A Coleção de Arrependimentos de Clover - Mikki Brammer
A Coleção de Arrependimentos de Clover - Mikki Brammer
A Coleção de Arrependimentos de Clover - Mikki Brammer
A coleção de arrependimentos de
Clover
Tradução: Erika Nogueira Vieira
Mark Wickens
Pular sumário [ »» ]
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
Créditos
1
Mas naquele dia não havia entes queridos. Você ficaria surpreso com a
frequência com que isso acontece. Na verdade, se não fosse por mim, pelo
menos metade dessas noventa e sete pessoas teriam morrido sozinhas.
Pode até ser que haja quase nove milhões de pessoas morando aqui, mas
Nova York é uma cidade de gente solitária e cheia de arrependimentos. O
meu trabalho é tornar os momentos finais dessas pessoas um pouco menos
solitários.
Uma assistente social me designou para Guillermo há um mês.
— Tenho que te avisar — disse ela ao telefone. — Ele é um daqueles
velhos cheios de raiva e amargura.
Eu não ligava — isso costumava significar apenas que a pessoa estava
assustada, solitária e sentindo que não é amada. Então, quando Guillermo
mal me cumprimentou nas primeiras visitas, eu não levei para o lado
pessoal. Depois, ao me atrasar para a quarta visita porque sem querer tinha
me trancado do lado de fora do meu apartamento, ele me lançou um olhar
choroso quando me sentei junto de sua cama.
— Achei que você não vinha — disse com o desespero silencioso de
uma criança esquecida.
— Eu prometo que isso não vai acontecer — respondi, apertando sua
mão enrugada e áspera entre as minhas.
E eu sempre cumpro minha palavra. Guiar uma pessoa à beira da
morte nos últimos dias de sua vida é um privilégio, sobretudo quando você
é a única coisa que ela tem para se agarrar.
O dia em que soube que meus pais tinham morrido foi o mesmo dia em
que fiquei sabendo que os porcos rolam na lama para se proteger de
queimaduras de sol.
Era hora do almoço de uma terça-feira na primeira série. Eu estava
sentada junto ao pé do carvalho solitário no pátio da minha escola, entre
duas raízes retorcidas que se estendiam como dedos artríticos. Era lá que
eu passava a maior parte do horário de almoço lendo, enquanto meus
colegas faziam barulho brincando ali por perto. Naquele dia, eu estava
mergulhada em um livro sobre fatos do mundo animal.
O primeiro sinal de que alguma coisa não estava certa foi quando vi a
diretora, a senhora Lucas, cruzando o parquinho e vindo diretamente na
minha direção. O movimento de seu cabelo volumoso combinava com o
ritmo da passada decidida e ela segurava firme seu blazer de poliéster com
um ar de importância. Minha nuca formigava como se um inseto estivesse
correndo sobre a pele, mas quando passei a mão, não tinha nada lá.
Logo atrás da senhora Lucas, em uma formação em V, estavam minha
professora da primeira série e a terapeuta da escola. Como o trio parecia
estar em uma missão, pousei o livro no colo com calma e esperei que elas
chegassem até o carvalho.
— Clover, minha querida. — A melopeia enjoativa da sra. Lucas
parecia suspeita, escorregadia, o tom que os adultos usavam quando
precisavam que você cooperasse. Ela se inclinou para a frente com
afetação, com as mãos cuidadosamente postas entre as rótulas em posição
de oração invertida. — Você poderia vir com a gente até a minha sala, por
favor?
Olhei de uma mulher para a outra que ladeavam a sra. Lucas e notei
seus sorrisos graves. Fiquei me perguntando se alguma coisa que eu tinha
feito naquele dia me renderia algum tipo de castigo. Será que eu tinha
quebrado uma regra sem querer? Eu tentava dar o meu melhor para ser
boa. Talvez eu tivesse me esquecido de devolver um livro à biblioteca.
Sentindo-me ligeiramente em desvantagem, continuei entre as raízes
da árvore, grata por seu abraço protetor.
— Queria ficar aqui embaixo da árvore — respondi, silenciosamente
emocionada com meu pequeno ato de rebeldia. — Ainda estamos no
horário do almoço.
A sra. Lucas franziu a testa.
— Bem, sim, eu sei que o dia está lindo e ensolarado, mas tem uma
coisa que eu, a gente, gostaria de conversar com você e acho que é melhor
se for lá dentro.
Levei minhas opções em conta. Não parecia que a sra. Lucas e suas
guarda-costas de jaleco iam me deixar em paz. Eu me levantei relutante,
entreguei o almanaque animal para a diretora enquanto limpava os galhos
da minha saia xadrez plissada e comecei a caminhar obedientemente rumo
ao prédio da escola.
— Boa menina, Clover — disse a sra. Lucas, devolvendo-me o livro e
seguindo atrás de mim.
A não ser por Leo, que encontrei na caixa de correio no dia seguinte
à morte de Guillermo, dei um jeito de passar os cinco dias seguintes sem
interagir com uma alma sequer. Mas a solidão prolongada sempre era algo
volúvel. A princípio acalmava, me isolando do caos e das expectativas do
ser humano. Depois, de uma hora para a outra, ia do rejuvenescimento ao
isolamento entorpecente.
Sentada no sofá enquanto o sexto dia de reclusão se estendia, incapaz
de me lembrar da última vez que tinha escovado os dentes ou lavado o
cabelo, senti o começo dessa mudança. Era como o comichar denunciador
na garganta antes da amigdalite.
O assalto dos sintomas começou como sempre, com o que eu
costumava assistir. É claro, não há nada de errado em se perder em um
filme romântico ou um programa de tv — é para isso que eles existem.
Mas até eu sabia que havia um limite perigoso entre assistir a algo
vicariamente e assistir para substituir emoções da vida real. O sinal de que
eu estava à beira desse limite era sempre quando eu começava a assistir de
maneira compulsiva, uma vez seguida da outra, às mesmas cenas
românticas, tentando tirar mais da narrativa do que de fato havia ali —
como se, na centésima repetição, uma nova cena pudesse aparecer num
passe de mágica. Hoje eu assisti às partes mais românticas de Da magia à
sedução pelo menos vinte vezes cada. Mas em vez da agradável onda de
oxitocina que eu costumava experimentar assistindo a filmes, senti uma
dor no peito, como se os picos de emoção e depressões de Sandra Bullock
fossem na verdade meus.
Quando você cresce sendo filha única, aprende a viver em sua
imaginação quase com tanta frequência quanto o faz na realidade.
Ninguém pode decepcioná-la — ou abandoná-la — quando você está no
controle da narrativa. Então, quando a constante repetição de uma história
de amor não saciava mais minha dor, muitas vezes eu continuava o enredo
como uma fantasia na minha cabeça, imaginando a vida das personagens
muito depois que davam o beijo final e que os créditos passavam.
Era quando eu sabia que precisava sair de casa e voltar a me conectar
com o mundo real.
Allegra começou a conversa com um artigo com que ela tinha deparado
sobre um traje funerário de cogumelos que transformaria o corpo em
adubo. Seguiu-se um debate acalorado sobre enterro versus cremação, que
também ponderou os méritos de ser enterrado no mar ou doar seu corpo
para a ciência.
— Adorei a ideia de me integrar à terra sendo adubo — disse a
estudante de teatro ateia. — É como se a terra nos nutrisse enquanto
estamos vivos e depois nós a nutríssemos de volta ao morrer.
O turista holandês assentiu enfaticamente.
— Sim, e é muito mais ecologicamente correto do que a cremação,
todas aquelas emissões.
— Então, se eu quiser um enterro no mar, minha família pode me levar
em seu barco de pesca e me jogar no Atlântico? — A mulher ao meu lado
tinha uma forte veia pragmática.
— Não — o cara do suéter de gola rulê respondeu. — Dei uma olhada
nisso por causa do meu tio-avô, que queria ser enterrado no mar. Você
precisa de um monte de tipos de autorizações e outras coisas. Mas tem
uma empresa na Nova Inglaterra que faz isso: leva você em um iate fretado
para um cruzeiro de dia com um piquenique de almoço antes de lançar o
corpo no mar.
Esse vai e vem era sempre divertido — a maioria dos nova-iorquinos
não tinha vergonha de dividir suas opiniões. Eu preferia responder
mentalmente para não ter que suportar o escrutínio coletivo da sala. De
qualquer forma, eu ficava intrigada sobretudo com as ideias das outras
pessoas sobre a morte como um conceito abstrato.
No meu trabalho, lidava com pessoas que estavam em processo de
morte e tinham alguma clareza sobre as coisas. Saber que a morte é
iminente parecia permitir que elas lidassem com uma ideia de completude
— como se tivessem uma última peça para encaixar no quebra-cabeça de
suas vidas e soubessem exatamente onde ela cabia. Havia certa liberdade
em não ter futuro sobre o qual especular. Mas, para a maioria das pessoas,
a morte era uma incógnita — um evento inevitável e nebuloso, que podia
acontecer dali a minutos ou décadas. E, pela minha experiência, aqueles
que preferiam não pensar nela durante a vida tendiam a ter mais
arrependimentos na hora da morte. Eu gostava de fazer um jogo comigo
mesma nesses cafés da morte: adivinhar como cada pessoa na sala
processaria sua passagem. Algumas, como Allegra, a acolheriam
graciosamente. Para outras, como o retardatário Sebastian, ela
provavelmente suscitaria pânico e arrependimento.
Eu só esperava que elas tivessem alguém como eu para ajudá-las a
passar por isso tranquilamente.
Uma das muitas coisas que eu amava em George era que ele nunca
tinha pressa em sair para se aliviar. Suspeitei que tivesse se condicionado a
se segurar por pura preguiça, mesmo com sua última ida ao banheiro tendo
sido oito horas atrás.
Isso significava que eu poderia adiar nossa saída do prédio até tarde da
noite, depois que os carregadores tivessem ido embora. Com sorte, até lá, o
novo vizinho estaria ocupado dentro do apartamento abrindo caixas.
Para a satisfação de George, esperei até as onze da noite antes de enfiá-
lo em sua roupinha e apanhar sua coleira. Como ele em geral gostava de
cheirar a escada ao descer, eu o carreguei no colo, me arrastando pelo
segundo andar para não atiçar as tábuas barulhentas do piso. Gostando do
luxo de ser carregado, George me observou intrigado, como se quisesse
indicar o quanto aquilo tudo era ridículo. Quando chegamos à caixa de
correio, percebi que tinha prendido a respiração durante todo o caminho.
Minha tentativa de furtividade havia sido inútil.
Assim que empurrei a porta da frente, uma mulher da minha idade
estava subindo os degraus da entrada, com uma sacola de papel pardo na
mão. Enfiando um cacho de cabelo escuro dentro do gorro de lã, ela abriu
um sorriu largo.
Eu me senti como um rato flagrado petiscando na cozinha.
— Você deve ser a Clover! — A mulher pulou os últimos degraus para
se juntar a nós no alto. — Conheci Leo quando vim pegar a chave outro
dia e ele me contou tudo sobre você. — Ela estendeu a mão para me
cumprimentar, ainda que meus braços estivessem obviamente ocupados
por quase vinte e cinco quilos de buldogue em uma roupinha xadrez de
inverno. — Eu sou Sylvie.
Segurei George como um escudo, mudando o peso dele de lado na
minha bacia para que eu pudesse estender a mão por debaixo de seu
traseiro corpulento.
— Oi — cumprimentei, irritada com Leo. — Bem-vinda ao prédio? —
A minha intenção não era que isso saísse como uma pergunta, mas o
deslize na entonação me traiu.
Os olhos castanhos de Sylvie revelaram diversão.
— E quem é esse bonitão? — Ela roçou a parte posterior dos dedos na
cabeça de George. Ele olhou para ela com um sorriso bobo, a língua
pendurada preguiçosamente de lado.
— Ah, é o meu cachorro, George. — Eu me contraí. É claro que era
um cachorro.
— Prazer em conhecê-lo, George — Sylvie disse no tipo de voz
caricatural que os humanos reservam para animais e bebês. — E você
também, Clover. Espero poder conhecê-la melhor em breve!
Um meio sorriso assombrado foi tudo que consegui oferecer. Era como
se ela fosse uma abelha zumbindo erraticamente em torno da minha
cabeça — talvez se eu ficasse bem parada e a ignorasse, ela fosse embora
por iniciativa própria.
O silêncio desajeitado não pareceu incomodar Sylvie, que manteve a
expressão de branda diversão.
— Bem, estou vendo que você e George estão indo dar uma volta,
então não vou atrapalhar vocês — disse ela, procurando as chaves no bolso
do casaco. — Meu pho está ficando frio, de qualquer modo.
— Prazer em conhecê-la — afirmei, descendo apressada os degraus
restantes. — Uma boa-noite para você.
— Para você também! Ah, e Clover… — Sylvie começou a vasculhar
seu chaveiro para a mais nova adição. — Vamos tomar um café um dia
desses!
— Ah, sim. Claro.
