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ARENAS PBLICAS

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Daniel Cefa, Fbio Reis Mota,


Felipe Berocan Veiga e Marco Antonio da Silva Mello
(Organizadores)

ARENAS PBLICAS:
por uma etnografia da vida associativa

Niteri, RJ
2011

Arenas Publicas.indb 3

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2011 by Daniel Cefa, Fbio Reis Mota, Felipe Berocan Veiga, Marco Antonio
da Silva Mello (Organizadores).
Direitos desta edio reservados EdUFF - Editora da Universidade Federal
Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icara - Niteri, RJ Brasil - CEP 24220-900 - Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax (21) 2629-5288 http://www.editora.uff.br - E-mail: [email protected]
proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora.
Normalizao: Caroline Brito
Edio de texto e reviso de provas: Rosely Campelo Barrco
Projeto grfico: Jos Luiz Stalleiken Martins
Editorao eletrnica, diagramao e superviso grfica: Kthia M. P. Macedo
Catalogao na Publicao - (CIP)
C389 Cefa, Daniel; Mota, Fbio Reis; Veiga, Felipe Berocan; Mello, Marco
Antonio da Silva.
.
Arenas Pblicas: por uma etnografia da vida associativa/Daniel Cefa,
Fbio Reis Mota, Felipe Berocan Veiga, Marco Antonio da Silva Mello
(Organizadores). Niteri: Editora da Universidade Federal
Fluminense, 2011.
514p. ; il. 21cm. (Coleo Antropologia e Cincia Poltica; 51)
Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-228-0609-6
1. Antropologia. 2. Associaes. I. Ttulo. II. Srie.
CDD 307.72
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
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Diretor da Diviso de Editorao e Produo: Ricardo Borges
Diretora da Diviso de Desenvolvimento e Mercado: Luciene P. de Moraes
Assessora de Comunicao e Eventos: Ana Paula Campos

Editora filiada

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Presidente: Mauro Romero Leal Passos
Ana Maria Martensen Roland Kaleff
Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Duayer
Livia Reis
Luiz Srgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos

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SUMRIO

INTRODUO
ARENAS PBLICAS: POR UMA ETNOGRAFIA
DA VIDA ASSOCIATIVA .....................................................................
Daniel Cefa, Felipe Berocan Veiga, Fbio Reis Mota

MOBILIZAES URBANAS:
ASSOCIAES DE MORADORES
COMO UMA ASSOCIAO NASCE PARA O PBLICO:
VNCULOS LOCAIS E ARENA PBLICA EM TORNO
DA ASSOCIAO LA BELLEVILLEUSE EM PARIS ...................... 67
Daniel Cefa
EM NOME DA COMUNIDADE: O PAPEL DAS ASSOCIAES
DE MORADORES NO PROCESSO DE IMPLANTAO
DE UMA POLTICA URBANA EM ACARI RIO DE JANEIRO..... 105
Letcia de Luna Freire
ENGAJAMENTO POLTICO E MOBILIZAO COLETIVA
EM NOVA IGUAU RJ: BASTIDORES DAS ARENAS
PBLICAS NAS CONFERNCIAS DAS CIDADES.......................... 135
Jussara Freire
ENTRE COMUNIDADE E PBLICO:
SEGUINDO O CURSO DE AO DE UM CONFLITO
DE URBANIDADE EM CARACAS, VENEZUELA...........................173
Pedro Jos Garca Sanchez
ASSOCIATIVISMO: LAOS VOLUNTRIOS
OU COMPULSRIOS?
QUANDO AS ASSOCIAES SO VOLUNTRIAS
NO BRASIL? UMA DISCUSSO SOBRE NOVAS FORMAS
DE COLONIALIZAO EM RESERVAS EXTRATIVISTAS............199
Ronaldo Lobo

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QUANTO CUSTA SER QUILOMBOLA NO BRASIL?:


MOBILIZAES COLETIVAS E ASSOCIATIVISMO
NO BRASIL CONTEMPORNEO...................................................... 239
Fbio Reis Mota
SOFRIMENTO E DEMANDA SOCIAL: UMA POLTICA
MUNICIPAL DE SEGURANA PBLICA EM NITERI RJ...............
Ktia Sento S Mello
OS VIZINHOS E OS DE FORA: O PROCESSO
DE DEFINIO DE UMA COMUNIDADE
EM BUENOS AIRES, ARGENTINA..........................................................
Luca Eilbaum
O DEVER DE CIDADANIA: POLTICAS PBLICAS
DE PLANEJAMENTO URBANO E PARTICIPAO
POPULAR NO BRASIL..............................................................................
Alex Varella
ASSOCIAR-SE: REIVINDICAR DIREITOS
NDIOS DE PAPEL: ETNICIDADE E ASSOCIATIVISMO
FRENTE A GRANDES PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO
NO ESPRITO SANTO................................................................................
Felipe Berocan Veiga
DA ASSOCIAO AO SINDICATO: UMA ETNOGRAFIA
DO ACESSO AO DIREITO DAS EMPREGADAS DOMSTICAS
DO RIO DE JANEIRO.................................................................................
Dominique Vidal
O DIREITO AO LUGAR: UMA TRAJETRIA DOS PROCESSOS
DE MOBILIZAO E CONSTITUIO DAS ARENAS
PBLICAS DO MUNICPIO DE ITACAR BA.....................................
Patrcia de Arajo Brando Couto

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SEM VERGONHA, GAROTA: VOC TEM PROFISSO:


NOTAS SOBRE A PROFISSIONALIZAO
DE UM MTIER NO BRASIL....................................................................
Soraya Silveira Simes
POSFCIO
ISAAC JOSEPH: DIRIO DE BORDO, PERCURSOS,
EXPERINCIAS URBANAS E IMPRESSES DE PESQUISA...............
Marco Antonio da Silva Mello, Licia do Prado Valladares,
Roberto Kant de Lima, Felipe Berocan Veiga

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INTRODUO
Daniel Cefa
Felipe Berocan Veiga
Fbio Reis Mota

ARENAS PBLICAS:
POR UMA ETNOGRAFIA DA VIDA ASSOCIATIVA
Este livro cumpre o papel de reunir uma produo coletiva em torno
da vida associativa como temtica comum e, desse modo, marcar a
concluso de um ciclo do Convnio Capes-Cofecub, desenvolvido de
1997 a 2007. Assim, tem como objetivo apresentar a unidade de perspectiva constituda entre grande parte dos jovens pesquisadores dos
grupos de pesquisa envolvidos naquele ento convnio o NUFEP,1
o LeMetro2 e o NECVU3 e alguns de seus parceiros franceses.
O referido convnio de cooperao internacional teve como ponto
de partida o encontro entre Isaac Joseph e Roberto Kant de Lima,
artesos das primeiras trocas, e prolongou-se consolidado por Daniel
Cefa e Marco Antonio da Silva Mello, numa srie de intercmbios
intelectuais, envolvendo professores e estudantes da UFF, da UFRJ, do
1

Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP), do Instituto de Cincias Humanas e


Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenado pelo Prof. Roberto
Kant de Lima.
Laboratrio de Etnografia Metropolitana (LeMetro), do Instituto de Filosofia e Cincias
Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenado pelo Prof.
Marco Antonio da Silva Mello.
Ncleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violncia Urbana, do IFCS-UFRJ, coordenado
pelo Prof. Michel Misse.

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artigo IUPERJ, da Universidade de Paris Ouest Nanterre-La Dfense


e do Institut Marcel Mauss-EHESS.4 Pouco a pouco, diversos eixos
tericos de reflexo, simultaneamente dimensionados pelo quadro
de pesquisas empricas desenvolvidas, foram sendo desenhados,
motivando a realizao desta obra coletiva.
1. A pesquisa de campo: estudos de caso e anlise situacional
A abordagem adotada destaca-se fundamentalmente pelo trabalho
de campo. O critrio de distino mais pertinente para especificar
a pesquisa etnogrfica a realizao da observao direta e da observao participante como modalidades primeiras da investigao.5
O pesquisador compromete-se de corpo e alma no contexto da experincia e das atividades ordinrias de seus interlocutores. Ele se
engaja na primeira pessoa nas situaes cotidianas, que frequenta de
forma regular e repetitiva durante uma longa jornada. Desse modo,
est tambm diante da excepcionalidade de eventos nicos aos quais
somente ele assiste e testemunha em campo. O pesquisador embarca,
pois, numa compreenso aproximada, focalizando os fenmenos que
se do concretamente diante dele, no momento exato de sua produo. Ele se preocupa em saber quem so e o que fazem os atores, por
que e como, com quem e em vista de qual ou quais experincias eles
depreendem suas aes. No podemos, portanto, falar em etnografia
sem ter esse momento de observao, compreenso e descrio in situ
da pesquisa e se grande parte dos dados e das anlises que advm no
espao-tempo da pesquisa for obtida por outras vias.
Evidentemente, a pesquisa etnogrfica pode se conciliar com diversos outros mtodos. Seria demasiadamente dogmtico recusar todas
as maneiras de explicar e interpretar os fenmenos sociais que no
utilizam a observao direta e a descrio como mtodos de anlise.
Limitaria os objetos empricos que seriam de domnio legtimo das
cincias sociais e polticas. Isso implicaria numa viso estreita, perdendo de vista os outros tipos de materiais relevantes pesquisa. A
pesquisa etnogrfica pode se combinar com outras atividades, tais
4

A poca do convnio, Universidade de ParisX Nanterre. Aspectos da histria deses


encontros foram relatados em captulo de livro em homenagem a Isaac Joseph: MELLO,
M. A. da Silva et al. Si tu vas Rio!: lexprience brsilienne dIsaac Joseph. In: CEFA,
D.; SATURNO, C. (Org.). Parcours dun pragmatiste. Paris: Economica, 2007, retomado
em nova verso como posfcio deste livro.
CEFA, D. Lenqute de terrain. Paris: La Dcouverte, 2003.

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como entrevistas, do questionrio mais formalizado conversa mais


corriqueira; pode recorrer s abordagens sistemticas sobre desenhos
cartogrficos ou dados estatsticos; pode, enfim, incluir os mtodos
de anlise de documentos escritos ou iconogrficos, na pesquisa
arquivstica ou museogrfica. Mas, praticamente em todos os casos, a
reflexo est enraizada numa coleta de dados in vivo, na constituio
de relaes de familiaridade e de confiana com os interlocutores e
com o seu territrio, e na recusa de explicaes transcendentais,
cujas as categorias e as hipteses no esto ancoradas numa expe
rincia de primeira mo. Fora disso, a reproduo de modelos acaba
tornando-se lugar-comum.
No preciso dizer embora para alguns socilogos e cientistas
polticos entre ns se faa necessrio que temos uma formao que
tem nos iniciado em direo antropologia social e antropologia
cultural. Clifford Geertz, Victor Turner e Marshall Sahlins so, para
cada um de ns, os autores-chave que tivemos a sorte, os mais antigos,
de conhecer e frequentar em nosso percurso intelectual. H tambm
uma linhagem propriamente brasileira dessa perspectiva. Kant de
Lima e Marco Antonio Mello, que foram formados por Luiz de Castro
Faria, Wagner Neves Rocha e Roberto da Matta, iniciaram, ambos,
suas atividades de pesquisa em torno da etnografia da pesca,6 antes
de se debruarem, respectivamente, sobre as temticas da cidade,7
da polcia e do sistema de justia criminal.8 Alguns dos doutorandos
e pesquisadores que participam desse projeto coletivo j publicaram
artigos e livros, nos quais desenvolvem, por exemplo, uma antropologia histrica da sade pblica,9 a descrio etnogrfica de ciclos
rituais festivos e religiosos,10 etnografia de conflitos envolvendo

10

KANT DE LIMA, R.; PEREIRA, L. F. Pescadores de Itaipu: meio ambiente, conflito e ritual
no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Niteri: Ed.UFF, 1997; MELLO, M. A. da Silva;
VOGEL, A. Gente das areias. Niteri: EdUFF, 2004.
VOGEL, A.; MELLO, M. A. da Silva Santos, C.N.F. et al. Quando a rua vira casa. Rio de
Janeiro: FINEP: IBAM: Ed. Projeto, 1983.
KANT DE LIMA, R. A polcia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio
de Janeiro: Forense, 1995.
VIEIRA DA CUNHA, N. Viagem, experincia, e memria: narrativas de profissionais da
Sade Pblica dos anos 30. Bauru, SP: EdUSC, 2004.
BRANDO COUTO, P. A. Festa do Rosrio: iconografia e potica de um rito. Niteri:
EdUFF, 2003; BEROCAN VEIGA, F. A folia continua: vida, morte e revelao na Festa do
Divino de Pirenpolis, Gois. In: CARVALHO, Luciana (Org.). Divino toque do Maranho.
Rio de Janeiro: IPHAN: CNFCP, 2005.

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pescadores pelo uso do espao da praia,11 demandas de direitos de


grupos minoritrios,12 etnografias de bairros13 etc.
Sendo assim, podemos destacar trs elementos:
Em primeiro lugar, em cada abordagem de temas sensivelmente
diferentes, o peso concedido anlise situacional,14 expresso que
podemos encontrar tanto em Max Gluckmann quanto em Erving
Goffman,15 e que marca a importncia de Chicago e Manchester no que
diz respeito constituio de uma descrio minuciosa de situaes
de co-presena. A ordem processual da interao permite entradas
muito mais gerais, possibilitando observar as pessoas, os representantes de entidades coletivas, empresas e organizaes, demonstrando
as relaes de desigualdade, de discriminao ou de dominao no
trabalho, da forma como elas se fundam concretamente. O observador
engaja-se nos enredos (plots) nos quais se torna ator e espectador e
que compem nada mais do que outra instncia do drama social de
Victor Turner ou da narrativa histrica de Wilhelm Schapp. Portanto,
preciso dar o merecido lugar de destaque s situaes sociais, h
muito negligenciadas por todas as formas de anlise estruturalista,
e afirmar que no h explicaes etnogrficas nem interpretaes
suficientes, se no estiverem ancoradas na observao e na descrio
das situaes.
Disso resulta o segundo elemento: a sensibilidade dimenso simblica, mtica, ritual e dramtica, em face das experincias individuais
e coletivas dos atores. De encontro s abordagens mais positivistas, a demarche do pesquisador aqui claramente indissocivel da
11

12

13

14

15

PRADO, S. M. Da anchova ao salrio mnimo: uma etnografia sobre injunes de mudana


social em Arraial do Cabo. Niteri: EDUFF, 2000; CUNHA, D. G. Pescadores e surfistas:
uma disputa pelo uso do espao da Praia Grande. Dissertao (Mestrado em Antropologia)
Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2000.
MOTA F. R. Conflictos, multiculturalismo y los dilemas de la democracia a la brasileira. In:
TISCORNIA, Sofa; PITA, Mara Victoria. (Org.). Derechos humanos, tribunales y policas
en Argentina y Brasil. Buenos Aires: Antropofia, 2006.
LEITO, W. M. Rivalidade cultivada, conflito e unidade social num bairro carioca. Comum,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 22, p.173-197, 2004.
GLUCKMAN M. Anlise de uma situao social na Zululndia moderna. In: FELDMANBIANCO, B. (Org.). Antropologia das sociedades contemporneas. So Paulo: Global,
1987; VAN VELSEN, J. A anlise situacional e o estudo de caso detalhado. In: FELDMANBIANCO, B. (Org.). Antropologia das sociedades contemporneas. So Paulo: Global, 1987.
GOFFMAN, E. The neglected situation. American Anthropologist, New York, v. 66, n. 6, p.
133-136, 1964; ______. The Interaction Order. American Sociological Association, 1982,
Presidential Address. American Sociological Review, New York, v. 48, n. 1, p. 1-17, 1983.

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aprendizagem das atividades do fazer sentido (meaning making),


por meio das quais todos os seres humanos, dos brutos aos mais sofisticados, organizam uma experincia de si, do outro e do mundo.
As presses morais de ordem ecolgica ou econmica, por exemplo,
no devem ser esquecidas, mas somente so inteligveis a partir do
ponto de vista do nativo e apenas podem ser situadas nos contextos
da experincia. Podemos, ainda, reconstruir as estruturas culturais
ou as formas simblicas,16 que devemos retomar no movimento de
sua instituio histrica,17 mas no podemos perder de vista que os
sentidos e significados se constituem no contexto da ao e da situao
social. No podemos, assim, reduzir os contextos de sentido que se
constituem no exerccio da vida associativa a uma espcie de sombra
generalizante e portadora de culturas ou de tradies nacionais:
preciso descrever precisamente, em cada lugar e em cada momento,
de que modo categorias, argumentos, dramas e narrativas adquirem
sentido por parte de seus produtores e receptores. Se podemos, em
grandes traos, fabricar tipos culturais, embora sob o risco de cair
em esteretipos, devemos tambm e principalmente examinar in situ
os modos mltiplos pelos quais os atores assimilam e acomodam,
inventam, distorcem, utilizam ou recusam significados. preciso,
pois, seguir as aes simblicas em vez de congelar os sistemas
simblicos, fixados pela obsesso culturalista.
O terceiro elemento, enfim, a recusa em se dissociar os questionamentos culturais dos sociais. Falar em associao no somente
focalizar os rituais e o imaginrio, os universos simblicos, as utopias
cvicas e as denunciaes pblicas, mas estudar igualmente as formas
sociais. As associaes so meios de sociabilidade e de socializao:
elas oferecem um observatrio ideal a uma microssociologia das interaes e das conversaes. Permitem tambm dar conta da dualidade
simmeliana da ponte e da porta,18 ora ligando pessoas, ora impondo
barreiras: elas aproximam e reatam, instituindo novos polos de existncia coletiva e, a um s golpe, separam e muitas vezes excluem.
Assim, as associaes dissociam tanto quanto associam. Entretanto,
as associaes ressaltam tambm uma sociologia das organizaes:
para existir, elas devem mobilizar recursos, se ajustar ao ambiente,
produzir uma diviso do trabalho e uma repartio da autoridade, se
16
17
18

GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.


SAHLINS, M. Ilhas de histria. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
SIMMEL, G. A Ponte e a porta. Poltica & Trabalho, Joo Pessoa, v. 12, p. 10-14, set. 1996.

13

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assegurar do engajamento das competncias e da convergncia de


energias. Elas esto engajadas em relaes de cooperao e de competio recproca e com as outras organizaes, nas lutas ecolgicas por
sua sobrevivncia e em colaboraes com vistas a objetivos comuns.
Enfim, as associaes so exatamente os ns das redes sociais. So
verdadeiras incubadoras de relaes sociais, que contribuem para criar
as mais variadas frentes de aliana e de oposio. Tanto redesenham as
tramas de relaes interpessoais quanto ocupam posies relevantes
nas tramas de relaes interorganizacionais.
Anlise de situaes concretas, antropologia social e antropologia
cultural. Mas tambm etnografia moral e poltica. Uma ateno
particular dirige-se aos significados normativos que os atores do
a seus engajamentos nos contextos da experincia. Eles entram em
disputas em torno de provas de decncia, de respeito ou dignidade,
de liberdade, de direito e de justia. Eles se afrontam pela troca de
crticas, de denncias e de reivindicaes e se referem s economias
morais do bem e do mal, do aceitvel e do intolervel, do autorizado
ou do ilegtimo. E eles no cessam, diante de suas tomadas de posio,
de transformar os jogos de poder nos quais esto presos irredutveis
s simples relaes de dominao, quedas-de-brao ou conflitos de
interesse.
2 Uma perspectiva microssociolgica e pragmatista: a repblica in situ
O dilogo entre colegas franceses e brasileiros, cujo momento
inaugural foi o Colquio de Cerisy-la-Salle de 1999, conduziu a
um entrecruzamento entre essas abordagens antropolgicas e a um
questionamento microssociolgico e pragmatista.19
No h domnio prprio microssociologia. Tudo na realidade vai do
micro ao macro e se declina em fenmenos infinitesimais, dizia Isaac
Joseph.20 No entanto, um repertrio de conceitos, que no tem nada
de exaustivo, constitudo ao longo do tempo, nos permite observar
a complexidade das situaes e operar com alguns conceitos-chave:
19

20

As atas desse congresso foram publicadas em: JOSEPH, I.; CEFA, D. (Org.). Lhritage
du pragmatisme: conflits durbanit et preuves du civisme. La Tour dAigues: ditions de
lAube, 2002.
JOSEPH, I. Erving Goffman et la microsociologie. Paris: PUF, 1998. (Trad. Goffman e
a microssociologia. Rio de Janeiro: FGV, 2000); ______. Lathlte moral et lenquteur
modeste. Paris: conomica, 2007.

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civilidades, rituais, dramas, lugares, ocasies, capacidades, competncias, quadros, contextos, engajamentos, faces, figurao, interao,
ordem pblica, posio, vulnerabilidade, reparao, territrio, redes,
situao. H nelas as pistas que foram percorridas pela antropologia
urbana,21 nos estudos dos espaos pblicos, mas que tm sido menos
exploradas pela sociologia poltica.
Em poucas palavras, um percurso alternativo foi sendo traado e
aplicado nas pesquisas acerca dos fenmenos civcos e polticos.
Ele d conta de casos (case method) que organizam as constelaes
espao-temporais das situaes. Visa demonstrar o que significa concretamente in situ democracia e repblica; como se articulam os usos
de direitos, as identidades comunitrias e as relaes profissionais;
ou, ainda, como se combinam as relaes entre mercado, religio
e poltica. A partir desse repertrio de questes, foi mapeada uma
srie de problemas, que foram, durante todos esses anos, os eixos de
cooperao entre Paris-Nanterre e Rio-Niteri. Poderamos hoje em
dia formul-los do seguinte modo:
a) Como uma sociologia da intimidade e da proximidade pode dar
conta dos modos de viver das pessoas em relao, de gerar sentimentos sociais e de aplicar categorias morais?22 Como essas
relaes de interao com outras pessoas, bens ou coletividades
de ordem privada, tais como so vivenciadas nas situaes de
apego vida de um bairro, da defesa de um fragmento do meio-ambiente ou da proteo dos interesses de um grupo profissional, tnico (ndios, quilombolas, ciganos) ou religioso (sufis),
vm-se referir a princpios universais da moral, do direito ou da
justia?23 Em que medida conduziriam (ou no) mobilizao
das instituies republicanas, apelando (ou no) ao julgamento
da opinio pblica, recorrendo (ou no) fora da lei e do tribunal, invocando (ou no) os princpios de igualdade e de equidade
21
22

23

JOSEPH, I. La ville sans qualits. La Tour dAigues: ditions de lAube, 1998.


BREVIGLIERI, M.; TROM, D. Troubles et tensions en milieu urbain. In: CEFA, D.;
PASQUIER, D. (Dir.). Les sens du public: publics politiques, publics mdiatiques. Paris:
PUF, 2003; BREVIGLIERI, M. Lusage et lhabiter: contribution une sociologie de la
proximit, paratre Paris. Tese de doutorado EHESS, Paris, 1999.
VIDAL, D. A linguagem do respeito: a experincia brasileira e o sentido da cidadania nas
democracias modernas. Dados: Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 2,
p. 265-283, 2003; ______. Les bonnes de Rio de Janeiro: emploi domestique et socit
dmocratique. Lille: Presses du Septentrion, 2007.

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entre sujeitos de direito?24 Como as situaes de conflito pessoal


resultam, na Frana e no Brasil, em tipos de justificao, denncia ou reivindicao pblicas; e quais so os sujeitos de direito
em evidncia cidados, habitantes (Belleville, Catumbi, Acari,
Nova Iguau), comerciantes (Saara), trabalhadores (domsticas,
prostitutas), consumidores, usurios, membros de comunidade
local (Itacar) ou de um territrio indgena (Tupiniquim-Guarani)? Qual o encadeamento que conduz as provas de sentimentos
de injustia formulao de discursos de protesto nos espaos
pblicos (de proximidades ou midiatizados pelos meios de comunicao de massa e por instituies estatais), organizao
de aes coletivas (constituio de associaes, sensibilizao de
auditrios, mobilizao de constituencies) e aos recursos apelativos das instituies judicirias (blaming, claiming, naming),
cujo papel regular os litgios, obter reparaes s penas e fazer
reconhecer os direitos?
b) Como abordar uma sociologia dos conflitos nos espaos pblicos
urbanos e no-urbanos? Quais so as variveis e nuances de significado da ideia de pblico no Brasil?25 Como dar conta das
formas de incompatibilidade e de conflito que no se resumem
aos combates entre grupos de interesses ou s lutas pela apropriao de recursos que se coloca na demarcao de Reservas
Extrativistas (Arraial do Cabo) e de Terras Indgenas (Aracruz)
em reas disputadas para outros fins, na valorizao de territrios
como relevantes do comum ou do pblico, apoiando-se nos
direitos de uso (Itacar) ou de herana (Marambaia)? O que a
microssociologia pode nos ensinar sobre a constituio dos laos
civis ou sobre a emergncia de problemas pblicos? Enquanto na
Frana uma gramtica de direitos cvicos exprime de imediato
a desigualdade como algo insuportvel, a anlise de situaes
problemticas de conflitos no Brasil testemunha que essa igualdade de direitos nem sempre permanente. O que, entretanto, os
signos de transformao das maneiras de ser e de se reportar aos
outros podem revelar, em vez de uma representao fortemente
24

25

CEFA, D.; TROM D. (Dir.). Les formes de laction collective: mobilisations dans des arnes
publiques. Paris: ditions de lEHESS, 2001; CEFA, D. Pourquoi se mobilise-t-on?: thories
de laction collective. Paris: La Dcouverte, 2007.
KANT DE LIMA, R. Police, Justice et socit au Brsil: comparer des modles
dadministration des conflits dans lespace public. In: CEFA, Daniel; JOSEPH, Isaac.
Lhritage du pragmatisme: conflit durbanit et preuves du civisme. [S.l.]: Ed. de
Laube, 2002. p. 193-210.

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culturalista da desigualdade e da hierarquia? Como prolongar o


trabalho pioneiro de Roberto da Matta e descrever com elegncia,
de um modo etnogrfico, as mudanas dos regimes de interao e
das categorizaes morais, cvicas e jurdicas?26 Recorrendo aos
mtodos da microssociologia, possvel envolver mais de perto
as situaes de gesto de tenses nos territrios urbanos ou de
litgios em torno de lugares de aptido turstica, ecolgica e martima? Quais so os modos de resoluo que colocam em cena
os atores locais? Em que medida as instncias estatais esto implicadas nesses processos? Quais so os outros atores envolvidos
na ao: ONGs, igreja catlica ou igrejas envanglicas, universidades etc.? Como a ao de policiais, juzes e outros agentes,
supostos garantidores da ordem pblica, percebida, acionada
ou evitada pelos cidados comuns?
c) Como uma sociologia de situaes de mobilizao, de protesto
e de reivindicao pode ser transponvel entre a Frana e o
Brasil? Podemos operar com a transferncia de problemticas,
de conceitos e de mtodos entre associaes que tm objetivos
to diversos quanto a vida do bairro, a transformao urbana, os
problemas ambientais ou de segurana, a poltica de transportes,
os direitos das mulheres ou a luta contra a AIDS? Quais so
as formas da vida associativa no Brasil? Qual o significado
da categoria associao no direito, na poltica, no discurso
filantrpico das ONGs, para as redes de economia solidria, ou,
ainda, simplesmente, na vida cotidiana? Quais so os lxicos
ou os vocabulrios utilizados em suas reivindicaes? Como as
dinmicas do engajamento coletivo, as formas de justificao
pblica e os dispositivos de ao da vida associativa so postos
em movimento para se fazer reconhecer situaes de no-direito
ou de injustia, para se exigir indenizao aos desempregados ou
para se reclamar o respeito aos direitos civis ou sociais? Quais
so os repertrios de ao e de justificao que so desempenhados
pelos membros das associaes? A que retricas de bem pblico
recorrem os atores? Sobre quais noes de direito se apoiam?
Em que contextos evocam os discursos da justia social, da
solidariedade republicana, da caridade crist ou do lao
comunitrio? Incorporam os dispositivos da ao pblica
26

KANT DE LIMA, R. Carnavais, malandros e heris: os dilemas brasileiros do espao


pblico. In: GOMES, L. Graziela; BARBOSA, L.; DRUMMOND, J. A. O Brasil no para
principiantes: vinte anos de Carnavais, Malandros e Heris. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

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e, se o fazem, quais so esses dispositivos? Que engrenagens


hbridas so acionadas entre engajamentos locais, atos de
fundao e organizaes privadas, agncias administrativas,
organizaes comunitrias e redes clientelistas nas arenas
pblicas? E, finalmente, em torno de quais problemas,
escndalos, assuntos ou questes se desdobram as aes?
3 Estratgias de uma pesquisa sobre associaes:
uma abordagem alternativa
Chegamos, enfim, ao tema deste livro: uma pesquisa sobre as associaes, que seja tambm uma microssociologia ou uma antropologia
dos laos civis e dos engajamentos cvicos, e que inclua uma dimenso
de anlise da formao dos problemas pblicos e do regulamento do
direito, dos conflitos e litgios.
3.1 Deconstruir certas crenas da teoria poltica
Em primeiro plano, assinalaremos que a pesquisa de campo nos permitir o distanciamento de certas utopias polticas: do comunitarismo,
do republicanismo cvico e do capital social, da economia solidria
e da democracia associativa.
a) Os comunitaristas como A.Etzioni, M.Sandel ou P.Selznick,
pensam poder recuperar os princpios elementares da democracia com a revitalizao das comunidades familiares, geracionais,
territoriais, tnicas, lingusticas, religiosas ou profissionais. A
associao forneceria os pontos de reparo e de orientao num
mundo em que os processos de racionalizao e de secularizao
tendem a dissolver as formas de solidariedade social, a abolir as
evidncias morais, a corromper as certezas polticas, a mergulhar
num isolamento psquico e a favorecer as condutas egostas. Ela
induz um sentido de obrigao e de responsabilidade face a face
em uma comunidade transcendente mesmo alguns a acusando
de ser cmplice de uma balcanizao dos corpos cvicos e da
multiplicao de polticas de identidades. As associaes revitalizam as comunidades a neighborhood democracy se enraiza
nas aes das organizaes comunitrias.
b) As propriedades imputadas associao no so muito diferentes
numa perspectiva republicana, ainda que a referncia comunitria seja eclipsada pelas figuras do contrato voluntrio. M.Walzer, J.Cohen ou B.Barber insistem, assim, nos princpios de uma
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democracia forte fundada sobre um associativismo cvico,27


que revitalizaria a sociedade civil e expressaria efetivamente
os direitos formais, e submergindo-as por uma dinmica de empowerment, reforaria as capacidades cvicas pelo exerccio da
democracia participativa. Sem ir longe tambm na fico poltica, apesar da referncia recorrente J.Dewey e J.Addams, os
capitalistas sociais,28 cujo o nome mais proeminente R.Putnam, comentam sobre toda sorte de grupos cvicos de clubes
de boliche s congregaes religiosas, de clubes de bairro aos
grupos de dana local para contrapor-se aos processos de individualizao, de mercantilizao e de mediatizao que corroem
a sociedade civil.
c) Essa viso de uma regenarao cvica e poltica que passa pela
associao partilhada pelas abordagens mais econmicas do
problema. A perspectiva sobre o terceiro setor de A.Evers ou
de J.-L.Laville aposta tambm no poder de auto-organizao da
sociedade civil, sobre a possibilidade de ocupar os domnios deixados pelo Estado e pelo mercado,29 e de impulsionar circuitos de
produo e de difuso de bens e de servios pelos principais interesses. As associaes participam como peas-chave das novas
formas de governana em matria de urbanismo, de segurana,
sude, educao e lazer. Tm tambm outras virtudes: restitui o
tecido social e ressocializa os indivduos desfiliados, e engendra um grosso volume de empregos em situaes de desemprego
generalizado, devolve aos consumidores uma perspectiva sobre
o mundo da vida cotidiana e, finalmente, promove uma autonomia individual e coletiva. Nessas verses mais radicais, essa
perspectiva d lugar s vises da democracia participativa.30
As associaes apresentariam, assim, algumas vantagens, se comparadas s empresas e s administraes. Elas se caracterizariam por uma
27

28

29

30

CHANIAL, P. Justice, don et association: la dlicate essence de la dmocratie. Paris: La


Dcouverte, 2001.
A expresso de Ota de Leonardis, referindo-se a: PUTNAM, R. Bowling alone: the collapse
and revival of american community. New York: Simon and Schuster, 2000; PUTNAM, R.;
FELDSTEIN, R.; DON, Cohen. Better together: restoring the american community. New
York: Simon & Schuster, 2003.
LAVILLE, J.-L. et al. Association, dmocratie et socit civile. Paris: La Dcouverte, Mauss
et Crida, 2001.
HIRST, P. Associative democracy: new forms of economic and social governance. Cambridge:
Polity Press, 1994; COHEN, J.; ROGERS, J. Associations and democracy. In: WRIGHT, E.
O. (Org.). Associations and democracy. London: Verso, 1995.

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forte solidariedade interna, cimentada pelo engajamento voluntrio,


que sobrepuja as fraquezas devidas, as estratgias econmicas ou as
rotinas burocrticas para regular os problemas pblicos. Elas teriam
uma grande capacidade de resposta aos eventos e de ajustamento
fluidez do ambiente, em razo de sua flexibilidade em matria de
gesto e de compatibilidade e de sua proximidade das preocupaes
do mundo ordinrio. Elas apreenderiam as situaes em suas singularidades e no somente em virtude de critrios universais do lucro
ou do direito. Elas seriam compostas pelas lgicas da experincia e
da ao do pblico, do mercado e do Estado. Mas o argumento mais
difundido o da espiral cvica espiral virtuosa de proliferao de
pblicos associativos.31 Ao participarem de grupos cvicos, os indivduos contribuiriam para a disseminao de conexes sociais, para a
acumulao de capital social pelas dinmicas de bridging (abertura
e conexo sobre outros grupamentos associativos) e para o aumento
da mistura social, tnica e religiosa (em contato com indivduos ou
grupos segmentados). Frequentemente, seriam eles mesmos membros
de diversas associaes ou refundariam outras novas, convencendo
outras pessoas a se engajarem ao seu redor e provocando reaes em
cadeia. Pouco a pouco, essas redes mais ou menos formalizadas de
relaes de confiana, de cooperao e de comunicao se entrecruzariam e se estenderiam.
As associaes seriam, ainda, meios de realizao de autonomia pessoal, de espaos de reciprocidade, de sociabilidade e de solidariedade
e de redes de acumulao de capital social. Elas tirariam os indivduos de seu isolamento, expandindo seus horizontes de experincia,
multiplicando as ocasies de encontro, transpassando as fronteiras
simblicas entre registros de atividades e das fronteiras sociais, religiosas, ou culturais. Num plano mais poltico, as associaes seriam
os lugares privilegiados de exerccio da cidadania: elas inculcariam
os saberes, as virtudes e as competncias cvicas e moldariam os
regimes de engajamento de cidados. Elas lhes dariam a oportunidade de investigar e de experimentar, de comunicar e de raciocinar
coletivamente. Elas seriam laboratrios da vida cvica e escolas de
democracia deliberativa, lugares de formao em civismo e mediaes
da sociedade civil. Pela fora de exemplo, as associaes, crescendo e
se multiplicando, poderiam assim fundar novamente uma poltica da
31

Essa tese foi criticada por P.Lichterman, em: Elusive togetherness: religious groups and
civic engagement in America. Princeton: Princeton University Press, 2004.

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sociedade civil. A menos que elas favoream, em oposio a esses


efeitos, um fechamento sobre si mesmos de grupos profissionais,
tnicos ou religiosos, com a intensificao de fenmenos de bonding
(reforo das solidariedades exclusivas no interior de grupamentos
associativos) e a multiplicao de condutas do tipo NIMBY.32
Todos esses elementos no devem ser tomados, em primeiro plano,
como as evidncias que so para os promotores ou para os adversrios das associaes de voluntrios. Eles devem ser colocados
prova da pesquisa, para se verificar empiricamente se elas so mais
ou menos justas ou falsas. Esses tipos de discurso esto todos presentes no Brasil. Mas parece-nos importante no limitar a pesquisa
a um trabalho exclusivamente terico de anlises de textos que se
referem implicitamente a outros contextos. Um verdadeiro esforo
de compreenso comparativa impe que se leve em conta a histria
do desenvolvimento, da recepo e da aplicao desses diferentes
conjuntos de argumentos e prticas que lhes correspondem em contextos diferentes.
As reflexes sobre a poltica multicultural e sobre a identidade tnica,
sobre a questo social ou sobre a liberalizao econmica, no soam
da mesma maneira dependendo de onde nos encontremos. O mesmo
acontece com o engajamento associativo, a organizao comunitria,
a sociedade civil ou o terceiro setor, no tem seno a aparncia da
similitude. Se quisermos ter um encaminhamento que possua uma
pertinncia comparativa, ser necessria uma pesquisa de semntica
sociolgica, na qual se analisem os usos feitos desses diferentes conjuntos de argumentos em poltica pblica, na pesquisa universitria
e na prtica militante. Os sentidos das categorias que parecem bem
definidas no contexto da teoria moral e poltica se transformam, logo
que as transplantemos de um universo social a outro.
32

Nimby: Not in my backyard, ou seja, fora de meu quintal. Essa expresso significa que
os atores aceitam que uma obra de infraestrutura pblica como, por exemplo, uma linha de
alta-tenso, uma rodovia, uma usina nuclear ou uma via frrea se instale em qualquer lugar,
sobre os terrenos de seus vizinhos, desde que sua propriedade se encontre fora de perigo. Os
processos de generalizao e de globalizao substituram a sndrome Nimby ou Nimey (Not
In My Electoral Yard, fora de meu quintal eleitoral) por um processo de redistribuio
Lulu (Locally Unwanted Land Uses, usos da terra localmente indesejados). Ou ainda por
uma defesa de posies mais universalistas: Banana (Build Absolutely Nothing Anywhere
Near Anyone, no construir absolutamente nada em lugar nenhum e perto de ningum),
Niaby (Not In Anybodys Backyard, fora do quintal de qualquer um) ou Nope (Not On the
Planet Earth, no no Planeta Terra).

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1 - Comecemos pelo conceito de comunidade. Ele reprovado na


Frana, porque evoca a diviso das faces de uma Repblica suposta una e indivisvel, e porque parece irremediavelmente manchado pela marca do interesse particular ao encontro do interesse
geral. A comunidade tem um sentido pejorativo: ela utilizada
para estigmatizar e denunciar todo tipo de localismos, de etnicismos e de corporativismos.33 , por outro lado, uma das categorias
mais usuais para designar as formas de vida coletiva nos Estados
Unidos.34 Um certo nmero de associaes pensado ali como
community organizations, um termo que existe desde o comeo
do sculo XX, muito marcado pelo ideal de engajamento cvico
defendido por Saul Alinsky e que deu lugar a utopias polticas
muito grandes, de autodesenvolvimento e, s vezes, de autogoverno comunitrio. A comunidade frequentemente ligada ao
fortalecimento da democracia local e a um modo de formao
de uma cidadania do neighborhood,35 mas ela remete tambm a
comunidades ao mesmo tempo de raa e religio, hoje o fundamento mais ativo da atividade sindical e do movimento social.
No Brasil, a ideia de comunidade est ligada atividade do trabalho
comunitrio e tcnica do desenvolvimento comunitrio. Assistentes sociais da administrao municipal do Rio de Janeiro criavam,
desde a dcada de 1940, associaes de moradores nas favelas e
partilhavam com a Igreja Catlica o controle da assistncia aos pobres. A instituio caritativa da Fundao Leo XIII instalava bicas
de gua e abria vias pblicas apoiados pela prtica mais antiga do
mutiro. Depois, a partir dos anos 160-70, os Peace Corps e, a partir
dos anos 1980, as ONGs, se apoiaram em um certo tipo de discurso
sobre a comunidade. Dispomos hoje de um certo nmero de dados
sobre esse tipo de associaes de bairro e de moradores, a comear
pelos trabalhos dos Leeds e os artigos clssicos de L.A.Machado

33

34

35

MOTA, F. R. Cidados em toda parte ou cidados parte?: demandas de direito e


reconhecimento no Brasil e na Frana. Tese (Antropologia)Universidade Federal Fluminense,
Niteri, 2009.
VIDAL, D. Concevoir la communaut: lefficacit dune catgorie socio-spatiale au Brsil.
In: MONNET, J. (Dir.). Espace, temps et pouvoir dans le nouveau monde. Paris: Anthropos,
1996; et son livre La politique au quartier: rapports sociaux et citoyennet Recife. Paris:
ditions de la Maison des sciences de lhomme, 1998. (Collection Brasilia).
THOMSON, K. From neighborhood to nation: the democratic foundations of civil society.
Hanover: University Press of New England, 2001.

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

da Silva e de L.Valladares,36 ou A.Zaluar ou W.G. dos Santos sobre


as organizaes populares.37 Mais recentemente, as associaes
de moradores ou de amigos do bairro multiplicaram seus objetivos:
trnsito, poluio, sade, educao, reas verdes, segurana pblica,
qualidade dos servios pblicos, recuperao de reas centrais. Elas
so mais do que nunca apoiadas e financiadas por entidades estrangeiras, lidam com populaes cada vez mais mveis e heterogneas,
mesmo nas favelas que passavam por prottipo da comunidade.
A ideia de comunidade tem igualmente uma ressonncia que o Brasil
partilha sem dvida com outros pases da Amrica do Sul. Ela foi o
objeto do desejo militante ou religioso durante o perodo da ditadura,
escapando aos rigores do regime. Ela sustentou todo o trabalho de
educao popular, cujos mtodos de conscientizao de Paulo Freire esto ainda nas memrias. Ela igualmente esteve no corao das
prticas radicais da teologia da libertao, deste retorno ao da Igreja
dos pobres, pela gerao de padres, de Leonardo Boff e Dom Helder
Cmara.38 A associao de referncia foi, at o meio dos anos 1990, a
Comunidade Eclesial de Base: ao mesmo tempo assembleia dos fiis
se reunindo para ler a Bblia, discutir sobre a f e celebrar os ritos,
duplicando a forma da parquia; e reagrupamento militante, ligado
em rede s outras CEBs pela logstica da Igreja, mobilizando-se para
a gesto dos negcios locais, mas tambm na ocasio da Constituio
de 1988 para articular grandes movimentos nacionais. A comunidade
no , ento, somente uma fantasia do Antigo Regime, como na Frana, ela no remete tampouco histria das seitas protestantes e das
repblicas locais, como nos Estados Unidos. Ela uma unidade vivida
e praticada da ao coletiva, frequentemente inscrita no territrio e na
populao, s vezes portadora de uma forte conotao mstica povo
da revoluo ou povo de Deus , quase sempre ligada a tarefas
36

37

38

Como pioneiros: SILVA, L. A. Machado da. A poltica na favela. Cadernos Brasileiros, Rio
de Janeiro, v. 41, n. 9, p. 35-47, 1967; VALLADARES, L. Associaes voluntrias na favela.
Cincia e Cultura, So Paulo, v. 29, n. 12, p. 1390-1403, 1977; LEEDS, A.; LEEDS, E. A
sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Et plus tard: BOSCHI, R. A arte
da associao. Rio de Janeiro: Vrtice: IUPERJ, 1987.
ZALUAR, A. A mquina e a revolta: as organizaes populares e o significado da pobreza.
So Paulo: Brasiliense, 1985; SANTOS, W. G. dos. Razes da desordem. Rio de Janeiro:
Rocco, 1992.
Sobre a ao de Dom Helder Cmara diante das polticas de remoo das favelas cariocas, ver
SIMES, S. S. Cruzada So Sebastio: etnografia da moradia e do cotidiano dos moradores de
um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro. Tese (Antropologia)Universidade
Federal Fluminense, Niteri, 2008.

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

de resoluo das carncias sociais, e dando lugar, na ocasio, a um


registro formal no Cadastro Nacional de Pessoas Jurdicas (CNPJ).
2 - A noo de sociedade civil, por muito tempo criticada por uma
literatura marxista, conheceu um verdadeiro renascimento nos
anos 1980-90, em concomitncia com a descoberta da noo de
espao pblico39 em Arendt e Habermas. Ela foi desenvolvida
de modo exponencial em relao s esperanas da emergn-
cia de uma nova sociedade brasileira, livre das feridas do clientelismo e do paternalismo dando lugar ao que aparece retrospectivamente como uma verdadeira mitologia poltica da transio democrtica. Alguns analisavam, sem nfase, a transio
conservadora, dirigida do alto. Eles mostravam, seguindo o
caminho de P.Schmitter,40 os acordos neo-corporativistas que se
instalavam e analisavam as associaes como articulaes das
intermediaes entre grupos de interesse profissionais, tnicos, sociais, territoriais, e o poder pblico.41 Outros se lanavam,
opostamente, em uma carreira apologtica das mutaes em curso a exaltao de um novo associativismo estando no corao desta refundao.42 Esse discurso sobre a sociedade civil
correspondia claramente a um esforo performtivo para propor
uma concepo da cidadania fundamentada no direito, e oposta s restries corporativistas ou militaristas at ali conhecidas.
Ele era mais interessante quando ele se juntava interrogao de
seu significado na histria do Brasil fosse sobre a histria da
39

40

41

42

TELLES, V. da. Sociedade civil e a construo de espaos pblicos. In: DAGNINO, E.


(Org.). Anos 90: poltica e sociedade no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1994; DAGNINO, E.;
ESCOBAR, A.; ALVAREZ, S. Cultures of politics/Politics of cultures. Boulder: Westview
Press, 1998.
STREECK, W.; SCHMITTER, P. C. Community, market, state and associations?: the
prospective control of interest governance to social order. In: ______. (Ed.). Private interest
government: beyond market and the state, London: Sage, 1985. p. 1-29; DINIZ, E.; BOSCHI,
R. O corporativismo na construo do espao pblico. In: BOSCHI, R. (Org.). Corporativismo
e desigualdade. Rio de Janeiro: IUPERJ: Rio-Fundo Editoras, 1989.
LABRA, M. E. Associativismo no setor sade brasileiro e organizao de interesses do
empresariado mdico. Physis: revista de sade coletiva, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 193-225,
1994; LABRA, M. E. Anlise de polticas, policy making e intermediao de interesses:
uma reviso. Physis: revista de sade coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 131-166, 1999.
AVRITZER, L. Democracy and the public sphere in Latin Amrica. Princeton: Princeton
University Press, 2002; AVRITZER, L. Um desenho institucional para o novo associativismo.
Lua Nova, So Paulo, v. 39, p. 148-174, 1997; AVRITZER, L.; RECAMN, M.; VENTURI,
G. O associativismo na cidade de So Paulo. In: AVRITZER, L. (Org.). A participao em
So Paulo. So Paulo: UNESP, 2004.

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

Repblica por Murilo de Carvalho ou sobre a formao de uma


cidadania regulada por Wanderley Guilhermedos Santos.
Esse discurso universitrio se encontrou, de um modo muito ambivalente, com o discurso poltico da terceira via do governo Fernando
Henrique Cardoso, justificando o desenvolvimento de novas formas
de cooperao entre o pblico e o privado. Muitas associaes foram
integradas aos dispositivos de poltica pblica esse processo conduziu a apreciaes variveis, indo da crtica da defeco, pelo Estado,
de suas misses de servio pblico e os riscos de desmanche dos
ganhos da cidadania desde o fim da ditadura,43 autoglorificao das
redes de ONGs que se tornaram pilares dessa nova sociedade civil.
Essas medidas tiveram por efeito o crescimento do lugar concedido
s associaes nas polticas pblicas. Essa nova distribuio de poder
conduziu a dois tipos de observaes: de um lado, a descrio das
experincias e a apreciao de suas novas contribues,44 particularmente na rea social;45 de outro, a constatao de formas perversas
com a obrigao de se associar visando a participao no planejamento
urbano46 ou a crtica da refilantropizao da questo social, sob o
pretexto de flexibilizao das polticas sociais.47
Desde os anos 1980, ns assistimos exploso das ONGs.48 Elas so
de tamanho reduzido e se dedicam a fornecer uma ajuda especializada
num determinado domnio (sade, educao, meio ambiente, violncia
OLIVEIRA, I. Crtica Razo Tralista. So Paulo: Boitempo, 2003.
ZALUAR, A. Excluso e polticas pblicas: dilemas tericos e alternativas pblicas. Revista
Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 12, n. 35, 1997; ______. Um debate disperso:
violncia e crime no Brasil da redemocratizao. So Paulo em Perspectiva, So Paulo, v. 13,
n. 3, p. 3-17, 1999; LUCHINI, A. de M.; SOUZA, M. D.; PINTO A. L. Aportes e limites da
perspectiva de redes de polticas pblicas: O caso da gesto da gua. Caderno de Pesquisas
em Administrao, So Paulo, v. 10, n. 2, p. 87-94, 2003.
45
ARRETCHE, M. T. S. Polticas sociais no Brasil: descentralizao em um Estado Federativo.
Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 14, n. 40, p. 111-141, 1999; SOUZA,
W. da S. Associaes civis em sade mental no Rio de Janeiro: democratizando os espaos
sociais. Cadernos de Sade Pblica, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 933-939, 2001; LOPES,
J. R. Terceiro setor: a organizao das polticas sociais e a nova esfera pblica. So Paulo
em Perspectiva, So Paulo, v. 18, n. 3, p. 57-66, 2004.
46
VARELLA, A. O dever de cidadania: polticas pblicas de planejamento urbano e
participao popular no Brasil. Captulo publicado neste livro.
47
YAZBECK, C. A poltica social brasileira nos 90: a refilantropizao da questo social.
Cadernos ABONG, [S.l.], 1995; TELLES, V. No fio da navalha: entre carncias e direitos.
So Paulo: Polis, 1998.
48
Para um panorama: FERNANDES, R. C. Privado porm pblico. Rio de Janeiro: RelumeDumar, 1994. p. 65-85. Ver tambm MOOUAH P. S. As ONGs: dos bastidores ao
centro do palco. Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 28, 1995.
43
44

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

etc.) ou a um grupo determinado (meninos de rua, Afro-Brasileiros,


populaes indgenas, mulheres etc.). Elas criam, ento, com o apoio
financeiro e logstico de fundaes filantrpicas ou de organismos
intergovernamentais, micro-organizaes, s vezes interligadas em
rede, trabalhando para reduzir situaes de injustia social ou para
garantir direitos cvicos ou polticos. Estudos foram publicados sobre
suas ligaes com o Movimento dos Sem-Terra,49 sobre as estratgias de desenvolvimento que elas apoiam50, sobre suas aes junto a
meninos de rua51 ou em favor da sade ou da ecologia52 etc. Mas as
pesquisas sobre seu funcionamento concreto, no campo, so raras e
dormem talvez nos relatrios internos financiados por suas matrizes.
3 - Paralelamente, o lxico do capital social se generalizou, relanado pelo sucesso de Bowling Alone de R. Putnam, e adotado desde
ento pelo Banco Mundial, por organizaes intergovernamentais e organizaes no-governamentais. O capital social torna-se
a panaceia para a recomposio de uma cultura participativa53
e as benfeitorias do desenvolvimento cvico se fariam sentir
nas redes de poltica social,54 assim como nas redes do terceiro
setor.55 A proximidade comunitria seria um fundamento para
esse bem raro que a confiana cvica, dos cidados entre si ou
diante das instituies.56 Mas pode-se aqui tambm se interrogar
sobre o sentido destes conceitos, a se constatar o forte grau de interconhecimento e de sociabilidade que prpria a certos bairros
desfavorecidos, nos quais floresce hoje todo tipo de delinquncia
49
50

51

52

53

54

55

56

GOHN, M. da G. Os Sem-Terra, ONGs e cidadania. So Paulo: Cortez, 2000.


