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ARENAS PBLICAS:
por uma etnografia da vida associativa
Niteri, RJ
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2011 by Daniel Cefa, Fbio Reis Mota, Felipe Berocan Veiga, Marco Antonio
da Silva Mello (Organizadores).
Direitos desta edio reservados EdUFF - Editora da Universidade Federal
Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icara - Niteri, RJ Brasil - CEP 24220-900 - Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax (21) 2629-5288 http://www.editora.uff.br - E-mail: [email protected]
proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora.
Normalizao: Caroline Brito
Edio de texto e reviso de provas: Rosely Campelo Barrco
Projeto grfico: Jos Luiz Stalleiken Martins
Editorao eletrnica, diagramao e superviso grfica: Kthia M. P. Macedo
Catalogao na Publicao - (CIP)
C389 Cefa, Daniel; Mota, Fbio Reis; Veiga, Felipe Berocan; Mello, Marco
Antonio da Silva.
.
Arenas Pblicas: por uma etnografia da vida associativa/Daniel Cefa,
Fbio Reis Mota, Felipe Berocan Veiga, Marco Antonio da Silva Mello
(Organizadores). Niteri: Editora da Universidade Federal
Fluminense, 2011.
514p. ; il. 21cm. (Coleo Antropologia e Cincia Poltica; 51)
Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-228-0609-6
1. Antropologia. 2. Associaes. I. Ttulo. II. Srie.
CDD 307.72
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor: Roberto de Souza Salles
Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello
Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao e Inovao: Antonio Claudio Lucas de Nbrega
Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos
Diretor da Diviso de Editorao e Produo: Ricardo Borges
Diretora da Diviso de Desenvolvimento e Mercado: Luciene P. de Moraes
Assessora de Comunicao e Eventos: Ana Paula Campos
Editora filiada
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Comisso Editorial
Presidente: Mauro Romero Leal Passos
Ana Maria Martensen Roland Kaleff
Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Duayer
Livia Reis
Luiz Srgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos
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SUMRIO
INTRODUO
ARENAS PBLICAS: POR UMA ETNOGRAFIA
DA VIDA ASSOCIATIVA .....................................................................
Daniel Cefa, Felipe Berocan Veiga, Fbio Reis Mota
MOBILIZAES URBANAS:
ASSOCIAES DE MORADORES
COMO UMA ASSOCIAO NASCE PARA O PBLICO:
VNCULOS LOCAIS E ARENA PBLICA EM TORNO
DA ASSOCIAO LA BELLEVILLEUSE EM PARIS ...................... 67
Daniel Cefa
EM NOME DA COMUNIDADE: O PAPEL DAS ASSOCIAES
DE MORADORES NO PROCESSO DE IMPLANTAO
DE UMA POLTICA URBANA EM ACARI RIO DE JANEIRO..... 105
Letcia de Luna Freire
ENGAJAMENTO POLTICO E MOBILIZAO COLETIVA
EM NOVA IGUAU RJ: BASTIDORES DAS ARENAS
PBLICAS NAS CONFERNCIAS DAS CIDADES.......................... 135
Jussara Freire
ENTRE COMUNIDADE E PBLICO:
SEGUINDO O CURSO DE AO DE UM CONFLITO
DE URBANIDADE EM CARACAS, VENEZUELA...........................173
Pedro Jos Garca Sanchez
ASSOCIATIVISMO: LAOS VOLUNTRIOS
OU COMPULSRIOS?
QUANDO AS ASSOCIAES SO VOLUNTRIAS
NO BRASIL? UMA DISCUSSO SOBRE NOVAS FORMAS
DE COLONIALIZAO EM RESERVAS EXTRATIVISTAS............199
Ronaldo Lobo
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INTRODUO
Daniel Cefa
Felipe Berocan Veiga
Fbio Reis Mota
ARENAS PBLICAS:
POR UMA ETNOGRAFIA DA VIDA ASSOCIATIVA
Este livro cumpre o papel de reunir uma produo coletiva em torno
da vida associativa como temtica comum e, desse modo, marcar a
concluso de um ciclo do Convnio Capes-Cofecub, desenvolvido de
1997 a 2007. Assim, tem como objetivo apresentar a unidade de perspectiva constituda entre grande parte dos jovens pesquisadores dos
grupos de pesquisa envolvidos naquele ento convnio o NUFEP,1
o LeMetro2 e o NECVU3 e alguns de seus parceiros franceses.
O referido convnio de cooperao internacional teve como ponto
de partida o encontro entre Isaac Joseph e Roberto Kant de Lima,
artesos das primeiras trocas, e prolongou-se consolidado por Daniel
Cefa e Marco Antonio da Silva Mello, numa srie de intercmbios
intelectuais, envolvendo professores e estudantes da UFF, da UFRJ, do
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KANT DE LIMA, R.; PEREIRA, L. F. Pescadores de Itaipu: meio ambiente, conflito e ritual
no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Niteri: Ed.UFF, 1997; MELLO, M. A. da Silva;
VOGEL, A. Gente das areias. Niteri: EdUFF, 2004.
VOGEL, A.; MELLO, M. A. da Silva Santos, C.N.F. et al. Quando a rua vira casa. Rio de
Janeiro: FINEP: IBAM: Ed. Projeto, 1983.
KANT DE LIMA, R. A polcia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio
de Janeiro: Forense, 1995.
VIEIRA DA CUNHA, N. Viagem, experincia, e memria: narrativas de profissionais da
Sade Pblica dos anos 30. Bauru, SP: EdUSC, 2004.
BRANDO COUTO, P. A. Festa do Rosrio: iconografia e potica de um rito. Niteri:
EdUFF, 2003; BEROCAN VEIGA, F. A folia continua: vida, morte e revelao na Festa do
Divino de Pirenpolis, Gois. In: CARVALHO, Luciana (Org.). Divino toque do Maranho.
Rio de Janeiro: IPHAN: CNFCP, 2005.
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As atas desse congresso foram publicadas em: JOSEPH, I.; CEFA, D. (Org.). Lhritage
du pragmatisme: conflits durbanit et preuves du civisme. La Tour dAigues: ditions de
lAube, 2002.
JOSEPH, I. Erving Goffman et la microsociologie. Paris: PUF, 1998. (Trad. Goffman e
a microssociologia. Rio de Janeiro: FGV, 2000); ______. Lathlte moral et lenquteur
modeste. Paris: conomica, 2007.
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civilidades, rituais, dramas, lugares, ocasies, capacidades, competncias, quadros, contextos, engajamentos, faces, figurao, interao,
ordem pblica, posio, vulnerabilidade, reparao, territrio, redes,
situao. H nelas as pistas que foram percorridas pela antropologia
urbana,21 nos estudos dos espaos pblicos, mas que tm sido menos
exploradas pela sociologia poltica.
Em poucas palavras, um percurso alternativo foi sendo traado e
aplicado nas pesquisas acerca dos fenmenos civcos e polticos.
Ele d conta de casos (case method) que organizam as constelaes
espao-temporais das situaes. Visa demonstrar o que significa concretamente in situ democracia e repblica; como se articulam os usos
de direitos, as identidades comunitrias e as relaes profissionais;
ou, ainda, como se combinam as relaes entre mercado, religio
e poltica. A partir desse repertrio de questes, foi mapeada uma
srie de problemas, que foram, durante todos esses anos, os eixos de
cooperao entre Paris-Nanterre e Rio-Niteri. Poderamos hoje em
dia formul-los do seguinte modo:
a) Como uma sociologia da intimidade e da proximidade pode dar
conta dos modos de viver das pessoas em relao, de gerar sentimentos sociais e de aplicar categorias morais?22 Como essas
relaes de interao com outras pessoas, bens ou coletividades
de ordem privada, tais como so vivenciadas nas situaes de
apego vida de um bairro, da defesa de um fragmento do meio-ambiente ou da proteo dos interesses de um grupo profissional, tnico (ndios, quilombolas, ciganos) ou religioso (sufis),
vm-se referir a princpios universais da moral, do direito ou da
justia?23 Em que medida conduziriam (ou no) mobilizao
das instituies republicanas, apelando (ou no) ao julgamento
da opinio pblica, recorrendo (ou no) fora da lei e do tribunal, invocando (ou no) os princpios de igualdade e de equidade
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CEFA, D.; TROM D. (Dir.). Les formes de laction collective: mobilisations dans des arnes
publiques. Paris: ditions de lEHESS, 2001; CEFA, D. Pourquoi se mobilise-t-on?: thories
de laction collective. Paris: La Dcouverte, 2007.
KANT DE LIMA, R. Police, Justice et socit au Brsil: comparer des modles
dadministration des conflits dans lespace public. In: CEFA, Daniel; JOSEPH, Isaac.
Lhritage du pragmatisme: conflit durbanit et preuves du civisme. [S.l.]: Ed. de
Laube, 2002. p. 193-210.
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Essa tese foi criticada por P.Lichterman, em: Elusive togetherness: religious groups and
civic engagement in America. Princeton: Princeton University Press, 2004.
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Nimby: Not in my backyard, ou seja, fora de meu quintal. Essa expresso significa que
os atores aceitam que uma obra de infraestrutura pblica como, por exemplo, uma linha de
alta-tenso, uma rodovia, uma usina nuclear ou uma via frrea se instale em qualquer lugar,
sobre os terrenos de seus vizinhos, desde que sua propriedade se encontre fora de perigo. Os
processos de generalizao e de globalizao substituram a sndrome Nimby ou Nimey (Not
In My Electoral Yard, fora de meu quintal eleitoral) por um processo de redistribuio
Lulu (Locally Unwanted Land Uses, usos da terra localmente indesejados). Ou ainda por
uma defesa de posies mais universalistas: Banana (Build Absolutely Nothing Anywhere
Near Anyone, no construir absolutamente nada em lugar nenhum e perto de ningum),
Niaby (Not In Anybodys Backyard, fora do quintal de qualquer um) ou Nope (Not On the
Planet Earth, no no Planeta Terra).
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Como pioneiros: SILVA, L. A. Machado da. A poltica na favela. Cadernos Brasileiros, Rio
de Janeiro, v. 41, n. 9, p. 35-47, 1967; VALLADARES, L. Associaes voluntrias na favela.
Cincia e Cultura, So Paulo, v. 29, n. 12, p. 1390-1403, 1977; LEEDS, A.; LEEDS, E. A
sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Et plus tard: BOSCHI, R. A arte
da associao. Rio de Janeiro: Vrtice: IUPERJ, 1987.
ZALUAR, A. A mquina e a revolta: as organizaes populares e o significado da pobreza.
So Paulo: Brasiliense, 1985; SANTOS, W. G. dos. Razes da desordem. Rio de Janeiro:
Rocco, 1992.
Sobre a ao de Dom Helder Cmara diante das polticas de remoo das favelas cariocas, ver
SIMES, S. S. Cruzada So Sebastio: etnografia da moradia e do cotidiano dos moradores de
um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro. Tese (Antropologia)Universidade
Federal Fluminense, Niteri, 2008.
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perspectivas mais finas mostrando a difcil desvinculao dos processos participativos das modalidades da poltica comum.64
Enfim, seja em So Paulo em torno de P.Singer,65 no Mato Grosso66
ou na Bahia,67 em que particularidades regionais so reivindicadas
pela economia solidria,68 parece que os vages brasileiros esto
engatados ao trem da encenao de uma revoluo global. Uma sociedade civil global tece seu pano, atravs das transnational social
movement organizations e dos transnational advocacy networks.69 As
experincias brasileiras, diante dos Fruns Sociais, se encaixam assim
em imensas redes de circulao de informao, de coordenao e de
deliberao. O projeto claramente poltico. Um verdadeiro esforo
jurdico e terico , entretanto, conduzido para tentar delimitar as
categorias de economia solidria, economia popular, economia social
e terceiro setor70 e para apontar algumas das dificuldades do amlgama estatstico71 e analtico72 de todos os tipos de associaes, com
funes mltiplas e em contextos diferentes. J difcil juntar sob a
mesma rubrica entidades com disparate de status no campo do Direito:
associaes voluntrias, organizaes comunitrias, organizaes
no governamentais, instituies filantrpicas, fundaes, igrejas e
seitas, organizaes sociais (OS), projetos sociais desenvolvidos por
empresas, sindicatos etc. Mas logo que se recupera a complexidade
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BLAIS, J. P.; GILLIO, C.; ION, J. Cadre de vie, environnement et dynamiques associatives.
Paris: PUCA, 2001; ______. Actions associatives, solidarits et territoires. St tienne:
Publications de lUniversit de St tienne, 2001.
Ver, por exemplo, os relatrios anuais da Global Civil Society, editadas por H.Anheier,
M.Glasius, M.Kaldor.
OFFERLE, M. Sociologie des groupes dintrt. Paris: Montchrestien, 1994.
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ION, J.; PERONI, M. Engagement public et exposition de la personne. La Tour dAigues:
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pluriel. Saint-tienne: Presses de lUniversit de Saint-tienne, 2001.
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ELIASOPH, N. Making volunteers: civic life after Welfares end. Princeton: Princeton
University Press, 2011. No prelo. A autora escreve sobre scrambled moral worlds, blended
organizations e hybrid governance.
ADDAMS, J. Democracy and social ethics. New York: Macmillan, 1907.
DEWEY, J. The public and its problems. New York: Holt, 1927.
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Uma lgica de empresa comercial: realisar lucros sobre um mercado, produzir e vender ao melhor preo, acumular capitais ao
mximo, otimizar a utilizao de recursos humanos, obedecer a
uma racionalidade instrumental e utilitria e levar em conta as
insatisfaes dos clientes. A associao ser submetida aos imperativos da produtividade e da rentabilidade.
Uma lgica de organizao industrial: raciocinar em termos de
performances, estabelecer mtodos de medida e de controle, estandartizar os produtos, estabilizar o meio ambiente, reduzir as
incertezas, efetuar os investimentos tcnicos a longo prazo, programar os novos produtos e as novas organizaes do trabalho.
A associao ser regida pelos princpios da eficincia e da previsibilidade.
Uma lgica de servio pblico: aplicar os regulamentos de gesto pblica, seguir as finalidades do interesse geral, respeitar os
circuitos hierrquicos de deciso e uma diviso funcional do trabalho, se alinhar conforme as grades da qualificao, os conjuntos de objetivos e os mtodos de trabalho impostos pelo poder
pblico. A associao se alinha de acordo com os cnones da
administrao pblica para produzir e distribuir os servios.
Uma lgica de representao democrtica: fundar a legitimidade
no interior da associao sobre a sano pelo voto e sobre a
obedincia lei, respeitar o princpio de maioridade aps o voto,
aceitar as decises tomadas pelos representantes; e, fora das
associaes, destituir os governantes em caso de abuso de poder,
prestar contas opinio pblica, ter uma funo de contra poder no
que tange ao abuso de funcionrios e polticos profissionais.
Uma lgica de soberania popular, s vezes combinada com uma
lgica da racionalidade comunicacional: participao, deliberao e deciso devem ser acessveis a todos os membros da associao, num processo de debate entre indivduos livres e iguais,
com vistas a atingir o consenso e o consentimento da ordem pblica. A associao o lugar de realizao de uma forma de democracia local, seno de democracia direta.
Uma lgica de coeso social: ensinar os indivduos que eles tm
competncias e conhecimentos teis a todos, reativar um senso
de cidadania social em que cada um tenha direitos e deveres,
obrigaes mtuas com seus pares, responsabilidades vis--vis
coletividade e, em contrapartida, em que cada um tenha um lugar
no jogo da gratido e do reconhecimento. A associao recria os
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CALLON, M.; LASCOUMES, P.; BARTHE, Y. Agir dans un monde incertain: essai sur la
dmocratie technique. Paris: Seuil, 2001.
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COHEN, M.; MARCH, J.; OLSEN, J. A garbage can model of organizational choice.
Administrative Science Quarterly, [S.l.], v. 17, n. 1, p. 1-25, 1972.
LAFAYE, C. La sociologie des organisations. Paris: Nathan, 1996.
THEVENOT, L. Laction au pluriel. Paris: La Dcouverte, 2006.
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LAMONT, M.; MOLNAR, V. The study of boundaries across the social sciences. Annual
Review of Sociology, Palo Alto, v. 28, p. 167-195, 2002.
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Sobre a metfora dramatrgica de Goffman, ver: The presentation of self in everyday life.
Nova York: Doubleday, Anchor Books, 1959 (Traduo: A representao do Eu na vida
cotidiana. Petrpolis, RJ: Vozes, 1975); ______. Behavior in public places: notes on the
social organization of gatherings. Nova York: Free Press, 1963.
100
CEFA, D. Quest-ce quune arne publique?: quelques pistes pour une approche pragmatiste.
In: CEFA, D., JOSEPH, I. (Dir.) Lhritage du pragmatisme: conflit durbanit et preuves
du civisme. [S.l.]: Ed. de Laube, 2002. p. 51-82.
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rias etc. podem ser teis. Mas outras fontes de anlise, normalmente
negligenciadas por esta literatura, como a antropologia das relaes de
parentesco, o estudo de comunidades locais, a anlise dos simbolismos
religiosos, a etnografia da comunicao comum e a microssociologia
dos espaos pblicos, so necessrias.
3.3.2. Teatros do sentimento e da opinio: problemas pblicos
e agendas miditicas
As associaes so um vetor importante nos processos de constituio
da opinio pblica, no no sentido das pesquisas quantitativas de opinio, mas nos termos de uma prgmatica dos pblicos, de maior ou
menor tamanho, que investem em temas de interesse e de preocupao
comum sociologia pragmtica. A emergncia de um problema pblico
no simplesmente cognitiva. Ela envolve afetividades, sensibilidades
e moralidades coletivas; envolve experimentaes de sentimentos de
amor, de dio, de medo, de injustia, de esperana, de fatalidade, de
entusiasmo e de transtorno, que j so formas de definio de situaes
sociais e que j tocam o senso comum. Ela movimenta as referncias
sensveis por meio das quais as informaes so filtradas e ordenadas,
no em quadros racionais ou intelectuais, mas nos quadros da percepo
imediata ou da inferncia prtica. Ela induz paisagens normativas, articuladas em torno de categorias morais, nas quais o conflito de interesse
apagado pelas questes de decncia e de respeito, de humilhao e de
reconhecimento, de desprezo e de honra, de liberdade e de justia. Esses
diferentes elementos so constitutivos do que chamamos opinies
pblicas. As associaes so caixas de ressonncia desse processo.
Mobilizando-se, elas engendram novos personagens as minorias
visveis, as crianas vtimas de violncia, as vacas loucas ou as
nuvens radioativas e um conjunto de histrias, de racionalizao
e de argumentos que esto relacionados com esses novos cenrios e
atores. Elas difundem formas de compaixo e de indignao, de desconfiana poltica ou de crena ideolgica e desenham de novo o mapa das
condutas boas e ms, tolerveis e inaceitveis. Ao partir dessas novas
gramticas, so relanados outros fluxos de protesto que exprimem
sentimentos de escndalo e de reprovao, formulam demandas de
reparaes e de desculpas.104
104
Sobre estas categorias morais e / ou estes sentimentos sociais no Brasil, temos hoje as anlises
de CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Direito legal e insulto moral: dilemas de uma cidadania
no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2002 ou VIDAL, D. Les bonnes de
Rio de Janeiro: emploi domestique et socit dmocratique. Lille: Presses du Septentrion, 2007.
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Pode-se tratar de organizaes tradicionais, com uma forte coeso familiar, clnica ou
comunitria, como de organizaes midiatizadas por solidariedades e lealdades associativas.
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REFERNCIAS
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MOBILIZAES URBANAS:
Associaes de moradores
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Essa lei de 1o de julho de 1901 regulamentou a criao das associaes voluntrias sem fins
lucrativos na Frana.
Desde 1984, o Dveloppement Social des Quartiers DSQ (Desenvolvimento Social dos
Bairros) operava sobre 148 localidades urbanas consideradas como quartiers en difficult
(bairros com dificuldades), afetados pela degradao fsica, econmica e social. A ao
se estruturava em cinco princpios (projeto territorial, global, transversal, em parceria e
com a participao dos habitantes) e se baseava em acordos assinados por cinco anos entre
o Estado, os municpios e as regies. A partir de 1988, os acordos Dveloppement Social
Urbain DSU (Desenvolvimento Social Urbano) os substituem, e foram eles mesmos
substitudos em 1994 pelos contratos municipais.
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VNCULOS DE PROXIMIDADE
A anlise da constituio de um problema pblico ou de uma ao
pblica indissocivel de um emaranhado de estruturas de proximidade do mundo vivido. O termo prximo no se confunde com o
termo local, que designa uma escala espacial, nem com o termo
privado, que se ope ao pblico, e nem com o termo particular,
que se ope ao geral. O termo prximo ou proximidade, neste
texto, remete ao que vivido como tendo importncia ou pertinncia
na vida cotidiana dos atores moradores, usurios ou cidados. A
expresso remete aos modos de uso, de frequentao e de habitao
do bairro que continuam a desempenhar um papel no engajamento
pblico, mesmo quando esses modos no so requisitados por ele.
Coisa pblica e concernimentos pessoais
Primeiro ponto: a configurao da coisa pblica no se faz simplesmente na troca de argumentos racionais em um espao pblico
descontextualizado. Ela sempre tomada a partir dos modos de envolvimento das pessoas na Lebenswelt, e particularmente, na esfera do
prximo e do familiar. O enredamento em histrias e intrigas locais10
que evidenciam os destinos locais ou os interesses particulares o
trampolim para formas de julgamento e de denncia, de reivindicao e de proposio, que trazem tona o que diz respeito ao pblico.
A noo de polticas de proximidade permite trabalhar sob outra
concepo de res publica e reabilitar as associaes baseadas na proximidade. A ideia de bem pblico, nesse caso, se articula na tenso
entre pertencimentos, filiaes e alegaes de proximidade;
preocupaes (concernements) pessoais por bens ou servios
ameaados; vnculos ou ancoragens em comunidades de territrio,
de vizinhana, s vezes de profisso ou de religio; e preocupaes
de interesse geral, de bem comum ou de utilidade pblica, conforme
os idiomas republicanos. A anlise dos dispositivos de ao pblica
se pauta, muito rapidamente, em princpios e procedimentos que tm
curso nas agncias dos poderes pblicos, ou melhor, nos foros de
participao ou de deliberao. Um deslocamento do olhar permite
considerar as ancoragens da definio e da realizao do bem pblico
nos contextos de experincia e de atividade dos cidados comuns,
seguindo suas modulaes de acordo com o tipo de situaes proble10
Schapp, (1992).
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12
Trom (1999) Nimby um acrnimo ingls para a expresso Not in My Backyard, ou seja,
no em meu quintal, utilizada de forma crtica por urbanistas norte-americanos.
Ion et al. (2001).
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Cefa (2002).
Situations dpreuve: a palavra preuve tem vrios sentidos em francs. Aqui, ela remete a uma
dimenso de provao se colocar prova em relao a algo (que pode ser um exame,
uma relao de trabalho, ou situaes no campo da amizade, diante de um pblico...). Na
sociologia dita pragmtica, uma preuve um momento crucial de qualificao de situaes,
de aes e de mobilizao de formas de justificao, com o propsito de determinar um
acordo em termos de racionalidade e de legitimidade (BOLTANSKI; THVENOT, 1991;
LEMIEUX, 2009).
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situaes de maus-tratos infligidos aos cidados reunidos na Prefeitura, como situaes de descaso (salas minsculas, sem cadeiras e com
planilhas ilegveis) e de condescendncia dos polticos e dos tcnicos
da Prefeitura (omisso s perguntas feitas, atmosfera de ameaas
contra membros de associaes). Essas reunies rapidamente foram
o motivo da publicizao do descontentamento, sob a forma de cartas
endereadas ao Prefeito e assinadas coletivamente por porta-vozes
das associaes e por notveis de moralidade do bairro.
Esses choques emocionais tm a ver com percepo, afeto e moralidade, indissociavelmente. So da ordem do sentir e do ressentir.
Desestabilizam o sentimento de evidncia que cada um mantm com
seu ambiente natural e desfazem a modalidade do dado inquestionvel, do tido como certo (taken for granted) que caracteriza as
manifestaes do mundo da vida cotidiana. O sistema de coordenadas
comuns que regula a relao de familiaridade com a vida no bairro
fica abalado. O campo de experincias e o horizonte de expectativas15 dos moradores no so mais evidentes. O senso de decncia da
moradia dos vizinhos de bairro e o sentido de dignidade na conduta
dos polticos em relao a seus administrados so atingidos. Essas
provas afetivas, mais frequentemente colocadas sob o signo da humilhao e do desprezo do que manifestadas em linguagem diretamente
poltica, foram classificadas por Jasper como choques morais.16
Porm, estes so tambm choques estticos ou cvicos, segundo os
critrios de apreciao e de avaliao empregados. Para algum que
nasceu no bairro e que nele viveu toda a sua infncia, a totalidade
da memria corporal que se v ameaada e a histria de vida que ser
destroada. Para uma pessoa idosa, so rotinas muito arraigadas que
correm o risco de cessar, uma economia da autonomia, da afeio e
da ajuda mtua que ser destruda com a transferncia de domiclio
por uma instituio especializada. Para o comerciante, o fim do seu
comrcio (mon affaire qui est foutue), no somente sua fonte de
renda, mas tambm o pequeno mundo que sedimentou dia aps dia no
seu pequeno botequim ou na sua lojinha. Para o bobo recentemente instalado para usar a rotulao vernacular criada pelos nativos
parisienses de burgus bomio (bourgeois bohme) alm do
fato de ter seu bem desvalorizado e de ter de sair de novo procura
de alguns metros quadrados, um pedao do sonho urbano que se
15
16
Koselleck (2006).
Jasper (1997).
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e funcionaro como comprovantes dos mitos comuns. O bairro percebido e exaltado como lugar de acolhimento de sucessivas ondas de
imigrantes,22 memorial da Comuna de 187123 e da cultura popular24
da antiga Paris. Diversas exposies fotogrficas do nfase a sua
dimenso de bairro multicultural25. Noitadas de chanson raliste, a
cano realista de Edith Piaf, fazem reviver o passado nos bares
ao som do velho acordeom. O bairro se transforma em referncia de
literatura internacional, por intermdio dos romances policiais de
Thierry Jonquet (1993) e da saga de Malaussne de Daniel Pennac
(1995). Esses elementos contribuem para criar elos com esse ltimo
bastio de humanidade e para justificar a defesa de uma Paris
que est morrendo: La Bellevilleuse aproveita esse entusiasmo de
apego nostlgico, tomando cuidado, entretanto, para no transformar
a salvaguarda desse passado mtico em seu objetivo.
Saberes locais e relaes interpessoais
Sendo a associao um coletivo, ela se desenvolve nesse contexto. O
conflito local, como analisador, tem o poder de desvelar as coisas
pblicas da cit e, como catalisador, de agenciar as expectativas
coletivas. A mobilizao de militantes ativos, o recrutamento de
novos membros e a sensibilizao de simpatizantes se desenvolvem
nas redes de sociabilidade da La Bellevilleuse: em primeiro lugar,
entre as pessoas mais prximas, nas relaes de vizinhana e os
frequentadores das atividades de lazer; depois, pelo boca a boca,
seguindo os laos de confiana, de familiaridade e de solidariedade
de ordem interpessoal. A associao se ancora, inicialmente, nos
grupos de afinidade e nas redes de amizade de seus membros fundadores. Em seguida, ela se expande pelas adeses conquistadas por
meio do arsenal das tcnicas militantes: campanhas de divulgao
e afixao de cartazes em paredes, plantes nas ruas, distribuio
de panfletos em caixas de correio, na sada do metr ou na feira do
Boulevard de Belleville. Fazer campanha de porta em porta uma
interessante situao de interao face a face. Os associados tentam
compartilhar sua experincia de indignao moral e cvica e propem
aos moradores do bairro, frequentemente estrangeiros, imigrantes
22
23
24
25
Simon (1994).
