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A gaiola de faraday
A gaiola de faraday
A gaiola de faraday
E-book145 páginas2 horas

A gaiola de faraday

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Sobre este e-book

Aos 50 anos, Enzo, um engenheiro civil desempregado, optou pelo autoexílio. Espelhando-se em um jovem conhecido que havia desaparecido misteriosamente, abandonou a família enquanto todos dormiam. Antes visto como um homem sóbrio, fino e educado, agora ele cria enigmas particulares e ameaça levar seus dramas às últimas consequências.
O sumiço de Enzo dá início a uma crise que expõe a hipocrisia de sua família. À distância, ele passa a seguir, pelas ruas de São Paulo, a mãe e seu primogênito, Lúcio. É desta maneira que descobre segredos até então ocultos.
Enzo continua mantendo contato por cartas e telefone com Júlio, seu irmão mais velho, um professor universitário com quem tem uma convivência difícil. É por meio dessa relação mal resolvida, cheia de ressentimentos, que Enzo explica sua revolta contra a esposa, Queila, assessora de imprensa ocupada e insatisfeita, e o pai, fascinado por carros antigos e de quem os filhos legaram apenas a Teoria da Hierarquia dos Faróis (segundo a qual era possível avaliar a excelência de um veículo pelo poder de suas lanternas).
A gaiola de Faraday é um dispositivo para-raios potente e sofisticado. A expressão usada pelo autor remete à vontade frustrada de Enzo de construir um ambiente de segurança afetiva para a sua família. Distante e à espreita, ele se torna um fantasma cada vez mais incômodo e prestes a perder o controle.

O romance A Gaiola de Faraday recebeu em 2002 o prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2011
ISBN9788564126435
A gaiola de faraday

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    A gaiola de faraday - Bernardo Ajzenberg

    Bernardo Ajzenberg

    A GAIOLA DE FARADAY

    Sumário

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Créditos

    O Autor

    Chega de seguir

    vendados pelas mãos

    macias da neblina.

    Descobri tarde:

    Tua única residência

    é distanciar-se da casa.

    Desembaraça-me

    do excesso

    de estar

    onde não sou.

    Fabrício Carpinejar,

    Um terno de pássaros ao Sul

    1

    A luz do quartinho sob a escadaria atravessava as brechas entre os degraus, projetava tiras de ouro na parede branca. Improvável que Enzo precisasse de tal auxílio para descer até a porta da rua numa operação tantas vezes renovada, mas ela estava ali a serviço, a lâmpada talhada, como em todas as noites. Dois passos, e via de cima o porta-chaves do hall de entrada. Mais além, era a calçada.

    Antes de avançar os degraus abaixo, deu meia-volta em direção ao corredor escuro de onde viera. Isso valeria a pena, pensou.

    A primeira porta no corredor estava entreaberta. Enzo empurrou-a de leve para evitar o ranger irritante. No quarto, ainda mais escuro, ficou parado. Após alguns segundos, os olhos já habituados, ajoelhou-se ao lado da cama de laca branca. Inclinou o rosto. Enquanto ouvia a respiração da filha, dirigiu-lhe apelos, palavras pela metade, soluçadas, um verso ininteligível. Assim continuou até os olhos se embaçarem e as mãos tremerem no ar, a espinha a sinalizar cansaço. Esboçou uma carícia.

    Como sempre, estava fechada a porta seguinte do corredor, decorada com o pôster amarelo e o sinal pare. Seria temerário abri-la – nos últimos anos, nunca soubera o que poderia encontrar ali –, mas Enzo não resistiu. Girou a maçaneta, empurrou o pôster. Em pé, sob o batente, contido como se uma tela invisível lhe barrasse o caminho, pôde notar o livro caído ao lado da cama, escutar o ronco sutil, adivinhar o perfil avermelhado pelo rádio relógio digital. Sorriu com uma brandura cuja expressão lembrava um rito de temor. Engoliu em seco, segurando-se na maçaneta. Viu a boca se mexer lateralmente sobre o travesseiro. Em poucos segundos avançava, fugia de novo para o breu do corredor, rumo à terceira das portas: aquela mais escancarada, onde tudo deveria ser simples e rápido.

