Consolação A Márcia (Ad Marciam, de Consolatione) - Sêneca
Consolação A Márcia (Ad Marciam, de Consolatione) - Sêneca
Consolação A Márcia (Ad Marciam, de Consolatione) - Sêneca
Fundamental
ISSN: 1415-4714
[email protected]
Associao Universitria de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental
Brasil
Sneca
Consolao a Mrcia
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 10, nm. 1, marzo, 2007, pp. 156-181
Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
So Paulo, Brasil
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Consolao a Mrcia*
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I.
1. Se eu no soubesse, Mrcia, que voc no conhece
nem a fraqueza de alma de seu sexo nem as outras imperfeies
humanas e que seu carter tem algo de outros tempos que o torna
modelo, eu no ousaria abordar sua dor esta dor que mesmo os
homens nutrem e cultivam em si com tanta complacncia e no
teria concebido a esperana, em condies to ingratas, defendendo,
diante de um juiz to prevenido, uma causa to irritante, procurando
faz-la ser absolvida de seu infortnio. O que me deu confiana foi
o vigor experimentado de sua alma, foi esta coragem que j se
mostrou em uma ocasio maior. 2. Sabemos como voc se
conduziu em relao a um pai que voc amava to ternamente quanto
a seus filhos, quase a ponto de no desejar que ele lhe sobrevivesse;
ainda no estou muito certo, pois acontece de um grande amor se
permitir desejos irracionais. Voc fez tudo o que dependia de voc
para impedir que seu pai Cremuzio Cordo alcanasse a morte.
Tendo-lhe sido bem demonstrado que, com os satlites de Sejano,
este era o nico meio que teria de escapar servido, voc no
favoreceu seu projeto, mas renunciou luta e deixou correr
abertamente suas lgrimas; voc sem dvida devorou seus gemidos,
mas no os escondeu por trs de uma fronte alegre: e isto em uma
poca em que se mostrava devotamento quando no se traa os seus.
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3. Mas, logo que uma mudana de regime deu-lhe a oportunidade, voc tornou
pblico o talento de seu pai, sobre o qual os carrascos se atiraram: voc o
ressuscitou de sua verdadeira morte, remetendo aos muitos monumentos pblicos
de nosso passado os livros de histria que ele escreveu com seu sangue. O quanto
no lhe deve a cultura romana? O fogo destruiu uma de suas mais notveis
eminncias. O quanto no lhe deve a posteridade, a quem chegar em toda a sua
pureza o fiel relato de uma testemunha que custou to caro ao seu autor? O quanto
ele prprio no lhe deve, ele cuja memria vive e viver enquanto algum valor for
dado histria de Roma, enquanto houver espritos curiosos de reconstruir as
aes dos ancestrais, enquanto se quiser saber o que um romano, o que um
cidado que, quando todas as cabeas se curvam e se submetem ao jugo de
Sejano, permanece indomvel, o que um homem cujo gnio, cuja alma, cujos
braos so livres?
4. Que perda para a repblica, deuses! Se este gnio, cujos dois mritos
incomparveis o talento e a liberdade fizeram ser condenado ao esquecimento,
no fosse trazido por voc luz! Ele lido, sua glria resplandece: ele est em
todas as mos, em todos os coraes; do tempo nada tem a temer; em
contrapartida os prprios crimes de seus perseguidores, que foi deles o nico feito
na memria dos homens, logo ningum mais a eles se referir.
5. A grandeza de sua alma me impedia de considerar seu sexo, assim como
de considerar a tristeza que depois de to longos anos vela incessantemente sua
face. E veja quo pouco pretendo surpreend-la, usar seus sentimentos: desperto
a lembrana de seus antigos sentimentos e, para persuadi-la de que esta nova
ferida tambm no incurvel, mostro-lhe a cicatriz de uma chaga igualmente grave.
Os outros que usem da doura e de procedimentos carinhosos; eu vou tomar sua
dor corpo a corpo, e estes olhos doentes e esgotados, que, se voc deseja a
verdade, choram hoje mais por costume do que por aflio, vou dom-los, se voc
se dispuser, com sua ajuda, e, caso no se disponha, apesar de voc: voc dever
reter e segurar desesperadamente esta dor, qual destina em seu corao o lugar
deixado vazio por seu filho. 6. Se no, quando isto ter fim? Todos os remdios
fracassaram: as consolaes que seus amigos cansaram de lhe dirigir, as altas
intervenes dos homens eminentes com quem tem parentesco, o trabalho, esta
preciosa herana paterna; a todas estas vozes seu ouvido permanece surdo, e as
vs consolaes que elas lhe oferecem quando muito um instante de distrao. O
prprio tempo, este grande remdio pelo qual a natureza apazigua at os mais
terrveis tormentos, no exerceu sobre voc nenhuma ao. 7. Trs anos j se
passaram, e sua dor nada perdeu de sua primeira vivacidade: ela desperta e se
reanima a cada dia; ela toma como um direito a sua durao, acreditando ser
desonroso acabar. Todos os vcios criam em ns razes profundas se no os
sufocamos quando nascem: o mesmo acontece com os sentimentos sombrios e
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E este jovem enfim, to digno que seu nome e seu pensamento jamais lhe do
seno alegria, ser muito mais honrado por voc se somente se oferecer aos olhos
de sua me, assim como no tempo em que vivia, em feies felizes e sorridentes.
IV.
1. No lhe proporei mximas demasiadamente rudes: no a convido
a opor uma firmeza inumana s misrias da humanidade e no pretendo secar as
lgrimas de uma me no dia mesmo dos funerais. Submetamo-nos juntos a um
rbitro: a questo a ser debatida entre ns ser de saber se nossas dores devem
ser grandes ou se devem ser eternas. 2. No duvido que o exemplo de Lvia, de
quem era amiga particular, no tenha um grande valor a seus olhos: ela quem
a engaja em suas deliberaes ntimas. No primeiro transporte da dor, no momento
em que nossas feridas so as mais refratrias e as mais violentas, ela se deixou
consolar por Areus, o filsofo de seu marido, e ela reconheceu que esta ajuda era
preciosa para ela: ela lhe devia mais do que ao povo romano ao qual queria afligir
com a sua tristeza; mais do que a Augusto, que, privado de um dos seus dois
apoios, no necessitava alm disso dos lamentos de seu meio; mais do que a seu
filho Tibrio, cuja ternura a impediu, apesar da crueldade de um luto ao qual o
mundo inteiro se associava, de se sentir atingida seno no nmero de seus filhos.
3. Eis, eu suponho, como ele abordou e de que modo se dirigiu a uma mulher to
preocupada em manter sua reputao: At este dia, Lvia, at onde sei, eu que
nunca me afasto de seu esposo e que sou o confidente no apenas daquilo que
se revela ao pblico, mas dos movimentos mais secretos de seus coraes, voc
soube por sua conduta no dar motivo para crtica alguma; e isto no apenas nas
grandes ocasies, mas mesmo nas mais cotidianas, voc se imps a jamais
necessitar da indulgncia da opinio pblica, este juiz to imparcial dos prncipes.
4. Ora, nada conheo de mais belo do que ver aqueles que so educados no
mbito supremo prodigalizarem o perdo em torno de si e jamais solicit-lo para
si mesmos. Siga, pois, mais uma vez hoje a regra de toda uma vida, e cuide para
no cometer nenhum erro, nenhuma imprudncia, que tenha de se arrepender.