Jacquemet (1984).
Morier (1992).
Duas exposies: Belleville, Belleville, em maio de 1992 (Pierre Gaudin) e Visa Villes, em
maro de 1993 (Jean-Michel Gourden).
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Ponts et Chausses: A cole des Ponts ParisTech, criada em 1747 com o nome de cole
Royale des Ponts et Chausses (Escola Real de Pontes e Caladas), uma grande cole,
com a vocao de formar os quadros da Engenharia Civil.
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da publicidade por excelncia. Ele possibilita uma relao de equivalncia entre situaes e atores sociais e fixa regras e procedimentos
que balizam, previamente, o campo das aes e das interaes. Ela
refora a lgica dentica do obrigatrio, do proibido, do tolerado
e do facultativo que regulam as atividades prticas, impondo seu
poder de coao normativa. O direito supostamente o mesmo para
todos, garantindo-lhes as mesmas liberdades e as mesmas restries.
Ele incorpora o trao das lutas anteriores, sob a forma de princpios
de igualdade e de justia, de responsabilidade e de publicidade, que
so levados a cabo pelas polticas de urbanizao (amnagement urbain). Ele prescreve as prerrogativas dos oficiais da coisa pblica
e limita seus raios de ao e suas margens de manobra; ele prev,
penalizando a transgresso da separao entre os bens privados e os
bens pblicos. O direito desenha os horizontes da espera e articula
os campos da experincia, configurando uma identidade dos atores e
os engajamentos em determinadas intrigas. Ele comanda as regras do
jogo e fornece o formato de coordenao entre os atores, destinando
solues a certos tipos de disputas e litgios.
No caso do nosso conflito urbano, leis e regulamentos so constantemente acionados em oposio Prefeitura. Trata-se de uma srie
de cdigos que, por sua vez, habilitam e restringem, constituindo um
repertrio de recursos de protesto e so onipresentes nas correspondncias endereadas aos representantes oficiais onde elas exercem um
papel de advertir (rappel lordre). Fornecem, ao mesmo tempo, o
pano de fundo da ao pblica, impondo que as reunies de consulta
popular aconteam publicamente e que seja redigido um programa
de referncia que sirva de base para as operaes de reestruturao
urbana. As consequncias prticas do direito so muito fortes. A
deliberao do Conseil de Paris (Cmara de Vereadores de Paris),
que tinha institudo a Zac Ramponeau-Belleville, anulada pelo
Tribunal Administrativo por violao do artigo L121-15 do Code des
Communes, que estabelece que as sesses dos conselhos municipais
so pblicas. Segundo as narrativas recolhidas, dezenas de pessoas
foram impedidas pelos agentes de segurana do Htel de Ville28
de assistir a uma reunio pblica da Cmara. Logo aps, todo o
programa implementado pela Prefeitura acabou sendo derrubado.
A deciso judicial, fundada no Direito, irrevogvel e irretratvel.
28
O Htel de Ville o local que abriga fisicamente as instituies municipais. Nesse caso, a
Prefeitura de Paris e a Cmara de Vereadores.
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O principio de mixit sociale (mistura social ou mescla social) central nas polticas
urbanas na Frana. Ele uma expresso do principio de igualdade republicana, contra
os efeitos perversos de uma discriminao espacial ou de uma balcanizao tnica e
comunitria.
O termo baba (papai, em Hindi) cool (calmo, em Ingls) uma gria francesa e equivale
ao velho hippie.
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A cena dos meios de comunicao de massa (mass medias) concerne, sobretudo, imprensa nacional: os jornais Le Parisien Libr, Libration e Le Monde, mas tambm aos jornais locais, tais
como a imprensa municipal e a imprensa associativa (Quartiers
libres); e, igualmente, s emissoras de rdio (France Inter, France Culture) e de televiso (TV Bocal), em que so apresentados
debates contraditrios entre porta-vozes de cada grupo.
A cena do tribunal administrativo, no qual os litgios so codificados em termos jurdicos e judicirios e no qual La Bellevilleuse e a Prefeitura de Paris se confrontaram pela atuaes de seus
advogados. o lugar crucial de anulao da primeira reunio de
negociao, da Zone dAmnagement Concert e da licena para
a demolio de La Forge. A temporalidade das decises judicirias d ritmo ao desdobramento das fases do conflito urbano.
A cena da tribuna poltica abriga a oposio entre os representantes dos partidos, que seguem uma ou outra linha argumentativa e programtica, e que tomam posies no Conselho de Paris,
na mdia ou nas manifestaes pblicas. Certos polticos, como
os do Partido Socialista e da direita, tentaram neutralizar ou instrumentalizar as associaes nesse espao; outros, como os comunistas e os ambientalistas, se mostraram mais receptivos s
reivindicaes de La Bellevilleuse.
A cena das redes associativas comporta instncias como a Coordenao e Ligao das Associaes de Bairro (Cooordination et
Liaison des Associations de Quartier CLAQ), o Comit Catlico contra a Fome e pelo Desenvolvimento (Comit Catholique
contre la Faim et pour le Dveloppement CCFD), a Fundao
Abb Pierre e dezenas de associaes e de sindicatos, reunidas na
Ao Coordenada para um Desenvolvimento Urbano Negociado
(Action Coordonne pour un Dveloppement Urbain Concert
ACDUC). Ou, ainda, mais modestamente, a par desses grupos, muitas vezes, virtuais ou ad hoc, La Bellevilleuse mantm
relaes mais orgnicas com Belleville Pluriel (Bar Floral, La
Forge, Ateliers Artistes de Belleville) ou mais distantes com o
Berry-Zbre (cinema e teatro).34 Tambm nesse caso, no se deve
imaginar um sujeito coletivo, nem mesmo uma plataforma unificada, mas sim descrever laos de configurao varivel, mais
ou menos intensa, dependendo das circunstncias. So relaes
34
Cefa (2001).
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Thvenot (1993).
Dodier (1991).
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Carte de sjour: autorizao emitida pelo governo francs para os estrangeiros morarem e
trabalharem na Frana.
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CONCLUSO
Este pequeno estudo de caso nos permite, ao final do percurso,
ilustrar algumas perspectivas de anlise. Vimos como os padres da
mobilizao dos recursos materiais e das estruturas de oportunidades polticas, das organizaes de ao coletiva ou dos quadros de
interao estratgica que so a regra na sociologia da ao coletiva
se revelam limitados para pensar a questo propriamente poltica
dos motivos do engajamento pblico; da emergncia dos problemas
pblicos; da constituio dos bens pblicos e da configurao das
arenas pblicas. Do mesmo modo, a arena pblica que se forma em
torno desse conflito urbano tem pouca relao com os ideais normativos da democracia deliberativa: so raros os foros de debate em que
se trocam argumentos racionais, pois, em geral, a palavra pblica
excessivamente impositiva e a discusso frequentemente desconectada da pauta de deciso. As operaes de testemunho e de medida,
de indagao e de experimentao, de dramatizao e de narrao
situaes de prova em ambientes fortemente constrangedores tm
pouco a ver com a formao de uma vontade pblica sem distoro,
sonhada pelos filsofos. melhor partir das proposies de Dewey
sobre a democracia como associao, investigao e experimentao
coletiva, em contextos de interao, de comunicao e de poder. E
se queremos nos centrar em situaes discursivas, melhor recorrer
a uma etnografia das conversas comuns e dos debates pblicos.39
Uma anlise pragmatista das atividades microcvicas e micropolticas
em uma arena pblica , assim, proposta em substituio anlise
estratgica num mercado poltico ou anlise argumentativa numa
esfera deliberativa. A poltica local no se deixa compreender seno no
seu local concreto, com seus parmetros sociais, espaciais e temporais.
39
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EM NOME DA COMUNIDADE
O PAPEL DAS ASSOCIAES
DE MORADORES NO
PROCESSO DE IMPLANTAO
DE UMA POLTICA URBANA
EM UMA FAVELA
DO RIO DE JANEIRO
Letcia de Luna Freire1
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Burgos (1998); Leeds; Leeds (1978); Perlman (1977); Valladares (1978), entre outros.
Embora a terminologia aglomerado subnormal, hoje empregada pelo IBGE para classificar
as favelas isto , como um conjunto constitudo por unidades habitacionais, ocupando ou
tendo ocupado, at o perodo recente, terrenos de propriedade alheia (pblica ou particular)
dispostos, em geral, de forma desordenada e densa, e carentes, em sua maioria, de servios
pblicos essenciais no comporte nenhuma referncia moral a seus habitantes, permanece
a viso da favela como um espao desviante.
Essa tese foi exaustivamente desconstruda pelos pesquisadores citados anteriormente,
acrescentando-se, a esse respeito, os trabalhos de Medina (1964); Prteceille; Valladares
(2000, 2005).
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(SERFHA, hoje extinto)9 de institucionalizar um canal de comunicao entre as populaes residentes nas favelas e os rgos pblicos
competentes. Ainda que a orientao dominante na poca privilegiasse
o controle e a represso s favelas, este rgo tornou-se o primeiro
organismo voltado precisamente para a urbanizao das favelas,10
estimulando a elaborao e a implementao de projetos de desenvolvimento comunitrio com a participao ativa dos moradores.
nesse sentido que o SERFHA lanou, em 1961, uma ampla campanha
para que as favelas se organizassem com a criao de associaes
de moradores,11 sendo este inclusive um dos requisitos para que se
iniciassem os programas de cooperao envolvendo o rgo e as
localidades a serem atendidas. Assim, importante destacar que, ao
lado das associaes criadas espontaneamente por lideranas locais
ou um grupo de moradores, um grande nmero de associaes foi
criado por exigncia ou iniciativa de agentes externos, como a Igreja
Catlica e organismos governamentais. No caso do SERFHA, este
estmulo criao de associaes reflete o paradoxo da cidadania
brasileira para o qual Kant de Lima12 chamam a ateno, no qual o
acesso aos direitos no universalmente distribudo aos cidados,
mas est submetido ao enquadramento dos indivduos nos modelos
impostos pelos promotores das polticas pblicas.13
Apesar de o SERFHA buscar promover a cooperao entre o poder
pblico e os moradores das favelas, o que se configurava na prtica
era apenas a substituio da Igreja Catlica que na dcada de 1950
monopolizava as aes sociais nas favelas pelo Estado, mantendo-se a tendncia a subordinar politicamente os habitantes. De acordo
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12
13
Quando o SERFHA foi criado, em 1956, o Rio de Janeiro ainda era a capital do pas.
Inicialmente sem recursos, sua atuao restringiu-se ao apoio de iniciativas da Igreja Catlica
desenvolvidas por intermdio da Fundao Leo XIII e da Cruzada So Sebastio, at o
momento de sua reestruturao, em 1960, quando efetivamente comeou a funcionar.
Valladares (1978, p.23).
De acordo com Soares (1989), o primeiro movimento coletivo em defesa das favelas Unio
dos Trabalhadores Favelados (UTF) j estimulava, porm, nos anos 1950, a criao de
associaes de moradores para fazer frente s ameaas de remoo. Reunindo representantes
de diversas localidades, a UTF no tinha, porm, uma organizao poltica coordenando a
ao, mas vrios membros ligados ao movimento sindicalista j existente, que tinham uma
experincia de organizao e luta.
Kant de Lima; Mota (2005).
No contexto das polticas ambientais, Lobo (2006) destaca, por exemplo, que a maioria
das associaes, entre Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Colnias de Pesca, se constitui
por decorrncia de uma demanda ou, no caso das reservas extrativistas, por determinao
legal, sendo estas as nicas interlocutoras autorizadas a se relacionar com o Estado.
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com Burgos, revelador disso era o acordo que cada uma das novas
associaes era obrigada a assinar com o rgo, confundindo sua
identidade de representante dos moradores com a de interlocutores do
Estado junto aos mesmos. Como exemplo, o autor cita o compromisso
assumido pelas associaes de contribuir para a manuteno da ordem e o respeito lei nas favelas, garantindo, ainda, o cumprimento
das determinaes da coordenao e do governo.14
Alm disso, ainda que baseada numa relao assimtrica entre os
habitantes das favelas e o Estado, essa iniciativa de dilogo no
descartava a radicalizao do vis remocionista. Com a urgente necessidade de proteger-se contra um meio adverso, a capacidade de
resistncia dos moradores ganhou visibilidade pblica por meio de
associaes de carter mais amplo, como a Federao das Associaes de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), criada em 1963
com o objetivo de representar os interesses de todos os favelados,
divulgando suas razes de oposio remoo e tomando uma posio poltica frente a ela.15 Ao mesmo tempo em que os moradores se
organizavam, o Estado criava, contudo, mecanismos visando o seu
controle poltico. Um desses mecanismos foi a reforma, no mesmo
ano, da Fundao Leo XIII rgo criado pela Igreja Catlica para
dar assistncia material e moral aos habitantes das favelas e sua
respectiva transformao em autarquia do Estado. Cabe dizer que a
atuao expansiva da Igreja nas favelas tambm era motivada, dentre
outros fatores, pela preocupao com a chegada dessas populaes
arena poltica, o que a levou a subir s favelas antes que a temida
onda comunista descesse s ruas.
Com o golpe militar de 1964, houve o enfraquecimento do papel
poltico das favelas. Perdendo seu maior poder de barganha, muitas
de suas entidades representativas foram capturadas pelo Estado,
transformando-se em instrumentos de cooptao e controle dos moradores. A Coordenao da Habitao de Interesse Social da rea
Metropolitana do Grande Rio (CHISAM), por meio do Decreto 870,
de junho de 1967, reconhecia as Associaes de Moradores e seu papel
de representantes das favelas junto ao Estado, entretanto, colocava-as
diretamente sob o controle da Secretaria de Servios Sociais e das
Administraes Regionais. Alm disso, advertia que, caso no fosse
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seja considerado o carro-chefe do conjunto dos programas direcionados s favelas. Seu objetivo construir ou complementar a estrutura
urbana principal (saneamento e democratizao de acessos) e oferecer
as condies ambientais de leitura da favela como bairro da cidade.24
A partir desse mesmo ano, a prefeitura manteve contatos com o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) no intuito de adequar o
programa s exigncias da organizao e obter um financiamento que
permitisse consolid-lo institucionalmente. Em 1994, a prefeitura
criou a atual Secretaria Municipal de Habitao (SMH) e recebeu a
primeira misso do BID na cidade para exame e definio do convnio. Aps um processo de adequaes, o contrato entre a prefeitura e
o BID foi ento assinado, estabelecendo que 60% do financiamento
ficaria a cargo deste organismo.
Visando atender as necessidades do programa, adotou-se uma estrutura
organizacional que permitisse uma maior integrao com outros rgos
e secretarias, alm de maior funcionalidade no trabalho das diversas
coordenaes, que passariam a ser convocadas de acordo com as etapas
de implantao do programa, que sero a seguir apresentadas.
A primeira etapa consiste na realizao do concurso pblico e licitao dos escritrios de arquitetura, que passam a ter autonomia
na elaborao dos projetos de interveno. Nessa etapa atuam basicamente a Coordenao de Projetos, que estabelece as exigncias,
avalia e fiscaliza os projetos a serem executados, e a Coordenao
de Participao Comunitria, que dirige, em parte, o trabalho dos
Agentes Comunitrios de Habitao, que atuam nas reas atendidas
como ponte entre a prefeitura e a comunidade.25 Definida a rea e
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Joseph (1990).
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Souza (2001).
Na dissertao de mestrado (FREIRE, 2005) discutimos os diferentes sentidos atribudos
categoria favelado. De modo geral, podemos dizer que, entre muitos moradores de Acari,
ser favelado significa apresentar uma srie de comportamentos considerados moralmente
inferiores, iso , praticar tudo de errado, como jogar lixo na rua, andar sujo, drogar-se
e mendigar, funcionando, assim, como um estigma (GOFFMAN, 1982) do qual tentam a
todo custo escapar em busca de maior aceitao social.
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marcada pela presena de um intenso trfico de drogas e por acontecimentos relacionados pobreza, criminalidade e violncia.31 Em
2001, destacou-se nos meios de comunicao como o pior bairro
do Rio de Janeiro, a partir da divulgao do primeiro Relatrio
de Desenvolvimento Humano do Rio, elaborado em conjunto pelo
Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o
Instituto de Pesquisa Econmica e Aplicada (Ipea) e a Prefeitura da
Cidade. Segundo este relatrio, Acari seria o bairro com pior ndice
de desenvolvimento humano (IDH) da cidade, comparado aos pases
mais pobres da frica.32
Com a repercusso desse documento e a proximidade das eleies nos
anos seguintes, os governos estadual e municipal passaram momentaneamente a priorizar Acari na aplicao de suas polticas sociais.
Logo aps a publicizao do relatrio, construiu-se, por exemplo, na
localidade, o primeiro restaurante popular municipal e ampliaram-se programas sociais de renda mnima, como o Cheque-Cidado.33
Dentre as aes da prefeitura, destacaram-se a construo, em 2004,
do primeiro hospital municipal da Zona Norte (H. M. Ronaldo Gazola), embora at hoje ainda no inaugurado; e a implantao, iniciada
em 2003, do Programa Favela-Bairro. Conforme nos disseram tanto
lderes comunitrios quanto uma engenheira da SMH, se a interveno urbana em Acari j era prevista pela prefeitura e solicitada pelas
Associaes de Moradores locais, a especificidade desse momento
poltico-social certamente contribuiu para acelerar o processo.
O papel das Associaes de Moradores no processo
de interveno urbana
31
32
33
Dentre estes acontecimentos, os mais conhecidos so: a existncia da Feira de Acari, que
funcionou dos anos 1970 at 1996 e era conhecida como Robauto por vender produtos e
peas de automveis roubados, e o caso do desaparecimento de 11 jovens em 1990, a maioria
moradores de Acari, depois de sequestrados e supostamente assassinados por policiais
militares, culminando no surgimento do movimento que ficou conhecido internacionalmente
como Mes de Acari, que cobrava a apurao das mortes e a punio dos culpados.
O ndice de desenvolvimento humano (IDH) calculado pela renda familiar per capita,
expectativa de vida, taxa de alfabetizao de maiores de 15 anos e nmero mdio de anos
de estudo.
Programa do Governo do Estado que atende famlias com renda per capita inferior a R$50,00/
ms. Por meio das instituies religiosas nas prprias comunidades, as famlias beneficiadas
recebem um cheque mensal de R$100,00 a ser trocado nos supermercados cadastrados por
produtos alimentcios.
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Como esta reunio ocorreu antes de iniciarmos o trabalho de campo, os dados aqui no
resultam de uma observao direta, mas foram extrados dos relatos de pessoas que
participaram ou estiveram envolvidas na realizao da reunio.
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cartazes haviam sido colocados pelo movimento, que estaria inclusive apoiando uma das trs chapas candidatas. Conforme observamos
no trabalho de campo, o apoio do movimento converte-se, em
muitos desses casos, em voto compulsrio. Isso ocorreria, segundo
um agente comunitrio, porque a maioria dos moradores tm medo
dos traficantes e acaba fazendo o que eles pedem. Outro agente lamentava, contudo, a possvel submisso dos moradores, que, na sua
opinio, no sabem a fora que tem. De modo geral, podemos dizer
que o interesse do movimento pelas Associaes de Moradores
era suscitado pela possibilidade de participar da gesto de diversos
assuntos considerados de interesse pblico e que poderiam, direta ou
indiretamente, interferir no mercado local de drogas, como a deciso
sobre a manuteno ou retirada de um ponto de vigilncia policial ou
sobre o que seria construdo nas reas selecionadas pelo programa.
Para melhor compreender a complexidade dessas relaes, abordaremos aqui uma situao em torno do que seria construdo em um
terreno de uma das localidades. No plano de interveno inicialmente
aprovado na assembleia, estava prevista para essa rea, prxima
sede da Associao de Moradores, a construo de uma creche para
120 crianas e uma praa pblica equipada com brinquedos infantis.
Para desocup-la, cerca de 20 construes, entre residncias, pequenos
estabelecimentos comerciais e o templo de uma igreja evanglica,
tiveram de ser removidos.38 No decorrer da implantao do plano
de interveno para essa rea, uma srie de negociaes comeou,
entretanto, a ocorrer por trs, como alguns nos definiam, ou seja,
nas instncias da informalidade e da pessoalidade, cujos atores direta
ou indiretamente envolvidos eram a Associao de Moradores, os
agentes comunitrios, os tcnicos do programa e o movimento.
Quando o terreno selecionado estava quase totalmente desapropriado e a construo da creche j se iniciava, o dirigente da associao
dirigiu-se aos tcnicos do programa para solicitar, em nome da
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Vidal (1998).
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Essa instabilidade ratificada pela pesquisa realizada pelo IBASE (2000) em oito
comunidades e bairros da Grande Tijuca, que identificou como os quatro maiores desafios
colocados hoje s Associaes de Moradores: a busca por representatividade, a manuteno
da participao, a no submisso aos chefes do trfico de drogas e, nas parcerias, a no
aceitao sem discutir das regras dos projetos governamentais e no-governamentais.
Souza (2001).
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Algumas demonstraes do respeito pelos lderes comunitarios e religiosos era a atitude dos
traficantes de evitarem ser flagrados por eles nas ruas vendendo ou fazendo uso de drogas,
alm de nunca entrarem nas dependncias das associaes portando drogas ou armas de
fogo.
Segundo Souza (2001), a retribuio dos moradores pelas ajudas do trfico, como o
pagamento do aluguel para quem no tinha condies financeiras e a compra de remdios
para os doentes, evidenciava-se, por exemplo, na demonstrao pblica de gratido e
solidariedade aos traficantes mortos pela polcia. Somente no enterro do traficante Jorge
Luiz, em meados de 1996, estiveram presentes cerca de 3000 moradores, que seguiram num
cortejo de 13 nibus para lhe dar o ltimo adeus.
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atividade da associao e que a representao negativa das associaes poderia dificultar a sua aproximao inicial com os moradores.
Enquanto a atuao dos agentes comunitrios resume-se a um contexto
delimitado e provisrio, a atuao das Associaes de Moradores
extrapola esses limites ao serem consideradas pela prefeitura como
representantes legtimas das populaes residentes nas favelas. Conforme vimos em Acari, por meio dessas organizaes, por exemplo,
que convocada a assembleia para apreciao do plano de interveno
urbana junto populao a ser atendida. Independentemente do que
decidido nessa ocasio, na prtica, ao longo de todo o processo de
implantao do programa, as Associaes de Moradores tm o poder
de interferir e propor alteraes no plano inicialmente aprovado, sem
que, para isso, seja necessria a convocao de novas reunies pblicas. Para os tcnicos do programa, na medida em que os dirigentes
das associaes falam em nome da comunidade, suas demandas
devem ser consideradas. Alm disso, as particularidades de cada
associao exigem uma adaptao constante dos representantes do
poder pblico ao perfil de seus dirigentes. A relao personalizada
com as associaes assumida pelos prprios tcnicos do programa,
quando a engenheira nos diz: as associaes so bem diferentes,
cada uma de um jeito. Ento com cada um dos presidentes a gente
vai levando tambm na linha que eles fazem.
Apesar de o trabalho de campo evidenciar o quanto essas organizaes
esto em permanente tenso, sendo submetidas s foras e aes de
diversos atores, ter uma Associao de Moradores que desempenhe
de forma ativa a funo de defender os interesses coletivos pode fazer
a diferena no mbito do Programa Favela-Bairro, por exemplo, no
que se refere elaborao do plano de interveno de acordo com
as demandas dos moradores e qualidade das obras executadas nas
localidades. Como nos dizia o ex-dirigente de uma das associaes
de Acari, a comunidade muitas vezes perde quando a associao no
mostra interesse, quando no existe um acompanhamento de perto
da liderana. Nesse sentido, sua fiscalizao e acompanhamento
contnuo (antes de haver a unificao das associaes) foram fatores
importantes para que a sua comunidade recebesse obras de melhor
qualidade do que as demais, fato reconhecido at mesmo pelos moradores das trs localidades.
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Cefa (2002).
Lobo (2006).
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Mais do que isso, Boschi e Valladares (1983) apontam que os rgos implementadores de
polticas pblicas, notadamente aqueles voltados para as populaes das favelas, mocambos
etc. apropriaram-se direta ou indiretamente de toda a teorizao anterior a respeito da ideia de
comunidade, seja aquela que a definia como ncleos idelizados de tipo rural, por constraste
aos aspectos negativos do urbano, seja aquela que a definia como ncleos espacialmente
segregados e marginalizados.
Silva (1967).
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Embora em muitos casos os lderes locais se tornem importantes cabos eleitorais, a prometida
retribuio nas urnas nem sempre ocorre, j que, como dizem os moradores, aps as eleies os
polticos tendem a esquecer a comunidade. Como j dizia Medina (1964, p.88), tal situao
muitas vezes no passa de uma simulao, em que o eleitor diz que vai votar, mas no vota. O
cabo eleitoral finge que acredita, mas no acredita. O candidato, pelo menos antes da eleio,
embora j informado pelo cabo eleitoral, continua afirmando que conta com o apoio de todos.
Gusfield (1975).
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REFERNCIAS
BOSCHI, Renato Raul; VALLADARES, Licia do Prado. Problemas
tericos na anlise de movimentos sociais: comunidade, ao coletiva
e o papel do Estado. Espao & Debates, So Paulo, n. 8, 1983.
BRIGGS, Asa. O conceito de lugar. In:
. A humanizao
do meio ambiente: Simpsio do Instituto Smithsiniano. So Paulo:
Cultura, 1972.
BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletrios ao Favela-Bairro: as polticas pblicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (Org.). Um sculo de favela. Rio de
Janeiro: FGV, 1998.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de et al. Cultura poltica e cidadania: uma proposta de metodologia de avaliao do Programa
Favela-Bairro. Rio de Janeiro: FINEP: SMH-Rio: IUPERJ, 1998.
CEFA, Daniel. Quest-ce quune arne publique? In:
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ENGAJAMENTO POLTICO
E MOBILIZAO COLETIVA
EM NOVA IGUAU
RJ: BASTIDORES DA
MOBILIZAO DO MAB NAS
CONFERNCIAS DAS CIDADES
Jussara Freire1
Introduo
Este artigo2 tem como objetivo descrever algumas das cenas anteriores conferncia municipal de Nova Iguau. Mais especificamente,
buscarei analisar as provas e disputas acerca da nomeao dos porta-vozes da Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau
(MAB). Atravs desta descrio, proponho interpretar certas competncias polticas em situao de construo de uma causa comum
e certas tenses provocadas por enquadramentos diferenciados dos
atores desta federao em torno do projeto e das reivindicaes do
MAB. A anlise dessas tenses permitir avaliar como este coletivo
explora o espao pblico, mobilizando recursos disponveis e disponibilizados, como no caso da Conferncia Nacional das Cidades.
Partir desta perspectiva implica descrever as competncias ordinrias
dos atores polticos do MAB. Esta discusso consiste, portanto, em
uma sociologia descritiva da ao coletiva no curso de sua elaborao
desde os seus bastidores at o momento de sua visibilidade diante
de outras arenas pblicas. Neste artigo, privilegiarei os bastidores
da ao coletiva do MAB, suas micro-arenas pblicas,3 enquanto
ponto de partida do trabalho de descrio, sem pretender, no entanto,
encontrar a origem dos assuntos problematizados na Conferncia
Nacional das Cidades. Estes bastidores so ambientados na sede do
MAB e na cidade de Nova Iguau.
