Senhor Clennam - disse olhando-o atentamente -, quer o senhor dizer que no
sabe?
Mas no sei o qu, John?
Jesus, ele pergunta o qu! Senhor Clennam est a ver aquela janela E aquele
muro E aquele ptio? Dia aps dia, noite aps noite, semana aps semana, ms aps ms,
tudo aquilo foi testemunha!
Mas testemunha de qu - perguntou Clennam.
Do amor de Miss Dorrit!
Por quem?
Por si - replicou John, voltando a sentar-se, muito plido, na poltrona.
Arthur ficou imvel, como se tivesse recebido uma pancada na cabea, o olhar fixo
em John, os lbios entreabertos, incapaz de articular palavra.
Eu - exclamou, finalmente, em voz alta.
Ah! - gemeu o pequeno John. - Sim, o senhor.
Arthur, ao responder, tentou sorrir:

imaginao sua! Est completamente enganado!


Eu, senhor Clennam, enganar-me numa coisa que me fez sofrer tanto e que
ainda agora me obriga a puxar do leno? Ah, No diga Isso, no diga isso!
E puxou do leno para enxugar os olhos dando um pequeno soluo. Clennam,
incapaz de prosseguir a conversa, pediu a John licena para se retirar e arrastou-se, rente
escurido da parede, at ao seu quarto. Sentou-se na poltrona, apertando a cabea entre
as mos, como se sentisse depauperado. A Pequena Dorrit amava-o! Isso transtornava-o
mais do que todas as suas desgraas, muito mais!
O facto parecia-lhe completamente impossvel. Chamara-a sempre de sua filha, de
sua querida filha, insistindo na diferena de idades e falando de si prprio como de um
homem idoso. Mas quem sabe se ela o no teria achado demasiado velho? Lembrou-se de
que ele prprio no havia pensado nisso at ver as rosas deslizando ao sabor das guas do
rio.
Tirou, dos seus papis, as cartas que ela lhe escrevera e voltou a l-las. Pareceu
captar nelas o som da sua voz meiga, cheia de inflexes de ternura, de que anteriormente
nunca se apercebera. E, depois, o calmo desespero de uma resposta No, no, no! Que
lhe dera uma noite, veio-lhe memria. Absolutamente impossvel. E, contudo, essa
improbabilidade tornava-se cada vez menos convincente e certa pergunta perpassava-lhe
cada vez mais insistentemente o corao: no teria ele, alguma vez, murmurado em
segredo que no devia esperar que ela o amasse? Que no devia tirar partido da sua
gratido que era um velho para quem o tempo do amor j passara?
Felizmente, mesmo se tivesse sido esse o caso, agora tudo acabara e era melhor
assim. Se ela o amasse verdadeiramente, se ele se tivesse apercebido e se fosse tambm
permitido am-la, que vida lhe iria proporcionar! Uma vida que culminaria naquele antro
miservel! Consolou-se, pensando que ela estava para sempre livre: decerto se casaria em
breve. O porto de ferro da Penitenciria, para ela, fechara-se para sempre sobre uma
poca que findara.
A noite foi surpreend-lo imerso nestas cogitaes. Horas e horas a Pequena Dorrit,
a Pequena Dorrit, sempre a Pequena Dorrit! Era sempre a sua inocente e pequenina
silhueta que lobrigava no horizonte do seu esprito. Era o fulcro de interesse da sua vida, a
concretizao de tudo o que ele conhecera de bom e de agradvel; para alm dela, s
havia trevas e desolao.
Querida Pequena Dorrit!
O crcere comeou a deixar as suas marcas em Arthur Clennam. Sentia-se ocioso
e deprimido. Conhecendo a influncia que o cativeiro podia exercer no seu temperamento,

tinha medo de si prprio e escondia-se no quarto, sem se atrever a sair de l, confinado


escurido das paredes estreitas. Encontrava-se ali h cerca de dez ou doze semanas,
quando um dia bateram porta e lhe anunciaram que um homem de aspecto militar pedia
para ser recebido por ele. Arthur, mergulhado nas suas sombrias preocupaes, esquecerase j que lhe haviam anunciado uma visita, quando passos pesados ressoaram pelas
escadas. Passadas largas cujo som no era rpido nem alegre, mas que antes pareciam
arrogantes. Quando se detiveram no patamar, Arthur disse para consigo que j os ouvira
algures, no conseguindo lembrar- se onde fora. No teve tempo para refletir nisso, porque
um soco na porta escancarou-a: na soleira, encontrava-se Blandois, o desaparecido, causa
de tantas preocupaes.
Salve, camarada candidato forca! - exclamou ele. - Ao que parece, queria verme. Pois ento, aqui me tem!
Antes que Arthur, indignado, conseguisse recuperar o seu prprio domnio, entrou
Cavaletto, seguido do senhor Pancks, que se tornara um grande amigo do italiano.
Blandois instalou-se na cama, sem tirar o chapu, e permaneceu ali estirado, de
mos nas algibeiras, com um olhar de desafio.
Aqui est ele, signore! - disse Cavaletto.
Levei muito tempo a encontr-lo, mas, com a ajuda do Signore Panco (assim
apelidado, Pancks assumia um ar completamente novo!), consegui descobri-lo.
Grande bandido! - exclamou Arthur. - porque andou a espalhar suspeitas to
terrveis sobre a casa de minha me?
Escutem este nobre cavalheiro! Escutem este modelo de virtude! Mas tenha
cuidado, tenha cuidado: pode acontecer que o seu ardor o deixe algum tempo
comprometido. Sim, com mil diabos!
Clennam virou-se para o tratante: o nariz e os bigodes uniam-se, num esgar
diablico, troava, fazendo estalar os dedos, e prosseguiu:
E agora, filsofo, que me quer? O meu desaparecimento meteu-lhe medo e
suspeitou que a senhora sua me.
Quero saber - interrompeu Arthur, no dissimulando a repugnncia que sentia por que razo se atreveu a lanar uma suspeita de assassnio sobre a casa de minha me.
Quero que essa suspeita se esclarea. Pretendo saber que foi l fazer quando eu senti
mpetos de o atirar pelas escadas abaixo. No me olhe assim, conheo-o o suficiente para
saber que no passa de um gabarola e de um cobarde!
Muito plido, Blandois cofiou o bigode, dizendo entredentes:
Com os demnios, meu filhinho, voc compromete um pouco a respeitvel
senhora sua me!