LVARES, L.C. ONGs: uma alternativa aos descaminhos do desenvolvimentismo. Cadernos
da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 10, p. 39-61, 2000.
VALLADARES, L.; IMPELIZIERI, F. Ao invisvel: um censo a partir do Urbandata. Rio
de Janeiro: IUPERJ, 1992. (um censo a partir do Urbandata).
MATTOS, S. M. da Silva Nunes; DRUMMOND J. A. O terceiro setor como executor de
polticas pblicas: NGOs ambientalistas na Baa de Guanabara (1990-2001). Revista de
Sociologia e Poltica, So Paulo, v. 24, p. 177-192, 2005.
BAQUERO, M. Construindo uma outra sociedade: o capital social na estruturao de uma
cultura poltica participativa no Brasil. Revista de Sociologia e Poltica, So Paulo, v. 21, p.
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COSTA, M. A. N. Sinergia e capital social na construo de polticas sociais: a favela da
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FUKUYAMA, F. Trust: the social virtues and the creation of prosperity. New York: Free Press,
1995; et le recueil de textes de WARREN, M. E. (Ed.). Democracy and trust. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.

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organizada. O capital social seria desviado pelas associaes criminais?


A literatura sobre a democracia participativa e sobre a economia
solidria est igualmente em plena expanso. Ela se encontra, sob
muitos aspectos, com os outros domnios que acabamos de mencionar.
A participao remete ao ideal de uma cidadania ativa,57 e prolonga
a defesa dos movimentos populares e dos movimentos sociais que
emergiram desde o comeo dos anos 1980.58 Mais recentemente,
certo nmero de experimentos transformou essa problemtica: as organizaes de movimentos sociais esto, de modo mais institucional,
mas com o mesmo entusiasmo utpico, reenquadradas em relao a
polticas pblicas.59 E os sucessos relativos de certos conselhos gestores60 e oramentos participativos61 conduziram a reavaliar o alcance
em termos de democracia participativa, de underclass empowerment
e de civic governance.62 Resta que, se nos distanciamos dos projetos
normativos para observar de mais perto o que se passa, parece que as
prticas mais clssicas do clientelismo e do paternalismo continuam
a operar no prprio seio dos dispositivos cvicos mais citados63 as
57
58

59

60
61

62

63

BENEVIDES, M. V. A cidadania ativa. So Paulo: tica, 1991.


SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experincias, falas e lutas
dos trabalhadores da Grande So Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988;
KRISCHKE, P.; SCHERER-WARREN, I. (Org.). Uma revoluo no cotidiano?: os novos
movimentos sociais na Amrica do Sul. So Paulo: Brasiliense, 1987; e uma sntese de
P.Jacobi: Movimentos sociais urbanos no Brasil: reflexo sobre a literatura dos anos 70 e
80. BIB, Rio de Janeiro, v. 23, 1987.
TIRIBA, L. Economa popular y movimientos populares (y una vez ms el trabajo como
principio educativo). Contexto e Educao, So Paulo, v. 54, p. 53-79, 1999; FRANA
FILHO, G. Carvalho de. Economia solidria e movimentos sociais. In: MEDEIROS, A.;
SCHWENGBER, .; SCHIOCHET, V. (Org.). Polticas pblicas de economia solidria por
um outro desenvolvimento. Recife: Ed. da UFPE, 2006. v. 1, p. 59-108.
GOHN, M. da G. Conselhos gestores e participao sociopoltica. So Paulo: Cortez, 2001.
SOUSA SANTOS, B. de. Participatory budgeting in Porto Alegre: toward a redistributive
democracy. Politics and Society, Los Altos, v. 26, n. 4, p. 461-510, 1998; BAIOCCHI, G.
Participation, activism, and politics: the Porto Alegre experiment. Politics and Society, Los
Altos, v. 29, n. 1, p. 43-72, 2001; BAIOCCHI, G. (Ed.). Radicals in power: the workers
party and experiments in urban democracy in Brazil. London: Zed Books, 2002; AVRITZER,
L.; PIRES, R. R. Oramento participativo, efeitos distributivos e combate pobreza. Teoria
& Sociedade, Belo Horizonte, p. 68-89, 2005.
FUNG, A. Empowered participation: reinventing urban democracy. Princeton: Princeton
University Press, 2004. E as coletneas FUNG, A.; WRIGHT E. O. (Ed.). Deepening
democracy: institutional innovations in empowered participatory governance (The Real
Utopias Project IV). London: Verso, 2003; BACQU, M.-H.; REY, H.; SINTOMER, Y.
(Ed.). Gestion de proximit et dmocratie participative. Paris: La Dcouverte, 2005.
BEZERRA, M. O. Em nome das bases: poltica, favor e dependncia pessoal. Rio de
Janeiro: Relume-Dumar, 1999; ______. Corrupo: um estudo sobre poder publico e
relaes pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1995.

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perspectivas mais finas mostrando a difcil desvinculao dos processos participativos das modalidades da poltica comum.64
Enfim, seja em So Paulo em torno de P.Singer,65 no Mato Grosso66
ou na Bahia,67 em que particularidades regionais so reivindicadas
pela economia solidria,68 parece que os vages brasileiros esto
engatados ao trem da encenao de uma revoluo global. Uma sociedade civil global tece seu pano, atravs das transnational social
movement organizations e dos transnational advocacy networks.69 As
experincias brasileiras, diante dos Fruns Sociais, se encaixam assim
em imensas redes de circulao de informao, de coordenao e de
deliberao. O projeto claramente poltico. Um verdadeiro esforo
jurdico e terico , entretanto, conduzido para tentar delimitar as
categorias de economia solidria, economia popular, economia social
e terceiro setor70 e para apontar algumas das dificuldades do amlgama estatstico71 e analtico72 de todos os tipos de associaes, com
funes mltiplas e em contextos diferentes. J difcil juntar sob a
mesma rubrica entidades com disparate de status no campo do Direito:
associaes voluntrias, organizaes comunitrias, organizaes
no governamentais, instituies filantrpicas, fundaes, igrejas e
seitas, organizaes sociais (OS), projetos sociais desenvolvidos por
empresas, sindicatos etc. Mas logo que se recupera a complexidade
64

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68

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70

71

72

VIDAL, D. Dcentralisation infra-municipale, associations dhabitants et pouvoir local:


dpasser lopposition clientlisme/participation politique. In: LE BRIS, . (Dir.). Villes du
Sud. Paris: ditions Orstom, 1996. p. 131-146.
SINGER, P. Uma utopia militante. So Paulo: Vozes, 1999; ______. Introduo economia
solidria. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2002; et SINGER, P.; SOUZA, A. R. (Org.).
A economia solidria no Brasil: a autogesto como resposta ao desemprego. So Paulo:
Contexto, 2000.
FERREIRA S, C. A. Economia solidria no Mato Grosso do Sul: desafios e possibilidades.
Monografia Ministrio do Trabalho e Emprego, Centro Universitario do Campo Grande, MS,
2005.
FRANA FILHO, G. Carvalho de. Teoria e prtica em economia solidria: problemtica,
desafios e vocao. Revue du MAUSS, [S.l.], 8 maio 2007. Disponvel em: <http://www.
journaldumauss.net/spip.php?article83>.
Ver BRASIL. Ministrio do Trabalho e Emprego. Atlas da economia solidria. Braslia, DF,
2005.
KECK, M. E.; SIKKINK, K. Activists beyond borders: advocacy networks in international
politics. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1998.
Ver o interessante esforo de cirurgia conceitual de Genauto Carvalho de Frana Filho:
Terceiro Setor, economia social, economia solidria e economia popular: traando fronteiras
conceituais. Analise & Dados, Salvador, v. 12, n. 1, p. 9-19, 2001.
MADEIRA, F. R.; BIANCARDI, M. R. O desafio das estatsticas do Terceiro Setor. So
Paulo em Perspectiva, So Paulo, v. 17, n. 3-4, p. 177-184, 2003.
SANTOS DE SOUSA, T. A. Pensar pelo avesso o Terceiro Setor: mitos, dilemas e perspectivas
da ao social organizada nas polticas sociais. Lusotopie, [S.l.], n. 1, p. 241-262, 2002.

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de contextos ambguos e hbridos, essas cises tornam-se ainda mais


problemticas.
3.2 Restituir a complexidade de contextos ambguos e hbridos
Mas falar de associaes em geral ainda demasiadamente vago. Esse
tipo de organizao no homogeneo: pode tomar todos os tamanhos e
formas, visar toda sorte de objetivos, participar de diferentes conflitos
e ocupar todos os lugares em relao ao Estado e ao mercado.73 A
maioria das pesquisas sobre as associaes nos dias atuais advm na
cincia econmica, em particular na economia do terceiro setor.74 Ou
ento, elas tomam uma forma, na Frana, de uma scio-histria do poltico.75 Em todos esses casos, a arena pblica reduzida a um campo
ou a um mercado e onde o agente determinado por seu percurso num
espao estrutural de posies sociais e limitado a competncias de
clculo de investimento e de lucro. Outra abordagem, mais sofisticada,
levada a cabo pela equipe de J.Ion. Ela mostra o advento de uma
militncia irregular, fluda e voltil, de indivduos que se engajam
e se desengajam de acordo com as circunstncias, que se implicam
limitadamente, preocupados no tanto com questes ideolgicas, mas
com assuntos do cotidiano. Mesmo permanecendo alguns nichos
identitrios,76 ligadas s federaes ou organizaes, assiste-se
emergncia de novas formas de individualizao, e de novas modalidades de engajamento de cidados ativos,77 que se referem a bens
pblicos, com referncia distanciada s coletividades. A recusa das
formas centralizadas, hierarquizadas e burocratizadas de regulao
e de controle poltico e a implicao em organizaes horizontais e
reticulares, sem obrigao de crer num catequismo ou de pertencer a
um aparelho institucional, acompanha um movimento de personalizao, de tecnicizao e de consumerizao do engajamento
pblico. Ion78 prope uma perspetiva, em parte convergente, em parte
distinta, das hipteses de T.Skocpol sobre o crescimento do setor de
73

74

75
76
77

78

BLAIS, J. P.; GILLIO, C.; ION, J. Cadre de vie, environnement et dynamiques associatives.
Paris: PUCA, 2001; ______. Actions associatives, solidarits et territoires. St tienne:
Publications de lUniversit de St tienne, 2001.
Ver, por exemplo, os relatrios anuais da Global Civil Society, editadas por H.Anheier,
M.Glasius, M.Kaldor.
OFFERLE, M. Sociologie des groupes dintrt. Paris: Montchrestien, 1994.
ION, J. La fin des militants. Paris: ditions de lAtelier, 1997. p. 91.
ION, J.; PERONI, M. Engagement public et exposition de la personne. La Tour dAigues:
Editions de lAube, 1997.
ION, J. Affranchissements et engagements personnels. In: ______. (Dir.). Lengagement au
pluriel. Saint-tienne: Presses de lUniversit de Saint-tienne, 2001.

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organizaes de movimentos sociais, funcionando como empresas,


grupos de interesses ou de grupos de presses,79 e das hipteses de
R.Wuthnow sobre a mudana dos regimes de individualizao e a
fragmentao das comunidades polticas.80 Tudo isso apoiado em
dados de pesquisa de campo de excelente qualidade.
Outras vias so imaginveis para compreender o funcionamento interno das associaes e sua inscrio em arenas pblicas e, numa escala
micro, para analisar os contextos hbridos da experincia e da ao que
as caracterizam. O objetivo de ultrapassar a retrica do interesse e a
retrica do individualismo ou, ao menos, de reenquadr-los. Esses
modos de pensar tendem a reduzir sobre um s eixo a complexidade
de regimes de engajamento, com suas formas de composio, de
tenso, de arbitragem e de compromisso, com suas arquiteturas de
atividades, de laos e de projetos e com seus dilemas de direito, de
obrigao e de responsabilidade. preciso procurar outros modos
de investigar e raciocinar. Alguns trabalhos tm comeado a ir nesse
sentido, seja problematizando a gramtica do self-interest mostrando
seus limites e seus laos com outras gramticas segundo as situaes
de expresso;81 seja descobrindo, mediante as baterias de entrevistas, a
ambivalncia de avaliaes da ao dos atores e de seus vocabulrios
de compaixo.82 Mas pode-se tentar fazer, praticando uma observao etnogrfica, in situ, da arquitetura de regimes de engajamento,
de cooordenao e de justificao, em que se encontram as atividades dos membros das associaes. O trabalho de desvinculao das
lgicas de racionalidade e de legitimidade que governam as aes e
interaes poderia, por exemplo, se inspirar no modelo de cidades
de L.Boltanski e L.Thvenot cidades de inspirao, mercantil,
industrial, de opinio, domstica e cvica.83 As associaes aparecem, ento, como organizaes compsitas,84 ordenadas ao redor
de frmulas de coordenao entre pessoas e coisas, reposando sobre
compromissos em torno de convenes comuns. A confrontao a
79

80

81
82

83
84

SKOCPOL, T. Diminished democracy: from membership to management in american civic


life. Norman: University of Oklahoma, 2003.
WUTHNOW, R. Loose connections: joining together in americas fragmented communities.
Cambridge: Harvard University Press, 1998.
MANSBRIDGE, J. (Ed.). Beyond self-interest. Chicago: University of Chicago Press, 1990.
WUTHNOW, R. Acts of compassion: caring for others and helping ourselves. Princeton:
Princeton University Press, 1991.
BOLTANSKI, L.; THEVENOT, L. De la justification. Paris: Gallimard, 1991.
THEVENOT, L. Laction au pluriel: Sovciologie des rgimes dengagement. Paris: La
Dcouverte, 2005.

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uma situao problemtica requer que se coloque em evidncia os


procedimentos de transao por meio dos quais os atores reduzem
suas diferenas, apaziguam seus litgios e disputas ou, pelo menos,
ocorrem de uma forma vivel, embora conflitual, de organizao de
suas experincias e de suas atividades. Eles estabelecem conjuntos de
argumentos como modos prticos de se engajarem numa situao, de
configur-las por seus projetos, de selecionar finalidades e objetivos e
constituindo o que recurso, oportunidade ou constrangimento
da ao na ao, de se articularem com seus pares numa dinmica de
cooperao e competio. Por outro lado, alm dessa dinmica pblica
de justificao, de denunciao e de reivindicao, toda uma srie de
modalidades de experincia e de ao pode ser pensada sobre o ttulo
de regimes do prximo onde primam os laos de familiaridade
com as coisas e com as pessoas.
Portanto, um aspecto prprio das associaes que elas so constitudas por contextos ambguos,85 nos quais a especificao das
identidades e das responsabilidades, das alianas e dos conflitos, de
projetos a realizar e de procedimentos a seguir uma fonte de perplexidade, como dizia Jane Addams,86 tanto para os atores quanto para
os observadores. Segundo as modelizaes do mercado filantrpico,
os empresrios associativos sabem, primeira vista, reconhecer as
incitaes seletivas e calcular os investimentos rentveis. Segundo
as modelisaes da vida administrativa, os funcionrios associativos
obedecem, sem um estado de alma, s regras universais e adotam,
por exemplo, os cannes de equidade e de justia social determinados pelo Estado. Segundo as modelizaes do espao pblico, os
cidados associativos sabem identificar o bem pblico em termos
de suas indagaes, experimentaes e deliberaes, no sentido de
John Dewey,87 e se colocar virtuosamente a seu servio. Mas com as
associaes, temos muitas vezes situaes mais problemticas em que
os atores no sabem sempre claramente a qual regime de ao e de
interao vo-se referir na prtica. Um trabalho mais fino de anlise
de situao se impe como crucial. O trabalho de campo mostra,
assim, o entrelaamento de diferentes lgicas:
85

86
87

ELIASOPH, N. Making volunteers: civic life after Welfares end. Princeton: Princeton
University Press, 2011. No prelo. A autora escreve sobre scrambled moral worlds, blended
organizations e hybrid governance.
ADDAMS, J. Democracy and social ethics. New York: Macmillan, 1907.
DEWEY, J. The public and its problems. New York: Holt, 1927.

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Uma lgica de empresa comercial: realisar lucros sobre um mercado, produzir e vender ao melhor preo, acumular capitais ao
mximo, otimizar a utilizao de recursos humanos, obedecer a
uma racionalidade instrumental e utilitria e levar em conta as
insatisfaes dos clientes. A associao ser submetida aos imperativos da produtividade e da rentabilidade.
Uma lgica de organizao industrial: raciocinar em termos de
performances, estabelecer mtodos de medida e de controle, estandartizar os produtos, estabilizar o meio ambiente, reduzir as
incertezas, efetuar os investimentos tcnicos a longo prazo, programar os novos produtos e as novas organizaes do trabalho.
A associao ser regida pelos princpios da eficincia e da previsibilidade.
Uma lgica de servio pblico: aplicar os regulamentos de gesto pblica, seguir as finalidades do interesse geral, respeitar os
circuitos hierrquicos de deciso e uma diviso funcional do trabalho, se alinhar conforme as grades da qualificao, os conjuntos de objetivos e os mtodos de trabalho impostos pelo poder
pblico. A associao se alinha de acordo com os cnones da
administrao pblica para produzir e distribuir os servios.
Uma lgica de representao democrtica: fundar a legitimidade
no interior da associao sobre a sano pelo voto e sobre a
obedincia lei, respeitar o princpio de maioridade aps o voto,
aceitar as decises tomadas pelos representantes; e, fora das
associaes, destituir os governantes em caso de abuso de poder,
prestar contas opinio pblica, ter uma funo de contra poder no
que tange ao abuso de funcionrios e polticos profissionais.
Uma lgica de soberania popular, s vezes combinada com uma
lgica da racionalidade comunicacional: participao, deliberao e deciso devem ser acessveis a todos os membros da associao, num processo de debate entre indivduos livres e iguais,
com vistas a atingir o consenso e o consentimento da ordem pblica. A associao o lugar de realizao de uma forma de democracia local, seno de democracia direta.
Uma lgica de coeso social: ensinar os indivduos que eles tm
competncias e conhecimentos teis a todos, reativar um senso
de cidadania social em que cada um tenha direitos e deveres,
obrigaes mtuas com seus pares, responsabilidades vis--vis
coletividade e, em contrapartida, em que cada um tenha um lugar
no jogo da gratido e do reconhecimento. A associao recria os
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laos sociais e renova as relaes contra a entropia do individualismo.


Uma lgica da vida domstica: ocupar-se dos afazeres da vida
cotidiana, apoiar-se sobre as relaes de confiana entre pessoas
na vida privada, partilhar da mesma histria e do mesmo territrio; mobilizar o savoir-faire ancorado numa experincia do familiar, fazer crescer uma generosidade entre vizinhos e amigos,
fundar uma autoridade sobre a frequentao de longa durao,
privilegiar o prazer da troca e da convivncia. A associao ser
um prolongamento do oikos, o lugar caloroso da casa e da vizinhana, podendo desencadear um retorno ao comunitarismo, aos
antpodas da abertura ao pblico.
Uma lgica da realizao pessoal: encontrar os modos de realizao prpria, sob a forma da felicidade pessoal, do xito econmico, da pesquisa teraputica ou da autenticidade expressiva;
privilegiar a expanso do Self como bem supremo, cultivar seu
petit jardin, buscar seu caminho, amar seus prximos e cuidar
de seu ambiente; dar, receber e retribuir a fim de se descobrir e
de ser feliz. A associao ser o horizonte para uns, de autonomia
individual, para outros, de narcisismo expressivo.
Uma lgica da comunidade religiosa: refundar, por meio da prtica da reza e do respeito aos ritos, uma moral da vida cotidiana;
extirpar o mal, comunicar-se com os espritos, elevar sua alma,
salvar a humanidade. Dar ajuda mtua e solidariedade o sentido de um dom de amor entre fiis; relacionar os laos civis ao
pertencimento comum a um mundo transcendente; articular, em
certos casos, a salvao individual com a possibilidade de enriquecimento e de prosperidade econmica. A associao vivida
como uma comunidade terrestre, prefigurando a Cidade ou o
Reino de Deus.
A vida associativa, portanto, no simples. Esses diferentes regimes
de engajamento formam par com formas de proximidade e de desprendimento, com modos de individualizao e de cooperao, com
dinmicas de racionalizao e de legitimao. O cuidado em mostrar
seu entrelaamento em contextos ambguos acaba com a reduo
das associaes a empresas ou a burocracias, revela seu carter de
organizaes compsitas e insiste sobre sua participao em fruns
hbridos.88 Em vrios estudos de caso que acompanham as associa88

CALLON, M.; LASCOUMES, P.; BARTHE, Y. Agir dans un monde incertain: essai sur la
dmocratie technique. Paris: Seuil, 2001.

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es de bairro, podemos mostrar que o tipo de relao com o pblico


que ali se encontra no somente aquele de um servio social ou de
uma clientela. A relao de confiana e de simpatia, s vezes de rancor
e de reprovao, que existe entre os membros de uma associao e
os moradores de um bairro no tem a impersonalidade de uma lgica
econmica ou burocrtica: ela prpria de vizinhos e tem seu lugar
por meio de provas compartilhadas. Da mesma forma, o tipo de sociabilidade entre beneficentes se faz, antes de tudo, em um meio de
interconhecimento, prolongado em estima e em amizade, segundo
as afinidades, fora do quadro das associaes. A sociabilidade entre
benevolentes, voluntrios ou assalariados, no pode ser qualificada
em termos de mobilizao econmica de recursos, de combinao
otimizada de competncias ou de coordenao industrial de atividades. Quanto ao tipo de engajamento dos membros, no tem por razo
declarada a pesquisa estratgica voltada para um lucro econmico,
poltico ou simblico. No somente o gosto pelo dinheiro, pelo poder
ou pelo prestgio que mobiliza os membros da associao. Os motivos
recorrentes so seus sensos de responsabilidade e da solidariedade,
sua recusa injustia social, sua preocupao com o bem pblico, sua
indignao contra a negligncia poltica, seu desejo de participar dos
assuntos pblicos, sua ligao vida do bairro etc. E encontramos,
nas representaes de suas aes e nas justificativas que eles do, as
formas de tenso entre o vnculo local na vizinhana e a abertura a
um espao cvico e poltico, entre a inscrio concreta em uma rede
de conhecimentos interpessoais e a participao abstrata no registro
do direito e da cidadania. Todos esses elementos podem ser observados, descritos e analisados em situaes diversas por uma pesquisa
de campo. E sua avaliao poltica requer um momento dedicado
pesquisa de campo.
3.3 Seguir o processo de configurao de arenas pblicas
No lugar de tomar como ponto de partida uma associao, como uma
espcie de microorganismo ou de microcomunidade, de pequena
sociedade destacada da grande sociedade, como dizia Tocqueville, e dotada de uma microcultura e de uma identidade coletiva, pode
ser interessante examinar como a associao se faz como uma arena
intraorganizacional em uma arena interorganizacional, promovendo
um certo nmero de interaes, de aes e de atividades.
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As mobilizaes associativas jamais so uma coisa simples. As


pesquisas mais recentes recorrem a descries da ao coletiva que
insistem nas mltiplas limitaes do campo de ao, na indeciso e
na indeterminao das regras do jogo, no equvoco e na ambiguidade
das preferncias e das motivaes. Elas mostram tambm a variabilidade dos equilbrios de alianas e de oposies, a transformao no
tempo dos objetivos declarados, a contingncia dos incidentes, dos
encontros e dos acontecimentos. Assim, as associaes so menos
sistemas de funes bem integradas do que produtos instveis, sempre em transformao, de nexos de aes e de interaes em contato
com uma ordem local. Elas so arenas de troca e de conflito, de
cooperao e de competio, de inveno de solues a problemas,
de negociao de convenes coletivas e de composio de racionalidades mltiplas. Estas anarquias organizadas89 no tm um
objetivo, uma estratgia e uma ideologia. Elas so atravessadas por
ambiguidades e, s vezes, por contradies. Elas podem perseguir
diversas finalidades no compatveis entre si e ser confrontadas com
os dilemas da escolha dos meios em relao aos fins. Elas podem
ser assediadas por tenses entre objetivos intermedirios e objetivos
ltimos, ou entre temporalidades a curto e a longo prazo, ou, ainda,
dilaceradas por conflitos sobre questes de princpios e de procedimentos e por lutas internas pelo poder da organizao. No se deve,
ento, superestimar a unidade e a continuidade das associaes essa
unidade e essa continuidade so um problema prtico que elas no
cessam de trabalhar para resolver.
A questo pode ser colocada ainda de outra forma. A organizao
mantm junta uma pluralidade de lgicas de racionalidade e de
legitimidade.90 Pode-se voltar tipologia exposta no pargrafo precedente, simplificando-a, seguindo uma tripartio entre regimes da
justificao pblica, do plano racional e da acomodao familiar.91 As
associaes podem ter formas, aspectos e estilos, modos de produo
de conhecimento, de tomada de deciso, de exerccio do julgamento
e de resoluo dos problemas extremamente diversos. Certas associaes privilegiam a personalizao das coisas e das pessoas, requerem
usos e ajustes em familiaridade, se apoiam em relaes de parentesco
e em laos interpessoais para construir seus projetos, garantir um grau
89

90
91

COHEN, M.; MARCH, J.; OLSEN, J. A garbage can model of organizational choice.
Administrative Science Quarterly, [S.l.], v. 17, n. 1, p. 1-25, 1972.
LAFAYE, C. La sociologie des organisations. Paris: Nathan, 1996.
THEVENOT, L. Laction au pluriel. Paris: La Dcouverte, 2006.

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de confiana entre os membros e gerenciar os problemas de reputao


e de autoridade.92 Elas podem distribuir os saberes sobre redes de
pessoas, corrigir os problemas locais pelos milagres do jeitinho, sem
mobilizar dispositivos de generalizao. Outras associaes, por
outro lado, pensam os agentes como operadores de funes annimas,
que executam procedimentos por meio dos postos e dos instrumentos
autnomos de medida e de avaliao, sem que sejam postos em jogo
seus laos interpessoais. Elas insistem na padronizao dos postos
e das atividades, so regidas por procedimentos rigorosos de coleta
e de centralizao de informao, de anlise e de generalizao das
concluses, de coordenao e de planificao da ao. Todos os tipos
de tenses ou de combinaes podem se instalar no seio das
ONGs, que obedecem a regras de funcionamento de gesto, logstica
e oramento estabelecidas, por exemplo, no Canad e na Noruega, e
que, ao mesmo tempo, tem de compor com apoios locais, hierarquias
de status, dependncias polticas, hbitos administrativos e competncias cvicas que no so aquelas que elas anteciparam.
Outra diferena possvel: certas associaes prestam contas do que
elas fazem em nome do self-interest, no hesitam em se pensar
como a expresso de interesses particulares, se querem a voz de
uma comunidade sem se preocupar em convencer pessoas que lhe
so estranhas, se batem para alcanar bens que sejam teis a grupos
exclusivos, sem jamais procurar generalizar suas reivindicaes. A
ao associativa , antes de tudo, vivida como um modo de defesa
de bens e pessoas prximas o territrio investido por uma favela,
a economia de uma colnia de pescadores, a congada de um grupo
de negros do interior, a parte da fazenda invadida pelos sem-terra.
O coletivo remete quase sempre a uma pequena comunidade, raramente ao pblico sem restrio. Outras, por sua vez, denunciam esse
primeiro tipo de associao como revelador da sndrome de NIMBY
e, obedecendo a gramticas de justificao pblica, proibem-se de
inclinar-se para o lado dos interesses particulares, sejam eles de uma
pessoa ou de uma comunidade. Elas buscam a universalizao de suas
opinies, de suas denncias e de suas reivindicaes e, mais do que se
apoiar em redes de relaes privadas, tentam estabelecer dispositivos
pblicos de resoluo de problemas. A ao associativa se apresenta,
ento, como porta-voz de bens pblicos sejam eles, retomando os
exemplos acima, o direito moradia e a exigncia de justia social
92

COMERFORD, J. C. Como uma famlia: sociabilidade, territrios de parentesco e


sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2003.

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em favor dos moradores da favela; a salvaguarda de um patrimnio


ambiental e cultural, no caso da aldeia de pescadores; a promoo
da diversidade multicultural e a redescoberta das razes africanas do
povo brasileiro; e, finalmente, o direito de uso das terras em oposio
propriedade especulativa e a opo pela reforma agrria, em nome
de uma redistribuio das riquezas nacionais.
Imaginamos a multiplicidade das formas associativas que podemos
encontrar. E podemos presumir que elas sero relativamente diferentes
na Frana, no Brasil e nos Estados Unidos sem que se possa, por
isso, generalizar rapidamente, invocando tradies ou culturas
nacionais. A anlise situacional e o estudo de caso so antdotos contra
as facilidades da tipificao, que rapidamente se tornam esteretipos:
a Amrica, reino da associao tocqueviliana, livre e igualitria, em
que a sociedade civil constitui um verdadeiro contrapoder; a Frana,
terra do jacobinismo, ainda dificultada por hbitos do Antigo Regime
e submetida onipotncia poltica de seu Estado; o Brasil, sociedade
relacional, na qual as facilidades da sociabilidade se pagam pelas
contores de uma desigualdade estatutria, em que as alegrias da
cordialidade caminham junto s formas de excluso da cidadania.
Essas proposies no so nem verdadeiras, nem falsas: viraram senso
comum. Elas arriscam se precipitar em evidncias que impedem de ver
a diversidade dos casos no campo. Em particular, elas correm o risco
de reificar e de exotizar certos esquemas da experincia e da ao e de
favorecer a crena em um excepcionalismo brasileiro93 como outros
defendem uma excepcionalidade francesa ou norte-americana. Elas
homogenezam, por outro lado, o que se passa em Belm, Porto Alegre
ou Rio de Janeiro invocando uma cultura brasileira, enquanto seria
prefervel observar as singularidades locais; e, mais adiante ainda,
identificar mundos profissionais ou institucionais, ou mundos ligados
ao bairro, classe ou religio, que desfazem essa iluso culturalista.
Muitas vezes, se nos dedicamos a uma anlise de situaes, e se nos
alinhamos sobre os critrios de pertinncia dos atores, percebemos
que limitaes tcnicas ou jurdicas, arranjos ecolgicos ou polticos,
convenes coletivas ou hbitos adquiridos em pequena escala, frequentemente, explicam bem melhor as escolhas e as decises do que
93

Isso no invalida as numerosas propostas na literatura histrica e antropolgica sobre uma


suposta civilizao brasileira ou uma cultura brasileira por autores fundadores, como
Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Darcy Ribeiro, Caio PradoJr,
Roberto da Matta, entre outros. O ponto aqui no de recusar seus intuitos e anlises, mas
sim de retom-los, experiment-los e coloc-los prova no trabalho de campo.

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a referncia a uma cultura.94 E o jogo de semelhanas e diferenas


no passa tanto mais por uma tipologia das culturas, mais ou menos
cvicas, fundadas em algumas variveis formais, como a literatura
sobre o desenvolvimento poltico ou sobre a transio democrtica
tendia a fazer, do que por comparaes contnuas entre casos, dos
quais vo progressivamente emergir dimenses de generalidade.95
No lugar das anlises que comeam em termos de tradio comum
ou de cultura partilhada, uma abordagem em termos de arenas
pblicas desenvolve uma perspectiva pragmatista, para compreender
como se configuram associaes. Ou seja: uma focalizao sobre os
sentidos em construo nas situaes de ao e de interao, mais
do que nas representaes coletivas suspensas no ar; uma ateno a
situaes analisadas como processos tendo sua dinmica prpria,
mais do que como estruturas objetivadas cujas situaes seriam sua
sombra; uma percepo das margens de manobra e de arranjo dos
constrangimentos ecolgicos das situaes, mais do que a insistncia
nas formas de determinao e de reproduo das situaes.
As associaes se inscrevem em arenas interorganizacionais, povoadas
por outras associaes, por empresas e instituies, que constituem seu
ambiente. Elas so ligadas entre si por sua preocupao compartilhada
por uma situao problemtica. Elas entram em relaes de cooperao e de competio com aliados ocasionais e participantes potenciais,
com a mdia, as empresas privadas e as agncias pblicas. a)Nessas
arenas interorganizacionais, uma grande parte das relaes entre as
diferentes partes passa por processos de seleo e de concorrncia,
em redes de interdependncia funcional e, s vezes, em espaos de
concentrao geogrfica. Elas tm entre si interaes de barganha,
de regateio96 ou de negociao,97 ou entretm interaes de rivalidade estratgica para ficar nas metforas mercantil ou guerreira;
b)Mas as relaes de interesse e de fora se compem a partir das
redes de significados. Alguns falam de culturas organizacionais,
que se reproduzem, se imitam e se hibridizam, que se inventam e se
propagam de uma organizao a outra e que, s vezes, se alinham
94

95

96
97

Cf. ELIASOPH, N.; LICHTERMAN P. Culture in Interaction. American Journal of Sociology,


New York, v. 108, n. 4, p. 735-794, 2003.
Sobre esse problema epistemolgico, ver RAGIN, C.; BECKER, H. (Ed.). What is a case?:
exploring the foundations of social inquiry. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
WILSON, J. Q. Political organizations. New York: Basic Books, 1973.
STRAUSS, A. Negotiations: varieties, contexts, processes, and social order. San Francisco:
Jossey-Bass, 1978.

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umas s outras. Sem se iludir com a unidade e a continuidade dessas


culturas organizacionais, podem-se observar os modos de fazer e
de dizer que acabam por caracterizar as associaes, que definem o
estilo das relaes que ali ocorrem e que traam fronteiras morais98
com seu exterior; c)A dimenso do sentido entra tambm em conta
com a noo de gramticas. As associaes no fazem nada alm de
jogar com recursos simblicos a fim de construir a realidade social
com fins estratgicos: elas devem respeitar os constrangimentos da
justificao pblica que pesam sobre todos os atores, que variam
segundo os lugares e os momentos de suas performances. Faltar ou
ir contra essas regras de gramtica, quando a lei no simplesmente
a do mais forte, pode desacreditar e anular os esforos do melhor
estrategista; d)Alm disso, em pontos muito precisos, litgios aparecem entre as partes sobre o diagnstico ou prognstico das situaes,
mas tambm sobre a legitimidade relativa dos objetivos e dos meios,
sobre as identidades, os direitos e os deveres dos atores e sobre as
consequncias morais e polticas que decorrero de seus atos. Quanto
mais nos afastamos de campos nos quais primam a Realpolitk ou o
livre mercado, mais se multiplicam situaes de prova em que outros
critrios de compreenso, de antecipao e de avaliao, alm da fora
ou do interesse, so postos em prtica.
A investigao e a pesquisa sobre as arenas pblicas passam por uma
sociologia poltica e moral e, se possvel, por uma etnografia de
situaes de prova, de emergncia e de crise, de litgio ou de disputa,
de processo ou de controvrsia. Como se estabelecem padres de
equivalncia e escalas de medida que permitem lidar com as mesmas
situaes para lhes avaliar de modo combinado? Como se elaboram
instrumentos de categorizao, de qualificao e de quantificao e
como se estabilizam verses mais ou menos aceitveis de um problema a resolver? Por quais vias se constituem estratgias de conflitos e
pontos de controvrsia, e emergem figuras de culpados e de vtimas,
de defensores e de reparadores? Trata-se, ento, menos de alfinetar,
moda do entomologista, as associaes, que seriam, no caso, uma
espcie de animal social, do que de seguir, maneira do cineasta, os
cursos da ao em vias de se fazer, e de mostrar como esses cursos
de ao se encadeiam uns aos outros numa arena pblica. Uma arena pblica no um espao-tempo uniforme e homogneo. Ela se
98

LAMONT, M.; MOLNAR, V. The study of boundaries across the social sciences. Annual
Review of Sociology, Palo Alto, v. 28, p. 167-195, 2002.

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apoia em uma multiplicidade de cenas e seus bastidores,99 todas sob


a alada de anlises de situao. Uma perspectiva microssociolgica
e pragmatista abandona uma viso objetiva, de sobrevoo, sobre o
espao-tempo pblico. Ela tenta recuper-lo fazendo, no trabalho
de sua configurao, a sua unificao e sua legitimao por feixes
de atividades e interaes. Os teatros de operao e os campos de
manobra so mltiplos. Podemos orden-los em torno do processo de
emergncia, de estabilizao, de institucionalizao e de resoluo de
problemas pblicos e de todas as formas de transaes que operam
em paralelo nos bastidores, mais ou menos escondidos do olhar do
pblico.100 Uma arena pblica se articula, assim, por intermdio das
formas de mobilizao coletiva (3.3.1), dos estados da opinio pblica
(3.3.2) e dos dispositivos de ao pblica (3.3.3). As intervenes
das associaes devem ser seguidas em cada um desses domnios.
3.3.1. Organizaes: mobilizaes coletivas e dinmicas
de institucionalizao
Uma associao no se encontra jamais isolada. Ela participa de
agrupamentos, blocos ou redes de associaes, diante das quais ela se
posiciona. Um exemplo so os grupos de interesse que se constituem
como grupos de presso junto s Cmaras de Comrcio e de Indstria
ou junto aos polticos locais ou nacionais; eles negociam interesses, s
vezes nos bastidores, em um complexo jogo de influncia que envolve
negociao, ddivas, barganhas, intimidao, corrupo, formando
coletivos que passam a constituir alianas e entram em conflitos com
outras organizaes e instituies. Um outro exemplo paradigmtico
pode ser os movimentos de denncia e de reivindicao coletiva que
tomam corpo, cujas vozes adquirem visibilidade na arena pblica. Eles
formulam crticas, diagnsticos e prognsticos para o pblico; contam
fbulas morais, produzem depoimentos pessoais, reescrevem relatos
histricos, desenham uma ordem dos possveis. Em certas circuns-

Sobre a metfora dramatrgica de Goffman, ver: The presentation of self in everyday life.
Nova York: Doubleday, Anchor Books, 1959 (Traduo: A representao do Eu na vida
cotidiana. Petrpolis, RJ: Vozes, 1975); ______. Behavior in public places: notes on the
social organization of gatherings. Nova York: Free Press, 1963.
100
CEFA, D. Quest-ce quune arne publique?: quelques pistes pour une approche pragmatiste.
In: CEFA, D., JOSEPH, I. (Dir.) Lhritage du pragmatisme: conflit durbanit et preuves
du civisme. [S.l.]: Ed. de Laube, 2002. p. 51-82.
99

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tncias, estes coletivos chegam eles prprios a se institucionalizar.101


Eles podem agregar-se a sindicatos ou a partidos, quando no so
criados pelos mesmos, podendo tambm se transformar num outro
tipo de estrutura organizacional se nos remetemos, por exemplo,
trajetria de um certo nmero de movimentos e sua transformao
em CUT ou em PT no fim dos anos 1970.102 No se deve, ento,
ter uma viso romntica das associaes como se elas escapassem
s limitaes do campo econmico, social ou poltico, ou fossem
preservadas da lei de bronze da oligarquia, assegurando formas
de liberdade e de reciprocidade que no so encontradas em outros
domnios da sociedade. Elas so submetidas s dinmicas descritas
pela sociologia das organizaes, particularmente de isomorfismo
institucional,103 seja do alinhamento sobre as empresas comerciais ou
sobre as burocracias estatais. As formas de competio privada ou de
regulamentao pblica que pesam sobre as associaes devem ser
observadas com um olhar microssociolgico.
Cada associao apresenta, ento, um certo nmero de fachadas,
variveis segundo as estratgias de publicizao que ela escolhe. E
ela pode conhecer transformaes de sua estrutura organizacional no
decorrer do tempo. preciso descrever, se possvel etnograficamente,
as atividades fora da cena (que vo dos simples laos de sociabilidade
entre vizinhos ou amigos s preparaes em segredo das estratgias
polticas adotadas), e as performances pblicas (seja por participaes
pessoais a reunies ou manifestaes, seja por tomadas de posio de
seus porta-vozes). A associao deve se tornar visvel no desenrolar de
uma multiplicidade de situaes de informao, de recrutamento e de
mobilizao. Ela combina transaes de todos os tipos nos bastidores
e atividades de debate, de negociao e de deliberao em pblico.
Ela requer laos de coordenao, de aliana e de conflito, enfim, com
outras associaes nas arenas interorganizacionais. Neste registro, os
modelos de sociologia da ao coletiva anlise da mobilizao dos
recursos, das organizaes e das redes, das formas culturais e identitGIUGNI, M.; MCADAM, D.; TILLY, C. (Ed.). From contention to democracy. Lanham:
Rowman & Littlefield, 1998; GOLDSTONE, J. (Ed.). States, parties and social movements.
New York: Cambridge University Press, 2003.
102
KECK, M. The workers party and democratization in Brazil. New Haven: Yale University
Press, 1992; RODRIGUEZ, I. J. Sindicalismo e poltica: a trajetria da CUT. So Paulo:
Scritta-FAPESP, 1997.
103
DIMAGGIO, P. J.; POWELL, W. W. The Iron cage revisited: institutional isomorphism and
collective rationality in organizational fields. American Sociological Review, Aliso Viejo,
v. 48, p. 147-160, 1983.
101

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rias etc. podem ser teis. Mas outras fontes de anlise, normalmente
negligenciadas por esta literatura, como a antropologia das relaes de
parentesco, o estudo de comunidades locais, a anlise dos simbolismos
religiosos, a etnografia da comunicao comum e a microssociologia
dos espaos pblicos, so necessrias.
3.3.2. Teatros do sentimento e da opinio: problemas pblicos
e agendas miditicas
As associaes so um vetor importante nos processos de constituio
da opinio pblica, no no sentido das pesquisas quantitativas de opinio, mas nos termos de uma prgmatica dos pblicos, de maior ou
menor tamanho, que investem em temas de interesse e de preocupao
comum sociologia pragmtica. A emergncia de um problema pblico
no simplesmente cognitiva. Ela envolve afetividades, sensibilidades
e moralidades coletivas; envolve experimentaes de sentimentos de
amor, de dio, de medo, de injustia, de esperana, de fatalidade, de
entusiasmo e de transtorno, que j so formas de definio de situaes
sociais e que j tocam o senso comum. Ela movimenta as referncias
sensveis por meio das quais as informaes so filtradas e ordenadas,
no em quadros racionais ou intelectuais, mas nos quadros da percepo
imediata ou da inferncia prtica. Ela induz paisagens normativas, articuladas em torno de categorias morais, nas quais o conflito de interesse
apagado pelas questes de decncia e de respeito, de humilhao e de
reconhecimento, de desprezo e de honra, de liberdade e de justia. Esses
diferentes elementos so constitutivos do que chamamos opinies
pblicas. As associaes so caixas de ressonncia desse processo.
Mobilizando-se, elas engendram novos personagens as minorias
visveis, as crianas vtimas de violncia, as vacas loucas ou as
nuvens radioativas e um conjunto de histrias, de racionalizao
e de argumentos que esto relacionados com esses novos cenrios e
atores. Elas difundem formas de compaixo e de indignao, de desconfiana poltica ou de crena ideolgica e desenham de novo o mapa das
condutas boas e ms, tolerveis e inaceitveis. Ao partir dessas novas
gramticas, so relanados outros fluxos de protesto que exprimem
sentimentos de escndalo e de reprovao, formulam demandas de
reparaes e de desculpas.104
104

Sobre estas categorias morais e / ou estes sentimentos sociais no Brasil, temos hoje as anlises
de CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Direito legal e insulto moral: dilemas de uma cidadania
no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2002 ou VIDAL, D. Les bonnes de
Rio de Janeiro: emploi domestique et socit dmocratique. Lille: Presses du Septentrion, 2007.