V.
1. Eu lhe suplico e lhe conjuro em seguida no se mostrar rebelde e
intratvel a seus amigos. Voc no ignora que eles se perguntam qual deve ser sua
conduta, se eles falaro de Druso diante de voc ou se se proibiro, arriscandose a ofender sua glria, parecendo t-lo esquecido, ou ofender a voc
pronunciando o nome dele. 2. Quando estamos reunidos entre ns, evocamos suas
aes e suas palavras com toda a admirao que lhe devida; diante de voc,
nossas bocas se calam. Voc assim se priva do maior dos prazeres, o de ouvir
os louvores a seu filho, enquanto voc daria a sua vida, tenho certeza, se fosse
coisa possvel, para perpetu-los para sempre. 3. Sofra, pois, provoque mesmo
os encontros em que se tratar dele; tenha um ouvido atento ao nome e
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lembrana de seu filho e evite ver nisto uma tristeza a mais, como tantas pessoas
que, em semelhantes circunstncias, consideram como uma parte de sua
infelicidade as consolaes que lhe so oferecidas. 4. At agora, voc coloca todo
o seu peso sobre o ponto dolorido; cega ao que ele tem de bom, voc no
considera de sua fortuna seno a face mais cruel. Seus olhos no se voltam para
o tempo feliz em que desfrutava de seu filho, para o tempo de seus doces
encontros, de suas caras carcias infantis, de seus progressos escolares: voc se
prende unicamente ao ltimo aspecto das coisas e, como se a realidade no fosse
suficientemente aterrorizante por si s, voc a sobrecarrega com todas as
crueldades possveis. Eu lhe suplico, no queira a glria perversa de passar pela
mais infeliz das mulheres. 5. Pense ao mesmo tempo que h muito pouco mrito
em mostrar sua coragem na prosperidade quando a vida escoa sem obstculos:
um mar calmo e um vento favorvel tambm no valorizam a habilidade do piloto;
preciso a tempestade para que uma alma se d a conhecer. Assim, no se deixe
aterrorizar; longe disso, reforce sua postura e, por mais violento que seja o
choque, resista, passado o primeiro abalo, ao golpe que se abateu sobre sua
cabea. Nada pode atingir tanto a Fortuna quanto uma alma que no se perturba.
Aps o qu, ele lhe expunha que ela possua um outro filho vivo e que lhe
restavam netos daquele a quem perdera.
VI.
1. de voc, Mrcia, que se trata: voc que Areus apoiou; mude
o nome, a voc que suas consolaes se dirigiam. Consideremos, no entanto,
Mrcia, que a perda que voc sofre supera as que as outras mes jamais
experimentaram: no a lisonjeio, no diminuo sua infelicidade. 2. Se as lgrimas
triunfam sobre o destino, lamentemo-nos; que nossos dias se passem a gemer,
que nossas noites sem sono sejam apenas desolao; rasguemos com nossas mos
nosso peito mortificado e no poupemos nem mesmo o nosso rosto; entreguemonos a todos os furores de um desespero to salutar. Mas, se nossos soluos no
ressuscitam os mortos, se todo o nosso desamparo no muda uma sorte imutvel
e fixada desde sempre, se a morte no larga sua presa, cesse esta dor intil. 3.
Partindo da, governemo-nos e no nos deixemos levar por sentimentos cuja
violncia nos dilacera. Vergonha do marinheiro a quem as vagas tiram o leme, que
deixa suas velas baterem ao sabor dos ventos e abandona seu barco tempestade;
mas admiremos, at em seu naufrgio, aquele que o mar engoliu segurando o leme
e lutando ainda.
VII. 1. No entanto, est conforme natureza lamentar os seus. Quem
o contesta, desde que estes lamentos sejam moderados? A simples partida daqueles
que nos so caros nos causa, tanto quanto a sua morte, uma irresistvel emoo,
que aperta os coraes mais duros. Mas o preconceito para isto contribui mais
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do que imposto pela natureza. 2. Veja quanto a dor dos animais violenta, e no
entanto como passa rpido: as vacas mugem um dia ou dois, a corrida louca e
desordenada dos cavalos no dura mais do que isso; quando as bestas selvagens
correram atrs de seus filhotes e erraram pelas florestas, quando muitas vezes
voltaram sua cova devastada, seu furor passa em um instante; o pssaro se agita
com gritos cortantes em torno de seu ninho deserto: no instante seguinte, retoma
tranqilamente seu vo. Nenhum animal lamenta por muito tempo sua progenitura,
exceto o homem, que se faz cmplice de sua dor e no se aflige
proporcionalmente ao que sente, mas medida em que se lhe fixado. 3. Voc
quer provas de que a natureza no exige que nos esgotemos em lamentos?
Inicialmente, o mesmo luto afeta uma mulher mais do que um homem, um brbaro
mais do que uma pessoa civilizada, um ignorante mais do que uma pessoa
instruda. Ora, quando uma coisa retira sua fora da natureza, esta fora
permanece a mesma em todos os indivduos; patente que o que varia no emana
da natureza. 4 O fogo queimar indiferentemente indivduos de todas as idades,
habitantes de todos os pases, tanto homens quanto mulheres; o ferro far sentir
a no importa qual corpo sua faculdade de cortar: por qu? Porque a natureza
que lhes deu suas propriedades e jamais excluiu ningum. Pela pobreza, pelo luto,
pelo desprezo, todos so afetados diversamente, conforme seja mais ou menos
infectado pelos preconceitos e que a falsa idia que faz a priori das coisas que
nada tm de terrvel lhe tirem mais ou menos sua fora e sua coragem.
VIII. 1. Em seguida, quando uma coisa obra da natureza, ela no diminui
ao longo do tempo. A dor desaparece aos poucos: a mais persistente, aquela que
cada dia v renascer e que se insurge contra os remdios, enfraquece no entanto
sob a ao soberana do tempo, que acalma todas as rebelies. 2. Sua dor, Mrcia,
ainda extrema, e j parece se atenuar: no mais o violento desespero do incio,
uma melancolia tenaz e obstinada, que o tempo apagar pouco a pouco. Cada
vez que seu esprito se ocupar com outra coisa, ele se libertar mais e mais. Por
enquanto, cuide-se; mas obrigar-se tristeza no mais como a ela se abandonar.
3. Como seria mais conforme distino de seu carter colocar fim sua dor,
em vez de esperar que cesse, e no permitir que chegue o momento em que a dor
a deixe contra a sua vontade! Rompa antes com ela.
IX.
1. De onde vem ento, se ela no resulta de uma exigncia da natureza, a obstinao que colocamos a nos desolar? que ns nunca imaginamos uma infelicidade antes do momento em que ela acontece. Acreditamos que
estamos garantidos por um privilgio especial e que o caminho que tomamos
mais seguro do que o dos vizinhos: os infortnios do outro no nos fazem compreender que eles so comuns a toda a humanidade. 2. Quantos funerais passam
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diante de nossa porta! e no pensamos na morte. Quantos falecimentos prematuros! e sonhamos com o tempo em que nossos bebs recebero a toga, sero
oficiais, herdaro os bens paternos. Quantos ricos so repentinamente reduzidos
mediocridade sob nossos olhos! e jamais nos vem ao esprito que nossa prpria fortuna corre os mesmos riscos. fatal que afundemos, no momento em que
o choque nos surpreende; um golpe h muito esperado se amortece ao nos atingir. 3. Voc percebe, ento, que voc um alvo oferecido a todos os golpes e que
as setas que trespassavam seus vizinhos deixaram de toc-la em sua passagem.