Sentou-se e disse, com uma ameaa fanfarrona na voz:


Vinho! Tragam-me vinho do Porto, vamos falar de negcios! A sua sade, senhor
prisioneiro! A sua atual situao pouco bem lhe faz, est to macilento e envelhecido!
Quer ento saber porque entrei na farazinha que voc veio interromper? Pois fique
sabendo que tinha, e que tenho sempre, est a compreender, um interessante produto para
vender respeitvel senhora sua me. Descrevi-lhe o meu precioso artigo e disse o meu
preo. Relativamente transao, a respeitvel senhora sua me mostrou-se
excessivamente calma, excessivamente imperturbvel. Enfim, a sua admirvel me
enfadou-me. Ento, para me divertir um pouco, ocorreu-me a idia de desaparecer. Idia
que, percebe o senhor, a sua me e o meu amigo Flintwitch de bom grado teriam
concretizado pelas suas prprias mos. Ai, ai, ai! No me olhe assim. Repito-lhe. Teriam
ficado encantados e deliciados.
Voltou a encher o copo e continuou, com a mesma arrogncia:
Aquela idia de desaparecer foi-me providencial: aborreceu a sua querida mam,
inquietou-o a si e mostrou que eu era um homem com quem no se brinca. Alm disso,
deu que pensar senhora sua me, que imediatamente mandou publicar um pequeno
anncio nos jornais, dizendo que as dificuldades de certo acordo seriam resolvidas se
determinado indivduo quisesse ter a bondade de voltar a aparecer. E o senhor veio
interromper tudo isto! O meu amigo filsofo, virtuoso, imbecil escolha! - porventura no
teria feito melhor em me deixar em paz?
E olhou, por cima do copo, para Arthur, com um sorriso sinistro.
No - respondeu Clennam, desesperado por se ver de mos e ps atados. Estas duas testemunhas conduzi-lo-o perante a justia!
Perante a justia? - deu uma gargalhada.
Diabos levem os juzes! Lembre-se de que tenho uma coisa para vender sua
mam! Voc, contrabandista, arranje-me uma pena, tinta e papel.
Ps-se ento a escrever, lendo medida que o fazia:
Senhora Clenan, da penitenciria e do quarto do seu filho
Cara Senhora,
Senti-me comovido por saber, pelo prisioneiro, que a senhora receava pela minha
vida. Tranquilize-se, minha cara. Por agora, continuo vivo e bem de sade. Como no tenho
a certeza se est preparada para responder pequena proposta que lhe fiz, refrearei a
grande impacincia que sinto de voltar a ver a senhora. Voltarei dentro de oito dias. Poder
ento aceitar ou rejeitar a minha proposta, com todas as conseqncias que isso
implicar.

Enquanto aguardo, espero no ser demasiado exigente ao pedir-lhe que pague as


minhas despesas do hotel.
Com elevada estima e considerao,
RIGAUD BLANDOIS
Tendo acabado a sua missiva, atirou-a, com bazfia, aos ps de Arthur, partindo
Panks imediatamente, para a levar a casa da senhora Clennam.
A espera foi longa e penosa para Arthur, que era obrigado a suportar as insolncias
e os ultrajes daquele indivduo. Finalmente, ouviram- se de novo os passos de Pancks nas
escadas, seguidos de outros. Quando Cavaletto abriu a porta, o homenzinho entrou,
precedendo Flintwitch. Blandois agarrou-o pelos ombros e abraou-o com espalhafato.
Como vai, Arthur - perguntou o velho, libertando-se secamente daquele amplexo.
- Ora bem, teria feito melhor se nos houvesse deixado, sua me e a mim, ocupar-nos
dos nossos negcios sem a sua intromisso. No se deve acordar o gato que dorme.
Olhou em seu redor, com ar de censura:
Ento esta a priso para dvidas? Escolheu uma porcaria de mercado para
vender os seus leites, Arthur!
Blandois, menos paciente do que Arthur, sacudiu o velho pelo casaco, gritando, com
uma vivacidade feroz:
Diabos levem os seus leites e o seu mercado! D-me a resposta!
Um momento - replicou friamente Flintwitch. - Arthur, antes de tudo, aqui est
o bilhetinho para si.
Era um bilhete da me, que este leu duas vezes antes de o rasgar em pedacinhos:
Caro Arthur,
Peo-lhe que deixe o meu scio encarregar-se dos meus negcios.
Sua me
Blandois riu s gargalhadas:
Ah Ah! Sendo assim, saio vencedor! do meu temperamento triunfar! Meus
filhinhos, meus bebs, meus bonequinhos, tm todos medo de mim! E, agora, vou ter
cama e comida s vossas custas. Procuremos hotel. Ah, ah, ah!

Captulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTRIOS


Nos dias que se seguiram, o estado de Arthur agravou-se bastante. Foi acometido
por uma violenta crise de desgosto e de terror pelo seu cativeiro. A sua repulsa era to
intensa, que mal conseguia respirar e julgava que asfixiava. Assim permaneceu durante
dois dias e uma noite, caminhando de um lado para o outro, completamente insone.
Finalmente, a calma voltou, uma calma lgubre, e, ento, a febre apossou-se
sorrateiramente dele.
O sexto dia da semana estipulada por Blandois foi um dia quente e hmido.
Clennam, de cabea dorida e o corao depauperado, esperara que a noite findasse,
escutando a chuva a tamborilar nas lajes do ptio. A priso comeava a despertar a pouco
e pouco e conseguiu, depois de se arranjar, afundar-se na poltrona, numa espcie de
sonolncia que o delrio vinha interromper. Em determinada altura, perseguiu-o tenazmente
a impresso de se encontrar num jardim florido, onde o vento espalhava aromas
deliciosos. virou a cabea e avistou sobre a mesa, um magnfico aafate de flores. Quem
as poderia ter mandado?
nas flores com as mos
perfume salutar. Depois
ligeiramente empurrada,