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De um certo modo, um teatro que se apresenta, com seus heroes,


fools and villains,105 seus roteiros catstrofes e suas intrigas escatolgicas, seus reenquadramentos do presente no espao e no tempo, seus
lderes carismticos, trgicos ou cmicos, suas vtimas, seus santos e
seus mrtires etc. Em certos casos pode-se encontrar ali as fases descritas por Victor Turner,106 da brecha crise, reparao (redressment:
reconciliao das partes pelo apagamento da mancha, ou exame da
crise seguido de ostracismo do ofensor, por condenao moral e/ou
sano legal) e reintegrao (superao do cisma ou reconhecimento
de sua existncia, reparao do ato delituoso, real ou simbolicamente,
e reafirmao de um consenso normativo). Se este modelo de Turner
no para ser seguido ao p da letra em todos os casos, ele permite
vislumbrar a qualidade dramtica das aes associativas. J.Gusfield,
por exemplo, nos levou a reconhecer figuras teatrais, retricas ou narrativas na constituio dos problemas pblicos.107 Outros insistiram nas
linguagens da gratido, lealdade, amor, compaixo, responsabilidade,
solidariedade, verdade, beleza e, principalmente, caridade, moedas
correntes que alimentam o patrimnio do setor.108 Esta perspectiva
de antropologia simblica ou de sociologia cultural foi estendida ao
estudo dos processos de comunicao pblica. Uma parte dos espaos
pblicos est hoje midiatizada pela mdia de massa. A maior parte das
aes existem diante do tribunal do pblico na medida em que uma
marca configurada, transmitida e recebida, por meio da imprensa,
do rdio, da televiso, e cada vez mais pela Internet. Uma pesquisa
deve, ento, necessariamente levar em conta as agendas miditicas,
nas quais so configuradas informaes, diagnsticos e previses,
mensagens crticas, depoimentos vividos e relatos de acontecimentos.
Mais precisamente, ela pode tentar restituir as cadeias de operaes que
conduzem a produo individualizada da informao (newsworthy),
bem como a formatao dos comunicados de imprensa transmitidos por
agncias, redao de artigos ou de editoriais discutidos por redaes,
e preparao da hierarquia das notcias no jornal televisivo. A coordenao entre esses diferentes processos que implicam colaborao
entre polticos, associaes e jornalistas, entre agncias estatais, organizaes no governamentais e mass mdia; competio entre rgos de
KLAPP, O. Symbolic leaders: public dramas and public men. Chicago: Aldine, 1964. Ver
tambm os textos de E.Quarantelli, R.Bucher ou T.Shibutani.
106
TURNER, V. Dramas, fields, and metaphors. Ithaca: Cornell University Press, 1974.
107
GUSFIELD, J. The culture of public problems: drinking-driving and the symbolic order.
Chicago: University of Chicago Press, 1981.
108
FERNANDES, R. C. Privado porm pblico. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994. p.24.
105

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imprensas, a fim de atrair a ateno pblica; e objetivao de dossis ou


de histrias que se tornam escndalos ou casos est no corao
da publicizao dos problemas pblicos.
3.3.3. Aes pblicas: autonomia e dependncia em relao aos
jogos do poder clientelista ou corporativista
A cincia poltica se debruou sobre os estudos acerca dos processos de inscrio dos problemas pblicos nas agendas polticas
municipais, governamentais, legislativas ou administrativas e
suas consequncias na constituio de dispositivos de ao pblica.
Referimo-nos, ento, s dinmicas de discusso que tomam lugar nos
fruns oficiais, think tanks ou comits de pilotagem. Os processos de
lobbying nas ante-salas do poder permitem acelerar a considerao
de um dossi e de inseri-lo na ordem do dia. A cincia poltica se
interessou muito pela questo da constituio da deciso poltica e
pelas mltiplas presses que a solicitam.
Mas dois elementos so importantes para se levar em conta:
1 - O Estado est frequentemente na origem das iniciativas em matria
de ao pblica, quando ele no cria os interlocutores com os quais
ir trabalhar. Isto verdade em certas redes de polticas pblicas,
nas quais o governo, a assembleia legislativa e a alta administrao,
e seus correspondentes em outros graus das instituies pblicas,
tm o poder de decidir que tal ou qual associao far ou no
far parte do processo de consultas. Eles fixam igualmente a
agenda poltica, jogando com os instrumentos da legislao, da
economia e da tecnologia, mas tambm escolhendo o tipo de
problemas a colocar e solues a dar. Primeiro caso: um grande
nmero de associaes assim fundado para adquirir um status
jurdico, de modo a ser identificada na arena pblica, e com isso
poder participar de negociaes, receber financiamentos ou estar
implicadas em processos. Algumas formalizam antigas estruturas
de sociabilidade que at ali persistiam sem estatutos. As associaes
de moradores, por exemplo, sempre existiram, de um modo
ou de outro, como lugares de discusso e de regulao pacfica
dos casos comunitrios, mas sua funo adquire um novo status
quando elas se tornam interlocutores privilegiados da Prefeitura
ou de ONGs. interessante compreender o ponto de vista dos
membros de grupamentos profissionais, festivos ou religiosos,
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sobre a criao de associaes reconhecidas pelo poder pblico


e tentar igualmente seguir as consequncias dessa formalizao
sobre a organizao de suas atividades coletivas. Segundo caso:
um status jurdico fundamentado para regulamentar casos
particulares. o caso das associaes indgenas, sob a tutela
da FUNAI ou dos quilombos e outras associaes nascidas em
terras tradicionalmente ocupadas. Esses tipos de entidades tm
frequentemente um carter compulsrio: os indivduos no so
livres, por deciso prpria, para aderir ou no ao contrato social,
pois devem necessariamente pertencer a uma comunidade
tradicional de modo a acessar seus direitos e adquirir um status
de cidado. Da mesma forma, como no so tributrios de um
direito individual, esses atores no podem se autoexcluir em caso
de discrdia, levando com eles seus bens pessoais, pois o status
jurdico de propriedade coletiva (seja de titulao definitiva), ou de
bens da Unio ou de domnio pblico (para as reservas extrativistas),
faz dessas entidades corpos coesos e no necessariamente
associaes livres de indivduos autnomos. Longe de manter uma
distncia do pblico e do privado, estas associaes mantm uma
relao complexa de controle e de dependncia com o Estado, ou
buscam por meio de seu estatuto jurdico, facilidades de acesso ao
crdito e ao mercado. Tais situaes devem ser descritas em todas
suas ambiguidades do ponto extremo de uma verdadeira tutela
para os indgenas, que conhece, entretanto, numerosos arranjos
locais, bem como o caso de uma relativa emancipao para alguns
pescadores, que saem do quadro at ento imposto pelas colnias.
A antropologia poltica desenvolvida no Brasil tem possibilitado
um olhar original acerca do fenmeno das associaes. Desde as
discusses pioneiras do W.Guilherme dos Santos, em relao aos
direitos civis como benefcios concedidos pelo Estado ou por seus
agentes intermedirios aos supostos cidados,109 tornou-se evidente
que a cidadania nos moldes como ela foi forjada na constituio da
Repblica brasileira no pressupunha autonomia, mas uma tutela
do Estado sobre os cidados. Seguindo esse rumo, R.DaMatta110
props uma interpretao de que os valores hierrquicos conjugados
com a forte personificao nas relaes intersubjetivas propiciavam
SANTOS, W. G. dos. Cidadania e justia: do laissez faire repressivo a cidadania em recesso.
Rio de Janeiro: Campus, 1979.
110
MATTA, R. da. A casa e a rua: espao, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997.
109

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a constituio de uma cidadania relacional: as garantias individuais


esto atreladas s dimenses morais de cada pessoa. O cidado essencialmente aquele que ser reconhecido como tal no espao pblico.
nesse sentido que L.R.Cardoso de Oliveira chamar a ateno para
o aspecto das noes de respeito e considerao no que concerne
destinao e obteno de garantias de direitos. So cidados aqueles
que atestam certos atributos morais para serem considerados como
tais, para obterem um reconhecimento pblico de sua cidadania. a
dificuldade, como apontam diversos trabalhos de Kant de Lima, de se
constituir o principio da equidade e da igualdade no espao pblico
no Brasil, cujas caracteristicas ultrapassam as barreiras das relaoes
interpessoais na vida cotidiana, desaguando e se consolidando nos instrumentos jurdico-burocrticos: o tratamento desigual dos desiguais
virou um principio legal.111 Simultaneamente e paradoxalmente, essas
prticas que pervertem a vida democrtica convivem com aspiraes
igualitrias e republicanas. Nesse aspecto, como algumas pesquisas
tm revelado,112 as associaes no Brasil tm-se caracterizado de
uma maneira ambgua, porque por um lado cada vez mais crescem os
apelos ao associativismo, com a propagao de ONGs e comunidades
solidrias, criando pretensa difuso de uma moral cvica; por outro
lado, essas associaes surgem cada vez mais como intemedirios
de interesses de grupos, que revindicam direitos (que muitas vezes
se confundem com privilgios), reforando uma tutela por parte de
organizaes, governamentais ou no, sobre grupos particulares. O
ideal associativista se encaixa com o da cidadania tutelada.113 De
KANT DE LIMA, R. Carnavais, malandros e heris: os dilemas brasileiros do espao
pblico. In: GOMES, L. Graziela; BARBOSA, L.; DRUMMOND, J. A. O Brasil no para
principiantes: vinte anos de Carnavais, Malandros e Heris. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
112
MOTA, F. R. O Estado contra o Estado: direito, poder e conflitos no processo de produo da
identidade Quilombola da Marambaia. Niteri: EdUFF, 2004; KANT DE LIMA, R.; MOTA,
F. R.; PIRES, L. Efeitos da igualdade e da desigualdade no espao pblico da Amaznia:
uma anlise comparativa de processos de construo de unidades de conservao de uso
sustentado. In: LIMA, D. (Org.). Diversidade socioambiental nas Vrzeas do Rio Solimes:
perspectiva para o desenvolvimento da sustentabilidade. Braslia, DF: IBAMA: Pr-Vrzea,
2005; LOBO, R. J. da S. Uma anlise comparativa de processos de construo de Unidades
de Conservao de Uso Sustentvel em reas de Vrzea: a possibilidade de uma gesto
participativa de espaos naturais e recursos renovveis. In: LIMA, D. (Org.). Diversidade
socioambiental nas Vrzeas do Rio Solimes: perspectiva para o desenvolvimento da
sustentabilidade. Braslia, DF: IBAMA: Pr-Vrzea, 2005.
113
LOBO, R. J. da S. Uma anlise comparativa de processos de construo de Unidades
de Conservao de Uso Sustentvel em reas de Vrzea: a possibilidade de uma gesto
participativa de espaos naturais e recursos renovveis. In: LIMA, D. (Org.). Diversidade
socioambiental nas Vrzeas do Rio Solimes: perspectiva para o desenvolvimento da
sustentabilidade. Braslia, DF: IBAMA: Pr-Vrzea, 2005. p.205-220.
111

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

fato, os atores coletivos, para acessarem determinados direitos e para


obterem recursos credticios, ganhar emprstimos de bancos ou ter
acesso a servios pblicos, so obrigados a se organizar em grupos
associativos ou comunitrios. No a toa que assistimos emergncia de novas organizaes na sociedade civil na luta pelas garantias
de direitos, como grupos de pescadores artesanais, quilombolas,
indgenas etc.114
2 - O outro processo, oposto a esta forma de colocao em tutela
estatal, a manifestao de pblicos no sentido de John Dewey
ou seja, de processos de associao, de cooperao e de comunicao que tematizam problemas e exigem dos poderes pblicos sua resoluo. Pode se tratar de pequenas dinmicas escala
local, de mobilizaes que se constituem em torno da instalao
de equipamento pblicos, presumidos perigosos, proximidade de um lugar de residncia, ou de populaces que se rebelam
contra a notificao de expulso lanada no territorio por elas
ocupado h longa data. Pode igualmente se tratar de movimentos
de amplitude nacional o movimento das Diretas J ou o das
emendas populares visando a Constituio de 1988, a campanha
pelo impeachment de Collor115 ou a efervescncia do incio dos
anos 1990 em matria de identidades coletivas. De forma anloga
aos outros movimentos sociais no resto do mundo, constatamos
no Brasil uma transformao rpida das identidades coletivas de
mulheres, negros, indgenas, homossexuais, mas tambm, cada
vez mais, da terceira idade, das crianas ou dos invlidos, no
sentido de uma demanda de reconhecimento de igualdade e de
seus direitos, mas tambm da singularidade de suas experincias.
Mas dizer isto equivale a nada dizer: somente multiplicando
os estudos de caso, descobrindo os dilemas e os paradoxos de
tais reivindicaes, mostrando as dificuldades jurdicas e polticas e, simplesmente, a inrcia dos dispositivos de categorizao
com as quais elas se chocam, que poderemos comear a melhor
compreender de que se trata tais processos. O grande legado da
conquista desses direitos acomoda e reconforta o senso comum
progressista que apenas o gmeo inverso do grande relato da
LOBO R. J. da S. Cosmologias polticas do neocolonialismo: como uma poltica pblica
pode se transformar numa poltica do ressentimento. Tese (Doutorado) Departamento de
Antropologia, Universidade de Braslia, Braslia, DF, 2006.
115
MISCHE, A. Partisan publics: contention and mediation across brazilian youth activists
networks. Princeton: Princeton University Press, 2006.
114

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maldio da matriz hierrquica, escravagista e corporativista que


prejudicaria o Brasil. Mas esses pontos de vista tm que dar lugar
descrio e anlise de situaes concretas, microssociolgicas
e etnogrficas. Qual o significado, por exemplo, em Salvador,
da participao macia dos grupos de ax, como grupamentos
musicais que aprofundam suas razes nos bairros desfavorecidos
da cidade, ONGs educativas encarregadas de programas de reabilitao de crianas das ruas, dos blocos de carnaval e de empresas de produo e de comercializao de concertos, CDs e DVD
e, alm disso, porta-vozes das culturas negras da Bahia, promodores de uma forma de ethnic pride e brokers de pacotes de votos
quando nas eleies municipais ou estaduais, quando trocam lealdade e apoio polticos com subvenes do poder pblico?
Em todos os casos, uma anlise das formas de sociabilidade e das
redes de mobilizao, em relao a seu encaixe nos jogos de poder,
se impe. A.Oberschall foi o primeiro a mostrar que a passagem
ao coletiva mais plausvel nos coletivos vinculados a um territrio
ou a um patrimnio, percebidos como ameaados, ou em coletivos
ligados por relaes muito densas. O pertencimento a uma comunidade e a submisso a uma hierarquia reforam a ligao a um
bem comum e a chance de uma passagem ao coletiva.116 Por um
lado, Oberschall sublinhava a importncia da lealdade partilhada e da
confiana mtua entre membros da mobilizao de uma coletividade:
este critrio o da densidade ou da raridade dos laos horizontais. A
anomia uma deficincia para a mobilizao. Por outro lado, ele se
preocupava com os laos que unem esta coletividade a outras instituies, particularmente s elites ou a centros de poder: este critrio
o da integrao ou da segmentao vertical. A existncia de canais
de circulao da informao, mas tambm de troca clientelista de
favores e de servios contra os votos dos membros da coletividade,
ou de mobilidade ascendente para postos de representao e de deciso de fraes das elites da coletividade, so fatores de estabilidade.
Ao contrrio, a segmentao suscita sentimentos de opresso ou de
dominao ilegtima e provoca a mobilizao de elites dissidentes e
de movimentos de oposio. A impossibilidade de dar visibilidade
a uma demanda junto s autoridades, por falta de porta-voz que se
trate de chefes de cls ou de comits de aldeia, de lderes sindicais
116

Pode-se tratar de organizaes tradicionais, com uma forte coeso familiar, clnica ou
comunitria, como de organizaes midiatizadas por solidariedades e lealdades associativas.

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ou polticos, ou simplesmente, de mediadores das redes familiares,


religiosas ou profissionais produz um sentimento de isolamento e de
abandono, uma falta de visibilidade pblica, um dficit de representao coletiva e uma insatisfao diante das demandas desconsideradas.
Uma dinmica de densificao dos laos sociais e de integrao ao
processo poltico permite aos cidados ultrapassar suas divises e
formar alianas, fazer emergir um interesse partilhado sobre certos
dossis, constituir uma fora consequente em termos de visibilidade
e, talvez, ganhar um reconhecimento legal e poltico. Ela permite
aos governantes ter interlocutores, dispor de retransmisso de informao de cima para baixo e de baixo para cima, melhor controlar e,
s vezes, domesticar ou teleguiar as atividades coletivas, ou, ainda,
abrir canais de representao oficial, de transao clientelista ou de
conciliao corporativista.
O leitor dever ter compreendido: uma etnografia da vida associativa
torna complexos os modelos de constituio de problemas pblicos,
configurados em simultaneidade ou sucesso sobre diferentes cenas
pblicas, mais ou menos institucionalizadas. Que se trate de intervenes de urbanismo em Nova Iguau, em Belleville, no Catumbi e em
Acari, de instaurao de desenvolvimento sustentvel na Amaznia,
de planejamento do crescimento turstico em Itacar ou de defesa
de uma zona de prostituio em Vila Mimosa, a cada situao, uma
dinmica complexa de constituio de organizaes associativas e de
exposio de arenas pblicas se desenvolve. O mesmo acontece com
as associaes de interesses profissionais, que se encarregam do convvio entre comunidades ou da segurana do bairro no Saara no Rio de
Janeiro ou que lanam mo de procedimentos judicirios contra donas
de casa em nome de empregadas domsticas: elas invocam figuras
de bens pblicos coexistncia tnica e segurana civil, de um lado,
direito social e igualdade cvica, do outro continuando, ao mesmo
tempo, a funcionar a partir de identidades, interesses e solidariedades
de ordem domstica, corporativista ou tnica. Do mesmo modo, associaes de defesa dos direitos das minorias se apoiam em legislaes
especiais para proteger uma comunidade de descendentes de escravos
libertos da expulso de seu territrio em Marambaia, ou para afastar
de uma comunidade indgena na Amaznia os efeitos nefastos de
grandes obras pblicas. A cada circunstncia, o problema pblico se
constitui, sendo cristalizado por meio de operaes de objetivao e
de legitimao. Associaes desempenham um importante papel na
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definio do ponto do conflito e da causa a defender, em continuidade


e em ruptura com o jogo dos interesses particulares e das opinies
particulares dos atores envolvidos.
Boatos circulam, confirmados ou desmentidos, campanhas de
informao e de contrainformao se opem, sendo que a questo das
consequncias para a coletividade colocada e cada um dos campos
recusa ao outro o poder de deter a boa soluo. Os rgos miditicos
se tornam caixa de ressonncia e as manchetes dos jornais difundem
o problema na agenda miditica perturbando os lderes de partidos
polticos ou os governantes em exerccio; especialistas consultados
por agncias administrativas recorrem a todas as formas de indagao, experimento, diagnstico e prognstico; cientistas entram em
polmicas sobre dados factuais ou estatsticos, em controvrsias sobre
riscos provveis ou fictcios; advogados representam associaes de
defesa de vtimas, tendo sofrido danos ou associaes de proteo
de bens, supostamente em prol do interesse geral, acionando a
mquina judiciria buscando dar conta das decises de justia
conflitos de interesse ou disputas de direito; configuraes de atores
se formam, certos titulares legais de sua legitimidade (a representao dos interesses ou das opinies sancionada pelo direito dos
funcionrios, dos eleitos ou dos juzes), outros ganhando sua representatividade mostrando a sua competncia (na apresentao dos
dossis, na conquista de afiliados, na escolha de alianas). Cada dossi
tem seus requerentes e seus acusadores. Ele apoiado por coletividades territoriais, por partidos polticos ou organizaes sindicais,
por associaes de protesto ou de reivindicao, cujas demandas
so transmitidas por difusores, mediadores ou tradutores,117
tornando-as plausveis para os eleitos ou altos funcionrios. As operaes so, ento, mltiplas: financiar pesquisas, lanar consultas,
decidir uma poltica, redigir decretos, votar leis, transmitir noticias.
Uma arena pblica se desenrola assim, ao mesmo tempo em cenas
polticas, administrativas, judicirias, miditicas e em cenas da vida
quotidiana dos cidados comuns.
Mas os problemas pblicos no esto expostos ali, aos olhos e ouvidos
de cidados exteriores ao espetculo da vida pblica. Um movimento
reverso se produz, do qual as associaes so um dos principais veto117

CALLON, M. Elments pour une sociologie de la traduction: la domestication des coquilles


Saint-Jacques et des marins pcheurs dans la baie de Saint-Brieuc. LAnne Sociologique,
[S.l.], v. 36, 1986; LASCOUMES, P. Lco-pouvoir: environnements et politiques. Paris: La
Dcouverte, 1994.

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res: o remanejamento, muitas vezes de ordem infinitesimal, s vezes


da ordem da converso, dos crterios de experincia e de atividade
que ordenam os mundos vividos dos ativistas, de seus adversrios
e de seus pblicos.118 Os associados podem engendrar identidades
coletivas, tomando conscincia de incompatibilidades de interesses
entre grupos, redesenhar o mapa das obrigaes em termos de conflito, impor como legtimos direitos e deveres at ali desconhecidos
e fazer emergir coletivos que no existiam at o momento a classe
operria, o quilombo ou a aldeia, o bairro urbano, os coletivos das empregadas domsticas. das prostitutas ou dos soufis,
dos moradores de Arraial ou Itacar etc. Elas podem recompor
sensibilidades morais: participar de uma associao tambm se
engajar pessoalmente e sentir em si desprezo ou desrespeito diante
de categorias sociais percebidas como exploradoras, predadoras ou
dominadoras, exibir orgulho de ser afro-brasileiro, trabalhador ou
travesti, experimentar compaixo e efetuar gestos de ajuda mtua
e de solidariedade, em situaes que, habitualmente, so gerenciadas
individualmente. Elas podem abalar a economia das relaes interpessoais e posies estatutrias, mudar as percepes das hierarquias de
classe, de gnero e de raa, suscitar experimentaes de autonomia
pessoal ou coletiva, transgredir as fronteiras morais da casa, do
trabalho e da poltica... Criando novas formas de existncia cvica, por
exemplo, transformando a figura de um cidado detentor de direitos
sociais, as associaes so portos seguros ao protesto, suscitam inflexes nas vidas das pessoas. Elas lhes permitem se engajar de outra
forma em suas trajetrias biogrficas, as levam a ter laos de qualidade
diferente com outras pessoas e coletivos, e a estabelecer uma relao
de qualidade diferente com as instituies pblicas.
Engajamento pessoal e mobilizao coletiva contribuem para a formao da experincia do mundo, de si e do outro, e para a emergncia de
normas ticas, jurdicas e polticas de um bem-viver coletivamente.
ali que uma etnografia, moral e poltica, da vida associativa encontra
seu lugar.

118

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MOBILIZAES URBANAS:
Associaes de moradores

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COMO UMA ASSOCIAO


NASCE PARA O PBLICO:
VNCULOS LOCAIS
E ARENA PBLICA EM
TORNO DA ASSOCIAO LA
BELLEVILLEUSE, EM PARIS
Daniel Cefa1

La Bellevilleuse uma associao de bairro situada no territrio


do Bas-Belleville (Baixo Belleville), na XX Regio Administrativa de
Paris.2 Bas-Belleville a nica zona que subsiste srie de polticas
de urbanismo que deram origem, desde a dcada de 1960, aos conjuntos habitacionais (cits) de Nouveau Belleville, em Couronnes; ZAC
Bisson-Pali Kao3 aos Jardins de Belleville; ZAC Houdin-Orillon,
situada na XI Regio Administrativa de Paris; e aos conjuntos habitacionais do Boulevard de la Villette, na XIX Regio Administrativa.
A histria comea em 1989. Uma operao urbanstica lanada,
comandada pela Ville de Paris,4 com os ingredientes habituais: estratgias no declaradas de prioridade na compra (premption) e de
1
2

Directeur dtudes lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, EHESS-Paris.


O municpio de Paris esta dividido em vinte regies administrativas (arrondissements). O
bairro de Belleville fica na parte leste da capital.
ZAC significa Zone dAmnagement Concert Zona de Planejamento Urbano, prevista no
direito francs para supostamente facilitar o concerto ou o dilogo entre os moradores
do bairro, as entidades coletivas e os empreendedores privados.
Ville de Paris (literalmente Cidade de Paris) o nome dado Prefeitura de Paris. Est
distribuda em uma Mairie centrale (administrao central) e vinte Mairies darrondissement
(subprefeituras locais, em cada uma das vinte regies administrativas de Paris).

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cercamento com muros dos lotes do bairro; processos de deteriorao


dos edifcios com o propsito de justificar a sua macia demolio,
custa de algumas distores jurdicas e regulamentares; e, por fim,
reconstrues levadas a cabo por uma sociedade de economia mista,
no mbito de uma ZAC, sem consulta prvia populao. Essa poltica
do fato consumado, contra a qual a indignao da opinio pblica e o
acesso ao tribunal chegam sempre demasiadamente tarde, foi a regra
durante muito tempo, em matria de planejamento urbano parisiense.
Em Belleville, a suspeita de que algo estava sendo tramado s ocultas levou proprietrios e locatrios a procurar e a trocar informaes,
inicialmente em um grupo de nove pessoas; a elaborar uma leitura das
intenes da Prefeitura de Paris, e a criar uma associao, nos termos
da Lei 1901.5 Um movimento de ao coletiva foi desencadeado no
bairro. Foram adotadas estratgias para a mobilizao e o recrutamento
de ativistas, para fomentar novas adeses. La Bellevilleuse encontrou
rapidamente uma base significativa na periferia da ZAC: de, aproximadamente, 100 adeses no final de 1989, passou a 200 em maro
de 1990, a 400 no final de 1991 e a cerca de 600 em 1997, sobre um
total de 2.500 moradores.
Trs grandes fases dessa histria poderiam ser esquematicamente
distintas: 1)A primeira fase vai de 1989 a 1995: a fase do bloqueio, marcada por confrontos extremamente intensos, como os
das reunies de negociao em que a Prefeitura se recusava a acatar
as demandas da associao La Bellevilleuse. A referida associao
adotava uma postura marcada pela mobilizao dos moradores do
bairro, bem como pelo protesto e pela reivindicao por todos os
meios possveis. 2)A segunda fase marcada pela cooperao:
iniciada em 1996, por meio de uma ordem do prefeito de Paris para
que se colaborasse com a associao La Bellevilleuse. Uma parceria
formada no mbito do Desenvolvimento Social Urbano (DSU),6
5

Essa lei de 1o de julho de 1901 regulamentou a criao das associaes voluntrias sem fins
lucrativos na Frana.
Desde 1984, o Dveloppement Social des Quartiers DSQ (Desenvolvimento Social dos
Bairros) operava sobre 148 localidades urbanas consideradas como quartiers en difficult
(bairros com dificuldades), afetados pela degradao fsica, econmica e social. A ao
se estruturava em cinco princpios (projeto territorial, global, transversal, em parceria e
com a participao dos habitantes) e se baseava em acordos assinados por cinco anos entre
o Estado, os municpios e as regies. A partir de 1988, os acordos Dveloppement Social
Urbain DSU (Desenvolvimento Social Urbano) os substituem, e foram eles mesmos
substitudos em 1994 pelos contratos municipais.

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em conexo com o Atelier Parisiense de Urbanismo (APUR).7 Essa


parceria persiste mesmo diante da transferncia do poder poltico
esquerda progressista, tanto na Prefeitura Central quanto na Prefeitura
da Regio Administrativa, e perdura at o final da dcada de 1990. A
associao torna-se, ento, uma protagonista central dos projetos de
planejamento urbano do bairro, tendo a sua representatividade reconhecida em diversas assembleias. Entretanto, paralelamente, perde
parte de seus integrantes, o que decorreu em funo ou do excesso de
confiana de que a batalha estava ganha, levando desmobilizao,
ou do desnimo diante da complexidade tcnica das medidas assumidas. 3) A terceira fase de especializao (expertise), a partir do
voto do projeto definitivo pela cmara de vereadores, em junho de
1998. La Bellevilleuse torna-se uma agncia encarregada de propor
solues, discutir propostas e tomar decises dentro de parmetros
bem definidos de planejamento urbano. Apesar disso, a associao
continua se envolvendo em projetos sociais ou pedaggicos em nvel
local. Em 2005, ela acaba atravessando uma crise, com a sada de
seus membros fundadores e com diversas tentativas de redefinio
das metas de ao, para alm dos limites do bairro.
Neste texto, nos interessa, sobretudo, centrar na primeira fase e no
incio da segunda fase de 1989 a 1997, aproximadamente para
descrever o surgimento de uma arena pblica em torno do problema
da reconstruo do bairro. Insistiremos, especialmente, nas pertinncias de proximidade8 dessa arena pblica e nas tenses que ela pode
engendrar.9 Este artigo traz, igualmente, uma abordagem em favor
de uma anlise microssociolgica da ao coletiva e da ao pblica.
Essa anlise defende o uso de mtodos de pesquisa qualitativa para
compreender os contextos de experincia e de atividade da poltica
local.
7

O Atelier Parisien dUrbanisme APUR (Estdio Parisiense de Urbanismo) uma associao


sem fins lucrativos entre a Prefeitura, o Departamento de Paris, o Estado, a regio de Ilede-France (que inclui Paris e adjacncias), a Cmara de Comrcio e de Indstria de Paris,
a Empresa Pblica Autnoma dos Transportes Parisienses (RATP), a Caixa de Alocaes
Familiares de Paris (CIF) e o Estabelecimento Pblico de Desenvolvimento Orly-RungisSeine Amont (EPA ORSA). O APUR tem como misso monitorar tendncias e evolues
urbanas, participar da definio de polticas de planejamento e de desenvolvimento, da
elaborao de orientaes da poltica urbana e de documentos do urbanismo, assim como
de projetos para Paris e Ile-de-France.
O termo remete ao programa de polticas de proximidade coordenado por LaurentThvenot
no mbito do Groupe de Sociologie Politique et Morale (GSPM): Thvenot, 1999 e 2006.
Realizamos esta pesquisa entre 1997 e 2000 e apresentamos alguns de seus resultados em
Cefa; Lafaye (2001, 2002).

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VNCULOS DE PROXIMIDADE
A anlise da constituio de um problema pblico ou de uma ao
pblica indissocivel de um emaranhado de estruturas de proximidade do mundo vivido. O termo prximo no se confunde com o
termo local, que designa uma escala espacial, nem com o termo
privado, que se ope ao pblico, e nem com o termo particular,
que se ope ao geral. O termo prximo ou proximidade, neste
texto, remete ao que vivido como tendo importncia ou pertinncia
na vida cotidiana dos atores moradores, usurios ou cidados. A
expresso remete aos modos de uso, de frequentao e de habitao
do bairro que continuam a desempenhar um papel no engajamento
pblico, mesmo quando esses modos no so requisitados por ele.
Coisa pblica e concernimentos pessoais
Primeiro ponto: a configurao da coisa pblica no se faz simplesmente na troca de argumentos racionais em um espao pblico
descontextualizado. Ela sempre tomada a partir dos modos de envolvimento das pessoas na Lebenswelt, e particularmente, na esfera do
prximo e do familiar. O enredamento em histrias e intrigas locais10
que evidenciam os destinos locais ou os interesses particulares o
trampolim para formas de julgamento e de denncia, de reivindicao e de proposio, que trazem tona o que diz respeito ao pblico.
A noo de polticas de proximidade permite trabalhar sob outra
concepo de res publica e reabilitar as associaes baseadas na proximidade. A ideia de bem pblico, nesse caso, se articula na tenso
entre pertencimentos, filiaes e alegaes de proximidade;
preocupaes (concernements) pessoais por bens ou servios
ameaados; vnculos ou ancoragens em comunidades de territrio,
de vizinhana, s vezes de profisso ou de religio; e preocupaes
de interesse geral, de bem comum ou de utilidade pblica, conforme
os idiomas republicanos. A anlise dos dispositivos de ao pblica
se pauta, muito rapidamente, em princpios e procedimentos que tm
curso nas agncias dos poderes pblicos, ou melhor, nos foros de
participao ou de deliberao. Um deslocamento do olhar permite
considerar as ancoragens da definio e da realizao do bem pblico
nos contextos de experincia e de atividade dos cidados comuns,
seguindo suas modulaes de acordo com o tipo de situaes proble10

Schapp, (1992).

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mticas com as quais se confrontam em sua vida cotidiana. Segue-se,


ento, em direo a uma anlise pragmatista das atividades microcvicas e micropolticas.
Com seus vnculos sobre territrios e paisagens, comunidades e histrias locais, as associaes de proximidade podem ser tanto lugares
potenciais para desenvolver um pensar sobre si mesmo quanto uma
via de acessos privilegiados constituio de pblicos. As associaes
no so vtimas de uma doena incurvel, a sndrome Nimby.11 O gesto
retrico de estigmatizao a qualquer entidade da sociedade civil,
automaticamente suspeita de veleidades de localismo, comunitarismo
ou corporativismo, uma constante da gramtica republicana na
Frana. O interesse geral (intrt gnral) seria incompatvel com
qualquer mediao entre o Estado e os indivduos tratada como
faco da vontade geral. Entretanto, desde os anos 1970, o nmero de associaes de proximidade que se impuseram como atores
protagonistas na vida pblica no para de aumentar. Envolvidas em
conflitos em torno do planejamento urbano, elas podem ter tambm
objetivos no campo social e cultural e, s vezes, no plano econmico
(quando se transformam, por exemplo, em gestoras de bairro ou criam
empresas de insero social), no plano tnico ou religioso (quando
se apoiam em redes de pertencimento, de identidade e solidariedade
e visam bens ou servios comunitrios). Ou, ainda, no plano abertamente poltico (quando todas estas atividades so acompanhadas de
uma reivindicao nacionalista e quando esto acopladas a formas
de clientelismo partidrio). Qual , ento, o lugar das associaes
nas operaes de produo de bens pblicos? De acordo com que
modalidades e com que justificativas elas concorrem a dispositivos
de ao pblica?12
La Bellevilleuse um caso paradigmtico no panorama associativo,
em que a defesa de um local, de uma paisagem ou de um bairro se
tornou um objetivo crucial. Ao mesmo tempo em que incorpora as
asperezas do lugar, indagando sobre as situaes econmicas e sociais
dos moradores, constituindo um verdadeiro banco de dados sobre o
parque imobilirio do bairro e reunindo um manancial de informaes
sobre as condies de sua reconstruo, La Bellevilleuse se coloca
nas arenas pblicas, formulando minutas e requerimentos, propondo
11

12

Trom (1999) Nimby um acrnimo ingls para a expresso Not in My Backyard, ou seja,
no em meu quintal, utilizada de forma crtica por urbanistas norte-americanos.
Ion et al. (2001).

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

uma categorizao dos prejuzos sofridos e potenciais e revelando,


ainda, quadros duplos de denncia da especulao imobiliria e da
poltica municipal. Mas, afinal, como essa associao circula entre
formas de proximidade e formas de publicidade, de modo a parecer
confivel e compreensvel junto aos habitantes do bairro, identificando
nitidamente as possveis solues aos diferentes problemas que lhe
so postos, ao mesmo tempo mantendo um discurso pertinente, eficaz
e aceitvel diante dos diferentes organismos pblicos e de Estado?
Como dar conta das atividades em que os problemas e conflitos que
atingem os protagonistas so reordenados, configurados e publicizados em acontecimentos, crises, negcios ou escndalos pblicos?
Tentaremos responder a essas questes adotando uma perspectiva
pragmatista.13 Em primeiro lugar, isso implica em no lidar com atores j constitudos, dispondo de recursos e produzindo estratgias. O
objetivo do bem pblico se encarna e se representa, sem dvida, em
agenciamentos de instituies pblicas, de sociedades de economia
mista, de organismos paramunicipais e de associaes civis. Mas essa
cartografia reduz a anlise: ela se afasta das atividades contextualizadas ao objetivar ordens de representaes, espaos de poder ou redes
de governana; ela no parte dos contextos de experincia pblica e
considera raramente a natureza das organizaes, das interaes que
as ligam e dos problemas que elas revelam, em relao aos eventos
ou s aes em curso; ele perde de vista os processos temporais ao se
centrar em clculos racionais, em estruturas sociais ou em instituies
polticas. Aqui, tentaremos ser mais minuciosos nas descries de
casos, se possvel pela observao direta e pela anlise de arquivos
documentais, para revelar as figuras de realidade e de normatividade
que emergem no curso dessas atividades.
Vrias consequncias derivam dessa premissa. A pesquisa privilegia
as situaes de prova.14 Nos mltiplos momentos de disputa entre
atores, a arena pblica vai-se constituindo. Essas situaes tomam a
forma de provas de alerta, de experimentao, de medida, de testemu13
14

Cefa (2002).
Situations dpreuve: a palavra preuve tem vrios sentidos em francs. Aqui, ela remete a uma
dimenso de provao se colocar prova em relao a algo (que pode ser um exame,
uma relao de trabalho, ou situaes no campo da amizade, diante de um pblico...). Na
sociologia dita pragmtica, uma preuve um momento crucial de qualificao de situaes,
de aes e de mobilizao de formas de justificao, com o propsito de determinar um
acordo em termos de racionalidade e de legitimidade (BOLTANSKI; THVENOT, 1991;
LEMIEUX, 2009).

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

nho, de negociao, de estratgia, de conversao, de deliberao etc.


Elas tm como contexto especfico as instrues judicirias, controvrsias cientficas, redes de vigilncia, inquritos pblicos, assembleias
de negociao e conselhos de bairro, referendos eleitorais, polmicas
miditicas, manifestaes de rua ou pesquisas de opinio etc. Vrias
consequncias se sucedem. Primeiramente, os problemas pblicos
se cristalizam em muitos lugares e momentos distintos, mobilizando
numerosos atores a partir de diversos modos e graus de engajamento.
Para se tornarem questes de definio e de competncia no mbito
de uma arena pblica, so sustentadas por cadeias de operaes,
dispersas espacial e temporalmente, que a pesquisa deve restituir.
Em segundo lugar, os atores no tm uma identidade estabelecida
de forma determinada: suas motivaes e objetivos esto sob uma
geometria varivel, dependendo do tipo de problemas diante dos
quais se renem ou se confrontam, de acordo com as configuraes
provisrias de alianas e de inimizades nas quais se envolvem. A
unidade e a identidade so, eventualmente, um problema prtico que
eles devem resolver, diante de certas circunstncias. Finalmente, a
qualificao dos bens desejados pelos autores como bens privados,
comuns ou pblicos no est baseada em critrios objetivos: ela
indissocivel das situaes de debate, de controvrsia, da polmica
ou do processo no qual elementos contrrios de informao, de prova
e de argumentao vo ser confrontados, no qual tambm decises
sero consumadas. Nesse contexto, atores, causas e situaes se
configuram simultaneamente.
Provas afetivas e choques morais
Com a adoo dessa perspectiva pragmatista, os representantes de
La Bellevilleuse, que se apresentam como defensores de um local em
risco, devem fixar suas estratgias urbansticas, jurdicas, miditicas
e polticas em enredos locais; devem articular tradues dos mundos
especializados da percia e da poltica com palavras do cotidiano.
Para convencer, mobilizar e envolver pblicos leigos no conflito
urbano, esses representantes explicam as questes mais complexas
aos membros de sua associao e aos moradores do bairro e lhes
do a oportunidade de compreender, de deliberar e de participar das
decises pblicas. Mas, inversamente, sob pena de serem acusados
de particularismo, de localismo ou de comunitarismo por jornalistas,
polticos e especialistas, os representantes devem renunciar s com73

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petncias de proximidade que so prprias deles para se valerem de


uma linguagem de interesse geral. Eles valorizam suas experincias
vividas, seus saberes locais e seus laos pessoais, prprios do bairro,
mas devem reenquadr-los em relao aos desafios pblicos e, por
vezes, at mesmo descart-los para argumentar e fazer sentido perante outras instituies, em outras esferas de ao e diante de outras
cenas pblicas.
As vias de acesso arena pblica passam por regimes de engajamento
no pblico. Gamson havia analisado os quadros (frames) de injustia que so articulados por atores comuns para qualificar problemas
sociais como inadmissveis e intolerveis; para determinar responsveis ou culpados e fazer deles o alvo de ataques; para clamar pela
constituio de um coletivo capaz de demandar a reparao; e para
acionar as instituies suscetveis de restaurar uma ordem aceitvel
das coisas. Porm, esses quadros de injustia no so lentes cognitivas por meio das quais os atores constroem o mundo. So, antes de
tudo, experimentados em ocasies sensveis, em movimentos afetivos
de averso, desconforto e ansiedade, de irritao e de frustrao, de
raiva e de ressentimento, de clera e de indignao. Eles so encarnados em provas emocionais e perspectivas que no se fecham no
foro ntimo de sujeitos solipsistas, mas que remetem diretamente ao
horizonte de um senso comum e que visam intencionalmente certos
estados do mundo. O senso de injustia se expressa em descries
que do conta de provas corporais, portadoras de um sentido tico,
cvico ou poltico, que atravessa seus atores.
A revolta e o protesto encontram suas fontes, segundo alguns membros
da associao, na primeira experincia que tiveram com a insalubridade das habitaes, superpovoadas por famlias numerosas e sublocadas
em preos passveis de anulao. Foram acometidos por toda sorte de
sentimentos e sensaes mais insuportveis que tinham para com sua
vizinhana local, como o cheiro de urina, as escadas intransitveis,
as vidraas quebradas, os apartamentos lotados e inundados etc. A
experincia do que injusto, mas tambm do que indecente e inconveniente, decorre do modo passivo do ser afetado (Stimmung)
pela situao, antes dessa experincia ser formatada segundo as
modalidades prticas dos regimes da crtica e da denncia, da compaixo ou da indignao. As reunies de informao e de consulta
foram a ocasio para que se experimentasse outra experincia-chave
na mobilizao dos moradores do bairro: foram vividas como
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situaes de maus-tratos infligidos aos cidados reunidos na Prefeitura, como situaes de descaso (salas minsculas, sem cadeiras e com
planilhas ilegveis) e de condescendncia dos polticos e dos tcnicos
da Prefeitura (omisso s perguntas feitas, atmosfera de ameaas
contra membros de associaes). Essas reunies rapidamente foram
o motivo da publicizao do descontentamento, sob a forma de cartas
endereadas ao Prefeito e assinadas coletivamente por porta-vozes
das associaes e por notveis de moralidade do bairro.
Esses choques emocionais tm a ver com percepo, afeto e moralidade, indissociavelmente. So da ordem do sentir e do ressentir.
Desestabilizam o sentimento de evidncia que cada um mantm com
seu ambiente natural e desfazem a modalidade do dado inquestionvel, do tido como certo (taken for granted) que caracteriza as
manifestaes do mundo da vida cotidiana. O sistema de coordenadas
comuns que regula a relao de familiaridade com a vida no bairro
fica abalado. O campo de experincias e o horizonte de expectativas15 dos moradores no so mais evidentes. O senso de decncia da
moradia dos vizinhos de bairro e o sentido de dignidade na conduta
dos polticos em relao a seus administrados so atingidos. Essas
provas afetivas, mais frequentemente colocadas sob o signo da humilhao e do desprezo do que manifestadas em linguagem diretamente
poltica, foram classificadas por Jasper como choques morais.16
Porm, estes so tambm choques estticos ou cvicos, segundo os
critrios de apreciao e de avaliao empregados. Para algum que
nasceu no bairro e que nele viveu toda a sua infncia, a totalidade
da memria corporal que se v ameaada e a histria de vida que ser
destroada. Para uma pessoa idosa, so rotinas muito arraigadas que
correm o risco de cessar, uma economia da autonomia, da afeio e
da ajuda mtua que ser destruda com a transferncia de domiclio
por uma instituio especializada. Para o comerciante, o fim do seu
comrcio (mon affaire qui est foutue), no somente sua fonte de
renda, mas tambm o pequeno mundo que sedimentou dia aps dia no
seu pequeno botequim ou na sua lojinha. Para o bobo recentemente instalado para usar a rotulao vernacular criada pelos nativos
parisienses de burgus bomio (bourgeois bohme) alm do
fato de ter seu bem desvalorizado e de ter de sair de novo procura
de alguns metros quadrados, um pedao do sonho urbano que se
15
16

Koselleck (2006).
Jasper (1997).

75

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esvai, Paris que vai embora, so os promotores que massacram


a cidade.
Esses quadros de experincia, com sua materialidade corporal, seus
laos espaciais e profundidades temporais, seus jogos de sociabilidade
e redes de imaginrio, organizam o sentimento de indignao. A passagem do distrbio afetivo e moral denncia e ao protesto pblico
pelos moradores do bairro assume formas diversas. O discurso crtico,
elaborado em termos tcnicos, jurdicos ou polticos, somente sustentvel se baseado em sentimentos e sensaes de indignao que tm
a densidade da Lebenswelt, ou seja, do mundo da vida. O vizinho
fica horrorizado com os buracos de ratos em que ficam amontoadas
as pessoas, com quem ele compartilha o mesmo espao pblico nas
ruas, ignorando totalmente sua intimidade; o eleitor fica consternado
com a falta de civilidade democrtica e com a demonstrao de incompetncia e de arrogncia de alguns tcnicos da Prefeitura de Paris;
a me fica abalada por imaginar seus prprios filhos no meio dessas
crianas atingidas pelo saturnismo de tanto absorver pelo ar pinturas
com sais de chumbo; o locatrio fica escandalizado com a falta de
respeito s leis e com a explorao da misria por alguns proprietrios
sem escrpulos. Um indivduo categorizado como cidado no deixa
de ser uma pessoa de carne e osso, envolvida no mundo cotidiano,
de acordo com uma multiplicidade de regimes de engajamento. Essa
pessoa se engaja publicamente, mas seu impulso inicial est enraizado em vulnerabilidades singulares, nfimas humilhaes, angstias
indizveis que no se deixam facilmente publicizar. A transio dos
choques afetivos, sensveis e morais aos julgamentos articulados na
linguagem da publicidade, ocorre por meio da definio da situao
problemtica e, concomitantemente, mediante a produo de padres
de ao e formulao de boas razes para agir.
Alerta e pesquisa, territrio e memria
Segundo os relatos dos moradores do Baixo Belleville, a indignao limitou-se, num primeiro tempo, ao registro quase privado
da vizinhana, do familiar, do falar em casa e entre si mesmos. A
inquietao, de incio difusa, foi despertada por um detalhe suspeito: o crescimento do nmero de janelas muradas dos apartamentos
e a progressiva degradao do bairro, dando-lhe uma aparncia de
abandono. Alguns proprietrios, desconfiados desses ndices que
lhes colocaram a pulga atrs da orelha, se envolveram numa
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pequena indagao, na acepo da inquiry de Dewey (1927), para


problematizar uma situao perturbadora, porque incompreensvel.
Verificaram no cadastro quem eram os proprietrios das moradias
em questo e descobriram que todas tinham sido, sistematicamente,
objeto de preempo pela Prefeitura. Informaes vazadas da administrao municipal sob a forma de rumores a propsito de um projeto
de renovao do, ento, um contorno ao alerta. Uma operao de
planejamento tinha sido lanada sobre o permetro do bairro e uma
sociedade de economia mista foi mobilizada, revelia dos moradores
que, informados pelas vias informais da fofoca, se espantam de no
terem sido previamente consultados. A notcia refora o sentimento
de ansiedade coletiva, acelera e intensifica o rumo da indagao,
conduz interpelao dos poderes pblicos, abre a dinmica temporal
dos prognsticos, das denncias e dos protestos. Ser que essa Zona
de Planejamento Urbano Combinado (ZAC) efetiva? Quem tomou
essas decises, quando, onde, como e por qu? Com que argumentos
o prefeito justifica essa situao? Esse estado de coisas legalmente
sustentvel sem a realizao de uma enqute publique?17 Em que consiste o projeto de renovao? O que vai acontecer com os locatrios
e proprietrios do bairro?
A suspeio sem um objeto preciso, somada ao alerta provocado pelo
vazamento das informaes da administrao municipal, encontra
uma consistncia maior por ocasio de um evento anterior. Os buldzeres chegam ao incio de uma manh para demolir as construes
industriais desativadas da velha Forge, sem aviso prvio. O evento d
origem a uma multido que atrapalha a obra. Um oficial de justia
convocado e constata a presena de uma ilegalidade. Com isso, esse
vestgio entre os outros, geralmente pouco notado, salvo por crianas
que vinham jogar e por squatters das imediaes, acaba sendo valorizado e ganha esse carter de individualidade e de unicidade dos
lugares aos quais se tem apego. Esse evento adquire um novo sentido
na histria de resistncia destruio e reclassificado como uma das
frentes de batalha. Mais tarde, a ocupao selvagem do prdio e dos
arredores seguida pela criao de uma associao de artistas que
negocia aluguis com a Prefeitura e, por fim, pela incluso do espao
em um projeto de animao cultural pea central da reabilitao
17

Enqute publique (investigao pblica) a fase inicial da consulta pblica, durante a


qual o pblico, ou seja, os moradores, associaes, atores econmicos e cidados comuns,
so convidados por um comissrio-investigador (commissaire-enquteur) a formular suas
opinies, crticas e sugestes sobre um determinado projeto de regulao ou de planejamento,
apresentado por uma entidade pblica ou estatal.

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em curso. Outro acontecimento provoca uma verdadeira agitao:


a expulso manu militari pelos CRS18 dos moradores do prdio de
nmero 42 da rua Ramponeau, que so jogados na rua sem nenhum
cuidado e a quem se propem remanejamento para locais distantes,
nos subrbios norte e leste de Paris, com a finalidade de dispers-los.
Durante vrios dias, eles acampam na rua, em meio a seus pertences,
recusando, temporariamente, as condies de seu remanejamento e
suscitando um movimento de indignao, de compaixo e de solidariedade entre seus vizinhos.19 O sentimento de intolerncia frente
ao desprezo dos polticos eleitos em relao a seus administrados e
frente injustia cometida com os vizinhos se intensifica. A ansiedade, de incio expressa nas conversas banais na soleira das portas e
no balco dos bistrs, se desenrola coletivamente a favor da investida
sobre o espao pblico da rua como lugar de protesto.20 O fluxo livre
de palavras de descontentamento e raiva torna tangvel a ameaa de
destruio do bairro que, at ento, s dizia respeito a algumas pessoas
e se restringia apenas aos prdios abandonados.
Circulam relatos. Medos so expressos em palavras. Lembranas
despertam. Os judeus tunisianos recordam seu exlio em Hara, seu
bairro em Tnis, entre 1956 e 1967. Os velhos imigrantes, enxotados
de seus quartos, vendo seus lares destrudos, se sentem desamparados.
O bairro se torna um lugar de nostalgia para aqueles que devem partir: se trocam promessas de retorno, de jamais cair no esquecimento.
Torna-se tambm o campo de uma solidariedade prtica: vizinhos
oferecem alimentos, oferecem seus banheiros ao uso. O sentimento
de apego se intensifica no meio desses fragmentos de intimidade
exibidos s claras: os colches e as malas empilhados la va-vite
(v depressa!) se exibem sem pudor nas caladas da rua Ramponeau,
expondo os pertences de algum arrancado de seu lar. A prova tem
por tonalidade dominante uma mistura de humilhao e amargura, de
resignao para alguns, de revolta para outros. Enredos e narrativas
se desdobram, nos quais os papis de culpados e de vtimas, de bons
e de maus, so distribudos entre diferentes personagens, quando os
18

19

20

Compagnies Rpublicaines de Scurit (CRS): regimentos de polcia que intervm em casos


de revolta popular ou que regulam as manifestaes de rua. As CNRS fazem parte da Police
Nationale.
Restam algumas imagens desse episdio no documentrio de P.Baron, Babelville (Frana,
1994, 58min.), projetado em pr-estreia no dia 5 de maro de 1993, no Berry-Zbre. Muitos
moradores de Belleville possuem esse documentrio gravado em fitas de vdeo-cassete.
Joseph (2007).

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acontecimentos surgem como episdios que se encadeiam para formar


uma histria. Um mundo est se perdendo, no naufrgio provocado
pelas prfidas decises, a portas fechadas, da Prefeitura, cujos expoentes percebidos so os CRS e seus cassetetes. Uma injustia est
sendo cometida contra pessoas de parcos recursos, que moram logo
ali, na porta ao lado; pessoas comuns, que cumprimentamos na rua
e que passam por ns no supermercado. Uma angstia toma todos
os moradores para os quais aquilo apenas o primeiro passo de uma
expulso programada: todos se reconhecem nessas primeiras vtimas
do projeto de renovao. O acontecimento tem um papel de operador
da concentrao e da intensificao dos afetos, at ento dispersos, em
um sentimento de indignao compartilhado por todos. Faz nascer,
no auge da prova, o apego ao bairro e a urgncia de proteg-lo. D
um toque inicial mobilizao e coordenao.
Em consequncia disso, o quartier (bairro) torna-se o heri de
uma histria de mltiplas facetas: a histria da resistncia a uma
poltica urbana abusiva, na qual se entrelaam todas as pequenas
histrias cotidianas das batalhas contra as expulses vividas no bairro, as histrias contadas pelos jornais, as histrias das audincias no
tribunal administrativo ou das reunies de consulta popular, as histrias dos militantes e ativistas da associao. O bairro comea a
existir segundo novas modalidades, oriundas de seu enquadramento
narrativo.21 Parece se desenhar de forma menos vaga como territrio
circunscrito, embora a rea de ao da associao, copiada do territrio administrativo da ZAC e coincidindo com o espao dos blocos e
quarteires ameaados, seja mais reduzida do que a Belleville vivida
pelos moradores e transeuntes. Mas sua identidade parece ainda bem
consolidada, menos fantasmagrica, materializada nos percursos espaciais de cada um, ratificada tanto pelos mapas pendurados na parede
do local de La Bellevilleuse quanto pelos passeios organizados pela
associao Belleville insolite.
Relatos escritos em outras arenas de experincia e de atividade tambm so repatriados. Belleville no mais simplesmente o tema de
trabalhos acadmicos ou de empreendimentos artsticos, constituindo-se, de fato, como destinatrio desses trabalhos e empreendimentos e,
com isso, amparando-se neles e convertendo-os em fontes e recursos
de experincia local. assim que teses de doutorado sero recicladas
21

A propsito da categoria quartier, cf. Topalov (2002).

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e funcionaro como comprovantes dos mitos comuns. O bairro percebido e exaltado como lugar de acolhimento de sucessivas ondas de
imigrantes,22 memorial da Comuna de 187123 e da cultura popular24
da antiga Paris. Diversas exposies fotogrficas do nfase a sua
dimenso de bairro multicultural25. Noitadas de chanson raliste, a
cano realista de Edith Piaf, fazem reviver o passado nos bares
ao som do velho acordeom. O bairro se transforma em referncia de
literatura internacional, por intermdio dos romances policiais de
Thierry Jonquet (1993) e da saga de Malaussne de Daniel Pennac
(1995). Esses elementos contribuem para criar elos com esse ltimo
bastio de humanidade e para justificar a defesa de uma Paris
que est morrendo: La Bellevilleuse aproveita esse entusiasmo de
apego nostlgico, tomando cuidado, entretanto, para no transformar
a salvaguarda desse passado mtico em seu objetivo.
Saberes locais e relaes interpessoais
Sendo a associao um coletivo, ela se desenvolve nesse contexto. O
conflito local, como analisador, tem o poder de desvelar as coisas
pblicas da cit e, como catalisador, de agenciar as expectativas
coletivas. A mobilizao de militantes ativos, o recrutamento de
novos membros e a sensibilizao de simpatizantes se desenvolvem
nas redes de sociabilidade da La Bellevilleuse: em primeiro lugar,
entre as pessoas mais prximas, nas relaes de vizinhana e os
frequentadores das atividades de lazer; depois, pelo boca a boca,
seguindo os laos de confiana, de familiaridade e de solidariedade
de ordem interpessoal. A associao se ancora, inicialmente, nos
grupos de afinidade e nas redes de amizade de seus membros fundadores. Em seguida, ela se expande pelas adeses conquistadas por
meio do arsenal das tcnicas militantes: campanhas de divulgao
e afixao de cartazes em paredes, plantes nas ruas, distribuio
de panfletos em caixas de correio, na sada do metr ou na feira do
Boulevard de Belleville. Fazer campanha de porta em porta uma
interessante situao de interao face a face. Os associados tentam
compartilhar sua experincia de indignao moral e cvica e propem
aos moradores do bairro, frequentemente estrangeiros, imigrantes
22
23
24
25

Simon (1994).
Jacquemet (1984).
Morier (1992).
Duas exposies: Belleville, Belleville, em maio de 1992 (Pierre Gaudin) e Visa Villes, em
maro de 1993 (Jean-Michel Gourden).