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De antemo, vale advertir que este artigo tem como objetivo mais
geral entender como se organiza a experincia militante e sua relao
com os modos de engajamento das pessoas na Federao. Por este
motivo, a nfase da descrio ser voltada para as formas de coordenao situadas e observadas em reunies deste coletivo. Neste sentido,
o desafio deste texto modesto (e ao mesmo tempo ambicioso),
uma vez que buscarei destacar pequenos detalhes de sequncias de
situaes de reunies, que me parecerem altamente significativos para
compreender como se organizam as experincias militantes das pessoas engajadas na Federao. Por este motivo, buscarei compreender
como o arranjo desses pequenos detalhes, atores ordinrios, tenses e
objetos, a priori insignificantes ou secundrios, est no princpio das
atividades de negociao, de engajamento e de mobilizao coletiva.
Diante desse objetivo, vale ainda apresentar sumariamente o quadro
analtico que conduziu minhas observaes durante a minha pesquisa
de campo. A perspectiva deste artigo fundamenta-se na sociologia
norte-americana dos problemas pblicos, particularmente na abordagem de Gusfield,4 que consiste em focalizar o olhar sociolgico
no processo de publicidade do ponto de vista dos atores sociais
nele envolvidos e em seu movimento espacial-temporal, sempre em
curso de elaborao. Complementarmente, baseio-me na chamada
sociologia pragmatista francesa (em particular, nos trabalhos de Luc
Boltanski e de Laurent Thvenot), que oferecem preciosas ferramentas
conceituais para observar operaes crticas, provas e disputas. So
recortes analticos que permitem focalizar o olhar sociolgico nos
processos de constituio e de formao de espaos pblicos a partir
das crticas elaboradas pelos atores sociais em situao. Permitem,
assim, analisar coletivos a partir das percepes dos prprios atores
sobre o que consideram justo e injusto, de situao em situao, e
entender como estes sensos do justo e do injusto constituem a trama
da construo da ordem pblica.
Adotar esse ponto de vista implica partir de uma postura descritiva
e interpretativa do ponto de vista do agente competente. Na mesma
direo da etnometodologia. Entendo pela expresso de agentes
competentes que as pessoas possuem e desenvolvem competncias
prprias quando problematizam determinados assuntos, mesmo que
suas formulaes no sejam compartilhadas pelo observador. Uma
4
Gusfield (1981).
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Goffman (1991).
Gusfield dedica o Captulo 7 deste livro dimenso dramatrgica da ao pblica. No entanto,
vale assinalar que ele no se inspira conceitualmente apenas nos trabalhos de Goffman e de
Burke. O autor enfoca trs perspectivas da ao pblica: do ponto de vista da performance,
de sua encenao e, por fim, da visibilidade de atos, experincias e emoes despertadas
em torno de um evento (GUSFIELD, 1981, p.77).
Boltanski; Thvenot (1991).
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Gusfield (1981).
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Estatuto do MAB (com alteraes includas em 2003, p.1). Vale destacar que os assuntos
apresentados no so especficos Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau.
Com efeito, este repertrio um arranjo de vrias reivindicaes dos movimentos de base
do perodo ditatorial com aquele do perodo de transio democrtica, que se soma, por sua
vez, aos tpicos inseridos na gramtica poltica nos anos 1990 e 2000.
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Latour (1999, p.213). A construo dessas caixas pretas est intimamente vinculada s
abordagens sociolgicas e recortes tericos empregados no Brasil e assemelha-se ao que
Giddens nomeou de dupla hermenutica (GIDDENS, 1989, p.303). Embora de forma
muito distinta, esta ideia tambm est presente no quadro analtico de Boltanski; Thvenot
(1991); Boltanski (1990), empregado neste artigo e que apresenta o interesse de insistir nas
competncias mobilizadas por atores corriqueiros quando recorrem a conceitos ou recortes
das cincias sociais em funo da situao na qual eles se encontram. Lembrando este tipo
de abordagem, em um artigo de 1985, Machado da Silva e Ribeiro mostraram que a origem
do paradigma das pesquisas sobre movimentos sociais centra-se em torno de duas vertentes:
a anlise estrutural de Castells e Lojkine, a anlise de Weffort e, sobretudo de Moiss
(MACHADO DA SILVA; RIBEIRO, 1985). Descrevendo a construo dos paradigmas dos
movimentos sociais brasileiros, este trabalho particularmente interessante para observar
como estes paradigmas so mobilizados nos movimentos sociais (FREIRE, 2005).
Latour (1993).
Para preservar o anonimato e os termos do que foi decidido com os protagonistas do meu
trabalho de campo, alterei nomes, algumas datas e lugares. No creio que esses cuidados
tenham afetado a fidedignidade da descrio apresentada.
Machado da Silva ([20--]).
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Desde o final da dcada de 1970, os recursos mobilizados pelos membros do MAB diante dos obstculos para seu acesso ao espao pblico
seguiam uma mesma e constante forma emotiva: a denncia do descaso ou dos maltratos dos governantes em relao aos moradores
de bairros pobres da cidade e o lamento da tristeza e a humilhao que
sentiam por viverem em Nova Iguau.22 As reivindicaes e as formas
de dar-lhes visibilidade no espao pblico ajustavam-se aos contextos
municipais, estaduais e nacional dos anos 1970 e 1980. Mas o processo
de redemocratizao introduziu, paulatinamente, certas mudanas nos
repertrios reivindicativos do MAB, na medida em que passou a criar e/
ou a dar acesso a novos espaos de negociao e de concertao. Ainda
assim, dependendo das situaes nas quais se encontram os membros
do MAB, pode-se observar, ainda hoje, a mobilizao de repertrios
emotivos semelhantes queles mobilizados em dcadas anteriores.
A agenda poltica do MAB, desde o incio de 2003, foi particularmente
intensa. Nesse ano, em que se realizou um congresso da Federao,
cursos diversos de capacitao, seminrios, participao em novos
conselhos municipais e em vrias conferncias adicionaram-se s
atividades cotidianas dos diretores e filiados ao MAB. Sem ter ainda
clareza de quais seriam as iniciativas do Ministrio da Cidade, a diretoria
j previa novos espaos de debate no que tange s questes urbanas.
Mas a notcia da realizao da Conferncia Nacional das Cidades criou
uma certa efervescncia no MAB. A diretoria da Federao necessitava reunir as suas associaes. No incio do ms de fevereiro, com o
objetivo de preparar o congresso do MAB e de esclarecer o papel das
associaes de moradores na nova conjuntura, a diretoria organizou a
primeira reunio anual do Conselho dos Representantes23 (denominado,
pelos membros do MAB, na sua forma abreviada, CR).
22
23
Freire (2007).
O Conselho dos Representantes um rgo deliberativo ordinrio do MAB, sendo
constitudo por trs representantes de cada Associao por ela indicada, sendo um nato e
dois eleitos, tendo direito ambos a voz e voto, como definido no Captulo V do Estatuto do
MAB (com alteraes aprovadas no Congresso do MAB de 2003), art. 17, p.6. O Conselho
dos representantes formado apenas por presidentes de associaes de moradores e uma
instncia autnoma da presidncia e da diretoria da federao. Quase todas as decises da
federao precisam ser aprovadas pelo Conselho dos representantes.
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No dia da primeira reunio do CR, em fevereiro de 2003, os participantes da reunio entraram aos poucos na sede do MAB. Muitos
se cumprimentaram de forma bem humorada. Alguns presidentes de
associaes conversavam no ptio. Ao passar o porto, os participantes
atravessaram um ptio: uma grande rea coberta de alumnio espao
hbrido, entre o porto e o galpo cujo piso revestido de cimento
encerado. Nos fundos, uma varanda, a entrada do que era uma casa.
Podia-se ainda entrever a sala da diretoria, um antigo quarto. Ali,
algumas pessoas sentavam-se nas cadeiras e carteiras espalhadas em
torno de uma mesa retangular e discutiam. Algumas sussurravam.
Muitas movimentavam as mos com entusiasmo, outras atendiam o
telefone celular pondo uma das mos em frente boca. Um diretor,
que gostaria de fazer uma chamada, reclamava do no pagamento da
conta do telefone fixo do MAB. A linha fora cortada, no se podia
fazer ligaes da sede e seu celular, pr-pago, estava sem crdito.
Celulares, armrio e mesa de escritrio, cadeiras, vozes, pilhas de
processos, cartas de denncias nos cantos da mesa (feitas por filiados do MAB ou conselheiros municipais), pessoas e gestos eram os
componentes da sala da diretoria, tpicos de um dia de reunio. Em
breve, estes humanos e alguns no humanos seriam transferidos para
outra sala.
Antes, os participantes dirigiram-se para uma velha mesa de escritrio, estragada pelo tempo, perto da sala da diretoria, coberta por
uma toalha branca plastificada cujas bordas imitavam renda e flores
artificiais. Um diretor havia posto sobre ela uma cafeteira eltrica,
um pote de plstico com acar e outro com alguns biscoitos, doces e salgados. Pequenos gestos, cuidados e atenes, que criavam
uma relao de proximidade entre a sede e seus frequentadores: um
lugar de convvio e hospitaleiro. Tais atenes contribuam para o
envolvimento dos representantes das associaes de moradores nas
interaes das reunies em um regime de familiaridade;26 para que
se sentissem membros da casa naquela zona da sede e, por vezes,
na sala da diretoria. Ao se entrar na sala de reunio, no entanto, os
objetos que povoavam o lugar j indicavam outro ambiente. Faziam
com que os participantes transitassem para outro mundo, o da poltica,
ainda que sempre houvesse uma possibilidade de se deixar coabitar
esses dois mundos domsticos e polticos em todas as zonas da sede.
26
Thvenot (1994).
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Ao longo da fala da presidente, muitos participantes da reunio anotaram cuidadosa e religiosamente as informaes passadas nas suas
agendas, instrumentos indispensveis para tentar evitar superpor
dois compromissos no mesmo dia. Naquela situao, porm, alguns
filiados e presidentes de associao de moradores no se sentiram
contemplados pela interveno da presidente, particularmente, Lilia27
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A seguinte descrio foi realizada a partir de uma filmagem que realizei nessa reunio.
No tendo muito espao, neste artigo, para discutir as implicaes da presena da cmera,
o que seria indispensvel, vale fazer um breve comentrio. Iniciei meu trabalho de campo
em Nova Iguau em 2002. Durante um ano, participei de quase todas as reunies ordinrias
e extraordinrias da Federao. Tambm acompanhei as atividades de muitas associaes
de moradores. Teci, aos poucos, uma relao de maior proximidade com os presidentes
dessas associaes, que escolhi em funo da maior frequncia dos mesmos s atividades
da federao. Aps um ano, j construda essa familiarizao com os presidentes da
associao, avaliei que era indispensvel filmar algumas reunies para poder analisar mais
detalhadamente a ordem dessas situaes. Perguntei, ento, aos diretores do MAB, se eu
poderia filmar as reunies, avisando que no tinha qualquer familiaridade com a realizao de
filmagens e que este material apenas seria destinado anlise. Eduardo Coutinho comentou
que a presena da cmera torna a pessoa filmada em personagem pblica. A presena desse
objeto gera uma situao ldica para a pessoa filmada, que se caracteriza ora por um jogo
com a cmera, ora por momentos de esquecimento da cmera. O autor tambm se referiu
dimenso teatral instaurada pela situao de filmagem (Entrevista com Eduardo Coutinho,
Revista Moviola, udio, 27/09/2007). Na descrio a seguir, relato o que pude observar em
termos dessa passagem das pessoas filmadas em personagens. Porm, parece-me que esta
passagem tambm estava presente nas reunies sem a interferncia da cmera. No percebi
mudanas radicais de condutas, de gestos ou de falas. Contudo, o que pude constatar, pelo
menos na reunio que descrevo a seguir, que a presena da cmara realou, por vezes,
francamente, sua dimenso teatral sem, porm, transformar as situaes desta reunio em
algo desvinculado das outras reunies (nas quais no se utilizou a cmera) que eu havia
observado anteriormente. Interessada na anlise dramatrgica, este exagero pareceu-me ser
extremamente rico para a anlise das situaes na medida em que ele acentuou pontos que
eu no tinha percebido nitidamente sem a cmera. Retomando a discusso de Valter Fil,
o audiovisual uma linguagem que oferece e acolhe certas narrativas. Este ponto constitui
o cerne do problema que ele se prope a analisar: Estou considerando, neste trabalho,
a escritura verbal e a audiovisual, que vai acolher as narrativas. A riqueza est em que
cada forma de expresso guarda formas distintas de produo, de produzir-se produzindo,
potencializando sensibilidades diferentes (PEREIRA; FIL, 2006, p.6).
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automaticamente de cinco vagas enquanto as associaes de moradores da cidade precisavam eleger cinco titulares e cinco suplentes. Ao
longo de sua explicao, ela acrescentava e apagava somas e siglas
no quadro, que acabou, em uma certa sequncia, com esta aparncia:
TABLEAU
A explicao no foi muito clara e a mobilizao do dispositivo-quadro no ajudou muito a esclarecer sua exposio. Silncio na plateia.
Esforado, um presidente de associao, na plateia, olhava para o cu
e, concentrado, parecia fazer clculos mentais. Outro arregalava os
olhos, como se emitisse sinais de incompreenso. Uma outra anotava
em seu caderno, interrompendo sua escrita a cada cinco segundos.
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Goffman destacou a importncia das exclamaes e analisou que certas expresses podem
ser meios de superar um certo estado e de se livrar de uma preocupao, doravante suprflua,
j que acabou de acontecer. Cf Goffman (1981. p.85-132).
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Diante do conflito, Leila apelou para a realizao de estudos e levantamentos. Recorria a tais recursos tcnicos como uma alternativa
para apaziguar o questionamento do diretor:
Leila: Estamos querendo ver quem est e no
est em Nova Iguau... Para isso, vamos fazer
um estudo... A gente vai fazer um apanhado
geral daquela regio... Ento, nos iremos depois
definir Miguel Couto.... [...] importante para
o MAB, a gente fazer isso...
Encaminhar ou questo de encaminhamento so categorias cruciais da gramtica poltica e militante. Como a metfora verbal indica,
encaminhar significa literalmente ir para frente e seu emprego naquele contexto traduzia a emergncia de voltar ao objeto da reunio
que, do ponto de vista da presidente e seu vice, j fora esquecido
havia um bom tempo. As interaes lhes pareciam desprovidas de
sentido e a ordem da situao estava ameaada de fracassar. Neste
sentido, ao pronunciar o termo encaminhar de forma exclamativa,
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Deleuze (2000).
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Na primeira sequncia, Odvam exasperou-se por passar uma informao que deveria j ser compartilhada e assimilada por todos.
Ao mesmo tempo, as interjeies como pelo amor de Deus, ou
ainda, as entonaes espantadas, constituram uma forma de realar
a clivagem comunicativa provocada pelo erro de enquadramento. O
desajustamento devia ser corrigido e a atuao de Odvam, enquanto
vice-presidente da Federao, consistiu em lembrar que o papel a
ser encenado naquela situao era o de um coletivo. A conveno
em torno deste princpio manifestou-se exemplarmente na segunda sequncia. Naquele instante, os falantes da plateia e do palco
reuniram-se. Esta concentrao em torno de um princpio comum
pode ser observada por meio dos indicadores de cooperao conversacional, ou sinais de feed back (back channel signals)38 da segunda
sequncia. Tais sinais foram formulados com insistncia e de forma
repetida, o que sugere uma certa intensidade da concentrao de todos
em torno desse princpio. interessante observar, tambm, que esta
foi a primeira sequncia da situao de reunio na qual puderam ser
observados sinais de cooperao conversacional. Alm disso, foi a
primeira sequncia, desde o incio da reunio, em que as discordncias
passaram a pano de fundo. A disperso da reunio e das pessoas, que
caracterizara muitas das sequncias anteriores, foi temporariamente
suspensa. Percebendo esta recepo da plateia, Odvam reforou
sua interveno anterior com uma explicao exemplificada, na
terceira sequncia, que envolveu outro diretor do MAB. As ilustraes fundamentaram-se no duplo engajamento de dois diretores do
MAB. Nesta sequncia, Odvam aproveitou a ocasio para tambm
oferecer uma trgua queles que haviam questionado a inteno dos
diretores do MAB (o que pode ser percebido, particularmente, com
o ditado: no vamos fazer tempestade em copo dgua). Na quarta
sequncia, surgiu um novo sinal de feed back. Porm, como se pode
perceber, apenas uma pessoa entrou na sequncia. Nesse momento,
conversas paralelas voltam a dispersar a plateia. Leila aproximou-se
de Odvam neste instante: voltou a compor a mesa, portanto, subindo novamente no palco. Encenou esta subida batendo na mesa
para ser ouvida. Na quinta sequncia e na stima, Leila acrescentou
uma avaliao emotiva s palavras de Odvam, manifestando um
sentimento de indignao para enfatizar a dimenso inaceitvel e
intolervel do comentrio da pessoa que despertara a polmica. Sua
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Simmel (1995).
Ibidem, p.42.
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REFERNCIAS
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171
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ENTRE COMUNIDADE
E PBLICO: SEGUINDO
O CURSO DE AO DE UM
CONFLITO DE URBANIDADE
EM CARACAS, VENEZUELA
Pedro Jos Garcia Sanchez1
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Rancire (1998).
Associao de moradores dos Bairros de Altamira e de La Castellana.
Associao dos Usurios do Parque Nacional El Avila.
Este princpio interacionista de mtodo exige apropriar-se da ao, segui-la durante todo
seu desenvolvimento. Cf. Cicourel (1979).
Strauss (1992).
Boltanski; Thvenot (1991).
Este subttulo retoma o subttulo de um artigo da jornalista E.Araujo (El Nacional, 03/11/96,
p.D/8). Minha interveno questiona entretanto a pertinncia da gramtica da guerra para
analisar os diferenciais prprios dos conflitos de urbanidade.
Haegel; Lvy (1998).
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Estou cansado das pessoas que estacionam seus carros em qualquer lugar, dos
engarrafamentos que s vezes nos impedem at de sair de casa, da xixi que fazem na entrada
do parque e do barulho do alarme de seus carrosdesde s 4 horas da manh. Eu quero acabar
com toda essa baguna que as pessoas que vm de fora, em nome da sadee do esporte,
querem nos impor. No h a menor necessidade de dilogo. Eu espero apenas que o prefeito
assine o decreto para efetuar o fechamento.
Dentre as cinco Prefeituras que dividem a Cidade em termos poltico administrativos,
somente a municipalidade de Baruta props uma poltica de regularizao das DRUs.
Mas, mesmo neste caso, um grupo significativo de associaes de ribeirinhos s informam
municipalidade sobre a instalao e funcionamento deste dispositivo depois de faz-lo.
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Simmel (1992).
Freund (1983) um exemplo de sries dadas no programa de Simmel.
Cefa (2002, p.51-83).
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Joseph (1998).
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Simmel (1192).
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aqueles do Leste. Mesmo se a Aruaca atribui frequentao excessiva o facil acesso de Sabas Nieves, a reputao dos lugares
fundamental para captar os problemas comuns, que so o cerne do
domnio pblico urbano.
Considerando a maneira como os ribeirinhos de Altamira Norte
desencadearam o conflito, assim como o processo de normatizao
socioespacial e poltico que permitiu sDRUs, em Caracas, se propagar com uma velocidade e uma legitimidade impressionantes, a
iniciativa do bloqueio parte de um pressuposto: mesmo se a instalao
das DRUs permanecesse ilegal nos 2/3 do territrio metropolitano,
seria um fenmeno to corriqueiro em Caracas (no esprito da poca) que a sua refutao tornar-se-ia impossvel devido ao seguinte
argumento: todo mundo faz. Filtrar o acesso das populaes para
controlar o uso do espao no uma forma nova de administrar o
territrio mas, em Caracas, isto assume um lugar especial no discurso
de gesto do domnio urbano.
Trata-se de uma forma de privatizao do espao pblico que no
se materializa por via contratual, mas pela dissuaso de seu uso. A
presena fsica e simblica das DRUs cristaliza, sob a forma de um
mecanismo urbano de segurana, os instrumentos desta dissuaso.
Esta ltima se apoia igualmente na pressuposio da inexistncia
de entidades suficientemente organizadas e aptas para enfrentar as
provas judiciais, administrativas, miditicas e polticas que adviro
to logo iniciado o conflito.
A dissuaso tem lugar quando as autoridades declaram publicamente
a propriedade pblica ou privada dos terrenos nos quais se situa o
acesso em questo sem, no entanto, dispor da nica prova de validade (o contrato de propriedade). A sequncia dos acontecimentos
revelou que os terrenos, certamente, so propriedade privada de um
indivduo que no mora em Altamira Norte e que tambm no quer
levantar a sua bandeira.24
24
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De acordo com o princpio da representatividade, um grupo de pessoas pode considerar a possibilidade de consensualizar sobre alguns
critrios, mas divergir de outros, sem que isto ponha em dvida o
pertencimento comunidade. O modelo de democracia representativa
funciona a partir desta presuno de pluralismo. Assim, o argumento
que os ribeirinhos tentam fazer prevalecer (de que a dependncia
poltica dos eleitores restringe a atuao das autoridades municipais
perante os eleitores que so pelo bloqueio) incoerente, pois no leva
em conta esta possibilidade de divergncia inerente ao modelo do
pluralismo democrtico em uma comunidade.25 A prpria constituio
da Asovila e as aes que ela desenvolve questionam o segundo
fundamento cvico, colocando assim em evidncia os dogmas de uma
estratgia de dissuaso que pode no chegar a termo.
O conflito de Sabas Nieves serve de espelho para que se perceba como
os atores coletivos se justificam, mobilizam recursos para executar
aes e so medidos regularmente por meio de testes prprios para
situaes de conflito. Esses testes sancionam a conquista de uma
legitimidade e a busca de um resultado favorvel. Mas tambm defi25
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feito em perodos relativamente curtos (de uma a trs horas, aproximadamente). Aqueles que o praticam habitualmente criam com mais
facilidade laos de sociabilidade com os outros subecerros. So tambm
os que detm um conhecimento maior sobre os pontos de referncia e
as limitaes do uso do espao devido familiaridade com o lugar que
eles desenvolveram. A maioria desses esportistas liderou o movimento
de oposio s exigncias privativas da Aruaca. A calma e o descanso
advm das atividades, caminhadas, passeios na montanha, mas tambm
do charme do prprio ambiente. Por exemplo, um usurio nos disse
que o que importa no tanto os cuidados com a sade pela prtica de
um esporte, mas a caminhada que permite combinar esforo fsico e
pura descontrao. Essa forma do uso do espao talvez to frequente
quanto a anterior, mas esses passeios normalmente tomam mais tempo:
um dos objetivos precisamente o de mudar o ritmo acelerado de vida
acelerado ao qual os citadinos so forados em suas atividades na
cidade. O prazer que a caminhada pode proporcionar se apresenta
como uma experincia que fica no meio do caminho entre o esforo
fsico que exige e uma atividade de relaxamento. Ela demanda mais
tempo (pelo menos um dia) e requer um equipamento necessrio, seja
para acampar (se este for o objetivo), seja para permanecer durante o
dia sem ter problemas... de abastecimento. Esse tipo de uso pode ser
ocasional ou habitual e uma permisso por escrito dada por Inparques
necessria. Encontramos aqui percursos mais longos que s vezes
levam s proximidades do mar do Caribe ao cabo de alguns dias.
Apesar disso, ser que podemos usar tal justificativa, ancorada em uma
natureza que , ao mesmo tempo, ambiente (a paisagem do parque),
constituinte (a sade) e reconstituinte (o esporte), com dimenses
ecolgicas designadas segundo um quadro dos mundos de ao
em comum? Sua definio parece dizer respeito somente ao meio
natural do parque e s qualidades enfatizadas por seu uso esttico. A
importncia adquirida em Sabas Nieves pelo argumento da sade e de
sua manuteno como qualidades constitutivas da natureza humana,
obrigam a problematizar a pertinncia dos parmetros que definem
o que ecolgico nesse modelo de anlise.27
27
Em uma cit verte, ecolgico aquele que por suas aes prova sua preocupao com o
meio ambiente e concorre para sua proteo [...] os grandes seres no so obrigatoriamente
pessoas, coletivos ou instituie, mas sim elementos naturais como a gua,, a atmosfera,
o arr [...] Os pequenso seres so aqueles que poluem como o smog( fumaa de zonas
industriais), o plstico no reciclvel (LAFAYE; THVENOT, 1993, p.512-513; ver
tambm THVENOT, 1996, p.27-50).
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O Procurador Municipal cite o artigo 539 do Cdigo Civil: So bens do domnio pblico:
os caminhos, os lagos, os rios, as fortificaes,as fossass,as pontes de praa de guerras e
outros bens similares. Ele acrescenta O loteamento onde se situa o acesso no pertence
Prefeitura,no cabe s autoridades municipais impor medidas de bloqueio como esta que
foi feita.
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30
Esta disposio tem, entretanto, um fundamento jurdico que permite atuar de forma contrria
ao que determina o relatrio do Prefeito: porm, se no mnimo cinco vereadores municipais
estiverem de acordo em aportar novos elementos que justifiquem e reafirmem o bloqueio,
o decreto pode ser validado. o mesmo Prefeito que, ironicamente, afirma: como vocs
esto vendo, o direito serve para tudo.
El Nacional, 26/11/96, C/2.
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Desde os anos 1970, as associaes de ribeirinhso apareceram em Caracas como uma nova
opa de participao poltica em escala local (GMEZ, 1987, p.271-293). Por exemplo, a
Lei de Urbanizao e Remanejamento Urbano de 1987 atribui a essas associaes um papel
indispensvel durante o traado das plantas dos projetos.
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Joseph (1998).
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REFERNCIAS
BOLTANSKI, L.; THVENOT, L. De la justification: les conomies
de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.
CEFA, D. O que uma arena pblica?: algumas pistas em uma
perspectiva pragmtica In: CEFA, D.; JOSEPH, I. (Ed.). Lhritage
du pragmatisme: conflits durbanit et preuves de civisme. La Tour
dAigues: Editions de lAube, 2002. p.51-83.
CICOUREL, A. La sociologie cognitive. Paris: PUF, 1979.
DAVIS, M. City of Quartz: excavating the future in Los Angeles.
New York: Vintage, 1992.
DELGADO, M. El animal publico. Barcelona: Anagrama, 1999.
36
Sublinhemos aqui este triplo sentido que pode ter, tanto em espanhol quanto em portugus,
o adjetivo comum: (1) que pertence ou que se aplica a vrias pessoas ou coisas, (2) que
se refere ao maior nmero, mas tambm (3) que banal, habitual, usual, corrente.
194
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ASSOCIATIVISMO:
Laos voluntrios ou compulsrios?
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QUANDO AS ASSOCIAES
SO VOLUNTRIAS
NO BRASIL? UMA DISCUSSO
SOBRE NOVAS FORMAS
DE COLONIALIZAO
EM RESERVAS EXTRATIVISTAS
Ronaldo Lobo1
1 Introduo
Neste artigo pretendo discutir a natureza de alguns tipos de organizaes no governamentais ONGs , em sua maioria com a natureza
jurdica de associaes, em funo de duas possibilidades analticas.
A primeira consider-las como associaes voluntrias, frutos da
liberdade de associao que Tocqueville identificou com o modelo
de democracia que encontrou na Amrica. Autores contemporneos
igualam a liberdade de associao com a liberdade de expresso,
relacionando a maior efetividade desta ltima em conformidade com
o crescimento da primeira.2
A segunda possibilidade identificar um carter compulsrio, ou
involuntrio de algumas associaes,3 que revelam um modelo de
comunicao restrita, que se dirige da esfera do Estado em direo
1
2
3
199
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4
5
Lobo (2006).
Uma reconstruo mais detalhada foi apresentada em minha tese de doutorado (LOBO,
2006). Cf. K-O. Apel, em Cardoso de Oliveira (2000, p.175).