O quarto estava vazio e ignorava que horas deveriam ser. Pegou


descarnadas e levou-as ao rosto escaldante, para lhes aspirar o
voltou a mergulhar na sonolncia. De repente pareceu que,
a porta do quarto se abria e, um instante depois, surgia um

pequeno vulto, envolto numa capa negra. Pareceu-lhe que a capa se desfazia e tombava no
cho e nessa altura julgou estar a ver a Pequena Dorrit, envergando o seu velho e coado
vestido. Julgou v-la tremer, unir as mos, sorrir e desfazer-se em lgrimas.
Despertou e deu um grito. A Pequena Dorrit encontrava-se ajoelhada aos seus ps,
de olhos marejados de lgrimas:
Oh, meu melhor amigo! Querido senhor Clennam, espero que no v chorar! A
no ser de jbilo por me ver. Aqui estou eu de novo!
Como ele a abraava, afirmou-lhe:
No me disseram que estava doente!
Ser possvel que esteja aqui E com esse vestido?
Pensei que o preferiria a outro qualquer! S ontem cheguei a Londres com o meu
irmo e imediatamente procurei saber notcias suas. No pensou em mim na passada
noite? Pois eu pensei em si com tanta inquietao!
Desde que me aqui encontro, Pequena Dorrit, penso em si todos os dias, a cada
hora, a cada minuto!
verdade! verdade!
E ao ver-lhe o rosto radioso, que corava de alegria, sentiu-se envergonhado, ele, o

prisioneiro, o falido doente e desonrado.


Ela tirou o seu velho chapu e comeou sem rudo, ajudada por Maggie, que
trouxera consigo, a tornar o quarto to fresco e to limpo quanto possvel. Mandou buscar
fruta, bebidas frescas, frango assado, que disps sobre a mesa. Em seguida, tirou uma
bolsa de costura e ps-se a fazer um cortinado para a janela. E, ento, a calma do quarto
pareceu espalhar-se pela priso inteira, Clennam sentado tranquilamente na poltrona e a
Pequena Dorrit trabalhando ao lado dele. V-la ali sentada, modestamente inclinada sobre a
costura, cumulando-o de todos os tesouros da sua inesgotvel bondade, dava-lhe foras
alma e fazia aumentar o seu amor por ela. Porque amava-a agora, amava-a mais do que
as palavras o poderiam exprimir!
A escurido envolveu-os, mas a Pequena Dorrit s se mexeu para se ocupar do
preso, para lhe dar de beber ou endireitar-lhe o travesseiro. Quando terminou o trabalho,
hesitou alguns instantes, depois pegou na mo de Clennam, dizendo:
Querido senhor Clennam, tenho que lhe dizer uma coisa antes de me ir embora.
Tenho adiado de hora para hora, mas foroso dizer-lhe.
Tambm eu, querida Pequena Dorrit, tenho uma coisa para lhe dizer.
Ela ergueu a mo trmula.
No voltarei para o estrangeiro. O meu irmo regressou a Londres para
regularizar o testamento do meu pai. Ficarei rica, mas no preciso de dinheiro. Aos meus
olhos, o dinheiro nada vale se no nos puder ser til. Mas deixa-me emprestar-lhe todo
aquele que possuo? Suplico-lhe, permita- me que lho d! Deixe-me mostrar-lhe que no
esqueci o quanto me ajudou quando esta priso constitua o meu lar! Querido senhor
Clennam, faa de mim a mulher mais feliz do Mundo dizendo que aceita; choro sem
querer. Suplico-lhe, no vire as costas sua Pequena Dorrit na sua desgraa!
Escondeu o rosto entre as mos. Ele passou-lhe o brao pela cintura, para a
endireitar:
No, Pequena Dorrit querida. No, minha filha. No quero ouvir falar de
semelhante sacrifcio. Jamais poderia suportar uma liberdade alcanada custa de to
elevado preo.
E, na sua desgraa, no me vai permitir que lhe seja fiel?
Diga antes, Pequena Dorrit muito querida, que sou eu que lhe devo ser fiel. Se
agora compreendo melhor e li mais claro no meu corao, se lhe tivesse dito que a
amava, oh. Se o tivesse feito, se nessa altura o tivesse feito Talvez me fosse agora
permitido aceitar a sua oferta. Mas na situao atual, -me impossvel dizer que sim.
Ela suplicou-lhe com a sua mozinha.

J me sinto suficientemente desonrado, minha Pequena Dorrit, no quero atolarme tanto e arrast-la, a si, to querida, to generosa, to boa, na minha queda. Deus a
abenoe. No falemos mais no assunto.
Abraou-a como se fosse sua filha.
Sinto-me muito mais velho, muito mais derrotado e muito mais indigno do que
antigamente. temos que esquecer o que eu fui e ver apenas ao que agora estou reduzido.
Adeus, minha filha.
No tenho coragem para lhe pedir que me esquea, mas compreenda que j passou
a poca em que tinha algo em comum com esta priso.
Oh! No me diga - exclamou ela, desfazendo-se em soluos - que no posso
voltar! No me abandone assim!
Ressoou a sineta, anunciando que as portas se iam fechar. Arthur agarrou na capa
negra e cobriu ternamente os ombros da Pequena Dorrit.
Dir-lho-ia se tivesse coragem! Mas no seria capaz de banir para sempre esse
querido rosto e abandonar toda a esperana de o rever. Somente no venha com muita
freqncia. A priso um lugar impuro.
Acompanhou-a at porta, porque a sineta estava prestes a calar-se e o porto
fechou-se pesadamente atrs dela, com um ranger pungente. O ltimo dia da semana
concedida por Rigaud Blandois passou pelos muros da penitenciria, pelos telhados e
campanrios da City londrina. Durante o dia inteiro, nenhuma visita veio perturbar a velha
casa Clennam. Mas no momento em que o Sol se punha, um homem atravessou o alpendre
e dirigiu-se para a casa arruinada. Era Blandois, que comparecia ao encontro.
Ao seu toque imperativo, Flintwitch veio abrir e conduziu-o diretamente ao quarto
da senhora Clennam: esta, como de costume, encontrava-se impassivelmente sentada no
seu sof preto, enquanto Affery passejava a um canto, a cabea inclinada sobre a agulha.
Blandois, com a sua insolncia habitual, afundou-se pesadamente numa poltrona.
Ento, minha senhora, tudo em ordem? A senhora Clennam e Jeremy
entreolharam-se e tambm para Affery, sobre quem Jeremy descrevia uma espiral em
direo ao banquinho em que a velha estava sentada.
Vamos - disse, esfregando as mos -, comecemos sem mais delongas: Affery,
mulher, temos assuntos a tratar, de modo que pe-te a mexer.
De sbito, porm, para estupefao de todos,
Affery arrojou a costura ao cho, precipitou-se para a janela aberta e inclinou-se
para o vo, gritando:
No, no me irei embora, Jeremy, no. Ficarei aqui! Quero ouvir tudo o que no