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regulares ou clandestinos no proficientes na lngua francesa, ou


ainda pessoas de baixa escolaridade sem as mesmas capacidades de
articulao poltica, que se unam ao coletivo. Pedem a sua adeso
recorrendo ao discurso da cidadania, mas so obrigados a reivindicar
uma posio de vizinho ou de familiar e, ainda, a se distanciar
da categorizao de representantes de comrcio, de testemunhas de
Jeov, de assistentes sociais ou de investigadores de polcia. Eles
devem esclarecer o significado do pagamento em dinheiro de uma
cotizao para defender uma causa pblica e para aderir associao
gesto, s vezes, interpretado como equivalente aquisio de um
servio ou a um suborno para se obter um favor. O ato de comprometimento do morador no fruto de um trabalho de conscientizao
militante: resulta, em ltima instncia, de um trabalho de ajuste
recproco entre duas pessoas, que devem, primeiramente, definir o
significado de sua co-presena, eliminar mal-entendidos e equvocos
que atrapalhariam seu andamento, compreender minimamente quem
elas so e o que elas querem, antes que um esforo de traduo dos
objetivos da associao os torne mais ou menos acessveis no mundo
vivido do morador. O entendimento recproco flutuante, marcado
pela desconfiana, no isento de equvocos, governado pela meta de
felicidade da interao, meta suficiente para todos os fins prticos. A
microssociologia goffmaniana est aqui colocada a servio de uma
antropologia da cidadania ordinria.
Sem dvida, a associao se configura nos estratos que so os grupos,
as redes e as organizaes j estabelecidas. Arrisca-se mais facilmente
a agir quando se sabe mais ou menos onde colocar os ps; quando
se confia minimamente nos representantes a quem delegam poderes,
quando se compartilha a mesma sensibilidade, quando o alinhamento
nas mesmas interpretaes se faz quase automaticamente. A associao encontra mais adeso em meio s classes mdias recentemente
instaladas no bairro; encontra resistncias da associao de comerciantes do Boulevard de Belleville, vencida pelas promessas do prefeito
local; no recruta quase ningum entre os chineses e asiticos do
Sudeste da rua de Belleville, mais desconfiados e menos concernidos.
Mas a associao no se conecta s em redes de sociabilidade preexistentes: ela tambm cria novas redes. Funciona como um operador
de elos entre pessoas e entre organizaes. uma matriz de reconhecimento e de inter-relao, que sustenta as cooperaes de ao
coletiva. Atravs dela, membros de associaes at ento separadas
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3 Prova / Kthia /30/04/2011

umas das outras se contatam e participam de projetos comuns. As


colaboraes de La Bellevilleuse seja com Feu Vert (Sinal Verde)
para implementar programas de educao de rua, seja com Mdecins
du Monde (Mdicos do Mundo) para denunciar casos de saturnismo
infantil, seja com os Ateliers Artistes de Belleville (Oficinas de Artistas de Belleville) para organizar a animao cultural das Journes
Portes Ouvertes (Jornadas Portas Abertas) ensejaram aproximaes
que, por sua vez, permitiram impulsionar novas aes coletivas. La
Bellevilleuse, ao se limitar deliberadamente ao mbito circunscrito da
ZAC, possibilitou que se criassem, ao mesmo tempo, laos amigveis
e trocas de experincias e de conhecimento (savoir-faire) com a associao Mare-Cascades, na ladeira do monte, e, embora com mais
dificuldade, tambm com a Ste.Marie-Ste.Marthe, do outro lado do
Boulevard de la Villette. Esses feixes de relaes, mais ou menos
bem-sucedidas, mais ou menos espordicas, com geometria varivel,
sustentam os engajamentos pblicos dos indivduos. E remodelam a
paisagem associativa do bairro.
As redes de inter-relao em escala local so cruciais para garantir
uma mobilizao pblica. Alm disso, a definio da situao de
reabilitao do bairro se apia em saberes locais, relativos s formas
de vida associativa prprias de um territrio, aos usos de lugares
semipblicos e pblicos, s prticas de solidariedade e de ajuda
mtua entre vizinhos; como tambm saberes referentes ao estado de
deteriorao dos imveis, s necessidades de reas livres de jogos
para as crianas e de espaos de integrao para os adultos, necessidade de expanso do ptio de recreio de uma escola ou de um asilo
para pessoas idosas. Estes saberes locais so compartilhados pelos
moradores no seu cotidiano ou esto ligados frequentao assdua
desses lugares. Eles desenham uma topografia de suas experincias
individuais e coletivas, de seus modos de uso dos espaos privados,
semipblicos e pblicos, de suas valorizaes dos lugares vividos e
praticados no dia a dia, investidos de toda sorte de qualidades que
escapam ao urbanista. Permitem conceber planejamentos do espao
fundados baseados no conhecimento sobre os lugares: da a proposta
de se cavar uma passagem na parede entre o no 18 da rua de Belleville, na pequena ala de atelis da casa de Mika e a La Forge; da
a solicitao de reforar as fundaes do prdio do Sr. Kahloun
(comerciante tunisiano) e da padaria, e de valorizar essa espcie
de quinta do sculo XVIII, na parte baixa da rua Ramponeau; da a
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3 Prova / Kthia /30/04/2011

discusso spera para trocar a disposio do ptio da escola, da qual


os diretores do estabelecimento participaram, a fim de defender com
unhas e dentes seu ponto de vista. Os saberes locais fazem surgir a
expresso pblica das dificuldades encontradas no local ausncia
de contratos de aluguel, famlias numerosas, problemas sociais,
moradias insalubres bem como suas inquietaes, incmodos e
decepes, quer se trate da regularizao de situaes precrias vividas pelos imigrantes sans papier (sem documentos), quer se
trate da espera por moradias HLM26 requeridas h mais de 15 anos.
Tais discusses permitem imaginar, ainda, as oprations-tiroirs
(operaes-gavetas), destinadas a abrigar famlias no prprio bairro
durante a reabilitao de seus prdios. Os saberes locais sofrem uma
conformao temtica a partir de sua incorporao em vrios formatos: nas conversas locais com os plantonistas, nas entrevistas coletadas
pelos jornalistas ou pelos cineastas, nas reformulaes por ocasio
das reunies bimestrais do conselho da associao, nas reimpresses
dos panfletos de denncia ou de reivindicao, nas inscries sob uma
forma apropriada nos documentos oficiais.
Estes saberes locais so codificados pela associao, que se torna
uma caixa de ressonncia, um catalisador e um analisador, que
os traduz em linguagem inteligvel para as agncias tcnicas e administrativas, para os polticos eleitos ou para os meios de comunicao
de massa. Os membros permanentes da associao so vetores de
intermediao, que coletam elementos de informao e anlise na proximidade, mas que operam e dominam tambm as gramticas polticas
da ao pblica. Eles pesquisam sobre as demandas dos moradores,
constatam visualmente o estado dos prdios do bairro, procedem
coleta de informaes e constituio de dossis, constituem uma
espcie de bancos de dados e se apiam sobre esse conhecimento,
ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, para dar consistncia s suas
reivindicaes. Eles no se contentam em pesquisar, mas com o apoio
de uma instituio pblica, patrocinam tambm uma investigao
junto a um escritrio de consultoria independente, o que vai romper
de maneira ainda mais forte com o contexto local. Essa produo
de um relatrio de alta legitimidade diante dos olhos dos polticos
e dos funcionrios da Prefeitura de Paris os obriga a financiar uma
contrainvestigao, o que os leva a uma guerra de informao e de
26

HLM (Habitation Loyer Modr Habitation) designa um tipo de conjunto habitacional,


com aluguis a preos mdicos.

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

contrainformao, com vistas a convencer o pblico. Essas diferentes


indagaes coexistem com o inqurito pblico realizado por uma
oficial, encarregada de registrar em atas as queixas dos moradores e
que acabar se tornando, posteriormente, plantonista da associao.
Todos esses dispositivos criam dados, com forte ancoragem local, e
fazem emergir representaes do bairro que colocam em questo o
interesse e a legitimidade de sua reabilitao, preservando-se contra
um processo muito brutal de renovao urbana.
PROCESSOS DE PUBLICIZAO
A configurao dos modos de engajamento no bairro constitui uma
base slida dos atores associativos na arena pblica sob trs aspectos.
Eles defendem um territrio que lhes caro e ao qual eles so apegados, que valorizam como bem comum e do qual fazem um espao
pblico. Agem em redes de relaes de proximidade, que transformam
na formao de coletividades publicamente reconhecidas. E apoiam-se em saberes locais que, uma vez reconvertidos e recompostos, so
validados pblicamente e inseridos na concepo do projeto de reabilitao. A associao encarna o processo de formulao de referncias
identitrias, canaliza a energia da rejeio e converte-a em protesto, e
ainda contribui com a produo de repertrios de argumentao e de
motivao. Alerta a populao contra um risco, constituindo-a como
pblico interessado ou motivado a agir; realiza uma pesquisa de
maneira a esclarecer uma preocupao inicialmente confusa e a explicitar os termos de um problema articulado; define um bairro, com
suas fronteiras, sua identidade e sua memria, recenseando elementos
do territrio e do patrimnio; ativa redes de relaes interpessoais
e inter-organizacionais, fazendo emergir e validar saberes locais,
implicados na determinao das escolhas da ao pblica.
Aps ter insistido nas ancoragens de proximidade dessa mobilizao
coletiva, diremos algumas palavras sobre a maneira como, apesar de
tudo, ela no se fecha em si mesma, evitando as censuras acusatrias
de particularismo e localismo.
A tcnica e o direito: comensurao,
coordenao e generalizao
Para se fazerem entender, os porta-vozes da associao devem falar
idiomas pblicos que sejam inteligveis para seus protagonistas.
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Eles selecionam registros de discursos que autorizam operaes de


comensurao ou proporcionalidade e que delimitam um espao de
debate comum. A economia, a tecnologia e o direito contribuem
para essa mediao. Os membros mais engajados da associao se
valem de uma verdadeira competncia em matria de planejamento
urbano. Aprendem a utilizar linguagens e procedimentos tcnicos e
a se referir a experincias e experimentaes j aprovadas em outros
contextos. Adquirem, assim, um conhecimento tcnico. Informam-se
junto aos especialistas que os ajudam a imaginar e a propor solues
alternativas, inspiradas em projetos de urbanismo realizados em
outros lugares; se articulam com outras associaes na Frana ou
no exterior para conhecer os efeitos perversos produzidos por certas
operaes de urbanismo. Um engenheiro de Ponts et Chausses,27
por exemplo, um dos militantes e conselheiros pioneiros da associao. Professores da Escola Nacional Superior de Arquitetura de
Paris-Belleville organizam concursos para projetos de reabilitao
do bairro com seus estudantes. Um arquiteto, membro ativo da
associao, acompanha toda a fase de redao dos projetos com o
Atelier Parisien dUrbanisme desde 1995. Gradualmente, alguns dos
militantes efetivos adquirem um verdadeiro saber sobre os materiais,
as tcnicas e os custos. Eles esto no campo da expertise da administrao municipal e desafiam seu monoplio.
A Prefeitura desenvolve, desde o incio, o discurso em torno da modernizao das moradias e servios e do bem-estar social dos moradores.
sobre esta base que a Prefeitura monta, secretamente, o dossi da
ZAC, mobiliza suas foras polticas (visitas do prefeito de direita e
intercesses de notveis no bairro) e tenta se articular com clientes
(promessas de indenizaes, arranjos tcitos e garantias de realocao
para alguns comerciantes). O bairro, segundo a Prefeitura, j est
condenado. A nica soluo radical, seria destruir e reconstruir. La
Bellevilleuse contra-ataca minimizando o estado de deteriorao do
bairro. Com o apoio financeiro de agncias pblicas o Fas (Fundo
de Ao Social) e o Plan Urbain (Plano Urbano) a associao
lana um concurso pblico que encabea com a ajuda de socilogos
e urbanistas. O comit que criado decide se dirigir a uma agncia
de consultoria, a Act, para obter um parecer sobre o estado material
27

Ponts et Chausses: A cole des Ponts ParisTech, criada em 1747 com o nome de cole
Royale des Ponts et Chausses (Escola Real de Pontes e Caladas), uma grande cole,
com a vocao de formar os quadros da Engenharia Civil.

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dos imveis, as atividades comerciais e a vida social do bairro. Essa


iniciativa original: jamais uma associao de bairro se havia centrado
nesse campo. Como consequncia, o relatrio final avaliza as posies de La Bellevilleuse e evidencia a ausncia de uma investigao
sria por parte da Prefeitura. Essa jogada fora a municipalidade a
financiar um estudo por dois organismos independentes, a Sofres e
a Qualiconsult. Os resultados dessas pesquisas, com a certificao da
objetividade, so tornados pblicos em reunies. So peas cruciais
na dinmica do enquadramento (framing), do contraenquadramento
e do reenquadramento, por meio dos quais os campos se formam,
se afinam e criticam suas respectivas posies e estabelecem os
termos de sua oposio em pblico. As avaliaes cifradas do Estado, apresentadas em estatsticas sobre o estado de deteriorao das
construes, imvel por imvel, e da gama de despesas necessrias
para a sua reabilitao, so comparadas. O debate pblico limitado
pelos estudos de viabilidade e de oramento dos servios tcnicos
da Cidade de Paris e pelas contra-avaliaes feitas pela associao e
seus conselhos tcnicos. Essa multiplicidade de confrontaes articula
pontos de conflito. Os dados, avaliaes e concluses migram dos
relatrios de especialistas para as declaraes miditicas de ativistas
ou de polticos, para os argumentos de utilidade pblica destinados
aos cidados-usurios, para os projetos de estudantes da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo de Paris-Belleville e para as defesas dos
advogados perante o Tribunal Administrativo. A tcnica permite objetivar, mensurar e comparar as situaes em deliberaes pblicas,
quando se trata de decidir quais imveis devem ser salvaguardados
no Bas-Belleville. Fornece tambm cnones de coordenao e de
transao em uma escala muito fina. No horizonte dessa linguagem
comum e dessa problemtica compartilhada, tornam-se possveis
ajustes locais entre pontos de vista mas corre-se tambm o risco de
confinar a crtica em uma camisa-de-fora tecnocrtica, eliminando,
a priori, certas potencialidades no inscritas no repertrio dos hbitos
e das crenas profissionais dos urbanistas.
Por outro lado, os porta-vozes da Bellevilleuse se apoiam no direito.
O Code de lUrbanisme (Cdigo de Urbanismo), o Code des Communes (Cdigo Comunal dos Municpios), a Loi dOrientation de la
Ville LOV (Lei de Orientao da Cidade) e os diversos regulamentos
formam um arcabouo normativo, por meio do qual os atores passam a
existir publicamente e a inscrever suas aes. O direito a linguagem
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da publicidade por excelncia. Ele possibilita uma relao de equivalncia entre situaes e atores sociais e fixa regras e procedimentos
que balizam, previamente, o campo das aes e das interaes. Ela
refora a lgica dentica do obrigatrio, do proibido, do tolerado
e do facultativo que regulam as atividades prticas, impondo seu
poder de coao normativa. O direito supostamente o mesmo para
todos, garantindo-lhes as mesmas liberdades e as mesmas restries.
Ele incorpora o trao das lutas anteriores, sob a forma de princpios
de igualdade e de justia, de responsabilidade e de publicidade, que
so levados a cabo pelas polticas de urbanizao (amnagement urbain). Ele prescreve as prerrogativas dos oficiais da coisa pblica
e limita seus raios de ao e suas margens de manobra; ele prev,
penalizando a transgresso da separao entre os bens privados e os
bens pblicos. O direito desenha os horizontes da espera e articula
os campos da experincia, configurando uma identidade dos atores e
os engajamentos em determinadas intrigas. Ele comanda as regras do
jogo e fornece o formato de coordenao entre os atores, destinando
solues a certos tipos de disputas e litgios.
No caso do nosso conflito urbano, leis e regulamentos so constantemente acionados em oposio Prefeitura. Trata-se de uma srie
de cdigos que, por sua vez, habilitam e restringem, constituindo um
repertrio de recursos de protesto e so onipresentes nas correspondncias endereadas aos representantes oficiais onde elas exercem um
papel de advertir (rappel lordre). Fornecem, ao mesmo tempo, o
pano de fundo da ao pblica, impondo que as reunies de consulta
popular aconteam publicamente e que seja redigido um programa
de referncia que sirva de base para as operaes de reestruturao
urbana. As consequncias prticas do direito so muito fortes. A
deliberao do Conseil de Paris (Cmara de Vereadores de Paris),
que tinha institudo a Zac Ramponeau-Belleville, anulada pelo
Tribunal Administrativo por violao do artigo L121-15 do Code des
Communes, que estabelece que as sesses dos conselhos municipais
so pblicas. Segundo as narrativas recolhidas, dezenas de pessoas
foram impedidas pelos agentes de segurana do Htel de Ville28
de assistir a uma reunio pblica da Cmara. Logo aps, todo o
programa implementado pela Prefeitura acabou sendo derrubado.
A deciso judicial, fundada no Direito, irrevogvel e irretratvel.
28

O Htel de Ville o local que abriga fisicamente as instituies municipais. Nesse caso, a
Prefeitura de Paris e a Cmara de Vereadores.

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De certa forma, a disputa da Zac foi encerrada pela fora da coisa


julgada; porm, o conflito urbano prossegue, se desloca, se relana
e se reconfigura em outras arenas pblicas.
Essa situao paradoxal. As tcnicas econmicas, arquitetnicas ou
urbansticas so garantias de eficcia, de funcionalidade e de rentabilidade; as regras do direito implementam um universo comum e permitem
realizar um mnimo de justia social e de democracia poltica. O fato
de que os membros de La Bellevilleuse e de muitas outras associaes
de bairro recorrem ao direito como uma arma de luta e um quadro de
referncia coerente com uma dinmica de multiplicao de dispositivos, que, por sua vez, tentam incorporar os cidados comuns seno
nos processos de deciso, ao menos nos processos de proposta e de
discusso. Esse movimento se intensifica aps se tomar conhecimento
das esperanas suscitadas pelas temticas da democracia deliberativa
e participativa que, por sua vez, se tornam uma espcie de gadget
necessrio (objeto engenhoso, mas de eficcia duvidosa) e que faz parte,
doravante, da panplia das tcnicas de governo. Alguns representantes
de associao se constituem como especialistas das leis e regulamentos
e apontam todos os vcios da forma nas operaes do planejamento
urbano, mostrando-se, s vezes, mais perfeccionistas que os prprios
profissionais e preenchendo inteiramente a sua funo de parceiros
do municpio nas reunies, por exemplo. Alm dos usos do direito
nesse jogo de Go (jogo chins de estratgia) que caracteriza a poltica
urbana, eles acabam criando hbitos de cooperao na produo dos
saberes, na concepo das reformas, na elaborao de suas modalidades
e no prosseguimento de suas realizaes. No so mais tanto as regras
do direito, seno os usos locais e as convenes prticas que se constituem, por meio dessa repartio de competncias e de prerrogativas
entre cidados, polticos e especialistas. Paradoxalmente, com o efeito
de limitar o campo das probabilidades s oportunidades circunscritas
tcnica e juridicamente, o realismo tambm pode acabar com a imaginao. E neste campo, ocupado ao longo do tempo pelos especialistas, o
desgaste da ao associativa corre o risco de jogar contra seus prprios
interesses. A menor reduo de intensidade no engajamento conduz a
um retorno s mais clssicas das solues
Repertrios de argumentao: lugares comuns e tticas retricas
Ao lado dos idiomas pblicos da tecnologia e do direito e dos dispositivos institucionais por meio dos quais eles esto encarnados
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e implementados, outros tipos de repertrios de argumentao so


usados pelos membros de La Bellevilleuse,29 nas situaes pblicas,
nas interaes face a face (face to face interactions) e nos encontros
focados (focused gatherings).30 Os argumentos fluem: em conversas
cotidianas, mais ou menos sofisticadas; em disputas com funcionrios municipais (garis, agendas de sade, assistentes sociais) que
espalham boatos; durante as Jornadas Portas Abertas, em que os
artistas recebem os visitantes do bairro (anualmente, no incio do
ms de maio). Esses argumentos so aprimorados nas assembleias
dos moradores do bairro, na inteno de inform-los sobre o estado
das negociaes, em correspondncias enviadas aos representantes
da Prefeitura ou em entrevistas concedidas aos jornalistas e aos
socilogos. Esses argumentos no so apenas racionais e razoveis,
endereados a um tribunal da razo pblica. So argumentos que se
escoram sobre todas as outras formas de engajamento, inclusive nos
regimes de familiaridade, e que tm uma textura emocional, afetiva,
em particular na formulao dos sentimentos morais. Tais argumentos
so direcionados tanto aos moradores, vizinhos, funcionrios pblicos, representantes polticos, juzes, jornalistas, quanto aos cidados
comuns sendo, inclusive, modulados conforme o destinatrio. Os
membros da associao atribuem causas para situaes e motivos
para as aes; distribuem papis de responsveis, juzes e vtimas,
encenando o conflito como drama pblico;31 e fornecem de um s
golpe as razes convincentes para que as pessoas ajam e legitimem
as escolhas estratgicas da associao.
La Bellevilleuse interpela os poderes pblicos e a opinio pblica
e justifica muitas de suas reivindicaes por princpios gerais que
transcendem os limites do bairro. Defende o direito moradia para
os mais desfavorecidos, evocando, assim, princpios de justia
social. Critica a lgica do lucro de algumas empresas fundirias,
que a incitam a buscar a soluo mais rentvel em vez de a mais
razovel. Defende um remanejamento territorial mais harmonioso,
no lugar dos projetos agressivos de destruio e reconstruo, falando de uma micro-cirurgia do territrio. Invoca a salvaguarda
do patrimnio arquitetural ou histrico sem, no entanto, se limitar
a um conservadorismo museogrfico. Defende a preservao de
29
30
31

Cefa; Lafaye (2002).


Goffman (1963).
Gusfield (1981).

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certas formas bellevilloises de apropriao do espao e de atividade


pluri-econmica e apresenta o bairro como um laboratrio natural de
mescla social (mixit sociale) e de coabitao intercultural32 temas
da ao pblica com grande legitimidade. Associa o bairro ao mito
da village dans la ville (aldeia na cidade), retomando a pesquisa
da consultoria que diagnosticava um lugar de interconhecimento
generalizado, propcio convivncia, solidariedade e segurana
sem, no entanto, se fechar em um entre-si comunitrio. Enfim,
valendo-se de um discurso democrtico, a associao reivindica uma
maior participao dos moradores nas decises do poder municipal e
critica a autocracia de alguns especialistas e polticos sem incorrer,
entretanto, em uma oposio racionalidade tcnica e administrativa
e representao poltica. Esses argumentos de La Bellevilleuse reforam a legitimidade da causa defendida, delimitam o territrio do
bairro (as fronteiras do plano administrativo acabam por circunscrever um lugar de investimento afetivo), conferem-lhe uma identidade
(categorizando-o como popular e multicultural e como um lugar
emblemtico de Paris), fortalecem a unidade do coletivo associativo
(dando-lhe uma identidade narrativa e agregando novos simpatizantes), lanam o descrdito sobre os adversrios (fazendo pesar uma
carga de suspeita sobre sua competncia ou sua honestidade). Esses
argumentos se contrapem interveno da Prefeitura de Paris e da
subprefeitura local da XX Regio Administrativa, que se esfora para
difundir a viso de que os militantes e os simpatizantes de La Bellevilleuse so baba cool atrasados,33 no-conformistas ps-1968,
mais preocupados em salvar as velhas pedras do que no bem-estar
do povo, estigmatizando-os como privilegiados de classe mdia
que no do importncia modernizao das moradias precrias
nas quais esto confinadas as pessoas carentes (gens de peu).
Uma arena pblica surge como um lugar de produo, de circulao e
de troca de argumentos. Mas os atores no inventam a partir do zero
as justificaes que eles dirigem ao seu pblico. Eles as buscam em
repertrios de argumentao, tpicos e recorrentes, identificveis em
outras situaes de luta urbana. Por outro lado, eles tambm criam, dia
32

33

O principio de mixit sociale (mistura social ou mescla social) central nas polticas
urbanas na Frana. Ele uma expresso do principio de igualdade republicana, contra
os efeitos perversos de uma discriminao espacial ou de uma balcanizao tnica e
comunitria.
O termo baba (papai, em Hindi) cool (calmo, em Ingls) uma gria francesa e equivale
ao velho hippie.

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aps dia, os seus prprios argumentos, segundo os pontos estratgicos,


especficos da situao local de Belleville. Retrica, direito e tcnica:
todos esses dispositivos contribuem para fazer emergir o bem pblico,
permitindo aos atores que coordenem e se ajustem em ambientes,
de acordo com as convenes. Esses dispositivos equipam os atores
com modos convenientes de ver, de dizer e de fazer, e configuram
as situaes s quais eles so confrontados. A referncia tcnica
arquitetnica ou urbanstica ou ao direito das coletividades locais
faz surgir mundos cognitivos e normativos, destacando alguns traos
pertinentes e atenuando outros; delimita um campo dos repertrios
possveis e dos plausveis e especifica relaes entre querer, dever e
poder. Em contrapartida, essa referncia somente compatvel com
certas competncias de explicao e de interpretao, de julgamento
e de ao. Ela prepara um sentido de verdade e de justia, estabelece
pontos de disputa e critrios de compromisso, formata conflitos de
definio das situaes e fornece ferramentas para a sua resoluo.
Arena, cenas pblicas e situaes de prova
As perspectivas do pragmatismo nas Cincias Sociais rompem com
as hipteses fortes em matria de determinao estrutural das aes
e das atividades sociais. Uma arena pblica um emaranhado de
dispositivos teatrais, em que atores com competncias distintas
apresentam performances destinadas a pblicos distintos, ainda que
mais ou menos concorrentes. Essa arena pblica se decompe como
uma constelao de palcos que se sobrepem uns aos outros, que se
abrem sobre bastidores com geometria varivel, nos quais os graus de
publicidade so determinados pelo enquadramento dos atores e cujos
auditrios mudam, dependendo das atuaes. Uma arena pblica no
um espao pblico centrado, isotrpico e homogneo: ela se desenrola, como j dissemos, em torno de situaes de prova. Encontra seus
apoios em cenas pblicas mais ou menos institucionalizadas, algumas
muito diretamente ligadas a dispositivos materiais e convencionais
vigentes, sancionados pelo Estado e codificados pelo direito, outras
com contornos menos claramente definidos, apoiando-se em diversos
dispositivos institucionais sem serem redutveis a nenhum deles. O
centro de gravidade de um caso (affaire), de um escndalo ou de uma
controvrsia, de um processo ou de uma eleio, estar, assim, mais
prximo do caso jornalstico, do debate cientfico, dos processos
judicirios ou das aes polticas, mesmo se outros de seus polos de
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3 Prova / Kthia /30/04/2011

ao e de paixo possam ser encontrados em outras cenas. Cada cena


tem suas formas institucionais, seus investimentos em capital e suas
distribuies de poder; suas regras de jogo mais ou menos restritivas,
suas rotinas e seus rituais prticos; seus jogos de cena, seus estatutos,
suas hierarquias de poder e de autoridade; seus tickets de entrada, suas
linguagens especializadas, suas redes de inter-relaes e estruturas de
oportunidade; suas intrigas prprias, seus instrumentos de objetivao
e seus modos de publicizao, seus repertrios de categorizao e
de argumentao, seus modelos de raciocnio e de deliberao; seus
dispositivos de administrao da prova e seus circuitos de presso e
de deciso. Mas a arena pblica se configura temporalmente, sem que
se possa delimitar fronteiras em nenhuma de suas cenas. Ao contrrio,
a situao de prova coloca as cenas em relao umas com as outras.
Os graus de mobilizao dos mltiplos atores e de ressonncia junto
a vrios pblicos esto altura do sucesso da publicizao de um
problema. Uma arena pblica se desenvolve conquistando apoios e
fazendo pontes entre as diferentes cenas pblicas.
Se tivssemos de desenhar uma topologia das cenas pblicas em
torno do conflito urbano do Baixo Belleville, poderamos distinguir:
A cena do poder local e o lugar das interaes entre os prefeitos
de Paris e da XX Regio Administrativa, o Conselho Municipal e
os representantes do Estado, particularmente o prfet na Frana, autoridade responsvel por um departamento e pelos Fundos
de Ao Social.
A cena das agncias administrativas e outros organismos semelhantes agrega o Ateli Parisiense de Urbanismo (Apur), a Direo do Desenvolvimento Urbano (Direction de lAmnagement
Urbain Dau), a Direo da Habitao (Direction du Logement
et de lHabitat Dlh), assim como a Agncia Pblica de Desenvolvimento e de Construo (Office Public dAmnagement et de
Construction Opac), a Agncia Nacional de Melhoramento Habitacional (Agence Nationale pour lAmlioration de lHabitat
Anah), a Caixa dos Depsitos e Consignaes (Caisse des
Dpts et Consignations) que administra os Fundos de Solidariedade Habitational (Fonds Solidarit Habitat Fsh), e a Sociedade de Economia Mista (Socit dconomie Mixte), empresa de
desenvolvimento urbano presidida pelo Prefeito da XX Regio
Administrativa.
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Arenas Publicas.indb 92

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

A cena dos meios de comunicao de massa (mass medias) concerne, sobretudo, imprensa nacional: os jornais Le Parisien Libr, Libration e Le Monde, mas tambm aos jornais locais, tais
como a imprensa municipal e a imprensa associativa (Quartiers
libres); e, igualmente, s emissoras de rdio (France Inter, France Culture) e de televiso (TV Bocal), em que so apresentados
debates contraditrios entre porta-vozes de cada grupo.
A cena do tribunal administrativo, no qual os litgios so codificados em termos jurdicos e judicirios e no qual La Bellevilleuse e a Prefeitura de Paris se confrontaram pela atuaes de seus
advogados. o lugar crucial de anulao da primeira reunio de
negociao, da Zone dAmnagement Concert e da licena para
a demolio de La Forge. A temporalidade das decises judicirias d ritmo ao desdobramento das fases do conflito urbano.
A cena da tribuna poltica abriga a oposio entre os representantes dos partidos, que seguem uma ou outra linha argumentativa e programtica, e que tomam posies no Conselho de Paris,
na mdia ou nas manifestaes pblicas. Certos polticos, como
os do Partido Socialista e da direita, tentaram neutralizar ou instrumentalizar as associaes nesse espao; outros, como os comunistas e os ambientalistas, se mostraram mais receptivos s
reivindicaes de La Bellevilleuse.
A cena das redes associativas comporta instncias como a Coordenao e Ligao das Associaes de Bairro (Cooordination et
Liaison des Associations de Quartier CLAQ), o Comit Catlico contra a Fome e pelo Desenvolvimento (Comit Catholique
contre la Faim et pour le Dveloppement CCFD), a Fundao
Abb Pierre e dezenas de associaes e de sindicatos, reunidas na
Ao Coordenada para um Desenvolvimento Urbano Negociado
(Action Coordonne pour un Dveloppement Urbain Concert
ACDUC). Ou, ainda, mais modestamente, a par desses grupos, muitas vezes, virtuais ou ad hoc, La Bellevilleuse mantm
relaes mais orgnicas com Belleville Pluriel (Bar Floral, La
Forge, Ateliers Artistes de Belleville) ou mais distantes com o
Berry-Zbre (cinema e teatro).34 Tambm nesse caso, no se deve
imaginar um sujeito coletivo, nem mesmo uma plataforma unificada, mas sim descrever laos de configurao varivel, mais
ou menos intensa, dependendo das circunstncias. So relaes
34

Cefa (2001).

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

ora bilaterais, ora multilaterais, baseadas no fluxo de associaes


entre as pessoas e dando lugar a compromissos comuns firmados
em pblico ou a engajamentos comuns em eventos pblicos.
A cena da rua , na verdade, a mais complicada de se descrever,
em razo de sua multiplicidade, disperso e fugacidade alm,
ocasionalmente, da experincia vivida pelos moradores. De todo
modo, a rua se articula por meio de instituies locais: associaes de comerciantes, de esportes e de lazer; igrejas, sinagogas e
templos; escolas maternais e primrias, que so tambm pontos
de encontro. Ela o lugar das interaes face a face os moradores interpelam o Prefeito de Paris em visita rua Ramponeau e
o lugar de grupos focais os moradores trazem suas cadeiras e
organizam um sit-in na frente da prefeitura antes da terceira reunio de negociao.
Esta topologia das cenas pblicas no se confunde com a topologia das
arenas pblicas. apenas uma forma de identificao dos lugares em
que se podem ancorar algumas situaes de prova. Essas situaes de
prova podem ser de diferentes tipos: por exemplo, de experimentao
(a reabilitao do prdio nmero4 da rua Lmon, como exemplo
de que tal operao privada financeiramente vivel); de consulta
e deliberao (as reunies pblicas na sede da Prefeitura nas quais
se opem, de um lado, discursos de polticos e de especialistas e, de
outro lado, discursos de associados e de moradores); de controvrsia
(a avaliao do estado dos prdios por meio dos mapas dos servios
tcnicos, dos questionrios entregues de porta em porta por voluntrios
e dos inquritos realizados pelas agncias de consultoria Act e Qualiconsult); ou, simplesmente, de eleio (as municipais e as legislativas
so momentos de confrontao e de avaliao das foras presentes e
seus resultados induzem mudanas de aliana e de estratgia).
Cada uma dessas situaes de prova organiza a experincia dos seus
protagonistas. Encontra sua unidade nas atividades de conexo, de
ligao ou de juno de uma cena com outra e de uma cena com os
seus bastidores, por via dos atores em seu trabalho de mobilizao,
de problematizao, de argumentao ou de experimentao. A, o
problema pblico ganha impulso e alcance. Ele cresce, e conquista
generalidade, objetividade e legitimidade. Atinge fraes de pblicos,
cada vez mais numerosas e variadas. Cada situao de prova envolve
uma pluralidade de atores, de toda categoria e dimenso, que se constituem a partir da circulao de toda espcie de objetos, de todo tipo
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Arenas Publicas.indb 94

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

de questes, em toda espcie de contextos. Mesmo se a extenso,


a forma e o contedo de suas aes so parcialmente determinadas
por seu estatuto jurdico, seu potencial financeiro ou sua capacidade
tcnica, esses atores no cessam de ser redefinidos e renegociados
ao longo da prova. Alm disso, falar em arena pblica no implica
entender que os atores individuais, coletivos e institucionais recorram
exclusivamente linguagem do interesse geral e se curvem diante
de uma racionalidade deliberativa, jurdica e tcnica. Determinadas
organizaes ganham um peso pblico obtendo acesso mdia por
meio da comunicao publicitria. As empresas pblicas e os servios
pblicos adotam os mtodos de gesto privada, alinham as tcnicas
de gesto governamental municipal sobre aquelas do mercado, transformando os funcionrios em vendedores e os usurios em clientes do
servio pblico. As associaes conquistam sua representatividade
dia aps dia, retribuindo os servios aos cidados comuns, difundindo informaes para o pblico-alvo e denunciando as decises da
poltica urbana da cidade. Os escritrios de especialistas (bureaux
dexpertise) so convocados pelo poder pblico para produzir diagnsticos sobre o estado dos prdios e para esboar solues tcnicas.
As agncias administrativas estabelecem critrios de racionalidade
e de legitimidade, em que se misturam a defesa do interesse geral
(intrt gnral) e as lgicas corporativas. Sociedades de economia
mista (socits dconomie mixte)35 so investidas do projeto de
urbanizao no quadro dos dispositivos tcnico-jurdicos fixados
anteriormente. As convenes so, frequentemente, o resultado,
diante das circunstncias, das negociaes que articulam interesses
privados e conformam constelaes de microdisputas, microarranjos
e microcompromissos, nem sempre tendo a referida universalizao,
ad hoc e de validade restrita, traduzindo desnivelamentos e asperezas
prprias do ambiente local, fsico e social.
As situaes de prova se desenredam quando a natureza dos problemas, dos conflitos e das alianas est mais ou menos estabilizado e
quando se estabelece uma rotinizao dos procedimentos de representao, de negociao, de mediao e de arbitragem e, paralelamente,
uma rotinizao das operaes de descrio, de categorizao, de
avaliao e de projeto. A representatividade e a legitimidade dos pro35

Sociedades de economia mista (socits dconomie mixte) so sociedades annimas em


que o capital majoritariamente gerido por uma ou vrias pessoas pblicas: o Estado, uma
coletividade territorial ou qualquer estabelecimento pblico.

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Arenas Publicas.indb 95

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3 Prova / Kthia /30/04/2011

tagonistas so, ao final das contas, aprovadas, medidas e sancionadas


por suas confrontaes sucessivas, desde as reunies pblicas aos
processos judiciais, dos debates miditicos aos escrutnios eleitorais.
Assim, as arenas pblicas operam uma transformao de todos os
elementos que as compem.
A associao como organizao compsita
Ultima proposta: La Bellevilleuse uma organizao compsita.36
O trabalho de desintricar regimes de racionalidade e de legitimidade
que orientam aes e interaes pode se inspirar de modo fecundo
na sociologia das cits domstica, cvica, da opinio, mercantil,
industrial e da inspirao de Boltanski e Thvenot (1991). A
anarquia organizada que configura o que se chamaria, no jargo
tcnico, de campo inter-organizacional, caracteriza tambm as
associaes, reconhecidas como organizaes compsitas, em
busca de frmulas de coordenao entre as pessoas e de ajuste com
as coisas. A confrontao incerta entre vrios mundos37 conduz a
situaes crticas e requer o recurso a argumentos de justificao
e a procedimentos de negociao, por meio dos quais os atores reduzem suas diferenas, moderam seus litgios e disputas, encontram
formas viveis de articulao de suas experincias e de organizao
de suas atividades. A associao pode ser analisada, ento, como
um dispositivo de compromisso destinado a tornar compatveis
vrias ordens de grandeza e a estabelecer acordos locais em torno de
princpios ou de procedimentos comuns, com o intuito de configurar
uma experincia coletiva e uma ao pblica.
Uma organizao associativa se consolida reunindo diversos contextos de experincia e de atividade, pontos de perspectiva e estratos de
competncias que ela coloca em sinergia. Ela se constitui por meio da
troca de conhecimentos e de informaes, na formulao de denncias
e de reivindicaes coletivas; por intermdio da co-produo de um
projeto coletivo, ao mesmo tempo tecnicamente vivel e vlido do
ponto de vista normativo; e, ainda, por meio das atividades de circulao das notcias relativas ao andamento dos casos sob deliberao.
Em cada uma das situaes problemticas com as quais a associao
confrontada, colocam-se as perguntas: o que seria mais apropriado ao
bem pblico e o que se deveria fazer, estratgica e taticamente, para
36
37

Thvenot (1993).
Dodier (1991).

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alcan-lo? Sob a mise en scne da associao como representao


una e prpria, por meio de sua identidade jurdica e de sua localizao geogrfica, por meio das performances dos seus porta-vozes
nas reunies pblicas, do uso do pronome ns e de seu logotipo
na redao de cartas e de panfletos, o personagem associao se
consolida, resultante de uma srie de aes conjuntas. Tipificando,
poderamos dizer que os membros de La Bellevilleuse atuam em trs
grandes direes: a engenharia urbana e a pesquisa social em direo
s instncias tcnico-administrativas, a estratgia poltica diante dos
polticos locais e representantes do Estado, e ainda o trabalho de ajuda,
de informao e de formao dos moradores do bairro. E, partindo de
uma anlise situacional, poderamos ver os membros de La Bellevilleuse atuar segundo diversos regimes de engajamento, remetendo-se
a diferentes mundos, concretamente imbricados entre si.
1 - A associao funciona como uma agncia de trabalho social.
Ela realiza tarefas cotidianas de conscientizao dos moradores
sobre seus direitos, em sua maioria pessoas com baixo grau de
escolaridade e com parcos recursos materiais, frequentemente
semianalfabetos. Ela ajuda a regularizar os pedidos de carte de
sjour38 e os contratos de aluguel; redige dossis de pedidos de
APM ajuda personalizada moradia (aide personnalise
au logement), de RMI renda mnima de insero (revenu
minimum dinsertion) ou de HLM moradia com aluguel moderado (habitation loyer modr). A associao tambm recebe um escrivo pblico que cuida das correspondncias pessoais
e ajuda os moradores a atualizar, classificar e arrumar seus documentos administrativos. Os plantonistas estabelecem relaes de
confiana, se tornam confidentes de problemas pessoais e rbitros em conflitos interpessoais (cit domstica). Eles proporcionam o acesso dos moradores mais desfavorecidos a servios dos
quais estavam excludos por no dominarem as competncias de
usurios das agncias sociais; resolvem situaes insolveis do
ponto de vista da lgica administrativa, baseados nos princpios
cvicos e igualitrios, graas ao tratamento casustico e personalizado das situaes que lhes so dirigidas. Essa atividade garante
a maior parte de seus recursos, visto que o seu bom desempenho
38

Carte de sjour: autorizao emitida pelo governo francs para os estrangeiros morarem e
trabalharem na Frana.

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a condio do financiamento realizado pela Fundao Abb


Pierre e pelo Comit para o Desenvolvimento e Contra a Fome.
2 - A associao , alm disso, uma organizao que atua no mundo
poltico. Ela deve formatar seus pedidos respeitando repertrios
de categorizao, de argumentao, de motivao e de justificao, em consonncia com certa gramtica em vigor da crtica, da
denncia e da reivindicao. Ela no pode se limitar ao registro do
testemunho vivenciado, da compaixo ou da indignao. Deve,
para ser inteligvel aos polticos e tcnicos dos poderes pblicos,
produzir dados e anlises com mtodos de mensurao e de avaliao aceitveis e ser regida por princpios de eficcia, racionalidade e previsibilidade (cit industrial). Deve tambm demonstrar que aceita as regulamentaes dos servios pblicos, busca
objetivos de interesse geral, respeita os circuitos hierrquicos de
deciso e uma diviso funcional do trabalho e que no pretende
substituir as instncias oficiais para realizar aes pblicas (cit
administrativa). Alm disso, deve se submeter a procedimentos
de informao, de deliberao e de deciso os mais democrticos possveis, tomando conta dos debates entre os membros e os
permanentes da associao (cit cvica), sem incidir no paradoxo
de que maior eficcia e credibilidade implica em maior especializao tcnica que, por sua vez, implica em menor participao
popular. A exigncia democrtica se choca com a imposio da
expertise. Quanto mais a associao se envolve com reivindicaes da poltica urbana, mais ela deve se especializar nos detalhes de pontos tcnicos rduos. Portanto, menos ser ela mesma
que dar conta do que faz e menos a associao vai fundar sua
legitimidade a partir da participao das pessoas do bairro. Ela se
transforma, ento, em uma agncia tcnica.
3 - A associao desenvolve, enfim, um verdadeiro trabalho de engenharia urbana e de pesquisa social. Torna-se uma espcie de
agncia de desenvolvimento local, de cartografia dos problemas
a serem resolvidos. Procura solues tcnicas, jurdicas e econmicas para eles e, gradativamente, acumula informaes, competncias e relaes que lhe permitem, ao mesmo tempo, se relacionar com as particularidades concretas do bairro e se abrir para
horizontes mais amplos de ao pblica. Acaba por ser investida
de misses de servio pblico pela sociedade de economia mista
do leste parisiense. Por outro lado, a associao tambm uma
agncia de pesquisa social, na medida em que, como entendiam
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3 Prova / Kthia /30/04/2011

autores pragmatistas como Mead e Dewey, rene dados sobre os


casos de indivduos ou de famlias em situao difcil, mobiliza
outras instncias organizacionais e institucionais para alert-las
ou para cooperar com elas. Permanece orientada por exigncias
de justia social que consubstanciam suas atividades cotidianas,
seja em matria de previdncia social aos mais pobres, de configurao do problema do saturnismo ou do remanejamento no
local de inquilinos sem contratos de locao.

CONCLUSO
Este pequeno estudo de caso nos permite, ao final do percurso,
ilustrar algumas perspectivas de anlise. Vimos como os padres da
mobilizao dos recursos materiais e das estruturas de oportunidades polticas, das organizaes de ao coletiva ou dos quadros de
interao estratgica que so a regra na sociologia da ao coletiva
se revelam limitados para pensar a questo propriamente poltica
dos motivos do engajamento pblico; da emergncia dos problemas
pblicos; da constituio dos bens pblicos e da configurao das
arenas pblicas. Do mesmo modo, a arena pblica que se forma em
torno desse conflito urbano tem pouca relao com os ideais normativos da democracia deliberativa: so raros os foros de debate em que
se trocam argumentos racionais, pois, em geral, a palavra pblica
excessivamente impositiva e a discusso frequentemente desconectada da pauta de deciso. As operaes de testemunho e de medida,
de indagao e de experimentao, de dramatizao e de narrao
situaes de prova em ambientes fortemente constrangedores tm
pouco a ver com a formao de uma vontade pblica sem distoro,
sonhada pelos filsofos. melhor partir das proposies de Dewey
sobre a democracia como associao, investigao e experimentao
coletiva, em contextos de interao, de comunicao e de poder. E
se queremos nos centrar em situaes discursivas, melhor recorrer
a uma etnografia das conversas comuns e dos debates pblicos.39
Uma anlise pragmatista das atividades microcvicas e micropolticas
em uma arena pblica , assim, proposta em substituio anlise
estratgica num mercado poltico ou anlise argumentativa numa
esfera deliberativa. A poltica local no se deixa compreender seno no
seu local concreto, com seus parmetros sociais, espaciais e temporais.
39

Berger (2009); Eliasoph (1998).

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Como uma histria que se desdobra em seus episdios e peripcias,


seus jogos de alianas e frentes de conflito, seus golpes de teatro e seus
fracassos. Somente uma abordagem qualitativa que alie observao direta, entrevista no dirigida e anlise documental permite compreender
como micropblicos emergem e encontram lugar em conflitos urbanos.
Ou seja: como associaes nascem para o pblico.
REFERNCIAS
BERGER, Mathieu. Rpondre en citoyen ordinaire: une ethnographie des comptences profanes dans un dispositif de concertation
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BLONDIAUX,Loic; LVQUE,Sandrine. La politique locale
lpreuve de la dmocratie: les formes paradoxales de la dmocratie
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BOLTANSKI, Luc; THVENOT Laurent. De la justification. Paris:
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du pragmatisme: conflits durbanit et preuves de civisme. La Tour
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3 Prova / Kthia /30/04/2011

CEFA, Daniel; LAFAYE, Claudette. Le cadrage dun conflit urbain


Paris: les rpertoires dargumentation et de motivation dans laction
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ditions de lAube, 2002. p. 371-394.
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LEMIEUX, Cyril. Le devoir et la grce. Paris: Econmica, 2009.
MORIER, Franoise. Belleville, Belleville: visages dune plante.
Paris: Craphis, 1992.
101

Arenas Publicas.indb 101

3/5/2011 01:01:39

3 Prova / Kthia /30/04/2011

PENNAC, Daniel. Monsieur Malaussne. Paris: Gallimard, 1995.


SCHAPP, Wilhelm. Emptrs dans des Histoires: ltre de lhomme
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3 Prova / Kthia /01/05/2011

EM NOME DA COMUNIDADE
O PAPEL DAS ASSOCIAES
DE MORADORES NO
PROCESSO DE IMPLANTAO
DE UMA POLTICA URBANA
EM UMA FAVELA
DO RIO DE JANEIRO
Letcia de Luna Freire1

O Rio de Janeiro conhecido mundialmente por suas belezas naturais


e sua diversidade cultural, sobretudo ligada ao carnaval, ao samba
e bossa-nova, mas tambm pela presena de centenas de favelas.
Apesar de sua grande contribuio social e cultural para a cidade, esses
aglomerados urbanos so, contudo, percebidos como indesejveis
praticamente desde o seu surgimento, na passagem para o sculo XX.2
1

Mestre em Psicologia Social (PPGPS-UERJ), pesquisadora do Laboratrio de Etnografia


Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ-INEAC) e Doutora em Antropologia (PPGA-UFF),
com estgio na Universit Paris X (bolsa-sanduche Capes-Cofecub) durante o ano de 2007.
E-mail: [email protected].
Analisando documentos de 1900 no Arquivo Nacional, Zaluar e Alvito (1998) mostram que a
favela comeou a ser percebida como um problema sanitrio e policial praticamente no
momento em que surgiu, quando os morros da cidade j eram vistos pela polcia e por alguns
setores da populao como locais perigosos e refgios de criminosos. Hoje podemos notar a
persistncia dessa representao negativa das favelas, por exemplo, nas cartas de leitores de
grandes jornais, como a que se segue: urgente remover favelas, barreiras humanas para
encastelar traficantes, palco de tragdias em pocas de chuva, exemplos internacionalmente
divulgados da pssima qualidade de vida que nossa sociedade oferece aos seus pobres. Nossas
favelas hoje s atendem aos interesses de polticos, religiosos e bandidos. Para os cariocas,
andar por vias expressas cercadas de favelas como Avenida Brasil, linhas Amarela, Vermelha
e outras como andar em Bagd (O Globo, 23/01/04).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

A persistncia da representao negativa desses espaos e de seus


habitantes remete-nos, por sua vez, sua histria enquanto objeto
de prticas de controle tanto por parte do Estado quanto por parte
de instituies sociais, como a Igreja Catlica. Diversos estudos
realizados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros3 permitem-nos reconstituir esse percurso, evidenciando as representaes que
regeram (e regem) as intervenes do Estado sobre esses espaos.
Apesar das diferentes perspectivas, todos os pesquisadores apontam
que a descoberta da favela como um problema nasceu muito mais do
incmodo que ela causava urbanidade do que de uma postulao de
seus moradores ou de uma vontade poltica de universalizar o acesso
a direitos bsicos.
Se, por um lado, atualmente o poder pblico no se refere mais s
favelas como tumores malignos a serem extirpados, por outro,
ainda insiste em consider-las como um problema urbano, muito
embora as condies histricas, sociais e econmicas atuais no lhe
permitem propor medidas de remoo em massa desses aglomerados
subnormais baseadas em concepes morais que condenam esses
espaos incivilidade e anomia.4 Ao contrrio, as presses sociais
e econmicas, tanto em mbito nacional quanto internacional, tem
impulsionado de forma crescente suas aes no sentido de integrar as
favelas cidade, o que no deixa, entretanto, de pressupor que elas
sejam ou tenham sido em algum momento comunidades homogneas
e isoladas da vida urbana.5
Ao longo da histria de intervenes nas favelas cariocas, as Associaes de Moradores tm amide desempenhado um papel importante,
ainda que varivel, seja atuando como aliadas de instituies sociais
e/ou do Estado, seja como opositoras polticas. Uma breve anlise da
histria das Associaes de Moradores de favelas do Rio de Janeiro,
3
4

Burgos (1998); Leeds; Leeds (1978); Perlman (1977); Valladares (1978), entre outros.
Embora a terminologia aglomerado subnormal, hoje empregada pelo IBGE para classificar
as favelas isto , como um conjunto constitudo por unidades habitacionais, ocupando ou
tendo ocupado, at o perodo recente, terrenos de propriedade alheia (pblica ou particular)
dispostos, em geral, de forma desordenada e densa, e carentes, em sua maioria, de servios
pblicos essenciais no comporte nenhuma referncia moral a seus habitantes, permanece
a viso da favela como um espao desviante.
Essa tese foi exaustivamente desconstruda pelos pesquisadores citados anteriormente,
acrescentando-se, a esse respeito, os trabalhos de Medina (1964); Prteceille; Valladares
(2000, 2005).