Pense que voc anda quase sem armas no assalto de muralha, ou de uma posio fortemente ocupada pelo inimigo e praticamente inexpugnvel: espere ser ferido, e diga para si mesmo que todas as pedras, flechas, lanas que voam ao
acaso sobre sua cabea foram lanadas contra voc. Cada vez que algum cair
do seu lado ou atrs de voc, grite bem alto: Voc no me enganar, Fortuna!
Se eu sucumbo sob seus golpes, no ser por no ter desconfiado ou me posto
em guarda. Eu sei o que voc est pensando: voc abateu um outro, mas a mim
que voc visava. 4. Quem, ento, contemplando seus bens, os olha jamais como
perecveis? Quem de ns jamais ousou sonhar com o exlio, com a misria, com
a morte dos seus? E quem, pois, convidado a considerar isto, no rejeitou a advertncia como um sinistro pressgio e no lanou estas catstrofes diretamente
sobre a cabea de seus inimigos ou do conselheiro inoportuno? 5. No acreditei que isto aconteceria. Voc no acredita que uma coisa acontea quando sabe
que ela possvel, quando voc a v chegar a cada dia a no se sabe quantas pessoas? Ah!o belo verso e que mereceria no vir dos palcos:
O que pode atingir um pode atingir todos os outros.
Este homem perdeu seus filhos: voc pode perd-los tambm. Este outro foi
condenado: sua inocncia corre o mesmo risco. Eis de qual aberrao somos vtimas e por que falhamos no vigor quando os revezes que jamais prevramos nos
assaltam. Tiramos dos males presentes sua fora quando os vimos vir de longe.
X.
1. Quaisquer que sejam, Mrcia, os bens exteriores cujo brilho nos
cerca, filhos, honras, riquezas, vastos trios e vestbulos abarrotados de clientes
cujo porte, reputao, mulher nobre ou bela, objetos diversos tributrios de um
destino movedio e caprichoso, eis a tantos ornamentos que no so nossos e
que apenas nos so emprestados. Nenhum deles nos dado, no verdadeiro sentido
do termo. O cenrio que mobilia a cena feito de acessrios emprestados, que
ser preciso devolver a seus proprietrios: uns sero retomados no primeiro dia,
outros no dia seguinte; muito poucos ficaro at o fim. 2. Assim, no nos iludamos:
o que nos cerca no nos pertence; no passamos de depositrios. Deles temos o
uso e do desfrute por um tempo que o possuidor, senhor de suas liberalidades,
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limita a durao como lhe aprouver. Devemos estar sempre prontos a saldar uma
dvida cujo vencimento no est fixado, e restituir sem reclamar primeira
requisio; somente os maus pagadores discutem com seus credores. 3. Nosso
afeto por todos os nossos, por aqueles que queremos que nos sobrevivam em
virtude da ordem dos nascimentos, assim como para aqueles que formam eles
mesmos o voto legtimo de nos superar, deve considerar que no nos foi prometido
nem t-los para sempre, nem mesmo t-los por muito tempo. Tragamos sempre
mente que os objetos aos quais nosso corao se liga so chamados a nos
deixar, melhor ainda que eles nos deixem j: pensemos que a posse dos bens que
temos da Fortuna no nos garantida por nada. 4. Apresse-se em desfrutar de
seus filhos, d-lhes em troca todas as alegrias possveis, e experimente sem
delongas todos estes prazeres do corao: no a autoriza a contar com a noite
seguinte, e este termo est ainda demasiadamente distante; eu deveria dizer: neste
exato minuto. Corra! O inimigo est no seu encalo; logo ele dispersar seu
pequeno grupo, romper, fazendo-lhe dar altos gritos, sua sociedade familiar.
Tudo perda no mundo, e vocs se mostram, infelizmente!, incapazes de viver
nesta fuga incessante.
5. Se voc chora porque seu filho morreu, culpe a hora em que ele nasceu:
seu fim lhe foi determinado desde o instante que veio ao mundo. Foi a este preo
que ele lhe foi dado, a sorte que o perseguir desde o ventre de sua me. 6. Ns
estamos sob a sujeio da Fortuna; seu jugo rude e invencvel, e devemos apenas
nos submeter aos tratamentos, justos ou injustos, que sua fantasia nos inflige.
Nossos corpos sofrero suas violncias, seus ultrajes, suas crueldades: ela
queimar uns, tanto a ttulo de castigo, quanto guisa de remdio; ela carregar
outros: tanto pela mo do inimigo, quanto pela de um concidado; ela entregar
estes sem recurso aos caprichos de um mar revolto e, quando tiverem lutado
bastante contra as vagas, ela no os jogar nem mesmo sobre uma praia ou uma
margem, mas os esconder no ventre de alguma fera monstruosa; ela esgotar
aqueles por doenas de toda espcie e os manter longamente suspensos entre a
vida e a morte. Como uma senhora caprichosa, imprevisvel e indiferente ao que
faz a seus escravos distribuir a torto e a direito castigos e favores. 7. Para que
serve se lamentar sobre os detalhes da existncia? toda vida que deveria nos
afligir. Novos males nos avassalaro antes de nos libertarmos dos antigos.
Dominemo-nos, pois, sobretudo vocs mulheres, que so imoderadas na dor, e
manejemos as foras do corao humano, que devem atenuar tanto sofrimento.
XI.
1. E que esquecimento este, afinal, de sua prpria condio e da
de todos? Voc nasceu mortal e gerou mortais. Sendo voc mesma um corpo
caduco e arruinado, onde pululam as doenas, voc esperava ver sair de uma
substncia to frgil seres slidos e imortais? 2. Seu filho est morto: o que dizer,
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seno que ele atingiu o limite rumo ao qual os que nasceram, acredite, mais
afortunados que eles andam sem detena? Toda esta multido que se disputa no
Frum, que se diverte no teatro, que ora nos templos, caminha para este objetivo
nico mais ou menos rapidamente. O que voc ama, o que voc despreza, tudo
se igualar na mesma cinza. 3. O clebre conhece-te, que figura entre os orculos
da Ptia, no tem outro sentido. O que o homem? Um vaso que se quebrar ao
menor abalo, ao menor movimento. No necessrio um vendaval para reduzila a p: um primeiro choque um pouco violento a deslocar. O que o homem?