sei e dizer tudo o que sei, Mesmo que tenha de morrer! Quero, quero e quero!
Jeremy, aps
ameaador:

alguns

minutos

de estupefao, aproximou-se dela com ar

Pra, Jeremy - gritou Affery. - Mais um passo e acordo os vizinhos e atiro-me


pela janela! Gritarei fogo! Assassino! Despertarei os mortos! Fica onde ests, seno eu
grito!
A voz autoritria da senhora Clennam interveio:
Pare, Jeremy! Deixe-a sossegada. Affery, depois destes anos todos, viras-te
contra mim?
Se virar-me contra a senhora tentar saber a verdade, ento, sim, viro-me
contra si! Quero defender o Arthur, que perdeu tudo, que est doente e na priso e que
no se pode defender. E f-lo-ei! f-lo-ei, f-lo-ei!
E como sabes tu, minha pobre cabea de vento, que fazendo isso ests
realmente a beneficiar o Arthur?
Cabea de vento Mas foram vocs dois, seus malandros, que me puseram neste
estado! Foste tu que me obrigaste a suportar uma vida de terror e de pesadelos. E estou
farta, estou farta, estou farta!
A senhora Clennam olhou-a por uns instantes e finalmente disse:
Se o senhor Blandois no tiver nenhuma objeo, podes ficar.
Eu, minha senhora? De modo nenhum! O assunto consigo!
Levantou-se e foi-se sentar sobre a mesa, balouando as pernas e olhando sem
cerimnia para a senhora Clennam, o bigode eriado sob o nariz:
Minha senhora, sou um cavalheiro.
De quem me disseram ter sido preso por assassnio!
Ele enviou-lhe um beijo irreverente.
Perfeitamente. Exato. E, ainda por cima, de uma dama! Que absurdo! Mas
desenvencilhei-me com xito: espero ter a honra de hoje sair desta com o mesmo
sucesso! Ora eu sou um cavalheiro que quando diz: Quero concluir imediatamente um
negcio, o conclui definitivamente. Percebe o que eu quero dizer, minha senhora?
Sim - respondeu ela, com os olhos duros fixos nele.
Disse-lhe que chegramos, agora, ao ltimo encontro. permita-me que lhe
recorde os dois anteriores.
No necessrio.
Com os demnios - explodiu ele. - E se isso me agradar? Alm disso, fazendo-o,
esclarecerei melhor as coisas. Sendo assim, o primeiro encontro foi imparcial: tive a honra
de a conhecer, aproveitei-me para observar duas ou trs coisinhas desta casa, a fim de

me certificar de que a senhora era efetivamente a dama que eu procurava. Aps o que
prometi ao Jeremy voltar e, delicadamente, retirei-me.
A senhora Clennam mantinha-se impassvel, de olhar sombrio.
E um dia regresso sem me fazer anunciar. Nessa altura, informo-a de que tenho
algo para lhe vender que poderia, caso a no comprasse, compromet-la, minha senhora, a
si, por quem sinto uma profunda estima. E, sem fornecer mais detalhes, pedi mil libras,
acho eu. Foi isso, minha senhora?
Obrigada a responder, ela retorquiu, contrariada:
Sim, o senhor exigiu essa quantia.
Ora bem, agora, exijo-lhe duas mil! Eis o que acontece a quem deixa protelar os
negcios. Mas voltemos a essa segunda entrevista. No chegmos a um acordo. Eu, que
tenho um temperamento jovial, desapareci, laia de partidinha, como se me tivessem
assassinado! Decerto a senhora teria oferecido metade da soma para me encontrar e
desse modo dissipar as suspeitas que comeavam a nascer. Infelizmente, o seu querido
filho estragou a minha brincadeira. Como conseqncia, minha senhora vim aqui pela
ltima vez. Ouve bem? P-la ltima vez! E, antes de tudo, precisamos de liquidar a minha
conta do hotel. Vamos! O dinheiro!
Veja a conta e pague-a, Flintwitch - ordenou a senhora Clennam.
Jeremy apanhou a conta que Blandois lhe atirara cara, examinou, com olhar turvo,
o montante, tirou do bolso um pequeno saco de pano e deps a quantia na mo do outro.
Blandois fez tilintar moedas, atirou- as ao ar, apanhou-as de novo e proferiu:
Esta msica, para o arrojado Rigaud Blandois, como o gosto da carne crua
para o tigre. Ento, minha senhora, qual a sua resposta?
J lhe disse, cavalheiro, no somos assim to ricos como o senhor imagina e as
suas exigncias so desmedidas. Neste momento, no estou em condies de satisfazer o
seu pedido, mesmo que o desejasse.
Desejasse? Mas diga-me, minha senhora, se o deseja, que eu saberei o que
fazer! Diga-o! Rpido!
Ela respondeu, no mesmo tom imparcial:
Parece que est de posse de um papel que eu desejo ardentemente recuperar.
Para mim, pode valer uma certa quantia em dinheiro, mas no poderei dizer quanto. Somos
pobres e no quero arruinar-me por um papel cujo contedo desconheo. Fale com mais
clareza, caso contrrio pode ir para onde lhe aprouver.
Ele fixou-a demoradamente com um sorriso diablico.
A senhora uma mulher corajosa! Pois ento, vou-lhe contar, minha senhora,

um certo episdio da histria da famlia. A histria de um estranho casamento, de uma