Sem olhar para trás, andei com tudo para o mais longe possível do
prédio antes que George tivesse a chance de escolher um lugar para se
abaixar. A ansiedade deixou a minha garganta apertada quando a
caminhada que eu tinha feito milhares de vezes de repente me pareceu
estranha. As luzes da rua brilhavam intrusivas. As rachaduras na calçada
pareciam mais traiçoeiras. Corri em direção à biblioteca, ainda repudiando
as tentativas de George de exercer seu direito de parar e farejar.
Eu me senti emboscada. E irritada comigo mesma por não estar mais
preparada com uma desculpa de improviso. Meu nervosismo tinha me
feito aceitar rápido demais o convite de Sylvie. Depois de tomar café com
alguém, você não pode voltar a cumprimentar com a cabeça educadamente
na escada.
E quanto mais você fala com alguém, mais motivos a pessoa tem para
rejeitá-lo.
Eu tinha cometido esse erro com Angela, uma australiana que morava
no apartamento do segundo andar dez anos atrás. Algumas semanas depois
de se mudar, ela me convidou para ir conhecer uma casa de chá nova no
bairro. Eu até fiquei levemente empolgada com a ideia de fazer uma nova
amizade — minha primeira, exceto por Leo.
Enquanto tomávamos nosso matcha, pensei que nosso programa social
estava indo bem. Eu não estava nervosa demais e até a fiz rir algumas
vezes. Mas então eu disse a ela qual era a minha profissão — que eu tinha
escolhido ver pessoas morrerem — e a conversa ficou forçada na mesma
hora. Do nada, Angela se lembrou de que tinha outro compromisso e saiu
correndo sem terminar seu matcha latte. E durante o resto do ano em que
ela morou no prédio, mal trocou duas palavras comigo.
Eu já sabia como reconhecer aquela reação. Eu tinha visto isso
inúmeras vezes desde então, sempre que eu mencionava meu trabalho para
os outros. A forma como o corpo das pessoas ficava tenso, como elas
evitavam fazer contato visual. A maneira como elas misteriosamente nunca
tinham tempo para uma conversa. Era como se a minha mera presença
pudesse de alguma forma agilizar sua mortalidade.
Eu não ia me deixar cair na mesma armadilha com Sylvie. Era mais
seguro rejeitá-la antes que ela me rejeitasse.
Talvez eu pudesse simplesmente fingir estar ocupada demais — pela
duração do contrato dela.
8
Uma hora mais tarde, meu avô e eu voltamos a pé para o apartamento com
os livros que tínhamos escolhido debaixo do braço — ele com uma
biografia grossa do cientista Louis Pasteur, eu com um guia abrangente de
uma vila mística de gnomos. Eu sabia exatamente como a gente ia passar o
resto da tarde. Meu avô se sentaria em sua poltrona de veludo cotelê, eu
me acomodaria em um pufe a seus pés e juntos nós fugiríamos para
mundos diferentes nas páginas dos nossos livros. A previsibilidade era
reconfortante e andei rápido para chegar em casa o mais rápido possível.
Como o clima estava excepcionalmente quente naquele dia, as calçadas do
nosso bairro de West Village estavam lotadas. Enquanto acompanhava a
passada do meu avô, ziguezagueando entre os pares de pernas, examinei as
pessoas que passavam, imaginando cada uma delas como um palito de
fósforo parcialmente queimado.
Por quanto tempo será que meu avô e eu ficaríamos acesos?
9
***
A exaustão rebocava meus pés, cada passo exigia mais esforço do que o
anterior enquanto eu vencia a pé os últimos quarteirões até o meu
apartamento. Mas enquanto esperava o sinal abrir na Sétima Avenida, o
que avistei na esquina oposta me animou.
Um casal estava emaranhado em um beijo, alheio ao fervor do mundo
ao redor.
O bipe da faixa de pedestres foi se transformando em uma cadência
urgente e os pedestres impacientes responderam a ele como a um tiro de
largada.
Mas eu continuei imóvel, observando os amantes com curiosidade. A
mulher estava ligeiramente na ponta dos pés, segurando a barra da jaqueta
do homem, mas eu não conseguia dizer se era por paixão ou por uma
necessidade de estabilidade gravitacional. Os pés dele estavam fincados
em uma postura ampla, uma concessão física instintiva para reduzir a
discrepância entre a altura dos dois.
Senti alfinetadas de culpa por me intrometer na intimidade deles, mas
eu não conseguia desviar o olhar. Meu corpo formigava. Meu estômago
revirava. Eu conseguia sentir a investida inebriante por tabela. Será que
uma narrativa dramática precedera o beijo? Se eu tivesse chegado minutos
antes, quem sabe teria visto o cara correndo atrás dela antes de declarar
seu amor na frente de todo mundo. (Ou vice-versa — eu preferia meus
temas recorrentes mais contemporâneos.) Ou talvez eles fossem melhores
amigos que finalmente tinham tomado coragem para expor o que sentiam
um pelo outro depois de muitos anos. A ocitocina encapotou meus
sentidos como um cobertor macio e quente enquanto eu imaginava as
possibilidades de narrativas.
Mas então minha fissura logo deu lugar a um anseio profundo.
Eu tinha esperado por trinta e seis anos pacientemente — quando é
que eu ia sentir um toque delicado como aquele?
Fechando os olhos, inspirei o vapor do leite com canela que fervia em fogo
baixo na panela de cobre. Entre o meu avô e eu, o cabo estava manchado
por três décadas de uso em dois lugares distintos. Esmigalhando o
chocolate no leite, comecei a misturá-lo de forma cadenciada. O líquido
marrom cremoso formava uma espiral meditativa conforme eu o derramava
do lado da panela que tinha uma prega.
Enquanto eu fechava as mãos ao redor da caneca de cerâmica, um
desejo familiar me aborrecia. Um cabo de guerra incongruente entre a
necessidade de solidão e a ânsia de conexão emocional — eu não queria
companhia, mas não queria me sentir sozinha.
Meu avô entenderia. Pelo menos era isso o que tinha aprendido a dizer
a mim mesma. E eu já havia falhado com ele, então uma fraqueza a mais
não ia fazer diferença.
Coloquei uma cadeira no canto da janela, depois pousei minha caneca
no parapeito e me enrolei no cobertor de alpaca. Apaguei todas as luzes da
sala, deixando apenas a da rua que entrava, levantei devagar a persiana
para que o movimento fosse imperceptível do lado de fora. George se
aproximou, pronto para assumir seu papel naquela sequência que ele
conhecia tão bem. Eu o puxei para o meu colo e levei o binóculo até os
meus olhos.
A luz da sala do outro prédio brilhava forte, como um farol para o meu
navio. Lá estavam eles, como era costume por volta dessa hora da noite,
sentados em ângulos retos um de frente para o outro na mesa de jantar.
Julia e Reuben.
Não eram seus nomes verdadeiros, é claro. Ou pelo menos,
provavelmente não eram seus nomes verdadeiros; na verdade, eu não os
conhecia pessoalmente. Mas os conhecia intimamente. Sabia que Reuben
cozinhava quase sempre, mas que Julia sempre escolhia o vinho — em
geral um tinto — e que bebia duas taças enquanto ele tomava uma. Que
sempre paravam para um beijinho durante o jantar, como se fosse um
limpador de palato entre a salada e o prato principal. Que quando eles
assistiam à tv no sofá — Reuben sempre à esquerda de Julia —, ele
distraidamente desenhava círculos nas costas dela, enquanto ela passava os
dedos carinhosamente pelos cabelos dele.
Esta noite, observei Reuben abraçando Julia por trás enquanto ela
lavava a louça, estendendo o braço para tirar uma mecha solta de seus
olhos para que ela não precisasse usar as mãos molhadas e enluvadas. E
depois, mais tarde, o jeito como eles mergulhavam alternadamente as
colheres no pote de sorvete que compartilhavam enquanto os créditos de
abertura de um filme bruxuleavam em seus rostos.
Eu me sentia bem com seu vínculo íntimo — um amor implícito em
vez de declarado — como se aquilo pertencesse a mim.
Gradualmente, o anseio em meu peito começou a diminuir.
15
Era uma sensação fora do comum entrar de fato no café com alguém — eu
estava acostumada a ir direto para a mesa de um só assento no canto. Dei
uma olhada nas pessoas agrupadas em duplas e trios nas mesas ao redor e
invejei sua desenvoltura. Será que elas percebiam que aquela era uma das
primeiras vezes que eu ia tomar café com alguém? Será que a Sylvie
percebia?
Quando nos sentamos, comecei a brincar com os pacotinhos de açúcar
no centro da mesa para me distrair do nervosismo que apertava minha
bexiga.
— Então — disse Sylvie, aparentemente imune a constrangimento —,
eu sei o que é uma doula de parto, mas o que exatamente faz uma doula da
morte?
O pânico atravessou as minhas costelas. Leo devia ter contado a Sylvie
sobre meu trabalho e eu realmente gostaria que ele não tivesse feito isso,
eu não queria assustá-la.
Mas enquanto apertava os cintos para o olhar de julgamento e pavor
que eu tinha aprendido a reconhecer em outras pessoas sempre que eu
revelava a minha profissão, ele não apareceu. A expressão de Sylvie era
aberta e amigável, como se ela estivesse genuinamente interessada na
minha resposta.
Ainda assim continuei com cautela.
— Bem, se você parar para pensar, é basicamente a mesma coisa, só
que meio ao contrário — falei, organizando os pacotinhos de açúcar em
uma fila ordenada. — Uma doula de parto ajuda a trazer alguém à vida, e
uma doula da morte ajuda a pessoa a ir tranquilamente embora dela.
Sylvie arqueou uma sobrancelha curiosa.
— Mas você não é médica, certo? Você chega a ter algum treinamento
médico?
— Algumas doulas da morte têm, mas eu não sou desse ramo. Acho
que o que eu faço é mais… empírico — eu disse, procurando as palavras
corretas. Eu nunca tive que explicar meu trabalho detalhadamente, porque
era raro que as conversas chegassem tão longe. — Estou ali apenas para
fazer companhia e ouvi-las, e também as ajudo a fazer as pazes com
quaisquer erros ou arrependimentos, coisas assim. E se elas não têm mais
ninguém, vou estar lá para segurar a mão delas enquanto estão morrendo.
— Nossa, que pesado — disse Sylvie. — Você não acha deprimente?
Acho que eu não aguentaria ver as pessoas morrerem uma depois da outra.
Ia realmente mexer comigo.
— Acho que acabei aprendendo a blindar meus sentimentos. — Eu
estava orgulhosa daquela força. — Sou melhor no meu trabalho se não
estiver emocionalmente envolvida.
As sobrancelhas de Sylvie flertavam com ceticismo.
— Você não derrama nem sequer uma única lágrima de vez em
quando? Sabe, nos casos em que o coração aperta?
— Não — eu disse, dando de ombros. — Na verdade, eu não choro
nunca.
— Nunquinha? Tipo, nunca na vida em geral? Nem nos filmes tristes?
Balancei a cabeça.
— Não. — Outro fato que apresentei como um distintivo de mérito.
Sylvie me olhou curiosa.
— Menina, não tenho certeza se isso é saudável. Só porque você não
sente seus sentimentos, não quer dizer que eles não existam.
— Para mim funciona. — A defensiva na minha voz me surpreendeu.
— Se você está dizendo. — Mas ela claramente não estava convencida.
— De qualquer forma, aposto que você já ouviu algumas confissões bem
loucas de gente no leito de morte.
Pensei nos cadernos na minha estante. A essa altura, eu tinha anos de
confissões, algumas mais sórdidas que outras. Mas eu levava meu dever
ético a sério: eu jamais revelaria uma palavra deles a vivalma.
— Acho que ouvi algumas.
Sylvie se inclinou sobre a mesa.
— Então, alguém já te pediu para sair e fazer alguma loucura para
ajudá-lo a resolver seus assuntos inacabados?
— Eu ajudei pessoas a fazerem telefonemas difíceis ou escreverem
cartas de desculpas. Mas em geral é um anticlímax, porque na maioria das
vezes eles deixam para tarde demais e a pessoa ou já está morta ou não
consegue ser encontrada a tempo.
— Ai, cara, que tristeza. Espero que isso nunca aconteça comigo. — A
animação dela diminuiu brevemente. — Mas, de novo, acho muito difícil
guardar rancor. Depois de alguns dias, em geral eu esqueço o que tinha me
deixado chateada a princípio.
Isso fazia todo o sentido — se Sylvie tivesse um rabo, aposto que
ficaria abanando o tempo todo. Não pude deixar de me sentir um pouco
encantada por seu entusiasmo geral pela vida. Era reconfortante.
— Então… você é historiadora de arte? — A maioria das pessoas adora
falar sobre si, então raramente notavam quando eu desviava o foco para
elas.
— Sou, sim! — disse Sylvie. Então inclinou a cabeça de lado e me
observou, como se examinasse uma obra de arte em busca de seu
significado. — Mas não pense que passou batido você ter acabado de
mudar de assunto.