    A mulher dormia de bruços. Enzo respirou fundo. Entre a repulsa e a indiferença, rangeu os dentes, lançou em direção ao corpo um olhar flutuante. Tentou entender o ardor dentro das pálpebras, de repente intenso, em vão. Preferiu chacoalhar a cabeça; com as palmas das mãos, pressionava agora as têmporas cobertas de suor. O arrepio, depois de incomodar as vísceras, se espalhou até a ponta dos pés. Coçou os olhos.

    Virou-se sobre os calcanhares e começou a fechar a porta do banheiro, justo ao lado, na extremidade do corredor – as narinas agitadas, uma respiração fria, minguante. Antes de concluir a pequena tarefa, no entanto, sentiu necessidade de se olhar de novo no espelho.

    Poucos minutos antes executara a mesma expedição: naquele banheiro, as luzes apagadas, desfizera-se do pijama empapado de suor cheirando azedo da noite não dormida, calçara com lentidão as meias e o tênis – parecia dar ao surrado Adidas a última chance de recusar o serviço –, vestira o conjunto de jogging cinza; ali tinha lavado o rosto sem alarde, temeroso de atiçar a curiosidade do cachorro no quintal, reparando no excesso de cabelos, no emaranhamento das sobrancelhas; apalpara rugas; beijara a escova de dente, o desodorante da mulher.

    De novo à frente dos degraus tingidos pela luz do quartinho sob a escadaria – agora a comporem raios instáveis no seu corpo –, pegou a sacola e avançou. Era um outro, um outro sem retorno. Tanto que o coração trepidava.

    Abriu a porta. Sentiu a garoa. Depois de experimentá-la com o rosto, voltou-se para a escadaria que se arrojava imprecisa e arenosa: uma rampa de contornos turvos. Girou o corpo então pela última vez e saiu, rodando a chave cuidadosamente. Olhou para um lado e para o outro. Tanto fazia!

    Do início da rua vinha o homem que lhes entregava o jornal toda madrugada. O mesmo desde muitos anos, com jaqueta de couro e luva preta, o capacete vermelho gasto de riscos e adesivos, a motocicleta e seus arranhões. Em circunstâncias normais Enzo o aguardaria para cumprimentá-lo, pegar o exemplar, perguntaria do tempo, cilindradas da moto, a quantidade de pessoas que na rua recebiam jornal dele. Optou por ignorá-lo.

    Partiu devagarinho depois de acariciar a madeira da porta, a contar passos, pisava na calçada as sombras da lâmpada de mercúrio. A garoa refrescava o ar. Assim que passou a banca de revistas, atirou o chaveiro por cima do muro de concreto do terreno baldio onde muitos anos antes o filho tinha o hábito de brincar, onde agora dominavam, traçados em vermelho sobre cal, dizeres incompreensíveis.

    2

    O filho do ex-colega desaparecera aos dezenove anos. Enzo não o conhecia, mas na ocasião o pai fez circular entre pessoas próximas uma carta na qual expunha dúvidas e desespero – mais desespero do que dúvidas. Foi ao contato dessa carta que a ideia se infiltrou paredes adentro em Enzo para ficar anos congelada até se reanimar, cutucar, voltar à superfície de um pensamento a ponto de se afogar. O motivo dessa ressurreição nunca foi claro para Enzo. Na verdade, quando isso aconteceu pareciam embaralhar-se nele inúmeros e imprecisos turbilhões.

    Na carta, o pai do rapaz desaparecido clamava por ajuda. Dizia enfrentar uma luta interna entre, por um lado, assumir a perda do filho e, por outro, prosseguir a busca. Sumira, o menino, sem deixar vestígios, ele e a roupa do corpo, depois de largar os amigos à saída de uma discoteca às três da madrugada de um domingo. E o pai perguntava quais alternativas poderiam explicar a situação: teria o garoto se afastado para encontrar sozinho um sentido para a sua vida? Estaria agora internado num hospital ou andando desorientado pelas ruas de uma grande cidade? Teria sido morto por engano, o corpo destruído ou ocultado? Seria um mendigo?

    A carta falava de angústias e frustrações que o ex-colega de Enzo desejava compartilhar com o maior número possível de pessoas para receber um mínimo conforto. Ávido por sugestões, queria acima de tudo se assegurar de que o filho estivesse vivo e com saúde, dizia, ao menos isso.