estranha me, de uma vingana e de uma supresso. Hum, hum, isso diz-lhe alguma
coisa? Quando viajamos, compreende a senhora, conhecemos imensa gente interessante
que com freqncia nos conta histrias muito bonitas. Quer que intitule a minha narrativa
de A histria desta casa? As personagens sero o tio e o seu sobrinho, um idoso e rgido
cavalheiro, com um temperamento inflexvel, e um jovem tmido humilde, amedrontado. O
senhor tio ordena ao sobrinho que se case: Meu sobrinho, apresento-te uma dama que,
como eu, tem carcter; uma dama sem piedade, sem amor, implacvel e fria como uma
rocha, mas enraivecida como o fogo. Ah, ah, Com os diabos, que dama encantadora!
Adoro-a!
O rosto da senhora Clennam alterara-se, anuviara-se, contraa-se.
O sobrinho, famlico e aterrorizado, baixa a cabea e responde: Meu tio,
obedeo s suas ordens. D-se o casamento e o jovem casal vem morar para esta
encantadora residncia, onde so recebidos por Flintwitch. No assim, velho intriguista?
Mas depressa a senhora faz uma descoberta muito singular e interessante. Cheia de
clera, de cime e de rancor, concebe um plano de vingana - est a compreender- me
bem, minha senhora? - atravs do qual oprime o marido, forando-o, dessa forma, a
oprimir a sua rival. Que inteligncia!
Mas foi um dos meus sonhos! - gritou Affery, toda palpitante. - Uma noite de
Inverno, em que tu discutias com ela, Jeremy, e disseste que ela no devia deixar que o
Arthur suspeitasse do pai! E tu respondeste-lhe que ela no era. qualquer coisa, no sei o
qu, e ela ficou zangada! E depois foste para a cozinha, eu dormitava ao p da lareira e tu
arrancaste-me o avental com que eu cobria a cabea!
Rigaud Blandois escutou este desabafo com profundo interesse.
Ah! Ah! Ento o velho malandrim disse que no era o qu, minha senhora? Diganos!
A respirao da senhora Clennam tornou-se mais difcil, os seus lbios tremeram e
abriram-se, apesar dos seus esforos para se manter calma.
Vamos, minha senhora, fale! No era o qu?
Ela tentou de novo dominar-se, depois explodiu, finalmente, com violncia:
No sou a me do Arthur! Mas eu prpria contarei isso tudo. Est a manchar-me
com as suas palavras infames, deturpa a realidade e a minha histria! Terei eu sofrido
todos estes anos, neste quarto, para no fim ser obrigada a contemplar-me em semelhante
espelho?
O fogo que estivera latente; sob aquele rosto impassvel, jorrava agora por todos
os poros. Gritou:

No sabe o que ser-se educada no rigor e na severidade! A minha juventude


ignorou a alegria e os prazeres criminosos. Desde a minha tenra infncia, o sacrifcio, a
penitncia e o medo encheram-me de um justo horror com respeito aos pecadores. Quanto
ao esposo que me fora apresentado, meu pai asseverara-me que fora educado nos
mesmos princpios do que eu, afastado dos deboches e do pecado. Ora quando descobri,
no estvamos ainda casados h um ano, que o meu marido, na precisa altura em que
meu pai dele me falava, havia ultrajado o cu e eu prpria com uma ligao com uma
criatura culposa, poderia eu duvidar que o Senhor me escolhera para descobrir e castigar
aqueles pecadores?
Pousou a mo no relgio que se encontrava sobre a mesa.
Foi este relgio, escondido com uma velha carta, numa gaveta secreta, que me
deu a conhecer a verdade! T-lo-ia encontrado se no fosse designada pela Providncia?
Quando obriguei o meu marido a entregar-me a sua cmplice, que se arremessou aos
meus ps, escondendo o rosto, eu mais no era do que a serva e o instrumento de Deus!
Quando ela se valeu da sua juventude, da vida dura e miservel que ele levara (assim
qualificava a virtuosa educao dele), o seu ultrajante casamento secreto, depois o terror
de ambos, quando fui designada como o instrumento da punio dos dois, e finalmente o
amor - atreveu-se a pronunciar essa palavra aos meus ps - que sentia por ele, quando o
deixou por minha causa, foi Deus que, por meu intermdio, a fez tremer e a obrigou
expiao!
Coisa espantosa, aquela mulher, que durante tantos anos perdera o uso dos dedos,
martelava agora a mesa com socos vigorosos e levantava o brao sem dificuldade.
Que penitncia exigi eu? Tem um filho. Eu no. Ama essa criana, d-ma.
Julgar, e todos julgaro, que meu filho. O pai jurar que nunca mais os ver, nem a um,
nem a outro. Refugiar-se- num lugar isolado e serei eu quem me encarregarei do seu
sustento. Era tudo, ela devia sacrificar os seus afetos vergonhosos e culposos, nada mais.
A partir de ento, era senhora de poder suportar o peso da sua falta, morrer de
corao despedaado e assim aguardar a redeno divina. Se enlouqueceu, a culpa
minha? Foi o remorso do seu pecado que a perseguiu, foram as chamas do inferno que via
sua volta! Foi Deus que assim a castigou, no eu. Entretanto, dediquei-me educao do
jovem Arthur, criando-o no medo e no temor, obrigando-o a levar uma vida de sacrifcio
pelos pecados que lhe pesavam sobre a cabea, mesmo antes da sua vinda a este
condenado Mundo. Foi crueldade? No recaam tambm, sobre mim, as conseqncias
daquele erro de que eu no era culpada? Vivi mais afastada do pai de Arthur do que se
tivesse meio Mundo a separar-nos. Quando morreu, enviou-me este relgio. No te