— Tá, desculpa. — Eu me atrapalhei para prosseguir. — E você é de
Nova York?
— Não, de Chicago. — Uma pitada de bravata enrijeceu sua postura.
— Sempre jurei que nunca moraria em Nova York, mas cá estou. Eu
trabalhei em um museu de arte em Tóquio por dois anos e então o The
Frick me fez uma oferta que não dava para recusar. Nunca diga nunca,
imagino.
— Eu amo Tóquio. Passei uns meses lá quando tinha vinte e poucos
anos, na época em que estava fazendo minha tese. — Eu não esperava
encontrar algo em comum com Sylvie tão rápido.
— Espera, o que você estuda exatamente para se tornar uma doula da
morte?
Eu me encolhi diante do olhar escrutinador do garçom enquanto ele
pousava os cafés na mesa.
— Todo mundo tem um caminho diferente, como eu disse. — Esperei
até que o garçom fosse embora para continuar. — Mas fiz minha tese em
tanatologia.
— Que é…
— O estudo da morte.
— Não é possível. Essa é uma formação de verdade? Que legal.
Legal. Uma palavra que eu nunca tinha ouvido ser usada para me
descrever.
— Bem, tem muita coisa em que você pode focar, mas eu estudei as
tradições da morte de diferentes culturas. Era isso que eu estava fazendo
no Japão.
Um grito estridente na mesa ao lado desviou nossa atenção. Uma
garota britânica de cabelo cacheado estava esfregando freneticamente uma
mancha de cold brew que corria por seu vestido branco enquanto sua
acompanhante tentava represar o conteúdo que derramava da mesa.
— Aqui, toma. — Sylvie entregou para a garota um punhado de
guardanapos com um sorriso simpático, depois se virou para mim. —
Então você viaja muito?
— Na verdade, não mais… por causa do trabalho. — A garota só
estava piorando a mancha ao esfregá-la.
— Difícil programar quando as pessoas morrem, hein? — Sylvie
polvilhou açúcar em cima de seu latte. — Mas você já está sabendo que eu
vou fazer um milhão de perguntas sobre o seu trabalho, não é?
Era lisonjeador ela me achar remotamente interessante.
— O que você quer saber?
— Para começo de conversa, como você passou de viajar pelo mundo
estudando as tradições da morte a ficar aqui em Nova York trabalhando
como doula da morte?
Mexi meu café preto, decidindo se queria me aventurar naquele
assunto.
— Voltei para casa depois que meu avô morreu, o que meio que me
levou a isso. Eu realmente não viajei desde então.
— Sinto muito… Leo disse que vocês eram muito próximos.
— Obrigada. Nós éramos mesmo. — Enquanto eu afastava o
aborrecimento do peito, me perguntava se havia alguma coisa que Leo não
tinha dito a ela. — Mas onde é que você morava em Tóquio?
Sylvie graciosamente deixou minha óbvia mudança de assunto colar.
— Em Ginza, a maior parte do tempo. Eu tinha um apartamento muito
fofo. Te mostro umas fotos dele da próxima vez.
Próxima vez. A ideia de passar tempo com ela novamente desencadeou
uma sensação pouco conhecida de possibilidade. Era como calçar um
sapato de couro novo e duro pela primeira vez — do tamanho certo, mas
ainda ligeiramente desconfortável.
Então era assim que acontecia o início de uma amizade?
16
***
Fiquei bem satisfeita comigo mesma por conseguir acompanhar a maioria
dos movimentos. O fato de que os repetimos diversas vezes e que eu podia
imitar todo mundo ao meu redor ajudou. O desafio era controlar meus
devaneios — Sylvie teve que me cutucar diversas vezes para me avisar que
já tínhamos passado para a postura seguinte.
Para aterrar minha mente, tentei imaginar a coisa menos estimulante
que consegui.
Uma pedra. Uma pedra marrom e entediante.
— Posso encostar em você?
O pedido sussurrado e surpreendente partiu de Amelie, que vagava
pela sala ajustando as posturas das pessoas.
Outra pergunta que nunca tinham me feito antes. Minhas orelhas
começaram a queimar.
— Hum, tá, tudo bem — sussurrei de volta, imitando o tom da
professora, já que obviamente havia uma regra implícita que proibia falar
num volume normal.
Amelie se ajoelhou atrás de mim quando eu estava curvada para a
frente e colocou as mãos na parte superior das minhas costas. A pressão
quente e firme era uma sensação desconhecida, mas agradável, e meu
corpo despertou. Eu não corria mais o risco de devanear.
— Isso mesmo — Amelie arrulhou baixinho. — Só respiiiiire ao se
alongar.
Tentei me lembrar da última vez que eu tinha sido tocada de maneira
tão prolongada e significativa. O único toque que eu costumava ter era
com a mão dos clientes, para confortá-los ou ajudá-los a se sentarem e se
levantarem de poltronas e camas. Mas tudo isso era a serviço deles.
Aquela foi a primeira vez em anos que eu fui tocada com tamanha
expressão de cuidado e energia destinados apenas a mim.
Como Claudia era muito frágil para andar sem ajuda, nossa pretensa fuga
estava mais para um vagar, enquanto eu empurrava a cadeira de rodas pela
avenida Amsterdam. Apesar do calor fora de época da tarde, o corpo cada
vez mais minguado dela tremia por causa da brisa leve.
— Você trouxe sua câmera, querida? — perguntou Claudia, apertando
os olhos para as nuvens enquanto nos sentávamos a uma mesa de plástico
bamba do lado de fora da pizzaria sem firulas. — A luz está perfeita hoje:
sem muito brilho.
Eu estava chateada comigo mesma por não ter levado algum tipo de
aparelho de fotografia, só para me sentir menos como uma fraude.
— Não trouxe, infelizmente.
Claudia ficou imperturbável.
— Por que você não traz da próxima vez e podemos falar de alguns
exercícios básicos para você começar?
— Seria ótimo. — Eu esperava encontrar uma câmera básica que não
fosse muito cara. Ou talvez eu devesse pedir para Sebastian arcar com isso.
E, já que ele estava fazendo isso, com o tempo extra que eu tinha
empregado pesquisando a respeito do assunto. — Mas eu adoraria ouvir
sobre sua carreira na fotografia. Deve ter sido uma escolha muito pouco
convencional para uma mulher na década de 1950.
— Você nem imagina. — A amargura preencheu os espaços entre as
palavras de Claudia. — Meu pai quase me deserdou quando eu disse que
era isso que eu ia fazer. Por sorte, puxei a teimosia da minha mãe, e ela
proibiu meu pai de me proibir.
— Uau, sua mãe estava à frente do tempo dela. — Nossas fatias de
pizza chegaram e eu me perguntei se deveria invocar minhas melhores
maneiras à mesa e comer com garfo e faca.
— Estava e não estava — disse Claudia, apanhando entusiasmada sua
fatia com as mãos. — Minha mãe me disse para ir para a faculdade e
correr atrás da minha paixão enquanto fosse possível, o que, na cabeça
dela, era até eu encontrar um marido. Segundo ela, a carreira das mulheres
não deveria interferir no casamento. — O queijo derreteu de seus lábios
com batom e ela fechou os olhos de prazer.
— Como você conheceu seu marido?
— Ele era amigo do meu irmão — disse Claudia. — Depois da
faculdade, consegui um estágio em uma revista aqui na cidade. Fui a
primeira estagiária mulher... E ele já morava aqui. Meu irmão e meu pai
pediram para que ele ficasse de olho em mim e…
— Vocês se apaixonaram? — A perspectiva de uma história romântica
disparou uma quantidade vertiginosa de endorfinas pelo meu corpo.
— Não exatamente. Naquela época, a gente tinha que fazer escolhas
mais práticas. Estar apaixonada não era um pré-requisito para se casar. Na
verdade, era uma surpresa se isso acontecesse. — Claudia limpou a
gordura do queixo com um guardanapo de papel. — Posso dizer que nos
admirávamos, só que o mais importante era o fato de que meus pais o
consideravam uma escolha adequada.
Recuperei-me rapidamente.
— Ah.
— Sinto muito decepcioná-la, minha querida. — Claudia deu um
tapinha na minha mão. — Eu sei que vocês jovens estão decididos a seguir
o coração. Aquele meu neto parece se apaixonar toda semana, mas
suponho que você já saiba disso.
Eu me ocupei com o restante da minha pizza, mas, pelo resto da tarde,
não pude deixar de me perguntar sobre as entrelinhas do que ela havia
dito.
Enquanto voltava para o metrô depois de acompanhar Claudia até sua casa
em segurança, pensei nos pais dela. Eles pareciam controladores, mas
também deve ter sido bom ter uma mãe que tentava assegurar que alguém
cuidaria de você a vida toda.
Meu avô nunca falou muito sobre a minha mãe, mas eu percebi que
minha chegada ao mundo não tinha sido exatamente planejada. E embora
ela tenha cumprido biologicamente o papel de mãe, acho que nunca o
assumiu instintivamente. Eu não conseguia me lembrar de qualquer sinal
da ternura e do carinho que as mães nos filmes pareciam apresentar tão
naturalmente. Nada de abraços calorosos, de amarrar laços no cabelo, de
fazer cupcakes. Às vezes eu gostava de imaginar que ela poderia ter sido
assim se tivesse tido a chance de desabrochar na maternidade. Quando
você fantasia o suficiente sobre alguma coisa, pode quase parecer que é
verdade.
Mas, sem nenhuma influência feminina, me guiei pelos obstáculos da
puberdade com a ajuda de livros da biblioteca da escola (meu avô me
apresentou uma explicação científica para o que estava acontecendo com
meu corpo e me deu dinheiro para comprar os aparatos menstruais
necessários, mas não foi de muita ajuda para além disso). E quando
minhas colegas começaram a usar maquiagem, tentei reproduzir seus
esforços usando produtos da farmácia que combinavam. Mas sem ninguém
para me aconselhar sobre o tom de pele — ou as vantagens de não pesar a
mão — os resultados me fizeram principalmente desistir da maquiagem
para o resto da vida.
Eu sabia que o meu avô fazia o melhor que podia em relação a mim,
mas muitas vezes me perguntava quais outras habilidades importantes para
a vida eu estava perdendo por causa da ausência da minha mãe.
Será que eu era de certa forma menos mulher?
21
Com a mão pronta para bater na porta de Sylvie, avaliei minha roupa uma
última vez. Eu não ia sair do prédio para valer, então não queria parecer
que tinha me esforçado muito. Mas também não queria que passasse a
impressão de que eu não tinha ligado — e minha roupa de ficar em casa
tendia a ser desleixada. Uma calça jeans e meu suéter de lã mais bonito
foram a decisão final.
Respirei fundo e dei três batidinhas. Meu nervosismo aumentou com o
som de passos do outro lado.
A porta se abriu e revelou Sylvie com seu sorriso radiante de sempre.
Por lógica, eu sabia que Sylvie sempre sorria como seu ponto de partida
natural, independentemente de quem estivesse na frente dela. Mas seu
olhar quente e estudado tinha também um jeito de fazer com que eu me
sentisse muito mais interessante do que eu realmente era.
— Clover! Estou tão feliz por você estar aqui. Passei o dia ansiosa para
colocar a conversa em dia. Sylvie deu um passo para o lado e estendeu o
braço para me acolher. — Foi um dia de merda no trabalho e eu só quero
esquecer. Estou tão feliz em ver um rosto amigo!
— Obrigada por me convidar. — Eu não estava acostumada a
asserções entusiásticas da minha presença. Estendi a garrafa de vinho para
ela. — Trouxe isto pra você.
— Aaaah, obrigada — disse Sylvie, girando a garrafa na palma da mão
para examinar o rótulo. — Um tinto australiano. Você escolheu bem para
mim.
Eu queria abraçar o elogio, mas essa era uma mentira que eu podia
evitar.
— O cara da loja de vinhos me ajudou a escolher.
Sylvie apertou um olho.
— Você está falando daquele da 3 Oeste? O chato que fala como se
você nunca tivesse visto uma uva antes, quem dirá uma garrafa de vinho?
Meus ombros relaxaram.
— Ele foi um pouco condescendente.
— Um pouco é eufemismo — disse Sylvie. — Às vezes eu gosto de ir
lá e perguntar sobre vinhos obscuros só para vê-lo suar por não saber a
resposta. Minha madrasta é enóloga, então confio muito mais no
julgamento dela do que no dele. — Ela ergueu a garrafa. — Aposto que ele
ia ter ficado puto se soubesse que você estava comprando esse vinho para
mim.
Uma risada nervosa foi tudo o que consegui invocar.
— Vamos abrir isso — disse Sylvie, indo até o balcão da cozinha. —
Correndo o risco de soar como uma cretina, você se importaria de tirar os
sapatos?
No meio do passo, interceptei o toque do meu pé no chão e me
esgueirei de volta para a porta, envergonhada por ter violado as regras da
casa de Sylvie.
— É claro, desculpa.
Meias eram permitidas? Eu tirei as minhas, só para ter certeza.