    Durante os meses em que Enzo conviveu com ele, o ex-colega teve suas dúvidas gradativamente aumentadas – assim como o desespero. Agora dez anos já se passavam desde que Enzo havia deixado aquele emprego. Ignorava o que aconteceu depois. Chegou a telefonar para o homem mais de uma vez nos primeiros meses de separação. Não passava de um dos inúmeros ex-colegas colecionados ao longo de inúmeros empregos, mas ele ainda tinha manias como essa, de valorizar gestos de apoio. Nenhuma novidade se apresentara no caso, salvo os cabelos brancos sobre a testa do pai. Enzo, por fim, esqueceu o assunto.

    Agora ele lhe ressurgia sob outra forma, outro prisma e com outro protagonista: ele próprio.

    Sabia-se um homem correto, embora não se sentisse como tal. Isso – sentir-se um homem correto – parecia algo remoto para ele e, tanto quanto lhe era dado perceber, para Queila também. Os anos, a fadiga advinda de estar sendo um homem correto, apenas homem, e correto, eis uma sensação da qual aos poucos se distanciava, enquanto Queila, ou assim ele queria achar, nem este resquício retinha mais. Tornava-se imune, portanto, à tal sensação. Ela era algo morto, um cadáver disposto ao lado.

    Atropelar o maldito lixeiro, foi esse o maior de todos os erros. Bebida, sexo à exaustão. Fazer o quê? A íris do olho da mocinha era como figo aberto – cor de figo, essa a cor dos olhos da garota. E a amiga? Diploma de shiatsu no Japão, especialista na depilação de virilhas, dona de um labrador. Representantes do belo sexo! Não havia resistência possível.

    Realmente arisca, aquela madrugada. Chovia, e Enzo não podia voltar para casa no estado em que se encontrava. Ninguém jamais lhe abriria a porta. Entre as tantas novidades da noite, aprendera como lidar com um resfriado leve. Deixe a água do corpo escorrer livremente das narinas, dizia a moça dos olhos de figo; dá cócegas mas não faz mal. Evite fungar o tempo todo, Enzo. Para de fungar, cara. Não funga, dizia uma, e logo depois a outra. Não funga, não funga. Porra, cara, para de fungar. Foge dessa armadilha, Enzo, não funga, porque, além de importunar e perturbar os outros, só faz estimular o resfriado. Não funga, repetia uma enquanto os olhos avermelhados com cílios postiços da outra garota o coçavam, por dentro, no escuro. Você tem cara de velho, diziam – e nós gostamos de velhos, acrescentavam. Mas trinta e cinco anos não é idade de moço?

    Deixou o apartamento, zonzo. Acordou estirado no banco de uma delegacia. Pobre e maldito, improvável lixeiro! O figo, a virilha depilada, a falha no breque, o uniforme ensanguentado. Por que cargas-d’água tinha o homem de andar tão devagarinho com o saco de lixo na mão? Não morrera, é verdade. Mas teria sido melhor! A cadeira de rodas, estivesse o homem morto, não teria emplastrado nos pensamentos de Enzo a mancha espalhafatosa que estampou. Impossível esquecer o nome. Lixeiro infeliz, atingido na madrugada e, a partir de então, titular de um novo ofício: aposentadoria por invalidez.

    Isso tudo, porém, tinha acontecido havia uma década. Nada solucionado com sensatez, na sua opinião de réu, mas, de todo modo, muitos anos atrás. Agora, menos de quinze dias depois de tomar o rumo da rua, Enzo sentia novas formas de aflição.

    Teve um sobressalto quando, ao atravessar um beco, deu de cara com o cartaz branco e preto. Desaparecido. Em 21 de fevereiro de 1992, em São Paulo. Quarenta e seis anos de idade. Pele clara. Olhos castanhos (ninguém da família lembrava que ele tinha olhos verdes?). Cabelos castanho-escuros. Por que agiam assim? Onde acharam aquela foto? Nem ele se reconhecia nela!

    Queila, Lúcio, Celinha, Júlio, Paulo, Mariza – não queria que sentissem falta dele. Não pretendia voltar, torcia para que o esquecessem.

    Ninguém o barrava nos shoppings, apesar das roupas gastas. Chorava sem saber por quê, com frequência, depois de um cafezinho. Por dentro, gritava de ódio, deixava-se arranhar pela decisão tomada, por considerá-la a menos custosa, embrião de covardia. Outras vezes, pensava diferente: nada disso, cara, você fez o certo, Enzo, a situação era tal que

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