esqueas. No, no me esqueo. Mas essa mera frase significa algo mais para mim do
que para ele. No me esqueo de que fui designada pela Providncia para cumprir os seus
desgnios.
Enquanto pegava no relgio com aquela nova liberdade de movimentos, da qual
parecia no se dar conta, Rigaud gritou, fazendo estalar desdenhosamente os dedos:
Vamos, minha senhora, o tempo passa! Sei tudo isso; vamos ento ao que
interessa, minha muito piedosa senhora, ao dinheiro roubado!
Que miservel o senhor ! - respondeu ela, escondendo o rosto entre as mos. Que erro fatal cometeu Flintwitch que o fez entrar de posse dessa clusula?
Ah! Ah! Que estranha coincidncia! Ento estou de posse de um papelinho
escrito pelo seu punho, assinado pela senhora e pelo meu velho intriguista: um aditamento
ao testamento que o velho tio lhe ditou, no qual legava mil guinus jovem beldade, que a
senhora condenou morte lenta, mil guinus mais jovem das filhas que o seu protetor
teria aos cinquenta anos, ou ento, no caso de no as ter, mais jovem das filhas de seu
irmo. E qual era o nome do homem que sustentou e ajudou a jovem rf? Diga-o, minha
cara senhora! Frederick Dorrit! E quanto a esse aditamento ao testamento que Gilbert
Clennam lhe ordenou que escrevesse e assinasse antes da sua morte, e quem, em
seguida, se apoderou dele, pelo dinheiro e para impedir que fosse executado? Foi a
senhora, piedosa dama, ajudada pelo seu velho cmplice!
No foi pelo dinheiro, miservel - gritou ela, fazendo um esforo para se
levantar. - Se Gilbert Clennam, que ficara senil, imaginou dever recompensar o crime, no
deveria eu impedi-lo? Esse Frederick Dorrit a causa de tudo, foi ele quem arrastou a
pobre jovem para a msica e para o canto, atividades satnicas! Se no tivesse feito dela
uma cantora, nunca o pai de Arthur a teria conhecido! No procurei destruir esse papel,
guardei-o aqui durante anos e a qualquer momento podia mandar executar a doao.
Quando, finalmente, o mandei destruir - pelo menos assim julguei -, a criminosa morrera
h muito e Frederick Dorrit, arruinado e senil, j recebera o seu justo castigo. A filha no
existia; quanto sobrinha, o que fiz por ela valeu mais do que o dinheiro, do qual no teria
sabido tirar partido.
Aps um momento de silncio, acrescentou, olhando para o relgio:
Ela est inocente. Ter-lho-ia legado, por minha morte.
Poder-me-ia ainda dizer, venervel dama, a que homem confiou a pequena
cantorazinha? Ser um homem que conhece bem o nosso velho tratante e que com ele se
avistou, no faz muito tempo?
Sou eu que lhe vou dizer - exclamou subitamente Affery. - Vi-o no primeiro dos
meus sonhos! o irmo gmeo do Jeremy! Esteve aqui na noite em que o Arthur voltou

para casa e o Jeremy entregou-lhe um cofre de ferro que ele levou, j a noite ia avanada.
Socorro! Assassino! Salvem-me do Jeremy!
O senhor Flintwitch precipitara-se para ela, mas Blandois reteve-o e impediu-o de
ir mais longe.
O qu - exclamou. - Atacar uma dama que tem tanta queda para os sonhos?
Ah! Ah! Ah! Como se parece com o seu irmo, meu Flintwitchezinho! E exatamente como
eu o conheci, na taberna, em Anvers! Uma esponja famosa! Morava numa pequena
mansarda, rente ao telhado onde intervalava o seu conhaque e o seu tabaco com doze
sestazinhas e um ataque de delirium dirios, at ao dia em que o ataque foi forte de mais
e voou para o cu. Ah! Ah! Ah! Como consegui apossar-me dos papis que se
encontravam no cofre de ferro! Que importncia tem! O que interessa que se
encontram em lugar seguro!
A senhora Clennam olhou, estupefacta, para Flintwitch que arrumado no seu canto,
cofiava o queixo. Finalmente, tomou a palavra:
No precisa de me fitar com esses olhos arregalados! a mulher mais
orgulhosa do Mundo e quis fazer vergar toda a gente! Mas eu bem lhe disse que no sabia
do que eu era capaz! Bem me ralam os seus olhos arregalados! Escutei a clusula I
escondera-a da senhora num lugar secreto. H muito que a aconselhara a indicar-me esse
lugar, a fim de que pudesse tir-la e queim-la. Mas a senhora, teimosa que nem uma
mula, negou-se sempre. Quando o Arthur voltou, a senhora comeou, finalmente, a sentir
medo e tive oportunidade de a ir buscar adega. Porm, tudo aquilo me deixara muito
enervado, quis mostrar-lhe que eu era o mais forte. queimei, diante de si, um velho papel
e confiei a clusula ao meu irmo, que naquela noite partia de Inglaterra para Anvers. Mas
aquele imbecil, aquela esponja de conhaque, no soube calar-se! Eu bem desconfiei, no dia
em que vi aparecer o Blandois!
A senhora Clennam desviou lentamente o olhar e inclinou a cabea.
Reembolso-o desse cofre e desse segredo, cavalheiro. Mas, de momento, no
tenho disponvel a quantia que me pede. Quanto aceitaria hoje, quanto aceitaria mais tarde
e que garantia terei eu do seu silncio?
Meu anjo - retorquiu Blandois -, disse-lhe quanto queria e que o tempo
escasseava. Antes de c vir entreguei a outra pessoa cpias desses papis. Se no pagar
antes de as portas da Penitenciria se fecharem, ser demasiado tarde. Arthur Clennam
t-los- lido.
Ela deu um grito e levantou-se, vacilou um instante, como se fosse cair, mas
manteve-se firme.