200
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Em uma representao grfica busquei considerar as esferas de interlocuo, ou esferas sociais que se formam em cada encontro, que se
estabeleceram e que exerceram um alcance diferenciado nos nveis
micro, meso e macro.6 A apresentao bidimensional considera, no
eixo vertical, o afastamento espacial e, no eixo horizontal a evoluo
temporal. O tamanho dos ns no est vinculado a uma avaliao
de sua importncia; muitas vezes apenas correspondente ao texto
que o identifica. O tempo se acelera em alguns perodos como na
representao de Sahlins para o campeonato de basebol em 19517 ,
notadamente em torno do binio 1988-1989, quando foram criadas as
primeiras Resex, e em torno do ano de 2000, quando da promulgao
da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservao SNUC.8
Como sugesto de leitura do quadro na pgina a seguir e em funo de
meu interesse neste artigo, percorrerei alguns dos ns que podem ser
interligados em um mesmo contexto. Tomo o associativismo, ento.
A primeira referncia so as CEB Comunidades Eclesiais de Base.
Elas representaram a retomada da reao ao perodo de exceo da
poltica brasileira no campo e tiveram na reorganizao do movimento
sindical combativo seu paralelo no meio urbano. Um outro polo foram
as lutas contra a agroindstria que buscava se instalar na fronteira
noroeste e as lutas contra o patronato nos seringais do Alto Juru.9
Os empates na regio Xapuri foram frutos da organizao inicial dos
seringueiros locais, em um contexto de luta de classe.10
A aliana com ndios e outros grupos sociais da Amaznia representou um primeiro esforo de ampliar a visibilidade no movimento no
contexto nacional. Articulado com a preocupao internacional com
a proteo a Amaznia e a consolidao do conceito de desenvolvimento sustentado, o movimento teve que se organizar e construir
uma imagem miditica global. Chico Mendes e os caciques Raoni e
Juruna, lderes Xavante foram figuras emblemticas deste perodo.11
6
7
8
9
10
11
Apel (1992).
Sahlins (2004, p.131).
Lei 9.986/2000.
Eliane Cantarino ODwyer mostra esta trajetria para o vale do Juru (ODWYER, 1998).
Mendes (1989).
O cacique Raoni esteve em vrias cruzadas internacionais ao lado de Sting, lder do grupo
musical The Police. O cacique Juruna foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro e foi
um dos parlamentares constituintes.
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Entretanto, o contexto da dcada de 1990 produziu intensas mudanas na trajetria das reservas extrativistas. Aps a ECO 92, a nfase
da poltica deslocou-se em direo proteo ambiental, com seu
pice em 2000, quando foi aprovada o SNUC. Nessa lei, entre outras
mudanas, o Plano de Manejo passou a ser um documento tcnico,
a ser elaborado com vistas a garantir a sustentabilidade dos recursos
e proteo dos espaos, significativamente no mais no interior das
associaes das reservas.
Outra mudana fundamental decorreu da disseminao dos conceitos
de participao disseminados por manuais de organizaes multilaterais como o Banco Mundial e o BID.14 Nesses manuais as noes
empowerment e gesto participativa e o conceito de stakeholder deram
novas feies gesto e criao das Reservas Extrativistas.
A dimenso classista, ou de reconhecimento de direitos de grupos
minoritrios diluiu-se em uma pretensa concertao em que todas
as vozes passaram a ter igual peso. Nem redistribuio, nem reconhecimento, o princpio passou a ser a proteo da natureza, da
biodiversidade, mesmo quando associado a direitos culturais. O exemplo vem da regulamentao do SNUC, em 2002, quando as reservas
extrativistas passaram a ser geridas por um Conselho Deliberativo, no
qual devem ter assento no s a populao tradicional local, mas todos
os stakeholders. Mas, para que esta participao seja mais equnime
deve-se proceder ao empoderamento das lideranas locais. Mas no
devem restar dvidas de que as possibilidades da gesto efetiva local
ficaram comprometidas, seno inviabilizadas.
Esta verso factvel? Passo a dois relatos sobre processos associativos em duas reservas extrativistas marinhas: a de Arraial do Cabo,
no estado do Rio de Janeiro, e a de Corumbau, no Estado da Bahia.
Em seguida, ofereo uma trajetria do associativismo amaznico, na
qual se pode perceber uma mesma matriz organizativa.
3. Associaes em duas reservas extrativistas marinhas
A Associao da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo
Aremac foi construda no mesmo tempo em que unidade de conservao era criada. Pela legislao poca (1997), para cada Reserva
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Foi neste contexto que assumiu nova diretoria, eleita com apenas um
voto de associado que no compunha a chapa23 um novo presidente,
dono de pescaria na Praia Grande, funcionrio pblico aposentado,
mas como ele mesmo disse na sua posse, apesar de suas trs profisses, a que ele escolhera era a de pescador. O primeiro movimento
dessa gesto foi esvaziar a anterior com denncias de uso indevido
dos recursos da Associao, principalmente aqueles que o Festival
da Lula arrecadara.
O segundo foi aumentar o nmero de associados em um processo de
distenso poltica em relao Colnia de Pesca Z5 e aos pescadores
da Praia dos Anjos. Neste sentido afastou-se da co-gesto da Reserva
ao perceber que os recursos que desejava para seu projeto no viriam
da arrecadao da Taxa de Visitao da Unidade de Conservao. O
projeto desta gesto era o assistencialismo, o social do pescador.
A Aremac deveria obter recursos e oferecer servios.24
Nesse perodo, com a entrada em vigor da regulamentao do SNUC,
teve incio a discusso para a construo do Conselho Deliberativo da
resex de Arraial do Cabo. Vrias tentativas foram feitas, sem nenhum
sucesso at 2007.
Uma das consequncias foi um novo refluxo na vinculao dos
pescadores com a Aremac e um rompimento definitivo da gesto
compartilhada, tanto em relao a Resex quanto ao CTC. O presidente da Aremac foi um dos signatrios do pedido do afastamento do
agente do Ibama que criara a resex de Arraial do Cabo e da Resex,
mas no logrou obter grandes dividendos com isto. Pelo contrrio,
ao final do primeiro mandato, parte da diretoria formou outra chapa
e, em 2003, pela primeira vez houve disputa eleitoral para a direo
23
24
Dos 21 associados aptos a votar quinze compunham a chapa. Cinco eram diretores em
segundo mandato, que haviam levado a direo at o final, e se consideravam de oposio
chapa que se inscrevera. Sobrou um eleitor. Que votou a favor da nova direo.
Talvez para interesses polticos particulares, pois j havia sido candidato a vereador e voltou
a concorrer nas eleies de 2004, sem obter sucesso.
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Em primeiro lugar, pode ser citada a mudana promovida pela promulgao da Lei do SNUC no papel da Aremaco. Esta associao
fora criada para ser a co-gestora da Resex com o Ibama no primeiro
momento, at se capacitar para exercer a gesto autnoma, por meio
do Contrato de Cesso de Uso da rea Resex. Seria no espao dessa
associao que os pescadores iriam construir o Plano de Utilizao, a
ser homologado e publicado no Dirio Oficial pelo Ibama. Mudanas
e atualizaes seriam discutidas e decididas neste espao, e ento
ecoadas para os rgos competentes.
No SNUC este espao foi ocupado por um Conselho Deliberativo,
no qual os extrativistas passaram a aparecer em conjunto com outras
organizaes da sociedade civil. Neste sentido, foram criadas as associaes de cada localidade, o que tambm aconteceu em Corumbau,
com a Associao dos Pescadores de Corumbau Apaco. Entretanto,
a balana poltica pendeu para a Aremaco, a nova associao, com
um desenho de representatividade semelhante aos das demais integrantes da representao dos pescadores no Conselho Deliberativo
no prosperou. A Aremaco ocupou o espao de uma associao local,
mesmo em desacordo com seu estatuto inicial e quadro de associados
pescadores de todas as localidades envolvidas com a resex.
O deslocamento da responsabilidade sobre a Resex rumou exclusivamente na direo do Ibama. Por outro lado, este s conseguiu se
fazer presente de forma cotidiana a partir de 2002. Como resultado
a parceria Ibama/Pescadores se desfez. Neste vazio, outros atores
ocuparam o espao de parceiros da Associao.
Mas no se deve perder de vista que esta a localidade mais prxima
do ncleo de um novo limite para a Terra Indgena TI Patax.
a que est mais estreitamente ligada a grandes empreendimentos
tursticos e por que no dizer pesqueiros. a que com mais clareza
enuncia sua condio de nativo no patax, mas que no se v
ameaada de expulso com a incluso de sua rea nos limites da TI
porque no tero problemas em reivindicar e ver reconhecida sua
identidade tnica patax.
Na Aldeia Barra Velha havia a melhor estratgia de representatividade
por interesse/afinidade dos participantes e seus representantes. Os
porta-vozes, as lideranas que representam os interesses indgenas
no se confundem com lideranas que cuidam do dia a dia da vida da
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aldeia. Isso fazia com que ocorresse um controle sobre a atuao dos
representantes de Barra Velha na Resex ao voltarem com as decises
das reunies do Conselho.
Alm disso, havia o desafio da dupla afetao do territrio: Unidade
de Conservao e Terra Indgena. O patamar que tinha de ser alcanado era o da conciliao entre prticas e formas de ao de rgos
governamentais to dspares, e tradicionalmente antagnicos, como
o Ibama e a Funai. A meta no era devolver ou introduzir nas aldeias
pataxs tcnicas sustentveis e produtivas de produtos agrcolas,
devia-se buscar incrementar a atividade pesqueira na Aldeia Barra
Velha em consonncia com as demais artes praticadas na Resex, desde
que esse fosse o desejo dos pescadores da aldeia, o que nem sempre
se expressava como verdadeiro.
E na localidade mais ao norte da Resex, a organizao dos pescadores
de Carava se dava na Associao de Nativos de Carava, a ANAC.
Uma associao numerosa, com mais votantes do que nas eleies de
2002. Entretanto, como integrante do Conselho Deliberativo da resex,
essa densidade poderia ser um problema. Explico. Era consenso que
s existiam poca cerca de 20 pescadores em Carava. Ou seja, a
associao que os representava, representava tambm um conjunto
seis vezes maior de no pescadores. Mas o que no quer dizer que
no obtinham renda, direta ou indiretamente do espao da Resex.
Mas no eram extrativistas marinhos. Poderiam at ser terrestres. Mas
definitivamente no eram, nem se reconheciam como pescadores, mas
eram nativos, ou tinham laos familiares com a pesca local.
O Conselho Deliberativo era formado por representantes dessas seis
entidades, rgos e entidades pblicas da regio, algumas organizaes no governamentais ambientalistas locais, em um desenho no
qual a maioria dos votos se concentrava nas mos dos pescadores.
Entretanto, no havia nenhuma instncia em que seus pontos de vistas
e decises fossem aferidos, construdos coletivamente. O que ocorria
na prtica era que nas votaes viam-se pescadores votando contra
pescadores acompanhados ou acompanhando rgos, entidades e
associaes no ligadas pesca.
O Conselho, apesar de operante, no se conformou com uma arena
pblica, quando muito um espao de referendo de decises que
eram tomadas em outros espaos e articulaes. Estar fora dessas
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Krader (1970).
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Bourdieu (1998).
Putnam (1998).
Pareschi (2002).
Cefa (2002, p.98-99).
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Silva (2004).
Bourdieu (1998).
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Este autor revela que entre os pases nrdicos o ndice de filiao s AV era de 90% na
Sucia, 89% na Noruega e 77% na Finlndia. Cf Siisiinen (1999).
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Lei 2.544/12.
Desde o sculo XIX as relaes dos pescadores artesanais com o Estado so vinculadas,
alternativamente, ao Ministrio da Marinha e ao Ministrio da Agricultura. Atualmente
esto divididas entre o Ministrio da Agricultura e a Secretaria Especial de Aquicultura e
Pesca SEAP.
Villar (1931, p.16).
Nunes (1997, p.34).
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No vento da redemocratizao da dcada de 1980, e dando continuidade resistncia que a Igreja Catlica iniciara no campo, o ideal
associativo e representativo foi responsvel pela criao de inmeras
associaes de moradores nas principais capitais. Elas atuavam como
atores polticos efetivos no cenrio democrtico em reconstruo.56
Entretanto, foram rapidamente absorvidas pela lgica verticalizante
da memria do Estado Corporativo, ou do Oficialismo, e passaram
a se estruturar em associaes locais, federaes, confederaes.
Alguns de seus membros ingressaram no universo poltico eleitoral,
por exemplo, um deles chegou a ser eleito Vice-Prefeito, na cidade
do Rio de Janeiro.57 Pouco depois, o movimento segmentou-se. Um
grupo de associaes de moradores passou a representar as classes
mdias urbanas e outro, os grupos de mais baixa renda, que buscaram
manter uma estrutura federativa.
A dcada de 1990, sob as diretrizes da nova Constituio Federal,
foi palco de exploso de associaes, dos mais variados tipos. Os
servidores pblicos oficializaram suas organizaes no formato sindical, e suas lideranas foram beneficiadas pelo papel dos sindicatos
oficiais. Foram habilitadas a falar com o Estado em nome de sua
categoria, no apenas dos associados, ou com delegaes especficas. ONGs nasceram, ocupando novos espaos, notadamente na
rea ambiental e tnica. Vrias polticas pblicas, como o Programa
Comunidade Solidria, as Reservas Extrativistas, a titulao de terras
de remanescentes de quilombos, passaram a exigir a existncia de
uma associao local para a concesso dos benefcios dessas polticas,
vistos como coletivos.
Outra perspectiva de anlise sobre as ONGs d conta de sua vinculao com modelos de organizao social que foram criados nos pases
centrais, em funo de desenvolvimentos sociais e polticos, que no
faziam parte de nossa histria.58 Outras anlises mais rigorosas j foram
feitas, identificando-as como executoras de uma funo de controle e
mistificao de ideologias. O nmero de ONGs no Terceiro Mundo
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foi estimado em cerca de 50.000, que gerenciam mais de US$ 10 bilhes ao ano,59 fora os recursos repassados pelos governos nacionais.
O crescimento acelerado desse tipo de associao, no ltimo quarto
do sculo passado tanto pode ser interpretado como uma reao a governos totalitrios, em vrios cantos do mundo, quanto como um freio
nos movimentos sociais radicais. Os canalizou para formatos mais
adequados ao controle, por parte das elites locais e transnacionais. Esta
aparente contradio seguiu, entretanto, uma linha ideolgica clara.60
Organizaes humanitrias e de defesa de direitos humanos o fazem
localmente. Raramente buscam associar prticas violentas nacionais a
mecanismos internacionais, como agncias de fomento. Muitas vezes
esto associados a projetos de desenvolvimento e expanso do livre
mercado. Outras associaes se voltaram para conceitos de autoajuda
e auto-organizao, no sentido de superao de desigualdades sociais.
O modelo no foi questionado, mesmo que novas identidades tivessem
de ser construdas.
As ONGs tambm corresponderam a um setor que absorvia a mo de
obra formada nas universidades, com origem nas classes dominantes e que no encontravam espao no mercado de trabalho oficial.61
Entretanto, no Brasil, a marca dessas relaes de trabalho a informalidade, criando no futuro um grande dficit para as polticas pblicas
de seguridade social e/ou abrindo mercado para os fundos de penso
e assistncia sade privados.
Outra dimenso relevante das ONGs diz respeito a seu financiamento. A
ideia de um terceiro setor local, organizando-se e encetando uma ao
coletiva em direo aos seus objetivos, no encontra eco na realidade.
Vemos como modelo geral um sistema de financiamento que estatal
na maioria dos casos estados nacionais ou estrangeiros. Quando no
estatal, sua fonte so recursos internacionais que tiveram origem em
renncia fiscal em seus pases sede. Vrios movimentos esto em ao:
culpa, solidariedade, ou filantropia. Seriam como se estivssemos em
uma etapa do retribuir, sem ter muito bem definido o que foi dado.
Nas linhas de uma nova forma de colonialismo, as prioridades de
formas de atuao so definidas nos pases centrais e posteriormen59
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Kerbauy (2004).
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REFERNCIAS
APEL, K.-O. A necessidade, a aparente dificuldade e a efetiva possibilidade de uma macro tica planetria da (para a) humanidade.
Revista da Comunicao e Linguagem, So Paulo, n. 15-16 tica e
Comunicao, p.11-26, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas: o que falar
quer dizer. So Paulo: Edusp, 1998.
CEFA, Daniel. Accin asociativa y ciudadana comn: La sociedad civil como matriz de la res publica? In: BENEDICTO, Jorge;
MORN, Maria Luz. Aprendiendo a ser ciudadanos: experiencias
sociales y construccin de la ciudadana entre los jvenes. [S.l.]:
Estudios Injuve, 2002. Disponvel em: <http://www.injuve.mtas.es/
injuve/contenidos.downloadatt.action?id= 1395427125>.
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1 Cenas
Manh ensolarada em uma bela praia do litoral sul do estado do Rio
de Janeiro, uma das regies litorneas mais valorizadas no Brasil,
localizada em uma Ilha, a Ilha da Marambaia, ocupada por descendentes de escravos, pescadores artesanais tradicionais e fuzileiros da
Marinha de Guerra do Brasil; ocupaes distribudas ao longo dos 40
quilmetros de extenso de areia, mar e morro. Nessa manh de 2003,
dezenas de pessoas entre mulheres, crianas, homens e alguns, mas
poucos, cachorros esperam um momento solene, um ritual esperado
por muitos h anos, e desconsiderados por outros: a posse da primeira
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DaMatta (1976).
Geertz (1973).
Geertz (1973, p. 17).
Cefa (2007b).
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Almeida (2002).
Odwyer (2002).
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sem a sua presena o que foi seguido parcialmente pelo Oficial, pois o
mesmo permaneceu caminhando de um lado para o outro em frente ao
terreno em que se encontravam os moradores e o Procurador para que
a comunidade ficasse mais vontade para se exprimir sua situao.
O inicio da reunio foi marcada por uma apresentao geral do papel
do MPF, sua atribuio; de forma geral o Procurador qualificava o
MPF como o espao de defesa dos direitos dos cidados. Em especial,
como ressaltara o Procurador, o MPF era encarregado de defender
os direitos dos grupos tnicos, sobretudo aqueles respaldados pela
Constituio Federal. Dava explicaes acerca das caractersticas do
artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, que trata
da titulao de terras de remanescentes de quilombos. Fez questo de
frisar que o dispositivo jurdico no era destinado apenas s comunidades de quilombos, mas a comunidades negras rurais que possussem
vnculos histricos e identitrios com o tempo da escravido. Assim,
como era o caso da Marambaia, segundo sugeria o Procurador.
O Procurador esclarecera que havia entrado com uma Ao Civil
Pblica contra o rgo responsvel pela titulao e reconhecimento,
poca, das comunidades negras rurais: a Fundao Cultural Palmares, com a finalidade de agilizar o processo de reconhecimento da
comunidade da Marambaia.
Prestou explicaes a respeito da Ao Civil Pblica ajuizada pelo
MPF contra a Fundao Palmares e a Unio. Lembrou que o MPF
solicitara quatro providncias por parte da Unio: o fim da expulso
dos moradores nativos, a no destruio das residncias, a tolerncia
do modo de vida tradicional e o retorno de moradores que porventura
tiveram suas casas derrubadas. Esclareceu que a juza deferiu em
parte o pedido do MPF, julgando procedente avaliar posteriormente
o pedido de retorno dos antigos moradores Ilha.
O Procurador informou que, em virtude da Ao, a Fundao Palmares
teria agilizado o processo de reconhecimento da comunidade. Para
tanto, seria necessrio a elaborao de uma laudo antropolgico a
ser produzido por uma OnG responsvel por levantar quilombos.
Com o laudo finalizado, a Fundao Cultural poderia continuar com
os procedimentos necessrios para a demarcao e titulao do territrio, lembrava o Procurador.
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Os moradores, como no conheciam suficientemente tais procedimentos, seguiram com perguntas, questionamentos, queixas, demandas.
Na medida do possvel, o Procurador as respondia, destinava solues,
apontava caminhos.
A situao parecia apontar, do ponto de vista dos moradores, para
uma renovao dos estoques de energia para continuar na batalha
pelo direito terra. A presena de uma autoridade pblica, encarnada
na figura do Procurador, lhes destinava novas possibilidades de poder
continuar a luta do milho contra o tosto. Entusiasmados com as
novas e repentinas notcias, os habitantes viam nesse momento uma
oportunidade para criar uma Associao. Demandaram ao Procurador
que o mesmo fosse interlocutor com a Marinha de Guerra para que
esta cedesse um espao para a constituio da sede da Associao.
Na mesma hora, estabeleceu-se uma comisso de moradores com
membros de diversas praias, responsvel por mobilizar os demais
pescadores e familiares para a composio das chapas, visando, com
isso, realizar as eleies o mais rpido possvel. Seria a oportunidade
de colocar em prtica uma organizao social local, pois em outras
circunstncias tentou-se organizar associaes, como no caso da
Associao dos Moradores e Amigos da Marambaia, em 1990, e
da Associao Para o Desenvolvimento Socioeconmico Cultural
da Ilha da Marambaia-RJ, em final 1998, cujas tentativas foram
frustradas diante das dificuldades encontradas com a falta de apoio,
como lembram os moradores da Marambaia, da Marinha e de outros
organismos governamentais e sociais.
Entretanto, a empolgao inicial por parte dos moradores foi, paulatinamente, substituda pela incerteza diante das desistncias de
muitos que se engajaram ao projeto. Particularmente, nesse primeiro
momento, foram os moradores protestantes (seja da Assembleia de
Deus ou da Igreja Batista) os primeiros a abrir mo de participar mais
ativamente do processo de construo da Associao; fosse porque
desacreditavam no xito dessa nova empreitada, ou mesmo porque
temiam participar de algo que poderia culminar em represlias da
Marinha; j alguns foram desencorajados pelos Pastores de ambas as
igrejas que viam nessa ao um indcio de embate com a Marinha, o
que era visto negativamente pelos mesmos.
Por outro lado, havia outra barreira. A ao coletiva implicava agrupar
diferentes identidades e pertencimentos em uma nica roupagem:
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Thvenot (2006)
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Thvenot (2006).
Boltanski; Thvenot (1991).
Breviglieri; Stavo-Debauge (1999); Mota (2008).
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DaMatta (1985).
Santos (1979).
Mota (2005).
Hipossuficincia uma categoria jurdica atribuda aos sujeitos vulnerveis, que no tem a
capacidade de ter sua autonomia reconhecida, tendo necessidade de um tutor. Papel esse que
o Ministrio Pblico Federal (MPF) tem sistematicamante desempenhado. O MPF uma
instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado. Seu papel defender a
ordem jurdica do regime democrtico e os interesses sociais e individuais. Os princpios
institucionais do MPF so: intervir no caso de crimes; sustentar a acuso pblica do crime etc.
O MPF pode ainda propor aes em nome da sociedade, quando esto em jogo os interesses
e os direitos difusos. O MPF age na funo de tutela de curadoria-geral da sociedade e
dos hipossuficientes, e da defesa dos direitos da criana e do jovem.
Mota (2005).
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REFERNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. Os quilombos e as novas Etnias. In:
ODWYER, Eliane C. (org.). Quilombos: identidade tnica e territorialidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
BARRIL, Claudiaet al. Le public en action: usages et limites de al
notion despace public en sciences sociales. Paris: LHarmattan, 2003.
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SOFRIMENTO E DEMANDA
SOCIAL: UMA POLTICA
PBLICA MUNICIPAL
EM NITERI
Ktia Sento S Mello1
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Os nomes das pessoas entrevistadas foram alterados para garantir a privacidade dos
interlocutores.
Embora a interlocutora no tenha definido explicitamente o que considera lugar de risco,
a sua percepo difere das reflexes presentes na literatura sociolgica sobre o tema. A
concluso a que chegam diferentes autores de que, associada ao sentimento de insegurana
que impede o discernimento entre os locais de ocorrncia real de violncia daqueles que so
presumidamente violentos, esta classificao aponta para uma base territorial (MIRANDA,
2004; DIRK et al., 2004), ou seja, para o fato de que as reas ou locais de risco correspondem
sempre aos bairros diferentes daqueles nos quais os interlocutores residem.
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que havia sofrido uma queimadura no abdmen quando era adolescente e que at hoje apresentava sequelas do acidente. Como parte
do discurso, levantou sua blusa, mostrando a ferida, ainda aberta, que
havia-se formado, e que, por isso, precisava trabalhar para comprar
os remdios necessrios ao tratamento, bem como para sustentar seu
filho e esposa. Indagado se a esposa trabalhava, informou que esta
conseguia pouco servio e como faxineira; ela ganha s R$ 80,00
(oitenta reais) por ms, no d para fazer muita coisa com isso.
Conforme orientao da SSDH, a guarda municipal, aps fazer as
perguntas do questionrio, pediu para ver a casa, mas explicou-me
que, diante da situao precria da residncia, o morador parecia
dizer a verdade, confirmando as informaes que havia colocado
no formulrio de inscrio para a obteno da licena. Por esse motivo, escreveria na avaliao que ele se encaixava no perfil elaborado
pela Secretaria.
Embora houvesse uma tentativa de padronizao dos procedimentos
para a realizao do recadastramento, as abordagens dos tcnicos
eram diferenciadas. Enquanto dois engenheiro e guarda faziam
as perguntas e a vistoria nas casas diretamente, o outro tcnico,
para no constranger as pessoas visitadas, evitava algumas perguntas
que, para ele, eram preliminarmente respondidas com a observao
geral das casas.
interessante, tambm, observar que embora alguns entrevistados
no tivessem percebido a lgica de avaliao subjacente poltica
de recadastramento, como aconteceu no caso de uma das entrevistadas, a maioria deles pode perceber, ou se antecipar ao significado
da visita e, por isso, prepararam um discurso de sofrimento que, da
sua perspectiva, aprofundava o perfil de misria por eles vividos,
na expectativa de mobilizar os sentimentos dos tcnicos e lev-los a
uma avaliao positiva, segundo o perfil socioeconmico delineado
na poltica de recadastramento.
Mas se isso possvel, porque parece existir um patrimnio comum
de esteretipos, compartilhado tanto pelos operadores da poltica
implantada na esfera da gesto pblica local quanto pela populao
para a qual se dirigiu, ou seja, para camels. Trata-se, portanto, da
enunciao pblica de um discurso no qual os atores, para se defi275
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Quando indagados sobre o que achavam da poltica de recadastramento, todos os camels entrevistados foram unnimes em dizer que a
aplicao foi injusta e covarde. Quanto ao critrio que exigia a residncia do camel no municpio de Niteri, duas crticas principais eram
enunciadas: uma de que o critrio no era igualmente aplicado a todos,
uma vez que alguns camels que obtiveram a licena moravam em
So Gonalo; outra era a de que, mesmo residindo em So Gonalo,
alguns camels se ressentiam do fato de que haviam prestado servios ao municpio, uma vez que trabalharam no mesmo durante quase
toda as suas vidas e igualmente se ressentiam do fato de que haviam
ajudado Guarda Municipal em diferentes momentos, ora auxiliando
com material e mo-de-obra na construo do gabinete da direo, ora
nas festas de comemorao de Natal e de fundao da instituio. Alm
disso, outra crtica recorrente: tendo trabalhado toda a sua vida na rua
como camel, esta era a nica atividade que sabiam e gostavam de
fazer. O relato de um dos camels mais antigos de Niteri revelador:
Ento, hoje, eu vou dizer a minha vida, para
a senhora, na rua. Eu, dos 8 anos de idade at
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Dar implica receber: estabelecer uma comunicao de reciprocidade10 que garante as relaes sociais, comprometendo os indivduos
que entram na troca entre si e a coisa que dada, que transmitida,
oferecida, no inerte. Quem presenteia algum com alguma coisa,
d uma coisa de si, da sua substncia. Da decorre igualmente a
obrigao de retribuir, pois que a no retribuio implica em no
aceitao da substncia do doador ou, em outros termos, na sua
desconsiderao.11 Mauss que ainda destaca dois elementos
essenciais no potlach que servem como referncias para pensar os
valores depreendidos do relato do camel: o elemento da honra, do
prestgio, de mana que confere a riqueza e o da obrigao absoluta de
retribuir essas ddivas sob pena de perder esse mana, esta autoridade,
esse talism e esta fonte de riqueza que a prpria autoridade.12
Uma vez a reciprocidade rompida (a no retribuio) de parte da
Guarda Municipal, e no lugar da troca/comunicao a represso, o
relato desse camel parece indicar que este rompimento, que o
tratamento baseado na represso e no no reconhecimento da ddiva
oferecida pelos camels percebido por eles como um esculacho.13 Decorre da que neste perodo marcado por conflitos abertos
entre os guardas e os camels, uma certa percepo sobre o que
fazer poltica local valorizada e reforada, desvalorizando, de certa
forma, a representao da Guarda Municipal como autoridade local.