Um corpo dbil e frgil, desnudo, indefeso por sua prpria natureza, que tem
necessidade do auxlio alheio, exposto a todos os danos da Fortuna; pasto e vtima,
quando exerceu bem seus msculos, da primeira fera vinda; moldado de matria
mole e inconsistente e brilhando somente por seus traos exteriores; incapaz de
suportar o frio, o calor, a fadiga, mas que a corrupo e a ociosidade rapidamente
teriam desagregado; merc de seus alimentos, com cuja carncia se enfraquece,
com cujo excesso se rompe; tendo mil penas e mil dificuldades para se conservar;
cuja respirao to precria e to pouco segura que um rudo desagradvel
batendo bruscamente em seus ouvidos o detm imediatamente; um corpo que ,
em si mesmo, fonte intil e perversa de perigos. 4. E nos espantamos, depois
disso, com que ele morra, quando a morte precisa seno de um suspiro! Acaso
necessrio um esforo colossal para abat-lo? Um odor, um sabor, um cansao,
uma viglia, uma bebida, um alimento e tudo aquilo sem o que no pode viver, lhe
so fatais. No pode dar um passo, sem tomar imediatamente conscincia de sua
fraqueza: todos os climas lhe so nefastos; se beber uma gua nova, se respirar
um ar ao qual no estava habituado, ao menor acidente, ao mais leve dano, ei-lo
doente. Criatura fraca, frgil, que inaugura a existncia pelas lgrimas, com
quantas agitaes este desprezvel animal no enche o mundo! A quais projetos
gigantescos no se entrega, esquecendo sua condio! 5. Imortalidade, eternidade,
eis com o que sonha; ele formula planos para o tempo de seus netos e de seus
bisnetos e, enquanto constri assim o futuro, a morte cai sobre ele: mesmo aquilo
que chamamos velhice somente um ciclo de anos muito curto.
XII.
1. Sua dor, se raciocinar, ter por objeto seu prprio prejuzo ou o
de um defunto? O que a afeta na morte de seu filho? no ter de forma alguma
desfrutado esta criana? Ou o pensamento de que poderia ter desfrutado mais
se sua vida fosse um pouco mais longa? Se voc responder que de forma alguma
desfrutou dele, voc tornar a sua perda mais suportvel, pois se lamenta menos
aquilo que nunca nos causou nem alegria nem prazer. 2. Se voc reconhecer que
voc lhe deveu grandes alegrias, no preciso se queixar do golpe que recebeu,
mas sim felicitar-se pela ventura que teve. A educao dele por si s recompensou
amplamente suas dores: pois a quem faremos crer que as pessoas que criam com
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1. Eu sei o que voc vai me dizer: eu esqueo que consolo uma
mulher e somente dou homens como exemplo. Mas quem, pois, ousar dizer que
a natureza tenha menos generosamente dotado as mulheres e que ela tenha
diminudo o campo de suas virtudes? Elas tm, voc pode me acreditar, tanta
fora quanto os homens; elas encontram em si, posto que lhes agrade encontrlos, os mesmos recursos morais; elas suportam com tanta coragem o sofrimento
e a dor, tanto que a isto esto afeitas. 2. Em que cidade, oh deuses!, temos esta
linguagem? Em uma cidade em que Lucrcia e Bruto abateram o tirano cujo jugo
esmagava nossas cabeas: a Bruto devemos nossa liberdade; a Lucrcia devemos
Bruto; em uma cidade em que quase se fez de Cllia um homem, por sua insigne
audcia em bravatear o inimigo e as vagas: do alto de sua esttua eqestre, que
se posta sobre a via Sagrada, um dos mais freqentados lugares de Roma, Cllia
envergonha os pretensiosos que passam enlameados em suas liteiras ao ousarem
entrar com semelhante aparelhagem em uma cidade em que as prprias mulheres
se vem honradas por um cavalo. 3. Se voc insistir em que eu cite exemplos de
mulheres que suportaram a morte dos seus com bravura, no terei dificuldade para
encontr-los: a mesma famlia me fornecer as duas Cornlias. A primeira, filha
de Cipio e me de Graco, teve 12 filhos; ela os perdeu a todos os 12: e nada
podemos dizer dos outros, cujos nascimentos e desaparecimentos no foram de
forma alguma sensveis cidade; mas ela viu Tibrio e Caio, cuja virtude, se
quisermos, contestamos, mas dos quais no podemos negar terem sido grandes
homens, massacrados e privados de sepultura. No entanto, como se queria
consol-la e que se lamentava sua infelicidade: Jamais, disse ela, me faro dizer
que no sou feliz, quando dei luz os Gracos. 4. A outra Cornlia, esposa de
Lvio Druso, perdeu um filho do mais brilhante mrito, dotado de uma inteligncia
notvel e que caminhava sobre as pegadas dos Gracos: este jovem, cuja morte
deixava tantos projetos de lei inconclusos, fora assassinado em sua casa por um
assassino desconhecido. Ele empregou, pois, para suportar esta morte prematura,
que permaneceu impune, tanta coragem quanto empregou o seu filho para
defender suas leis. 5. Voc perdoar, Mrcia, fortuna, se as setas com que ela
acertou os Cipies, as mes e as filhas dos Cipies, e as que ela fez chover sobre
os Csares, tambm no a pouparam. A vida repleta de ameaas e de perigos
de toda a sorte que jamais nos deixam por muito tempo em paz, e que no nos
concede nem mesmo a treva. 6. Voc ps no mundo quatro filhos, Mrcia. Dizse que uma lana atirada sobre uma tropa cerrada nunca perdida: seria
surpreendente que uma famlia to numerosa no tenha podido se desviar dos
golpes de uma sorte invejosa? 7. Mas o que agrava a iniqidade da Fortuna
que ela no se contentou em me tirar os filhos, ela os escolheu entre outros.
Voc, no entanto, no poderia dizer que houve iniqidade quando se partilha em
pores iguais com algum mais poderoso que si: a Fortuna lhe deixou duas filhas,
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e destas filhas, netos; e o prprio filho que voc chora to vivamente, a ponto
de no mais pensar no primeiro, ela no lho tirou completamente: voc tem dele
duas filhas, pesado fardo se voc fraquejar, poderosa consolao se for corajosa.
Obtenha de si que sua viso a lembre de seu filho e no de sua dor. 8. Quando
ele v, abatidas sobre o solo, rvores que o vento acaba de desenraizar e que um
violento ciclone derrubou, o agricultor prodigaliza seus cuidados aos brotos que
restam delas e, sem perda de tempo, distribui aqui e ali plantas e mudas novas,
e logo (pois o tempo, to rpido e pronto para destruir, tambm o para
restaurar) jovens brotos comeam a crescer, mais belos do que as rvores
perdidas. 9. Substitua Mitlio por suas filhas, faa-as preencher o vazio que ele
deixou e d sua dor nica esta dupla consolao. Esta a natureza dos mortais,
que nada mais caro a seu corao do que aquilo que os alegrou: o lamento do
que perdemos nos torna injustos em relao ao que nos resta. Mas, se voc quiser
devidamente apreciar a que ponto, maltratando-a, a Fortuna mexeu com voc,
voc ver que possui mais do que consolaes: o que significam para voc todos
estes netos, estas duas filhas? 10. Diga ainda isto, Mrcia: Eu protestaria se a
sorte de cada um correspondesse sua conduta e se o mal no tocasse nunca
os bons; mas constato que, sem distino alguma, os maus e os bons so joguetes
das mesmas tribulaes.
XVII.
1. cruel, no entanto, perder o filho que se criou quando ele
chega idade de homem, quando ele j para sua me, para seu pai, um apoio
e uma felicidade. cruel: quem o contesta? Mas uma coisa humana: voc
nasceu somente para perder, para morrer, para esperar, para temer, para atormentar os outros e a si mesmo, temer a morte e a desejar e, o que pior, jamais saber
ao que se ater em relao s verdadeiras condies de sua existncia. 2. Se dissssemos a um viajante pronto a partir para Siracusa: Fique sabendo, antes de
tudo, quais so os inconvenientes e as vantagens da expedio que voc projeta,
aps o que voc embarcar. Eis o que voc poder admirar: voc primeiramente
ver a prpria ilha, separada da Itlia por um estreito canal, e que antigamente sem
dvida fora ligado ao continente; um belo dia o mar irrompeu e,
Dos flancos da Itlia, tirou a Siclia.