— Não tem problema nenhum. — Sylvie sorriu. — Sabe, eu nunca
pensei que seria uma daquelas pessoas cuzonas que fazem todo mundo
tirar o sapato. Mas depois de morar no Japão por alguns anos, não consigo
me forçar a usá-los em casa. — Ela gesticulou para os bancos altos
alinhados no balcão. — Senta!
Estruturalmente, o apartamento era uma cópia exata do meu, exceto
pelo fato de ter sido reformado nos últimos vinte anos. (Eu limitava as
chamadas de manutenção a emergências, como banheiro inundado, para
que o dono do apartamento não tivesse motivo para aumentar meu aluguel
baixo, que era praticamente uma lenda urbana.) Esteticamente, o
apartamento de Sylvie era a antítese do meu. Tínhamos exatamente o
mesmo número de janelas, com a exata mesma vista, mas o apartamento
dela era inexplicavelmente muito mais iluminado, mesmo no cair da noite.
— Você ainda está decorando? — perguntei, examinando o lugar muito
pouco mobiliado. Nem um único tom da paleta fugia do branco, creme,
cinza-claro ou madeira. Uma obra de arte minimalista solitária estava
acima do sofá, mas as paredes, de um alabastro brilhante, estavam vazias.
Pilhas esporádicas de livros, todas as lombadas adeptas à paleta de cores
serena, estavam cuidadosamente dispostas sobre a mesa de centro e o
aparador. As estantes estavam relativamente vazias, a não ser por um
punhado de objetos bem espaçados, como cerâmica lisa, uma vela que
parecia cara e um vaso de vidro com folhas secas de eucalipto.
E, ainda assim, tudo de alguma forma ainda parecia aconchegante.
Sylvie riu.
— Não, é isso mesmo. Acho que todo aquele minimalismo japonês
também me atropelou. Embora meu gosto sempre tenha se inclinado um
pouco para Agnes Martin. — Ela olhou ao redor. — Deus, eu sou um
clichê millennial completo, né?
— Você não coleciona suvenires quando viaja ou algo assim? —
Mesmo que fosse apenas um imã de geladeira, eu sempre gostava de trazer
de volta algum tipo de lembrança dos lugares que tinha visitado. Por um
tempo, recolhi pedras e conchas até perceber as implicações culturais e
espirituais de surrupiá-las.
Sylvie franziu o rosto.
— Nah, eu não sou muito fã de coisas. Prefiro guardar só memórias de
experiências como recordação. A única coisa que tento fazer em todos os
lugares para onde vou é uma aula de culinária, para aprender um prato do
lugar. Falando nisso… — O aroma de coco picante e capim-limão encheu
o ar quando ela destampou uma panela fervendo em fogo baixo. — Espero
que goste de comida tailandesa.
Ainda que Sylvie tivesse poucas coisas, uma delas era uma câmera
digital meio chique. E ela estava mais do que empolgada para me
emprestar.
— Você está de brincadeira? Pega a minha emprestada! — Sylvie tinha
dito quando perguntei se ela sabia alguma coisa sobre comprar câmeras. —
Estou tão viciada em toda essa farsa fotográfica com a senhora à beira da
morte e o neto dela... eu ficaria honrada em desempenhar um pequeno
papel na saga.
Uma tarde chuvosa no Upper West Side significava que minha “aula” com
Claudia estava confinada ao interior da casa. Nós nos sentamos em uma
ponta da mesa da cozinha em frente a uma natureza-morta improvisada
composta de um arranjo de frutas e um bule de porcelana ornamentado. A
aula era sobre profundidade de campo.
— Nunca fui fã dessas vinhetas chatas de objetos inertes — disse
Claudia. — Mas ela vai te ajudar a aprender como alterar a profundidade
de campo e o foco na sua fotografia.
— O que é que você mais gosta de fotografar então? — Olhei no visor,
meu polegar e meu indicador formando um C enquanto eu ajustava a
lente.
— Seres humanos, é claro — disse Claudia, como se a resposta fosse
óbvia. — Eles são muito mais interessantes do que uma maçã ou uma
banana. Ou uma paisagem, aliás.
— Aposto que tem uma verdadeira arte por trás disso, de tirar fotos de
pessoas. — Pousei a câmera em cima da mesa. — Essas fotos nas paredes
do corredor são impressionantes. Qual é o segredo para tirar uma boa foto
de alguém?
Os olhos de Claudia brilharam.
— Paciência.
Minha mente retornou por um instante à lição do meu aniversário no
parque com o meu avô. Eu toquei a tristeza para longe e me concentrei em
Claudia.
— Como assim?
— Antes de fazer uma foto de alguém, eu reservava um tempo para
conhecer a pessoa. Perguntava sobre seus sonhos de infância, suas
memórias mais caras, as pessoas que elas mais amavam — contou Claudia.
— E então, enquanto elas conversavam, eu começava a clicar.
— Então você estava meio que cutucando a essência interior delas.
— Precisamente. Se envolver com as pessoas as ajuda a baixar a guarda
e a estarem vulneráveis. Sentir. E é disso que se trata a fotografia: fazer as
pessoas se sentirem “olhadas”. É claro, nós olhamos para as pessoas todos
os dias, mas é raro pararmos para realmente enxergá-las por quem elas são.
— Faz sentido — falei, embora não tivesse certeza de ter me sentido
olhada daquela maneira.
— A parte mais triste, minha querida — Claudia disse, soltando a
pulseira de ouro que estava enroscando na manga do seu cardigã — é o
que a maioria de nós faz com as pessoas que amamos. Ficamos presos a
uma rotina e olhamos para elas como sempre, sem enxergar nelas as
pessoas que se tornaram ou as pessoas que se esforçam para ser. Isso é
uma coisa terrível de fazer com alguém que você ama.
— Eu nunca de fato pensei nisso dessa maneira. — Será que eu tinha
feito isso com o meu avô? Talvez ele fosse diferente do homem que
ocupava constantemente as minhas memórias.
— É libertador se abrir e ser enxergado de verdade por alguém — disse
Claudia. — Nem todo mundo consegue experimentar isso na vida.
— Mas você conseguiu?
Claudia observou as gotas de chuva se chocarem contra a janela.
— Há muito tempo, e eu rezo para que isso aconteça com você
também. — Ela deu um tapinha na minha mão. — Mas a lição que eu
espero que você aprenda, e que eu não aprendi, é não deixar pra lá.
Selma entrou apressada na cozinha segurando um copinho de plástico
com remédios.
— Hora dos seus comprimidos, Claudia. Vou até deixar você tomá-los
com pasta de amendoim desta vez.
— E se eu quisesse com geleia de framboesa? — rebateu Claudia.
Selma suspirou, impaciente.
— A pasta de amendoim pelo menos tem um pouco de proteína.
Geleia de framboesa é puro açúcar.
As mulheres se entreolharam desafiadoramente, nenhuma disposta a
recuar. Para evitar ter que tomar partido, me ocupei passando as imagens
na câmera. Eu estava bastante satisfeita com o meu progresso — talvez
aquele ardil com Claudia tivesse seu valor, no fim das contas.
O breve impasse terminou quando Selma se rendeu.
— Tudo bem. Pode tomar com uma colher de chá de geleia e uma de
pasta de amendoim.
— Suponho que seja um meio-termo justo — Claudia concedeu com
altivez.
Entregando os remédios envoltos em acompanhamentos para um café
da manhã, Selma voltou a sair apressada do quarto.
Claudia se inclinou para mim.
— Na verdade, eu prefiro pasta de amendoim. Mas é tão divertido
pegar no pé dela.
— Ela só está tentando fazer o trabalho dela. — Eu me senti
compelida a defender Selma de novo. Os cuidadores ficavam
sobrecarregados com tarefas extremamente desagradáveis, das quais eu
estava feliz em não ter que tomar parte, sobretudo quando o corpo de um
cliente começava a parar de funcionar.
— Ah, você tem o coração tão puro, minha querida — riu Claudia. —
Só estou tentando me divertir um pouco antes que a minha hora chegue.
Depois de um instante, mantive meu tom neutro.
— Hora de quê?
O vermelho-escuro de Yves Saint Laurent se juntou em riachos
enrugados ao redor dos lábios de Claudia.
— Porque você tem o coração tão puro, vou liberá-lo de ter que
participar desse fingimento.
— Fingimento? — O suor comichou minhas axilas.
— Eu sei que estou morrendo, querida — disse Claudia, calmamente.
— E também sei que a minha família acha que estou vivendo a bênção da
ignorância sobre esse fato.
— O que você quer dizer? — Talvez eu conseguisse tentar dizer que
não sabia de nada.
— Meu filho instruiu o médico a não me contar o diagnóstico;
extremamente antiético, é claro, mas meu filho às vezes tem uma moral
questionável. Suspeitei que não estivessem me contando toda a verdade e
eu mesma telefonei para o hospital.
Eu estava secretamente furiosa com Sebastian por me deixar lidar com
aquilo. Eu não tinha escolha a não ser botar tudo a limpo.
— Sinto muito, Claudia.
— Você é a menos culpada de todos, querida. — Ela apontou para a
porta por onde Selma havia saído recentemente. — E eu valorizo o esforço
de Sebastian para me oferecer uma companhia estimulante que não seja
daquelas responsáveis pela minha saúde. Eu gostei muito das suas visitas.
— Eu também. — Mas eu ainda me sentia cúmplice da traição.
— A questão é — Claudia disse, chamando minha atenção — você é
mesmo só uma amiga dele interessada em fotografia?
Eu me contorci.
— Bem, eu me interesso por fotografia. Mas não, não exatamente.
— Eu imaginei — disse Claudia, satisfeita consigo mesma. — E
então?
— Eu sou… uma doula da morte.
Suas sobrancelhas grossas saltaram.
— Uma doula da morte — repetiu ela, como se experimentasse as
palavras pela primeira vez. — Olha, essa não estava entre as muitas teorias
que eu tinha sobre sua identidade. Devo dizer que essa reviravolta é bem
intrigante.
— Estou grata por você encarar isso dessa forma — eu disse, com a
culpa me consumindo. — Peço desculpas por não ter contado a verdade
antes.
— Já passou — disse ela, gesticulando como se estivesse enxotando
uma mosca. — Agora, me diga para o que é que você está aqui, se não é
para aprender sobre fotografia.
— Hum, bem, como você disse, estou aqui para te fazer companhia,
mas também para te ajudar a resolver quaisquer pendências que você
queira resolver no tempo que lhe resta. E também só para conversar a
respeito, quando você estiver pronta.
Claudia riu sem entusiasmo.
— Meu neto provavelmente lhe informou que a nossa família nunca
foi aberta a discutir a morte. É “inapropriado”, como eles dizem. — Ela
afastou uma mecha de cabelo grisalho da têmpora. — E embora eu não
esteja de acordo com o fato de eles tomarem a decisão em meu nome,
entendo suas intenções. Nós brancos, anglo-saxões e protestantes
tendemos a expressar o amor de maneiras um tanto estranhas.
— Isso é muito nobre de sua parte. Você gostaria de conversar sobre
alguma coisa agora? — perguntei gentilmente. — Para constar, nenhum
assunto está fora de jogo.
— Obrigada, querida. Vamos só terminar nossa aula de fotografia por
hoje. Você está se mostrando meio promissora. É uma pena que você não
esteja correndo atrás disso.
— Nunca se sabe: talvez você tenha me inspirado. — Fiz uma pausa
antes de pegar a câmera. — Mas você ainda quer que eu continue vindo?
— Claro que sim, querida — disse Claudia. — Você é a coisa mais
interessante que me aconteceu em anos. Não vou abrir mão disso com
tanta facilidade.
Eu queria me sentir aliviada. Mas tudo o que não saía da minha cabeça
era que eu tinha deixado Sebastian me manipular muito facilmente.
Depois que mandei meu primeiro coquetel para dentro — uma libação à
base de bourbon e alecrim — a tensão no meu corpo diminuiu de leve.
— Então, eu queria agradecer por tudo o que tem feito pela minha avó.
— Sebastian descansou o braço no espaldar da banqueta atrás de mim,
mas não me tocou. — É tão melhor agora que tudo está às claras, mesmo
que meu pai ainda não queira mesmo falar a respeito.
— Estou feliz por ter ajudado — eu disse, ciente do calor de sua axila
envolvendo meu ombro. — É o meu trabalho, afinal de contas.
O celular de Sebastian, que estava virado para cima na mesa, acendeu.
Uma série de mensagens de texto jorrou na tela.
Repassando as mensagens, ele fez uma careta.
— Ah, cara.
— Está tudo bem? — Tomara que Claudia ainda não tivesse piorado.
— Sim — disse ele. — É só uma garota que eu meio que estou
namorando. Ela é supercarente e sempre quer saber o que estou fazendo.
E a gente nem é monogâmico, sabe? Acho que ela é um pouco obcecada.
— Ele voltou a colocar o celular na mesa sem responder às mensagens. —
Eu definitivamente não vou dizer que estou com você, isso a deixaria
louca.