Ao contrrio de considerar uma poltica formal, baseada em critrios
impessoais e procedimentos previamente estabelecidos e acordados
com a prpria ALVANI, como o que foi descrito sobre o recadastramento, este relato valoriza a poltica com base em princpios de
reciprocidades pessoais. Olhando para o passado, o camel revela
um perodo no qual o diretor da Guarda se comunicava com os
camels e ainda que fosse bravo e campeo de luta brasileira,
ele tambm os beijava no rosto. como se no houvesse nos dias
de hoje o reconhecimento da ddiva que os camels ofereceram
no passado: a construo do gabinete da Guarda, os preparativos e
presentes para o dia da festa.
10
11
12
13
Mauss (1974).
Cardoso de Oliveira (2002); DaMatta (1983).
Mauss (1974, p. 50).
Esta categoria tem sido recorrente no discurso de camels de outros municpios e em
contextos de conflitos com outros agentes de Segurana. Uma anlise aprofundada sobre o
esculacho pode ser encontrada em Pires (2005).
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interessante notar que, embora assinalando criticamente que a justia em Niteri funciona na base das relaes pessoais, o argumento
utilizado pelo mesmo camel anteriormente destaca uma espcie
de ressentimento por essas relaes terem sido rompidas na lgica
das trocas estabelecidas no passado. Ao contrrio da crtica aparecer
como um argumento que sublinha uma prtica poltica baseada em
critrios impessoais, e consequentemente universais, por parte das
autoridades locais, a manifestao dos camels parece reforar a
crena nessas prticas e tambm negar o Estado como o lcus que,
por excelncia, detm a autoridade legtima da imposio de uma
viso do mundo social, como argumenta Bourdieu.
O sofrimento teatralizado
A imagem que os camels PDF constroem deles mesmos a de que
so destitudos economicamente, excludos socialmente e vtimas de
deficincia fisica. Com base nessa imagem, esses camels relatam dramas e problemas que so, do seu ponto de vista, produzidos
e agravados pelas prticas resultantes de polticas de segurana cujas
propostas de reconhecimento legal e real de direitos permanecem
como uma promessa no cumprida. Argumentando que so incapazes de conquistarem seu acesso aos direitos dos quais se julgam
elegveis, lanam mo de estratgias performticas que acentuam uma
identidade coletiva de miserveis, compatvel com as exigncias da
poltica de recadastramento.
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De acordo com Ansio, uma das estratgias encontradas por ele para
lidar com estes problemas no dia a dia passa pela tentativa de mobilizao dos sentimentos de indignao e piedade dos espectadores
das cenas que se passam diante dos seus olhos no espao pblico. Ele
diz que como eu sou assim, um PDF, e no tenho direito de defesa,
eu me defendo da forma que eu posso eu mordo os guardas. Ele
acrescenta que, para chamar a ateno das pessoas e impedir que os
guardas batessem mais nele:
Um dia eu estava vendendo guarda-chuva e
os coloquei dentro de um carrinho desses de
supermercado; os guardas vieram para pegar
a minha mercadoria e eu me joguei dentro do
carrinho por cima dos guardas-chuvas para que
eles no pegassem nada; que sendo PDF, eles
no podem me bater, existe uma lei federal que
protege os PDF, mas mesmo assim eles levaram
tudo. (Ansio)
De acordo com ele, a partir desse dia ficou marcado pelo guarda, na
ocasio um inspetor do ordenamento urbano da Guarda Municipal.
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espectador.17 Este espectador, no um sujeito emprico, que observa do ponto de vista de uma objetividade sem perspectiva,18 mas
um sujeito sobre o qual se impe uma moral. Ento, como possvel
articular os diferentes atores sociais de modo que possam ser pensados
enquanto espectadores morais e, por isso, tornar o sofrimento uma
estratgia poltica no espao pblico?
Dentro dessa perspectiva, importante a considerao de Boltanski
de que o espao pblico se constitui em torno de causas que so institudas a partir de deslocamentos de posies e representaes dos
fenmenos sociais por este espectador. E, para o autor, nada mais
favorvel formao de causas do que o espetculo do sofrimento...
inicialmente em torno do sofrimento dos infelizes que as pessoas,
at ento indiferentes, se sentem inclinadas a aderir a uma causa.19
Alm disso, no estando voltado para uma objetividade, sem a tomada
de posicionamento por parte dos atores sociais, o autor considera que,
no espao pblico, o sofrimento modifica as condies do debate,
submetendo-o urgncia e exigindo das pessoas o seu engajamento
para as causas do sofrimento.20
Considerando-se o lugar do espectador diante de pessoas que sofrem,
o autor argumenta que lhe restam duas opes. Ele pode simplesmente ver o espetculo do sofrimento e no se pronunciar ou, por outro
lado, dar voz ao sentimento que tal sofrimento lhe imps. A primeira posio leva crtica a respeito de uma atitude essencialmente
negativa, caracterizada por um olhar egosta por meio do qual o
espectador absorve internamente as emoes suscitadas pelo espetculo do sofrimento emoes de fascinao, de horror, de prazer etc.
A segunda posio, por permitir a construo de um olhar voltado
para o exterior, segundo o critrio da palavra pblica, aquele que
expressa a sua piedade e a inteno de acabar com o sofrimento
daquele que sofre, ainda que o espectador no esteja em condio de
agir concretamente. Para o autor, a simples inclinao do espectador
para comunicar a um pblico ilimitado a emoo suscitada j , por
princpio, uma palavra pblica.
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Como as implicaes polticas, nesse caso, esto referidas s exigncias morais impostas observao que um espectador faz do
sofrimento, importante apresentar a distino que Boltanski estabelece entre uma poltica da justia e uma poltica da piedade, que
compreende trs pontos essenciais. A poltica da justia, apoiando-se sobre uma teoria da justia considerada, ela mesma, pelo que o
senso comum percebe como justia, visa administrao de disputas
e representa um modelo que separa as pessoas pelas suas grandezas21
e no por serem felizes ou infelizes. Nesse modelo, a questo que
se coloca saber se a maneira pela qual as pessoas so ordenadas
segundo a sua grandeza e valor justa ou no. Em segundo lugar, as
qualidades que definem as diferentes grandezas das pessoas no esto
ligadas s condies das pessoas. Por fim, uma poltica da justia
busca resolver as disputas, operando uma lgica de equivalncias no
contexto de uma prova.
A poltica da piedade caracteriza-se pelo inverso: fundamentalmente
pelo fato de que no importa se o sofrimento ou a infelicidade so
justificveis, ou seja, o sofrimento no acompanhado pela prova,
ele invoca a urgncia da ao, ainda que seja pela enunciao da piedade do espectador. preciso ainda esclarecer o que essa poltica
da piedade e em que medida o seu contedo est presente tanto na
manifestao do discurso do sofrimento dos camels que so
portadores de deficincia fsica, como na poltica do recadastramento
proposta pela Secretaria de Segurana do Municpio de Niteri.
Em seu livro La socit dcente, Margalit prope que uma sociedade
decente aquela na qual no somente os indivduos, mas igualmente
as instituies que dela fazem parte, no humilham as pessoas. Entre
as sociedades que no podem se caracterizar como decentes, o autor
destaca aquelas nas quais a condio da misria humana tratada
com humilhao: o abandono, a ausncia de abrigo e de meios de
defesa, o abandono ao revs, a batalha pela vida, o rebaixamento de
algum que conduzido a um nvel bestial numa luta desesperada
pela existncia; a ausncia de fraternidade humana sem compaixo
nem simpatia.
21
Por este termo, o autor, em parceria com Thvenot, argumenta que as pessoas no so
classificadas a priori, mas a partir de uma situao na qual so colocadas em disputa e na qual
uma srie de objetos: humanos e no humanos, para tomar Bruno Latour, so considerados
no julgamento do que justo nesta situao de disputa e, consequentemente, no peso, ou
melhor, na grandeza que estes objetos tm nesta situao (BOLTANSKI; THVENOT, 1991).
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Margalit argumenta que a piedade o motor emotivo que impulsiona as pessoas a ajudar os pobres nas sociedades de beneficncia,
sendo necessrio, porm, distinguir entre uma relao de piedade e
uma de compaixo. Para ele, a piedade uma relao assimtrica
que pressupe o sentimento de superioridade do doador para com o
miservel que recebe o seu auxlio sob a forma de caridade, esmola. A compaixo, por outro lado, se caracteriza por uma relao
simtrica.
Diz ele que aqueles que se beneficiam da piedade tm uma boa razo
de suspeitar que eles no so respeitados na medida em que a piedade
desencadeada pela viso da impotncia e da vulnerabilidade. Se as
pessoas so mestras delas mesmas, no se tem piedade por elas, mesmo quando elas caem na misria. A piedade endereada s pessoas
que perderam importantes motivos de respeito delas mesmas e que
esto ao ponto de perderem os meios de defender a sua dignidade
pessoal.22
Piedade, pit, piti, derivam do latim pietas, sendo que, em
ingls, como em francs, sofreram uma modificao semntica. A piedade expressa um sentimento religioso sustentado por uma obrigao
incondicional e sincera em relao ao outro que sofre, uma extenso
da obrigao do homem para com Deus, e no um sentimentalismo
condescendente em relao aos pobres.
Dessa forma, utilizando um discurso, elaborado a partir de relatos e
de enunciaes, bem como da dramatizao do seu sofrimento, que os
camels parecem querer impor uma questo moral aos espectadores
populao em geral, mdia e autoridades locais no sentido de que
estes se tornem engajados na sua causa. Se esta estratgia poltica
obter realmente a resposta do espectador no sentido de que este torne
o seu sofrimento pblico, outra coisa. Por outro lado, na medida em
que, mesmo que a resposta do espectador no contemple o fim do
seu sofrimento, a sua causa tornada pblica quando publicizada
no espao pblico no qual o discurso transmitido.
22
292
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REFERNCIAS
BOLTANSKI, Luc. Les cadres: la formation dun groupe social. Paris:
Les ditions De Minuit, 1982.
. La souffrance distance: morale humanitaire, mdias et
politique. Paris: Mtaili, 1993.
; THVENOT, Laurent. De la Justification: les conomies
de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.
BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Lisboa: DIFEL, 1989. (Coleo Memria e Sociedade)
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social: uma crnica
do salrio. 5. ed. Petrpolis: Vozes, 2005.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Direito legal e insulto
moral: dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. So Paulo:
Relume Dumar, 2002. (Coleo Antropologia, Ncleo de Antropologia Poltica)
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris: para uma
sociologia do dilema brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
HIMMELFARB, Gertrude. La idea de la pobreza: Inglaterra a princpios de la era industrial. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1988.
KANT DE LIMA, Roberto. A Antropologia da Academia: quando
os ndios somos ns. 2. Ed. Niteri: EDUFF, 1997.
. Carnavais, malandros e heris: o dilema brasileiro do
espao pblico. In: GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lvia;
DRUMOND, Jos Augusto (Org.). O Brasil no para principiantes:
carnavais, malandros e heris: 20 anos depois. 2. ed. Rio de Janeiro:
FGV, 2001.
. Direitos civis, estado de direito e cultura policial: a formao policial em questo. Revista Brasileira de Cincias Criminais,
So Paulo, 2003.
. Os cruis modelos jurdicos de controle social. Insight/
Inteligncia, [S.l.], abril/ jun. 2004.
MARGALIT, Avishai. La socit dcente. [S.l.]: Editions Sisyphe/
Climats, 1999.
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OS VIZINHOS
E OS DE FORA
O PROCESSO DE DEFINIO
DE UMA COMUNIDADE
Luca Eilbaum1
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Por ltimo, a policial nova-iorquina apresentou a poltica de relacionamento com a comunidade implantada na Polcia de Nova York. O
evento continuou com um debate, aps um apetitoso coffee-break, j
clssico desse tipo de encontro.
Aproveitei a ocasio para puxar uma conversa casual com o policial
ao meu lado, comentando aprobatoriamente os discursos ouvidos.
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A comisara era a sede policial no nvel mais descentralizado. Nesta, eram registradas as
denncias de crimes, bem como solicitados certos documentos emitidos pela instituio
(atestado de perda de documentos, atestado de pobreza). Tambm era a sede do trabalho
de investigao e preveno em uma determinada rea geogrfica. Mantenho a categoria
original no espanhol, porque no Brasil, em particular no Rio de Janeiro, no existe uma
repartio semelhante. Diferentemente da cidade de Buenos Aires, as atividades de preveno
e investigao esto divididas entre duas instituies distintas: Polcia Militar e Polcia Civil,
respectivamente. No nvel mais descentralizado, a primeira est organizada nos batalhes e
a segunda nas delegacias. No mesmo sentido, mantenho no espanhol as categorias comisario
e subcomisario, que so, nessa ordem hierrquica, as autoridades da comisara.
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Orden del Da: Creacin de los Consejos de Prevencin Comunitaria, PFA, 2/11/98.
Fiz esse acompanhamento nas comisaras correspondentes a bairros de regies e nveis
socioeconmicos distintos: La Boca, Parque Patrcios, Almagro, Nuez, Flores, Palermo,
Colegiales e Congreso.
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Existia uma Comisso Central, sediada no Departamento Central de Polcia, que ligava as
Agrupaes de uma circunscrio que, por sua vez, reunia as de cada comisara.
Agrupao Amigos: a constante colaborao junto aos vizinhos. Diario La Federal, ano
3, n. 18, dez. 1998.
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10
11
Esta relao se dava especialmente com os comerciantes, sendo que os comrcios que
colaboravam tinham, na janela ou no interior, um anncio atestando o aporte Eu colaboro
com a Agrupao de Amigos da Comisara X e, portanto, garantindo a pertena a certa
rede de relaes.
A maioria das reunies era realizada no chamado casino, onde comia e descansava o
pessoal da comisara. Quando o nmero de participantes era reduzido, costumava-se usar a
sala do comisario.
Esse tipo de frase, nas falas dos comisarios, era continuamente enfatizado em oposio
populao que, na viso deles, no entendia nem respeitava o trabalho policial.
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comunitria. Era notvel, nas reunies, como os amigos caracterizavam seu discurso a partir da explicitao da falta de recursos
disponveis por parte dos policiais para desempenhar suas funes de
forma eficiente, de acordo com as demandas apresentadas por outros
vizinhos nas reunies. A proposta do programa de participao comunitria sobre a abertura do trabalho policial para a comunidade
era, no mbito das reunies, apresentada na voz dos amigos que
no lugar dos policiais explicavam sobre a escassez de viaturas, as
dificuldades para consertar peas quebradas, o fato de os policiais
terem de comprar seus prprios equipamentos de trabalho, como o
rdio, entre outros problemas apresentados como justificativas diante
das queixas dos vizinhos que no faziam parte da rede de amigos.
Essa dinmica fazia com que as reunies se transformassem em um
novo espao de recrutamento de apoio para a comisara por parte dos
amigos. A solicitao de ajuda muitas vezes era percebida pelos
vizinhos como um canal natural de ajuda no nvel local. Assim,
eles podiam reclamar e muito do fato do Estado no prover os
recursos suficientes e, ao mesmo tempo, garantir de forma particular
os meios de trabalho no mbito mais prximo, tal como a comisara.
Em muitos Conselhos foram vrias as cartas escritas s autoridades do
Executivo e do Legislativo reclamando da falta de ateno e empenho
na questo da segurana pblica. Nestas, era comum a demanda de
aes concretas nos bairros da comisara representada, em geral, pelo
envio de mais policiais e/ou de mais viaturas.
Contudo, o que mais me chamou a ateno nas tentativas de relao
com o governo nacional no foi o que efetivamente era conseguido,
pois quase nunca esteve presente nas reunies uma autoridade nacional, como tambm no foram enviados os recursos solicitados.
Tratava-se da forma como a proposta de apelao ao poder nacional
transformava-se em uma demonstrao, por parte de alguns vizinhos, dos vnculos e influncias que tinham com as esferas de poder.
Os vizinhos prestigiosos
24 de maio de 1998. Primeira reunio do Conselho da comisara 35,
bairro de Nuez. Notas de campo. [...]
Comisario: o que queremos hoje formar o
conselho com as autoridades que vocs esco-
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Como mencionado, a relao dos amigos e dos vizinhos prestigiosos com os policiais ou com o mundo policial no nasceu
com a criao dos Conselhos de Preveno Comunitria. No caso dos
amigos, data de anos atrs e, inclusive, sempre foi desenvolvida nas
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Os jornais dos anos 1998-1999 tm sido profcuos na apresentao desses temas, em especial
Clarn e La Nacin.
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As demandas: os de fora
Quarta-feira 25 de novembro de 1998. Reunio do Conselho da comisara do bairro de La Boca. Registro de campo. [...]
Senhora: eu venho com um fato pontual que me
aconteceu no ms de julho deste ano. Eu vivo
na rua Brandsen 500, e na esquina de minha
casa tenho gente de mau viver, que todos os
vizinhos conhecem, isto por todos conhecido.
Numa sexta-feira do ms de julho, vim nesta
comisara para apresentar a denncia. O fato
aconteceu s 19h e eu s sa da comisara s 10h
da noite, com meu filho de seis anos no colo. E
os senhores de mau viver, tranquilinhos nas suas
casas. E o pior que quando voltei para minha
casa, passei pela esquina, os senhores estavam
reunidos no mesmo lugar. Fui ao telefone pblico e liguei para comisara e me disseram que j
ia sair uma viatura para o local. Estiveram at
meia noite e ningum se perturbou em ir at l.
Comisario: senhora, sabe o que que acontece?
Todos temos a responsabilidade de denunciar,
mas sabe que h dez anos atrs este tipo de
reunies no existiam. Essas reunies agora
existem e, aos poucos, vamos ir mudando e
vamos ir tratando de estar juntos. Mas a senhora
me diz gente de mau viver, o que quer dizer
mau viver para a senhora?
Senhora: mau viver? Significa que so maus
vizinhos, que esto em todo tipo de roubos, com
substancias proibidas, em outras palavras, droga, que se dedicam a bater nos vizinhos, e toda
vizinhana sabe disso. Se isso no mau viver,
em bom espanhol quer dizer que so chorros.13
Categoria informal para se referir a ladro. Um termo semelhante no portugus pode ser
gatuno.
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As demandas apresentadas pelos vizinhos nas reunies dos Conselhos tinham vrias caractersticas que outorgaram a esse tipo de
associao um carter peculiar. Em primeiro lugar, eram demandas
de tipo individual e conjuntural. Tratava-se de manifestar, diante das
autoridades policiais locais, problemas especficos de um horrio e/
ou local do bairro, que traziam algum tipo de perturbao no cotidiano dos vizinhos. Alis, era frequente um vizinho participar de
uma reunio, apresentar sua demanda e no voltar a participar ou s
faz-lo em vrias reunies posteriores.
A sua vez, a forma de expresso das demandas se repetia vizinho aps
vizinho, reunio aps reunio e bairro aps bairro:
14
15
Refere-se Direo Nacional Migraes que o rgo que responsvel pelo controle da
populao estrangeira na Argentina.
rea do bairro de La Boca, na beira do rio Riachuelo, que constitui um dos pontos de turismo
mais famosos de Buenos Aires.
313
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As respostas dos comisarios, quando no eram que no tinham competncia para intervir porque era competncia de outra repartio
pblica, consistiam em tomar nota dos locais problemticos assinalados pelos vizinhos e prometer uma medida pontual para esse
problema, tal como destinar mais policiais ao local ou intervenes
diretas, como detenes, ou, dar um susto, perturbar por algumas
horas ao pessoal denunciado.
Em segundo lugar, as demandas aqui citadas evidenciavam que, junto
aos poucos casos de crimes denunciados nas reunies, o maior nmero
de demandas correspondia a problemas de convivncia, mais do que a
demandas entendidas como propriamente policiais. Contudo, a recorrncia de demandas contra a desordem demonstrava que, embora
as crticas eficincia do trabalho policial fossem muitas e enfticas,
esses vizinhos partilhavam a viso de que a soluo policial era
a resposta mais adequada e legtima para os problemas elencados.
Esta opinio e, portanto, a prtica de apresentar esse tipo de queixa
no mbito da comisara, definiu, em parte, algumas caractersticas
ainda no destacadas do perfil dos participantes dos Conselhos.
Quer dizer: nem todos os moradores dos bairros da cidade de Buenos
Aires partilhavam a opinio de que a polcia seria o melhor canal para
tratar problemas tais como os mencionados.16 O fato de as reunies
se realizarem nas comisaras, por exemplo, excluiu, de incio, um
16
Inclusive nem todos concordam que essas situaes sejam um problema. Contudo, interessame enfatizar a relao entre a busca de uma interveno policial para esse tipo de casos, pois
acredito que muitos moradores se sentiam perturbados ou atemorizados pela presena de
jovens bebendo cerveja na porta de seus prdios, mas que no achavam que se manifestar
diante da polcia fosse um bom encaminhamento do problema.
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pblico mais crtico da instituio policial. Sem dvida, foi o caso dos
jovens, assim como de profissionais de uma classe mdia da chamada
tendncia progressista.
Em terceiro lugar, a forma e o contedo das demandas estabeleceram
fronteiras entre os vizinhos, sujeitos da participao comunitria, e
os que vm de fora, que no so do bairro, que no conhecemos,
a gente de mau viver, que gritam, sujam, urinam e bebem cerveja,
os ilegais, os chorros. Incluam-se nestas categorias camels,
prostitutas, travestis, jovens, mendigos, imigrantes.
Na percepo dos vizinhos, esses grupos ameaavam o espao
pblico; porque sujavam, faziam barulho, brigavam, furtavam, eram
ilegais. Assim, as demandas por segurana pblica eram definidas,
nessa viso, no s como questes de criminalidade, mas tambm
como problemas morais e estticos. Manter a limpeza e pureza do
bairro, assim como estar de acordo com a legalidade, apareciam como
valores comuns entre os vizinhos participantes. Nessa dinmica,
aqueles que eram objeto-alvo das demandas dos vizinhos eram
implicitamente definidos como os de fora do bairro e, portanto, de
fora dos Conselhos.
Consequentemente, a participao comunitria no os incluiu como
seu pblico, pois no s no partilhavam dos valores morais presentes nas reunies mas tambm na percepo de seus participantes, os
ameaavam. Os jovens na porta do prdio, as pessoas ocupando a rua
na entrada do baile funk, as prostitutas nas caladas, eram percebidos
como grupos que faziam um uso inadequado do espao pblico, pois,
entre outros motivos, tratava-se de pessoas estranhas, desconhecidas,
que no pertencem ao bairro.
Concluses
Procurei, ao longo deste artigo, descrever a forma como se efetivou, em diferentes bairros da cidade de Buenos Aires, a criao e
a dinmica dos Conselhos de Preveno Comunitria organizados
nas comisaras locais. Como mencionado no incio, a pergunta que
tentei responder foi: quem eram os participantes da comunidade
imaginada pela poltica de participao comunitria?
A pergunta surgiu de um primeiro estranhamento sobre o fato de que
uma poltica pblica, impulsionada pela polcia, apelasse comuni315
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19
Clifford Geertz (1999), usa a noo de afiliao social para descrever as aldeias balinesas.
Destaca que a aldeia balinesa no , em nenhum sentido, uma unidade territorial orgnica
que coordena todos os aspetos da vida em termos de residncia ou propriedade fundiria
[...], mas sim um conjunto de estruturas sociais, cada uma baseada em um princpio diferente
de afiliao social, que se ajustam uns a outras somente na medida em que isso parece ser
essencial (1999, p. 279). No caso analisado por Geertz, esses princpios podem ser o culto, a
residncia, a propriedade dos arrozais, o status social, os laos consanguneos e de afinidade,
a filiao e a subordinao legal.
Como tm demonstrado, entre outros trabalhos, as etnografias de Ana Claudia Marques
(2002) e John Comerford (2003), o conflito uma dimenso constitutiva das relaes sociais
e, portanto, de grupos tais como a famlia ou a comunidade, tradicionalmente identificados
como harmnicos e consensuais.
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REFERNCIAS
BAILEY, F. G. Gifts and Poison. In:
Oxford: Basil Blackwell, 1971. p.1-25.
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O DEVER DE CIDADANIA
POLTICAS PBLICAS
DE PLANEJAMENTO
URBANO E PARTICIPAO
POPULAR NO BRASIL
Alex Varella1
Um desejo de organizao cujas razes esto
na sociedade inteira...
Walter Gropius
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Aqui, compreendemos o Plano como manifestao do ethos universalista e intervencionista do planejamento urbano,3 que o inspira,
sugere e estatui de imediato um ente jurdico codificado em regras
externas e coercitivas,4 nas quais se traduz e converte, de direito
cidade5 em dever de cidadania. Diante deste, a participao assume
os foros de um mecanismo e forma de aprovao, expressos numa
ocasio paradigmtica, que deve se repetir a cada cinco anos.
Neste sentido, o Plano Diretor Participativo uma lei, um ente jurdico, cifrado nos modos da tradio formalista positiva, que constitui
a conduta legal e legtima a partir de regras a priori que no supem,
em sua formao (gnese) e aplicao, a participao dos atores
cujos comportamentos regula.
No Brasil, a participao popular em processos de planejamento
constitucional.6 Significa que teramos passado diretamente, num
intervalo que pode ser contado em meses, desde a ditadura militar,
cujo projeto de modernizao criou o Ministrio do Planejamento e
consolidou o prestgio dos tcnicos, a uma nova espcie de repblica
participativa?
Como e por qual processo tal mudana teria se operado? Representa
continuidade ou ruptura com a tradio cultural e urbanstica?
Municpios de 20.000 habitantes j esto obrigados ao Plano (federal) Diretor Participativo, ainda que jamais suas populaes hajam
manifestado qualquer demanda por planejamento ou participao.
Para a crtica de tal ethos, ver Teoria de la deriva i altres textes situacionistes. Barcelona:
MACBA, 1996.
Quando, ao contrrio, as regras sociais, isto , culturalmente ou socialmente consideradas,
envolvem internalidade e alguma espcie de reconhecimento e convencimento dos atores
quanto aos lances vlidos e formas corretas de jogar o jogo, isto , de acordo com a regra.
Cf Winch (1970); Wittgenstein (1975); Hart (1986).
Programa poltico-ideolgico de universalizao de direitos em contexto urbano, tais como
o de moradia, trabalho e cultura, tornou-se, no Brasil, um ncleo doutrinrio das prticas
polticas e celebraes associativas dos profissionais da cidade arquitetos, gegrafos,
urbanistas... (LEFEBVRE, 1991).
Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Ver Oliveira (2006).