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primitiva, tendo passado sob vastos mares sem se misturar s suas ondas
corrompidas. 4. Voc ver o porto mais bem protegido de todos os que a natureza
cavou para nossas frotas ou que a mo do homem conseguiu, porto to seguro
que jamais as mais fortes tempestades fizeram sentir seu furor. Voc ver o lugar
em que, quando a poderosa Atenas foi vencida, milhares de cativos foram presos
em uma fossa com paredes gigantescas, verdadeira priso natural. Voc ver,
enfim, esta imensa cidade, cuja extenso maior do que o territrio de muitas
cidades, lugar com inverno de extrema doura, em que os dias sem sol so coisa
incomum. 5. Mas, quando voc tiver assim apreciado todos os encantos do lugar,
o vero penoso e malso lhe tirar as vantagens do cu de inverno; voc
encontrar a o tirano Dnis, flagelo da liberdade, da justia e das leis, vido por
despotismo mesmo depois da visita de Plato, vido por viver mesmo uma vez
banido: ele far queimar uns, chicotear os outros, a decapitar pela mais leve
ofensa, recrutar machos e fmeas para obter sua lubricidade e, entre as ignbeis
equipes dedicadas s fantasias reais, ser pouco participar de dois acoplamentos
simultneos. Ei-la a par do que pode atra-la e do que pode ret-la: e agora parta
ou fique. 6. Se nosso homem, aps tais advertncias, persistisse em querer ir a
Siracusa, do que estaria ele no direito de se queixar, seno de si mesmo, j que
no se encontrava l por acaso, mas tendo vindo de bom grado, em pleno
conhecimento de causa? 7. A Natureza nos diz a todos: No quero enganar
ningum. Se voc d luz filhos, voc poder t-los belos, voc poder tambm
t-los feios; talvez lhe nasam doentes. Um dentre eles poder salvar a ptria, um
dentre eles poder tra-la. Voc tem o direito de esperar que a considerao de que
desfrutam ser de natureza a preserv-la contra todos os ataques da maledicncia;
pense, no entanto, que eles podem tambm se cobrir de infmia e se tornarem um
vivo oprbrio. 8. Nada impede que seus filhos lhe rendam as ltimas homenagens
e que sejam eles a pronunciarem seu panegrico; mas esteja pronta a coloc-los voc
mesma na pira, seja em sua juventude, seja em sua idade madura, seja na velhice:
pois os anos nada tm com isso, e os funerais aos quais os pais assistem so sempre
prematuros. Se, conhecendo estas condies, voc coloca filhos no mundo, voc
perde o direito de incriminar os deuses: eles no tm nenhum compromisso
com voc.
XVIII.
1. Apliquemos agora nossa comparao entrada do homem na
vida. Quando voc se perguntava se iria ver Siracusa, eu lhe mostrei tudo o que
poderia agrad-la e tudo o que poderia desgost-la nesta viagem; imagine que no
momento de seu nascimento eu venha lhe dar este aviso: Voc faz sua entrada
na cidade comum dos deuses e dos homens, cidade que compreende todo o
universo, que obedece a leis constantes e eternas, em que os corpos celestes
realizam suas incansveis revolues. 2. A voc ver mirades de estrelas
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brilharem de todos os lados, um astro nico encher com seus raios todo o espao.
Voc ver este sol, cujo curso cotidiano traa os limites do dia e da noite, e cujo
curso anual regula o retorno peridico dos veres e dos invernos. Voc ver a lua
substitu-lo durante a noite e receber de seu lar fraterno sua doce e suave luz, quer
escondida, quer cobrindo a terra com sua face cheia, crescente e minguante a
cada vez, e cada vez diferente do que foi na vspera. 3. Voc ver os cinco
planetas seguirem um rota oposta de outros astros e progredir em sentido
inverso do movimento geral do cu: de suas mnimas variaes dependem os
destinos dos povos, e as maiores assim, como as menores coisas so
diferentemente influenciadas quer um astro propcio ou funesto domine quando
ela se produzir. Voc admirar as nuvens que se aglomeram, as chuvas que caem,
o ziguezague dos raios e o barulho do trovo. 4. Quando, saciada dos espetculos
celestes, seu olhar descer sobre a terra, outros objetos a esperaro, com igual
maravilha: aqui vastos planos se desenrolam e se estendem ao infinito, alm
cadeias de montanhas elevando ao mais alto dos ares seus cumes coroados de
neve; rios que precipitam suas guas, crregos que, vindos de um mesmo ponto,
se espalham na nascente e na vazante; bosques que se balanam sobre os mais
altos cimos, e estas mil florestas que povoam animais to diversos, que alegram
os cantos de tantos pssaros. 5. Cidades em posies variadas, naes separadas
por fronteiras insuperveis, umas defendidas por montanhas, outras passivamente
envolvidas por rios com leitos profundos; colheitas dobrando-se sob os espinhos,
rvores frutificando sem cultura; corredeiras que serpenteiam suavemente entre
os prados, golfos com curvas graciosas, rios que se cruzam em forma de portos;
inumerveis ilhas semeadas aqui e ali sobre a imensido das vagas, cuja monotonia
rompem. 6. O que dizer das pedras preciosas, do esplendor das prolas, do ouro
efervescente que os impetuosos cursos de gua carregam com suas areias, das
colunas de fogo que se lanam do seio da terra e por vezes do meio dos mares,
e deste Oceano, envolvendo a terra, cujos trs golfos separam as partes do mundo
umas das outras e cujas ondas se levantam com um borbulhar formidvel? 7. Voc
a ver, nadando sob as ondas sempre agitadas, mesmo quando o vento no sopra,
animais muito maiores do que os animais terrestres, uns to pesados que se fazem
rebocar para avanar, outros to geis que se afastam dos melhores remadores;
alguns absorvem enormes quantidades de gua e a jogam com violncia, para
grande risco dos barcos que passam. Voc ver navios indo procura de terras
que no conhecem. Voc ver que nada desconcerta a audcia humana;
testemunha de suas empresas, voc mesma ter nela um papel ativo: voc
aprender e ensinar artes, das quais umas servem como entretenimento, outras
para embelezar, outras para conduzir a vida. 8. Mas voc encontrar tambm
sobre a terra mil pragas, tanto do corpo quanto da alma: guerras, assassinatos,
venenos, naufrgios, intempries, doenas, lutos prematuros e a morte, da qual
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preciso ser algo. Mas aquilo que no nada em si mesmo e pelo qual tudo volta
ao nada no tem nenhuma conseqncia para ns: no poderia haver a nem males
nem bens sem uma matria qualquer sobre a qual exercer-se. A Fortuna no tem
alcance sobre aqueles que a natureza coloca em descanso definitivo e no se pode
ser infeliz quando no se mais. 6. Seu filho ultrapassou os limites do domnio
da servido; ele est no seio de uma paz profunda e eterna. Nem o medo da
pobreza, nem o amor s riquezas, nem os aguilhes da paixo, que colhe a alma
pelo apetite do prazer, o atingem; ele no experimenta nenhum cime da felicidade
de outrem, a sua no igualmente no o atrai; jamais insolncia alguma fere seus
castos ouvidos. Seus olhos jamais observam nem desastres pblicos nem
calamidades privadas. Ele no escravo inquieto de um futuro cujas promessas
so cada vez mais duvidosas. Ele est, enfim, em uma temporada da qual nada
pode mais o banir, na qual nada pode mais aterroriz-lo.