Que quer dizer, monstro, que quer dizer? Diante daquele vulto fantasmagrico,
semelhante a uma morta que se tivesse levantado do tmulo, Rigaud recuou e falou em
tom mais brando.
Miss Dorrit - disse - est muito afeioada ao preso. Neste momento, cuida dele.
Deixei, para ela, um pequeno embrulho, que dever entregar ao detido no caso de ningum
o ir buscar antes da hora do fecho. Est ver como o tempo voa?
Violentamente agitada, a senhora Clennam correu para o armrio, que abriu com
brutalidade, e pegou num xaile, com que se cobriu. Affery arrojou-se aos seus ps e
agarrou-se-lhe ao vestido:
No, no, minha senhora, fique aqui! Onde quer ir? No saia, vai cair morta na
rua!
A patroa libertou-se dela, disse a Blandois que esperasse e saiu a correr. Por
alguns instantes, ficaram emudecidos, depois Affery precipitou-se no seu encalo. Jeremy
saiu lentamente do quarto, avanando de lado, como um caranguejo silencioso. Rigaud,
vendo-se sozinho, estirou-se no banco estofado, diante da janela.
O sol j se pusera e o vulto espectral ia avanando pelas ruas, que o crepsculo
obscurecera. Ao atingir as artrias principais, atraiu todos os olhares. As pessoas viravamse, estupefactas, passagem daquele vulto magro e esgazeado, que avanava em passo
rpido e titubeante, envolto no seu estranho vestido preto. Em dada altura, parou, para se
informar do caminho, e depressa se viu rodeada por um crculo de rostos curiosos:
Porque me cercam? - perguntou, a tremer. Uma voz trocista respondeu:
Porque voc maluca!
Tenho tanta lucidez de esprito como qualquer um de vs. Procuro a Penitenciria.
Isso mostra que voc maluca, porque fica mesmo em frente do seu nariz!
No meio das gargalhadas, um jovem de rosto meigo aproximou-se da pobre mulher
e pegou-lhe no brao.
Venha, vou acompanh-la.
Era o pequeno John. conduziu-a ao cubculo, que a ela pareceu um refgio aprazvel,
depois do turbilho do exterior.
Queria ver a Miss Dorrit. Ela est c?
John olhou-a com interesse.
Sim, est c. Mas quem a senhora?
Sou a senhora Clennam.
A me do senhor Clennam? - perguntou o jovem.
Sim. - respondeu ela, aps alguma hesitao.

John conduziu-a a um quarto que pusera disposio da Pequena Dorrit e saiu


sua procura. Pouco depois, a jovem encontrava-se diante dela.
Senhora Clennam - exclamou com meiguice-, teria, por felicidade, recuperado a
sade ao ponto de. Calou-se, ao ver a dor estampada no rosto da idosa senhora.
No se trata nem de cura nem de foras. No sei o que - respondeu com
nervosismo. - Entregaram-lhe um embrulho que devia dar ao Arthur, caso ningum o
reclamasse at os portes se fecharem?
Sim.
Venho reclam-lo.
A Pequena Dorrit tirou-o do corpete e entregou-lho.
Faz alguma idia do seu contedo?
Assustada por a ver ali, to irreal como um espectro, ela fez um gesto negativo.
Ento, leia!
A jovem partiu o lacre e aproximou-se da janela. Depois de ter soltado uma
exclamao de surpresa e de terror, leu em silncio, em seguida virou-se e viu a sua
antiga patroa prosternada diante dela.
Sabe agora o que eu fiz. Reembols-la-ei daquilo a que tem direito. Poder
perdoar-me? Perdoe-me!
Deus testemunha de que lhe perdoo. Mas suplico-lhe, levante-se! Deixe-me
ajud-la.
Ajudou-a a levantar-se, com um olhar solene.
O grande favor que lhe peo, a grande splica que dirijo ao seu corao cheio de
piedade, de nada revelar ao Arthur enquanto eu for viva. Se refletir e achar que ser
melhor dizer-lhe, faa-o. Caso contrrio, poupe-me!
Sinto-me to confusa, que no sei o que dizer. Se tivesse a certeza de que para
nada serviria revelar-lhe.
Sei quanto lhe afeioada e que, antes de tudo, pensar nele. Mas se achar que
possvel poupe-me!
Prometo-lhe.
Deus a abenoe!
Sentindo uma emoo desconhecida invadir-lhe o corao de gelo, a voz embargouse-lhe.
Decerto me vai perguntar - continuou - por que razo lhe confiei o meu segredo
em vez de o revelar ao Arthur. Eduquei-o com severidade e sei que nunca me amou. Era
ainda muito pequeno e j me fitava com uns olhos cheios de terror, os olhos da me, e

isso endureceu-me ainda mais. Mas respeitou-me sempre e cumpriu sempre as suas
obrigaes para comigo. Por nada deste mundo desejaria ser derrubada do lugar que aos
seus olhos sempre ocupei, nem lhe ser apresentada como algum desprezvel. Se isso
tiver que ser feito, nunca mais terei coragem para o encarar!
Soou a primeira sineta, anunciando que as visitas haviam acabado.
Escute - disse a senhora Clennam em sobressalto. - Tenho outra coisa a pedirlhe. O homem que lhe trouxe este embrulho aguarda, em minha casa, para que eu pague
pelo seu silncio e s pagando, posso impedir que o Arthur venha a inteirar-se disto. A
quantia que me exige demasiado elevada para mim, neste momento no a tenho e ele
ameaa-me de, se no lhe pagar, vir ter consigo. Quer acompanhar-me e dizer-lhe que
est a par de tudo. Quer ajudar-me nesta aflio?
A Pequena Dorrit aceitou de bom grado e ambas alcanaram a rua por unias
escadas que evitavam que passassem pelo cubculo.
Era uma bela noite estival, o cu mostrava-se sereno e lindo, todo afogueado pelos
cambiantes do crepsculo e sulcado pelas grandes faixas dos ltimos raios.
As duas mulheres percorreram as ruas silenciosas e desertas e aproximaram-se da
casa, quando ouviram um estrpito medonho, que lembrava o ribombar de um trovo.
Que barulho este? Entremos, depressa! - gritou a senhora Clennam.
Atravessaram o alpendre e faziam meno de se aproximar, quando a Pequena
Dorrit soltou um grito e reteve a companheira pelo brao. Durante um instante fugaz,
viram a velha casa diante delas e o homem que fumava, debruado no parapeito da janela.
Ouviu-se novo fragor, a casa ergueu-se, subiu, cobriu-se de fendas e ruiu. Ensurdecidas,
sufocadas, cegas, as duas mulheres protegiam o rosto, mantendo-se como que
paralisadas. Por um instante, a coluna de poeira dissipou- se, deixando entrever as
estrelas. Quando levantaram a cabea, gritando por socorro, o enorme bloco das chamins
que ainda se mantinha de p, como uma torre na tempestade, tremeu, fendeu-se e abateuse sobre o monte de runas, como que para calcar mais profundamente o miservel que
haviam esmagado.
A senhora Clennam rolou pelo solo. A partir desse instante, nunca mais conseguiu
mexer um dedo ou pronunciar uma palavra. Sobreviveu nesse estado ainda trs anos, antes
de morrer, como uma esttua, mergulhada no seu silncio.
Affery, que sara para as esperar, chegou justamente a tempo de receber a sua
velha patroa nos braos. O mistrio dos rudos que ouvira em casa estava esclarecido:
aquele velho prdio anunciava-lhe a sua queda iminente.
Os cabouqueiros que trabalharam dia e noite retiraram, ao segundo dia, os horrveis
despojos do corpo do estrangeiro. Mas em vo procuraram os restos de Flintwitch. Foram