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O Plano Diretor Participativo imperativo,7 e surpreende a quantidade e severidade das punies previstas, a serem aplicadas queles
que o descumprirem em seu carter participativo, em particular os
prefeitos, sujeitos perda de mandato e outras sanes, caso no
submetam os projetos e polticas pblicas dos tcnicos associados
aprovao do auditrio dos interessados, e s depois Cmara dos
Vereadores, num processo que deve concluir-se obrigatoriamente at o
dia 10 de outubro de 2006 e, a partir de ento, repetir-se a cada cinco
anos. O PDP um ser jurdico destinado a produzir efeitos jurdicos.
Para que se chegasse a tal concepo de repblica participativa,
com a negao da soberania dos tcnicos, que ela implica, supe e
prope, teria sido qui necessrio um perodo de sua exaltao, na
ditadura militar, quando esses especialistas, presumveis detentores
de um saber objetivo e infenso a preferncias e injunes partidrias,
galgaram o poder e o comando das polticas pblicas, em aliana com
o estamento militar. dessa poca, por exemplo, o incio da carreira
poltica que o levaria por duas vezes prefeitura de Curitiba do
arquiteto-urbanista Jaime Lerner, inicialmente nomeado ao cargo de
Secretrio Extraordinrio da rea Metropolitana do Rio de Janeiro
pelo almirante Faria Lima, ungido por seus colegas militares governana do Rio de Janeiro (1975-1981).
De outra parte, o apelo participao, que distingue o plano atual dos
anteriores , no Brasil, sem complementos, difuso e indeterminado,
como no prprio PDP.
Exemplo disso o uso repetido da palavra no anncio televisivo
das eleies de 2006, construdo de tal forma que dele s retemos a
exortao final participe, transformada agora no verdadeiro ncleo
da mensagem, que s pode expressar-se como tal no mbito de um
sentimento coletivo de participao, para o qual transferida a nfase,
esquecido o mbil original da ao.
Na cultura brasileira, a participao assume a forma de um sentimento
de participao, como esta instncia que deve operar a conciliao
e dissolver a oposio entre a esfera tcnica do planejamento e o
7
[...] nos planos imperativos a nota saliente a cogncia. Os particulares ficam submetidos
s regras do plano e obrigados a uma determinada conduta, sob pena de consequncias at
mesmo de carter criminal, de multas e outras sanes administrativas (COUTO; SILVA,
1987, p.3).
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Acrescente-se, ainda, a presena e atuao, em numerosos projetos, de equipes de arquitetos e urbanistas de distinta procedncia e
nacionalidade,14 para os quais o Brasil, tantas vezes tido como pas
12
13
14
Pavesi (2005-2006).
Ibidem.
Ibidem.
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do acaso (a que se atribuiu sua descoberta), do improviso e do imprevidncia, tambm o pas do planejamento, que mais longe levou o
planejamento urbano, ao ponto de materializar suas receitas nos espaos racionais da capital construda para ser cone e smbolo do pas.
De um ponto de vista do municpio ou do pas, para culturas penetradas
por um forte sentimento de esgotamento e exausto das ideologias
totais, a que correspondem territrios exguos e possibilidades de
deslocamento inesgotveis, o Brasil ainda , consoante a promessa
moderna, mais do que um continente, um mundo a planejar.
1
Se, como pensa o autor do Direito Cidade,15 a Filosofia Urbana o
exame crtico da atividade dos urbanistas, tal esclarecimento incide
cada vez mais sobre o binmio planejamento urbano-participao
popular.
O relacionamento entre os dois termos pode ser acompanhado tanto
do ponto de vista das disciplinas da planificao quanto do contexto
poltico e filosfico que os rene e compreende.
Os anos 1960, nos Estados Unidos e na Europa, constituem o marco
temporal inicial de seu encontro, aproximao e desenvolvimento
histrico-problemtico.
No que se refere s disciplinas da planificao, a temtica da
participao revela-se como manifestao e produto de uma crise do
modelo tcnico autoritrio, fundado na presuno de desinteresse,
objetividade e universalidade da cincia, da qual o urbanismo
racionalista moderno e seu estilo internacional se representa como
fiel aplicao. Trata-se de uma crise no modo de autocompreenso e
de atuar das disciplinas tcnicas (e, em ltima anlise, da prpria
modernidade), da qual emergir o discurso da participao.16
Aqui so os prprios urbanistas e arquitetos que passam a admitir
e defender a presena do pblico na definio dos meios e fins do
planejamento urbano, o modelo hermenutico da aplicatio17 que, em
oposio aplicao universal-autoritria, envolve o reconhecimen15
16
17
Lefebvre (1991).
Hall (1995, p.392- 402).
Gadamer (1991, p.51).
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Saule (1997).
CONFEA-Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia; FASE-Solidariedade e
Educao; FNA Federao Nacional de Arquitetos; Fundao Bento Rubio; IAB Instituto
de Arquitetos do Brasil; IBAM Instituto Brasileiro de Administrao Municipal; IBASE
Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e econmicas; Instituto Polis; IPEA Instituto de
Pesquisa Econmica Aplicada; IPPUR/UFRJ Observatrio de Polticas Urbanas e Gesto
Municipal; MMC Movimento Moradia So Paulo; Movimento Pr-Favela Rio de
janeiro; MSTC Movimento dos Sem-Teto So Paulo; sindicato dos Engenheiros de So
Paulo; Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro; UMC Unio dos Movimentos de
Moradia So Paulo. Estatuto da Cidade para compreender. Rio de Janeiro: Instituto
Brasileiro de Administrao Municipal, 2001.
Freire (1967, 1970).
Brett (1986, sem indicao de pgina).
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guarda memria a prtica de atribuir conceito e nota por participao), Hlio Oiticica dava um passo alm.
Para dar nfase ao aspecto ativo da participao (o inverso absoluto
de ser participado), inventa um neologismo, o participador,30
quando tinha ao seu dispor o termo participante, de orla mais
receptiva, passiva.
Seu trabalho no apenas propicia escolhas (como na obra aberta),
mas faz do antigo espectador, agora participador, seu autor, na
medida em que com o prprio e intransfervel corpo se inscreve na
obra desde o incio, quando escolhe o orifcio por onde vestir a capa-parangol e, destarte, a faz existir.
Ademais, a escolha e participao no se atm aqui essencialmente
aos materiais e s formas e meios da ao, como em Paulo Freire.
Neste autor, efetivamente, os fins da ao permanecem margem
da discusso.
A pedagogia, ou melhor, a educao, visa formao da
autoconscincia, e poderia ser descrita, imagem da fenomenologia
hegeliana, como o caminho que vai desde a conscincia natural
conscincia de si como ser poltico e genrico.31
Mas Hlio Oiticica no determina os fins da ao.
Voc no apenas pode vestir como quiser a capa Parangol, como
tambm pode fazer o que quiser com ela: passear, fruir de seu contato na pele, danar..., mas nenhuma dessas coisas o fim necessrio
e ltimo da ao.32
Ela no est direcionada, como o educando participante de Paulo
Freire est direcionado pela realizao de determinada essncia, a
formao do homem livre e autoconsciente, o que naturalmente inclui
a conscincia de sua circunstncia.
Mas se a questo da participao recebe, na dimenso da cultura
erudita, os aportes originais da vanguarda participacional e da pe30
31
32
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Roteiro de trabalho para a urbanizao de favelas: guia prtico. Belo Horizonte: Secretria
de Estado do Trabalho e Ao Social, 1987.
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Tal ascenso mais ou menos simultnea e contempornea de coadjuvantes guindados a protagonistas da cena principal, se realiza em
nome da representao do tcnico o urbanista, o engenheiro, o
economista como dotado de um saber e um ethos de interesse
geral, alm do fracionamento da vida societria e poltica, dispersa
numa multiplicidade de paixes e interesses particulares conflitantes,
de indivduos, grupos ou partidos.
3
Antes era o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, o PDDI,
no tempo da ditadura militar. Agora, Plano Diretor Participativo,
quando neste ltimo termo reside toda a novidade, e no apenas por
razes eufnicas.
Mas no prprio do plano ser dirigente e direcional, ainda que seja
meramente indicativo?
indicativo quando tem carter apenas sugestivo, no obrigatrio,
o poder pblico no se comprometendo com sua execuo e
implementao.34
Corresponde a um cumprimento meramente retrico da funo
planificadora do Estado. Se este no possui os recursos, materiais
ou polticos, para implement-la, faz-la efetiva ao nvel fsico-construtivo,das pedras, a realiza como discurso, destinado a
produzir efeitos simblicos e fazer visvel a presena do Estado.
Tem um carter quase de aconselhamento cidadania responsvel,
diante da qual o Estado assume posio ambgua, ausentando-se para
preservar e confirmar sua presena diretora na funo de indicao.
J o incitativo um plano de incentivos, amide materiais, como, por
exemplo, o municpio abrir mo da cobrana do IPTU para aqueles
que destinarem suas propriedades urbanas a determinados usos, considerados convenientes ou estratgicos. Assim, o poder pblico no
abre mo de sua funo diretora, com a qual distribui as atividades
urbanas, valendo-se de perdo e penalizao. A legislao urbana
o instrumento de seus fins.
34
Couto e Silva (1987, p.3 et seq.); tambm Saule Jr. (1997, p.143-149).
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4
conhecido o episdio no qual um grupo de arquitetos-urbanistas,
sob a liderana de Le Corbusier, freta um navio em Marselha, e
entre debates e conferncias acaloradas, empreende uma viagem
filosfica aos fundamentos, para participar do CIAM (Congresso
Internacional de Arquitetura Mundial ) de 1933, na antiga polis
grega, de que resultou o documento-sntese do urbanismo moderno,
a Carta de Atenas,37 de autoria do arquiteto franco-suio. Na volta, faz
o mesmo trajeto e programa: de Atenas Marselha, via porto e mar
do Egeu, entre projetos e sonhos de inveno e correo urbanstica.
O fato daquele congresso ter sido realizado em Atenas e as circunstncias que cercaram o empreendimento, no deixam dvidas quanto
sua significao fundadora: se a atividade dos construtores e reformadores de cidades obedece a uma constante e recorrente seduo,
e mais que isso, a uma verdadeira nostalgia do lugar, a capital filosfica e intelectual de Ocidente parece ser a cidade ideal para, desde
o passado, velar pelo futuro.
FOTO2 - Projeto de habitao social
em Pedras Brancas, So Jos do Vale do Rio Preto, RJ.
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Analisando sua denominao, diz Saule Jnior: Integrado, pois deveria se integrar no
desenvolvimento da regio em que se situasse o municpio e nos planos regionais existentes,
como tambm constituir um conjunto integrado de diretrizes e programas de ao, nos vrios
setores da atividade municipal econmico, social-territorial, administrativo e financeiro.
Cf Saule (1997, p.37-38).
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REFERNCIAS
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Globo, 1983.
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EICK, Aldo Van et al. Le sens de la ville. Paris: ditions du Seuil,
1972.
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ASSOCIAR-SE:
Reivindicar direitos
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Destaco aqui a participao dos antroplogos Celeste Ciccarone e Sandro Jos da Silva,
professores da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), que realizaram trabalhos
de campo de longa durao nessas reas indgenas em seus doutorado e mestrado,
respectivamente; dos pesquisadores do PR-NDIO/UERJ, Jos Ribamar Bessa Freire,
Mrcia Malheiros e Valria Luz; da sociloga Mnica Lepri (CPDA-UFRRJ) e da biloga
Maria Beatriz Dallari, coordenadora dos estudos ambientais do Gasoduto Cacimbas-Vitria,
entre outros tcnicos contratados pela Biodinmica, empresa de consultoria responsvel
pelos estudos. Como avaliadores crticos dos relatrios e parceiros da pesquisa de campo,
participaram diretamente do trabalho os tcnicos da FUNAI Jorge Luiz de Paula (EAR Gov.
Valadares/ MG-ES) e Ludmila Guerra (CGPIMA/ DF).
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O acordo, fixado por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em 1998, previa 20 anos
de trgua entre as partes. Os ndios deveriam receber dez milhes de dlares da empresa sob
a forma de projetos socioeconmicos e, em contrapartida, abrir mo da disputa fundiria
nesse perodo. Firmado em situao de conflito, foi assinado em Braslia sem o consentimento
pleno das lideranas indgenas, pressionadas a adotar uma soluo imediata para um problema
de longo prazo, razes para o rompimento em 2005.
Atualmente os ndios preferem a grafia Tupinikim com k para se representar, tambm como
modo de afirmao da diferena, se distinguindo da forma corrente na lngua portuguesa.
Os antroplogos, no entanto, tm optado pela grafia Tupiniquim, tal como aparece nas
referncias histricas e na documentao oficial da FUNAI (FREIRE, 1995; SILVA, 2000;
VEIGA, 2004).
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Caminha (2006).
Trata-se do Colquio de Entrada ou Chegada ao Brasil, entre a Gente do Pas Chamada
Tupinamb e Tupiniquim, em Linguagem Braslica e Francesa, em Lry (1997, p. 275-292).
Staden (1999).
Freire (2000).
Freire (2000); Guimares (1982); Silva (2000).
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Rocha (1980).
Oliveira (1994, 1998).
Mello (1982).
Douglas (1976, p. 196).
Silva (2000).
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ou irnica do produto nacional no autntico, de mau-gosto e qualidade duvidosa; ou seja, daquilo que colonizado, descaracterizado
ou pouco civilizado, numa autocrtica selvagem s nossas prprias
mazelas nacionais: o governo tupiniquim, a justia tupiniquim,
a educao tupiniquim, a mdia tupiniquim etc.
No princpio do sculo XX, as primeiras atividades do Servio de
Proteo ao ndio SPI no Esprito Santo e em Minas Gerais estiveram
totalmente voltadas para a pacificao dos temidos ndios Botocudo ou
Krenak do vale do rio Doce, que constituam forte ameaa e resistncia
na implantao das ferrovias Bahia-Minas e Vitria-Minas. Embora
tivesse conhecimento do grupo, o SPI reconhecia sua dificuldade em
promover a assistncia e a proteo dos chamados ndios pacficos
da regio20 entre eles os Tupiniquim e alguns Krenak do Esprito
Santo, os Maxakali de Minas Gerais e os Patax do sul da Bahia.
Na dcada de 1940, o impacto de um grande empreendimento chega
regio, quando o Estado do Esprito Santo concedeu o uso de 10 mil
hectares de terras indgenas Companhia de Ferro e Ao de Vitria
(COFAVI) para a produo de carvo vegetal. Com a devastao de
vrias matas nativas e a implantao de diversas carvoarias, as capoeiras resultantes passaram a ser aproveitadas para a agricultura de
subsistncia. A ocasio serviu tambm para a entrada de posseiros
na regio desmatada.21
O sentimento de ameaa, no entanto, s se tornou mais evidente com a
chegada do empreendimento seguinte sobre as grandes reas abertas e
reduzindo ainda mais a mata nativa. Em pleno regime militar, a partir
de generosos incentivos fiscais e financiamentos dos governos federal
e estadual, surge a empresa Aracruz Florestal, servindo-se de formas
autoritrias de intimidao e de apropriao do territrio. Transforma
a regio em uma imensa plantao de eucalipto, clula embrionria
para a instalao do complexo industrial da Aracruz Celulose, hoje
uma das maiores empresas privadas do Brasil.
Os meados dos anos 1960 marcaram o incio de um perodo crtico
e definitivo para os Tupiniquim. Em dezembro de 1966, a Aracruz
Celulose comprou os 10 mil hectares da COFAVI e se instalou definitivamente na regio, dando incio a um empreendimento industrial
com o plantio de imensos campos de eucaliptos que redesenhou defi20
21
Freire (2000).
Guimares (1982).
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Guimares (1982).
Clastres (1978).
Ciccarone (2004, p. 82).
Ciccarone (2001)
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Monteiro (2001).
Guimares (1982); Mugrabi (2001).
Freire (1995).
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Mugrabi (2001).
Almeida (2006).
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Aracruz, fazendo a gesto dos recursos dos projetos que a empresa aprova e deixando de lado
projetos de interesse das diferentes demandas
locais. Um cartaz afixado na porta de entrada
da AITG explicita bem a situao: informa que
no h cestas bsicas e pede que, por favor,
no insistam.39
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Amselle (2001).
Cf. observam Andrade; Dias; Quintella (2001) ao enfatizar a transitoriedade dos acordos
cooperativos e a iminncia dos conflitos ao longo das relaes entre a Aracruz Celulose e
os ndios.
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Diante de todos esses empreendimentos, as lideranas indgenas afirmavam: ns aqui estamos imprensados. As imagens via satlites
apresentadas pela equipe contratada pela Petrobras aos ndios confirmavam essa opinio corrente nas sete aldeias, aumentando a convico
indgena sobre a necessidade de expanso do territrio demarcado.
Pude verificar que a habilidade de leitura e interpretao de mapas
e imagens feitas por satlites entre os Tupiniquim e os Guarani era
sofisticada, no somente pelo conhecimento topogrfico da regio,
mas tambm pela colaborao empreendida durante a realizao dos
GTs da FUNAI para ampliao da rea.
Mais de duas dcadas aps sua construo, o Gasoduto Lagoa PardaVitria voltava a ser um tema central de debate entre as lideranas
indgenas, diante da construo iminente de mais um gasoduto na
regio. Batizado pelos Guarani de tatarap, ou seja, o caminho do
fogo, o antigo gasoduto era visto como um ser malfico, um ente
desconhecido e sobrenatural que cortou nossa terra ao meio e sobre
o qual nada poderia vingar, a no ser o receio e a ideia de risco.43
Ouviam chiados e fortes barulhos de suas vlvulas de despressurizao e sentiam medo, sem saber se aquilo iria explodir. Lus Barbosa,
jovem lder de Comboios, resumiu bem a percepo indgena sobre
o tatarap em uma de nossas reunies:
Aquilo pior do que uma ona, porque o ndio
no sabe o que tem ali dentro. A Petrobras diz
que no nenhum bicho de sete cabeas, mas
para a gente . Dos bichos selvagens, das onas
do mato, a gente sabe dos riscos, mas de uma
tubulao, a gente no sabe. Ningum sabe se
explode. E ns vamos ficar no meio de dois
gasodutos.44
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Veiga (2005).
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como nessa ocasio. A tal ponto que a Aracruz Celulose foi obrigada
a retirar seu contedo na internet pelo MPF por ao de danos morais
coletivos aos ndios, sob pena de receber pesadas multas dirias. Com
o acirramento das posies e diante da intensa propaganda difamatria,
contudo, se articularam novas estratgias indgenas de autoafirmao,
reforando seu carter combativo e a impossibilidade de dilogo.
Diante da indignao moral, a resposta foi um ousado protesto
indgena em outubro de 2005, quando 200 ndios conseguiram ocupar
o ptio industrial da Aracruz. No ato, de grande repercusso na mdia
nacional, os ndios danaram e discursaram em cima de grandes rolos
de papel para exportao, portando faixas com as frases plantaes
de eucalipto no so florestas, a Aracruz destri culturas e quem
so os invasores?. No houve confronto, mas o irreverente protesto
motivou a ira dos executivos da empresa.
Em 20 de janeiro de 2006, um mandado de reintegrao de posse,
ilegalmente expedido por um juiz local a favor da Aracruz, transformou
Olho dgua em cenrio de guerra. Aps uma srie de irregularidades,
pois os caciques no foram notificados e a FUNAI sequer foi
comunicada, as casas da nova aldeia foram destrudas e os ndios
atingidos por balas de borracha em uma ao truculenta da Polcia
Federal. Para agravar o quadro, os policiais federais receberam visvel
apoio da empresa, se instalando na Casa de Hspedes da Aracruz
Celulose e l efetuando prises de lderes indgenas, utilizando seus
tratores para a destruio das casas e contando com o reforo de
sua segurana particular. Passava-se, portanto, da agresso moral e
simblica para o radicalismo da agresso fsica.
A ao violenta da Polcia Federal, somada s evidncias do apoio
logstico da Aracruz Celulose na operao e ao pedido dos ndios de
indenizao por danos morais Unio, obrigaram o presidente Lula
a ouvir sua manifestao no aeroporto de Vitria, somente 20 dias
depois do ocorrido, quando em visita ao Estado para inaugurar uma
subestao de energia eltrica. Como argumento incontornvel, Dona
Helena, ndia Tupiniquim de Caieiras Velhas, mostrou as cicatrizes
dos ndios, marcas corporais da violncia, ao presidente da Repblica,
que prometeu uma visita urgente rea do Ministro da Justia e a
futura demarcao da rea pretendida.
Diante da visibilidade crescente na mdia internacional, outro resultado imediato do confronto foi a presso de ONGs ambientalistas sobre
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ao espetculo e constitutivas do campo da dramaturgia e das artes cnicas, veremos que os papis representados pelos ndios e pela Aracruz
Celulose se construram mutuamente sob a forma de um antagonismo
radical. Assim, gerando no plano identitrio e na cena pblica uma
recusa recproca, a empresa e os ndios passaram a desqualificar reciprocamente seus papis sociais, em interaes cada vez mais tensas.
Enquanto os ndios Tupiniquim e Guarani, acusados de serem uma
espcie de farsa ideolgica pela Aracruz Celulose, tinham seus
direitos polticos considerados como absurdos e descabidos, a empresa, em contrapartida, viu sua fachada de responsabilidade social
e de sustentabilidade ambiental ser frontalmente atacada por eles
e seus aliados. Na longa disputa com a Aracruz Celulose, os ndios
acusaram a empresa e foram simultaneamente acusados de invasores
e de violentos, resultando em atitudes de no reconhecimento e de
desrespeito mtuo. A denncia recproca ou o crculo da denncia
estabelecido fez com que perseguidores e vtimas alternassem os papis, segundo as diferentes verses em disputa e cada qual tomando
sua prpria causa como a nica portadora de legitimidade moral.59
Diante do conflito insolvel entre os ndios e a Aracruz Celulose e da
negao recproca de seus papis sociais, configurou-se um drama
social irreparvel, aps a ruptura das relaes dialgicas e a escalada
crescente da crise que atingia ento seu pice.60 Sobretudo a partir da
afronta impressa e estampada na cartilha e nos outdoors, reforando
esteretipos negativos sobre os ndios, e do limite ultrapassado pela irrupo da violncia fsica nos episdios envolvendo a Polcia Federal.
Como um tiro pela culatra, a argumentao equivocada da empresa,
a ao desastrosa de reintegrao de posse na justia local e a participao explcita no embate policial iriam motivar uma deciso
favorvel aos Tupiniquim e Guarani no final do processo, em agosto
de 2007. O papel denunciador das ONGs e da mdia independente,
levando a questo para alm da dimenso local, foi tambm decisivo
nesse processo, assim como os novos relatrios tcnicos enviados
FUNAI reafirmando a necessidade de resoluo do conflito fundirio
59
60
Sobre a denncia e suas distintas modalidades individuais e coletivas, ver Boltanski; Darr;
Schiltz (1984).
Ao formular o conceito de drama social, processo que emerge em situaes radicais de conflito,
Victor Turner aponta para a dimenso dramtica da vida social e as possibilidades de um cisma
irreparvel, diante do fracasso da ao reparadora. constitudo por quatro fases: (1) ruptura,
(2) crise, (3) ao corretiva e (4) reintegrao ou cisma irreparvel, dependendo do desfecho
do drama social (TURNER, 2008, p. 33-37).
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REFERNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente
ocupadas: processos de territorializao, movimentos sociais e uso
comum. Manaus: PPGSCA, 2006.
ALMEIDA, Rubem Thomaz de; CICCARONE, Celeste; SILVA,
Sandro Jos et al. Debate: povos indgenas e regulao fundiria
no Esprito Santo: uma questo aberta. Revista de Cincias Sociais,
Vitria, v.1, n.1, p.295-309, 1998.
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DA ASSOCIAO
AO SINDICATO.
UMA ETNOGRAFIA
DO ACESSO DAS EMPREGADAS
DOMSTICAS DO RIO
DE JANEIRO AO DIREITO
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seguro-desemprego, carga horria semanal de trabalho, regulamentao do trabalho noturno e ao pagamento das horas-extras), os
trabalhadores domsticos podem, de agora em diante, reivindicar um
nvel de proteo relativamente elevado, principalmente se comparado
ao restante da Amrica Latina. Tudo isso reafirmado por meio da sua
integrao ao regime da Previdncia Social, obtida em 1972, que assegura o direito aposentadoria e licena para tratamento de sade.5
Sem querer fazer da condio de domstica uma condio invejvel,
fato que essas mudanas trouxeram uma melhora sensvel das
condies de trabalho dessas trabalhadoras. Segundo as estatsticas
do Instituto Brasileiro de Geografia e de Estatsticas (IBGE), a categoria dos trabalhadores domsticos aquela cujos vencimentos
mais aumentaram ao longo dos anos 1990. Embora permanecendo
baixos, eles atingem hoje um nvel equivalente ao salrio de outras
categorias de trabalhadores sem qualificao (isto , em mdia, cem
euros por ms nos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro, So
Paulo e Braslia). Durante essa dcada, marcada pelo crescimento do
setor informal, a formalizao dos trabalhadores domsticos tambm
se acentuou, fato notvel mesmo considerando-se que mais de dois
teros das mulheres que encontram nessa profisso seu meio de sobrevivncia no so registradas por seus empregadores.
A implementao desse quadro jurdico permitiu que se formasse um
novo contexto interpretativo por meio do qual um nmero crescente
de trabalhadoras passou a avaliar suas condies de trabalho. Cada
vez mais frequentemente elas consideram que um bom patro no
apenas aquele que as trata com considerao e as socorre em momentos difceis, mas tambm aquele que observa o direito social.
E hoje no podemos compreender as relaes estabelecidas entre
essas mulheres e seus empregadores sem demonstrar o impacto dessa
conscincia sobre o direito.6
A possibilidade de se recorrer ao direito de imediato obscurece a possibilidade de distinguir claramente os conflitos interpessoais, ligados
a diferenas de temperamento ou a tenses inerentes copresena do
empregador e da empregada, e os conflitos provocados pelo descum5
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no renunciaram ao objetivo de tornar o trabalho domstico uma profisso como as outras, regida por estatutos jurdicos equivalentes. Um
importante avano nessa direo aconteceu em 2000, com o advento
do fundo de garantia por tempo de servio opcional, que concede
ao empregador a possibilidade no a obrigao de integrar a sua
empregada domstica no FGTS e, com isso, por meio do recolhimento
da contribuio previdenciria equivalente, permitir que ela receba a
indenizao do fundo em caso de demisso.
2.2 Sindicalistas de um determinado perfil (ou de um perfil
particular ou especfico)
Nove mulheres se revezam no STD para garantir o atendimento ao
pblico, atender ao telefone, ajudar a duas assistentes sociais e a trs
advogados, administrar a entidade e represent-la em duas instncias.
As caractersticas sociolgicas das militantes se assemelham muito.
Todas tm mais de 50 anos e, com exceo de uma, nascida no sul
do Brasil, todas as demais so provenientes de zonas rurais ou de
pequenas cidades dos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais ou
da Regio Nordeste. Na sua maioria, comearam a trabalhar como
empregadas domsticas no incio da adolescncia. Quase todas passaram mais de duas ou trs dcadas servindo mesma famlia, embora
as estatsticas revelem um forte turnover (rotatividade) nesse tipo de
emprego. E, ainda que no estejam mais trabalhando com as mesmas
famlias, continuam mantendo um relacionamento que, segundo elas
prprias, marcado por mtua afetividade. Revela-se a um paradoxo.