Eu não conseguia decidir se isso era algum tipo de gentileza ou um
ligeiro desrespeito para com a outra mulher. Talvez fosse o jeito dele de me
dizer que aquilo não era um encontro. Ou que era um encontro. Aflita, dei
um jeito de mudar de assunto.
— Então, há quanto tempo você toca violoncelo?
— Desde que eu era criança. — Se ele notou meu desconforto, não
demonstrou. — Eu nunca fui de fato atlético. Minhas irmãs herdaram a
porção desse gene da nossa família, e além do mais eu era muito alérgico,
então minha mãe me mantinha bastante dentro de casa. No meu décimo
aniversário, minha avó me levou à loja de instrumentos musicais e me
disse que eu poderia escolher qualquer um para aprender a tocar e eu
escolhi o violoncelo. Não me pergunte por quê. Olhando para trás, eu
realmente deveria ter escolhido algo mais descolado, como uma guitarra,
ou pelo menos um instrumento que fosse mais fácil de carregar. Andar
pela cidade com um violoncelo é meio infernal.
— Posso imaginar. — Tentei esconder meu sorriso imaginando
Sebastian, que provavelmente tinha no máximo um e setenta de altura,
tentando passar com um instrumento enorme em meio a um trem lotado
de nova-iorquinos que eram preciosistas quanto a seu espaço pessoal.
Ele tomou um gole de seu Bellini e depois lambeu os lábios.
— Você toca alguma coisa?
— Meu avô tinha um banjo velho que aprendi a tocar sozinha. Eu
adoraria aprender piano, mas não cabe um no meu apartamento.
— Nem um teclado elétrico?
— Meu apartamento já está bem lotado.
— Ah, você mora com alguém? — Seu tom era de afetadamente
casual.
— Só com meus bichos de estimação. Tenho dois gatos e um cachorro.
— Uau, é bastante bicho.
— Na verdade, não. Você não tem nenhum animal de estimação?
Sebastian balançou a cabeça.
— Sou alérgico a gatos e cachorros, então ficaria péssimo se tivesse.
Ele esfregou o nariz, como se fosse alérgico ao pensamento.
— Que triste para você.
Ele deu de ombros.
— Nunca fui muito dos bichos de qualquer jeito.
No final da noite, três coquetéis depois, eu ainda não tinha chegado a uma
conclusão concreta sobre se estávamos ou não em um encontro. O braço
ficou sem exatamente encostar em mim a maior parte da noite, o cheiro
dele assaltando minhas narinas cada vez que ele se inclinava para tomar
um gole da sua bebida. Era uma mistura bastante comum de roupas que
passaram tempo demais em uma gaveta, sabonete líquido aromatizado
artificialmente e uma pitada de transpiração.
Estudei seu rosto enquanto ele falava, tentando decidir se era atraente
(Sylvie sem dúvida exigiria detalhes amanhã). Ele tinha uma pele bonita e
suas bochechas cheias eram fofas, mas era difícil fazer uma avaliação
definitiva com ele de óculos e a luz tão fraca. Eu sem dúvida não o achei
pouco atraente e sua companhia não era terrível. Eu provavelmente
poderia gostar mais dele à medida que o conhecesse.
— Maravilha — disse Sebastian, enfiando o recibo no bolso depois de
insistir de maneira espalhafatosa em pagar. — Eles esqueceram de nos
cobrar por uma das bebidas.
— Não deveríamos dizer algo para o garçom?
— Nah. É culpa deles se não prestaram mais atenção. — Ele se
levantou e vestiu o casaco. — Vamos?
— Eu encontro você lá fora — respondi, com a minha jaqueta ainda
debaixo do braço. — Só vou ao banheiro.
Os coquetéis continham muito poucas bebidas diuréticas, então não
precisava de fato usar o banheiro. Passei alguns minutos lavando e
hidratando minhas mãos com o creme do frasco elegante âmbar preso à
parede. Enquanto eu navegava por entre a multidão de urbanoides
glamorosos ao voltar para o bar, nosso garçom, um universitário magricela,
estava tirando os copos vazios da nossa mesa.
Dei a ele uma nota de vinte dólares enquanto saía.
O dia em que soube que o meu avô tinha morrido foi o mesmo dia em
que soube que o Camboja é o único país do mundo a ter um prédio na
bandeira.
Era uma quarta-feira, três dias depois do meu aniversário de vinte e
três anos, e eu estava espremida com um homem e uma mulher adultos
em um assento de ônibus para dois, com a minha mala no colo e uma
gaiola de galinhas vivas alojadas no corredor. Nós estávamos naquele
mesmo arranjo à la Tetris pelas últimas duas horas, chacoalhando por uma
estrada estreita em algum lugar entre a capital cambojana, Phnom Penh, e
a cidadezinha de Takeo, no sul do país. Com suor escorrendo pelas
sobrancelhas, sonhávamos todos com a destreza de abrir uma janela para
um vestígio de ar fresco. A combinação letal de calor, titica de galinha e
odor corporal patente havia levado minha náusea ao ponto do delírio.
Tudo o que eu podia fazer era me concentrar em meramente existir.
A viagem vertiginosa era a última da minha estadia de dois meses
naquela nação do Sudeste Asiático, onde eu estava estudando as tradições
budistas cambojanas da morte. Eu tinha uma passagem reservada para
voltar para Nova York via Cingapura na quinta-feira, o que significava que
eu chegaria em casa a tempo de tomar o café da manhã com o meu avô no
restaurante de sempre no domingo.
Eu não sentia o conforto de sua presença havia quase um ano e estava
ansiosa por ela.
Antes do Camboja, eu estive no Peru, estudando as tradições incas da
morte. E antes disso, na Sorbonne, em Paris, terminando minha tese em
tanatologia. O grosso da minha pequena mala não era de roupa, mas das
pilhas de cadernos que eu preenchia com todas as observações das
viagens. Eu estava contando os dias para compartilhá-las com o meu avô,
vendo-o mexer o café pensativamente enquanto examinava metodicamente
cada página.
Nossa conversa mais recente tinha acontecido na manhã da segunda-
feira anterior — domingo à noite, no horário de Nova York. Eu me
esgueirei do meu beliche no quarto do albergue e fui até o velho telefone
de discar que ficava em um banquinho no canto da área comum. Era a
única hora em que era possível falar ao telefone em paz. E a forma como o
sol da manhã entrava pelas cortinas me lembrou do nosso apartamento em
Nova York.
— Clover, minha querida… Eu estava pensando agorinha que já faz
mais de um mês desde que tive notícias suas.
A conexão metálica roubava o costumeiro timbre rico de barítono do
meu avô, me fazendo sentir ainda mais saudade dele.
— Desculpa, vô — eu disse, um calor envolvendo meu corpo ao ouvir
sua voz. — Eu devia ter ligado antes.
Mesmo na ligação ruim, sua risada baixa e grave era cativante como
sempre.
— Imaginei que você estava com muitas outras coisas ocupando sua
cabeça além do seu velho avô.
— Você está sempre na minha cabeça. — A culpa doeu. — Mesmo
que eu não ligue o bastante para lhe dizer isso.
— Não se preocupe, querida. Quando não tenho notícias suas, sei que
quer dizer que você está se divertindo. E isso me deixa muito feliz.
Fechei os olhos e o imaginei sentado em sua poltrona verde, uma perna
cruzada sobre a outra, o vapor de seu café do fim da tarde dançando no
brilho aconchegante da luminária de leitura.
— Então… — ele continuou. — Conte para mim o que significa
morrer no Camboja.
Mudei o telefone para o outro ouvido, tentando ficar confortável.
— É diferente de como a gente faz no mundo ocidental, com certeza.
— Ah, sim, os budistas e a reencarnação deles.
— Pois é, então o processo de fato de morrer é superimportante para o
renascimento de alguém na próxima vida.
— Intrigante… Como assim?
— Bem, eles costumam ter um monge por perto quando alguém está
morrendo, para ajudá-los a se preparar para a próxima vida. — Estava
orgulhosa de ser eu a ensinar-lhe alguma coisa, para variar. — E eles
também acreditam que depois que a alma sai do corpo, muitas vezes ela
permanece no local onde eles morreram. Às vezes a alma está confusa ou
assustada, então o monge precisa estar lá para acalmá-la e guiá-la para a
próxima vida. É bem bonito, na verdade: a ideia de ajudar a conduzir
alguém para próxima vida.
— É sim — disse o meu avô. — Que privilégio deve ser poder fazer
isso por alguém.
Mesmo passados sessenta anos desde que ela conheceu Hugo Beaufort,
Claudia descreveu para mim o dia com uma nuance tão vívida que aquilo
poderia ter acontecido na semana passada.
Tudo começou com um cachorro de três patas preso na entrada de
uma livraria em Marselha, na França, em 1956.
A ausência de qualquer espécie de brisa tornava aquele dia quente de
julho insuportável. O tipo de dia em que a alma mais vaidosa abre mão de
qualquer preocupação com a aparência. Todo mundo apresentava a mesma
camada brilhante de suor, então não havia escolha a não ser aceitá-la.
Claudia lamentou especialmente a decisão de usar calças naquele dia.
Desde que havia chegado na França meses antes para cobrir o ponto
culminante na busca da Tunísia por independência, tinha começado a usá-
las por praticidade. Não era hora de fazer rebuliço com vestidos; uma
camisa de botões branca e calças de linho eram muito mais confiáveis e
fáceis de colocar na mala. E mesmo que não fossem, os comentários
desaprovadores dos colegas homens sobre como seu traje era inadequado
significavam que ela também os usaria só por rebeldia. A cada cenho
franzido de censura, ela enfiava as mãos nos bolsos e perambulava com
contente desafio.
Naquele dia em particular, porém, Claudia se permitiu um momento
de autocomiseração enquanto devaneava com o frescor que um belo
vestido de verão ofereceria em condições tão sufocantes. (Parecia uma
injustiça ainda maior que ela estivesse tão perto do Mediterrâneo sem o
menor sinal de alguma brisa do mar.)
Ela também lamentou sua recusa em permitir que o dono indecoroso
do apartamento em que estava lhe desse uma carona até a estação de trem.
Como Claudia tinha conseguido rechaçar os avanços dele durante toda a
estadia dela em Marselha — a qual tinha usado como base para sua
reportagem na Tunísia —, dar a ele a satisfação de carregar sua mala era
uma vitória da qual ela não estava disposta a abdicar. A alça de couro da
mala velha escorregava em sua mão suada, então ela a apertou com
determinação e voltou a ajeitar a bolsa volumosa no ombro. A
independência compensava um pouco de desconforto. Além do mais, ela
tinha que fazer uma última parada antes de embarcar no trem para Paris.
Uma derradeira compra para lhe fazer companhia na longa viagem de volta
à sua casa, Nova York.
A livraria Le Bateau Bleu ficava a cerca de cinco minutos a pé do Vieux
Port de Marselha e a dez minutos do minúsculo apartamento no sótão que
Claudia havia alugado por um valor ínfimo. A livraria tinha sido seu
refúgio, seu oásis, um espaço seguro contra as ondas de saudade e solidão.
Os livros tinham sido seu consolo ao longo de uma criação turbulenta com
pais que se detestavam. Durante o constante conflito verbal que
reverberava nas paredes da casa enorme, Claudia se enfiava no armário
com um travesseiro e uma lanterna e se perdia dentro de um livro. Depois,
já adulta, sempre que estava precisando de um momento de calma, fugia
correndo para a livraria mais próxima (conhecia a maioria das de
Manhattan). E embora seu noivo nunca tenha gostado muito de ler,
sempre sabia onde encontrá-la depois que tinham tido uma discussão.
O coração de Claudia inchou quando ela virou a esquina da rue
estreita onde a Le Bateau Bleu ficava, exatamente no meio da ladeira. Seu
toldo era pintado de um vermelho cereja incongruente, o que irritava os
puristas locais, porque não combinava com a paleta mediterrânea de
pastéis e ocres com que sonhava o restante da cidade. Mas aquele espírito
rebelde só tinha feito Claudia gostar ainda mais da livraria.
Uma lasca de sombra — a silhueta arqueada de um poste de luz —
cortava a calçada do lado de fora da loja. Um Jack Russell desgrenhado
tinha esticado o corpo para caber entre os limites estreitos da sombra — a
barriga encostada no concreto frio, o rosado de suas patas traseiras
apontando para o céu. O cachorro abriu um olho exaurido quando a
sombra da própria Claudia cruzou seu caminho. Ela pousou a mala no
chão e enxugou as mãos úmidas no linho das calças (pelo menos elas
serviam para alguma coisa) e se ajoelhou junto do cachorrinho
desmazelado. Gentilmente respeitando seu espaço, ela ofereceu a mão
para uma farejada de inspeção. O cachorro pulou todas as formalidades,
encostando a testa na palma da mão dela, com apreço. Ficou sentado e
Claudia percebeu que o ombro direito dele simplesmente acabava no
próprio peito, como se nunca tivesse havido uma perna ali.