retirados os escombros e os alicerces postos a descoberto: nada encontraram.


Foi muito mais tarde que correu o boato de algum ter visto passar pelas margens
dos canais de Haia e pelas tabernas de Amsterdo um velhinho ingls, cuja gravata se
retorcia sob uma das orelhas e que dizia chamar-se Mynheer Von Flyntevynge.

EPLOGO
Num magnfico dia de Outono, o recluso da Penitenciria, depauperado mas
restabelecido, escutava uma voz que lia para ele. Os campos dourados haviam sido
mondados e lavrados, os frutos maduros de Vero tinham desaparecido, as mas
avermelhavam nos pomares e as bagas carmesins da sorveira salpicavam a folhagem
amarelada.
Inaltervel e nua, ignorando as estaes com o seu rosto marcado pela pobreza e
pela preocupao, a Penitenciria no fora alegrada por nenhum ornamento. As flores
podiam desabrochar, os seus tijolos e grades exibiam sempre as mesmas searas mortas.
Clennam, todavia, ao escutar a voz que lia para ele, ouvia ressoar nela a Natureza-Me e
todas as msicas com que se embalam criaturas humanas. Quando a voz se calou, tapou
os olhos com a mo, murmurando que a luz era demasiado forte.
Isso depressa acabar, querido senhor Clennam. As cartas que o senhor Doyce
lhe manda vm cheias de amizade e encorajamento e o seu advogado tambm diz que
tudo se vai resolver.
Querida filha! Querida menina! Minha boa amiga! Diga-me a verdade, Pequena
Dorrit, veio c muitas vezes quando eu no a podia ver?
Sim, vim c algumas vezes, mas sem entrar no quarto.
Quantas?
Bastantes - respondeu ela timidamente.
Todos os dias?
Acho - disse ela, depois de hesitar - que vim pelo menos duas vezes por dia.
Ele pegou-lhe na mozinha e abraou-a com fervor.
Querida Pequena Dorrit, no s o meu cativeiro que vai acabar, mas tambm o
meu sacrifcio. Precisamos de nos mentalizar que nos iremos separar para cada um seguir
o seu caminho. No se lembra do que dissemos quando regressou?
Oh, no, no esqueci! Mas aconteceu uma coisa. Sente-se melhor hoje?
Otimamente.
O suficiente para saber a grande fortuna que me calhou?
Sentir-me-ia to feliz! Nenhuma fortuna demasiada para Pequena Dorrit!
Esperei com impacincia para lhe dizer! Tem a certeza que no vai aceitar?
Nunca!
Ela olhou-o em silncio, com uma expresso no seu rosto afetuoso que ele no
compreendeu.
O que antes de tudo lhe quero dizer sobre a Fanny vai deix-lo desolado: a pobre

Fanny perdeu tudo. S lhe restam os honorrios do marido. Tudo o que o pap lhe deu, pelo
casamento, desapareceu, porque o seu dinheiro estava depositado nas mesmas mos. E o
meu pobre irmo! Tambm ele perdeu tudo. E a quanto imagina que a minha prpria
fortuna ascende?
Como Arthur a olhava com apreenso, pousou-lhe a cabea no ombro:
No tenho nada de nada. Sou to pobre como quando aqui vivia. Quando o pap
voltou a Inglaterra, confiou todos os seus bens nas mesmas mos e tudo se dissipou. Oh
meu melhor amigo, mais querido dos meus amigos, tem a certeza de que no quer
agora partilhar a minha fortuna?
Ele estreitou-a contra o peito, deixando correr lgrimas de emoo, enquanto ela
lhe punha os braos em redor do pescoo.
Nunca mais nos separaremos, meu querido Arthur! At ao fim dos nossos dias,
nunca mais! Amo-o tanto! Preferiria passar a minha vida aqui, consigo, saindo todos os
dias para ganhar o nosso sustento, do que possuir a maior riqueza do Mundo! Oh! Se o
meu pobre pai pudesse saber como sou feliz, neste quarto onde ele por tantos anos
sofreu!
Algumas semanas mais tarde, numa bela e soalheira manh, a Pequena Dorrit e
Arthur Clennam subiam os degraus da Igreja de So Jorge, situada perto da penitenciria.
Junto ao altar, eram aguardados por Daniel Doyce: regressado dos pases distantes onde
fizera prosperar as suas descobertas restitura a Arthur a sua fortuna, a sua liberdade e o
seu lugar de scio.
E o casamento foi celebrado diante de um grupo bastante comovido. o senhor
Pancks dava muito galantemente um dos braos a Miss Flora e o outro a Maggie, enquanto
atrs deles se encontravam John Chivery e o seu pai e outros carcereiros que por uns
minutos tinham acorrido a admirar a felicidade do Beb da Penitenciria.
Ao sarem, a Pequena Dorrit e o marido detiveram-se, por um instante, nos degraus
do prtico, para contemplarem o fresco panorama da rua, banhada pela lmpida claridade
outonal. Iam conhecer uma modesta vida de bondade e ventura, inseparveis e
abenoados. Desceram, pois, prazenteiramente, as ruas tumultuosas e, enquanto
penetravam nas sombras e na claridade, o bulcio, a cupidez, a arrogncia, a obstinao e
a vaidade prosseguiam a sua louca ronda.

FIM

Formatao/Converso ePub

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