XX. 1. Oh! Como desconhecem suas misrias, aqueles que no celebram
a morte como a mais bela inveno da natureza e que no a aguardam com
esperana! Coroe ela uma vida feliz, ou afaste de ns o infortnio, ou finde a
saciedade e a fadiga do ancio, ou leve o jovem na aurora, na idade em que
estamos limitados a esperar melhor, ou reclame criana o tempo das
experincias, para todos ela o fim, para muitos a cura, para alguns a realizao
do desejo supremo, e os que tm mais obrigaes so aqueles que a recebem antes
de ter implorado sua vinda. 2. A morte liberta o escravo malgrado seu senhor; a
morte alivia os cativos de suas correntes; a morte abre a priso daqueles que eram
mantidos despoticamente por um poder inflexvel; a morte mostra aos exilados,
cujo pensamento e o olhar se voltavam incessantemente para a ptria, que se
repousa igualmente bem sob uma terra quanto sob a outra; se a Fortuna repartiu
mal bens que de direito so comuns a todos; se, de dois seres nascidos iguais,
ela deixou que um fosse propriedade do outro, a morte restabelece entre eles a
igualdade. Apenas a morte nada faz segundo o capricho de outrem: no se sente
a baixeza de seu estado, no se tem de forma alguma senhor a servir. Oh, Mrcia!
ela foi o desejo de seu pai. Graas a ela, no mais um suplcio ter nascido; graas
a ela, as ameaas da sorte no me abatero mais, e minha alma, livre de seus
ataques, permanecer senhora de si mesma; eu tenho um porto onde me refugiar.
3. Vejo nos tiranos cruzes de mais de uma espcie, variadas em sua fantasia: um
suspende suas vtimas de cabea para baixo; o outro atravessa o corpo com uma
estaca que vai do tronco boca, outros lhes estende os braos a uma forca; eu
vejo suas cordas, suas varas sangrentas, seus instrumentos de tortura para meus
membros, para cada uma das articulaes de meu corpo; mas tambm a eu vejo
a morte. Adiante, so os inimigos cobertos de sangue, cidados impiedosos; mas
ao lado deles eu vejo a morte. A servido deixa de ser dura, quando o escravo,
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desgostoso com o senhor, tem apenas um passo a dar para se ver livre. Contra
as misrias da vida, eu tenho a morte como recurso. 4. Pense como bom morrer
quando se deseja, e a quantos homens custou ter vivido demais! Se o Cnsul
Pompeu, honra e sustentculo do estado, tivesse sido levado do mundo quando
de sua doena em Npoles, teria morrido certamente o primeiro cidado da
repblica. De qual cmulo de glria o precipitaram alguns anos a mais! Ele viu
desfazerem-se suas legies, das quais o senado formava a primeira linha, e cujos
restos tiveram a infelicidade de ver seu chefe lhes sobreviver. Ele viu o verdugo
egpcio; ele apresentou ao vil satlite uma cabea sagrada at para o prprio
vencedor. Ao final, ele teve a vida salva, como se arrependeu de t-la aceito: que
vergonha para Pompeu, dever a vida generosidade de um rei! 5. E Ccero,
quando soube se desviar do punhal de Catilina dirigidos ao mesmo tempo sobre
ele e sobre a repblica; se a esta hora ele estivesse morto, seria salvador e
libertador de Roma; se tivesse seguido sua filha ao tmulo, poderia ter morrido
feliz. Ele no veria levantada a espada sobre a cabea dos cidados, os carrascos
dividirem entre si os bens das vtimas que pagaram elas mesmas os gastos de sua
morte, os despojos de tantos cnsules vendidos em leilo, o massacre e a pilhagem
contratada com verbas pblicas, tantas guerras, tantas rapinas, tantas Catilinas.
6. Se, em seu retorno de Chipre, onde ele havia regrado a sucesso do rei desta
ilha, Cato tivesse sido engolido pelo mar com os tesouros que trazia e que iria
nutrir a guerra civil, no teria sido uma felicidade para ele? Ele morreria com o
pensamento de que ningum ousaria cometer o crime na presena de Cato. Hlas!
Alguns anos a mais obrigaram este grande homem, nascido para a liberdade de
todos os outros mais do para a sua, a fugir de Csar e seguir Pompeu. Digamos:
no uma infelicidade para seu filho ter morrido jovem; a morte fez-lhe mesmo
libertar-se de todos os males futuros.
XXI.
1. Voc diz: Ele faleceu cedo demais, e antes da idade! Mas
suponhamos que tivesse vivido mais; imagine a que se reduz a mais longa vida
dada ao homem? Nascido para um momento, -lhe necessrio rapidamente ceder
a outros, vindos pela mesma razo, uma morada que apenas pode entrever de
passagem. Falo da vida humana, esta torrente que, como se sabe, anda com uma
incrvel celeridade; mas veja estas cidades que contam sculos, e calcule como
subsistiram pouco aquelas que cantam mais sua antigidade. Tudo o que vem do
homem breve e perecvel, e no ocupa lugar nenhum na infinidade das eras. 2.
Este globo, com todos os seus povos, suas cidades, seus rios e o Oceano como
cinturo apenas nos parece um ponto comparado ao universo. Bem! comparado
eternidade, nossa existncia menos do que um ponto no tempo, pois a
eternidade mais ampla do que este universo, que, sem esgotar o espao, retorna
to freqentemente sobre si mesmo. Que importa, pois, estender um espao cujo
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desenvolvimento, por mais longe que v, est to perto de nada? A vida longa
aquela que cumpriu sua tarefa. 3. Voc teria o prazer de me citar os homens cuja
velhice histrica, estes homens que viveram at os cento e dez anos; se voc
abraar a eternidade pelo pensamento, da mais longa mais breve existncia, a
diferena ser nula quando comparar o tempo que viveram estes homens com
aquele que eles no puderam viver.
4. Ademais, seu filho realmente no morreu cedo demais; viveu o que devia viver; ele no tinha direito a nada mais. A velhice no mais uniforme para
os homens do que para os animais. Vemos alguns animais se esgotarem em um
espao de quatorze anos, apesar de tocarem a senilidade quando o homem ainda
quase no saiu da infncia. Cada indivduo recebe em partilha uma durao de
vida que lhe prpria. 5. Ningum morre cedo demais, j que ningum deveria
viver mais tempo do que viveu. Cada um tem seu limite fixado: impossvel que
ele saia do ponto estabelecido, no h cuidados nem favores que a faam recuar.
Persuada-se de que, se voc perdeu seu filho, em virtude de um desenho eterno da vontade divina: ele teve sua parte, ele atingiu o limite do tempo que lhe era
devido.