Ela sacou um frasco dentre os pertences bem embalados da bolsa e
serviu um pouco de água morna em sua mão em concha. O cachorro
bebeu agradecido, parando para lamber seu pulso como se dissesse uma
palavra a mais de agradecimento. Quando ela foi tomar um gole da garrafa
de metal, só havia um restinho. Não se arrependia de ter dividido o que
restava.
A porta da livraria tiniu alegre ao abrir e Claudia se levantou para não
bloquear o caminho. Pela maneira como o cachorro ficou animado,
imaginou que o jovem parado na porta era o dono. Seu emaranhado de
cachos também combinava com o desmazelo da pelagem do Jack Russell.
— Matelot! — O homem dirigiu-se ao fiel amigo com entusiasmo,
curvando-se para embalar o focinho dele entre as mãos bronzeadas e
calejadas. Então, como se lembrasse das boas maneiras, ele se endireitou
de repente, com o sorriso largo exibindo uma pequena lacuna entre seus
dois dentes da frente.
— Boa tarde, mademoiselle. — Tinha um sotaque forte, mas falava
com desenvoltura.
Envergonhada por ser tão obviamente estrangeira, Claudia desejou ter
praticado mais seu francês.
— Boa tarde — disse ela, notando a pequena meia lua de uma cicatriz
formando uma falha na barba do seu queixo. — Eu estava só dizendo um
“oi” para seu amigo aqui. Você disse que o nome dele é Matelot?
— Sim, Matelot! Significa marinheiro. Como eu! — A cicatriz ficou
menor quando ele sorriu. — Ele é o meu… como é que se diz… ajudante
de convés?
A ideia daquele homem navegando pelos mares com seu marinheiro
desmazelado de três patas era encantadora. Claudia indicou a pilha de
livros debaixo do braço dele com a cabeça.
— Imagino que você tenha bastante tempo para ler no barco, então?
— Sim, pretendo velejar para a Córsega amanhã. — O homem apertou
os livros com apreço junto das costelas. — E eles vão me fazer companhia.
— Ouvi dizer que a Córsega é uma ilhota adorável — disse Claudia. —
Infelizmente, eu não conheço.
— Bem, não é tarde demais, sabe. Vi que você já está de malas prontas
para a viagem.
Em outros homens, aquela ousadia teria sido sórdida. Mas naquele
jovem francês magricela, era encantadora.
— Infelizmente estou a caminho da estação de trem — disse Claudia,
com decepção genuína.
— Na verdade — ele respondeu, acentuando cada sílaba —, você está
a caminho da livraria.
— Você me pegou no flagra.
— Quem sabe depois da livraria e antes da estação de trem, você não
toma uma bebida com a gente? — Tanto o homem quanto o cachorro
olharam para ela esperançosos.
— Bem, eu não conheço você.
— Então vamos acertar isso. — O homem limpou a mão livre na
camisa e a estendeu. — Eu sou Hugo.
Ela enxugou a própria mão antes de apertar a dele.
— E eu sou Claudia.
— É um prazer conhecê-la, Claudia. — A cicatriz desapareceu em
uma covinha. — E, se me permite, gostei das suas calças.
Pedi a Leo para passear com George apenas uma hora depois. Eu não ia de
jeito nenhum pedir a Sylvie. Eu não sabia se queria voltar a falar com ela.
Balancei os braços enquanto subia as escadas, tentando me livrar da
vergonha por ter me permitido ser tão idiota. Não conseguia acreditar que
tinha me permitido imaginar que éramos amigas.
— Você está bem, garota? — Leo franziu a testa preocupado depois de
eu ter feito o pedido na sua porta. — Você parece meio agitada.
— Estou sim! — Forcei um sorriso. — É só muita coisa para organizar
para a viagem. Muito obrigado por cuidar de George enquanto eu estiver
fora. Vai ser só uma noite.
— É melhor que seja, não quero saber de você dando o cano em nosso
próximo jogo.
— Jamais.
Saboreei a risada de Leo quando ele fechou a porta. Algo consistente a
que eu ainda podia me agarrar.
Estava no meio do caminho até meu apartamento quando ouvi passos
na escada.
Droga. Eu deveria ter esperado mais uma hora.
— Ei, C., que bom que ainda te peguei! — O tom impreterivelmente
entusiasmado de Sylvie, que eu costumava achar tranquilizante, fez a dor
em meu plexo solar disparar. Eu precisava aprender melhor a desligar essa
emoção.
— Oi, Sylvie. — Mantive a expressão neutra.
Ela estava com um envelope na mão.
— Colocaram isto na minha caixa de correio por engano. Parece um
cheque, então imaginei que provavelmente ia querer receber mais cedo ou
mais tarde.
— Obrigada. — Evitei contato visual enquanto recebia o envelope.
— Então, estou louca para saber o que você decidiu sobre Hugo! —
Ela se inclinou casualmente contra a parede junto da minha porta. — Você
vai tentar encontrá-lo?
— Vou para o Maine com Sebastian amanhã. — Tudo o que eu queria
fazer era entrar correndo no meu apartamento e bater a porta.
— Com Sebastian? Está de brincadeira! Mal posso esperar para ouvir
sobre isso. — O sorriso de Sylvie se alargou. — Ei, acabei de comprar uma
garrafa ótima de Tempranillo do cara condescendente dos vinhos. Quer
descer e me contar tudo tomando uma taça?
— Não posso, tenho que arrumar a mala para amanhã. — Entrei um
pouco mais no meu apartamento. — Sebastian vem me buscar bem cedo.
— Tudo bem, sem problema — disse ela, se afastando do batente da
porta. — Mas você pode pelo menos me dizer por que está agindo
estranho?
Mexi na minha pulseira, tentando pensar em uma desculpa.
— O que você quer dizer?
— Bem — ela disse de uma forma ao mesmo tempo zombeteira e
séria. — Vamos começar com o fato de que você está evitando olhar nos
meus olhos.
Eu me forcei a encará-la. Assim que o fiz, a dor começou a arder de
novo.
Como Sylvie poderia se intrometer entre duas pessoas que se amavam
tão claramente? E por que ela não achava que eu era uma amiga boa o
bastante para me contar?
Como Julia podia fazer aquilo com Reuben? Ele ia ficar arrasado.
Eu inspirei devagar, tentando acalmar a raiva que crescia no meu peito.
Não funcionou.
— Como é que você pode arruinar o casamento de Julia assim? —
Minha voz era aflitivamente aguda. Eu esperava que Leo estivesse com a
tv ligada bem alto. — Ela e Reuben são felizes juntos. Eles estão tão
felizes há anos.
As sobrancelhas de Sylvie se enrugaram confusas.
— Quem é Júlia?
— A mulher que você estava beijando esta tarde na frente do café! —
Não me importava que minhas bochechas estivessem vermelhas. — Eu vi
vocês duas!
A expressão no rosto de Sylvie era irritantemente inescrutável a
princípio, depois foi se voltando para suspeita.
— A mulher que eu estava beijando se chama Bridget.
Ah. Tá. Julia era o nome que eu tinha dado a ela. Quando comecei a
espiar ela e o marido na privacidade da casa deles. Minha cabeça começou
a girar quando a realidade do que eu tinha acabado de revelar veio à tona.
Sylvie tombou a cabeça, curiosa.
— E como é que você sabe que ela é casada? — Ela cruzou os braços
sobre o peito. — E por que é que você se importa com isso?
O rubor desceu até o meu pescoço quando a vergonha começou a
percorrer meu corpo.
— Achei que você e eu éramos amigas — sussurrei, olhando para o
tapete do corredor.
Então tudo que eu podia fazer era dar um passo para trás e fechar a
porta, afundando no chão e na confusão de emoções que eu mesmo tinha
bagunçado.
35
Com a bolsa de couro pendurada no ombro, dei uma última olhada na sala
de estar. Uma pontada de desejo de viajar veio à tona quando eu pensei em
como fazia tempo que eu não saía para viajar. Pelo menos cinco anos, e
apenas durante um fim de semana na Filadélfia para ver uma exposição
sobre piras funerárias em um museu. Meu amor por viagens parecia ter
morrido junto com o meu avô. Era como se eu estivesse abandonando a
memória dele se eu passasse muito tempo longe do apartamento.
Cheguei à escadaria da frente do prédio exatamente um minuto antes
do horário combinado com Sebastian. Ele estacionou um Chevrolet Spark
preto alugado vinte e cinco minutos depois.
Baixou a janela e acenou.
— Desculpe, tive um pouco de dificuldade para acordar tão cedo.
— Tudo bem. — Fiquei irritada por ele não ter se preocupado o
suficiente em chegar na hora. Ou talvez eu estivesse só sensível demais.
Pelo menos ele tinha aparecido. — Obrigada por me buscar.
— Que isso. — Sebastian alcançou debaixo do volante e apertou o
botão para abrir o porta-malas, acenando para minha bolsa. — Deve ter
espaço lá atrás junto da minha mala.
Ele observou pelo espelho retrovisor enquanto eu tentava encaixar a
bolsa ao lado de sua mala, enorme. (Ele pretendia ficar fora mais de uma
noite?) Depois de tentar várias vezes encaixar minha bolsa grandalhona ao
lado da mala, desisti e a coloquei no banco de trás. Quando me juntei a
Sebastian na frente, fiquei aliviada por seu cabelo estar tão desleixado
quanto o meu.
Procurei meu celular no casaco para ver no Google onde havia lojas de
artesanato por perto e o senti vibrar com uma ligação.
Era um número que eu não tinha salvo, mas parecia cedo para me
comprometer com um novo trabalho, mesmo que Claudia não tivesse
muito mais tempo. Minha mandíbula se destravou quando vi que não era
Sebastian ou Sylvie.
Liberei a calçada para deixar um grupo de corredores vestidos de neon
passar.
— Alô, aqui é a Clover.
A única resposta que ouvi foi um latido.
— Alô? — repeti, um pouco impaciente.
— Ah, oi, Clover. — A voz familiar fez meu coração martelar. Outro
latido animado. — Gus! Calma, cara. — Som de estabanamento com o
celular. — Desculpa, Clover, espera um segundo.
— Hum, claro. — A paisagem do parque ficou desfocada enquanto
minha mente disparava por todas as possíveis razões pelas quais Hugo teria
me ligado. Talvez eu tenha esquecido meu cachecol no Curious Whaler.
— Pronto, voltei — disse Hugo. — Desculpa. Gus estava tentando
perseguir um esquilo. Ah, e aliás, é o Hugo.
— Oi. — Esperei que a ansiedade que costumava desencadear com
telefonemas batesse, mas isso não aconteceu.
— Espero que não tenha problema eu estar ligando. — Eu podia ouvir
o sorriso em sua voz. — Pedi seu número para os meus amigos que são
donos do hotel em que você ficou. Para ser honesto, estive me
perguntando se seria assustador fazer isso, mas então decidi que você
provavelmente ia querer saber.
— Saber o quê? — Uma energia inexplicável zunia sob minha pele.
— Bem, alguns dias depois de vocês estarem aqui, eu decidi por fim
mexer em uma caixa de coisas do meu avô que ele tinha deixado no barco.
Eu vinha protelando isso havia meses. — Sem dúvida eu me identificava
com isso. — E tinha uma caixa de sapatos velha lá.
— Certo… — Ele ia revelar alguma coisa sensacional sobre como o
avô escolhia calçados?
— Acontece que são todas cartas de Claudia e algumas que ele
escreveu, mas que nunca mandou. Há uma foto dela lá também.
Patinar no gelo realmente tinha feito minhas pernas parecerem
gelatina.
— Você leu alguma delas?
— Só uma. — A risada nervosa dele era enternecedora. — Mas era tão
íntimo. Não de um jeito sexual, graças a Deus, mas apenas pelo anseio
daquilo tudo. Eu fico tão triste por eles nunca terem conseguido voltar a
ficar juntos.
O tom baixo e gentil da voz de Hugo era tranquilizador.
— Eu também.
— Mas eu estava pensando que vê-las e saber que ele as guardou
poderia ajudar Claudia… se não for tarde demais. Como se eu pudesse
fazer uma última coisa por ele. — Outro latido de Gus. — Como é que ela
está?
Eu me lembrei da minha última conversa com Sebastian e me senti
vingada — quem sabe as cartas fossem suficientes para convencê-lo a me
deixar contar tudo para Claudia.
— Não acho que ela tenha muito mais tempo, uma semana na melhor
das hipóteses, talvez. Provavelmente não daria tempo de você mandá-las
para cá pelo correio. — Fiquei imaginando quanto custaria um portador
desde o Maine. Mesmo que fossem algumas centenas de dólares, eu
estaria disposta a pagar se isso significasse dar a Claudia uma pequena
sensação de fechamento.
— Na verdade — disse Hugo, — Gus e eu estamos em Nova York
agora. Tive que vir para uma coisa do trabalho. — Um carro de bombeiros
gemeu confirmando. — Vamos voltar para casa hoje à noite, mas talvez eu
possa te encontrar em algum lugar e deixar as cartas com você hoje à tarde.