104

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permite-nos constatar que ela no , como todas as histrias, linear,


mas entrecortada por momentos de mobilizao e crise.
Formalmente, essas entidades no se diferem das demais associaes
de moradores, podendo ser definidas como organizaes voluntrias
formadas com base em relaes de vizinhana em torno de interesses
comuns, geridas pelos prprios moradores e sem fins lucrativos.6
Seus objetivos relacionam-se defesa de direitos da populao,
principalmente quanto prestao de servios urbanos bsicos, como
abastecimento de gua, instalao de rede de esgoto, fornecimento
de energia eltrica, limpeza pblica e urbanizao. Funcionam, portanto, como canal de comunicao e canalizao das demandas das
populaes residentes nas favelas junto ao Estado, sobretudo administrao municipal. Embora as associaes possam desempenhar
cotidianamente muitas outras funes, como prestao de servios
na rea de sade e educao, emisso de comprovantes de residncia
e assistncia jurdica em casos de compra e venda de imveis nas
favelas, o que prepondera o seu papel poltico de mediao entre
os interesses dos habitantes e os interesses governamentais, vistos
com frequncia como antagnicos.
Apesar de algumas associaes terem surgido, j nos anos 1940,7
como fruto da mobilizao coletiva de moradores como estratgia
de reivindicao de direitos e de resistncia perante uma ameaa
externa que colocava em risco seu lugar de habitao (em geral, as
tentativas estatais de remoo), as formas de vincular-se s agncias
governamentais sofreram diversas modificaes ao longo dessa
histria. Segundo o levantamento realizado por Diniz8 a respeito das
Associaes de Moradores existentes at 1980, constata-se, porm,
que a maioria delas (47% das 103 entidades pesquisadas) foi criada
e regulamentada nos anos 1960. Tal fato expressaria a iniciativa do
Servio Especial de Recuperao de Favelas e Habitaes Higinicas
6
7

Diniz (1982); Valladares (1977).


De acordo com Diniz (1982), em levantamento realizado com base em informaes fornecidas
pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, pelo Servio de Coleta de Dados
das Regies Administrativas, pela Secretaria Municipal de Planejamento, assim como por
entrevistas e questionrios aplicados aos dirigentes das associaes de moradores, a primeira
entidade desse tipo teria surgido em 1947. A autora no fornece, entretanto, o nome da
associao ou da favela de origem.
Diniz (1982).

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(SERFHA, hoje extinto)9 de institucionalizar um canal de comunicao entre as populaes residentes nas favelas e os rgos pblicos
competentes. Ainda que a orientao dominante na poca privilegiasse
o controle e a represso s favelas, este rgo tornou-se o primeiro
organismo voltado precisamente para a urbanizao das favelas,10
estimulando a elaborao e a implementao de projetos de desenvolvimento comunitrio com a participao ativa dos moradores.
nesse sentido que o SERFHA lanou, em 1961, uma ampla campanha
para que as favelas se organizassem com a criao de associaes
de moradores,11 sendo este inclusive um dos requisitos para que se
iniciassem os programas de cooperao envolvendo o rgo e as
localidades a serem atendidas. Assim, importante destacar que, ao
lado das associaes criadas espontaneamente por lideranas locais
ou um grupo de moradores, um grande nmero de associaes foi
criado por exigncia ou iniciativa de agentes externos, como a Igreja
Catlica e organismos governamentais. No caso do SERFHA, este
estmulo criao de associaes reflete o paradoxo da cidadania
brasileira para o qual Kant de Lima12 chamam a ateno, no qual o
acesso aos direitos no universalmente distribudo aos cidados,
mas est submetido ao enquadramento dos indivduos nos modelos
impostos pelos promotores das polticas pblicas.13
Apesar de o SERFHA buscar promover a cooperao entre o poder
pblico e os moradores das favelas, o que se configurava na prtica
era apenas a substituio da Igreja Catlica que na dcada de 1950
monopolizava as aes sociais nas favelas pelo Estado, mantendo-se a tendncia a subordinar politicamente os habitantes. De acordo
9

10
11

12
13

Quando o SERFHA foi criado, em 1956, o Rio de Janeiro ainda era a capital do pas.
Inicialmente sem recursos, sua atuao restringiu-se ao apoio de iniciativas da Igreja Catlica
desenvolvidas por intermdio da Fundao Leo XIII e da Cruzada So Sebastio, at o
momento de sua reestruturao, em 1960, quando efetivamente comeou a funcionar.
Valladares (1978, p.23).
De acordo com Soares (1989), o primeiro movimento coletivo em defesa das favelas Unio
dos Trabalhadores Favelados (UTF) j estimulava, porm, nos anos 1950, a criao de
associaes de moradores para fazer frente s ameaas de remoo. Reunindo representantes
de diversas localidades, a UTF no tinha, porm, uma organizao poltica coordenando a
ao, mas vrios membros ligados ao movimento sindicalista j existente, que tinham uma
experincia de organizao e luta.
Kant de Lima; Mota (2005).
No contexto das polticas ambientais, Lobo (2006) destaca, por exemplo, que a maioria
das associaes, entre Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Colnias de Pesca, se constitui
por decorrncia de uma demanda ou, no caso das reservas extrativistas, por determinao
legal, sendo estas as nicas interlocutoras autorizadas a se relacionar com o Estado.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

com Burgos, revelador disso era o acordo que cada uma das novas
associaes era obrigada a assinar com o rgo, confundindo sua
identidade de representante dos moradores com a de interlocutores do
Estado junto aos mesmos. Como exemplo, o autor cita o compromisso
assumido pelas associaes de contribuir para a manuteno da ordem e o respeito lei nas favelas, garantindo, ainda, o cumprimento
das determinaes da coordenao e do governo.14
Alm disso, ainda que baseada numa relao assimtrica entre os
habitantes das favelas e o Estado, essa iniciativa de dilogo no
descartava a radicalizao do vis remocionista. Com a urgente necessidade de proteger-se contra um meio adverso, a capacidade de
resistncia dos moradores ganhou visibilidade pblica por meio de
associaes de carter mais amplo, como a Federao das Associaes de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), criada em 1963
com o objetivo de representar os interesses de todos os favelados,
divulgando suas razes de oposio remoo e tomando uma posio poltica frente a ela.15 Ao mesmo tempo em que os moradores se
organizavam, o Estado criava, contudo, mecanismos visando o seu
controle poltico. Um desses mecanismos foi a reforma, no mesmo
ano, da Fundao Leo XIII rgo criado pela Igreja Catlica para
dar assistncia material e moral aos habitantes das favelas e sua
respectiva transformao em autarquia do Estado. Cabe dizer que a
atuao expansiva da Igreja nas favelas tambm era motivada, dentre
outros fatores, pela preocupao com a chegada dessas populaes
arena poltica, o que a levou a subir s favelas antes que a temida
onda comunista descesse s ruas.
Com o golpe militar de 1964, houve o enfraquecimento do papel
poltico das favelas. Perdendo seu maior poder de barganha, muitas
de suas entidades representativas foram capturadas pelo Estado,
transformando-se em instrumentos de cooptao e controle dos moradores. A Coordenao da Habitao de Interesse Social da rea
Metropolitana do Grande Rio (CHISAM), por meio do Decreto 870,
de junho de 1967, reconhecia as Associaes de Moradores e seu papel
de representantes das favelas junto ao Estado, entretanto, colocava-as
diretamente sob o controle da Secretaria de Servios Sociais e das
Administraes Regionais. Alm disso, advertia que, caso no fosse
14
15

Burgos (1998, p.31).


Perlman (1977).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

cumprido qualquer dispositivo do estatuto ou fosse apurado algum


ato que desvirtuasse a finalidade das mesmas, haveria interveno do
Estado, o que significava a dissoluo de diretorias e a formao de
Juntas Governativas, cujos membros eram nomeados pelas autoridades governamentais.16 No por acaso verifica-se na dcada de 1970 um
congelamento do ritmo de expanso das Associaes de Moradores.
Todavia, os efeitos mais perversos do perodo militar foram a inverso
do papel das associaes existentes, que passaram de representantes
dos moradores das favelas junto ao Estado a representantes do Estado
junto queles,17 e o enraizamento de uma dinmica clientelista na
relao entre o Estado e as populaes residentes nas favelas, combinando controle e troca de lealdade poltica por pequenos benefcios.18
Com a redemocratizao do pas na dcada seguinte, as populaes
das favelas voltaram a representar um papel poltico importante,
sobretudo como massa eleitoral. O esprito democrtico, juntamente
com a mudana de orientao no tratamento das favelas, impulsionou
o aparecimento de novas associaes. Este movimento de mobilizao no durou, porm, mais do que um curto perodo aps o fim da
ditadura. Em vez do fortalecimento da mobilizao popular, o acesso dos mais desfavorecidos esfera poltica tem, desde ento, sido
acompanhado de uma crise de participao motivada pelo aumento
do descrdito das instituies polticas brasileiras. Nesse contexto,
as Associaes de Moradores vm perdendo cada vez mais a sua
fora e credibilidade junto aos moradores. Ao mesmo tempo, em
muitos casos elas vm-se tornando verdadeiras prteses do Estado,
assumindo a funo de executar aes pblicas nas favelas e atuando
como mini-prefeituras.19 Segundo Vidal,20 longe de constituir uma
contradio ou um paradoxo, tal situao revela, todavia, o prprio
16
17
18
19

20

Diniz (1982); Soares (1989).


Perlman (1977).
Carvalho et al. (1998).
Em sua pesquisa sobre as organizaes comunitrias das favelas, as autoras mostram que,
em alguns casos, o poder pblico, por meio de rgos como a Companhia de gua e Esgoto
(CEDAE), estabelece parcerias com as Associaes de Moradores, repassando-lhes, por
exemplo, o papel de regular a distribuio da gua. O estabelecimento desse tipo de relao
indicaria a fraca distino de papis e funes entre o Estado e a Associao de Moradores,
fazendo com que esta seja muitas vezes percebida como extenso do primeiro. Ver Oliveira;
Carvalho (1993).
Vidal (1998).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

embricamento do lao social e do lao poltico no meio popular no


Brasil contemporneo.
Tendo essa histria como pano de fundo, o presente artigo pretende,
de modo geral, contribuir para a reflexo sobre o papel desempenhado
hoje pelas Associaes de Moradores de favelas na implantao de
polticas pblicas urbanas. De modo mais especfico, busca apontar
elementos de anlise sobre a atuao das Associaes de Moradores
durante o processo de interveno do Programa Favela-Bairro ao
desenvolvida pela prefeitura do Rio de Janeiro com o objetivo de
integrar as favelas cidade, transformando-as em bairros populares. Partindo do trabalho de campo realizado na localidade de Acari
entre os anos de 2003 e 2006, propomos um estudo de caso que, em
vez de oferecer interpretaes fechadas, possibilite esboar questes
relevantes no que se refere trade populao-Associaes-Estado.
Em sua estrutura, o artigo encontra-se dividido em duas partes. Na
primeira parte apresentamos em linhas gerais o Programa Favela-Bairro, situando-o na histria das intervenes urbanas nas favelas
cariocas. Esta apresentao faz-se, a nosso ver, necessria, na medida
em que possibilita situar o leitor no tempo, esclarecendo o contexto de
tratamento das favelas por parte do poder pblico municipal no qual
o programa est inserido, bem como as etapas de sua implantao nas
localidades. Em seguida, apresentamos brevemente o campo em que
se desenvolveu o estudo para situar o leitor no espao, tanto fsico
quanto simblico, no qual as aes se desencadeiam. Na segunda
parte, realizamos a descrio e a anlise do caso propriamente dito.
Metodologicamente, optamos por eleger uma situao especfica
observada no campo, atravs da qual podemos mapear os jogos de
negociao e papis desempenhados pelos diferentes atores (dentre
os quais, a Associao de Moradores), assim como problematizar
as noes de participao popular e comunidade que sustentam a
poltica urbana abordada.
O Programa Favela-Bairro
Situando este programa na histria das polticas pblicas direcionadas
s favelas do Rio de Janeiro, verificamos que ele resulta de um processo
progressivo de avaliao das dificuldades e limites das experincias empreendidas at a dcada de 1990, especialmente do alto custo financeiro
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3 Prova / Kthia /01/05/2011

e poltico das aes de remoo, assim como da necessidade de assumir


a complexidade do problema, consolidando o vis urbanizador.21
De modo mais especfico, podemos dizer que o Programa Favela-Bairro foi concebido a partir da percepo, no mbito municipal, de
que era preciso criar um programa de interveno global nas favelas
que promovesse sua integrao cidade, concentrando esforos
de diversos rgos governamentais. Essa percepo fortaleceu-se, no
incio dos anos 1990, a partir de dois eventos: 1 - A realizao, durante
a Conferncia Mundial Rio-92,22 do Primeiro Seminrio sobre reas
Favelizadas, Poltica de Urbanizao e Meio Ambiente, no qual se
concluiu que a integrao fsica e social das favelas s seria possvel
mediante a articulao entre as instituies que desenvolviam o
trabalho fsico, anelado aos promotores de aes sociais de educao,
sade e cultura (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2003: anexo); e 2 - A
elaborao do Plano Diretor Decenal da Cidade,23 que reconheceu o
problema das favelas e loteamentos irregulares como questo de suma
importncia para o futuro do municpio, definindo como meta a sua
integrao vida social e poltica da cidade.
Como reflexo desse movimento, criou-se, em 1993, durante a primeira
gesto do prefeito Csar Maia, o Grupo Executivo de Assentamentos
Populares (GEAP), composto por membros de diversos rgos e secretarias da administrao municipal. Para atender s premissas do Plano
Diretor em relao poltica habitacional, o GEAP sugeriu a criao da
Secretaria Extraordinria de Habitao (SEH) e estabeleceu um plano de
regularizao de favelas, dividido em trs sub-programas, conforme a
dimenso das reas de interveno. Originalmente, o Programa Favela-Bairro apenas um desses programas propostos pelo GEAP, voltado
para reas de 500 a 2.500 unidades habitacionais, embora atualmente
21

22

23

A consolidao dessa tendncia deu-se, sobretudo, a partir do reconhecimento da necessidade


de ampliar experincias pontuais bem-sucedidas, tais como aquelas desenvolvidas pela
Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO) em 1968 grupo de
intelectuais contratados pelo governo estadual para viabilizar uma proposta de urbanizao
democrtica das favelas e pelo Projeto Mutiro em 1981 programa desenvolvido pela
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, que utilizava o sistema de mutiro para, por
meio do trabalho voluntrio dos moradores, realizar pequenas obras de acesso, pavimentao,
gua e esgoto nas favelas.
Evento realizado na cidade com vistas a definir acordos internacionais sobre questes
ambientais.
O Plano Diretor uma exigncia da Lei Orgnica presente na Constituio Federal de 1988
para cidades com mais de 20 mil habitantes, tendo a validade de dez anos.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

seja considerado o carro-chefe do conjunto dos programas direcionados s favelas. Seu objetivo construir ou complementar a estrutura
urbana principal (saneamento e democratizao de acessos) e oferecer
as condies ambientais de leitura da favela como bairro da cidade.24
A partir desse mesmo ano, a prefeitura manteve contatos com o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) no intuito de adequar o
programa s exigncias da organizao e obter um financiamento que
permitisse consolid-lo institucionalmente. Em 1994, a prefeitura
criou a atual Secretaria Municipal de Habitao (SMH) e recebeu a
primeira misso do BID na cidade para exame e definio do convnio. Aps um processo de adequaes, o contrato entre a prefeitura e
o BID foi ento assinado, estabelecendo que 60% do financiamento
ficaria a cargo deste organismo.
Visando atender as necessidades do programa, adotou-se uma estrutura
organizacional que permitisse uma maior integrao com outros rgos
e secretarias, alm de maior funcionalidade no trabalho das diversas
coordenaes, que passariam a ser convocadas de acordo com as etapas
de implantao do programa, que sero a seguir apresentadas.
A primeira etapa consiste na realizao do concurso pblico e licitao dos escritrios de arquitetura, que passam a ter autonomia
na elaborao dos projetos de interveno. Nessa etapa atuam basicamente a Coordenao de Projetos, que estabelece as exigncias,
avalia e fiscaliza os projetos a serem executados, e a Coordenao
de Participao Comunitria, que dirige, em parte, o trabalho dos
Agentes Comunitrios de Habitao, que atuam nas reas atendidas
como ponte entre a prefeitura e a comunidade.25 Definida a rea e
24
25

GEAP, 1993 apud Carvalho et al. (1998, p.38).


A maior parte das equipes de agentes comunitrios hoje, na verdade, coordenada por uma
organizao no governamental. Os primeiros agentes eram mulheres que trabalhavam na
rea de educao sanitria e que foram nos anos 1980 recrutadas para atuar nos projetos
de mutiro da SMDS e, depois, nos programas habitacionais da SMH. Uma vez que essas
agentes trabalhavam para a prefeitura sem vnculo empregatcio e que era preciso criar novas
equipes para atender ao Programa Favela-Bairro, o convnio com a ONG CIEDS surgiu, em
2003, como estratgia para legalizar a sua situao e facilitar o pagamento de salrios. No
entanto, se o que motivou inicialmente essa parceria com a ONG foi a soluo de problemas
administrativos, dela hoje toda a responsabilidade pela seleo, capacitao e coordenao
do trabalho das equipes que atuam nas reas atendidas pelo Programa Favela-Bairro, por
meio do convnio com o BID. Apenas os agentes que atuam no programa de regularizao de
loteamentos (Morar Legal), financiado pela Caixa Econmica Federal, continuam submetidos
diretamente Coordenao de Participao Comunitria da SMH. Ver Freire (2005).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

o projeto urbanstico, membros da Gerncia do programa agendam,


por intermdio da Associao de Moradores, uma assembleia na
localidade, com a finalidade de apresentar aos moradores o plano de
intervenes e a equipe executadora. Nessa assembleia, os moradores
votam a aprovao do projeto, podendo, a principio, sugerir modificaes de acordo com as necessidades da localidade.
Na segunda etapa, tem incio a execuo do plano de intervenes
aprovado, momento no qual engenheiros, arquitetos, pedreiros, fiscais, tratores e britadeiras dirigem-se favela. Durante essa etapa se
intensifica a atuao dos agentes comunitrios, que passam a acompanhar a realizao das obras e fazer um trabalho de conscientizao
e mobilizao dos moradores no sentido de que eles colaborem com
a fiscalizao e adquiram novos saberes e sensibilidades em relao
aos espaos pblicos, novas competncias citadinas.26
Com o trmino das obras, comea a etapa de regularizao fundiria
da favela, geralmente a mais lenta de todas, visto que somente a
partir de 2001 foram tomadas medidas importantes em nvel local
e nacional visando o estabelecimento de mecanismos e polticas
de regularizao fundiria de longo alcance. Sendo essa questo da
alada da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), esse rgo
convocado a atuar junto SMH na instalao provisria do Posto de
Orientao Urbanstica e Social (POUSO), cuja funo executar o
processo de regularizao urbanstica e fundiria na rea. Contando
com uma equipe bsica formada por um engenheiro ou arquiteto, uma
assistente social e um ou mais agentes comunitrios, constitui-se,
segundo uma engenheira do programa, ao mesmo tempo em ponto
de referncia dos moradores e ponto de viglia da prefeitura.
Desde 1999, quando se encerrou a primeira fase do programa, o
contrato entre a prefeitura e o BID tem sido constantemente renovado, garantindo a sua continuidade com relativa independncia das
idiossincrasias poltico-partidrias. Nos anos posteriores, o programa
sofreu apenas pequenos redirecionamentos, dando maior nfase
promoo social e ao desenvolvimento econmico das localidades.
Apesar de sua grande visibilidade, o Programa Favela-Bairro no
imune a crticas. As maiores delas tm sido em relao aos fracos
26

Joseph (1990).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

reflexos dessa poltica pblica no que se refere aos indicadores de


educao e de renda das populaes atendidas e ao fato de ela ser
implantada de modo bastante desigual nas localidades. Alm disso
se, por um lado, o programa no visa intervir na organizao poltica
das favelas, por outro, a garantia da participao comunitria um
ponto ainda bastante problemtico, como veremos ao longo deste
artigo, j que a representatividade das Associaes de Moradores
algo que est frequentemente em risco.
Acari: uma cidade no interior da cidade
Situada na Zona Norte do Rio de Janeiro, a cerca de 20km do centro,
numa regio em que predominam indstrias e residncias, a localidade
de Acari ocupada por uma populao genericamente identificada
como pertencente s classes populares, com baixo poder aquisitivo e
pouca qualificao para o trabalho. Geograficamente, uma rea plana
com poucas elevaes, localizada no cruzamento de dois importantes
eixos rodovirios: a Avenida Brasil a maior avenida da cidade, com
56km de extenso ligando a Zona Oeste e grande parte da Zona Norte
ao centro e a Avenida Automvel Clube que corta vrios bairros em
direo Baixada Fluminense. Paralelamente Avenida Automvel
Clube, encontra-se uma estao da linha 2 do metr, ligando Acari a
outros bairros da Zona Norte e ao centro da cidade.
A localidade comeou a ser ocupada nos anos 1940 por migrantes
do Nordeste, do interior do Rio de Janeiro e de outros estados do
Sudeste vinham para a regio em busca de trabalho no incipiente
setor industrial. Segundo o relato de antigos moradores, nessa poca
a localidade era um verdadeiro brejo. Com a inaugurao da Avenida Brasil e o crescente desenvolvimento de indstrias na regio,
a localidade comeou a se expandir externamente e a se diferenciar
cada vez mais internamente. Como dizem antigos moradores a respeito das transformaes pelas quais a localidade sofreu, Acari era
um povoado, hoje uma cidade.
Na percepo dos moradores, no apenas pela dimenso espacial
e complexidade social que adquiriu ao longo do tempo que Acari
comparado a uma cidade, mas por configurar em seu interior a
prpria dinmica de hierarquizao dos espaos urbanos. Fisicamente,
o que chamamos Acari consiste na composio de quatro localidades
distintas, cada uma contando com uma Associao de Moradores
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3 Prova / Kthia /01/05/2011

prpria: o Conjunto Residencial Areal e as favelas Parque Acari,


Vila Rica de Iraj e Vila Esperana. Na verdade, a prpria delimitao dessas localidades bastante difcil de ser percebida por quem
de fora, pois o que se nota primeira vista muito mais uma
continuidade dos espaos do que a existncia de fronteiras fsicas
bem delimitadas. Somente ao longo do trabalho de campo, pudemos
perceber que, como j havia notado Souza,27 mais do que fsicas, em
Acari as fronteiras so simblicas.
Dessa forma, Parque Acari representado pelos moradores como a
zona sul de Acari devido a seu grau mais elevado de urbanizao e
maior disponibilidade de bens e servios, assim como seus moradores
so vistos como similares a uma classe mdia urbana, com maior
poder aquisitivo e melhores condies de moradia. Alm de estarem
mais prximos das grandes vias de circulao, sendo facilitado o
acesso a diferentes regies da cidade, estes moradores compartilham
com frequncia os valores da classe mdia em geral, que v a favela
e seus moradores com maus olhos. Buscando um reconhecimento
enquanto uma elite de Acari, esses moradores acabam criando formas
de se diferenciar daqueles que consideram ser verdadeiramente os
favelados.28 nesse sentido que h, por sua vez, uma representao
negativa das localidades de Vila Rica e Vila Esperana, concebidas
como a favela propriamente dita, devido maior incidncia de sinais
de pobreza, como a maior precariedade das construes, dos becos e
vielas de terra batida, alm da presena mais ostensiva do trfico de
drogas. No caso de Vila Esperana, que a favela mais recentemente
constituda, prevalece em algumas reas um aspecto de ruralidade
e precariedade material que nos remete paisagem descrita pelos
moradores do incio da ocupao da regio.
A analogia de Acari a uma cidade vitalizada pelas categorias que
os moradores utilizam para classific-las hierarquicamente: Parque
Acari como a zona sul, Vila Rica como o subrbio e Vila Esperana como a zona oeste de Acari. Esta classificao reflete, assim,
27
28

Souza (2001).
Na dissertao de mestrado (FREIRE, 2005) discutimos os diferentes sentidos atribudos
categoria favelado. De modo geral, podemos dizer que, entre muitos moradores de Acari,
ser favelado significa apresentar uma srie de comportamentos considerados moralmente
inferiores, iso , praticar tudo de errado, como jogar lixo na rua, andar sujo, drogar-se
e mendigar, funcionando, assim, como um estigma (GOFFMAN, 1982) do qual tentam a
todo custo escapar em busca de maior aceitao social.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

a diviso socioespacial da cidade do Rio de Janeiro, em que a Zona


Sul a regio mais rica, nobre e urbanizada, o subrbio considerado
como a regio mais pobre, popular e violenta (agrega-se aqui o con
tedo pejorativo do adjetivo suburbano) e a Zona Oeste, que embora
tambm seja caracterizada como regio pobre e violenta (com exceo
hoje dos bairros da Barra da Tijuca e do Recreio, que se constituram
numa espcie de Zona sul da Zona Oeste), considerada aquela
onde ainda possvel se encontrar grandes reas rurais.
O contraste entre a percepo dos espaos por quem de fora e a
percepo dos moradores aponta que o mesmo ambiente no vivenciado da mesma maneira por indivduos ou grupos diversos, uma vez
que esta vivncia est diretamente relacionada sua experincia cotidiana. Segundo Mello e Vogel,29 um sistema de espaos existe sempre
em conexo com um sistema de valores e ambos esto relacionados
existncia de um sistema de atividades. Conforme demonstraram os
autores em um estudo sobre o uso dos espaos coletivos para fins de
lazer no bairro do Catumbi, o princpio da diversidade d margem a
muitas conjunes de espao e atividade, concedendo, por exemplo,
rua uma multiplicidade de significados ligados a seus usos contextuais.
Tal como no Catumbi, em Acari a mistura tambm no um acidente, mas o estilo da vida urbana nesse local, o que podemos observar
nas diferentes funes simultaneamente desempenhadas pelas ruas
da localidade: de ptio para as crianas brincarem; de extenso do
ambiente domstico para as mulheres que puxam seus banquinhos
para fora para papear com as vizinhas e observar os acontecimentos
da rua; de local de trabalho para os vendedores ambulantes que circulam durante o dia vendendo pes e doces; de local para a atividade
ilegal dos traficantes de drogas, que privatizam pontos estratgicos
para tambm vender seus produtos; de palco em que se confrontam
mo armada policiais e traficantes; ou ainda de simples vias de
passagem para ciclistas, automveis e transeuntes em seus percursos
dirios. Por todos esses aspectos consideramos Acari tanto um espao
fsico, sem qualidades, quanto um lugar que simbolizado, habitado
e constantemente recriado pelos indivduos.30
Apesar de sua grande heterogeneidade interna, Acari tem sido geralmente apresentado na mdia como uma localidade homognea,
29
30

Mello; Vogel (1983).


Briggs (1972).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

marcada pela presena de um intenso trfico de drogas e por acontecimentos relacionados pobreza, criminalidade e violncia.31 Em
2001, destacou-se nos meios de comunicao como o pior bairro
do Rio de Janeiro, a partir da divulgao do primeiro Relatrio
de Desenvolvimento Humano do Rio, elaborado em conjunto pelo
Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o
Instituto de Pesquisa Econmica e Aplicada (Ipea) e a Prefeitura da
Cidade. Segundo este relatrio, Acari seria o bairro com pior ndice
de desenvolvimento humano (IDH) da cidade, comparado aos pases
mais pobres da frica.32
Com a repercusso desse documento e a proximidade das eleies nos
anos seguintes, os governos estadual e municipal passaram momentaneamente a priorizar Acari na aplicao de suas polticas sociais.
Logo aps a publicizao do relatrio, construiu-se, por exemplo, na
localidade, o primeiro restaurante popular municipal e ampliaram-se programas sociais de renda mnima, como o Cheque-Cidado.33
Dentre as aes da prefeitura, destacaram-se a construo, em 2004,
do primeiro hospital municipal da Zona Norte (H. M. Ronaldo Gazola), embora at hoje ainda no inaugurado; e a implantao, iniciada
em 2003, do Programa Favela-Bairro. Conforme nos disseram tanto
lderes comunitrios quanto uma engenheira da SMH, se a interveno urbana em Acari j era prevista pela prefeitura e solicitada pelas
Associaes de Moradores locais, a especificidade desse momento
poltico-social certamente contribuiu para acelerar o processo.
O papel das Associaes de Moradores no processo
de interveno urbana

31

32

33

Dentre estes acontecimentos, os mais conhecidos so: a existncia da Feira de Acari, que
funcionou dos anos 1970 at 1996 e era conhecida como Robauto por vender produtos e
peas de automveis roubados, e o caso do desaparecimento de 11 jovens em 1990, a maioria
moradores de Acari, depois de sequestrados e supostamente assassinados por policiais
militares, culminando no surgimento do movimento que ficou conhecido internacionalmente
como Mes de Acari, que cobrava a apurao das mortes e a punio dos culpados.
O ndice de desenvolvimento humano (IDH) calculado pela renda familiar per capita,
expectativa de vida, taxa de alfabetizao de maiores de 15 anos e nmero mdio de anos
de estudo.
Programa do Governo do Estado que atende famlias com renda per capita inferior a R$50,00/
ms. Por meio das instituies religiosas nas prprias comunidades, as famlias beneficiadas
recebem um cheque mensal de R$100,00 a ser trocado nos supermercados cadastrados por
produtos alimentcios.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Durante a implantao do Programa Favela-Bairro, cada localidade


de Acari era tratada de forma independente. Embora a interveno
se iniciasse no mesmo perodo nas trs favelas34 atendidas, para cada
uma havia um plano de interveno, um escritrio de arquitetura,
uma empreiteira executora e uma equipe de agentes comunitrios
responsvel. Assim, trataremos aqui especificamente do processo de
interveno em uma dessas favelas, que acompanhamos seguindo
os atores em ao.35 A problemtica central do caso concerrne
constituio de um espao informal de negociaes em torno do que
seria construdo numa determinada rea da localidade. Elementos
de outras situaes ocorridas, presenciadas por ns ou narradas por
terceiros, nessa localidade ou nas favelas vizinhas so, entretanto,
agregados sua descrio a fim de propiciar uma melhor compreenso do contexto e das relaes entre os diferentes atores envolvidos.
Ao relacionarmos a situao principal ao contexto mais amplo das
Associaes de Moradores de Acari, buscamos analisar com mais
justeza o papel dessas organizaes no processo de implantao dessa
poltica urbana, assim como sua relao com os moradores e com
o Estado. Tendo justificado nossa opo metodolgica, passamos
descrio do caso.
Alguns meses antes de comearem as obras na localidade, a equipe
de agentes comunitrios do programa visitavam cada famlia em sua
residncia para comunic-las sobre a interveno e divulgar seus
benefcios para toda a populao, aludindo nessas situaes a um
discurso de interesse geral. Para os moradores, eles afirmavam que
o Programa Favela-Bairro significa a transformao da favela em
um bairro e que a interveno lhes traria muitas vantagens, como
o acesso rede pblica de servios urbanos e a perda do estigma de
favelado. Diante da interesse de se verem individualmente beneficiados com a interveno, pouco a pouco os moradores comeam a se
sensibilizar pela ao pblica, afastando a descrena generalizada nas
promessas do governo. Somente quando se tornou concretamente
visvel na localidade a atuao dos atores envolvidos na interveno
34

35

Apesar da precariedade das condies de habitao de seus moradores, o Conjunto Residencial


Areal, por ser uma rea oficialmente tida como legal e urbanizada, no atendido pelo
Programa Favela-Bairro.
A noo de ator (ou actante) refere-se, nesse caso, a tudo que produzia efeitos sobre o
processo da interveno urbana, distinguindo-se de modo geral do conceito sociolgico de
ator social por no se referir apenas aos individuos, mas tambm ao que Latour (2000)
chama de no-humanos, ao mundo dos objetos.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

urbana, com a chegada dos tcnicos responsveis pelas obras, por


exemplo, que os moradores se convenceram da veracidade do que
estava para acontecer na localidade.
Ainda nessa primeira etapa, a equipe tcnica contratada para elaborar o plano de interveno convocou a populao para participar de
pequenas reunies com o propsito de identificar os problemas mais
graves da localidade e suas demandas prioritrias no que se refere
urbanizao; prtica que visava atender ao princpio do programa
de garantia da participao da populao no processo, mas que, no
entanto, era aplicada de formas diferentes nas favelas, conforme a
metodologia proposta pelo escritrio de arquitetura licitado. A partir
da realizao dessas reunies com alguns moradores e do uso de
instrumentos tcnicos, como mapas e fotografias areas, que lhes
permitiam transportar a localidade para o escritrio de arquitetura, a
equipe elaborou o plano de interveno e o apresentou em assembleia
pblica realizada em uma escola estadual da regio, cuja divulgao
tambm contou com o apoio da Associao de Moradores.36 Nesta
assembleia, os tcnicos expuseram, por meio de um grande mapa, o
que seria construdo e rehabilitava na localidade, tendo os moradores
a oportunidade de aprovar ou propor modificaes no projeto. Entretanto, enquanto os tcnicos que o produziram traduziam claramente
no mapa a rea representada como um todo, os moradores, por sua
vez, pareciam no reconhecer naquela inscrio imvel a localidade
pulsante em que viviam. Diante disso, muitos moradores pareciam
ser levados a aceitar o projeto mais pelas promessas de melhorias e
boas intenes contidas no discurso da equipe responsvel do que
por terem uma clara noo do que o plano implicaria concretamente
na estrutura da localidade. Mais uma vez, a maioria dos moradores
era, na verdade, tomada por uma preocupao individual, qual seja,
se suas casas seriam ou no removidas para dar lugar construo de
algum dos equipamentos urbanos previstos. A situao da assembleia
suscitava, assim, a mobilizao individualizada dos moradores, trazendo tona o fantasma da remoo que circunda o imaginrio dos
moradores de favelas, herana das polticas radicais de tratamento
das favelas ocorridas em dcadas passadas.
36

Como esta reunio ocorreu antes de iniciarmos o trabalho de campo, os dados aqui no
resultam de uma observao direta, mas foram extrados dos relatos de pessoas que
participaram ou estiveram envolvidas na realizao da reunio.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Em relao s Associaes de Moradores de Acari, antes mesmo da


interveno urbana observamos que os habitantes mantinham com
elas uma relao bastante ambgua e individualizada. Embora alguns
dirigentes fossem admirados por uma pequena parcela da populao
por tudo que lutaram pela comunidade e por sua habilidade em
negociar com os representantes do Estado, de instituies sociais e
no governamentais e mesmo com os traficantes locais, havia entre a
maioria dos moradores uma forte desconfiana perante as Associaes
de Moradores e seus dirigentes. Uma crtica comum, por exemplo,
era que as diretorias privilegiariam seus conhecidos nas oportunidades de cursos e empregos oferecidos pelas associaes por meio de
convnios e parcerias estabelecidos com rgos pblicos, empresas
privadas ou organizaes no governamentais. Para grande parte dos
moradores, exceto para aqueles que mantinham relaes estreitas
(familiares ou de amizade) com os dirigentes, estes no pensam na
comunidade, s pensam em si prprios ou representam apenas os
interesses de polticos ou bandidos aos quais so vinculados.
Para os dirigentes das associaes, por sua vez, tornava-se cada vez
mais difcil obter o reconhecimento dos moradores por tudo o que haviam feito pela sua comunidade. Da mesma forma, tornava-se cada
vez mais difcil enfrentar as presses exercidas pelo movimento37
para controlar suas aes. Sobre esse aspecto, cabe notar que no incio
das obras do programa nas localidades, observou-se um aumento
dessas presses de tal forma que alguns dirigentes expressavam,
pela primeira vez, a deciso de abandonar suas atividades polticas
nas localidades.
Como um processo em cadeia, os dirigentes das Associaes de
Moradores das trs localidades deixaram nesse perodo seus cargos,
sob maior ou menor (auto)resistncia. Algum tempo depois, diversos
cartazes de autoria desconhecida foram dispersos por Acari, anunciando a unificao das associaes e convocando a populao para
a eleio do novo e nico presidente. Segundo alguns moradores, os
37

Por movimento os moradores referem-se ao trfico de drogas local, englobando nessa


denominao genrica tanto os atores humanos em suas variadas funes (traficante, olheiro
etc.), quanto o conjunto de atores no humanos (drogas, armas, dinheiro etc.) que o compem.
Segundo Misse (2007), embora essa denominao tenha aparecido pela primeira vez como
jargo do jogo do bicho, hoje ela comparece na gria de consumidores e vendedores de drogas
ilcitas para representar vrios e diferentes aspectos do mercado local de drogas nas favelas,
conjuntos habitacionais e demais reas da periferia habitadas por populaes de baixa renda.

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cartazes haviam sido colocados pelo movimento, que estaria inclusive apoiando uma das trs chapas candidatas. Conforme observamos
no trabalho de campo, o apoio do movimento converte-se, em
muitos desses casos, em voto compulsrio. Isso ocorreria, segundo
um agente comunitrio, porque a maioria dos moradores tm medo
dos traficantes e acaba fazendo o que eles pedem. Outro agente lamentava, contudo, a possvel submisso dos moradores, que, na sua
opinio, no sabem a fora que tem. De modo geral, podemos dizer
que o interesse do movimento pelas Associaes de Moradores
era suscitado pela possibilidade de participar da gesto de diversos
assuntos considerados de interesse pblico e que poderiam, direta ou
indiretamente, interferir no mercado local de drogas, como a deciso
sobre a manuteno ou retirada de um ponto de vigilncia policial ou
sobre o que seria construdo nas reas selecionadas pelo programa.
Para melhor compreender a complexidade dessas relaes, abordaremos aqui uma situao em torno do que seria construdo em um
terreno de uma das localidades. No plano de interveno inicialmente
aprovado na assembleia, estava prevista para essa rea, prxima
sede da Associao de Moradores, a construo de uma creche para
120 crianas e uma praa pblica equipada com brinquedos infantis.
Para desocup-la, cerca de 20 construes, entre residncias, pequenos
estabelecimentos comerciais e o templo de uma igreja evanglica,
tiveram de ser removidos.38 No decorrer da implantao do plano
de interveno para essa rea, uma srie de negociaes comeou,
entretanto, a ocorrer por trs, como alguns nos definiam, ou seja,
nas instncias da informalidade e da pessoalidade, cujos atores direta
ou indiretamente envolvidos eram a Associao de Moradores, os
agentes comunitrios, os tcnicos do programa e o movimento.
Quando o terreno selecionado estava quase totalmente desapropriado e a construo da creche j se iniciava, o dirigente da associao
dirigiu-se aos tcnicos do programa para solicitar, em nome da
38

A negociao direta entre os tcnicos da prefeitura e os proprietrios desses imveis no era


um processo simples e sem conflito. Para aqueles que viam na proposta da remoo uma
oportunidade de sair da favela ou mudar-se para as reas mais valorizadas da localidade,
os desacordos giravam sobretudo em torno do valor da indenizao a ser paga pela prefeitura.
J entre os que desejavam ali permanecer, a indenizao, independentemente do seu valor
monetrio, parecia no funcionar como um instrumento reparador eficaz que lhes suprisse
as perdas reais, simblicas e afetivas que a remoo das suas casas significava. Uma vez
que a permanncia no local no configurava entre as opes dadas pela prefeitura, pouco a
pouco o terreno eleito foi sendo totalmente desapropriado.

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comunidade, a modificao no projeto inicialmente aprovado, a fim


de que, em lugar da construo da praa, fosse duplicada a quadra
da associao, geralmente utilizada para ensaios de grupos de jovens
ligados projetos de dana e teatro na localidade e a realizao de
festas com a apresentao de grupos de pagode e funk promovidos
por traficantes. Embora os tcnicos do programa ficassem relutantes
nova proposio, para eles, se a solicitao era colocada pelo dirigente como sendo interesse da comunidade e a demanda no feria
os padres legais exigidos nem ultrapassava a verba previamente
acordada com a prefeitura, no lhes restava outra opo seno acat-la,
uma vez que a Associao de Moradores tinha legitimidade para tal.
Os agentes comunitrios que, por sua vez, trabalhavam uma sala
provisoriamente instalada no interior da Associao de Moradores
e acompanhavam de perto toda a negociao tambm recorriam
ao interesse da comunidade para tentar, sem sucesso, convencer
o dirigente da importncia de que fosse construda a praa para as
crianas atendidas pela creche, bem como alert-lo dos possveis
conflitos que poderiam, no seu ponto de vista, advir da vizinhana
de dois espaos destinados a pblicos e atividades to dspares. O
barulho, por exemplo, era citado como algo que atrapalharia a rotina da
creche, embora na prtica as festas geralmente ocorressem nos finais
de semana. Outro aspecto que baseava a argumentao dos agentes
referia-se a uma espcie de contaminao simblica que a presena
de pessoas ligadas ao movimento, que costumam frequentar e
organizar essas festas, poderia causar pureza das crianas. Contra
essa proximidade, os agentes referiam-se ainda aos riscos fsicos que
ela poderia causar s crianas em caso de confrontos entre traficantes
e policiais. Finalmente, para se preservarem de possveis coaes, os
agentes foram orientados pelo coordenador da equipe a no se meterem mais no assunto, sobretudo aqueles que, alm de trabalharem,
residem na localidade. E assim ento foram feitas as obras de expanso
da quadra da associao, ao lado da creche recm-construda. Nesse
jogo de negociaes que se passava em espaos no oficiais de discusso por trs, como nos diziam o pblico alvo do programa,
ou seja, os moradores, permanecia totalmente excludo do processo
decisrio. Em nenhum desses momentos encontramos moradores
que soubessem nos afirmar o que seria efetivamente construdo no
terreno desapropriado.
121

Arenas Publicas.indb 121

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

A partir do caso descrito anteriormente, sugerimos trs conjuntos de


questes para serem analisadas.
O primeiro refere-se relao entre os habitantes e as Associaes de Moradores. De imediato, o trabalho de campo permitiu-nos
constatar a existncia de uma grande distncia entre as Associaes
de Moradores de Acari e aqueles que elas deveriam representar. Ao
mesmo tempo em que os moradores vem as associaes como pouco
atuantes em relao ao que consideram que elas seriam capazes de
fazer em prol da comunidade, poucos so aqueles que se dispem espontaneamente a colaborar para que elas representem os interesses da
populao local, seja se engajando como scios, seja participando de
suas atividades. Geralmente vistas como lugares de poder individual,
as Associaes de Moradores esto sempre sujeitas a desconfianas.
A prevalncia de uma viso negativa e personalista dessas organizaes entre os moradores no uma caracterstica particular de Acari,
tampouco exclusiva da sociedade brasileira, mas um risco inerente a
qualquer movimento associativo. Para nos atermos aqui ao contexto
brasileiro, o pesquisador francs Dominique Vidal,39 por exemplo,
encontrou a mesma situao em Braslia Teimosa, no Recife, ao
estudar a relao entre as dimenses social e poltica nessa favela.
Devido sua participao em inmeras articulaes polticas, as
associaes de Braslia Teimosa so percebidas pelos moradores
de modo personalizado, cujos dirigentes vistos negativamente
como polticos estariam mais preocupados em extrair ganhos
pessoais de sua posio do que de buscar solues efetivas para os
problemas da localidade. Tal como na favela estudada por Vidal,
predomina na relao dos moradores de Acari com as associaes
o que o autor chama de lgica de usurio de servio pblico, em
que a participao nas atividades associativas estaria condicionada
s expectativas de os moradores se verem objetivamente recompensados, por exemplo, por sua incluso em um programa de habitao
ou de capacitao profissional. Ao mesmo tempo, o funcionamento
interno dessas organizaes revela, com frequncia, a concentrao
do poder de deciso nas mos de seus dirigentes e a no disposio de
submet-las ao controle dos moradores. A relao instrumentalizada
que o Estado tem historicamente estabelecido com as Associaes de
39

Vidal (1998).

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Arenas Publicas.indb 122

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Moradores parece ser, assim, reproduzida, no nvel local, na relao


dos habitantes com essas organizaes.
A avaliao da legitimidade das associaes enquanto porta-vozes dos
moradores no est pautada apenas no tipo e grau da relao que seus
dirigentes mantm com os polticos, relacionada a uma viso negativa
do mundo da poltica, mas tambm com o movimento, relacionado
a uma viso negativa do mundo do crime. Dependendo da vinculao
que tm com ambos os atores, as associaes so mais bem ou mal
vistas pelos moradores, assim como seus dirigentes so reconhecidos
enquanto seus representantes ou desqualificados enquanto tal.40
Se a conhecida troca de favores entre lderes comunitrios e polticos
da regio hoje uma prtica social naturalizada em nossa sociedade, a relao dbia entre as Associaes de Moradores de favelas
e o movimento tambm no um fato novo ou estranho a essas
localidades, mas resultado de uma antiga convivncia, que se inicia
muitas vezes no bojo do surgimento das associaes. Quando realizou
sua pesquisa em Acari (1995-1998), Souza41 observou que a relao
entre o movimento e certas Associaes de Moradores j estava
institucionalizada aos olhos dos moradores. A prpria sede de
uma associao e a piscina na sede de outra haviam, inclusive, sido
construdas por antigos chefes do trfico. Mas se inicialmente havia
um incentivo, sobretudo financeiro, por parte do movimento para a
constituio dessas organizaes, hoje o que se identifica a tendncia
cada vez maior de obter seu controle institucional. Essa nova forma
de se relacionar com as Associaes de Moradores estaria ligada,
a nosso ver, a um duplo processo, marcado tanto pelas mudanas
nos timos anos na prpria configurao do trfico de drogas nas
grandes favelas da cidade, quanto por um alargamento do papel das
associaes enquanto intermedirios entre as populaes residentes
nas favelas e o Estado.
Paralelamente expanso do narcotrfico, percebe-se em Acari
uma relativa mudana do perfil dos traficantes. Segundo o relato de
40

41

Essa instabilidade ratificada pela pesquisa realizada pelo IBASE (2000) em oito
comunidades e bairros da Grande Tijuca, que identificou como os quatro maiores desafios
colocados hoje s Associaes de Moradores: a busca por representatividade, a manuteno
da participao, a no submisso aos chefes do trfico de drogas e, nas parcerias, a no
aceitao sem discutir das regras dos projetos governamentais e no-governamentais.
Souza (2001).

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Arenas Publicas.indb 123

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moradores, antigamente [o consumo e a venda de drogas] era mais


discreto e os traficantes que, em geral, eram criados na comunidade, demonstravam respeito pelas Associaes de Moradores e seus
dirigentes.42 J os novos membros do movimento no possuem o
mesmo sentimento de pertencimento local e no tm mais o respeito
de antes, como lamentam antigos moradores. Achando que sabem
de tudo, eles tentam interferir nas aes das associaes quando
estas lhes suscitam algum interesse. Alm disso, parece-nos que a
poltica assistencialista praticada por antigos chefes do trfico, que
inclua a doao de bens e auxlios financeiros para as Associaes
de Moradores, converteu-se de alguma forma em dvida simblica
acumulada a ser paga pelos dirigentes.43 Muitas vezes, essa teia de
relaes to frgil que mudanas ocasionadas na configurao do
movimento acarretam mudanas na configurao das Associaes
de Moradores e vice-versa. Em Acari, as mudanas na dinmica das
Associaes de Moradores durante a interveno do Programa Favela-Bairro coincidiram, por exemplo, com uma presena mais homognea
das atividades do movimento nas diferentes localidades.
Diante dessa complexidade de variveis, consideramos que a
autonomia das Associaes de Moradores algo que deve ser constantemente negociado pelos dirigentes nas suas interaes cotidianas
no apenas com os agentes do Estado, mas tambm com os agentes do
movimento na localidade. No se trata de pura submisso, mas de
um verdadeiro jogo de cintura, como costuma dizer o ex-dirigente de
uma associao sobre a competncia necessria para exercer a funo.
Quanto aos papis que as associaes desempenham nesse jogo,
em relao aos rgos pblicos, remete-nos ao segundo conjunto de
questes que podemos sugerir a partir do caso de Acari: a relao
entre as Associaes de Moradores e o Estado.
42

43

Algumas demonstraes do respeito pelos lderes comunitarios e religiosos era a atitude dos
traficantes de evitarem ser flagrados por eles nas ruas vendendo ou fazendo uso de drogas,
alm de nunca entrarem nas dependncias das associaes portando drogas ou armas de
fogo.
Segundo Souza (2001), a retribuio dos moradores pelas ajudas do trfico, como o
pagamento do aluguel para quem no tinha condies financeiras e a compra de remdios
para os doentes, evidenciava-se, por exemplo, na demonstrao pblica de gratido e
solidariedade aos traficantes mortos pela polcia. Somente no enterro do traficante Jorge
Luiz, em meados de 1996, estiveram presentes cerca de 3000 moradores, que seguiram num
cortejo de 13 nibus para lhe dar o ltimo adeus.

124

Arenas Publicas.indb 124

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Como vimos, as Associaes de Moradores so os mediadores por


excelncia entre a populao atendida pelo Programa Favela-Bairro e
a administrao municipal. Os Agentes Comunitrios de Habitao44
tambm atuam como mediadores ou ponte entre a prefeitura e a
comunidade, como se autodefinem mas apenas de modo limitado.
Algumas de suas funes so: repassar e discutir com os moradores
informaes e conhecimentos sobre o ambiente urbano; atuar como
elo de comunicao e interlocuo democrtica entre a prefeitura
e a comunidade; incentivar o aumento do grau da participao dos
moradores no planejamento e na execuo de polticas pblicas a
cargo da prefeitura; e fazer o acompanhamento regular dos trabalhos
executados na comunidade, em parceria com os moradores.45 Diferentemente das Associaes de Moradores, os agentes comunitrios no
possuem o papel de representar politicamente a populao perante a
administrao municipal, mas apenas de facilitar a comunicao e a
cooperao entre ambos, promovendo, ao mesmo tempo, o desenvolvimento comunitrio. Alm disso, entre os agentes comunitrios
e a administrao municipal, h a mediao de uma organizao no
governamental,46 responsvel pela seleo, capacitao e coordenao
do trabalho das equipes.
De todo modo, tanto os agentes comunitrios quanto os dirigentes das
associaes reconhecem a necessidade de se estabelecer uma parceria
durante a implantao do programa, sem descartar, contudo, o fato de
que a indefinio de seus contornos pode comprometer a autonomia
do trabalho de cada um. Por um lado, essa parceria daria o respaldo
necessrio para que os agentes comunitrios desempenhem adequadamente seu trabalho nas localidades, tendo em vista que muitos deles
so de fora, ao mesmo tempo que daria maior visibilidade participao das associaes no processo da interveno. Por outro lado,
assumir uma vinculao excessivamente estreita com as associaes
acarretaria desvantagens para os agentes, na medida em que alguns
dirigentes tentam incorporar o trabalho das equipes como mais uma
44

45
46

As equipes so compostas por um nmero de agentes, em geral moradores de favelas, que


varia de 3 a 6, de acordo com as caractersticas territorial e populacional das localidades.
Freire (2005).
Trata-se da ONG CIEDS (Centro de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentvel),
criada no Rio de Janeiro em 1998, com o objetivo de formar indivduos e grupos facilitando
o desenvolvimento de seus projetos voltados para a melhoria da vida de suas comunidades,
sendo uma de suas reas de atuao a assessoria gesto social de polticas pblicas. Para
maiores informaes, ver o site: <www.cieds.org.br>.