6. Rejeite, pois, o terrvel pensamento de que ele poderia ter vivido mais. Sua
vida no foi interrompida, e nunca o acidente intervm na seqncia de nossos
anos. Cada um v se realizar o que lhe foi prometido; os destinos seguem reto o
seu caminho, sem jamais tirar nem acrescentar algo ao programa que eles
traaram. Nossos desejos, nossas dores so inteis: cada um ter apenas o que
lhe foi designado no primeiro dia de sua existncia. Desde o instante em que se
v a luz, toma-se o caminho da morte, vai-se rumo ao termo fatal, e os anos que
prolongam a juventude abreviam a vida. 7. nosso erro universal crer que h
apenas ancies j alquebrados e decrpitos que pendem para o tmulo: a infncia,
a juventude e todas as idades para a nos levam. Os destinos realizam sua obra:
eles nos impedem de perceber que morremos e, para melhor perturbar sua
marcha, a morte se dissimula em ns sob a prpria aparncia da vida: por uma
insensvel metamorfose, o beb mergulha na infncia, a infncia na puberdade,
a velhice absorve a idade madura. Cada ganho, ao final das contas, uma perda.
XXII. 1. Voc se queixa, Mrcia, de que seu filho no viveu tanto quanto
poderia. Como voc sabe se ele teria aproveitado viver mais tempo, e que esta
morte no foi um benefcio para ele? Encontre-me hoje em dia uma nica pessoa
cuja condio seja to segura e to solidamente estabelecida que nada tenha a
temer do futuro. As coisas humanas so oscilantes e fugidias e o que h em nossa
vida de mais precrio e mais frgil justamente o que nos atinge mais no corao;
tambm, no cmulo da felicidade, dever-se-ia desejar a morte: pois a instabilidade
e a confuso de todas as coisas so tais que no podemos, excetuando-se o
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passado, contar com nada. 2. Quem lhe garante que o corpo encantador de seu
filho, que ficou sob os olhares sem pudor de uma cidade dissoluta, teria escapado
de todas as doenas e conservado at a velhice sua beleza inalterada? Pense nas
mil mculas que espreitam a alma: os melhores espritos no mantm ao
envelhecerem as esperanas que fizera nascer sua juventude; com muita
freqncia eles se corrompem no caminho: ou um gosto tardio e ainda mais
vergonhoso da derrocada os invade, ou os vemos soobrar na gula e no ter outra
inquietude seno saber o que comero ou bebero. 3. Acrescente os incndios,
o desabamento dos edifcios, os naufrgios e as torturas que lhes infligem os
mdicos quando o rasgam vivos para procurar em seus ossos, mergulhando suas
mos em suas carnes palpitantes, ou cuidam de suas partes vergonhosas, ao
preo de sofrimentos sem conta. E depois h o exlio: seu filho no era mais
ntegro que Rutlio; a priso: ele no era mais sbio que Scrates; o suicdio: ele
no era mais virtuoso que Cato. Considere todas estas eventualidades e convir
que os privilegiados da natureza so os que ela coloca cedo em lugar seguro, para
lhes poupar o resgate que a vida lhes exigiu. Nada mais falacioso, mais prfido
do que a vida humana; ningum, oh deuses! aceitaria se no a recebssemos sem
conhecimento. Se, pois, a felicidade suprema no nascer, aquela que dela mais
se aproxima, imagino, desaparecer o mais cedo e retornar rapidamente ao nada
original. 4. Pense no tempo terrvel em que Sejano dava seu pai como pasto a seu
cliente Strio Secundo. Ele o odiava por uma ou duas palavras demasiadamente
atrevidas, Cordo no podendo suportar em silncio que pusessem um Sejano
sobre nossas cabeas ou, melhor dizendo, que ele prprio sobre elas se subisse.
Acaba-se de votar a ereo de uma esttua de Sejano no teatro de Pompeu, que
Tibrio reconstrua aps o incndio: Desta vez, gritava Cordo, ser mesmo o
fim deste teatro!. 5. Poderia ele no ter estourado vendo um Sejano se erguer
das cinzas de Pompeu, um soldado desleal deificado no monumento que perpetua
a memria de um dos nossos maiores generais? O ato de acusao est assinado;
a corja furiosa, que Sejano, para a ela se ligar e torn-la feroz para qualquer outro,
alimentava de sangue humano, se pe a uivar em torno deste grande homem que
tambm no conserva seu sangue frio. 6. O que fazer? Para viver, era preciso
suplicar a Sejano, para morrer curvar-se sua filha, todos os dois inabalveis. Ele
resolveu enganar sua filha. Ele tomou um banho para diminuir suas foras, e se
retirou para seu quarto dizendo que iria a fazer uma refeio; l ele dispensou seus
escravos e jogou pela janela uma parte dos alimentos, para fazer com que
pensassem que ele havia comido; depois disso, ele no jantou, sob pretexto de que
havia comido suficientemente em seu aposento. No dia seguinte, a mesma coisa.
No quarto dia, sua fraqueza no lhe permitiu mais dissimular. Ela a tomou, ento,
em seus braos: Minha querida filha, diz ele, saiba da nica coisa que j lhe
escondi: tomei o caminho da morte e j percorri quase a metade do trajeto; voc
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ela chegar a uma idade que por antecipao j tinha? Repito: uma precocidade
excessiva anuncia um desaparecimento iminente; o fim se aproxima, quando o
progresso chega a seu termo.
XXIV.
1. Decida-se a fazer as contas das virtudes, e no dos anos de
seu filho: voc ver que ele viveu o bastante. Privado de seu pai, ele ficou at os
quatorze anos sob os cuidados de seus tutores, e durante toda a sua vida sob a
tutela de sua me. Apesar de ter seu prprio lar, recusou-se a deixar o de sua me
e, na idade em que os jovens suportam mal a sociedade de um pai, ele permaneceu
sob o teto materno. Seu porte, sua beleza, seu vigor o designavam para o ofcio
das armas: ele renunciou vida militar para no se afastar de voc. 2. Calcule,
Mrcia, quantas mes que moram separadas de seus filhos os vem pouco
freqentemente; conte os anos que perdem e que passam na angstia aquelas cujos
filhos dedicam-se s armas: voc confessar que o perodo em que voc
desfrutou to completamente foi fortemente ampliado. Jamais saiu de suas vistas:
foi sob seus olhos que o estudo formou este esprito superior e que se igualou a
seu av, se a modstia, que infla tantos talentos, a isto no se tivesse oposto. 3.
Adolescente de uma beleza pouco comum, no meio de todas estas mulheres que
apenas pensam em corromper nosso sexo, no se prestava s esperanas de
nenhuma delas, e, com a perversidade de algumas chegando a realizar avanos,
ele enrubescia somente por haver agradado. Ele ainda era apenas uma criana
quando esta pureza de costumes o fez se julgar digno de um sacerdcio; o apoio
de sua me contribuiu para isso sem dvida alguma, mas esta prpria me nada
teria obtido para um candidato sem mrito. 4. Como a contemplao destas
virtudes recoloca, por assim dizer, seu filho entre seus braos! neste momento
que ele completamente seu; agora nada pode distra-lo, nunca mais ele lhe dar
preocupaes, jamais lhe causar dor. Voc experimentou a nica dor que poderia
vir-lhe de um filho to perfeito; a seqncia, no comportando mais nenhum risco,
apenas pode lhe oferecer prazeres, condio de que voc saiba desfrutar de seu
filho e que voc tenha uma idia justa daquilo que de verdadeiramente precioso
havia nele. 5. somente a imagem de seu filho que morreu, apenas sua
representao bem imperfeita; ele eterno, e seu estado presente vale muito mais,
j que despojado dos vnculos que o assoberbavam e completamente voltado para
si mesmo. Esta matria de que somos revestidos, estes ossos, estes msculos,
esta pele que os recobre, este rosto, estas mos complacentes, e todo este
invlucro humano no so para a alma seno entraves e trevas. Por ela a alma
esmagada, sufocada, corrompida; afastada da verdade, para a qual feita, e
aprisionada no erro. A alma no deixa de lutar contra esta carne grosseira, cujo
peso a arrasta e a oprime; ela se esfora para voltar aos lugares de onde veio: a
a esperam uma paz eterna e o espetculo da pura luz, na sada do caos e da noite.