— Hum, claro, seria ótimo. — Com o peito martelando, tentei
loucamente pensar em um bom ponto de encontro. Depois da reação
crítica de Sylvie ao meu apartamento, de jeito nenhum eu convidaria outra
pessoa para entrar lá. — Tem um café gostoso no meu bairro que aceita
cães. Posso te mandar uma mensagem com o endereço.
Era imprudente aceitar tão rápido me encontrar com uma pessoa que
era praticamente um estranho? Ou como já tínhamos jantado juntos, talvez
isso fizesse de nós conhecidos. Parecia tão fácil falar com ele.
— Ótimo — disse Hugo, radiante. — Não vejo a hora de te ver, Clover.
Minhas pernas já não doíam tanto.
***
O café estava ainda mais lotado do que da última vez que eu tinha ido ali,
com Sylvie. Pareceram anos, não meses, desde aquele primeiro café juntas.
Era difícil para mim admitir, mas eu sentia falta da companhia e dos
conselhos francos dela.
O pânico revirou meu estômago enquanto eu perscrutava o lugar em
busca de uma mesa vazia. Eu não tinha um plano B, mas, sobretudo, eu
não queria decepcionar Hugo. O estômago se aquietou quando avistei uma
única mesa livre: a minha favorita, no canto, de um só lugar.
— Aqui, senta, eu vou arrumar outra cadeira — disse Hugo.
Eu o vi se aproximar de duas mulheres do outro lado da sala,
observando como elas jogavam os cabelos brilhantes e riam como se ele
tivesse feito uma piada muito engraçada e não apenas pedido para usar a
cadeira extra. Senti os olhos delas me examinando, questionando minha
presença enquanto ele se sentava diante de mim. Até a garçonete entregou
nossos cafés como se eu fosse uma ideia tardia, sua atenção presa apenas
em Hugo enquanto ela pousava as bebidas entre nós. Fiquei grata por Gus
estar com a cabeça encostada na minha perna debaixo da mesa.
Mas Hugo parecia ignorar todo mundo, menos eu.
Nas vezes em que estive com Sebastian, ele sempre parecia distraído,
olhando para as outras mesas ao redor ou para o celular, como se estivesse
conferindo se tinha alguma coisa mais interessante acontecendo. Gostei do
jeito como Hugo ouvia atentamente o que eu falava, captando detalhes
comuns e perguntando sobre eles como se realmente quisesse saber a
resposta.
Quase esqueci que estávamos lá para ler as cartas.
Você sempre vai pensar que a última vez que nos vimos foi pela janela do trem quando
você foi embora da estação de Marselha, naquele dia úmido de julho.
Mas, na verdade, foi em Nova York, em um dia de novembro com muito vento. Eu fui
àquela livraria em Midtown, a que você me disse que era a sua favorita. A que você disse que
ia sempre que precisava sentir conforto e segurança.
Era uma forma de ainda senti-la mesmo que você não estivesse lá. De quem sabe
encostar nos mesmos livros em que você já tinha encostado, de admirar a mesma arquitetura
que você tanto amava.
Mas você estava lá em carne e osso, com ele. Fiquei lá em cima no mezanino olhando
com inveja. Ele colocou a mão nas suas costas e você sorriu para ele com aquele brilho no
olhar — aquele que eu, tão egoísta, achei que existia só para mim.
Eu vim para Nova York por você. Se você não podia morar na França, eu me mudaria
para cá por você. Mas naquele dia na livraria eu vi que você estava melhor sem mim. Você
estava sendo cuidada e estava feliz. Então eu não disse nada. Acabei de ver você ir embora de
mãos dadas com ele.
Você estava certa: esta não é a vida certa para nós dois. Eu vejo você na próxima.
Claudia parecia ainda menor do que quando eu a tinha visto pela última
vez dois dias antes. Os olhos dela se abriram quando a porta se fechou e
ela conseguiu abrir um ligeiro sorriso.
— Ah, graças a Deus. Achei que eram minhas netas de novo para me
inundar com suas opiniões extenuantes e sua histeria emocional. —
Respirações curtas pontuavam suas frases. — Eu estava morrendo de
vontade de ver você, Clover. Trocadilho absolutamente intencional, pois
qual é o sentido de estar à beira da morte se não puder usar jogos de
palavras?
Eu me sentei na cadeira mais próxima da cama e apertei a mão dela
entre as minhas.
— Também estou feliz de ver você.
— Pela cara de todo mundo, parece que deram de vez minha sentença
de morte. — Claudia virou a cabeça para olhar nos meus olhos. — Diga a
verdade, minha querida. Você é a única que sempre faz isso.
Sorri de volta calmamente.
— Sim, acho que está quase na hora. Como você está se sentindo a
respeito?
— Honestamente? Eu sei que a minha família tem boas intenções,
mas não aguento essa agitação toda deles. — O lampejo característico
voltou brevemente aos olhos dela. — Eu tenho fingido estar dormindo para
que me deixem em paz por um tempo.
— Continuar em seus próprios termos até o fim, muito bem. — Uma
rede de veias marcava suas bochechas pálidas. — Tudo bem eu estar aqui?
Posso deixar você descansar, se quiser.
Claudia apertou minha mão.
— Fique, por favor. — Ela estava aos poucos ficando mais alerta. —
Que tal você me contar sobre essa caixa de sapatos que tem debaixo do
braço? Imagino que não seja um presente de despedida.
Coloquei a caixa no meu colo.
— Para dizer a verdade, meio que é, sim.
— Ah? — Claudia se animou ainda mais. — Então me conte.
Pensei em trancar a porta atrás, mas decidi que seria difícil explicar se
alguém tentasse entrar. Coloquei a cadeira de costas para ela, o que me
daria tempo para esconder as cartas, se fosse necessário.
— Bem, depois que você me contou sobre Hugo, fiz umas pesquisas e
desenterrei umas coisas com a ajuda de uma amiga minha.
Os olhos de Claudia se arregalaram.
— E o que você… desenterrou?
Eu inspirei, me preparando para dizer o que eu tinha praticado tantas
vezes na minha cabeça.
— Nós descobrimos que ele na verdade se mudou para os Estados
Unidos, não muito tempo depois que você foi embora da França, e que
estava morando no Maine até pouco tempo.
Fiz uma pausa para deixá-la processar a notícia.
A confusão nublou o rosto de Claudia.
— Não estou entendendo.
— Ele veio para Nova York atrás de você. — Talvez eu estivesse um
pouco efusiva. — Mas aí ele viu você com seu marido e achou que
pareciam muito felizes, então decidiu não falar com você. — Não é o
relato mais romântico da história, mas foi um bom resumo.
Lágrimas escorreram dos cílios inferiores de Claudia.
— Ele veio por minha causa?
— Veio!
— Você quer dizer que… ele ainda está vivo?
Essa era a parte pela qual eu não ansiava. Eu apertei a mão dela mais
forte.
— Infelizmente, nós descobrimos que ele faleceu há alguns meses —
eu disse suavemente, desejando que houvesse um jeito melhor de dar a
notícia. — Sinto muito, Claudia.
Esperei alguns minutos para deixá-la processar o momento. Quando
finalmente falou, sua voz era baixa.
— Eu presumi que ele já tinha ido há muito tempo, mas a morte é de
alguma forma menos dolorosa quando é hipotética.
— Bem, só que nós encontramos outra coisa: o neto dele. — Tirei a
tampa da caixa de sapatos. — Ele nos deu estas cartas que Hugo escreveu,
dizendo que você era o amor da vida dele, que ninguém nunca chegou
perto de você.
— Ele disse isso? — Era a primeira vez que eu via Claudia alvoroçada.
Eu esfreguei o ombro dela, onde quase nada separava o osso da pele.
— Você gostaria que eu as lesse para você?
Lágrimas começaram a escorrer suavemente pelo rosto dela, descendo
pelas rugas das suas bochechas como leitos de rios.
— Por favor.
— Que tal uma foto, gata? — Um homem com uma fantasia barata de
Batman estava diante de mim, as mãos na cintura e o peito estufado.
Eu estava tão absorta nos meus pensamentos que a rota da minha
caminhada de alguma forma tinha ido dar no quarteirão triangular banhado
de neon que qualquer nova-iorquino que se preze evita. Mas, apesar dos
outdoors brilhantes, dos artistas de rua concorrentes, da mistureba de
línguas e sotaques falados em volumes detestáveis, hoje achei a Times
Square estranhamente reconfortante. A energia, o barulho e o movimento
frenético eram todos símbolos de vida. De caminhos que se cruzam, de
momentos fugazes que evaporam, de lembranças sendo entalhadas em
memórias. E, acima de tudo, de uma bênção de ignorância de que sua vida
pode acabar a qualquer momento.
Fiquei parada, bem no meio disso, me permitindo pela primeira vez ser
a alga que balançava, e não o peixe que avançava disparado. Fechando os
olhos, senti a mistura confortavelmente familiar de pretzels defumados, lixo
apodrecendo e fumaça de escapamento, e deixei o caos auditivo atingir os
meus tímpanos.
Eu ainda estava aqui, ainda estava viva.
Ou talvez eu estivesse apenas existindo por hábito.
Após a música, saí discretamente pela porta lateral da igreja e tentei não
dar na cara ao buscar por cachos naquele mar de cabeças. Não foi difícil
identificar Hugo no pé da escada — é difícil desaparecer quando você é
trinta centímetros mais alto do que a maioria das pessoas. Sempre
suspeitei de que o motivo pelo qual meu avô usava tons de verdes suaves e
neutros era para se camuflar no ambiente urbano.
Desta vez, o aceno de Hugo foi entusiasmado. Ele veio em minha
direção, parando um degrau abaixo para que a gradação anulasse nossa
diferença de altura.
— Oi, Clover — ele sorriu. Eu gostava de como o volume da voz dele
era consistentemente manso, como se ele estivesse falando em uma
biblioteca ou quando as luzes diminuíam antes de uma apresentação de
teatro.
— Oi, Hugo. — Era estranho sentir uma familiaridade tamanha com
alguém que eu mal conhecia.
— Espero que não tenha problema eu estar aqui — disse ele, olhando
em volta para os outros enlutados. — Depois que você me mandou a
mensagem avisando que Claudia tinha falecido, pensei em quanto
significaria para o meu avô se eu viesse prestar sentimentos em nome dele.
E depois que eu vi, no obituário, que o funeral ia ser realizado nesta igreja,
que não é exatamente pequena, então imaginei que talvez pudesse passar
despercebido. — Ele deu um tapinha no topo de sua cabeça. — Bem, até
onde a minha altura me permite.
— Claudia teria adorado a sua presença aqui. — Agora que nossos
olhos estavam quase na mesma altura, notei as pintinhas âmbar em seus
olhos cinzentos. — Ler essas cartas e saber que o seu avô veio atrás dela a
ajudou de verdade a ter um pouco de paz.
— Estou feliz que ela tenha visto as cartas antes de, bem, você sabe…
— Hugo acertou a gola do casaco. Ele ficava bem elegante quando se
arrumava.
— Chegamos bem na hora. — Olhei por cima do ombro dele,
esperando que a breve pausa no contato visual acalmasse o meu
nervosismo. — Estou com as cartas em casa, se as quiser de volta. Eu ia
mandá-las para você.
— Sim, eu adoraria ficar com elas, se você não se importar. Elas
fizeram com que eu me sentisse muito mais perto dele. Sabe, poder
conhecê-lo quando era jovem, em vez de só como meu avô.
— É claro. — Vi Sebastian subindo os degraus em nossa direção,
Chrissie o seguia em um vestido rosa curto que, apesar da minha falta de
experiência, não parecia apropriado para um funeral. — Mas eu estava
pensando em escaneá-las primeiro, se não for um problema. Ainda não
contei a Sebastian sobre elas, mas pode ser que ele queira vê-las um dia.
— Boa ideia. — Quando Sebastian chegou junto dele, Hugo estendeu
a mão para cumprimentá-lo. — Ei, Sebastian, sinto muito pela sua perda.
Mesmo quando sabemos que vai acontecer, não fica mais fácil.
— Obrigado, cara, obrigado. — Sebastian me olhou de lado e depois
de volta para Hugo como se estivesse montando um quebra-cabeça.
— Espero que você não se importe de eu ter vindo — disse Hugo. —
Vi o obituário no jornal e quis dar meus pêsames.
A explicação pareceu deixar Sebastian um pouco mais relaxado.
— Nem um pouco. É uma pena que você não tenha conhecido a
minha avó.
Hugo deu um tapinha no bolso do peito.
— Estou ansioso para ler o folheto. A fotografia dela está linda. — Ele
se virou para Chrissie, que estava pairando rígida atrás de Sebastian, e
sorriu. — Olá, eu sou Hugo.
Sebastian parecia ter acabado de lembrar que ela estava ali.
— Ah, desculpa, esta é Chrissie. — Ele olhou brevemente para mim.
— E vocês já se conheceram.
Chrissie enlaçou o braço possessivamente no cotovelo de Sebastian.