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Arenas Publicas.indb 125

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

atividade da associao e que a representao negativa das associaes poderia dificultar a sua aproximao inicial com os moradores.
Enquanto a atuao dos agentes comunitrios resume-se a um contexto
delimitado e provisrio, a atuao das Associaes de Moradores
extrapola esses limites ao serem consideradas pela prefeitura como
representantes legtimas das populaes residentes nas favelas. Conforme vimos em Acari, por meio dessas organizaes, por exemplo,
que convocada a assembleia para apreciao do plano de interveno
urbana junto populao a ser atendida. Independentemente do que
decidido nessa ocasio, na prtica, ao longo de todo o processo de
implantao do programa, as Associaes de Moradores tm o poder
de interferir e propor alteraes no plano inicialmente aprovado, sem
que, para isso, seja necessria a convocao de novas reunies pblicas. Para os tcnicos do programa, na medida em que os dirigentes
das associaes falam em nome da comunidade, suas demandas
devem ser consideradas. Alm disso, as particularidades de cada
associao exigem uma adaptao constante dos representantes do
poder pblico ao perfil de seus dirigentes. A relao personalizada
com as associaes assumida pelos prprios tcnicos do programa,
quando a engenheira nos diz: as associaes so bem diferentes,
cada uma de um jeito. Ento com cada um dos presidentes a gente
vai levando tambm na linha que eles fazem.
Apesar de o trabalho de campo evidenciar o quanto essas organizaes
esto em permanente tenso, sendo submetidas s foras e aes de
diversos atores, ter uma Associao de Moradores que desempenhe
de forma ativa a funo de defender os interesses coletivos pode fazer
a diferena no mbito do Programa Favela-Bairro, por exemplo, no
que se refere elaborao do plano de interveno de acordo com
as demandas dos moradores e qualidade das obras executadas nas
localidades. Como nos dizia o ex-dirigente de uma das associaes
de Acari, a comunidade muitas vezes perde quando a associao no
mostra interesse, quando no existe um acompanhamento de perto
da liderana. Nesse sentido, sua fiscalizao e acompanhamento
contnuo (antes de haver a unificao das associaes) foram fatores
importantes para que a sua comunidade recebesse obras de melhor
qualidade do que as demais, fato reconhecido at mesmo pelos moradores das trs localidades.
126

Arenas Publicas.indb 126

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Sobre essa flexibilidade do programa, a anlise de Carvalho47 indica que,


se por um lado, esta , juntamente com a independncia dos escritrios
de arquitetura, uma de suas caractersticas mais salientes, por outro
lado, essas mesmas qualidades o expem a uma imensa variedade de
solues polticas correspondente tanto s caractersticas empricas das
localidades quanto s dos tcnicos envolvidos na sua execuo, o que
tende a tornar o Estado muito distante e a noo de pblico longnqua.
Este ponto remete-nos, ento, ao terceiro conjunto de questes que o
caso de Acari nos indica: a relao entre a populao residente nas
favelas e o Estado.
Como j apontamos ao longo do texto, a relao entre os habitantes das
favelas e o Estado tem sido historicamente intermediada por diversas
organizaes sociais, das quais uma das mais significativas tem sido
as Associaes de Moradores. Em Acari, essas associaes so priorizadas pela administrao municipal como as instncias de negociao
e representatividade da populao na implementao de suas polticas
urbanas.48 Aos olhos da prefeitura, essa parece ser a principal forma
de garantir a participao da populao no processo de implantao
do Programa Favela-Bairro. Nesse contexto, interessa-nos identificar
quais so as formas retricas acionadas pelas Associaes de Moradores
no contexto do Programa Favela-Bairro, na qualidade de mediadoras
entre a populao e a prefeitura e, indiretamente, quais so as suas
implicaes na relao entre a populao e o Estado.
No caso abordado, evidenciamos que a concesso que se difere certamente da conquista obtida a partir de uma mobilizao coletiva desse
papel representativo s Associaes de Moradores est diretamente
relacionada existncia de um hiato no apenas entre a elaborao do
plano de interveno urbana e a sua implantao nas localidades, mas
tambm entre a concepo do programa quanto garantia da participao popular e democrtica no processo da interveno e a maneira
como os dispositivos pblicos so dispostos e apropriados na localidade.
Ao falar em nome da comunidade, as Associaes de Moradores
tornam-se capazes de intervir abertamente em todo o processo de
47
48

Carvalho et al. (1998).


Notamos, porm, que essa prioridade no dada exclusivamente pela prefeitura, mas
por praticamente todas as instituies estatais, sociais e no-governamentais que realizam
parcerias ou desenvolvem projetos em favelas.

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Arenas Publicas.indb 127

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

interveno urbana em Acari. Destacamos que, se por um lado, essa


aliana entre a prefeitura e as Associaes de Moradores pode gerar
efeitos benficos populao, por meio de uma atuao fiscalizadora
e reivindicatria de seus dirigentes que garanta um trabalho bem feito
na comunidade, por outro pode produzir efeitos perversos e imprevisveis, ficando o programa sujeito s relaes de foras internas s
localidades e s consequentes alteraes na dinmica das Associaes
de Moradores. Ao atribuir esse poder s Associaes de Moradores,
a administrao municipal tem provocado o acirramento de conflitos
pr-existentes nas localidades, refletido, por exemplo, no aumento das
presses do movimento pelo controle das associaes, mas tambm
nas disputas entre os prprios lderes locais por exercer o papel de
porta-voz da comunidade, aproveitando a ocasio da interveno
para reafirmar publicamente sua liderana poltica, disputando, at
mesmo, o ttulo de quem levou o Favela-Bairro para Acari. Dessa
forma, as Associaes de Moradores transformam-se em verdadeiras
arenas pblicas,49 em espaos de negociao e disputa entre diferentes atores, em que os interesses individuais e coletivos se colidem o
tempo todo, variando conforme o contexto e as vinculaes daquele
que ocupa momentaneamente a posio privilegiada de falar em
nome da comunidade.
Como podemos observar em Acari e em diversas outras localidades
ditas desfavorecidas, as Associaes de Moradores vivem um dilema
que torna cada vez mais difcil identificar em nome de quem seus dirigentes falam: de si prprios, de polticos, da populao ou do trfico
de drogas local? Independentemente dos interesses, individuais ou
coletivos, encobertos ou explicitados, observamos igualmente que ,
entretanto, sempre em nome da comunidade que seus dirigentes se
pronunciam no espao pblico.
O carter homogeneizante do termo comunidade particularmente
perceptvel nas formas de interveno pblica voltadas s favelas,
tendo as Associaes de Moradores assumido um papel importante
na gesto de diferentes programas. Guardadas as devidas diferenas,
pode-se dizer que, tal como no contexto do ambientalismo analisado
por Lobo,50 as associaes, no contexto urbano das favelas, tambm
so tratadas como representantes ou so comumente criadas para
49
50

Cefa (2002).
Lobo (2006).

128

Arenas Publicas.indb 128

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

representar os interesses de uma comunidade. Na viso do autor,


o problema na aplicao das polticas pblicas ambientais parece
muitas vezes residir justamente no uso generalizado e impreciso
desse conceito. Para compreender a sua apropriao no processo da
interveno do Programa Favela-Bairro em Acari, preciso, portanto,
considerar os contextos, objetivos, valores e interesses dos atores em
cada situao.
Embora no prprio nome do programa esteja presente o termo favela,
por oposio a bairro, no processo de sua implantao a comunidade que evocada nas localidades pelos representantes da prefeitura,
incluindo os Agentes Comunitrios de Habitao. Ao fazerem uso
desse termo, tentam se esquivar do aspecto estigmatizante incutido
historicamente na palavra favela, aludindo a uma imagem pblica
positiva, mas ao mesmo idealizante, convencionada como politicamente correta, desses espaos urbanos e de seus habitantes.51 Essa
mesma apropriao do termo pode ser observada entre a maioria dos
moradores, que o utilizam para fazer frente ao efeito de descrdito
produzido pelo estigma de favelado, assim como para definir o
grau de pertinncia dos indivduos, distinguindo-os entre os de
fora e os da comunidade. Uma lder comunitria, por exemplo,
justifica sua preferncia pelo termo por considerar que favela um
nome muito pesado, defendendo inclusive a sua extino de nosso
vocabulrio citadino.
Enquanto comunidade evoca uma pretensa harmonia, favela
evoca o caos. esse termo que frequentemente utilizado pelos
atores para ressaltar os aspectos negativos de Acari, como a pobreza,
a situao de abandono por parte do poder pblico e as diversas
formas de violncia incitadas pela presena do trfico de drogas nestas
localidades. Essas imagens so manejadas sobretudo por moradores
que comporiam aquilo que Silva52 designou burguesia favelada
pessoas que monopolizam o acesso, o controle e a manipulao dos
recursos econmicos e das decises e os contatos polticos nas favelas
51

52

Mais do que isso, Boschi e Valladares (1983) apontam que os rgos implementadores de
polticas pblicas, notadamente aqueles voltados para as populaes das favelas, mocambos
etc. apropriaram-se direta ou indiretamente de toda a teorizao anterior a respeito da ideia de
comunidade, seja aquela que a definia como ncleos idelizados de tipo rural, por constraste
aos aspectos negativos do urbano, seja aquela que a definia como ncleos espacialmente
segregados e marginalizados.
Silva (1967).

129

Arenas Publicas.indb 129

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

, em situaes que envolvam a possibilidade de obter benefcios para


seu grupo social. Por exemplo, quando um lder local recebe visitas
de polticos em perodo eleitoral, ele exibe aos visitantes os cantos
mais precrios da favela, sugerindo a troca de apoio poltico por
melhorias em termos de servios pblicos (e, s vezes, tambm em
favor de interesses pessoais).53 Por outro lado, a imagem idealizada
da comunidade que evocada quando estes mesmos lderes pretendem exibir publicamente seus feitos e as melhorias que trouxe para a
sua comunidade, inclusive aes pblicas como a interveno do
Programa Favela-Bairro, bem como evocar uma homogeneidade dos
interesses da populao que suas aes pretensamente representariam.
Nesse sentido, como ressalta Gusfield54 em relao s categorias
sociolgicas comunidade e sociedade, consideramos que favela e
comunidade no so categorias estticas, mas dinamicamente construdas pelos indivduos na diversidade de suas interaes cotidianas.
Enquanto espaos em que ocorre a maioria das disputas econmicas, polticas e simblicas, as Associaes de Moradores de Acari
deparam-se cotidianamente com o desafio de administrar a concorrncia dos interesses dos seus prprios dirigentes, dos habitantes, dos
representantes do poder pblico e ainda do movimento. A referncia
favela ou comunidade ter efeitos distintos, dependendo das
negociaes em jogo em cada uma das situaes. No caso abordado,
a referncia comunidade implica uma tentativa de legitimao do
discurso e do prprio papel de porta-voz de um grupo social pretensamente homogneo, cujos interesses convergiriam para um mesmo
ponto e seriam ento representados pelo porta-voz.
Se a interveno do Programa Favela-Bairro em Acari motiva situaes de conflito nas quais diferentes argumentos e aes so colocados
em cena por atores diversos, a evocao constante da comunida-

53

54

Embora em muitos casos os lderes locais se tornem importantes cabos eleitorais, a prometida
retribuio nas urnas nem sempre ocorre, j que, como dizem os moradores, aps as eleies os
polticos tendem a esquecer a comunidade. Como j dizia Medina (1964, p.88), tal situao
muitas vezes no passa de uma simulao, em que o eleitor diz que vai votar, mas no vota. O
cabo eleitoral finge que acredita, mas no acredita. O candidato, pelo menos antes da eleio,
embora j informado pelo cabo eleitoral, continua afirmando que conta com o apoio de todos.
Gusfield (1975).

130

Arenas Publicas.indb 130

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

de que sustenta os seus argumentos e legitima as suas aes.55 Ao


falarem em nome da comunidade, os atores lanam mo de uma
forma retrica de generalizao,56 dentre muitas outras disponveis,
que lhes parece ser considerada a mais eficaz na situao para mostrar
que suas aes no resultam de seus interesses individuais, mas de
interesses coletivos, compartilhado pelos habitantes de Acari, mesmo
que na prtica no o seja.

REFERNCIAS
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tericos na anlise de movimentos sociais: comunidade, ao coletiva
e o papel do Estado. Espao & Debates, So Paulo, n. 8, 1983.
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. A humanizao
do meio ambiente: Simpsio do Instituto Smithsiniano. So Paulo:
Cultura, 1972.
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TROM, Danny (Org.). Les formes de laction collective: mobilisations
dans des arnes publiques. Paris: ditions de lcole de Hautes tudes
en Sciences Sociales, 2001.
55

56

O contexto analisado difere-se, nesse sentido, do contexto francs, no qual a referncia


comunidade totalmente rejeitada enquanto estratgia de legitimao pblica por aludir
ao interesse particular, opondo-se assim ao princpio republicano francs de interesse geral.
Assim, os dirigentes das associaes de bairro devem sempre buscar distanciar-se de qualquer
aluso comunidade para vencer a acusao de egosmo que pesa sobre os movimentos
reivindicativos (CEFA, 2001).
Cefa (2001).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

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Arenas Publicas.indb 132

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteo e organizao


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. A inveno da favela: do mito de origem a favela.com. Rio
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VIDAL, Dominique. La politique au quartier: rapports sociaux et
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ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (Org.). Um sculo de favela. Rio
de Janeiro: FGV, 1998.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

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ENGAJAMENTO POLTICO
E MOBILIZAO COLETIVA
EM NOVA IGUAU
RJ: BASTIDORES DA
MOBILIZAO DO MAB NAS
CONFERNCIAS DAS CIDADES
Jussara Freire1

Introduo
Este artigo2 tem como objetivo descrever algumas das cenas anteriores conferncia municipal de Nova Iguau. Mais especificamente,
buscarei analisar as provas e disputas acerca da nomeao dos porta-vozes da Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau
(MAB). Atravs desta descrio, proponho interpretar certas competncias polticas em situao de construo de uma causa comum
e certas tenses provocadas por enquadramentos diferenciados dos
atores desta federao em torno do projeto e das reivindicaes do
MAB. A anlise dessas tenses permitir avaliar como este coletivo
explora o espao pblico, mobilizando recursos disponveis e disponibilizados, como no caso da Conferncia Nacional das Cidades.
Partir desta perspectiva implica descrever as competncias ordinrias
dos atores polticos do MAB. Esta discusso consiste, portanto, em
uma sociologia descritiva da ao coletiva no curso de sua elaborao
desde os seus bastidores at o momento de sua visibilidade diante
de outras arenas pblicas. Neste artigo, privilegiarei os bastidores
da ao coletiva do MAB, suas micro-arenas pblicas,3 enquanto
ponto de partida do trabalho de descrio, sem pretender, no entanto,
encontrar a origem dos assuntos problematizados na Conferncia
Nacional das Cidades. Estes bastidores so ambientados na sede do
MAB e na cidade de Nova Iguau.
1
2

Professora da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Sociologia (IUPERJ).


Gostaria de agradecer particularmente a Luiz Antnio Machado da Silva e Mrcia Pereira
Leite pela leitura e por suas sugestes neste texto. Essas interlocues enriqueceram muito
este artigo.
Cefa (2000, p.51-82).

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De antemo, vale advertir que este artigo tem como objetivo mais
geral entender como se organiza a experincia militante e sua relao
com os modos de engajamento das pessoas na Federao. Por este
motivo, a nfase da descrio ser voltada para as formas de coordenao situadas e observadas em reunies deste coletivo. Neste sentido,
o desafio deste texto modesto (e ao mesmo tempo ambicioso),
uma vez que buscarei destacar pequenos detalhes de sequncias de
situaes de reunies, que me parecerem altamente significativos para
compreender como se organizam as experincias militantes das pessoas engajadas na Federao. Por este motivo, buscarei compreender
como o arranjo desses pequenos detalhes, atores ordinrios, tenses e
objetos, a priori insignificantes ou secundrios, est no princpio das
atividades de negociao, de engajamento e de mobilizao coletiva.
Diante desse objetivo, vale ainda apresentar sumariamente o quadro
analtico que conduziu minhas observaes durante a minha pesquisa
de campo. A perspectiva deste artigo fundamenta-se na sociologia
norte-americana dos problemas pblicos, particularmente na abordagem de Gusfield,4 que consiste em focalizar o olhar sociolgico
no processo de publicidade do ponto de vista dos atores sociais
nele envolvidos e em seu movimento espacial-temporal, sempre em
curso de elaborao. Complementarmente, baseio-me na chamada
sociologia pragmatista francesa (em particular, nos trabalhos de Luc
Boltanski e de Laurent Thvenot), que oferecem preciosas ferramentas
conceituais para observar operaes crticas, provas e disputas. So
recortes analticos que permitem focalizar o olhar sociolgico nos
processos de constituio e de formao de espaos pblicos a partir
das crticas elaboradas pelos atores sociais em situao. Permitem,
assim, analisar coletivos a partir das percepes dos prprios atores
sobre o que consideram justo e injusto, de situao em situao, e
entender como estes sensos do justo e do injusto constituem a trama
da construo da ordem pblica.
Adotar esse ponto de vista implica partir de uma postura descritiva
e interpretativa do ponto de vista do agente competente. Na mesma
direo da etnometodologia. Entendo pela expresso de agentes
competentes que as pessoas possuem e desenvolvem competncias
prprias quando problematizam determinados assuntos, mesmo que
suas formulaes no sejam compartilhadas pelo observador. Uma
4

Gusfield (1981).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

sociologia descritiva5 dessas lgicas sociais revela-se tambm de suma


importncia para apreender as formas de acesso ao espao pblico.
Assim, uma sociologia descritiva da pluralidade de lgicas dos
protagonistas antes referidos elucidar no somente o entendimento
da construo do espao pblico, mas tambm, por extenso, da
ordem social e pblica a partir do esforo analtico de reconstituio
desse mosaico.
Gusfield, por exemplo, estudando as disputas definicionais em torno
deste problema, procura entender como o ato de dirigir um automvel
em estado alcoolizado (drinking-driving) tornou-se um problema
pblico norte-americano. O tratamento do drinking-driving adquire,
em sua obra, um carter peculiar, pois ele inclui a discusso da dramatizao dos eventos e das aes dos pblicos envolvidos6 como forma
de enquadramento (frame) do problema pblico. Enfatizar o processo
de dramatizao do problema pblico equivale a se interrogar sobre
as performances, as competncias, a visibilidade e as encenaes em
arenas pblicas. O que importa no tanto a veracidade dos fatos,
mas as performances dramatrgicas de pessoas ou de arenas pblicas,
de forma que um problema se torne um drama pblico a ser tratado
com prioridade.
Como viver juntos? Que acordos e compromissos so necessrios
quando compartilhamos uma mesma situao? Como as pessoas
se engajam nos mundos sociais nos quais nos movemos quotidiana
e historicamente? Como agir de forma conveniente em uma dada
situao? Como se elabora um compromisso? Estas so algumas
das questes delineadas por Luc Boltanski e Laurent Thvenot.7 A
perspectiva analtica desenvolvida pelos autores focaliza os recortes
cognitivos e morais ordinariamente realizados pelas pessoas comuns,
consideradas atores competentes. Para esta sociologia, a unidade
elementar de observao a situao na qual se encontram pessoas
que estabelecem um acordo, nesse espao-tempo especfico, sobre
um bem comum, que configura um princpio superior que viabiliza
5
6

Goffman (1991).
Gusfield dedica o Captulo 7 deste livro dimenso dramatrgica da ao pblica. No entanto,
vale assinalar que ele no se inspira conceitualmente apenas nos trabalhos de Goffman e de
Burke. O autor enfoca trs perspectivas da ao pblica: do ponto de vista da performance,
de sua encenao e, por fim, da visibilidade de atos, experincias e emoes despertadas
em torno de um evento (GUSFIELD, 1981, p.77).
Boltanski; Thvenot (1991).

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o viver junto. Boltanski e Thvenot8 denominaram de cidade


(cit, cuja traduo mais apropriada seria ordem) este modelo
de humanidade comum:9 um enquadramento ou regime situado,
a partir do qual existe um acordo em relao aos princpios do que
justo para seus membros, em nome de um bem comum visado,
que permite estabelecer uma relao de equivalncia entre os seres.
Portanto, estas cidades distribuem e hierarquizam os seres em uma
situao, sem que haja necessidade de questionar a pertinncia dos
estados de grandeza, j que h um consenso em torno destes. Este
recorte no exclui, contudo, a disputa, uma vez que este acordo situado e, portanto, em outras situaes, questionvel. Nestas situaes,
as partes conflitantes, os pequenos, podem questionar a relao
de grandeza dos grandes, definida em nome do bem comum,
e colocar em prova a hierarquia que regulava a situao anterior.
Os dispositivos sustentam a crtica e so engajados ou engajam um
ser em uma ao. Tais dispositivos possibilitam, assim, que atores
se refiram a um princpio de justia, apropriem-se dele para reforar
uma crtica ou ainda apropriem-se da forma pela qual eles indicam
uma ordem de grandeza. Eles permitem ancorar um regime de justificao em uma realidade.10 Para esta perspectiva analtica, no se
trata de apreender o mundo objetivo ou subjetivo e sim de apreender
o mundo por meio dos sentidos corriqueiros do que o mundo, dos
sentidos construdos e mobilizados por atores em situao (os sentidos
corriqueiros da justia, do amor, da desigualdade etc.), bem como de
observar o trabalho realizado por pessoas no intuito de se ajustarem
de maneira situada a este mundo.11

8
9

10
11

BOLTANSKI, L.: THVENOT, L. De la justification. Paris: Gallimard, 1991.


O pressuposto dos autores que o acordo em cada cit elaborado a partir de uma relao
de equivalncia entre os seres. Cada cit, portanto, refere-se a um modelo especfico de bem
comum, que permite a generalizao das operaes de crticas.
Breviglieri; Stavo-Debauge (1999).
Ibidem.

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Regimentos, decises, lemas e objetivos do Ministrio


da Cidade: ancorar a Conferncia Nacional das Cidades
em um contexto participativo
27 de Outubro de 2002. Vitria do candidato Lula nas eleies presidenciais.
No dia 1o de Janeiro de 2003, Lula assumiu seu primeiro mandato.
Logo no incio de seu governo, o novo presidente anunciou a criao
do Ministrio das Cidades e nomeou o seu Ministro, Olvio Dutra.
Todos os membros da diretoria da Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau, o MAB, Movimentos Amigos de Bairros,
fizeram a campanha do candidato Lula. Alguns dividiram com outros
militantes o custo do aluguel de um nibus para presenciar a posse
do Presidente em Braslia. Aqueles que no foram capital, comemoraram a vitria no calado, rua de pedestres no centro de Nova
Iguau, ou na sede do Partido dos Trabalhadores do municpio. Em
ambos os casos, esta vitria era considerada, para retomar as palavras
de um diretor do MAB, como a vitria do nosso povo.
No dia 26 de Maio de 2003, o Ministrio das Cidades divulgou oficialmente o decreto de convocao para a 1a Conferncia Nacional
das Cidades. O Ministrio atribuiu a esta Conferncia a palavra de
ordem Cidade Para Todos e o tema Construindo uma poltica
democrtica e integrada para as Cidades. No primeiro artigo do regimento do evento, encontravam-se listados seus oito objetivos. Dentre
estes, dois itens indicavam que o espao da Conferncia tinha como
objetivo identificar e destacar princpios e diretrizes para as polticas
setoriais e para a poltica nacional das cidades. Em outros termos, o
evento buscava reunir uma pluralidade de arenas para avaliar e definir
assuntos prioritrios12 relativos s cidades brasileiras. Alm disso,
o documento incorporava a necessidade de dar voz a segmentos,
agentes, produtores, consumidores e gestores no que tange
s polticas urbanas e atuao do Ministrio. O primeiro artigo do
regimento tambm classificava os participantes desta 1a Conferncia
como avaliadores de programas e legislaes em diversas reas e insistia em seu carter participativo. A Conferncia tinha como objetivo
criar uma agenda pblica em torno do que movimentos sociais, fruns
12

Gusfield (1981).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

e redes articulados em grandes cidades brasileiras haviam definido


como sua prioridade central: a reforma urbana.
A 1a Conferncia Nacional das Cidades, fundamentada no esprito da
Carta Magna de 1988, inseria-se, assim, em uma lgica da democracia de participao,13 propondo reunir uma grande diversidade
de arenas pblicas. A novidade do evento consistia em uma nova
associao de humanos e de no humanos,14 que permitiriam dar
uma forma institucional participao popular. Neste sentido, a
Conferncia pode ser lida antes como um frum hbrido:15 espaos
abertos nos quais grupos podem se mobilizar para debater escolhas
envolvendo um coletivo. O que, de um lado, implica arranjos (assemblage) de coletivos e, portanto, de porta-vozes heterogneos tratando
de assuntos, eles tambm, heterogneos.16 De outro lado, implica
tambm arranjos de regimentos, leis, lemas e palavras de ordem com
porta-vozes que ancoram as vozes dos movimentos sociais em novas
situaes de publicidade e de formas de orientar a ao coletiva. No
caso em anlise, do ponto de vista dos atores dos movimentos sociais,
o frum implicava explorar rapidamente novas formas pelo menos
no que tange a esta maneira de problematizar o assunto da cidade
de tomar voz no espao pblico. Evidentemente, essas novas formas
seriam exploradas na continuidade do legado de outras conferncias
e de mobilizaes.
O regimento dessa conferncia estabelecia como obrigatrias duas
etapas anteriores Conferncia Nacional: as conferncias municipais e as estaduais que formulariam propostas a serem incorporadas
nas discusses da Conferncia Nacional. Para os movimentos sociais
e os outros atores concernidos urgia organizar, na escala municipal,
a conferncia correspondente primeira etapa. Tornava-se premen13
14

15
16

No sentido de Werneck Vianna e Rezende de Carvalho (2000).


Latour (1993, 1999). No seu projeto de antropologia simtrica, Bruno Latour prope substituir
o termo social e sociedade pelo termo de associao de humanos e de no humanos. Esta
abordagem permite, de um lado, superar tradicionais divises entre o mundo dos sujeitos e o
mundo dos objetos. Por outro lado, considerar simetricamente esta relao, oferece preciosas
ferramentas para analisar os modos de coordenao entre objetos e humanos. Este ponto o que
mais chama a minha ateno e ser a lente pela qual descreverei, mais adiante, as situaes de
tenses ou de provas e a mobilizao de no humanos para tentar amenizar pequenos conflitos.
Vale ainda destacar que considerarei como no humanos desde objetos especficos como um
quadro negro at os regimentos ou estatutos que ordenam os coletivos polticos.
Callon; Lascoumes; Barthe (2001. p.36).
Ibidem, p.36.

140

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

te criar o espao no qual seriam negociados acordos e prioridades


municipais a serem inseridos na agenda das conferncias seguintes.
A notcia da Conferncia na continuidade de reivindicaes
antigas do MAB: os assuntos problematizados pela Federao
Em Nova Iguau, a notcia da Conferncia Nacional das Cidades
espalhou-se como um rastilho de plvora. Partidos polticos de esquerda, sindicatos, ONGs, outros movimentos sociais e secretarias
municipais da cidade, diante desse anncio, comearam a se mobilizar
imediatamente. Muitos porta-vozes de movimentos sociais de Nova
Iguau estavam simultaneamente participando de outras conferncias e mobilizaes. No MAB, coletivo que problematiza todos os
sub-temas formulados no regimento da Conferncia, os diretores
encontravam-se sobrecarregados. Porm, as conferncias municipais,
estaduais e nacional eram, sem dvida, fruns prioritrios para este
coletivo, representante das associaes de moradores da cidade.
A cidade tornara-se um assunto a ser priorizado na agenda pblica.
Esta oportunidade permitiu ao MAB entrever a possibilidade de tornar
visveis os problemas de Nova Iguau que o coletivo problematizava h dcadas. Prova disso que, no segundo artigo de seu Estatuto,
inclusive, a mobilizao em torno desses assuntos apresentada
como a primeira finalidade do MAB: Lutar permanentemente
na defesa dos interesses e carncias da Populao Iguauana no que
se refere Sade, Educao, Transporte, Habitao, Justia Social,
Meio Ambiente, Cidadania e a qualidade de vida em geral.17 Ancorados em seu Estatuto, os assuntos que sustentam as reivindicaes
do MAB tornam-se caixas pretas, conjuntos coesos que encobrem
uma grande multiplicidade de elementos diferentes, mas que garantem

17

Estatuto do MAB (com alteraes includas em 2003, p.1). Vale destacar que os assuntos
apresentados no so especficos Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau.
Com efeito, este repertrio um arranjo de vrias reivindicaes dos movimentos de base
do perodo ditatorial com aquele do perodo de transio democrtica, que se soma, por sua
vez, aos tpicos inseridos na gramtica poltica nos anos 1990 e 2000.

141

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

o funcionamento de uma unidade conceitual.18 Como veremos mais


adiante, essas caixas pretas sustentadas por no humanos como um
estatuto permitem apaziguar os conflitos,19 caso algum se atreva a, em
uma reunio, questionar as bandeiras de luta do MAB. Francisca,20
penltima presidente da Federao, que comps a chapa eleita em
2003 enquanto diretora, sempre deu continuidade s causas cons
trudas por seus antecessores. Por sua vez, tais causas tambm foram
legadas presidente que a substituiu, em 2003. Com efeito, desde a
dcada de 1980, todos, os que participaram do MAB reivindicavam
a resoluo dos problemas clssicos de Nova Iguau: falta de saneamento bsico, moradias precrias, inacessibilidade dos servios
pblicos fundamentais (transportes, educao e, principalmente em
Nova Iguau, sade), alm de ttulos de posse e regularizao fun
diria. H quase 30 anos, antes mesmo da institucionalizao do
MAB enquanto Federao das Associaes de Moradores de Nova
Iguau (em 1981), os porta-vozes do movimento de amigos de bairros
reivindicavam o acesso a estes servios e cidade. De repente, um
novo contexto permitia que estas vozes vislumbrassem a possibilidade de terem maior visibilidade no espao pblico; at ento, muitas
pessoas ligadas ao MAB vivenciavam suas tentativas de tomada de
voz como esforos condenados ao silenciamento.21 O horizonte de
publicidade oferecido por novos dispositivos institucionais significava, para os protagonistas de movimentos sociais e de partidos de
esquerda da cidade, um novo sopro para a ao coletiva.
18

19
20

21

Latour (1999, p.213). A construo dessas caixas pretas est intimamente vinculada s
abordagens sociolgicas e recortes tericos empregados no Brasil e assemelha-se ao que
Giddens nomeou de dupla hermenutica (GIDDENS, 1989, p.303). Embora de forma
muito distinta, esta ideia tambm est presente no quadro analtico de Boltanski; Thvenot
(1991); Boltanski (1990), empregado neste artigo e que apresenta o interesse de insistir nas
competncias mobilizadas por atores corriqueiros quando recorrem a conceitos ou recortes
das cincias sociais em funo da situao na qual eles se encontram. Lembrando este tipo
de abordagem, em um artigo de 1985, Machado da Silva e Ribeiro mostraram que a origem
do paradigma das pesquisas sobre movimentos sociais centra-se em torno de duas vertentes:
a anlise estrutural de Castells e Lojkine, a anlise de Weffort e, sobretudo de Moiss
(MACHADO DA SILVA; RIBEIRO, 1985). Descrevendo a construo dos paradigmas dos
movimentos sociais brasileiros, este trabalho particularmente interessante para observar
como estes paradigmas so mobilizados nos movimentos sociais (FREIRE, 2005).
Latour (1993).
Para preservar o anonimato e os termos do que foi decidido com os protagonistas do meu
trabalho de campo, alterei nomes, algumas datas e lugares. No creio que esses cuidados
tenham afetado a fidedignidade da descrio apresentada.
Machado da Silva ([20--]).

142

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Desde o final da dcada de 1970, os recursos mobilizados pelos membros do MAB diante dos obstculos para seu acesso ao espao pblico
seguiam uma mesma e constante forma emotiva: a denncia do descaso ou dos maltratos dos governantes em relao aos moradores
de bairros pobres da cidade e o lamento da tristeza e a humilhao que
sentiam por viverem em Nova Iguau.22 As reivindicaes e as formas
de dar-lhes visibilidade no espao pblico ajustavam-se aos contextos
municipais, estaduais e nacional dos anos 1970 e 1980. Mas o processo
de redemocratizao introduziu, paulatinamente, certas mudanas nos
repertrios reivindicativos do MAB, na medida em que passou a criar e/
ou a dar acesso a novos espaos de negociao e de concertao. Ainda
assim, dependendo das situaes nas quais se encontram os membros
do MAB, pode-se observar, ainda hoje, a mobilizao de repertrios
emotivos semelhantes queles mobilizados em dcadas anteriores.
A agenda poltica do MAB, desde o incio de 2003, foi particularmente
intensa. Nesse ano, em que se realizou um congresso da Federao,
cursos diversos de capacitao, seminrios, participao em novos
conselhos municipais e em vrias conferncias adicionaram-se s
atividades cotidianas dos diretores e filiados ao MAB. Sem ter ainda
clareza de quais seriam as iniciativas do Ministrio da Cidade, a diretoria
j previa novos espaos de debate no que tange s questes urbanas.
Mas a notcia da realizao da Conferncia Nacional das Cidades criou
uma certa efervescncia no MAB. A diretoria da Federao necessitava reunir as suas associaes. No incio do ms de fevereiro, com o
objetivo de preparar o congresso do MAB e de esclarecer o papel das
associaes de moradores na nova conjuntura, a diretoria organizou a
primeira reunio anual do Conselho dos Representantes23 (denominado,
pelos membros do MAB, na sua forma abreviada, CR).

22
23

Freire (2007).
O Conselho dos Representantes um rgo deliberativo ordinrio do MAB, sendo
constitudo por trs representantes de cada Associao por ela indicada, sendo um nato e
dois eleitos, tendo direito ambos a voz e voto, como definido no Captulo V do Estatuto do
MAB (com alteraes aprovadas no Congresso do MAB de 2003), art. 17, p.6. O Conselho
dos representantes formado apenas por presidentes de associaes de moradores e uma
instncia autnoma da presidncia e da diretoria da federao. Quase todas as decises da
federao precisam ser aprovadas pelo Conselho dos representantes.

143

Arenas Publicas.indb 143

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Da hospitalidade e convvio s tenses e provas na reunio


do Conselho dos Representantes
De forma semelhante associao descrita por Cefa e Lafaye,24 a
ecologia da mobilizao25 do MAB caracteriza-se pela sede da
Federao, seu ambiente, seus objetos e suas personagens.
A sede do MAB situa-se no centro de Nova Iguau, na rua Pimenta
Atade de Moraes, um dos eixos centrais de Nova Iguau. Esta rua
particularmente barulhenta devido passagem de nibus, carros e
carretas. De vez em quando, os rudos do trnsito misturam-se aos
cnticos evanglicos das igrejas vizinhas ao MAB. Em dia de reunio
na sede, tais rudos podem levar os participantes a gritar, ou, ento,
se houver oramento para tanto, a alugar uma estrutura de som.
O MAB situa-se na mesma rua da Prefeitura Municipal de Nova
Iguau, do Sindicato dos Comercirios, da sede do Partido dos Trabalhadores de Nova Iguau e, ainda, do Partido Comunista do Brasil.
Essa proximidade espacial reflete a relao entre os dois partidos e
a Federao. Com efeito, as presidentes e os membros da diretoria
do MAB, desde a dcada de 1990, militam paralelamente no PT e/
ou no PcdoB; no ltimo congresso do MAB, em 2003, um diretor
era filiado ao Partido Socialista Brasileiro. A proximidade espacial
parece favorecer essa pluralidade de vnculos, na medida em que as
reunies dos partidos e do MAB podem ocorrer no mesmo horrio
ou em horrios prximos e pode-se passar de uma sede para outra
com comodidade.
A fachada da sede encoberta por um muro alto de cimento com uma
guarita de vidro (alguns quebrados) em seu pice. Pode-se ver desde
o outro lado da rua a sigla multicolorida, da Confederao Nacional
de Associaes de Moradores, pintada em cima do porto. Na parede
esquerda do porto, havia um grafite multicor que representava uma
figa com um gigantesco comentrio: o POVO tem FORA, apagada
meses depois de minha entrada no campo. Francisca explicou-me
que ele foi realizado pelo movimento hip hop, h alguns anos. Parece
ter havido certas divergncias internas quanto sua esttica e houve
um consenso em apag-lo.
24
25

Cefa; Lafaye (2002).


Ibidem, p.199-202

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No dia da primeira reunio do CR, em fevereiro de 2003, os participantes da reunio entraram aos poucos na sede do MAB. Muitos
se cumprimentaram de forma bem humorada. Alguns presidentes de
associaes conversavam no ptio. Ao passar o porto, os participantes
atravessaram um ptio: uma grande rea coberta de alumnio espao
hbrido, entre o porto e o galpo cujo piso revestido de cimento
encerado. Nos fundos, uma varanda, a entrada do que era uma casa.
Podia-se ainda entrever a sala da diretoria, um antigo quarto. Ali,
algumas pessoas sentavam-se nas cadeiras e carteiras espalhadas em
torno de uma mesa retangular e discutiam. Algumas sussurravam.
Muitas movimentavam as mos com entusiasmo, outras atendiam o
telefone celular pondo uma das mos em frente boca. Um diretor,
que gostaria de fazer uma chamada, reclamava do no pagamento da
conta do telefone fixo do MAB. A linha fora cortada, no se podia
fazer ligaes da sede e seu celular, pr-pago, estava sem crdito.
Celulares, armrio e mesa de escritrio, cadeiras, vozes, pilhas de
processos, cartas de denncias nos cantos da mesa (feitas por filiados do MAB ou conselheiros municipais), pessoas e gestos eram os
componentes da sala da diretoria, tpicos de um dia de reunio. Em
breve, estes humanos e alguns no humanos seriam transferidos para
outra sala.
Antes, os participantes dirigiram-se para uma velha mesa de escritrio, estragada pelo tempo, perto da sala da diretoria, coberta por
uma toalha branca plastificada cujas bordas imitavam renda e flores
artificiais. Um diretor havia posto sobre ela uma cafeteira eltrica,
um pote de plstico com acar e outro com alguns biscoitos, doces e salgados. Pequenos gestos, cuidados e atenes, que criavam
uma relao de proximidade entre a sede e seus frequentadores: um
lugar de convvio e hospitaleiro. Tais atenes contribuam para o
envolvimento dos representantes das associaes de moradores nas
interaes das reunies em um regime de familiaridade;26 para que
se sentissem membros da casa naquela zona da sede e, por vezes,
na sala da diretoria. Ao se entrar na sala de reunio, no entanto, os
objetos que povoavam o lugar j indicavam outro ambiente. Faziam
com que os participantes transitassem para outro mundo, o da poltica,
ainda que sempre houvesse uma possibilidade de se deixar coabitar
esses dois mundos domsticos e polticos em todas as zonas da sede.
26

Thvenot (1994).

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A primeira porta, antes da sala da diretoria, esquerda, abria-se para


a sala de reunio. A presidente convidava a todos para se reunirem
nesse local. O ventilador de teto estava ligado. Bancos de madeira
em que cabiam trs ou quatro pessoas, carteiras e cadeiras, algumas
sem encosto, outras com uma ou outra perna frouxa. Os assentos
estavam alinhados diante de uma escrivaninha de madeira que, colocada de frente para o pblico, presidia a sala. Atrs dela, na parede, um
pequeno quadro negro. Os no humanos da sala da diretoria indicavam, assim, a disposio das pessoas na sala da reunio e sugeriam
que os diretores e a presidente estariam no palco e os representantes
de associaes de moradores, na plateia. Em outros termos, a disposio dos no humanos indicava as ordens de grandeza da situao.
Por outro lado, a mesa do cafezinho, na entrada da sala da reunio,
indicava a possibilidade de transitar, ao longo da reunio, de um
ambiente para um outro (uma pausa).
Francisca, a presidente da Federao, Sandra, a presidente das reunies dos conselhos de representantes (que coordenaria a reunio,
as inscries e o tempo de palavra) e alguns diretores sentaram-se.
Trinta e cinco pessoas compunham a plateia. A reunio podia comear.
Francisca queria estabelecer distines entre o movimento e o governo
Lula. Ela havia comentado isso alguns dias antes, em reunio fechada
com alguns diretores, para pensar qual seria a discusso central do
Congresso do MAB. Tematizar este assunto era, para Francisca, de
fundamental importncia para definir o papel das associaes de
moradores na nova conjuntura nacional e internacional. Ela havia
discutido o assunto com outros diretores naquela ocasio. A palavra
de ordem do Congresso j havia sido anunciada. Restava definir
qual seria o papel das associaes, ainda que, para os diretores do
MAB filiados paralelamente ao PCdoB, este seria necessariamente
revolucionrio, como vrios me disseram em situao de entrevistas.
Porm, o significado da revoluo precisava ser ajustado nova
conjuntura. Neste sentido, a reunio do Conselho dos Representantes
(CR) seria uma ocasio de incorporar esta prioridade na agenda da
Federao. A reunio fechada da diretoria foi, de certa forma, a primeira
sequncia de uma ao planejada e orientou as discusses da reunio
do Conselho de Representantes.
Logo no incio dessa reunio, a presidente do MAB, Francisca, inscreveu-se para passar informes. Antes de iniciar sua
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3 Prova / Kthia /01/05/2011

representao,27 estava sentada na mesa, diante dos filiados e sua


expresso era um misto de seriedade e compenetrao. Ao se levantar
para tomar a palavra, ela parabenizou a plateia de forma quase terna.
De repente, a sequncia do que dizia tornou-se grave. Seu corpo se
enrijeceu enquanto ela explicava firmemente:
Embora o governo seja agora o de Lula,
o movimento no pode ser cooptado. O
movimento precisa criticar para melhorar. No
ltimo CR, distribumos um abaixo-assinado
oficial contra a ALCA. [...] Eu vou fazer
um levantamento da quantidade de abaixoassinados em abril e est marcada para o ms
de junho uma audincia com o presidente.
Por isso recomendo um trabalho autnomo
das associaes de moradores. No evento,
sero discutidos vrios temas como a guerra
Estados Unidos/Iraque e a ALCA, questes
de alta importncia e que tero repercusses
para a populao daqui. Chamo tambm os
representantes das associaes para participar
de uma audincia pblica na Cmara dos
Vereadores. [...] Em seguida, precisamos
repensar o papel das associaes de moradores.
Precisamos se mobilizar por questes de maior
amplitude que ocorrem na escala de um bairro.
Por isso, h um curso sobre o Estatuto da
Cidade, no dia 26 e 27 de fevereiro. necessrio
discutir o IPTU [tema levantado por vrios
filiados anteriormente na reunio], mas esta
questo est includa na discusso do Estatuto
da Cidade. Por isso, existe um kit de material
que permite entender o que este Estatuto [...].

Ao longo da fala da presidente, muitos participantes da reunio anotaram cuidadosa e religiosamente as informaes passadas nas suas
agendas, instrumentos indispensveis para tentar evitar superpor
dois compromissos no mesmo dia. Naquela situao, porm, alguns
filiados e presidentes de associao de moradores no se sentiram
contemplados pela interveno da presidente, particularmente, Lilia27

Goffman (1991. p.132).

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na. Enquanto Francisca falava energicamente e membros da plateia


anotavam as informaes, Liliana arqueava as sobrancelhas como
sinal de desaprovao, inclinava-se na cadeira e cruzava os braos,
escutando Francisca com um ar cada vez mais distante. Em pouco
tempo, sua atitude tornava-se francamente blase. que ela havia
denunciado, antes da tomada de palavra da presidente do MAB, um
aumento do IPTU em seu bairro e questionado o fato de, apesar disso,
no ter havido nenhuma obra de saneamento. Liliana tinha criticado
os outdoors que foram colocados pela Prefeitura de Nova Iguau por
toda a cidade, com a frase: pague seu IPTU, a prxima rua sua.
Uma propaganda enganosa que nem leva em conta o fato de que a
obra de responsabilidade do governo federal, exclamou Liliana
um pouco depois da reunio ter iniciado.
Nesta sequncia, surgiu um problema: Liliana queria se preocupar mais
com o IPTU de seu bairro de que com assuntos de maior amplitude,
como a ALCA. Lembrando que estava h doze anos no movimento,
questionou como se poderia ousar chegar com princpios superiores
que no eram to comuns ao que enquadrava como sendo a causa do
MAB e como assuntos prioritrios a serem tratados pelas associaes
de moradores. Como a presidente poderia pedir ao movimento que
se mobilizasse contra a ALCA se Liliana lidava com moradores que,
no seu bairro, vinham reclamar do aumento do IPTU de suas residncias? Este aumento no tinha a mesma importncia que a ALCA, j
que o MAB representava associaes de moradores e no ideologias
polticas?28 Liliana, para manifestar ao pblico seu descontentamento,
recorreu a expresses corporais. Porm, essa fachada pessoal29 no
parecia reorientar a ateno da plateia. Os participantes, ainda que
tivessem reparado nas mmicas de Liliana, manifestavam indiferena,
algo parecido com o que Goffman chamou de desateno civil.30 E
tampouco esta fachada parecia mudar a representao de Francisca.
De forma quase explcita, Francisca, em sua fala, tinha acabado de
criticar a perda de tempo na reunio decorrente da tomada de palavra
de sua opositora, mas ao mesmo tempo conciliou e no excluiu a importncia do assunto levantado por Liliana, inserindo-o em uma causa
maior do MAB. Engrandeceu a reivindicao de Liliana, inserindo-a
28

29
30

As aspas indicam as categorias ou expresses empregadas por Liliana ou por certos


presidentes de associaes de moradores.
Goffman (1973a).
Goffman (1963,1973b).

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na causa comum das federaes municipais, estaduais e nacionais: o


Estatuto da Cidade. Explicitada a grande causa, a interveno de Liliana no procedia. Mas Liliana, por sua vez, reconheceu perfeitamente
a inteno31 de Francisca nesta sequncia da interao. Discordando
da escala a partir da qual Francisca situava sua explanao, Liliana
recusou-se cooperar e reiterou sua crtica.
Assim que se abriu uma brecha, pouco aps as palavras acima apresentadas da presidente, Liliana encontrou uma oportunidade de colocar
prova a fala de Francisca:
Francisca: Ser discutido nos Mini-Congressos
[primeira etapa da eleio, feita em cada regio da cidade, anteriormente ao Congresso
Geral] o papel das associaes de moradores
na conjuntura atual, isto , entender a atuao
das associaes de moradores considerando a
discusso sobre o Estatuto da Cidade e reunindo Conselhos que esto em funcionamento.
Alm de reivindicativas, algumas associaes
de moradores fazem propostas e tm projetos,
e isso d fora ao movimento. O movimento
est precisando de unicidade e, dentre as duzentas associaes filiadas ao MAB, setenta e
cinco esto funcionando. A diretoria do MAB
s mantm contato com oitenta delas. Desta
forma, diz ser necessrio se reunir, pois uma
ao isolada no tem perspectiva em termo de
ao. As Regionais32 funcionam efetivamente.
Pode-se ver uma maior participao destas.
Mas preciso pensar o tema do papel das
associaes de moradores e de desenvolver
31

32

[...] Trata-se da inteno comunicativa socialmente reconhecida, implicada em tipos


especficos das atividades sociais, que esto assinaladas no discurso (GUMPERZ, 1989,
p.23).
Art. 32. As regionais constituem-se com a instncia de deliberao, execuo e mobilizao
que congrega o conjunto de Associaes de Bairro [...], definindo um sentido de unidade
territorial atravs dos problemas, carncias e potencialidades. nico. As regionais tm
como finalidade instrumentalizar e articular aes de carter reivindicativo, que se definem
atravs de suas caractersticas prprias. Estatuto do MAB, p.13. As Regionais representam
conjuntos de associaes de moradores segundo setores da cidade de Nova Iguau. Uma
Regional rene as associaes de um mesmo setor e estes conjuntos tm como finalidade
concentrar as reivindicaes presentes em um mesmo territrio da cidade.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

uma reflexo sobre o seu papel, ampliando as


questes especificamente de um bairro a coisas
maiores. Isso de grande importncia devido
mudana de governo e sem mobilizao do
movimento nesta direo, as ONGs tomaro o
nosso lugar. No dia 19 de fevereiro haver uma
reunio com o Ministro da Cidade, Olvio Dutra, para encaminhar as questes do saneamento
bsico e da habitao. Na reunio, comparecer
a direo da CONAM (Confederao Nacional
das Associaes de Moradores) e por isso,
precisamos de estar fortes para poder encarar
o Governo [...].
Liliana: Eu quero esclarecimento sobre o artigo 4 do Regimento. Francisca fala tudo isso,
mas eu participo h doze anos de minha associao e me sinto cansada desse tipo de discurso
e de no ver nada disso ser encaminhado. Eu
acho que tudo isso muito abstrato e eu no
irei discutir este ponto.
Francisca: Esta pauta foi decidida no Congresso e necessrio, antes de construir qualquer
proposta, pensar o papel da associao de
moradores para saber o que se quer. Lembro
que a Plenria de Sade permitiu fortalecer o
SUS. Da mesma forma, tenho certeza de que o
Mini-Congresso poder trazer discusses que
podero ser levadas adiante. Alm disso, muitas
propostas do ano passado foram renovadas e
reelaboradas em funo desta dinmica. No
pode se pensar numa questo individual!
Liliana: Eu no vejo nenhuma soluo.