Embora seja recomendado s trabalhadoras domsticas que evitem
o envolvimento emocional com seus empregadores, a relao que
mantm com seus patres ou ex-patres parece contradizer tal conselho. O engajamento dessas trabalhadoras domsticas na militncia
sindical certamente testemunho da capacidade delas de escaparem
da ascendncia psicolgica daqueles que as empregam. Em contrapartida, isso pode sugerir que foi a estabilidade e a qualidade da
relao de trabalho que lhes forneceu o equilbrio social e psicolgico
necessrio militncia. Todas, enfim, chegaram ao sindicalismo por
meio da participao em grupos ligados Igreja Catlica: as mais
velhas pelo vis da JOC, no incio dos anos 1960, e as mais jovens
frequentando a Pastoral da domstica que se rene nas igrejas do Rio.
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O perfil sociolgico de suas militantes contribui para o carter atpico desse sindicato no mbito dos sindicatos brasileiros. Ainda que
os estudos sobre os dirigentes sindicais no Brasil tenham acentuado
como uma marca do campo esse progressivo distanciamento dos dirigentes em relao ao seu ambiente original (AGIER; CASTRO, 1995;
BROCHIER, 2001), essas mulheres mantiveram-se em contato com o
emprego domstico. Das dez mulheres mais envolvidas na atividade
sindical, trs recebem aposentadoria aps terem sido trabalhadoras
domsticas durante mais de 30 anos, e as outras ou ainda prestam servios a uma famlia ou fazem faxina. Elas moram sempre em bairros
populares e nas favelas da Cidade. De fato, seus vencimentos no lhes
permitem pensar em adotar um modo de vida diferente daquele das
outras trabalhadoras domsticas. Seus empregadores pagam em geral
s um pouco melhor do que seus antigos patres e os extras recebidos
por planto no sindicato constituem apenas um mdico ganho complementar. Diferentemente tambm do que se observa na maioria dos
sindicatos profissionais brasileiros, no caso das trabalhadoras domsticas o engajamento sindical no lhes oferece nenhuma possibilidade de
ascenso social, embora modifique seu universo sciocultural, levando-as a participar de congressos e a se encontrarem com polticos eleitos,
com outros sindicalistas e com militantes feministas.
3 As dificuldades da assessoria jurdica
A pesquisa sobre o atendimento prestado nos guichs dos servios
pblicos revelou a ambivalncia dos agentes encarregados de atender
aos usurios (DUBOIS, 1999; SIBLOT, 2002; WELLER, 1999). A
relao desses funcionrios com o pblico pode ser tanto uma relao
de poder e de controle, quanto uma relao amistosa que garante a
socializao desses indivduos em uma situao precria (ou provisria). Se o STD no foi pensado como um servio pblico, o fato
que a maioria daqueles que o solicitam consideram-no como tal. Da
que se tem dois conjuntos de tenses que podem nos ensinar muitas
coisas sobre as relaes sociais no Brasil. O primeiro est ligado
posio ambgua do sindicato. Embora os sindicalistas considerem-no como uma entidade reivindicativa que visa profissionalizao
do emprego domstico, as trabalhadoras domsticas consideram-no
um espao administrativo e no o identificam como sendo o rgo
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Gauljac (1996).
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isto bastar para negociar com eles uma indenizao sem passar pelo
procedimento formal de resciso do contrato de trabalho.
4.2. Negociao, conciliao, impasse
A simples existncia do formulrio do STD leva, muitas vezes, os
empregadores recalcitrantes a negociarem, preferindo um acordo aos
aborrecimentos de um processo. A interveno pessoal da assistente
social tambm constitui, com frequncia, um elemento essencial na
deciso de um patro para acabar com o conflito indenizando sua
antiga empregada. Um simples telefonema pode bastar para convenc-lo a cumprir a lei.
Quando a assistente social no tem xito na sua tarefa, ela passa o
pleito da requerente a um dos advogados do STD. Se este considera
que a ameaa de uma ao na justia pode levar o empregador a
transigir ou que a opo pelo processo no segura, ele convoca
o empregador para ir ao sindicato proceder resciso do contrato
para pagar as verbas devidas. Quando isso no basta ou quando lhe
parece que o caso deve ser levado justia, o advogado apresenta
uma reclamao ao Tribunal do Trabalho, por meio da qual aponta
os aspectos jurdicos que foram desrespeitados pelo empregador,
pleiteando a respectiva indenizao, sem, no entanto, narrar os fatos
que ensejaram a resciso.
Os litgios administrados pelo sindicato entre trabalhadoras domsticas e empregadores s raramente se convertem em processo. Embora
cerca de 700 trabalhadoras solicitem, mensalmente, os servios do
STD, apenas em torno de 35 veem seu caso se resolver no tribunal. A
maioria dos empregadores prefere, na verdade, negociar a conciliao
com sua antiga empregada somente aps ter recebido a intimao
do sindicato para ir regularizar a sua situao jurdica ou aps tomar
cincia da reclamao na Justia.
Durante a tentativa de conciliao, o advogado do STD se esfora
para convencer as partes de que prefervel um entendimento a um
confronto diante de um juiz. Seu trabalho consiste em lev-los a
concesses mtuas, coisa que no nada fcil, j que cada um est
convicto do seu direito. Ele tenta persuadir a requerente dizendo-lhe
que, renunciando a uma parte do que lhe devido, ela receber mais
rapidamente aquilo a que tem direito e acabar com um caso que
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Sobre este efeito do direito social, remetemos Alain Supiot (2001, p.152), para quem [O
direito social (direito do trabalho e da previdncia social)] permanece igualmente inteligvel
para aqueles que se recusam a sair da anlise jurdica formal, assim como para aqueles que
se recusam a entrar nessa anlise e pretendem dissolv-lo na anlise socioeconmica.
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REFERNCIAS
AGIER, M.; CASTRO, N. Projet ouvrier et destins personnels Bahia
(Brsil). In: CABANES, R.; COPANS, J.; SELIM, M. (Ed.). Salaris
et entreprises dans les pays du Sud: contribution une anthropologie
politique. Paris: Karthala-Orstom, 1995. p.153-182.
BARBOSA, F. C. Trabalho e residncia: estudo das ocupaes de
empregada domstica e emprego de edficio a partir de migrantes
nordestinos. Rio de Janeiro: EdUFF, 2000.
BROCHIER, C,. Les volutions du syndicalisme brsilien dans les
annes 1990: une tude de cas dans le btiment. Sociologie du Travail,
Paris, v. 43, p. 491-513, 2001.
CAPPELLETTI, M.; Garth, B. (Ed.). Access to justice: a world survey.
Milan: Sitjoff and Noordhoff, 1978. 4 v.
CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Droit lgal et insulte morale:
dilemmes de la citoyennet au Brsil, au Qubec et aux Etats-Unis.
Qubec: Les Presses de lUniversit Laval, 2005.
CASTRO, M. G. Empregadas domsticas: a busca de uma identidade
de classe. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 123, p.49-58, 1989.
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VASSELIN, K. Faire le mnage: de la condition domestique la revendication dune professionnalit. In: PIOTET F. (Ed.). La rvolution
des mtiers. Paris: PUF, 2002. (Le lien social). p. 77-98.
VIDAL, D. Les bonnes de Rio: emploi domestique et socit dmocratique au Brsil. Lille: Presses du Septentrion, 2007. (Le regard
sociologique)
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O DIREITO AO LUGAR:
UMA TRAJETRIA
DOS PROCESSOS
DE MOBILIZAO E
CONSTITUIO DAS ARENAS
PBLICAS DO MUNICPIO
DE ITACAR (BA)
Patrcia de Arajo Brando Couto1
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De acordo com Demeter (1996), 200 mil trabalhadores rurais desta rea ficaram
desempregados no perodo citado.
Gaudenzi (2004).
Vrias outras unidades de Conservao foram criadas no Estado da Bahia neste perodo.
Veja-se no site <www.itacare.com.br/itacare/apa/guia.php>.
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Com a criao do Prodetur NE I (Plano de Desenvolvimento do Turismo dos Estados do Nordeste) no ano de 1994, o estado da Bahia
conseguiu financiamento para seus projetos tursticos junto ao BID
Banco Interamericano de Desenvolvimento e, em 1996, foi iniciada a pavimentao da Estrada Parque Ilhus-Itacar.10 Em 1997,
comeou a ser implementado o Plano de Manejo da rea de Proteo
Ambiental Itacar-Serra Grande, que visava definir o zoneamento,11 a
utilizao da rea e os novos postulados ambientais a serem seguidos.
O estabelecimento de restries ao uso e ocupao da regio gerou
uma srie de conflitos entre a populao tradicional12 local, os novos
moradores atrados pela possvel expanso da economia turstica e
aqueles que determinavam os instrumentos de controle ambiental.
Para ampliar a complexidade do quadro, a estrada concluda em
1998 e o turismo surgem como fatores irreversveis de mudana.
Implementada com finalidades a priori econmicas, a estrada
rapidamente atingiu seu objetivo, pois se antes Itacar era frequentada
somente por veranistas baianos, viajantes alternativos e surfistas
em busca de parasos naturais e ondas perfeitas que enfrentavam as
difceis condies de acesso terrestre para usufruir das belas paisagens
do municpio, a partir de ento, esta localidade tornou-se acessvel
nacional e internacionalmente. A facilidade de acesso, alm de
possibilitar a presena de fluxos populacionais sazonais, acarretou uma
onda migratria em direo regio, tanto por parte das populaes
circunvizinhas em busca de novas oportunidades econmicas, quanto
por parte de pequenos empresrios e grandes especuladores imobilirios
vindos da regio sudeste, posteriormente seguidos pelo empresariado
internacional. Alm disso, trs assentamentos rurais foram efetivados
na regio entre meados da dcada de 1980 e incio da dcada de 1990.
Como podemos observar, tratava-se de uma configurao social,
econmica, ambiental e espacial bem mais complexa se comparada
ao perodo anterior construo da estrada, quando o municpio se
encontrava em relativo isolamento. Nas palavras de Vogel e Mello,13
isto o que poderamos denominar como uma mudana social
10
11
12
13
A nova estrada recebeu esse nome porque foi a primeira rodovia brasileira a contar com
monitoramento ambiental em toda a sua fase de obras.
De acordo com este Plano de Manejo (1998), a APA Itacar Serra Grande ficou dividida em
17 Zonas com diretrizes e planejamento.
Little (2002).
Vogel; Mello (1989, p.3-25).
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Esta pesquisa foi estruturada a partir dos registros das entidades associativas encontradas
no cartrio local.
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Sobre a atividade pesqueira e sua relao com as polticas pblicas ver Mello; Vogel (2004);
Silva (1998).
As observaes de Tocqueville quanto s situaes que possibilitam a articulao da sociedade
civil parecem bastante pertinentes para o referido contexto: Quando os cidados s se
podem associar em certos casos, encaram a associao como um processo raro e singular
e quase no se deixam pensar nela, uma vez que difcil distinguir aquilo que proibido
daquilo que permitido. Assim, [...] na dvida abstm-se de todas e se estabelece uma
espcie de opinio pblica que tende a fazer considerar uma associao qualquer como uma
empresa ousada e quase ilcita pois, temem pagar caro por ela. Penso que as observaes
de Tocqueville (1998, p.398), podem ser teis para nos ajudar a pensar o Brasil dos anos de
1970 e princpio dos anos de 1980.
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Roszak (1972).
Albuquerque (2001, p. 4).
Ibidem.
Turner (1974).
Nome fictcio.
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De acordo com o Cdigo Civil Brasileiro o direito de usocapio pertinente queles que
ultrapassarem 10 anos de posse presente e 15 anos de posse aos ausentes. (NEGRO;
GOUVEIA, 2006, p.271-275)
Turner (1982).
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De acordo com a concepo de John Dewey, 1991, p.137, o pblico se constitui a partir
de [...] um corpo de pessoas que possuem um interesse comum nas consequncias das
transaes sociais. Existem muitos pblicos, pblicos muito dispersos e difusos e tambm
intrincados em sua composio[...].
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Nome fictcio.
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Para se ter uma ideia foi criada uma feira semanal com o propsito de se reunir e comercializar
a produo dos pequenos produtores do municpio; a Comisso Interisntitucional de Sade,
para atender as reas mais distantes e carentes da regio; uma secretaria de Reforma
Agrria, para inventariar e redistribuir as terras improdutivas do municpio; os sindicatos
dos trabalhadores rurais e dos professores foram reativados; projetos vinculados expanso
urbana estimularam a criao de associaes de moradores com o propsito de reconhecer
e ordenar o crescimento da cidade de Itacar e instituiu-se uma Cooperativa de Pesca com
o intuito de organizar essa atividade no municpio.
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Desde 1986 uma ao coletiva estava sendo movida pelos posseiros contra os proprietrios
da fazenda.
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Foi mantida, assim, a lgica da legitimidade das representaes associativas enfatizada pela Constituio de 1988, e efetivada durante
os dois anos de gesto do prefeito Edmundo. Como a Associao dos
Moradores do Bairro da Pituba teve seu registro negado no cartrio da
cidade, que se recusava a reconhecer a legitimidade da ocupao, era
preciso outra moldura que reunisse os principais interesses e buscasse
novas estratgias de aglutinao e mobilizao. Foi por esse motivo,
que o Movimento Ecolgico de Resistncia Boto Negro, registrado no
ano de 1990 como Movimento Ecolgico Boto Negro por exigncia
do cartrio que se recusou a incluir o termo resistncia saiu de sua
condio existencial perifrica para reunir em sua bandeira ambiental,
diversos interesses comuns e assumir a posio de protagonista das
aes coletivas municipais.
Esse movimento iniciou sua atuao em abril de 1987 e teve como
fato fundador um desastre ambiental de grandes propores ocorrido na praia do Piracanga, situada na rea norte do municpio. Nessa
ocasio, durante uma semana, centenas de cetceos, posteriormente
identificados como Botos Negros, numa espcie de suicdio coletivo
conforme o interpretado pela populao dirigiam-se praia para
morrer. Consternada, a populao se mobilizou para ajudar os pescadores, que tentaram interferir no obstinado suicdio dos cetceos,
devolvendo-os ao mar exaustivamente, no entanto, foi intil a tentativa
diante da morte anunciada. A longa durao do fenmeno despertou
o interesse de experts que se dirigiram ao local para tentar identificar
a causa mortis dos cetceos enquanto a mdia tratou de divulg-lo,
transformando-o num acontecimento nacional. Findo o desastre, restou
populao a consternao e a perplexidade de um fenmeno inquietante jamais visto na localidade. A partir dessa experincia comum do
mundo sensvel, o referido acontecimento percebido como um sinal
de alerta pelos membros do futuro grupo, que encarnam o luto dos
botos, transformando-os em totem de um movimento de resistncia.35
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Observamos, portanto, que entre 1995 e 1996, o Movimento Ecolgico Boto Negro modifica sensivelmente seu perfil ao afastar-se das
questes fundirias. A chegada de novos atores sociais na cidade
renova seus quadros de lideranas e seu repertrio de ao ento
redefinido por uma perspectiva essencialmente ambientalista. Ao
ampliar seus contatos e afirmar-se publicamente para alm das fronteiras do municpio, a institucionalizao compreendida como uma
etapa definitiva para o reconhecimento das causas ambientais que se
tornam a bandeira principal do instituto.
Ainda que o movimento, tenha assumido uma posio controvertida
e decepcionante perante seus antigos aliados, ao associar-se ao IESB
para assumir a execuo do projeto ambiental, conseguiu ter pela
primeira vez uma sede para reunir seus integrantes e divulgar seus
propsitos, posto que se tornaram responsveis pela edio do Jornal
da APA. Um informativo financiado pela Secretaria de Meio Ambiente
do Estado e que se transformou num grande canal de circulao e troca
de informao interna entre os dois municpios que formam a rea
de Proteo Ambiental. A despeito de seu carter didtico e vigilante
em relao s questes ambientais, esse jornal abriu espao para a
formao e manifestao da opinio pblica local, anteriormente
desprovida de espaos miditicos. Alm disso, estimulou a organizao de novas entidades associativas com o propsito de organizar
os diferentes interesses que j ento se ampliavam no municpio
devido chegada de novos atores sociais, atrados pela estrada e pelo
turismo. De fato, entre a anarquia dos primeiros tempos e sua incorporao ao terceiro setor, no se pode dizer que o movimento tenha
mantido suas caractersticas contraculturais fundadoras. No entanto,
tambm no podemos negar que, ao assumir seus novos preceitos,
teve um importante papel na ampliao do espao pblico local e na
perpetuao da reflexividade poltica iniciada em meados de 1980.
6 Gesto participativa:
uma gramtica da institucionalizao instrumental
Mello e Vogel,45 ao refletirem sobre os projetos desenvolvimentistas,
ditados pelos EUA aos pases perifricos no perodo de 1960 a 1970,
observam que, para que as sociedades receptoras absorvessem a nova
ordem era necessrio que fossem implantados novos padres de
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Existem vrios outros mtodos de gesto participativa que tambm foram adotados nos
seminrios municipais a exemplo do GPO (Gesto Participativa Organizacional); GEP
(Gesto Estratgica Participativa) e ZOPP (Ziel Orientierte Projekt Planung).
Alves; Silveira (1998).
Comisso da Constituinte (1988, p.46).
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REFERNCIAS
ALBUQUERQUE, L.M.B. Oriente: fonte de uma geografia imaginria. Revista de Estudos da Religio, So Paulo, v. 3, 2001. Disponvel
em: <http://www.pucsp.br/rever/rv3_2001/i_albuqu.htm. Capturado
em 16/6/2006>.
ALVES, M. A.; SILVEIRA, L. L. Entre o tutorial e o participativo:
a abordagem de interveno na estratgia de ao do Banco Nordeste.
Artigo apresentado no XXXVI Congresso da Sociologia Brasileira
de Economia e Sociologia Rural, Poos de Caldas, 1998.
BOLTANSKI, L.; THEVENOT, L. De la justification.
Paris: Gallimard, 1991.
BOLTANSKI, L.; DARR, Y.; SCHILTZ, M.-A. La dnonciation.
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 51, 1984.
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Gatinha Mimosa
No dia 19 de setembro de 2002, um desfile protagonizado por jovens
prostitutas atraiu para o baixo meretrcio carioca jornalistas, atores
e atrizes, ativistas de diversas causas, militantes de ONGs, historiadores, funcionrios da rede municipal e estadual de sade, polticos,
irms de caridade e centenas de clientes da prostituio. Este diversificado pblico veio a se reunir em um terreno baldio situado ao final
da rua em que esto localizados os inmeros bordis, bares e boates
conhecidos, em seu conjunto, por Vila Mimosa II.
A ideia do concurso havia sido concebida por uma cafetina e diretora da
Associao dos Moradores do Condomnio e Amigos da Vila Mimosa II
(AMOCAVIM), to logo soube que o figurino utilizado pelas prostitutas
do sculo XX seria objeto de uma reportagem a ser publicada no jornal
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Jornal Beijo da Rua, financiado pelo Ministrio da Sade como item de ao estratgica de
preveno de HIV/AIDS e DSTs junto ao pblico que constitui o universo da prostituio
no pas.
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Composto pela fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas (Gabriela), pelo diretor da ONG
SOS Complexo do Alemo (Jorginho), uma representante do Arquivo Pblico (Isabel), por
um diretor da Regio Administrativa III Tijuca (Carlos Alberto) e por uma atriz de um
programa humorstico (Suelen Napoleo).
Quem sabe ainda sou uma garotinha, esperando o nibus da escola sozinha. Versos de
Cazuza na voz de Cssia Eller.
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O leitmotiv de toda esta empreitada se assenta, entretanto, nos argumentos de resgate da autoestima, resgate da cidadania e de
reduo de vulnerabilidades,17 como forma de melhor estimular o
cuidado de si no mbito da vida pessoal, mas tambm, e de maneira
inextrincvel, no mbito da vida cvica.
Problemas pblicos e identidade social
Contudo, foi para conter a violncia policial e legitimar o direito
cidade diante dos processos de grilagem e renovao urbana ocorridos
nas reas degradadas que o movimento associativo das prostitutas teve
incio, nos anos 1980, vindo a consolidar-se, em 1987, com a criao
da Rede Brasileira de Prostitutas.
A partir de ento, o debate foi sendo conduzido para o reconhecimento
da atividade como ocupao legal. Entre os episdios mais marcantes
desse processo, est o pedido de revogao dos artigos 228, 229 e 231
do Cdigo Penal todos relativos ao lenocinio ou favorecimento
da prostituiao e, tambm, o pedido de tombamento da hoje extinta
Zona do Mangue, situada na regio central do Rio de Janeiro, duas das
primeiras reivindicaes pblicas feitas pela Rede durante o I Encontro Nacional de Prostitutas, realizado, em julho de 1987, no Centro
Calouste Gulbenkian, tambm localizado na rea central da cidade.18
As duas razes evocadas violncia policial e coao diante das
transformaes urbanas no eram, portanto, sem fundamento. J
na dcada de 1920, os estudos sobre a ecologia urbana desenvolvidos
pela Escola de Chicago se dispunham a compreender a cidade e seus
problemas mediante anlise que levasse em conta a expanso urbana
como um processo. Ernest Burgess, em um artigo de 1925, props
17
18
a reviso das condies impostas para o financiamento das campanhas de preveno de HIV
e AIDS no pas. Enquanto houvesse, entre outras, a clusula de compromisso de combate
prostituio, o governo brasileiro prescindiria dos US$ 40 milhes destinados aos projetos de
preveno, graas s condies impostas, a seu turno, pelas ativistas do movimento social de
prostitutas. A metodologia por pares, recente e hoje bastante utilizada para a implementao
das mais variadas polticas pblicas, fomenta o processo de construo de categorias sociais
que, por fim, contribuem com as estatsticas oficiais.
Documento referencial para aes de preveno das DST e da AIDS: profissionais do Sexo.
Braslia, DF: Ministrio da Sade, Secretaria de Polticas de Sade, Coordenao Nacional
de DST e AIDS, 2002. 160p.(Manuais, n. 47).
v. Moraes, 1996 e os jornais: Tribuna da Imprensa e O Fluminense de 20/07/1987; O Globo,
O Dia, Jornal do Brasil e ltima Hora de 21/07/1987; O Globo de 22/07/1987 e ltima
Hora de 24/07/1987.
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Burgess, 1970, p.356. Neste trabalho, Burgess define o zoneamento da cidade da seguinte
maneira: A figura I [o ncleo dos crculos concntricos] representa uma construo ideal
das tendncias de qualquer cidade para expandir-se radialmente da sua Zona Central de
Comrcio representada na figura pelo Loop (I). Circundando a rea central h normalmente
uma zona de transio, que est sendo invadida pelo comrcio e pela manufatura leve (II).
Uma terceira zona (III) habitada por trabalhadores das indstrias que fugiram da rea de
decadncia (II), mas que desejam viver em ponto de fcil acesso ao seu trabalho. Alm dessa
zona acha-se a zona residencial (IV) de prdios de apartamentos de alta classe ou de sees
restritas de moradias isoladas de uma s famlia. Mais longe, alm dos limites polticos da
cidade, acha-se a zona de commuters reas suburbanas ou cidades satlites onde residem
os commuters, que cada dia til vo ao centro de manh para trabalhar e voltam noite
dentro de trinta ou sessenta minutos de viagem da zona central de comrcio.
A esse respeito, ver a entrevista com Armando Pereira, delegado que durante anos trabalhou
no 13. Distrito de Polcia, situado na Zona do Mangue, regio central da capital carioca onde,
durante quase um sculo, se concentrou o baixo meretrcio da cidade. Ver Pereira (1966).
Simes (2010).
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entre outras coisas, imaginar um status mais elevado para essa atividade. No sculo XIX, o uso do termo profisso se aplicava aos mtiers
prestigiosos e qualificados caracterizados por servios prestados em
benefcio de outrem. De acordo com esse princpio, mdicos e advogados eram prottipos do que se entendia por profisso,27 ou seja,
um papel a ser desempenhado por meio de determinadas atividades e
tarefas socialmente reconhecidas como moral e eticamente corretas.
Por essa razo, Everett Hughes considerava que o conceito de profisso antes um julgamento de valor e prestgio do que um termo
descritivo. Em sua opinio, a pergunta este ofcio uma profisso?
obscurece questes mais fundamentais como, por exemplo, em que
circunstncias os membros de um mtier tentam transformar o seu ofcio em uma profisso?.28 A resposta nos oferecida pelo prprio autor
quando conclui: que a tendncia profissionalizao corresponde
mobilidade coletiva de uma parte de seus membros.29 Desembaraar
o ofcio daqueles que no acompanham essa mobilidade , portanto,
tambm um dos objetivos do empreendimento de profissionalizao,
uma vez que o termo profisso pode ser interpretado como um
smbolo da concepo do trabalho que reivindicado e, por conseguinte, um smbolo do eu.30
Considerando ser o termo profisso um julgamento de valor e apregoando, junto com o senso comum, que a prostituio a profisso
mais antiga do mundo, ouviremos, sem dificuldade, muitas histrias
tristes e nada prestigiosas sad stories integrando o repertrio de
argumentao da prostituta de modo a justificar, paradigmaticamente,
a sua entrada noo demarcadora na prostituio.
O indivduo munido de uma triste histria, diz Goffman, pode organizar sua vida; mas, em contrapartida, dever resignar-se a viver
em um mundo incompleto no qual figura como algum prestes a ser
desacreditado em funo dos atributos do esteretipo que encarna.31
Ao fazer uso da histria triste, que relata o momento fundador da
possesso do seu estigma,32 a prostituta se desembaraa, justamente,
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Ibidem.
Ibidem, p. 18-19.
A diferena entre ocupao e profisso tnue, e depende, como j vimos at aqui, mais
do prestgio de um ofcio do que de suas prticas e tcnicas.
Leite (1992); Moraes (1996); Simes (2010).
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Para maiores informaes sobre as aes desse programa junto a este pblico, ver o
Documento Referencial para Aes de Preveno das DST e da Aids, Srie Manuais no 47,
do Ministrio da Sade (2002).
Para a definio do conceito, utilizo o trabalho de Cefa (2002).
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O termo zungu data de 1877 e, em lngua quimbundo (nzangu), quer dizer confuso,
barulho, rixa. As casas de zungu possuam as mesmas caractersticas das casas de cmodo.
Entre 1920 e 1930, para cada trs brasileiras que trabalhavam no Mangue havia uma
estrangeira. As polacas e as francesas eram maioria, contabilizando cerca de dez mil
escravas brancas que entre 1918 e 1930 desembarcaram nos portos brasileiros para se
prostiturem. Nas fichas reunidas no 13 Distrito de Polcia v-se que ali tambm aportaram
romenas, russas, iugoslavas, argentinas e, entre todas, predominavam as judias, pois muitos
traficantes de mulheres eram israelitas. Cf Pereira (1966).
Este conceito, criado por Robert Ezra Park para designar reas cujas atividades resultam
da interao social e no do planejamento oficial, evoca a ideia de uma ecologia urbana
determinada por fatores econmicos e sociais que influem na distribuio da populao em
reas de trnsito, lazer, moradia e trabalho. Cf Park (1979); Zorbaugh (1970, p.410).