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XXV.
1. No se precipite, pois, sobre a tumba de seu filho: voc apenas
encontrar um vil e repugnante despojo, ossos, cinzas, que no mais eram ele
tanto quanto suas vestes e tudo com o que cobrimos seu corpo. Ele se foi
completamente, ele partiu sem nada deixar sobre esta terra, aps uma curta estada
sobre nossas cabeas, o tempo de se purificar e de livrar de todas as taras, de
todas as manchas da vida mortal, ele se lanou ao mais alto dos cus, e agora se
regozija livremente entre as almas dos bem-aventurados. 2. Ele foi acolhido na
santa sociedade dos Cipies e dos Cates. Entre os que desprezaram a vida e
partiram espontaneamente, ele encontrou, Mrcia, seu prprio pai. Este (apesar
de todos l em cima formarem uma nica famlia) toma junto a si o neto,
encantado com esta luz nova; ele lhe explica a marcha dos astros que se avizinham
e o inicia com alegria, no sobre conjecturas, mas graas experincia direta que
tem da verdade, a todos os mistrios da natureza; e o reconhecimento que
experimenta o estrangeiro pelo guia que lhe mostra uma cidade desconhecida, seu
filho experimenta por este parente que, respondendo sua curiosidade, lhe revela
as causas dos fenmenos celestes. Ele tambm faz mergulharem seus olhos bem
no fundo do espao, at na terra: pois doce rever de cima as regies que
deixamos. 3. Diga, conseqentemente, Mrcia, que sua conduta tem como
testemunhas seu pai e seu filho, no como voc os conheceu, mas infinitamente
engrandecidos e dominando do mais alto o universo: enrubesa com toda a ao
baixa ou vulgar, e enrubesa de chorar os seus, objetos de uma to bela
metamorfose. No seio do espao eterno e das livres extenses, eles nada mais tm
que os separe, nem os vastos mares, nem as altas montanhas, nem ravinas
impraticveis, nem Syrtos com areias movedias; para eles todo o caminho
converge; eles se movem com uma agilidade ideal, se penetram reciprocamente,
e se misturam substncia das estrelas.
XXVI.
1. Imagine, ento, que do mais alto dos cus, este pai, Mrcia,
que teve sobre voc a mesma autoridade que voc sobre seu filho, lhe fala no
com o tom magnfico com o qual deplorava as guerras civis e proscrevia para a
eternidade os condenadores, mas com um tom mais sublime ainda, em harmonia
com as regies etreas que ele habita. 2. Por que, minha filha, este longo imprio
da dor apossou-se de voc? Por que razo voc se mantm to fechada para a
verdade para poder olhar seu filho como uma vtima, desde o instante em que,
sem ter sofrido o menor ataque nem em sua famlia, nem em sua pessoa, ele foi
encontrar seus ancestrais? Ignora voc de que tempestades a Fortuna varre o
mundo? E que ela no indulgente e fcil seno para aqueles que evitam
cuidadosamente mexer com ela? Dever-lhe-ei citar estes reis cuja felicidade teria
sido sem igual se fossem mais cedo tirados dos males que ameaavam suas
cabeas? Estes generais romanos, a cuja grandeza nada faltaria se retirasse algo
a seus dias? Estes grandes homens, estes heris ilustres, que no foram poupados
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seno para se oferecer espada de um mercenrio? 3. Olhe seu pai e seu av:
seu av se tornou um joguete de um assassino; eu no dei direito a ningum
sobre mim mesmo, eu me privei de alimentos, e mostrei que tinha a alma to
elevada em minha vida quanto em meus escritos. Por que aquele que teve a morte
mais feliz , em nossa famlia, o mais longamente pranteado? 4. Estamos agora
reunidos e livres da espessa obscuridade que a rodeia, ns descobrimos que nada
tem em sua existncia terrestre de desejvel, como voc imagina, nada de elevado,
nada de surpreendente, sendo tudo seno abjeo, pesadez e tormenta, e que at
voc no chega seno um plido reflexo de nossa luz! Eu acrescentaria que jamais
vemos aqui exrcitos que atacam com furor uns aos outros, nem frotas que se
destroam, que jamais parricdios foram urdidos nem premeditados, que no se
conhecem fruns em atividade da manh noite no tumulto do processo, que tudo
acontece a descoberto, que o pensamento a surge sem vu e o corao sem
disfarce, que a vivemos vista e disposio de todos, que a contemplamos
toda a seqncia das idades, passadas e futuras? 5. Estava orgulhoso de escrever
a histria de um sculo, de traar os acontecimentos realizados no menor canto
do universo por um pequeno punhado de homens: quantos sculos agora, que
encadeamento de idades sucessivas, de anos sem nmero me foi dado a observar!
Eu contemplo de bom grado os nascimentos e as quedas dos futuros imprios,
a destruio das cidades mais poderosas e as novas invases dos mares. 6. Pois,
se voc pode encontrar no pensamento do destino comum um consolo para seu
luto, no h nada que possa ficar em seu lugar, nada que o tempo no possa
reverter e colocar cedo ou tarde em seu curso, e no somente dos homens que
tratar (que so os homens no infinito domnio em que a Fortuna exerce seu
poder?), mas lugares, regies, diferentes partes do universo. Ele aplainar
montanhas e far surgir alm novos cumes escarpados; ele secar os mares,
desviar os rios e, suprimindo as comunicaes entre os povos, abolir a
sociedade e a unio do gnero humano; alm, ele abrir fendas formidveis que
engoliro as cidades, ou as agitar com tremores de terra; ele far nascer o sol
dos vapores pestilentos; ele cobrir com inundao a superfcie do mundo habitado
e far perecer sob as vagas todas as espcies animais, ele espalhar chamas
devastadoras que consumiro e devoraro tudo o que respira. E, quando for
chegada a hora em que o mundo deve ser aniquilado para se renovar totalmente,
toda substncia se destruir, os astros se chocaro contra os astros, o fogo
queimar o universo, e todos estes corpos luminosos, que brilham em uma ordem
to bela hoje, no formaro seno a chama de um vasto e nico incndio. 7. Ns
mesmos, almas afortunadas, que temos a eternidade como herana, no dia em que
deus julgar bom reconstituir o universo, ns no seremos, no meio do caos geral,
seno um detalhe a mais na grande catstrofe, e voltaremos a nos perder no seio
dos elementos primeiros.
Feliz de seu filho, Mrcia!, ele sabe doravante tudo isso.