Francisca teve de recorrer aos no humanos, que falariam mais alto


de que sua prpria pessoa: as decises tomadas consensualmente no
ltimo congresso, registradas em documento, que reformularam o
Estatuto do MAB. Apoiando-se nesse objeto supremo, o questionamento de Liliana se encontrava, por sua vez, desqualificado. Naquele
contexto, desacreditar e desqualificar o adversrio diante dos outros
filiados do MAB significava situ-lo como estando mais focalizado
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nas questes do bairro do que nos problemas de Nova Iguau,


comuns a outros municpios da Baixada Fluminense e do mundo, e
nas injunes que poderiam afet-los ou s suas possibilidades de
resoluo.
Logo aps esta reunio, os diretores se reuniram na sala da diretoria.
Alguns rindo dos questionamentos feitos por Liliana. Um exclamou:
no tem nada a ver!. Outros manifestaram impacincia e irritao.
Uma diretora comentou: isso o problema! Eles so mais preocupados com os umbigos deles o com a sua bica dgua! Eles esquecem
a causa do MAB!
Ainda que tenham sido lembradas as grandezas que ordenavam aquela
situao, este tipo de tenso levou Liliana a tentar se candidatar no
Congresso do MAB de 2003. Em um dia posterior, ao visit-la na
sua associao, Liliana me disse: Eu no sou de partido nenhum,
eles [os diretores e a presidente, todos filiados ao PT ou ao PCdoB]
s agem em nome do partido. Eu estou interessada em meu bairro.
Eu no estou atrs de nenhum cargo. Mas isso tem que mudar e por
isso quero me candidatar. Porm, com um acordo e uma ao planejada (pelos diretores, que queriam formar uma chapa nica para
as eleies), manejando aqui, ali e acol, seu projeto foi prontamente
afastado. Liliana desistiu de sua candidatura, mas conservou mgoas.
Portanto naquele primeiro trimestre de 2003, havia tenses e disputas internas entre o projeto dos diretores do MAB e os assuntos que
certos presidentes das associaes federadas queriam priorizar. Uma
tenso entre um particular e um geral, que poderia ser um obstculo insero das demandas do MAB nas conferncias Municipal,
Estadual e Nacional. Porm, a resoluo do conflito acima apresentado e a desqualificao do questionamento de Liliana permitiram
diretoria do MAB definir o tema central do Congresso de 2003
como O papel das associaes de moradores na nova conjuntura.
O Congresso ocorreu na sede do Sindicato dos Metalrgicos, aps
os minicongressos, organizados nas Regionais, durante os quais
grande parte da discusso teve como pauta o Estatuto da Cidade.
A chapa nica foi eleita, composta de uma nova presidente, com
a diretoria parcialmente reconduzida, exceto o caso de um diretor,
que tambm militava no PSB, com novos secretrios e tesoureiro. O
tesoureiro, diga-se de passagem, ao assumir o cargo se assustou com
o estado financeiro da Federao. Naquele mesmo perodo, Francisca,
151

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que permanecia integrada como membro do MAB, estava ao mesmo


tempo na chapa da CONAM e continuava militando no seu partido.
Esta pluralidade de vnculos provocou uma variedade de atividades
e, consequentemente, de deslocamentos (particularmente a Braslia),
intensificando as suas atividades.
Mal terminou seu Congresso, a agenda do MAB j estava lotada.
Porm, como dito acima, no primeiro trimestre do ano, os diretores
decidiram dar prioridade preparao da Conferncia Municipal da
Cidade. A natureza de tal preparao j estava definida no regimento
da Conferncia Nacional. Ela consistia, para os representantes de
movimentos sociais, em nomear os nomes que iriam participar das
conferncias municipais, estaduais e nacional.
Uma reunio extraordinria na sede do MAB: bastidores
da tomada de voz na Conferncia Municipal das Cidades33
33

A seguinte descrio foi realizada a partir de uma filmagem que realizei nessa reunio.
No tendo muito espao, neste artigo, para discutir as implicaes da presena da cmera,
o que seria indispensvel, vale fazer um breve comentrio. Iniciei meu trabalho de campo
em Nova Iguau em 2002. Durante um ano, participei de quase todas as reunies ordinrias
e extraordinrias da Federao. Tambm acompanhei as atividades de muitas associaes
de moradores. Teci, aos poucos, uma relao de maior proximidade com os presidentes
dessas associaes, que escolhi em funo da maior frequncia dos mesmos s atividades
da federao. Aps um ano, j construda essa familiarizao com os presidentes da
associao, avaliei que era indispensvel filmar algumas reunies para poder analisar mais
detalhadamente a ordem dessas situaes. Perguntei, ento, aos diretores do MAB, se eu
poderia filmar as reunies, avisando que no tinha qualquer familiaridade com a realizao de
filmagens e que este material apenas seria destinado anlise. Eduardo Coutinho comentou
que a presena da cmera torna a pessoa filmada em personagem pblica. A presena desse
objeto gera uma situao ldica para a pessoa filmada, que se caracteriza ora por um jogo
com a cmera, ora por momentos de esquecimento da cmera. O autor tambm se referiu
dimenso teatral instaurada pela situao de filmagem (Entrevista com Eduardo Coutinho,
Revista Moviola, udio, 27/09/2007). Na descrio a seguir, relato o que pude observar em
termos dessa passagem das pessoas filmadas em personagens. Porm, parece-me que esta
passagem tambm estava presente nas reunies sem a interferncia da cmera. No percebi
mudanas radicais de condutas, de gestos ou de falas. Contudo, o que pude constatar, pelo
menos na reunio que descrevo a seguir, que a presena da cmara realou, por vezes,
francamente, sua dimenso teatral sem, porm, transformar as situaes desta reunio em
algo desvinculado das outras reunies (nas quais no se utilizou a cmera) que eu havia
observado anteriormente. Interessada na anlise dramatrgica, este exagero pareceu-me ser
extremamente rico para a anlise das situaes na medida em que ele acentuou pontos que
eu no tinha percebido nitidamente sem a cmera. Retomando a discusso de Valter Fil,
o audiovisual uma linguagem que oferece e acolhe certas narrativas. Este ponto constitui
o cerne do problema que ele se prope a analisar: Estou considerando, neste trabalho,
a escritura verbal e a audiovisual, que vai acolher as narrativas. A riqueza est em que
cada forma de expresso guarda formas distintas de produo, de produzir-se produzindo,
potencializando sensibilidades diferentes (PEREIRA; FIL, 2006, p.6).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Algumas semanas antes da Conferncia Municipal de Nova Iguau,


os diretores do MAB precisaram encaminhar os nomes dos delegados que representariam as associaes de moradores da cidade. As
propostas dessa conferncia seriam, em seguida, encaminhadas para
a Conferncia Estadual e, na sequncia, Conferncia Nacional. Vale
destacar que os participantes nomeados para a Conferncia Municipal
poderiam tambm participar da Conferncia Estadual e da Nacional,
e representar uma voz e um voto nesses espaos. Urgia, portanto,
organizar uma nova reunio extraordinria com o Conselho dos Representantes, mas cada representante deveria representar, em carter
excepcional, sua Regional. Em uma reunio da Diretoria Executiva,
foi agendada com pouca antecedncia a data desta reunio.
Nesse dia, o cenrio era muito semelhante ao descrito acima, com uma
diferena na composio da mesa: as presidentes do CR e do MAB
tinham mudado. A presidente da Federao, agora, era Leila. Seja no seu
partido, seja no sindicato, seja no MAB, Leila sempre se mobilizou em
torno do tema da sade. Quando assumiu a presidncia, ela contava com
Francisca e Odvam, diretor de Polticas Urbanas e Meio Ambiente, que
a auxiliavam nas situaes de problematizar os temas relacionados com
os assuntos urbanos. Na reunio ordinria do CR de abril de 2003,
a primeira que Leila presidiu, ela tinha anunciado aos representantes:
Francisca est acompanhando a Conferncia Municipal e Estadual
da cidade. No vou me alongar muito porque Francisca no est aqui.
Antes do prximo CR [da reunio ordinria], deveremos indicar os
titulares (da Conferncia Estadual). S podero participar as pessoas
que vo ter participado da Conferncia Municipal. O importante que
vamos retomar a discusso do Congresso, sobre o Estatuto da Cidade.
Leila alguns anos mais nova do que Francisca. Seu rosto particularmente expressivo e pode oscilar entre duas emoes muito distintas;
de muito jovial, quando ela se encontrava com os outros diretores e
a presidente da Federao, ele podia passar a expressar, em fraes
de segundos, uma profunda indignao em situao de prova, nas
reunies mais amplas. Esbelta, morena e de tamanho mdio, Leila
uma mulher cuja beleza era comentada todos os dias por quase todos
os diretores homens. Leila mudava o estilo das roupas de acordo com
a situao. Vestida de taillleur e mocassins na reunio do Conselho
Municipal de Sade, de calas jeans e sandlias nas passeatas, ora
de bermudas no MAB, ora de vestido estampado, ora de cabelos ca153

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cheados, ora de cabelos lisos e escovados, podia encenar um grande


nmero de personagens segundo as situaes de publicidade nas
quais se apresentava. Tais transformaes apontavam tambm para
certas competncias polticas e uma presteza em se ajustar (e ajustar
a impresso que ela passava aos seus interlocutores) a uma grande
diversidade de situaes.
No dia dessa reunio extraordinria, Leila vestiu-se com uma ampla
blusa de linho, rosa-bege, de mangas curtas e com gola triangular
enfeitada com flores de croch. As flores da blusa combinavam com
a sua cala branca e a cor da blusa com a de seus tamancos altos.
Sua aparncia destacava-se da dos outros participantes. No incio da
reunio, ela sentou-se atrs da mesa presidencial ao lado de Sandra,
a presidente do CR que dirigia essas reunies e iniciou os trabalhos:
Companheiros, a pauta de hoje de elegermos os nomes dos titulares
que iro na Conferncia Municipal das Cidades. Leila tomou a palavra rapidamente aps esta apresentao, preparando-se para explicar
as regras estipuladas no regimento da conferncia municipal. Pegou
um pedao de giz e comeou a escrever no quadro-negro pendurado
com um barbante na parede de tonalidade verde da sala da reunio.
Concentrada ema sua fala, ela rabiscava e apagava, sublinhava nmeros, destacava, batia levemente com o giz em um nmero. Esses
pequenos gestos reforavam a suas palavras, que pronunciava com
segurana: Gente! Gente! o seguinte: para a Conferncia devemos
indicar cinco titulares e cinco suplentes. Se a gente conseguir mais
vaga, a gente indicar outros nomes. Mas hoje, a gente vota nos cinco
titulares para cada regional [o MAB regionalizou Nova Iguau,
e suas associaes, em cinco grandes reas, distintas das Regies
Administrativas da Prefeitura].
Silncio na plateia, composta, at ento, por 30 pessoas. Dentre os
membros do pblico, uma me estava com seu filho, dormindo no
colo. Todos escutavam atentamente, como se a perda de uma informao pudesse significar uma ameaa. Como se eles estivessem
vigiando cautelosamente a performance da presidente do CR e da
presidente do MAB. Leila continuava com seus clculos no quadro
para justificar a quantidade de titulares que seriam eleitos naquela
reunio. Ela tambm queria, por intermdio dessa representao, indicar a justeza do nmero de titulares do MAB em relao quele das
associaes de moradores. Os diretores da federao se beneficiavam
154

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

automaticamente de cinco vagas enquanto as associaes de moradores da cidade precisavam eleger cinco titulares e cinco suplentes. Ao
longo de sua explicao, ela acrescentava e apagava somas e siglas
no quadro, que acabou, em uma certa sequncia, com esta aparncia:
TABLEAU

Leila continuava comentando:


olha, gente, simples! De comeo, gente, tem
vagas para cumprir; Seis vagas... Eu tenho
aqui, por exemplo, quinze pessoas que vo ser
votadas, eu vou precisar de qu? De dez. No
isso? Das quinze, aquelas que foram mais
votadas vo para a suplncia daquelas vagas
futuras vagas... De cinco suplentes... A gente
tem aqui cinco titulares... Se a gente conseguir
mais vagas, a gente pede mais cinco.... E isso,
gente? Pode ser assim? [levanta as mos at
os ombros, para convidar a plateia a aprovar
sua proposta] Temos quatro aqui... N... Mas
a, quatro l... N... T... Ento a gente vai tirar
aqui o quantitativo.

A explicao no foi muito clara e a mobilizao do dispositivo-quadro no ajudou muito a esclarecer sua exposio. Silncio na plateia.
Esforado, um presidente de associao, na plateia, olhava para o cu
e, concentrado, parecia fazer clculos mentais. Outro arregalava os
olhos, como se emitisse sinais de incompreenso. Uma outra anotava
em seu caderno, interrompendo sua escrita a cada cinco segundos.
155

Arenas Publicas.indb 155

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Paciente, com um visvel esforo didtico, Leila reiterou a explicao


da soma de titulares da diretoria do MAB e das Regionais, que seriam
representados na Conferncia. Logo em seguida, ainda comentou
como seriam nomeadas, por sua vez, as associaes de moradores, que
representariam, na Conferncia Municipal, a voz e o voto do MAB.
Os sinais de incompreenso perduravam. Leila repetiu a explicao
amparando-se, com insistncia, no quadro e segurando-o pelas beiradas, como se o quadro pudesse ajud-la a superar a dificuldade de
comunicao dessa sequncia da reunio. De repente, uma nota fora
do tom: Os titulares das associaes de moradores... Por exemplo,
Regional Centro, quem se candidata? N... [nome de uma associao
de moradores pertencendo outra Regional]..... Lapso oral e escrito. Errou ao escrever o nome de uma associao que no pertencia
Regional em questo. Para a presidente da Federao, essa gafe pode
ser entendida como desconhecimento do Estatuto do coletivo que o
mesmo representava, o que poderia criar uma situao de tenso no
ambiente muito especfico dessa reunio. Pior: o que poderia passar
despercebido de forma oral, evidenciado no quadro.
Durante a explicao, o vice-presidente do MAB, Odvam, percebendo
o desconforto de Leila, aproximou-se dela para socorr-la.. Odvam,
que analisava Leila e o quadro, percebeu o erro imediatamente. Em
tom de voz muito baixo, falou em seu ouvido de forma quase inaudvel: No, esta associao da Regional IV.... Imediatamente,
Leila pegou uma toalha de papel e apagou o nome da associao
de moradores. Logo comeou a rir: Ah! Gente! Eu no dou para
ser professora! Eu adoro falar! Mas para escrever em quadro.....
O termo gente, pronunciado de forma exclamativa, apareceu em
muitos contextos dessas sequncias. Inicialmente, Leila o empregou
para conduzir a reunio e manter a ateno dos participantes. Aos
poucos, o gente parecia traduzir seu incmodo e a cincia de que
sua explicao estava turva. Por fim, quando seguida de uma piada, a
mesma expresso cumpriu o papel de conserto do pequeno incidente
que ocorreu na situao. O termo mostrou que ela estava ciente das
implicaes do seu erro.34 Assim, o gente, com entonao diferente e
precedido da exclamao ah!, permitiu-lhe voltar ao estado anterior
gafe. Ah! Gente indicava que Leila percebera e queria corrigir
34

Goffman destacou a importncia das exclamaes e analisou que certas expresses podem
ser meios de superar um certo estado e de se livrar de uma preocupao, doravante suprflua,
j que acabou de acontecer. Cf Goffman (1981. p.85-132).

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Arenas Publicas.indb 156

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

o incidente, um conserto caseiro que permitia no deixar passar a


impresso de que ela pouco dominava as ferramentas estatutrias
da Federao, para a qual acabara, poca, de ser eleita presidente.
A piada, que sucedeu a esta expresso, reforava este esforo para
repor o curso de sua ao no estado anterior ao lapso. interessante
perceber que a piada mobilizada foi totalmente ajustada sequncia
da reunio na qual Leila cumpria um papel professoral. Esta presena
de esprito permitiu-lhe provocar uma risada generalizada na plateia,
que pode ser interpretada, novamente, como uma desateno civil
e uma cooperao da plateia em relao Leila.
Entretanto, Odvam, diretor do MAB, interferiu quase imediatamente,
e tirou rapidamente o giz da mo de Leila, passando a assumir a direo da reunio e a disputar visibilidade com a presidente. Metdica
e firmemente, ele anotou no quadro os nomes das cinco regionais do
MAB e props que fosse iniciada a votao dos representantes das
associaes de moradores. De fato, a disposio e o alinhamento
do texto e o objetivo da reunio tornaram-se, ento, mais claros. As
competncias didticas de Odvam destacaram-se em relao quelas
de Leila. Todavia, naquele exato momento, um participante da plateia
aproveitou esse pequeno incmodo e a reorganizao da mesa para
levantar a mo e perguntar, contestando: Companheiro, no d para
botar Miguel Couto?. Odvam sugeriu, ento, que se juntasse Miguel
Couto (um bairro de Nova Iguau) com Vila de Cava (congregao de
bairros prevista como Regional no Estatuto do MAB). Porm, Miguel
Couto no era considerado como Regional no regimento da Federao.
Enquanto Odvam sugeria a reunio de congregao de bairros, Leila
estava inclinada, assinando o livro de presenas e trocando umas palavras com a presidente do CR, Sandra. Em seguida, Leila agigantou-se
e passou a mo no cabelo como sinal de impacincia. Um gesto que
anunciava tambm uma preparao de tomada de palavra e, qui,
de continuao do conserto do lapso. Leila organizou novamente sua
fala a partir da exclamao gente, em um tom compreensivo. Dessa
vez, a exclamao foi seguida de um sinal de busca de negociao:
Leila: Gente! Miguel Couto... o seguinte!
Depois da emancipao de Belford Roxo, Miguel Couto teve problemas para definir certas
reas... E muitas associaes estavam espalhadas... No se sabia se eram de Belford Roxo ou

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Arenas Publicas.indb 157

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

de Nova Iguau! Depois de muito tempo, aquela


coisa toda... Procuramos tratar da questo de
Miguel Couto... Disseram que as associaes
de moradores eram daqui ou dali... S isso no
basta porque o Bairro de Miguel Couto est
meio dividido...

Diante do conflito, Leila apelou para a realizao de estudos e levantamentos. Recorria a tais recursos tcnicos como uma alternativa
para apaziguar o questionamento do diretor:
Leila: Estamos querendo ver quem est e no
est em Nova Iguau... Para isso, vamos fazer
um estudo... A gente vai fazer um apanhado
geral daquela regio... Ento, nos iremos depois
definir Miguel Couto.... [...] importante para
o MAB, a gente fazer isso...

Quando Leila pensava ter amenizado a tenso e conseguido atingir


a meta da reunio (a eleio das associaes titulares e suplentes no
conselho municipal), um presidente de associao, at ento silencioso
na plateia, levantou a mo e, antes de a Presidente do CR ter lhe dado
a palavra, exclamou, de forma interrogativa: Por que no deixar
algumas vagas para os companheiros de Miguel Couto?
Mantendo sua calma, Leila, mestre na arte de
apaziguar as tenses, perguntou ao pblico: Leila: Gente! Tem algum de Miguel Couto aqui?
Silncio na plateia, interrogando o bom senso da colocao do companheiro. Leila:
No?...
Odvam perdeu a pacincia: Esto ausentes.
Vamos encaminhar gente!!!!!!!!

Encaminhar ou questo de encaminhamento so categorias cruciais da gramtica poltica e militante. Como a metfora verbal indica,
encaminhar significa literalmente ir para frente e seu emprego naquele contexto traduzia a emergncia de voltar ao objeto da reunio
que, do ponto de vista da presidente e seu vice, j fora esquecido
havia um bom tempo. As interaes lhes pareciam desprovidas de
sentido e a ordem da situao estava ameaada de fracassar. Neste
sentido, ao pronunciar o termo encaminhar de forma exclamativa,
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Arenas Publicas.indb 158

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Odvam fazia um esforo desesperado para tentar reconduzir o sentido


da ao na linha planejada por Leila, por ele mesmo e pela diretoria.
De certa forma, quem pronuncia esta categoria a faz funcionar como
um lembrete das ordens de grandezas que regem a situao35 e dos
limites do pblico para question-las.
Por esse motivo, Odvam, acentuando sua voz grave, prosseguiu:
Na ordem das regionais!. Voltando lista organizada das cinco
Regionais do MAB, na ordem em que estas aparecem no regimento
deste, escrita no quadro-negro, Odvam apontou o giz para o nome da
primeira regional, dizendo: Quem da regional Centro se candidata
para participar da conferncia?.... Trs mos na plateia se levantaram.
Odvam anotou ao lado da Regional o nome da associao, ao mesmo
tempo em que dizia em voz alta o nome de seu representante. Uma
presidente levantou a mo para esta Regional, porm sua associao
no pertencia a esta congregao. Odvam corrigiu: No, Mariana,
sua associao fica em [na Regional de] Comendador Soares. E
prosseguiu no mesmo ritmo acelerado: Quem candidato para
Comendador Soares?. Quatro pessoas levantaram a mo na plateia.
Quem candidato para Vila de Cava?
Com essa forma de se impor, Odvam parecia ter conseguido direcionar o curso da reunio para o que a diretoria tinha planejado. Mas o
cumprimento do respeito ao turno de palavra durou muito pouco e a
ordem da reunio foi questionada novamente. Essa ordem, que pode
ser denominada de ordem natural das situaes de reunio do MAB,
uma vez que ela tpica das formas de coordenar as aes dos seus
participantes em contextos especficos de reunies, estrutura-se, no
necessariamente nesta sucesso, a partir da soma dos seguintes componentes da situao e suas sequncias: circulao fluda da palavra
do pblico ao palco, disputas pela tomada de palavra, estratgias de
visibilidade, tentativas de pequenos golpes ou de golpes dos pequenos (que visam questionar as ordens de grandeza) e lembretes
pelos grandes da ordem de grandeza; gestos acentuados, diferentes
formas de elevar o tom de voz; exclamaes, e, por fim, competio
em torno dos assuntos a serem discutidos na reunio. Paralelamente,
a mobilizao desses recursos tambm reflete o engajamento dos
participantes na situao. Por mais que a sucesso de tais sequncias
35

Boltanski; Thevenot (1991).

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Arenas Publicas.indb 159

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

possa parecer desordenada, ela obedece a certas regras bem ordenadas,


como veremos adiante.
Na reunio em anlise, se Odvam pensava ter conseguido orientar o
curso da situao na direo que desejava, esta esperana apagou-se
rapidamente. Alguns minutos aps ter tomado a voz, vrias conversas
paralelas na plateia e o consequente rudo assinalaram que o trabalho
de reorientao precisava ser refeito. Por isso, ele exclamou com voz
mais alta ainda, quase gritando: Tem mais algum de Comendador
Soares???!!!. Sem resposta, pelo fato de poucos membros da plateia
terem prestado ateno sua fala, Odvam prosseguiu aos berros: Vamos agora votar para a Regional Vila de Cava! Vila de Cava????. Um
presidente de associao de moradores, ainda atento, levantou ento
a mo. No quadro, ao lado do nome da Regional, Odvam escreveu
ento o nome da associao dizendo, em voz muito alta, o nome de
seu presidente. Enquanto isso, Leila tinha levantado da mesa para
tomar um caf e fumar um cigarro. Ela estava na soleira da porta, o
que significava que no tinha abandonado a reunio, mas passado a
ficar do lado da plateia. Quanto Sandra, a presidente do CR, cujas
atribuies eram coordenar a mesa e registrar o andamento da reunio
para elaborar a ata, permaneceu silenciosa desde o incio da reunio.
Ela anotava, por vezes, algumas falas e decises. Odvam, que tinha
terminado de escrever os candidatos a titulares para a Regional Vila
de Cava, gritou ento, dando continuidade redao da lista dos
candidatos a titulares por Regionais: Agora gente vamos para
Cabuu!!!!!!!!!! Quem representante?????!!!! Vamos para Cabuu,
Cabuu!!!!!!!! Questo de ordem!.
Nesta sequncia, Leila, que j no estava mais na mesa e sim na
plateia, pronunciou, rindo, um comentrio: E tem mais! Agora, no
me chamem na mesa, porque no sou mais a presidente do MAB no!
Agora eu sou a presidente de minha associao!. Leila e os membros
da plateia a seu lado riram. Mas a informao que ela deixou passar
esclareceu a sua passagem do palco ao pblico que representou tambm um deslocamento de papis. Naquele momento, Leila encenava
o seu segundo papel, de presidente de sua associao de moradores.
Esta passagem no provocaria a mesma tenso que marcou a sequncia
precedente se Gabriela, tambm diretora do MAB, posicionada na plateia e at ento pouco visvel, no levantasse a mo para candidatar a
sua associao e a si prpria, na qualidade de representante desta, para
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Arenas Publicas.indb 160

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

as vagas reservadas para as associaes de moradores. Vale ressaltar


que Gabriela era diretora de uma associao de moradores filiada ao
MAB, mas no era a sua presidente. Sua candidatura, associada ao fato
de dois membros da diretoria do MAB se candidatarem a titulares da
conferncia quando cinco vagas de titulares j estavam automaticamente atribudas a esta diretoria, provocou uma tenso que demorou
segundos para se explicitar publicamente. De vrios lados da plateia
surgiram as exclamaes Oh, no pode! O presidente de sua associao no est aqui!. Um presidente de associao reforou: No
est aqui, no pode se candidatar!. Essas exclamaes demonstram
que a plateia avaliava, de forma bastante consensual, que os diretores
e a presidente da Federao estariam tentando manipular a situao.
Gabriela, com sua agenda e seu celular em uma das mos e seus culos
na outra, levantou-se bruscamente, indignando-se diante do pblico:
Gabriela: Oh, deixe eu falar, meu coordenador
da Regional esteve estava, teve um falecimento,
uma morte! Eu vou garantir sim! [com entonao de profunda indignao:] Estava aqui sim!

Naquele momento, todos na plateia manifestaram em suas falas, por


meio de gestos e exclamaes, uma desaprovao generalizada. A
reprovao atingia seu pice. Uma vozearia, que no permitia mais
distinguir as falas dos participantes. Muitos deles balanavam os
braos e as cabeas para reforar seu descontentamento. A reunio
estava ameaada de desmoronar. Odvam estava prestes a transbordar. Recorreu ento mais alta entonao de voz que conseguia,
aproveitando-se de minha presena e da cmera para tentar acalmar
os reprovadores. Em um novo esforo desesperado para conter o
conflito, ele criou tambm uma palavra: o consensuado. Ningum
pareceu reparar em sua inveno ou, ao menos, ningum manifestou
qualquer reao quanto a esse novo termo. A palavra surgiu no quadro de sua insistncia na urgncia de se chegar a algum acordo e de
sua tentativa de controlar o transbordamento da situao, buscando
racionalizar o conflito:
Espera a! Ordem no plenrio! Psiu! Vamos ser
mais civilizados! Vai estragar a fita da doutora!
S para esclarecer! O con-sen-su-ado aqui foi
o seguinte: dois representantes por regional.
Se s existem duas associaes de Cabuu,

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Arenas Publicas.indb 161

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

pra qu a briga? Se no tiver ningum de l,


Pra que-a-briga?! Tem algum mais de Cabuu
aqui????? [silncio na plateia, indicando o fato
de que no havia na sala outro representante
desta Regional]

Avaliando o argumento de Odvam ao longo de sua performance,


alguns representantes de associaes de moradores davam francas
risadas. Elas assinalavam que o conflito estava afastado temporariamente e que existia um consenso no que dizia respeito considerao
generalizada do absurdo em que chegou na sequncia da situao.
Entretanto, ao mesmo tempo, traduziam a percepo dos erros de
enquadramento daquelas pessoas que questionaram o bom senso da
situao. O riso de uma parte da plateia apontava tambm para o fato
de que expectadores e participantes concordavam em no perceber a
nominao desta associao como manipulao da diretoria do MAB.
Com efeito, todos os questionamentos e provas que surgiram nas sequncias anteriormente analisadas demonstram que muitos membros
da plateia temiam ser vtimas de maquinaes ou de manipulaes
planejadas com antecedncia pelos diretores e pela presidente do
MAB. Por esse motivo, a plateia analisava cautelosamente qualquer
informao (discursiva ou gestual) passada pela diretoria. Essa anlise da situao realizava-se por meio de uma vigilncia de todos os
sinais que poderiam permitir plateia constatar uma traio ou uma
manipulao. Vale assinalar que, em alguns casos, a desconfiana de
uma maquinao estava relacionada ao vnculo partidrio dos diretores. Muitas das acusaes dos membros de associaes diretoria
da Federao relacionavam-se percepo destes da existncia do
perigo de o MAB ser usado para fins partidrios. As denncias eram
formuladas em afirmaes do tipo: Eles [os diretores e a presidncia]
no podem fazer do MAB um partido poltico. Assim, muitas das
tenses acima apresentadas vinculavam-se a esta suspeita que pairava
sobre as situaes de reunies, particularmente quando suas pautas
estavam associadas a processos de eleio.
Por outro lado, vale destacar que a natureza dos pequenos e maiores
conflitos dessa reunio indicaram uma disputa em torno do horizonte
de visibilidade cvica que a Conferncia Municipal ento oferecia.
Esse horizonte de suma importncia, uma vez que ele tambm
aquele pelo qual possvel entrever o acesso de si e de sua voz a uma
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Arenas Publicas.indb 162

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

nova escala do espao pblico. Os atores, em situao de reunio,


disputaram com veemncia as vagas porque a participao naquele
evento lhes parecia uma oportunidade unindo um projeto pessoal
com um projeto coletivo, no caso, vinculado a uma associao de
moradores de se obter alguma visibilidade em uma dobra36 ainda
desconhecida do espao pblico. Para os presidentes das associaes
de moradores, o horizonte de visibilidade cvica adjetivo que acrescento para insistir na natureza e na inteno dessa visibilidade era
certamente mais crucial de que o do MAB. Ainda que a Federao
representasse a voz de suas associaes filiadas, os presidentes de
associao, mediante tais tenses, disputavam o acesso ao espao
pblico e, mais precisamente, a uma escala ainda desconhecida. A
Conferncia Municipal das Cidades era, neste sentido, um espao
de generalizao de crtica dos movimentos de bairros, no qual os
participantes de associaes poderiam ter uma voz reconhecida em
um outro nvel do que o da Federao. Alm disso, se o MAB sempre
dispunha de vagas garantidas em muitos espaos decisrios da cidade
e do Estado (conselhos municipais, fruns, congressos da FAMERJ,
por exemplo), o mesmo no ocorria com os presidentes das associaes de moradores a ele vinculadas. Este componente certamente
realou o teor de competio e disputa na reunio analisada, j que
apenas cinco titulares, dentre os 30 participantes, seriam eleitos para
a Conferncia Municipal da Cidade. Por outro lado, necessrio
sublinhar que o riso da sequncia pode ser evidentemente analisado
como um sinal de cumplicidade entre os membros da plateia (aqueles
que no eram diretores da Federao) e de um acordo em torno da
exigncia do nmero de vagas. Questionar esta exigncia por alguns
segundos, oferecia uma oportunidade para entrever um novo horizonte
de visibilidade.
Aps o incidente e a evaporao momentnea do conflito, Odvam
deu continuidade ao cerimonial do quadro-negro. Mais uma vez, os
candidatos levantavam a mo. Logo a seguir, um presidente de associao cometeu um pequeno erro, mas de tamanho suficiente para fazer
surgir uma nova tenso. Em vez de falar o nome de sua associao
para que Odvam pudesse acrescent-la no quadro, o presidente da
associao em questo misturou os repertrios e disse seu prprio
nome. Imediatamente Sandra, que estava ainda sentada em silncio
36

Deleuze (2000).

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Arenas Publicas.indb 163

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

na mesa presidencial, perdendo-se em suas anotaes, levantou-se e


saiu do palco por instantes.
Naquele mundo cvico, em que a pessoa deve sempre se expressar em
nome do coletivo,37 dar o prprio nome e no o do coletivo ofende a
todos os membros deste, pois pode ser assimilado como denncia de
populismo ou de assistencialismo, isto , a uma inteno oposta
esperada pelos membros do MAB. Por isso, ao dar seu prprio nome
e no aquele de seu coletivo o presidente de associao em questo
ofendeu a todos os membros do coletivo. O erro de enquadramento do
candidato vaga de titular foi suficiente para que Odvam se irritasse,
chegando quase a perder o controle. Seu papel ento consistiu em
lembrar os princpios bsicos que regiam o coletivo. Abaixo, seguem
as sequncias, por interlocutor, geradas por este incidente:
TABLEAU 2
Sequncias:

1.

Odvam [gritando]: Olha s, deixe ficar bem claro. Ningum


representa a si mesmo... Aqui ns representamos associaes
de moradores. Pelo amor de Deus, no vamos ultrapassar isso!
Ningum representa a si mesmo!

2.

Um presidente de associao: Claro!


Uma presidente de associao: Isso! Isso!
Vrias vozes: Hum! Hum!

Ovam: Eu represento a associao A! E represento a


Federao! Porque sou diretor desta entidade! O Joo representa
a Federao porque ele diretor e representa tambm a
associao B...Ento pelo amor de Deus! Ningum representa a
si mesmo! No vamos fazer tempestade em copo dgua! Para
contemplar as pessoas que representam as entidades, pela
entidade, por favor!

Uma mulher: verdade verdade!

37

Boltanski; Thevenot (1991).

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Arenas Publicas.indb 164

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Leila: At porque gente, at porque... [bate na mesa como


tentativa de conter a platia que estava totalmente desatenta],
uma briga desse movimento justamente em cima disso!
Porque as pessoas andam representando a si prprias! Ns
no podemos parar... Temos que parar com isso! [movimentos
de mos que cujo ritmo acompanha a fala]; E fui l e garanti
pra vaga para minha entidade! Agora dentre os diretores das
entidades, se tira o representante dela!

Um presidente de associao: Isso! Claro!

Leila: A gente brigando por isso! Isso se d nos conselhos


municipais e nesta [insiste na palavra] Federao tambm,
ningum se representa [...] Ento aqui a entidade, fulano t
hoje aqui, porque so trs representantes, no vejo trs, s vejo
um, representante l tem que estar brigando pra garantir a
vaga da entidade, mas isso vai ser discutido l depois. Claro
que o companheiro vai chegar dizer assim: ah, mas eu estava
l, eu quero ir. Ele tem este argumento, correto? Quem se fez
representante fui eu, ento isso vai dar briga, mas uma briga
interna da entidade, e no aqui neste momento, t bom?

Leila: Agora quanto ao que ao que Gabriela estava colocando,


que o coordenador da Regional, [...], ela estava comigo...
Ele tambm coordenador de regional, ele inclusive estava
contemplado, ele coordenador da ampliada. Ele estava comigo
at as oito horas... desde as oito horas da manh, ele pegou o
carro s oito horas da manh. J fizemos eleio em Cabuu
hoje, ele veio pra c e ao chegar aqui, ele recebeu a noticia que
o sobrinho dele tinha falecido, j estava no hospital, correto?
[expresso de profunda indignao] E ele recebeu a noticia,
filho nico da irm dele! S pra ter uma idia: ela desapareceu,
com tanto desespero, ele tava desesperado no pela perda mas
da irm, que era filho nico, entendeu ? Ele foi direto pra Bangu
pra depois ir pra Niteri. Ento se for pra ter que garantir o
companheiro, eu queria pedir sim! Porque foi um impasse
que teve aqui, mas como o companheiro j est inclusive
contemplado por algum que da diretoria do MAB... [vozearia
provindo da platia] Calma, calma, calma, vamos respeitar as
inscries!

165

Arenas Publicas.indb 165

3/5/2011 01:01:48

3 Prova / Kthia /01/05/2011

Na primeira sequncia, Odvam exasperou-se por passar uma informao que deveria j ser compartilhada e assimilada por todos.
Ao mesmo tempo, as interjeies como pelo amor de Deus, ou
ainda, as entonaes espantadas, constituram uma forma de realar
a clivagem comunicativa provocada pelo erro de enquadramento. O
desajustamento devia ser corrigido e a atuao de Odvam, enquanto
vice-presidente da Federao, consistiu em lembrar que o papel a
ser encenado naquela situao era o de um coletivo. A conveno
em torno deste princpio manifestou-se exemplarmente na segunda sequncia. Naquele instante, os falantes da plateia e do palco
reuniram-se. Esta concentrao em torno de um princpio comum
pode ser observada por meio dos indicadores de cooperao conversacional, ou sinais de feed back (back channel signals)38 da segunda
sequncia. Tais sinais foram formulados com insistncia e de forma
repetida, o que sugere uma certa intensidade da concentrao de todos
em torno desse princpio. interessante observar, tambm, que esta
foi a primeira sequncia da situao de reunio na qual puderam ser
observados sinais de cooperao conversacional. Alm disso, foi a
primeira sequncia, desde o incio da reunio, em que as discordncias
passaram a pano de fundo. A disperso da reunio e das pessoas, que
caracterizara muitas das sequncias anteriores, foi temporariamente
suspensa. Percebendo esta recepo da plateia, Odvam reforou
sua interveno anterior com uma explicao exemplificada, na
terceira sequncia, que envolveu outro diretor do MAB. As ilustraes fundamentaram-se no duplo engajamento de dois diretores do
MAB. Nesta sequncia, Odvam aproveitou a ocasio para tambm
oferecer uma trgua queles que haviam questionado a inteno dos
diretores do MAB (o que pode ser percebido, particularmente, com
o ditado: no vamos fazer tempestade em copo dgua). Na quarta
sequncia, surgiu um novo sinal de feed back. Porm, como se pode
perceber, apenas uma pessoa entrou na sequncia. Nesse momento,
conversas paralelas voltam a dispersar a plateia. Leila aproximou-se
de Odvam neste instante: voltou a compor a mesa, portanto, subindo novamente no palco. Encenou esta subida batendo na mesa
para ser ouvida. Na quinta sequncia e na stima, Leila acrescentou
uma avaliao emotiva s palavras de Odvam, manifestando um
sentimento de indignao para enfatizar a dimenso inaceitvel e
intolervel do comentrio da pessoa que despertara a polmica. Sua
38

Gumperz (1989. p. 67).

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Arenas Publicas.indb 166

3/5/2011 01:01:48

3 Prova / Kthia /01/05/2011

tomada de voz teve um retorno por parte de uma pessoa da plateia


(sexta sequncia), que contribuiu para o reforo do que havia dito.
A insero de uma simulao de dilogo e o desenvolvimento do
argumento levaram-na a descartar a necessidade da disputa. Aps
ter afastado esta possibilidade e ter demonstrado a irrelevncia do
questionamento, Leila, na ltima sequncia, retornou, de forma
inesperada e fora da trama que estava se desenrolando. Voltando ao
pedido de Gabriela, Leila condenou aqueles que o haviam negado,
justificando a a ausncia do coordenador da Regional. O argumento
da ausncia j tinha sido utilizado por vrios diretores para recusar
vagas a certas associaes. Apesar disso, Leila conseguiu dar uma
reviravolta na avaliao da plateia no caso de Gabriela. O repertrio
emotivo a partir do qual explicada a ausncia do coordenador e a
descrio detalhada de suas circunstncias sustentaram uma avaliao
que excluiu a possibilidade de negar o quanto a demanda de Gabriela
era bem fundada. Logo aps esta sequncia, a plateia concordou em
aceitar o nome da associao de moradores de Gabriela para a vaga
em disputa, sem que isso provocasse maior tenso.
A reunio continuou, ento, com esse mesmo ritmo. Mais um conflito
em relao a um diretor do MAB foi colocado pela plateia e sutilmente
afastado por Leila. Cerca de meia hora depois, todos j apresentavam
sinais de desgaste ou de desconcentrao. Tanto os ocupantes da mesa
quanto os da plateia, comearam a se levantar, entrando e saindo da
sala at chegar o momento da votao, que se iniciou cinco minutos
antes do trmino da reunio. Os cinco titulares e os cincos suplentes
foram eleitos em um instante, j que todos os conflitos em torno das
associaes a serem indicadas j tinham sido negociados ou afastados.
A modalidade de votao (um simples levantar de mos a cada nome
mencionado) exclua qualquer possibilidade de debate. O tempo curto
para ela reservado contrastava com as longas horas de discusso em
torno dos nomes. Ao longo da votao, os candidatos analisavam que
pessoas os apoiavam. Alguns lembravam a seus eleitores para levantar a mo. Escolhidos os 15 nomes, quatro diretores e a presidente
do MAB e dez representantes (cincos titulares e cinco suplentes) de
associaes de moradores, a participao do MAB na Conferncia
Municipal da Cidade estava garantida.

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Arenas Publicas.indb 167

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Consideraes finais: quando os sentimentos de hostilidade


e de amizade organizam a experincia militante
S podero ter direito de voz e voto aqueles titulares que vo fazer
o credenciamento no primeiro dia. Por isso, muito importante vocs
irem no primeiro dia da Conferncia, na abertura. Seno no podero
votar, informou Leila, quando todos j se levantavam para sair da sala
da reunio. Cansados, os participantes da reunio haviam conseguido
chegar ao primeiro acordo que permitiria inserir as reivindicaes do
MAB na agenda da Conferncia Municipal. A conduo e o desenrolar
da reunio analisada demonstraram que garantir vozes e votos do
coletivo nos espaos decisrios e, especificamente, o horizonte de
visibilidade cvica para cada um era mais importante do que assegurar
uma participao na Conferncia Mundial consistente com o bem
comum, que j estava claro para todos os membros da Federao.
Todavia, priorizar a eleio de titulares no significava descartar o
trabalho de construo de assuntos prioritrios a serem inseridos na
agenda da Conferncia Municipal da Cidade. Em primeiro lugar, havia
um consenso por parte dos membros da Federao em considerar que
os grandes problemas da cidade so sempre os mesmos. Em outros
termos, a percepo da vulnerabilidade dos moradores de Nova Iguau
pouco se alterou ao longo destes ltimos trinta anos. Este era, pelo
menos, o diagnstico corriqueiro dos membros da Federao e das
associaes de moradores. Decerto, novos tpicos passaram a ser inseridos no repertrio reivindicativo do MAB e das associaes como,
por exemplo, o do Meio Ambiente. Mas, entre os tpicos mais antigos
desse repertrio, poucos foram ouvidos no espao pblico por maior
que tenha sido o esforo dos movimentos em tornar pblicas as suas
demandas. A Conferncia surgiu como uma possibilidade de entrever
um frum que permitiria que essas vozes fossem reconhecidas como
legtimas para apresentar suas reivindicaes e inseri-las na agenda
pblica. Neste sentido, ele poderia ser um espao que permitiria que
certas reivindicaes fossem reconhecidas no interstcio dos repertrios de outros movimentos que estariam presentes neste evento.
Por esse motivo, tornava-se particularmente importante o trabalho
de ajustamento de todas as vozes e votos em relao s outras que
estariam presentes na ocasio. Isso implicava necessariamente que os
representantes de associaes de moradores do MAB no poderiam
cometer erros de enquadramento, to corrigidos, como vimos, nas
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reunies. De certa forma, as reunies prvias constituram tambm


os bastidores da Conferncia, pois permitiram realizar um trabalho
prvio de ajustamento de gramticas polticas visando garantir uma
continuidade entre reivindicaes locais e gerais ou comuns a todas as
federaes. Sendo experincias de publicidade e co-presena de uns
com outros, as reunies ofereceram a seus participantes simultaneamente a ocasio de experimentar vrias dimenses do espao pblico
e exercitar algumas de suas situaes possveis. E esta explorao
do espao pblico era o que poderia propiciar a possibilidade de encontrar formas ajustadas insero de reivindicaes da Federao
nas situaes que construiriam a agenda pblica, tal como proposto
pelo Ministrio das Cidades. Em suma, tratava-se de exploraes e
de experimentaes que permitiam aos atores descobrir e acumular
um know how sobre as situaes de publicidade e se sentirem menos
vulnerveis. Este conhecimento, por sua vez, tambm lhes permitiria
mais facilmente mobilizar recursos disponveis na hora de agir nas
situaes de provas.
A anlise da multiplicidade de conflitos e tenses que perpassaram
todas as situaes apresentadas no pode deixar de levar em considerao a forma da sociabilidade militante. Para retomar literalmente
Simmel,39 os modos de sociabilidade que se desenvolveram nessas
reunies lembram, constantemente, que o conflito uma das formas
mais elementares da socializao militante. Nesse grupo, segundo
o autor, o sentimento de hostilidade de uns com os outros uma
exigncia da situao, uma necessidade primria,40 que garante, paradoxalmente, o engajamento da pessoa na ao coletiva. Ao mesmo
tempo, a hostilidade restrita e situada exclusivamente no espao das
reunies, espao prprio da coisa pblica. Ela permite, de um lado,
ser vigilante quanto suspeita de manipulao e, de outro, que todos
possam se situar reciprocamente nesta ocasio. graas ao sentimento
de hostilidade que as pessoas se colocam, debatem, discordam. O que
lhes possibilita situarem-se reciprocamente e auxiliar o trabalho de
definio de situao. Assim, a gramtica poltica assentada na hostilidade no aparece como uma ao racional, e sim, como um modo
de se engajar nestas situaes. Pode-se pensar que este sentimento
o que permite, no espao-tempo da reunio, reunir os atores em torno
39
40

Simmel (1995).
Ibidem, p.42.

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de uma causa e de manifestar diante dos outros a intensidade de seu


engajamento nessas situaes.
Simmel oferece ainda uma chave analtica interessante para a compreenso dessas tenses, que destaca a dimenso do conflito como
forma de socializao: o combate ldico. 41 Trata-se de um tipo de
confronto que no implica vitria de qualquer das partes envolvidas.
Um jogo, uma unidade de contradio, que faz coexistir o princpio
de combate e o princpio da unio. Os dois lados sabem que o resultado do combate no significa uma derrota. Os risos e as piadas que
surgiram constantemente nas reunies descritas apontam para uma
forma ldica de se engajar nestas situaes. Mais ainda, estes indicadores de uma coisa ldica aparecem como um modo de preparar a
descoberta das dobras desconhecidas do espao pblico. Em outros
termos, a dimenso ldica aparece como um momento em que as
pessoas ensaiam, em uma escala familiar do espao pblico (na sede
da associao), a representao que poderiam ter em outros espaos,
nos quais o regime de familiaridade no convive com o regime de
publicidade. A hostilidade poderia ser, nesse sentido, uma forma de
submeter prova os argumentos e a posio de cada um numa escala
menor para preparar a representao de si em uma escala maior. Assim que esse coletivo situado se dispersa, quando a situao poltica
deixa lugar para a situao de amizade, o sentimento de hostilidade
imediatamente afastado e substitudo pelo sentimento de amizade.
No caso em anlise, interessante sublinhar a respeito que, aps o
trmino da reunio, quando os diretores recolhiam-se em sua sala,
muitos presidentes de associaes de moradores foram conversar
com estes como se nada tivesse acontecido, engajando-se na sala da
diretoria em um regime de familiaridade.
A forte convivncia da amizade com a hostilidade e com o ldico
nos conduz a interrogar sobre as escalas do espao pblico e sobre
as suas dobras. Como espero ter demonstrado neste artigo, a explorao dessas dobras em uma escala familiar que ser, em seguida,
mobilizada e reorientada em outras escalas do espao pblico pode
ser compreendida como uma competncia poltica que est no cerne
da experincia ordinria democrtica.

41

Simmel (1995, p. 47).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

REFERNCIAS
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. Les cadres de lexprience. Paris: Ed. de Minuit, 1991.
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soi. t. 1. Paris: Ed. de Minuit, 1973a.
171

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

. La mise en scne de la vie quotidienne: relations en public.


t. 2. Paris: Ed. de Minuit, 1973b.
GUMPERZ, J. Engager la conversation. Paris: Ed. de Minuit, 1989.
GUSFIELD, J. The culture of public problems: drinking-driving and
the symbolic order. Chicago: University of Chicago Press, 1981.
LATOUR, B. Petites leons de sociologie des sciences. Paris: La
Dcouverte, 1993.
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palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento. Rio de
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(Doutorado em Educao)Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
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ENTRE COMUNIDADE
E PBLICO: SEGUINDO
O CURSO DE AO DE UM
CONFLITO DE URBANIDADE
EM CARACAS, VENEZUELA
Pedro Jos Garcia Sanchez1

O uso dos espaos pblicos abertos d lugar a prticas que constituem


um registro social central que permite instaurar a condio citadina.
Pergunta-se: o que acontece quando esta condio experimentada durante um conflito de uso do espao acompanhado do surgimento de uma
mobilizao coletiva? Como a etnografia desse curso de ao permite
localizar as implicaes cvicas de um conflito de urbanidade? Como
operam no cotidiano os princpios de justia, que pressuporiam a organizao dos usos citadinos e dos compromissos de cidadania, por meio
dos quais a cidade desenvolve suas caractersticas urbanas e polticas?2
A forma cvica da urbanidade aparece, ento, por intermdio de
diversos dispositivos: leis e outras figuras jurdicas, organismos de
Estado e municipalidades, associaes e categorias profissionais urbanas, movimentos participativos e formas citadinas do agir cidado.
Porm, preciso uma ateno muito especial para enfrentar a seguinte
questo: como os princpios bsicos de urbanidade, na sua forma
cvica, se impem no contexto de Caracas, no qual as fronteiras
1
2

Professor da Universit Paris X.


Dentre os inmeros autores que concedem um lugar central distino entre Urbs e Civitas
para definir o horizonte da antropologia urbana, Manoel Delgado (1999) explora uma
perspectiva muito estimulante.

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do poltico3 esto marcadas pela oscilao autoritria-regimentar,


prpria de uma orientao poltica impositiva.
Examinarei algumas repercusses do conflito que, entre 1996 e 1997,
ops a Aruaca4 Asovila,5 sob o enfoque das formas de apropriao
do acesso Sabas Nieves ao Parque National El Avila. Esta foi uma das
primeiras manifestaes organizadas de protesto pblico, face aos impetos de defesa dos valores privados e aos excessos comunitrios que tm
configurado a comunidade urbana de Caracas desde as ltimas dcadas
do sculo XX. Trata-se de acompanhar, em todas as suas fases,6 o curso
da ao do conflito que se estabelece quando organismos governamentais assumem os papis das associaes civis. Isto nos permitir
identificar as trajetrias7 e descrever as montagens compsitas8
que se constituem ao longo desse processo. da que aparecero dois
discursos de justificativa, baseados nas formas democrticas do viver
comunitrio: a comunidade e o pblico. Cada ator argumentar que
uma dessas categorizaes do viver comunitrio oferece mais legitimidade do que a outra, e tentar mobilizar as competncias necessrias
para demonstrar esse dado. As ambiguidades e as diferenas que esse
tipo de pluralidade cvica causa, definiro, em boa parte, o curso de
ao do conflito de urbanidade instalado.
Uma montanha mgica entre a guerra e a paz?9
O parque nacional El Avila, sob a superviso do Instituto Nacional
de Parques (Inparques), um lugar que representa um espao de
adeso,10 pois um dos espaos pblicos preferidos dos caraquenhos.
Sua localizao, as qualidades de seu ambiente natural, seu sentido
histrico e cultural, transformaram-no em um patrimnio urbano:
musa privilegiada de artistas, cancioneiros e poetas; imenso pulmo
vegetal que salva da asfixia esta capital moderna; smbolo paradoxal
de continuidade ecolgica e poltica em uma cidade que, desde a sua
3
4
5
6

7
8
9

10

Rancire (1998).
Associao de moradores dos Bairros de Altamira e de La Castellana.
Associao dos Usurios do Parque Nacional El Avila.
Este princpio interacionista de mtodo exige apropriar-se da ao, segui-la durante todo
seu desenvolvimento. Cf. Cicourel (1979).
Strauss (1992).
Boltanski; Thvenot (1991).
Este subttulo retoma o subttulo de um artigo da jornalista E.Araujo (El Nacional, 03/11/96,
p.D/8). Minha interveno questiona entretanto a pertinncia da gramtica da guerra para
analisar os diferenciais prprios dos conflitos de urbanidade.
Haegel; Lvy (1998).