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Entretanto, o inexorvel processo da expanso urbana pouco a pouco confinou e reduziu os seus domnios. Em 1945, a construo da
Avenida Presidente Vargas ps abaixo cerca de quinhentos edifcios
da regio, entre eles quatro igrejas, um mercado, a sede da prefeitura e muitas casas onde funcionavam bordis, espalhando, entre os
moradores da cidade, o medo de que a prostituio proliferasse para
outros bairros. Em 1954, iniciou-se a experincia conhecida como
Repblica do Mangue, termo cunhado pelos policiais da Delegacia
de Costumes e Diverses (DCD) com o objetivo de fichar as prostitutas daquela rea para que fossem exercidos os controles mdico42 e
policial.43 Em 1967, a visita da rainha Elizabeth II e de sua comitiva
tornaria o casario parcialmente invisvel para aqueles que cruzassem
a Avenida Presidente Vargas. A ordem dos militares era esconder o
Mangue com tapumes e, com isso, traar, finalmente, os limites da
zona. Em 1970, o Jornal do Brasil chegou a anunciar o fim do
Mangue. Mais de 30 casas estavam sendo desapropriadas e outras
tantas deveriam passar pelo mesmo processo, pois, desde o incio,
a dcada de 1970 seria marcada pelas obras de construo do metr
e do Centro Administrativo So Sebastio (CASS), nova sede da
Prefeitura do Rio de Janeiro.44
Com as obras, a rea abrangida pelo CASS no mais deixava espao
para um novo deslocamento das prostitutas. Havia, porm, em um
pequeno trecho fronteirio entre a Cidade Nova e o bairro do Estcio,
uma travessa com casas, prxima ao stio reurbanizado e estao
de metr, onde os bordis seriam reinstalados, pela ltima vez naquele bairro, em 1979. Em seu prtico se lia Vila Mimosa, e a vila,
anteriormente ocupada por famlias, viria a se tornar um smbolo de
resistncia da Zona do Mangue.45
O mangue resiste
Meu desejo seria estar presente, em pessoa, ao
ato pblico do 10 de dezembro, no Circo Voa42
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Nilson Fanini.
TV Rio.
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de repdio contra a violncia, a especulao imobiliria e a discriminao social, quando disseram entender que atos como este no
servem seno para discriminar e extinguir no s com as prostitutas,
mas tambm com outras comunidades carentes que lutam pela preservao do seu espao e a garantia dos seus direitos.
Este texto, parte do discurso lido durante a manifestao O Mangue
resiste,48 passou a integrar um dossi organizado pela Associao da
Vila Mimosa, fartamente documentado com abaixo-assinado, recortes de jornal, cartas, telegramas, levantamento das desapropriaes
e relatos de habitantes do entorno. O drama chegaria ao fim com o
decreto assinado pelo prefeito Saturnino Braga instituindo a concesso do comodato das casas da Vila Mimosa s suas proprietrias.49
Quase 20 anos se passaram at que, em 1995, a Vila Mimosa teria
seu fim determinado pelo Projeto Teleporto, que previa um traado
inteiramente novo para o entorno do CASS, no qual seria instalado
o mais moderno centro de telecomunicaes da cidade. A prefeitura
indenizou os proprietrios dos bordis, efetuando o pagamento de
Cr$ 350 mil em nome da Associao de Prostitutas da Vila Mimosa.
Mas o montante, segundo a crnica do grupo, fora roubado pela
presidente e com ela desaparecera poucos dias antes do incio das
demolies.
Novamente espalhou-se pelos bairros centrais e pelos subrbios da
Central e da Leopoldina o rumor e o temor da instalao da zona
em suas circunvizinhanas. Decididas a reconstrurem aquele cenrio,
cafetinas e prostitutas se cotizaram na compra de um galpo industrial
desativado, com 2500m2, existente nas proximidades do antigo ponto.
Os moradores do lugar resistiram manifestando-se nos dias que antecederam a mudana e construindo, naquele dia, barreiras de pneus, s
quais ateavam fogo, diante do nico acesso ao lugar, feito por sob o
pontilho dos trilhos dos trens da Central. Mas os caminhes da prefeitura avanavam, trazendo nas carrocerias as mulheres e seus pertences.50
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prostitues de Rio.
Mello et al. (2007).
Estabelecimentos comerciais que oferecem acesso internet. So frequentados
majoritariamente por jovens, em especial do sexo masculino, que l passam horas jogando
videogames pela internet.
Segundo clculos de seus atuais donos, muitas casas foram vendidas por cerca de R$5.000,00,
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Bruna Surfistinha, garota de programa que conquistou fama internacional ao publicar sua
autobiografia, confessa: eu parei de fazer programas porque eu consegui atingir o que eu
queria e encontrei um verdadeiro amor..
A Caixa Econmica Federal enviou dois funcionrios Vila Mimosa II para realizarem a
abertura de contas sem exigncia de comprovao de renda para as prostitutas. Foram abertas
mais de 300 contas, com depsitos iniciais de R$250,00 a R$1.000,00. V. jornal Beijo da
Rua, dezembro de 2003: Caixa vai zona abrir contas para profissionais.
Categoria local para cafetina.
Uma de suas mais ativas diretoras acaba de se formar no curso de Servio Social.
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Misse (1997).
O autor cita como exemplos desse tipo de mercadoria poltica, cuja criminalizao decorre
do emprego da violncia para fins privados, a proteo oferecida pela mfia siciliana, as
negociaes de preo pelo resgate de sequestrados no Rio de Janeiro, ao longo dos anos
1990, e o assassinato por encomenda feito pelos chamados grupos de extermnio.
Ocupao e competncia so as bases conceituais da CBO. O primeiro termo compreende,
em sua definio, emprego ou situao de trabalho, que um conjunto de atividades
desempenhadas por uma pessoa, com ou sem vnculo empregatcio. O segundo faz distino
entre nvel de competncia e domnio (ou especializao) da competncia, sendo aquele
funo da complexidade, amplitude e responsabilidade das atividades desenvolvidas no
emprego ou relao de trabalho e este as caractersticas do contexto do trabalho como
rea de conhecimento, funo, atividade econmica, processo produtivo, equipamentos,
bens produzidos que identificaro o tipo de ocupao ou profisso. Cf. Informaes Gerais
sobre a CBO, documento disponvel no site do Ministrio do Trabalho e Emprego: <http://
www.mtecbo.gov.br/informacao.asp>.
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Foram dois dias e duas noites de intensas discusses e muitas ponderaes e reflexes a respeito do ofcio e das vantagens e desvantagens
encontradas durante as atividades, segundo as diversas reas geogrficas do Brasil. As prostitutas do estado do Par,67 no norte do pas,
defendiam como parte do trabalho ocupar-se das compras e das roupas
de seus homens no garimpo, assim como a aplicao de sua renda
em pepitas de ouro. Os contextos criados pela prostituio nos mais
variados meios urbanos do pas ali se manifestavam, dando mostras
da complexidade dos procedimentos e da metodologia aplicada pelo
MT na construo das categorias profissionais brasileiras.
A principal etapa do processo de definio de uma nova categoria
consiste em enumerar todas as atividades que constituem o ofcio e
as competncias que os membros consideram relevantes para o seu
pleno exerccio, de modo que seja possvel, em seguida, evidenciar
o contexto em que as aptides se fazem necessrias. Tal propedutica
visa dar maior preciso ao conjunto que distinguir uma ocupao
de outra, estabelecendo particularidades e limites entre labores que
demandam competncias muitas vezes idnticas.
De acordo com o sistema classificatrio da CBO, a prostituio pertence ao Grande Grupo 5, que rene:
[...] trabalhadores dos servios e vendedores
do comrcio em lojas e mercados. Este grande
grupo compreende as ocupaes cujas tarefas
principais requerem para seu desempenho os
conhecimentos e a experincia necessrios para
prestaes de servios s pessoas, servios de
proteo e segurana ou a venda de mercadorias em comrcio e mercados. Tais atividades
consistem em servios relacionados a viagens,
trabalhos domsticos, restaurantes e cuidados
pessoais, proteo s pessoas e bens e a manuteno da ordem pblica, venda de mercadorias
em comrcio e mercados.
No conjunto de tarefas elaborado pela comisso ad hoc de representantes do mtier, encontram-se atividades designativas de outras
ocupaes lavar roupas, por exemplo, e situadas em contextos
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Il faut se rappeler quun mtier nest pas seulement un faisceau de tches, mais aussi un
rle social, le personnage que lon joue dans une pice [drama] (HUGHES, 1996, p.72).
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REFERNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. O vocabulrio da praa pblica na obra de
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pour une perspective pragmatiste. In: CEFA, D.; JOSEPH, I. (Ed.).
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GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
1961.
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POSFCIO
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Ao longo de 16 anos, de 1988 a 2004, Isaac Joseph visitou cinco vezes o Brasil.5 Aqui permanecendo por muitas semanas e percorrendo
numerosas regies de extenso continental, teceu profundas relaes
com seus colegas e estudantes e desenvolveu com seus amigos brasileiros uma rede de trocas acadmicas e de pesquisa.
So essas interaes que abordaremos, apoiados sobre testemunhos
de pesquisadores e estudantes brasileiros. E o faremos oferecendo ao
leitor uma apreenso de conjunto dessas interaes acadmicas distribudas e organizadas em quatro momentos: a descoberta do Brasil
e a constituio de uma primeira rede de amizades; a cooperao
universitria por meio do programa Capes-Cofecub; o trabalho de
expertisecomo consultor; por fim, a consolidao das amizades e o
engajamento com os estudantes sur place, ou seja, no campo.
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Joseph (2004). O artigo precedido de apresentao, escrita por Carlos Vainer, p.33-39.
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O Mercado de Madureira
Na Zona Norte da cidade, regio quase nunca frequentada por estrangeiros de passagem pelo Rio, situa-se o popular Mercado de
Madureira, lugar inusitado que Isaac Joseph conheceu na companhia
de Mello, em 1998. Reputado orgulhosamente por seus lojistas como
o metro quadrado comercial mais caro do Rio, o Mercado uma
espcie de centro de peregrinao do chamado povo-de-santo, como
so conhecidos os adeptos das religies afro-brasileiras. Nele so
feitas as compras piedosas dos requisitos necessrios e incontornveis
para a realizao dos rituais que constituem a complexa e requintada
liturgia dos candombls, cujas casas de culto encontram-se difundidas
por toda a regio metropolitana.
Esse importante mercado tinha sido, alguns anos antes, objeto de uma
pesquisa realizada por Mello, Arno Vogel e Jos Flvio Pessoa de
Barros. Embora conhecesse Galinha dAngola: iniciao e identidade
na cultura afro-brasileira,13 livro que resultara em grande parte daquele empreendimento etnogrfico, no se poderia dizer que a temtica
da religio entusiasmasse Isaac Joseph. No entanto, interessado na
cidade e em suas centralidades deslocadas, aceitara o convite para
visitar o terrain de seu colega.
Incerto quanto escolha do lugar para esta que seria sua primeira sada
pela cidade na companhia do amigo, inicialmente chegou a imaginar
que seu convidado pudesse sentir-se desconfortvel ou pouco interessado; mas, natural do Cairo e morando em Belleville, prximo ao
Faubourg du Temple, esse mundo no s no lhe era estranho como
particularmente o atraa. Para surpresa do colega, Isaac se movia com
absoluta naturalidade em meio s coisas do mercado. Nada lhe parecia
ser estranho. A distino, talvez, fosse a inflexo da pauta religiosa
dominante na economia desse grande mercado urbano, frequentado
por ebmins, ias e abis, muitos deles membros cultivados dessa
burguesia negra carioca, fiel s tradies afro-brasileiras.
Isaac no fazia nenhum mistrio em percorrer as galerias do Mercado
filmando tudo, sem nenhum embarao, produzindo imagens de sua
organizao e estrutura interna que se tornariam nicas, pois o edifcio,
em janeiro de 2000, pegaria fogo, sendo inteiramente destrudo. Em meio
ao conjunto de cerca de 300 lojas e pblico dirio de aproximadamente
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Um samba em Niteri
Dois dias depois da inesquecvel visita Lapa, numa noite de domingo, Isaac Joseph foi convidado para conhecer a roda de samba no
Candongueiro, em Niteri, cidade ligada ao Rio de Janeiro pela ponte
que atravessa a baa de Guanabara e que mantm com essa cidade uma
relao especular, pois de uma possvel permanentemente avistar a
outra. Era 31 de outubro de 1999 e, tambm em nossa companhia, estavam Michel Misse e Jorge da Silva, colegas do conhecimento de Isaac.
Apesar da dificuldade de acesso e da distncia, que envolve um
deslocamento sempre complicado, o Candongueiro considerado
a melhor casa de samba do Rio. O lugar fica longe de tudo, numa
casa retirada na Estrada Velha de Maric, na regio montanhosa de
Niteri. Mantm uma semelhana proposital com a ambincia dos
terreiros de candombl, restritos aos iniciados e queles que conhecem
o caminho. Isso faz com que o frequentador se sinta um privilegiado
simplesmente por estar ali e reaja a qualquer tipo de alterao que
ameace essa sua aparente exclusividade.
No Candongueiro, o samba s comea por volta das 22h30, mas o ambiente desde cedo comea a ficar cheio. A movimentao e o entra-e-sai
constantes criam uma proximidade fsica de corpos em contato, entre
frequentadores, msicos e garons, que fornece ao lugar a informalidade caracterstica das rodas de samba. O arranjo de mesas, cadeiras,
instrumentos musicais e aparelhagens de som o tempo todo refeito,
como se no houvesse espaos previamente demarcados. O ponto alto
das apresentaes, entretanto, aguardado com ansiedade, enquanto
grupos de msicos se exercitam no virtuosismo de cavaquinhos e violes, pandeiros e tamborins, animando a audincia. Grandes artistas
so especialmente convidados e costumam se apresentar ali somente
depois da meia-noite, sem compromisso com horrios predeterminados.
A palavra samba se refere, ao mesmo tempo, a esse tipo de ambincia
particular e ao gnero musical considerado a mxima expresso de
brasilidade. Em busca da autenticidade, por exemplo, cunhou-se a
expresso samba de raiz, em clara oposio ao sucesso do pagode,
considerado impuro por suas concesses indstria cultural, por seu
instrumental basicamente eletrnico, pelo visual de seus grupos e
pelo romantismo aucarado de suas letras e melodias. Como resposta
crtica a essa distino impertinente e perigosamente substancialista,
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em busca de uma suposta pureza cultural, costuma-se dizer, ironicamente, que quem tem raiz mandioca.
A ideia cultivada de mundo do samba faz lembrar Howard Becker,
amigo de Isaac Joseph, e seu conceito de mundos da arte, to bem
apropriado complexidade desse campo. Numa roda de samba, por
exemplo, revelam-se clivagens e conflitos desse mundo nada homogneo. Qualquer deslize no repertrio ou na instrumentao poderia
representar crticas demolidoras por parte do pblico presente. Mas
isso evidentemente no ocorre, pois ali impera um gosto.
Nas paredes do Candongueiro, figuram desenhos emoldurados dos
grandes cones do samba, formando uma galeria de retratos com os
focos insuspeitados desse gnero musical carioca dos anos 1920 que
se espalhou por todo o Brasil e que ganhou o mundo. Para os adeptos
mais fervorosos, que cultuam o samba em feitio de orao, como
dizia Noel Rosa, essa uma espcie de panteo sagrado, no qual
figurava como divindade a prpria convidada especial daquela noite.
A casa orgulhosamente recebia Dona Ivone Lara, consagrada como
a grande dama do samba. A artista teve o mrito de romper com a
androcracia da tradicional linhagem dos compositores de samba-enredo,
no distante carnaval de 1965. Dona Ivone apresenta uma trajetria comum a muitos outros sambistas, como Clementina de Jesus, Cartola e
Ismael Silva, iniciando tardiamente uma carreira artstica regular. Do
alto de seus 77 anos, a cantora e compositora estava em plena atividade.
Isaac se impressionou que todos cantassem juntos durante horas,
formando um congraamento em unssono. As pessoas presentes na
roda de samba no s compartilhavam o gosto musical, mas sabiam
todas as letras, mesmo as mais jovens, de um vasto repertrio popular. Diante da manifestao efusiva do pblico e dos artistas, Isaac
se divertiu muito e se permitiu at sambar, ensaiando alguns passos.
Isaac, contumaz apreciador do jazz e agora convertido em aficionado
apreciador de msica brasileira, perguntou o que afinal queria dizer
candongueiro. Felipe Berocan esclareceu tratar-se de um atabaque
do jongo, gnero de ritmo sincopado, ambientado nos terreiros, preservado no vale do rio Paraba e cultivado em Madureira, evocando
os negros dos tempos da escravido.
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Carole Saturno, dois anos depois, em viagem com Isaac ao Brasil, comentaria que finalmente o ltimo disco de Dona Ivone Lara, Nasci pra
sonhar e cantar, havia sido lanado na Frana com o inusitado ttulo
Ne pour souffrir et chanter, observando com ironia: Os franceses
talvez achem que sonhar sofrer; deve ser um problema psicanaltico!.
Isaac Joseph beira-mar
No dia seguinte ao Candongueiro, uma segunda-feira pela manh,
convidado por seus amigos da UFF, Isaac Joseph e Martine Segalen
foram ao encontro dos colegas com a finalidade de visitar Itaipu,
praia da regio ocenica de Niteri. Os amigos organizaram-se para
receb-los, cabendo a Kant e Solange Creton os conduzir at o lugar
em que os aguardavam Mello, Neiva Vieira da Cunha, suas filhas
Luisa e Julia, e Felipe. Como de outras vezes, o grupo foi direto
para a Casa da Sogra (maison de la belle-mre), um modesto estabelecimento beira-mar de propriedade da irm de Seu Chico,
frequentado por pescadores e banhistas, marcado pela descontrao
e pelo despojamento do ambiente.
ocasio de lazer e descontrada conversao, no faltaram, entretanto, oportunidades para discutir, uma vez mais, as questes relativas
ao tema dos espaos pblicos, suas apropriaes particularizadas
e usos regulados pelo Estado. O campo emprico escolhido, dessa
vez, trazia uma srie de outras implicaes. A praia e o mar, vistos
dessa perspectiva, poderiam ser tomados tambm como lugares da
controvrsia; como arenas pblicas, portanto, evidenciando conflitos,
disputas e litgios, e suscitando um repertrio argumentativo em torno
da fundamentao de direitos, prticas e da tpica pblico/privado.
O improvisado symposium beira-mar, enquanto todos aguardavam
a refeio, era acompanhado atentamente por pescadores nossos
conhecidos que intervinham, com suas consideraes e ponderaes
no debate. Seus argumentos instruam passo a passo a discusso, pois
procuravam evidenciar as dificuldades derivadas de um ordenamento
jurdico que desqualificava as suas formas tradicionais de ocupao
e apropriao da praia, como lugar prprio das fainas das pescarias,
e dos recursos ambientais da pequena comunidade, segundo regras
estritas compartilhadas e localmente observadas.
O corpus etnogrfico do direito vez, tal como havia registrado e
analisado Kant em trabalho de pesquisa ali anteriormente realizado,
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testemunhava o refinado quadro de referncia dessas regras, invocadas na composio dos conflitos.Ao remontarem os fundamentos
de sua pretenso de constituir uma reserva extrativista marinha
(RESEX-MAR), evidenciavam tais dispositivos consuetudinrios
que regulavam a atividade pesqueira e a diversidade de usos da faixa
litornea por pescadores artesanais, para justificarem a legitimidade
de suas prticas e saberes naturalsticos.
Isaac pde acompanhar, a cada visita, o desenrolar desse processo.
Havia estado em Itaipu dois anos antes, em 1997, com Kant e Ricardo Maciel, autor de uma bela fotografia que eternizou uma excurso
etnogrfica, a bordo de uma canoa, com seu Chico, Joel e outros
pescadores, em visitao aos limites reivindicados pela comunidade
para essa rea de proteo ambiental.
O assunto voltaria inmeras vezes como tema de conversao entre
colegas brasileiros e franceses, sobretudo em funo de seus interesses de pesquisa e dos acontecimentos suscitados pelo debate pblico
em torno da constituio de reservas extrativistas marinhas ao longo
do litoral brasileiro, do qual fazia parte, em consultoria, o grupo de
pesquisa do NUFEP. A conversa animada, entretanto, foi providencialmente interrompida pelo to esperado almoo de peixe frito e
mexilhes, cuidadosamente preparado na cozinha por Chicaca,
e servido por nossa anfitri Jeti, a sorridente, bem-humorada e
operosa irm de Seu Chico.
O convite para uma caminhada pela praia e o banho de mar proporcionariam uma singela mudana no registro de impresses, uma ocasio
de proximidade e descontrada intimidade jocosa entre os colegas.
Tempos depois, saudosa do amigo, Martine iria carinhosamente se
lembrar da ocasio, talvez aquela em que esteve mais prxima de seu
colega: Ltonnant pour moi est que Isaac est li au Brsil, cest le
moment o je lai le mieux et le plus connu. Paris, nous sommes
parpills de tous cts. Ce sont des promenades avec vous sur la
plage qui me ramnent son souvenir.
Ao pr-do-sol, o grupo deixaria a praia. Martine Segalen voltou para
o Rio de Janeiro com Mello, Neiva e as crianas. No trajeto, Julia e
Luisa ensaiavam algumas notas na flauta doce. Martine comentou que
tambm tocava flauta e que tinha uma neta da mesma idade delas.
Alegre com o passeio e procurando animar as meninas, cantarolou
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Na Feira de So Cristvo
Isaac Joseph voltou ao Brasil duas vezes em 2001, em maio e, logo
depois, com Carole Saturno, entre julho e agosto. Dessa vez no encontraria Mello, seu colega brasileiro, que estava em Paris desenvolvendo
pesquisa de campo em Belleville. Seu ponto inicial de observao,
curiosamente, era o Bistrot Le Jardin, situado na Rue Julien Lacroix,
103, exatamente no rez de chauss do prdio onde morava Isaac.
Em 12 de maio daquele ano, uma noite de sbado, Isaac Joseph foi
juntamente com Felipe Feira de So Cristvo, grande mercado
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deixara intacto, como uma espcie de testemunho do antigo sistema construdo da Cidade Nova, exatamente esse pt de maisons.
Sua curiosa, complexa, impertinente e indesejvel vizinhana, com
seus pequenos e ruidosos negcios, acabaria precipitando as coisas.
O golpe final das derradeiras demolies no tardaria, provocando
a dispora urbana forada dos habitantes dessa verdadeira cidade
cenogrfica da prostituio carioca e, com isso, ameaando dispersar
prostitutas, rufies, cafetinas, birosqueiros e malandros pelos bairros
da cidade, contaminando-os com a impureza moral da corrupo
dos corpos e desorientando seus habitus, frequentadores eventuais,
clientes apaixonados, onanistas e voyeurs.
A inteligncia sociolgica da escria, aos olhos dos empresrios
morais e das classes mdias bem-comportadas, frequentemente
espantosa. A deciso de manterem-se reunidas, a criao de uma associao e a mobilizao permanente das mulheres da vida acabariam
contribuindo para a escolha bem-sucedida das adjacncias da velha
estao ferroviria da Leopoldina. Com o dinheiro das indenizaes
que conseguiram arrancar do poder pblico, no sem muitas lutas e
penosas negociaes, adquiriram a rea coberta de um galpo industrial desativado, com 2.500 m2.
O arranjo do espao foi concebido de tal modo a recriar a ambincia de
uma rua. No uma rua qualquer, mas uma movimentada e concorrida
rua de comrcio, o casario voltado para o passeio. Com sua combinao
extravagante de cores e materiais, a arquitetura kitsch dessa inslita
avenida formava uma espcie de galeria benjaminiana de quadros vivos,
para xtase e contemplao de seus frequentadores mais exigentes. Assim desenhada a circulao e facultada a flanerie, garantia-se o acesso
da clientela s suas preferncias, examinando e passando em revista o
que cada uma das 45 casas alardeavam como sendo suas mais convidativas e prazerosas ofertas, propiciando a realizao da boa escolha.
O sucesso da nova Vila Mimosa, agora espcie de nome-fantasia, ao
mesmo tempo referncia ao passado e recriao ps-moderna, marca
de griffe, logo iria se fazer conhecer muito alm da limitada circunscrio da vizinhana onde se instalou. O empreendimento coletivo
liderado por profissionais do sexo, no inicio violentamente rejeitado
pelas famlias e pudicos moradores da rea, iria, entretanto, mudar
de modo radical a vida, a economia e o comrcio de proximidade do
velho e decadente bairro das cercanias da Praa da Bandeira, com o
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surgimento de sales de beleza, confeces de roupas ntimas, perfumarias, comrcio de bijuterias e creches.
A animada conversa na casa de Fia, uma das primeiras a ter vindo
se instalar no novo endereo, tinha adiantado. E a ocasio oferecera
a oportunidade de uma primeira apresentao da pesquisa de carter
etnogrfico realizada por Soraya. Afinal, era preciso dar conta do
trabalho em andamento quela que de modo benevolente acolheria
sur place a etngrafa em muitas outras visitas de campo.
Enquanto conversavam, velhas prostitutas em trajes sumrios se
misturavam s meninas envoltas em toalhas de banho, que faziam a
toilette de modo estudado, deixando entreaberta a porta da salle de
bains. Outras espreitavam pelas janelas cruzando olhares, espera
dos frequentadores que, s mais tarde, chegariam em maior nmero.
Atravessando acompanhada o ambiente da sala, volta e meia uma
das meninas galgava os degraus que ostensivamente conduziam o
cliente ao gineceu de modestos aposentos. Nas ruas e nos bares,
dentro de minsculos shorts, tops e biqunis sensuais, o vaivm das
mulheres era animado pela atmosfera de um repertrio brega do
dance americano em altssimo volume, vindo de parafernlias eletrnicas que irradiavam de cada uma das casas, criando uma sonoridade
confusa para ouvidos mais sensveis.
Para espanto de Isaac Joseph, o grupo de jovens antroplogos tratava
com irritante naturalidade aquela visita ao prostbulo, enquanto ele,
ao contrrio, alerta e completamente atento a tudo o que se passava
naquele bas fond, no disfarava a preocupao em seu semblante.
Diante das circunstncias, embora no tivesse interferido no curso das
interaes e na vontade do grupo, mais tarde revelaria o que lhe havia
parecido talvez uma excessiva banalizao da experincia. Naturalizao que, a seus olhos, poderia acabar deixando de fora do campo
de observao uma srie de problemas que considerava importantes
e que, desse modo, temia jamais virem a ser colocados sob descrio.
Quem vai Vila Mimosa, centro de um tipo especfico de mercado
sexual, no vai simplesmente fazer turismo ou visita desinteressada.
Afinal, de que lado estamos?, indagava maneira de seu amigo
Howard Becker. Aos olhos locais, a mesa chamava ateno: um
estrangeiro, aparentando 60 anos de idade, denunciado por seu
accent, acompanhado de vrias moas e rapazes de fino trato, no
se encaixava bem na cena. Isaac tinha certeza de que o excntrico
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O estrangeiro de dentro
Em suas Reminiscncias Lricas de um Perfeito Carioca, o pintor
modernista Di Cavalcanti, amigo de Picasso e Georges Braque, mergulhado na paisagem urbana da cidade que tanto amou e retratou nas
suas telas espalhadas pelos sales e galerias das grandes metrpoles,
convidando o estrangeiro a percorrer as ruas da Lapa, o casario de
Santa Teresa e as praias da ilha de Paquet, sentenciou:
O Rio de Janeiro tem coisas de que impossvel qualquer pessoa se desligar [...]. Qualquer
estrangeiro se torna carioca em pouco tempo.
O Rio de Janeiro exerce o milagre da esperana
e todos que aqui vivem ressuscitam de hora em
hora, sentindo na boca o gosto salgado de um
novo batismo.15
Di Cavalcanti (1964).
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REFERNCIAS
CEFA, D.; JOSEPH, I. (Coord.). Lhritage du pragmatismc: conflits
durbanit et preuves de civisme. Paris: LAube, 2002.
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Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1964.
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VOGEL, A.; MELLO, M. A. S.; PESSOA DE BARROS, J. F. A
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www.editora.uff.br
Este livro foi composto na fonte Dutch 801 SWA, corpo 11.
impresso na Global Print Editora e Grfica Ltda.,
em papel Plen Soft 80g. (miolo) e Carto Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edio foi impressa em abril de 2011.
Tiragem 500 exemplares
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