— Ah, sim, no bar. Qual é o seu nome mesmo? — A voz dela era bem
melosa, como eu me lembrava.
— Clover.
— Que fofo — disse ela de um jeito que me fez me perguntar se era
um elogio.
— Sebastian! — Sarah estava andando rapidamente em nossa direção,
se equilibrando sobre saltos agulha, com uma criança se contorcendo no
colo. — Estamos voltando para casa para terminar os preparativos antes
que todo mundo chegue para o velório. Ah, oi, Clover, que bom que você
veio. — Sarah olhou para Hugo hesitante.
— Oi, Sarah — eu logo disse. — Este é Hugo.
Os olhos de Sarah dardejaram entre Hugo e eu.
— Prazer em conhecê-lo. Vocês dois vão conosco para o velório?
O rosto de Hugo se iluminou.
— Sem dúvida.
Pela primeira vez o rosto de Sarah implicava que ela estava aprovando
alguma coisa.
— Ótimo! — Sua expressão se tornou autoritária quando ela se voltou
para o irmão. — Sebastian, você vem com a gente?
Ele se endireitou como um cachorrinho sendo puxado.
— A gente já vai — disse ele, olhando para nós como se tentasse
entender com o que a irmã tinha ficado tão satisfeita. — Vejo vocês mais
tarde então.
Eu tinha planejado passar só uma hora cortês no velório, então fiquei grata
quando Hugo me disse que tinha que ir e perguntou se eu queria uma
carona.
— Você disse que mora no West Village, não é? Estou ficando com um
amigo no Brooklyn, então posso te deixar no caminho, se quiser.
— Seria ótimo. — Eu nem ia pedir para que ele me deixasse a alguns
quarteirões do meu apartamento.
Procurei Sebastian na sala cheia e percebi que era a primeira vez que
via aquele lugar com algum sinal de vida. Ele estava sendo requisitado de
novo pela dupla de chapelões da igreja. Quando chamei sua atenção e dei
a entender que estava indo, ele olhou de volta impotente e acenou
resignado. Embora eu estivesse secretamente aliviada por nossa despedida
poder ser limitada a uma simples troca de gestos, ainda senti uma pontada
de tristeza. Passamos por tanta coisa no último mês — seria estranho ele
não estar por perto. Talvez nós pudéssemos ser amigos um dia.
Enquanto eu desviava de um corredor polonês de nova-iorquinos
endinheirados na saída, uma mão agarrou meu antebraço. Com uma
criança diferente se contorcendo no colo, Sarah se inclinou para longe do
marido, em direção à minha orelha esquerda.
— Esse seu cara é bonitão. — Ela indicou Hugo, que estava esperando
pacientemente na porta de entrada. — Bom para você.
— Ah, obrigada. — Eu não me dei ao trabalho de corrigi-la.
Sarah e Claudia não tinham a mesma opinião sobre sucos verdes, mas
seu gosto por homens ainda parecia seguir a mesma linhagem.
Sylvie era uma juíza implacável. Depois que eu passava cada dia
classificando as coisas entre “Doar”, “Jogar fora”, “Sem dúvida manter” e
“Não sei”, ela chegava à noite para se sentar com seu martelo imaginário
no sofá que tinha se tornado seu posto de juíza.
O processo logo desenvolveu um padrão — Sylvie imediatamente
relegou qualquer coisa que eu categorizasse como Não Sei para Doar/Jogar
Fora e franzia a testa com ceticismo enquanto eu tentava defender a
maioria dos itens que tinha colocado em Sem Dúvida Manter.
— Tenho quase certeza de que o que você está segurando apresenta
risco biológico e só deve ser manuseado usando uma roupa de proteção
contra materiais perigosos — disse Sylvie, não se deixando influenciar pelo
meu argumento de que o pote de espécimes com uma espécie de criatura
marinha era um dos favoritos do meu avô. — Coloque na pilha de doações
e deixe o departamento de biologia da nyu lidar com ele.
Através de seus contatos, Sylvie tinha encontrado em um museu de
esquisitices biológicas, localizado em um pedaço gentrificado do Brooklyn,
um lar para a parafernália científica mais rara. Bessie conseguiu que o
dono de um sebo ficasse com as centenas de obras de referência e as
tornasse acessíveis a bibliófilos do ramo que, esperávamos, os apreciariam
tanto quanto o meu avô.
Algumas coisas foram fáceis de deixar de lado. Itens que sempre
estiveram lá, mas que eu nunca tinha visto — partes anônimas que
compunham um todo significativo. Outros pareciam um corte impiedoso
de outro fio essencial que me ligava ao meu avô. O que restava de seus
bens eram as coisas mais sagradas — coisas que até Sylvie sabia que não
devia desalojar. Os cadernos do meu avô, décadas de observação
meticulosa, reduzidos a fileiras encapadas em couro, armazenadas na mala
azul-celeste que tinha presenciado o início de nossa jornada juntos. O
casaco de inverno de tweed no qual eu me agarrava quando era criança
enquanto ele caminhava confiante pela multidão na calçada, sempre me
levando para a segurança. A velha bolsa de couro, seu amor e sabedoria
para sempre gravados em cada uma de suas rugas e arranhões.
À medida que a bagunça diminuía, o espaço aumentava. A luz do sol
rebotava em faixas de parede branca havia muito tempo escondidas por
objetos empoeirados e compêndios. Sombras de árvores dançavam no piso
de madeira, por fim livres das torres de caixas de armazenamento.
No alto do último caixote de livros que eu estava levando para Bessie
estava The Insect Societies, de Edward O. Wilson — que por fim admiti
para Sylvie que provavelmente eu nunca leria. Mas poderia pelo menos dar
uma olhada. Eu o peguei e folheei, imaginando o dedo indicador do meu
avô no canto superior de cada página amarelada, pronto para virá-la bem
antes de ele terminar de lê-la. Sempre gostei de imaginar que era um sinal
de sua curiosidade insaciável, sempre querendo saber mais.
Enfiado entre as páginas 432 e 433 do livro estava um velho porta-
copos de papelão de um bar argentino do East Village. Como eu nunca
tinha lido o livro, a bolacha tinha que ter pelo menos treze anos. Alguém
tinha escrito no verso, mas não eram as letras maiúsculas distintas do meu
avô. Era uma letra cursiva claramente inclinada que reconheci do único
cartão de Natal que eu recebia todos os anos sem falta — a de Bessie.
Meu querido Patrick. Eu não poderia pedir um parceiro de tango melhor.
Olhei para o coração que tomava o lugar do pingo no “i” no nome do
meu avô (um floreio que nunca aparecia nos meus cartões de Natal) e reli
o porta-copos várias vezes, sem me decidir se era melhor saber se a
mensagem era literal ou um eufemismo.
O meu avô e Bessie? Certamente não. Ele era tão solitário quanto eu
— foi isso o que eu puxei dele.
Mas Leo mencionou que o meu avô tinha pedido dicas para Bessie
quando foi comprar meu primeiro sutiã. Ah, meu Deus. Isso significa que
ele tinha visto Bessie de sutiã? Tentei me lembrar de qualquer outro sinal
que indicasse que o relacionamento deles transcendia o de um livreiro e
seu cliente devotado. Mas, também: meu avô dançando tango? Eu nunca o
tinha visto tentar um passo de dança na vida.
De repente, sua memória ficou diferente na minha cabeça.
Comecei a vê-lo não como avô, mas como homem.
Fui carregando o caixote por quatro quarteirões até a livraria, e me
convenci de que ficaria fria com Bessie. Provavelmente havia uma
explicação bem chata para aquilo tudo.
— Estes são os últimos livros, prometo — eu disse, soltando o caixote
no balcão enquanto o porta-copos coçava dentro do meu bolso. —
Obrigada mesmo por me ajudar a encontrar um lar para todos eles. Teria
sido tão triste mandá-los para a reciclagem.
— Claro, querida, estou feliz que você tenha me pedido. — O sorriso
radiante de Bessie estava acolhedor como sempre, mas não pude deixar de
me perguntar se ela tinha um outro especialmente para o meu avô. —
Como é que você está com toda essa limpeza do apartamento?
— Estou bem, acho. — A verdade é que estive tão ocupada que não
me permiti processar as minhas emoções. — Tive uma ajuda para lidar
com tudo.
Parei para saborear minha última frase — apenas um mês atrás, teria
parecido ridículo dizer aquilo.
Evasiva, Bessie ergueu o ombro junto do rosto.
— Aaah, quer dizer aquele jovem bonitão que você trouxe aqui no
outro dia?
— Ah, não, não o Hugo — eu disse tímida, mas secretamente
emocionada por ela o ter mencionado. Nas semanas desde então, ele me
mandou mensagens várias vezes para me dizer o quanto estava gostando de
um dos livros que eu tinha escolhido (junto com várias fotos de Gus), e
que ele tinha aceitado a oferta de emprego. Estávamos planejando nos
encontrar quando ele estivesse aqui e levar George e Gus para o parque de
cães.
— Entendi — disse Bessie, suas covinhas ficando mais fundas. —
Bem, ele me pareceu um perfeito cavalheiro. Acho que seu avô teria
aprovado.
Passando os dedos na borda do porta-copos, me perguntei se eu estava
invadindo a privacidade do meu avô. Talvez eu pudesse ser sutil a respeito.
— Na verdade, Bessie, encontrei uma coisa quando estava mexendo
nas coisas dele. — Deslizei o porta-copos pelo balcão como se fosse
contrabando. Não queria deixá-la constrangida na frente dos outros
clientes.
Bessie levou as mãos ao peito e suas bochechas ficaram mais
vermelhas do que parecia biologicamente possível.
— Meu Deus — disse ela, rindo. — Isso me traz memórias
maravilhosas.
Memórias que eram apropriadas para compartilhar com uma neta?
Mantive minha reação neutra.
— Ah?
— Bem, você provavelmente já entendeu. — Enquanto ela se inclinava
conspiratoriamente para a frente, não pude deixar de notar o decote
robusto espreitando através de sua blusa.
— Entendeu o quê?
— Que seu avô e eu éramos… amigos especiais. — Os olhos de Bessie
percorreram a livraria. — Acho que vocês mais jovens chamam isso de
“amizade colorida”.
Suas aspas com os dedos eram bastante desnecessárias.
Lutei contra a vontade de tapar os ouvidos com as mãos e torci para
não me arrepender da pergunta seguinte.
— O meu avô gostava de dançar tango?
Ela olhou sonhadora para o porta-copos.
— E como. Nós saímos para dançar todas as noites de quinta-feira por
quase vinte e cinco anos.
— Eu nunca soube disso — falei baixinho. Ele sempre me disse que
tinha uma reunião do corpo docente que ia até tarde às quintas-feiras. Eu
não tinha certeza se devia me sentir traída por ele ter tido uma vida dupla
ou exultante por ele não ter estado tão solitário quanto eu imaginava.
— Ele sempre ficava tão feliz quando estava dançando — disse ela, os
olhos brilhando ao se lembrar. — Como se ele tivesse permissão para tirar
a armadura. — Bessie deu um tapinha no meu braço. — Sabe, eu me
lembro da última vez que fomos dançar… antes de ele falecer. Ele tinha
acabado de falar com você no telefone uns dias antes. Você estava na
Tailândia, acho.
Meu peito apertou.
— No Camboja.
— Ah, é, no Camboja! De qualquer forma, lembro que ele estava tão
feliz de saber que você estava viajando, aprendendo sobre o mundo. Ele
não podia estar mais orgulhoso de você e do que você estava fazendo. Sei
que ele se arrependia de não ter sido um pai melhor para sua mãe, e acho
que de alguma forma isso deu a ele uma sensação de paz por ter feito as
coisas direito quando criou você. Era uma alegria ver.
A livraria começou a girar enquanto as emoções inundavam meu corpo.
A realidade dos últimos treze anos de repente ia se reorganizando em
minha mente.
Fingi olhar o relógio.
— Desculpa, Bessie, estou atrasada para uma coisa.
— Claro, não me deixe atrapalhar, querida. — Ela apertou meu braço
com força e me puxou para mais perto. — Mas eu estou sempre por aqui
se precisar de mim.
Tomei o caminho mais longo para casa, caminhando ao longo do rio
Hudson e depois voltando, tentando examinar o que estava sentindo. E
imaginar como o meu avô devia ser dançando — e flertando.
Eu era egoísta por pensar que era a única pessoa importante na vida
dele por todos aqueles anos — Bessie também tinha perdido o meu avô.
Mas também me senti infinitamente grata. Mesmo que ele tenha morrido
sozinho, ele não morreu na solidão.
E estava orgulhoso de mim.
O segredo para ter uma morte bonita é viver uma vida bonita.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada
ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora. Texto fixado
conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de
1995).
1ª edição, 2023
B811c
Brammer, Mikki
A coleção de arrependimentos de Clover / Mikki Brammer ; tradução Érika Nogueira Vieira. -
1. ed. - Rio de Janeiro : Globo Livros, 2023.
320 p. ; 23 cm.