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fundao, muito raramente pode se desprender de uma lgica do


provisrio.11 O desenvolvimento urbano arbitrrio e incongruente que
define a morfologia de Caracas e de seus arredores, respeitou, apesar de
tudo, os limites naturais e simblicos definidos pelo parque El Avila.12
Situado na 10a rua transversal ao extremo norte de Altamira sob
a jurisdio poltico-administrativa do Municpio de Chacao, Sabas
Nieves um umbral entre o parque e o bairro residencial, composto
de pequenos conjuntos habitacionais e de manses suntuosas dispostas
ao longo das avenidas, de ruas transversais e de ruas sem sada. O
transporte em geral deficitrio e preciso dispor de carros particulares para se chegar mais facilmente ao local.
A solicitao da Aruaca Prefeitura de Chacao para obter a permisso
de instalar uma DRU13 (Douane rsidentielle urbaine Alfndega residencial urbana) no incio da rua que leva ao parque, suscita um debate
pblico e marca o surgimento oficial do conflito de Sabas Nieves. Mas,
aos olhos da populao ribeirinha de acesso ao parque, os incmodos
crescentes decorrentes do uso desmedido e desorganizado da rea de
acesso ao parque remonta a um perodo muito anterior. Primeiro, eles
se queixam dos danos causados ao meio ambiente e da qualidade de
vida devido alta circulao de frequentadores com comportamento

11
12

13

Garcia Sanchez (2007).


A cadeia de montanhas que forma El Avila separa o Vale de Caracas do mar do Caribe e
do primeiro porto do pas, La Guaira, situado a 20 minutos pela autoestrada. Do lado da
cidade, os conceptores da modernizao reafirmaram a importncia desse limite ao construir
a avenida Boyac, espcie de avenida perifrica que, pelo lado norte, atravessa a cidade de
leste a oeste no p da montanha. Do lado do mar, h pequenas cidades (Naiguat, Macuto,
etc) as mais afetadas pela tragdia do desabamento gigantesco de lama de dezembro de 1999.
As DRUs so dispositivos que impedem o livre acesso de certas categorias de pessoas (os no
residentes e, em geral, aqueles que so estranhos) e que foram instaladas em vias pblicas por
iniciativa das associaes de ribeirinhos, que providenciaram o seu funcionamento visando
segurana (Cf. GARCA SNCHEZ, 2004). Apesar de sua semelhana com os condominios
fechados (gated communities), construdos propositadamente com o objetivo de controlar
uma zona fechada (DAVIS, 1992), convm distinguir essas duas formas de enclausuramento.
As DRUs apontam para o problema da privatizao dos espaos pblicos, pois elas operam
sobre uma rea residencial predominantemente urbana, situada em Caracas, e sob a imposio
de cnones do cadastro municipal que costumam exigir dos agenciadores imobilirios a
cesso das ruas, caladas, espaos verdes e comuns para seu uso e administrao pblica.

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no civilizados.14 Em seguida, tentaram fazer valer sua posio de


proprietrios e contribuintes. Por ltimo, chamaram a ateno para o
fato de que Sabas Nieves est situado em rea privada. Por isso, os
ribeirinhos exigiam da Prefeitura que tomasse medidas emergenciais
para garantir sua segurana, privacidade e bem estar residencial, e
tambm que se restabelecesse a ordem pblica (sic).
O Conselho Municipal, majoritariamente, defere esta solicitao dos
ribeirinhos assinando um decreto. Para implementar a DRU fica faltando apenas a assinatura do prefeito e a publicao da autorizao no
Dirio Oficial, assim como o preparo da construo da infraestrutura
e a contratao de um servio de vigilncia privada por conta dos
ribeirinhos. Com isso, restringe-se o acesso ao El vila, por Sabas
Nieves, da mesma forma que se interdita o uso da rua e das caladas
da 10a rua transversal, que fica reservada preferencialmente para
os moradores e seus visitantes. A providncia adotada pela Aruaca
no deixa de ter uma dimenso cvica: raras so as associaes de
ribeirinhos que, relativamente instalao de uma DRU em Caracas,
solicitam uma permisso s administraes urbanas.15
Do uso dos espaos pblicos moradia ... um conflito
de urbanidade
Ter paz em um espao pblico no quer dizer que no ocorrero
conflitos. Se esses conflitos puderem ser administrados (mutuamente e
de forma ponderada), esta administrao ocorrer, se houver interesse
e condies de faz-lo, no momento da sua percepo, porque, durante
sua identificao, houve interesse nas condies de seu surgimento. As
perspectivas oferecidas pelo reconhecimento do desentendimento como
motor paradoxal da sociabilidade urbana permitem a G. Simmel explicar
como um conflito ultrapassa o seu campo de ao para tornar-se um
14

15

Estou cansado das pessoas que estacionam seus carros em qualquer lugar, dos
engarrafamentos que s vezes nos impedem at de sair de casa, da xixi que fazem na entrada
do parque e do barulho do alarme de seus carrosdesde s 4 horas da manh. Eu quero acabar
com toda essa baguna que as pessoas que vm de fora, em nome da sadee do esporte,
querem nos impor. No h a menor necessidade de dilogo. Eu espero apenas que o prefeito
assine o decreto para efetuar o fechamento.
Dentre as cinco Prefeituras que dividem a Cidade em termos poltico administrativos,
somente a municipalidade de Baruta props uma poltica de regularizao das DRUs.
Mas, mesmo neste caso, um grupo significativo de associaes de ribeirinhos s informam
municipalidade sobre a instalao e funcionamento deste dispositivo depois de faz-lo.

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elemento constitutivo de interaes.16 Os microarranjos que sustentam


as relaes interpessoais normais antecedem a cena do conflito. O fato
de se tratar, conforme o caso, de uma ameaa ou de uma advertncia,
de um enfrentamento regido pela via jurdica, de uma luta corpo a
corpo ou de uma forma de dissuaso da ao, permite especificar os
nveis de engajamento em um conflito, com seus contornos e limites.
Dizer que nos unimos para lutar e na nossa luta nos submetemos a
normas e a regras reconhecidas pelos dois lados significa perceber
que o conflito coloca a questo de um reconhecimento interacional
suscetvel de chocar as imposies de fora e de padronizar o recurso
s mediaes. Falo de conflitos de urbanidade, quando, em diversos graus, as condies que determinam as qualidades da vida e da
coabitao urbana so desfocadas, se esfumaam e at desaparecem,
tornando-se, assim, difceis de serem administradas. Esses conflitos
podem, ou no, almejar uma regulamentao cvica. Isso depende da
forma como o elo civil, que cria a oportunidade de reciprocidade, foi
afetado. O caso de Sabas Nieves permite analisar o tipo de conflito
urbano para o qual as solues so suscetveis de serem adotadas por
diferentes vias: por procedimentos judiciais, administrativos e polticos.
Mas para abordar, analisar e tratar os conflitos de urbanidade preciso, ao mesmo tempo, se afastar de Simmel. Em vez de tentar fazer o
apndice de uma sociologia do combat,17 na minha opinio, trata-se,
sobretudo, de desprender-se da abordagem blica. Ainda que esta
abordagem seja vlida para ter em conta a forma como os atores fazem
para reverter situaes em seu benefcio, a rigidez dessa abordagem
na anlise dos procedimentos e dos compromissos por meio dos quais
esses conflitos tm lugar, problemtica. H o risco de que evolua
sob a forma gramtica Esta gramtica da guerra tende a reduzir
a complexidade temporal, semntica e pragmtica das interaes,
para seguir uma lgica concorrencial que remete, com frequncia, a
uma configurao das entidades como ganhadoras e perdedoras.
Na arena pblica18 provocada pelo bloqueio do acesso ao El vila,
via Sabas Nieves, se apresentam suportes plurais que pertencem a

16
17
18

Simmel (1992).
Freund (1983) um exemplo de sries dadas no programa de Simmel.
Cefa (2002, p.51-83).

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diversos mundos de ao em comum19 mobilizados por aqueles


que o integram. Os ribeirinhos exibem sua condio de proprietrios
(comercial) para fazer prevalecer seus direitos em detrimento dos
outros (cvico) que, alis, no passam de estrangeiros (domstico). Representar seu papel de contribuinte uma medida cvica que
colabora para a salvaguarda de seu patrimnio (domstico), assim
como para o bom funcionamento das instituies municipais (cvico).
Entretanto, seu desejo de reconhecimento os obriga a apelar para o
mundo da opinio. O apelo dimenso cvica tambm evidente
quando os ribeirinhos descrevem os problemas causados pelos frequentadores do parque estigmatizando-os como uma violao do
direito tranquilidade e do respeito pelo espao da comunidade.
Esta ao sofreu imediatamente a oposio de um determinado grupo
de usurios do parque e do seu acesso. Eles adquiriram uma personalidade jurdica (associao civil com fins no lucrativos) a fim de se
reunir de maneira significativa em torno dessa causa e de conquistar
uma presena pblica que lhes permitisse atuar em termos polticos.
Nesse contexto nasce a Asovila, para lutar pelos direitos civis dos
moradores da cidade, direito ao lazer e a usufruir atividades esportivas
que pressupem a utilizao dos acessos para pedestres e a escalada
desta montanha.
A publicizao da iniciativa da Aruaca permitiu conceder ao caso de
Sabas Nieves o status de problema pblico,20 o que acabou por possibilitar que outros desafios alm dos comunitrios pudessem ser
levantados. A Asovila, da mesma forma, recorreu aos dispositivos
do mundo da opinio para efetivar o seu propsito: o presidente dessa
associao aproveitou todas as oportunidades para dar entrevistas e
divulgar a sua condio de arquiteto,especialista em planificao
urbana. Uma grandeza industrial21 igualmente assim colocada a
servio da associao de usurios: o ttulo de expert. Quando a maioria
19

20
21

Eu sigo o quadro de anlise introduzido por Boltanski; Thvenot (1991) e posteriormente


ampliado por Lafaye; Thvenot (1993, p.495-524). Esse quadro permite descrever como
os atores agem durante um conflito, observando o que os torna, em vez de no coletivos,
montagens compsitas que integram mecanismos que revelam diferentes mundos, a saber,
os mundos da opinio, da inspirao, domstico, cvico, mercantil industrial
e ecolgico. Cada um desses mundos comporta formas de generalidade e dimenses de
grandezas que so experimentadas pelas imposies pragmticas surgidas ao longo do
conflito. A utilizao desse quadro em circunstncias especficas explica a pluralidade de
abrangncias de uma ao.
Gusfield (1979).
Para a noo de grandeza cf. nota no 18.

178

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dos usurios mostra o seu descontentamento em face de iniciativa


privada, o referencial cvico frequentemente evocado. Segundo a
Asovila, a postura dos ribeirinhos ofende os direitos de cidadania
dos usurios do parque. Entretanto, ao mesmo tempo essa postura
defendida por um ator importante do mundo cvico, o Conselho
Municipal de Chacao. Para uma jovem me que faz uso ocasional
do parque com seus dois filhos, a atitude do Conselho Municipal
representa uma deciso absurda, baseada no excesso daqueles que
se outorgam o direito de estender seus domnios privados para alm
do jardim de suas casas. Assim, a Asovila sinaliza a preeminncia
da forma pblica sobre a forma comunitria quando se trata do
uso comum do parque como bem pblico. Este princpio cvico lhe
permite organizar um protesto que, mais tarde, se estender a dimenses ecolgicas, poticas e domsticas. por isso que a reunio
dos usurios em associao importante: esperam ser aceitos com a
mesma legitimidade que a Aruaca pelas instncias de mediao ou
de deciso. Depois, os dirigentes da Asovila organizam um abaixo-assinado junto aos usurios de Sabas Nieves para estabelecer uma
prova confivel de apoio coletivo ao seu encaminhamento e sua
prpria representatividade.
Assim se constituem as duas partes necessrias para que o caso de
Sabas Nieves se configure como um conflito de urbanidade. De um
lado, se encontram aqueles cujo pedido de restrio ou de interdio de uso de uma via pblica apresenta, para a mquina judicial,
administrativa e poltica, o tratamento territorial como privilgio.
Do outro, aqueles que, em resposta a este pedido, se organizam e
se mobilizam para preservar os valores patrimoniais que definem o
uso deste espao pblico. Nos dois casos, uma dimenso domstica
levantada. O anncio do decreto dando prosseguimento exigncia
da Aruaca, perante a municipalidade, encontra dois tipos de reao. A
Aruaca, os ribeirinhos da 10a rua transversal de Altamira, os polticos
de Chacao e a secretaria de urbanismo desse municpio reconhecem
o mrito/a razoabilidade da ao. A Asovila, e, posteriormente,
outras associaes (como a associao catlica de cunho ecolgico
Los Palmeros de Chacao e a cultural Los Hijos del Sol), a Procuradoria Geral da Repblica e, eventualmente, Inparques, rejeitam
a sua legitimidade. uma lgica de ao baseada em arranjos
circunstanciais22 que se implantar e permitir definir a maneira
22

Joseph (1998).

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pela qual os atores se ajustam s situaes. A rede de relaes que vai


se criar no desenrolar da mobilizao de Sabas Nieves permite ver
como, por meio da ao deliberada dos interlocutores, se concretiza
a funo de associao, que incorpora o conflito como uma das
formas mais ativas de socializao.23
Entre dissuaso, reputao e sade, o uso corrente
do senso-comum
A pequena renovao da estrutura dos espaos do parque parece
fazer parte de uma poltica de dissuaso de outra natureza que no a
ascenso esportiva ou o turismo de aventura. Com exceo de alguns
refgios destinados a pessoas que fazem caminhadas ou passeios de
bicicleta, dispersos na floresta, esse parque nacional no dispe, na
verdade, de instalaes e de servios que estimulem os usurios a
frequent-lo mais. Os nmeros oficiais indicam aproximadamente
5.000 visitantes aproximadamente por dia, considerando-se os diferentes acessos. O nmero total desses acessos (entre 7 e 16) no pode
ser estabelecido com preciso, devido s informaes contraditrias
fornecidas pelos diferentes atores. Mas, seja qual for o nmero de
acessos, seu uso parece ser bastante desigual e codicionado ao contexto socioespacial: a acessibilidade ao local, a proximidade do local
de residncia e de trabalho, a topografia mais ou menos difcil para a
subida, a esttica paisagstica dos arredores dos caminhos, as preferncias dos usurios por algumas vistas panormicas etc. Entretanto,
a reputao atribuda aos diferentes acessos tambm est ligada ao
aspecto da frequncia do lugar por meio de sua frequentao: os
acessos ao parque El Avila situados no interior ou nas proximidades
dos barrios de ranchos (favelas) ou de outros bairros populares
tm, em geral, uma pssima reputao. Isso normalmente se deve
identificao simblica quase automtica estabelecida entre esses
territrios e as formas da vulnerabilidade do elo civil que, sob os
rtulos de violncia urbana e de insegurana pessoal, assustam
os caraquenses de hoje. Todavia, a m reputao tambm deriva de
um julgamento... se constitui tambm sobre a base de um julgamento
socioesttico: alguns acessos so considerados feios, pouco convidativos, desagradveis. Mas, o que funciona em um sentido,
funciona tambm no outro: h acessos que gozam de boa reputao.
Eles so ditos mais seguros, mais bonitos, so os mais chiques,
23

Simmel (1192).

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

aqueles do Leste. Mesmo se a Aruaca atribui frequentao excessiva o facil acesso de Sabas Nieves, a reputao dos lugares
fundamental para captar os problemas comuns, que so o cerne do
domnio pblico urbano.
Considerando a maneira como os ribeirinhos de Altamira Norte
desencadearam o conflito, assim como o processo de normatizao
socioespacial e poltico que permitiu sDRUs, em Caracas, se propagar com uma velocidade e uma legitimidade impressionantes, a
iniciativa do bloqueio parte de um pressuposto: mesmo se a instalao
das DRUs permanecesse ilegal nos 2/3 do territrio metropolitano,
seria um fenmeno to corriqueiro em Caracas (no esprito da poca) que a sua refutao tornar-se-ia impossvel devido ao seguinte
argumento: todo mundo faz. Filtrar o acesso das populaes para
controlar o uso do espao no uma forma nova de administrar o
territrio mas, em Caracas, isto assume um lugar especial no discurso
de gesto do domnio urbano.
Trata-se de uma forma de privatizao do espao pblico que no
se materializa por via contratual, mas pela dissuaso de seu uso. A
presena fsica e simblica das DRUs cristaliza, sob a forma de um
mecanismo urbano de segurana, os instrumentos desta dissuaso.
Esta ltima se apoia igualmente na pressuposio da inexistncia
de entidades suficientemente organizadas e aptas para enfrentar as
provas judiciais, administrativas, miditicas e polticas que adviro
to logo iniciado o conflito.
A dissuaso tem lugar quando as autoridades declaram publicamente
a propriedade pblica ou privada dos terrenos nos quais se situa o
acesso em questo sem, no entanto, dispor da nica prova de validade (o contrato de propriedade). A sequncia dos acontecimentos
revelou que os terrenos, certamente, so propriedade privada de um
indivduo que no mora em Altamira Norte e que tambm no quer
levantar a sua bandeira.24

24

Com exceo da secretaria de Urbanismo da Prefeitura de Chacao, os atores que participam


do conflito privilegiaram a dimenso mercantil como fundamento do problema de propriedade
de terrenos. Assim, as diferentes dimenses de um conflito de urbanidade (normas, usos,
contexto institucional, escalas topolgicas, atividades) foram reduzidas a uma questo de
propriedade. Isto foi determinante para que, nos diferentes momentos em que surgiu uma
possibilidade de apaziguamento, o recrudecimento do conflito tenha se imposto.

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Quando comea a circular o rumor de que os terrenos em disputa


pertencem ao municpio, a dissuaso persiste, com um pano de
fundo cvico duplamente incmodo: 1) As autoridades municipais
s podem exercer suas funes por meio do apoio poltico (o voto
eleitoral) e financeiro (os impostos) de seus eleitores; e 2) uma instncia pblica de pleno direito (o Conselho Municipal) j tomara uma
deciso favorecendo a Aruaca.
Um dirigente da Asovila demonstra os limites do primeiro fundamento cvico:
Eu moro em Sebucan [bairro prximo, mas no
limtrofe de Altamira], mas considero Altamira
como meu bairro tambm. Eu pego todos os
dias este caminho para subir a montanha, no
incomodo ningum, tambm sou eleitor Chacao e pago meus impostos. Ou seja, tenho os
mesmos direitos que todos os outros.

De acordo com o princpio da representatividade, um grupo de pessoas pode considerar a possibilidade de consensualizar sobre alguns
critrios, mas divergir de outros, sem que isto ponha em dvida o
pertencimento comunidade. O modelo de democracia representativa
funciona a partir desta presuno de pluralismo. Assim, o argumento
que os ribeirinhos tentam fazer prevalecer (de que a dependncia
poltica dos eleitores restringe a atuao das autoridades municipais
perante os eleitores que so pelo bloqueio) incoerente, pois no leva
em conta esta possibilidade de divergncia inerente ao modelo do
pluralismo democrtico em uma comunidade.25 A prpria constituio
da Asovila e as aes que ela desenvolve questionam o segundo
fundamento cvico, colocando assim em evidncia os dogmas de uma
estratgia de dissuaso que pode no chegar a termo.
O conflito de Sabas Nieves serve de espelho para que se perceba como
os atores coletivos se justificam, mobilizam recursos para executar
aes e so medidos regularmente por meio de testes prprios para
situaes de conflito. Esses testes sancionam a conquista de uma
legitimidade e a busca de um resultado favorvel. Mas tambm defi25

A cidade coloca o problema da cooperao entre os homens, da defesa e da promoo de


seus interesses comuns, e da direo a ser seguida pela coletividade a qual pertencem. A
cidade poltica (cit) se define por sua capacidade de aproveitar as diferenas entre os seus
membros e, ao mesmo tempo, as complementaridades (HINTERMEYER, 1998, p.6-9).

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Arenas Publicas.indb 182

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nem os parmetros nos quais se identificam os vnculos entre prticas


urbanas e compromissos cidados.
Anteriormente, a rejeio aos mecanismos de bloqueio praticamente
se igualava ao nvel das queixas ocasionais e despretensiosas dos
usurios que se esbarravam nas DRUs espalhadas pelos bairros residenciais do Leste de Caracas. Uma srie de circunstncias faz com
que o conflito de Sabas Nieves ganhe outro contorno: 1)o carter
depatrimnio urbano histrico e simblico que os caraquenses atribuem ao parque; 2) A transformao do acesso de Sabas Nieves em
um dos lugares preferidos de encontro e de sociabilidade das classes
mdias em Caracas; 3)O nmero de usurios do local que sero afetados pelo bloqueio torna-se um ponto determinante para a oposio
macia que, futuramente, incorpora a dimenso de movimento; 4)a
situao socioeconmica e cultural de uma parcela significativa dos
subecerros (escaladores)26 de Sabas Nieves, que no so qualquer
um (existem figuras pblicas ligadas a atividades financeiras, artsticas ou polticas); 5) a ressonncia considervel que este conflito
obteve nas mdias, o que, em termos de disputa sobre a apropriao
do espao pblico urbano em Caracas, no tem precedentes.
Os usurios de El Avila, para justificar a sua desaprovao, se valem
de um discurso sobre a importncia ecolgica do meio ambiente para
a preservao da sua sade fsica e mental:
absurdo fechar Sabas Nieves. No se trata de
um parque de lazer, nem de uma feira, mas de
um lugar privilegiado para a sade. El Avila
um grande espao para o descanso que nenhum
ginsio, nenhum complexo hoteleiro, pode
oferecer. Ns vivemos a duas ruas daqui e, h
mais de 20 anos, fazemos aqui nossos passeios,
nossa sesso habitual de relaxamento.

Esta valorizao de uma dimenso ancorada na natureza e no bem estar


conquistado por estados fsicos e mentais se apoia principalmente em
trs registros de ao: o exerccio fsico, a calma e o relaxamento que o
parque oferece, assim como o prazer dos percursos. O exerccio fsico
de escalada e de descida das trilhas de El Avila por meio da prtica do
jogging, da ginstica ou da caminhada o tipo de uso mais comum e
26

Esta a forma como so chamados, em termos de gria, os usurios de El Avila.

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feito em perodos relativamente curtos (de uma a trs horas, aproximadamente). Aqueles que o praticam habitualmente criam com mais
facilidade laos de sociabilidade com os outros subecerros. So tambm
os que detm um conhecimento maior sobre os pontos de referncia e
as limitaes do uso do espao devido familiaridade com o lugar que
eles desenvolveram. A maioria desses esportistas liderou o movimento
de oposio s exigncias privativas da Aruaca. A calma e o descanso
advm das atividades, caminhadas, passeios na montanha, mas tambm
do charme do prprio ambiente. Por exemplo, um usurio nos disse
que o que importa no tanto os cuidados com a sade pela prtica de
um esporte, mas a caminhada que permite combinar esforo fsico e
pura descontrao. Essa forma do uso do espao talvez to frequente
quanto a anterior, mas esses passeios normalmente tomam mais tempo:
um dos objetivos precisamente o de mudar o ritmo acelerado de vida
acelerado ao qual os citadinos so forados em suas atividades na
cidade. O prazer que a caminhada pode proporcionar se apresenta
como uma experincia que fica no meio do caminho entre o esforo
fsico que exige e uma atividade de relaxamento. Ela demanda mais
tempo (pelo menos um dia) e requer um equipamento necessrio, seja
para acampar (se este for o objetivo), seja para permanecer durante o
dia sem ter problemas... de abastecimento. Esse tipo de uso pode ser
ocasional ou habitual e uma permisso por escrito dada por Inparques
necessria. Encontramos aqui percursos mais longos que s vezes
levam s proximidades do mar do Caribe ao cabo de alguns dias.
Apesar disso, ser que podemos usar tal justificativa, ancorada em uma
natureza que , ao mesmo tempo, ambiente (a paisagem do parque),
constituinte (a sade) e reconstituinte (o esporte), com dimenses
ecolgicas designadas segundo um quadro dos mundos de ao
em comum? Sua definio parece dizer respeito somente ao meio
natural do parque e s qualidades enfatizadas por seu uso esttico. A
importncia adquirida em Sabas Nieves pelo argumento da sade e de
sua manuteno como qualidades constitutivas da natureza humana,
obrigam a problematizar a pertinncia dos parmetros que definem
o que ecolgico nesse modelo de anlise.27
27

Em uma cit verte, ecolgico aquele que por suas aes prova sua preocupao com o
meio ambiente e concorre para sua proteo [...] os grandes seres no so obrigatoriamente
pessoas, coletivos ou instituie, mas sim elementos naturais como a gua,, a atmosfera,
o arr [...] Os pequenso seres so aqueles que poluem como o smog( fumaa de zonas
industriais), o plstico no reciclvel (LAFAYE; THVENOT, 1993, p.512-513; ver
tambm THVENOT, 1996, p.27-50).

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Arenas Publicas.indb 184

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

As instituies no fazem seu trabalho


A ordem cronolgica dos acontecimentos traa a dinmica das presses e dos compromissos que permitem contar a histria do conflito
com suas conquistas mas tambm com suas reviravoltas. Confiantes
no sucesso do abaixo-assinado (mais de 11.000 assinaturas em uma
semana), os dirigentes da Asovila participam oficialmente de uma
sesso do Conselho Municipal cujo objetivo tentar ratificar o decreto
que sancionou o bloqueio. No documento a Asovila denuncia os
vcios de legalidade da resoluo municipal contestando a preciso,
a veracidade e a validade do documento elaborado pelos polticos
com fins a determinar o bloqueio. A Asovila acusa os conselheiros
municipais de Chacao de usurpao das suas funes pblicas a
despeito do dever da instituio de decidir, coordenar e estabelecer a
regulamentao do acesso a El Avila (Inparques). A posio jurdica
que Sabas Nieves adquiriu a partir da histria do seu uso reafirma
o seu aspecto patrimonial: Mesmo que estes terrenos pertenam ao
municpio, o seu uso pblico. assim h desde tanto tempo que
existe o direito de uma. servido de passagem que assegura o seu uso
pblico tornando possvel seu uso pblico. O direito de um particular
no pode estar acima do direito do coletivo. A Cmara Municipal
assinala o argumento de Asovila ao Procurador Municipal e aguarda
a sua resposta para dar continuidade ou encerrar o procedimento de
bloqueio do socioespacial.
Vozes divergentes aparecem entre os membros da Cmara Municipal
que, at ento, apoiavam as reivindicaes e se uniam s solicitaes
dos ribeirinhos. Assim, um dos vereadores admite que este rgo dispunha de elementos para reconhecer sua incompetncia institucional
para autorizar o fechamento. O Procurador Municipal se pronuncia e,
ao contrrio das expectativas, confirma os argumentos da Asovila,
constrangendo o rgo municipal: A decreto municipal de bloqueio
de Sabas Nieves inadmissvel por conter vcios e por ter sido elaborada sobre bases falsas construda sobre falsos fundamentos.28
Entretanto, tais argumentos tm valor de mera opinio. Cabe C28

O Procurador Municipal cite o artigo 539 do Cdigo Civil: So bens do domnio pblico:
os caminhos, os lagos, os rios, as fortificaes,as fossass,as pontes de praa de guerras e
outros bens similares. Ele acrescenta O loteamento onde se situa o acesso no pertence
Prefeitura,no cabe s autoridades municipais impor medidas de bloqueio como esta que
foi feita.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

mara Municipal tomar as decises.29 O Procurador Municipal indica


que seria preciso determinar a extenso/ o papel a ser desempenhado
pelo princpio da propriedade de leitos e barrancos a partir da alterao realizada pela Prefeitura. Trata-se de circunstncias histricas e
administrativas inerentes ao contexto e que podem afetar a natureza
pblica ou municipal do terreno sob disputa. De acordo com este
funcionrio, antigamente havia no local de acesso de Sabas Nieves
um leito de rio no local de acesso de Sabas Nieves que prejudicava
os moradores durante as enchentes. Ora, este rio teria sido aterrado
pela Prefeitura de Sucre que, anteriormente, exercia a jurisdio do
local (rio). Este funcionrio denuncia, alm disso, o atraso e a negligncia de Inparques, a quem caberia efetivamente estabelecer as
regras que facilitariam o uso do parque por um pblico constitudo
por usurios e por ribeirinhos.
Inparques parece finalmente publicizar a sua oposio resoluo
municipal feita a despeito do bem comum e do bem coletivo e
pronunciar a sua anulao: qualquer tipo de ato administrativo ou
normativo realizado pela Prefeitura de Chacao, que tente limitar,
impedir e condicionar ou afetar, por qualquer via, o livre acesso
dos cidados ao Parque Nacional El Avila, ser, doravante, nulo de
pleno direito, devendo ser considerado como ato inexistente, no
podendo produzir nenhum efeito jurdico legal.30 No decorrer dos
acontecimentos, a Asovila acaba por conciliar a sua abordagem do
Inparques, outorgando-se a condio de portadora de uma grandeza
cvica maior do que a da Prefeitura, uma vez que a sua jurisdio
nacional.
Cada uma das partes envolvidas no conflito faz barulho para mostrar
a fora de sua posio e ganhar o apoio da mdia. Assim, por exemplo,
os ribeirinhos fazem circular o boato da interposio de um recurso
nos tribunais competentes para tentar reverter a situao a seu favor.
Os usurios, por sua vez, divulgam a deciso de Inparques e a posio do Procurador Municipal, no somente a partir do seu contorno
de medida institucional, mas tambm como prova da sua vitria/
29

30

Esta disposio tem, entretanto, um fundamento jurdico que permite atuar de forma contrria
ao que determina o relatrio do Prefeito: porm, se no mnimo cinco vereadores municipais
estiverem de acordo em aportar novos elementos que justifiquem e reafirmem o bloqueio,
o decreto pode ser validado. o mesmo Prefeito que, ironicamente, afirma: como vocs
esto vendo, o direito serve para tudo.
El Nacional, 26/11/96, C/2.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

seu sucesso. Da perspectiva das entidades governamentais, apenas


alguns vereadores e o Prefeito, a ttulo pessoal, se manifestam a
favor de que seja encontrada uma soluo negociada e satisfatria
para a coletividade. O final do ano de 1996 deixa uma sensao
de pacificao duvidosa.
Se restringssemos a anlise aos contextos jurdico e institucional,
seramos tentados a considerar a hiptese de soluo do conflito.
Mas, o alcance dos problemas que dizem respeito gesto urbana,
ordem pblica e apropriao do referencial cvico em Caracas
torna a situao muito mais complexa do que a mera expectativa de
uma soluo pelo judicirio ou um esmorecimento progressivo do
problema devido morosidade burocrtica.
Confrontados com a comunidade dos ribeirinhos locais, organizada
h muito tempo e cujas intervenes nas questes municipais so
frequentes, legtimas e legais,31 o sucesso que os usurios parecem
experimentar aps a tomada de posio de Inparques e do Procurador
Municipal marca um momento forte no desenvolvimento do conflito.
A associao dos usurios conseguiu momentaneamente se fazer notar
como coletivo e fazer prevalecer o teor cvico de sua interveno.
A contraposiao das duas posies explicitou um duplo problema
ancorado nos valores do mundo industrial: a m gesto do espao pblico do parque pelo Inparques e a ineficcia da prestao de
servios da Prefeitura na manuteno da ordem pblica nas ruas
residenciais de Altamira Norte. Ao faz-lo, vemos que, em ambos os
casos, para se tornar uma importante fonte de domnio pblico urbano,
encontramos a atuao das instncias pblicas de governo. No apenas
eles no fazem o seu trabalho conforme atestam frequentemente
os usurios e ... como o afirmam de forma recorrente os usurios e
os ribeirinhos entrevistados, como tambm durante a sua mobilizao em resposta ao apelo das associaes, estas instncias pblicas
atuaram fora dos contextos de ao pelos quais elas so responsveis.
Com efeito, para alm da sua competncia de lidar com o argumento
jurdico que fundamenta o decreto municipal, a Cmara de Vereadores
31

Desde os anos 1970, as associaes de ribeirinhso apareceram em Caracas como uma nova
opa de participao poltica em escala local (GMEZ, 1987, p.271-293). Por exemplo, a
Lei de Urbanizao e Remanejamento Urbano de 1987 atribui a essas associaes um papel
indispensvel durante o traado das plantas dos projetos.

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Arenas Publicas.indb 187

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

tambm estimula o conflito. Ou seja, alm do seu descompromisso


em relao ao uso cvico dos espaos pblicos, o decreto ainda se
configura como uma fraude ofensiva cidadania. Dessa forma, o
rgo pblico se coloca em uma situao bastante delicada do ponto
de vista moral, legal e de gesto. A negligncia quanto s suas responsabilidades legislativas de governabilidade urbana fica cada vez
mais evidente. Porm, de forma mais ampla, a ao municipal em
seu conjunto que est em jogo. Quer se trate de dar um contexto de
ao regular e de ajuste socioespacial ao fluxo e aos agrupamentos
de lugares no preparados para um uso intensivo, quer se trate de
contribuir por seus servios de ordem para regulamentar e reparar
os incmodos causados por este uso, a responsabilidade legislativa e
executiva do rgo municipal est seriamente comprometida.
Por sua vez, o Inparques tambm est comprometido: sua negligncia
na gesto dos acessos ao parque, e na administrao da sua estrutura
e do seu uso foi uma das principais razes do surgimento do conflito
de Sabas Nieves; sua reao perante o protesto pblico decorrente da
sua apatia caracteriza-se menos em assumir suas responsabilidades
pela falta de controle e mais por julg-la segundo critrios morais.
Os ribeirinhos lem a expresso eficcia institucional como competncia municipal pragmtica para acabar com os dilemas oriundos
da gesto do conflito. Este gesto surge, entretanto, menos como a
reafirmao de uma rotina visando padronizao dos trabalhos
de renovao e do uso regular do espao pblico urbano da 10 rua
transversal de Altamira e de seus arredores, do que como a apropriao extraordinria, e mesmo oportunista, de um campo de ao. Se o
estorvo decorrente do congestionamento dos carros estacionados pelos
subecerros motorizados em um espao restrito e no adequado uma
das queixas recorrentes dos ribeirinhos, isso se deve ao fato de que
antes no estava em jogo apurar, sob o vis da eficcia institucional,
a conformao socioespacial dos usos daquele espao.
Em outro artigo examino de que forma o fato de estacionar onde
puder em Caracas suscita a questo dos usos das vias pblicas e dos
hbitos adquiridos pelos condutores de transportes em geral, para
quem oportunidade a palavra de ordem.32 Respeitada de maneira
tcita pela maioria dos citadinos que, ao mesmo tempo, aparecem
32

Garca Snchez (2007).

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Arenas Publicas.indb 188

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

como motoristas oportunistas e ou como moradores incomodados, esta


lgica acaba por se naturalizar. O que est implcito na frase onde
puder, no apenas a questo de uma economia do espao, mas
tambm o problema da competncia distributiva dos usos. O espao
torna-se um bem raro e cobiado, ao mesmo tempo em que seu uso
depende de um contexto vivel. Assim, a conduta cvica dos ribeirinhos ratificada pela ao municipal passa menos pela restruturao
desse espao e aperfeioamento da polcia do que pelo bloqueio da
rua e privatizao do seu uso. As instituies pblicas que participam
direta ou indiretamente da gesto do local, se isentam assim da fonte
de problemas e transferem para uma entidade associativa uma tarefa
que se torna menos problemtica medida que as suas ancoragens
pblicas, na prtica, ficam desfocadas.
Por outro lado, verdade que os ribeirinhos qualificam a 10a rua
transversal de Altamira como espao privado, pertencendo, em
ltima instncia, ao Municpio. Por isso, o apoio manifestado pela
Cmara Municipal ao bloqueio ribeirinho por meio de dispositivos de
qualificao, permite a passagem das dimenses cvicas valorizao
do uso pblico do espao e s dimenses domsticas e mercantis que
estimulam uma abordagem privativa.
Do controle ao compromisso: que princpios de ordem para
apaziguar o conflito?
Em 1997, a Asovila teme uma reviravolta da situao, que passe a
desfavorec-la. Esta associao recorre ento aos tribunais e solicita
a abertura de um inqurito por crime de falsidade contra os vereadores que assinaram o decreto de bloqueio do acesso. Nesse nterim,
Inparques muda de presidente e sua direo anuncia quatro medidas
destinadas a exercer um controle dos acessos em El Avila por Sabas
Nieves, assim como voltadas para a gesto mais mais comedida do
uso do parque: o pagamento de acesso, que serviria para financiar
estudos de avaliao dos impactos ambientais por seu uso intensivo;
o estabelecimento de um horrio de acesso (das 6 s 19 horas nos dias
teis, das 7 s 19 horas nos fins de semana) para programar melhor
suas boas condies de uso; a instalao de uma barreira na entrada
de Sabas Nieves que permitiria fazer uma taxonomia dos usurios
e exercer a devida fiscalizao sobre o pagamento do acesso ao
parque; a fixao de um prazo de dois meses para reunir, consultar
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Arenas Publicas.indb 189

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

e promover, em conjunto com os diferentes atores envolvidos, uma


sada definitiva e negociada para o conflito.
Este projeto de regularizao do uso do parque substitui aquele projeto de bloqueio do acesso. Ele recebe o imediato apoio da Cmara
Municipal de Chacao e de Aruaca. A Asovila, por sua vez, ape a
sua concordncia para que o uso do parque seja mais bem organizado, mas manifesta tambm a sua oposio s trs primeiras medidas
e suas reservas face s habilidades da Inparques para gerenciar o
uso do parque. A Cmara Municipal se reaproxima de Inparques e
substitui a sua postura normalizadora, unilateral e blica, que havia
orientado as suas aes em 1996, por outra atitude, voltada para a
disposio negociao e para as solues baseadas em arranjos e
compromissos. Isto deveria tambm servir para estimular a Asovila
a dar fim ao processo judicial iniciado contra a Cmara. A Aruaca
muda, ento, de discurso. Desconsidera os princpios territoriais que
orientavam sua ao e passa a mostrar interesse pelos problemas
dos usurios.33 Entretanto, seu objetivo industrial de eficcia mantido
e reforado com uma exigncia mercantil de rentabilidade:34 o que
importa a partir de agora que o parque seja administrado segundo
princpios empresariais. A Aruaca prope um esquema alfandegrio
em todos os acessos do parque, considerado como indispensvel, caso
se implemente, de fato, o modelo de entrada paga), assim como a
instalao de reas de estacionamento no interior do parque. Antes
negligentes enquanto controladores comuns das aes municipais, os
ribeirinhos locais passam a valorizar suas competncias para assumir
este papel perante as aes governamentais, das quais, enquanto atores
polticos, eles no podero participar de pleno direito.
As trs primeiras medidas (de ordem regulamentar, de autoridade
e de controle social) anunciadas por Inparques, diferentemente da
quarta, provocam reaes que marcaro a sequncia do conflito. Outra
modalidade da lgica prpria das DRUs se manifesta. O mecanismo
de filtragem no mais implementado na rua que leva ao acesso do
parque (como inicialmente pretendia a Aruaca), mas sim no prprio
33

34

Eu aplaudo a deciso da presidente do INPARQUES, que busca proteger e manter o parque,


conhecer quantos e quem so aqueles que o utilizam, assim como procura saber o que acontece
quando fazem uso dos seus caminhos e dos de seus equipamentos.
Com base em uma avaliao quantitativa de clculos, a Aruaca demonstra que, com o
pagamento da entrada e com a renda dos estacionamentos calculada apenas em um fim-desemana, o Inparques arrecadaria 150 millhes de bolivars por ano.

190

Arenas Publicas.indb 190

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

acesso. Esse mecanismo requerido, desta vez, no pela iniciativa de


uma associao de ribeirinhos ou de um municpio, mas sim por um
organismo estatal da natureza do Inparques. A ateno direcionada
para aquilo que permita encontrar uma sada emergencial, burocrtica, mercantil e pretensamente eficaz para o conflito. Entretanto, a
configurao efetiva de um dispositivo plural de gesto democrtica
do conflito e do local parece, assim, se atenuar. A despeito de uma
gesto cvica de espaos pblicos, onde as aes se engajam aps um
trabalho de consulta e de ajustes plurais de perspectivas, de temporalidades e de exigncias materiais e humanas prprias de um meio
compsito, uma abordagem poltica e oportunista privilegiada.
Somente o quarto ponto permite perceber, segundo padres democrticos, a natureza complexa da questo de Sabas Nieves e possibilita
visualizar novas perspectivas para uma sada duradoura, com base
consensual porque comum: para um problema referente a atores cuja
natureza, interesses e abordagem organizacional diferem, a nica
soluo possvel deve ser buscada na na intermediao dessas diferenas. Porm, o tempo passa sem que nenhum mecanismo permita
aos oponentes colocar prova suas posies, segundo os princpios
comuns de equivalncia. No s as partes em conflito continuam a
mostrar prioritariamente suas diferenas de abordagem, como tambm elas fazem o necessrio para no procurar meios de encontrar
um compromisso entre os mundos onde suas justificativas fazem
sentido e as outras so problemticas. , pois, apesar da (e no em
complementaridade) nica medida de ordem pblica baseada nos
imperativos cvicos de negociao e de coordenao dentre todas
aquelas propostas por INPARQUES, que as instncias de poltica
urbana tentam regulamentar o uso irracional de Sabas Nieves e
de El Avila.
O Municpio de Chacao tenta instalar um porto-barreira no meio do
acesso Sabas Nieves, com o apoio de Inparques, mas os usurios
impedem-no, reunindo-se em massa no local e criando obstculos ao
trabalho dos operrios. Alguns dias depois, operrios de Inparques,
aproveitando a noite calma, executaram o trabalho. O Procurador
Geral da Repblica participa do debate, tomando partido dos usurios.
O descontentamento dos usurios no se faz esperar: denncias na
mdia, pancadas no porto-barreira durante a passagem e, logo aps,
a sua demolio. A presena to esperada do porto no local, em vez
191

Arenas Publicas.indb 191

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

de apaziguar os nimos, como em quase toda parte fora de Caracas,


onde surgiu uma modalidade de DRU, acabou, ao contrrio, por
desencadear um processo de violncia fsica.
A Asovila apela, ento, para um referendo, no qual os usurios
podero manifestar sua opinio sobre as medidas de gesto anunciadas por Inparques. H, pois, a opo de 1) escolha entre (1) recusar
o conjunto de medidas de restrio (o pagamento para acessar ao
parque e o estabelecimento de um horrio de uso), (2) recusar apenas
o pagamento e (3) recusar apenas o estabelecimento de um horrio
de uso. O resultado: 4.406 subecerros votam na primeira opo,
337 escolhem a segunda e 73 se pronunciam pela terceira. A Cmara Municipal de Chacao, o Inparques e a Aruaca no contestam
as condies de realizao do referendo e, quer queiram quer no,
acabam cedendo presso e ajustando as suas prticas ao resultado
do referendo.
Chegando hoje ao acesso de Sabas Nieves, constata-se, em primeiro
lugar, que um dos problemas que deram origem ao conflito (o estacionamento de veculos desordenado e inconveniente para os moradores
das proximidades do local) desapareceu, pois grandes vasos de flores
esto dispostos ali. O que deduzimos disso que a Secretaria de Urbanismo do Municpio de Chacao acabou tomando o problema para si
e resolvendo-o. Assim, uma parte das reivindicaes dos ribeirinhos
foi atendida, embora no o tenha sido conforme eles esperavam.
Observa-se, tambm, a inexistncia de outras obras para alfandegar
a rua ou o acesso. Tambm no h mais, desde muito tempo antes do
conflito, policiais nem vigias, salvo os guardas florestais, presentes
no interior do parque. Em compensao, encontramos um civil que,
dizendo pertencer Asovila, fica permanentemente no local para
garantir que tudo ocorra bem e que no haja problemas.
Do justo ttulo justa experincia
Estamos no cerne das questes que caracterizam os conflitos de
urbanidade suscetveis de serem levados Justia em uma cidade
como Caracas. Os casos referentes apropriao de reas pblicas
explicitam os problemas decorrentes do fato de se negligenciar as
situaes cotidianas por meio das quais se atualiza a gesto de espaos urbanos, cujo uso se amplia e se intensifica. Mesmo quando so
abordadas discusses que dizem respeito ordem jurdica que deve
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regulamentar o uso desses espaos, isto no significa que o problema


tenha sido identificado e tratado segundo princpios de cidadania.
Pode haver a um primeiro estgio da confuso que se verifica entre
os atributos do ordenamento jurdico, sua ancoragem normativa e
os vieses pragmticos dos atos cvicos. assim que se envolvem/
misturam as interfaces entre cidadania e urbanidade.
No cerne dos desafios de gesto, verifica-se que somente um trabalho
de coordenao permite outorgar o justo ttulo justa experincia
durante a ao e ajustar os princpios de organizao societria que
cada ator privilegia em funo de uma problemtica comum. A
articulao entre territrio, uso e cidadania requer uma ateno focalizada nas questes polticas e civis. preciso, portanto, tratar com
seriedade o trabalho de ajuste das diferentes grandezas que devem
coexistir em um espao pblico urbano. Isso dificilmente possvel
quando se exclui ou aniquila qualquer uma delas, ou quando se adota
a vigilncia policial estrita como tcnica de instruo do uso de um
espao. Entretanto, diante de problemas cujo teor suficientemente
grande e complexo para comportar respostas mais sofisticadas, estas
sadas repressivas e normalizadoras tornaram-se o prt--porter da
governabilidade urbana caraquense. Nessa via, conflitos de urbanidade, como o de Sabas Nieves, esto prontos para virem tona, se
ordenarem e se multiplicarem por meio de mtodos que colocam
prova os princpios democrticos que sustentam a civilizao urbana
contempornea.
Seguir o curso da ao de um conflito permite tomar por inteiro um
percurso dramatrgico por meio do qual aproximamos as expectativas e as emoes mobilizadas pelas atividades e pelos usos. Isso
permite situar os dados empricos que servem para justificar a ao
e para mobilizar os compromissos institucionais. Da mesma forma,
podemos assim explicitar como se do as interaes, traar os interstcios entre as diferentes posies que esto em jogo e considerar a
implementao de uma poltica apaziguadora dos conflitos segundo
julgamentos de urbanidade.35
As competncias e os recursos so avaliados a partir das atribuies
que os atores validam com base em situaes experimentadas durante
a ao. Essas ocasies permitem identificar de que forma os atores
35

Joseph (1998).

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

administram o conflito, ou inscrevem suas pretenses no registro de


inteno de acordo, de conjuno ou de coexistncia. Este trabalho
de identificao acompanhado de um exame atento dos momentos
uma ateno nas circunstncias em que essas competncias e recursos
(na medida em que so motivadas por orientaes diferentes), impedem uma representao comum da situao.36 Essa identificao
ento submetida a uma dinmica contnua de negociao dos graus
identitrios, territoriais e patrimoniais, dos fatores de estabilizao e
das configuraes de um compromisso possvel. Por isso, quando a
anlise se refere aos espaos urbanos, as competncias e os recursos
so apropriados e observados muito mais em funo de um sentido ecolgico do que propriamente geogrfico ou urbanstico; eles
resultam mais na estruturao de uma organizao do que de uma
cultura; seus desafios remetem s questes polticas que articulam,
complementam e fornecem (ou no) um sentido cvico aos aspectos
jurdicos e administrativos. Entre comunidade e livre acesso, as
ancoragens obscuras do poltico no urbano modelam, assim, a gesto
do espao pblico em Caracas. Os canteiros de obra da urbanidade se
abrem ento nas passagens esboadas entre uma perspectiva centrada
na coordenao pela ao e uma perspectiva baseada nos propsitos
do interacionismo que aprofundam a pesquisa suscitada por Simmel
e a Escola de Chicago nas formas elementares da vida citadina.

REFERNCIAS
BOLTANSKI, L.; THVENOT, L. De la justification: les conomies
de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.
CEFA, D. O que uma arena pblica?: algumas pistas em uma
perspectiva pragmtica In: CEFA, D.; JOSEPH, I. (Ed.). Lhritage
du pragmatisme: conflits durbanit et preuves de civisme. La Tour
dAigues: Editions de lAube, 2002. p.51-83.
CICOUREL, A. La sociologie cognitive. Paris: PUF, 1979.
DAVIS, M. City of Quartz: excavating the future in Los Angeles.
New York: Vintage, 1992.
DELGADO, M. El animal publico. Barcelona: Anagrama, 1999.
36

Sublinhemos aqui este triplo sentido que pode ter, tanto em espanhol quanto em portugus,
o adjetivo comum: (1) que pertence ou que se aplica a vrias pessoas ou coisas, (2) que
se refere ao maior nmero, mas tambm (3) que banal, habitual, usual, corrente.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

FREUND, J. Sociologie du conflit. Paris: PUF, 1983.


GARCIA SANCHEZ, P. J. Caracas, (habiter la) ville fragilise,
(se rendre comptent dans la) cit vulnrable. In: DEBOULET A.;
ROULLEAU-BERGER, L.; BERRY, I. (Ed.). Villes internationales:
tensions et ractions des habitants. Paris: La Dcouverte, 2007.
. A forma privativa da urbanidade: garantir aderncia e homogeneizao socioespacial em Caracas. LEspace Gographique,
[S.l.], dossier Ensembles rsidentiels ferms, n. 2, p.114-130, 2004.
GMEZ, C. L. Movimientos sociales y reforma institucional: el
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GUSFIELD, J. The culture of public problems: drinking-driving and
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HAEGEL, F.; LVY, J. Une lecture spatiale des identits.
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lAube, 1998.
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dans lamnagement de la nature. Revue Franaise de Sociologie,
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RANCIRE, J. Aux bords du politique. Paris: Gallimard, 1998.
SIMMEL, G. Le conflit. Saulxures: Circ, 1992.
STRAUSS, A. La trame de la ngociation: sociologie qualitative et
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195

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ASSOCIATIVISMO:
Laos voluntrios ou compulsrios?

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

QUANDO AS ASSOCIAES
SO VOLUNTRIAS
NO BRASIL? UMA DISCUSSO
SOBRE NOVAS FORMAS
DE COLONIALIZAO
EM RESERVAS EXTRATIVISTAS
Ronaldo Lobo1

1 Introduo
Neste artigo pretendo discutir a natureza de alguns tipos de organizaes no governamentais ONGs , em sua maioria com a natureza
jurdica de associaes, em funo de duas possibilidades analticas.
A primeira consider-las como associaes voluntrias, frutos da
liberdade de associao que Tocqueville identificou com o modelo
de democracia que encontrou na Amrica. Autores contemporneos
igualam a liberdade de associao com a liberdade de expresso,
relacionando a maior efetividade desta ltima em conformidade com
o crescimento da primeira.2
A segunda possibilidade identificar um carter compulsrio, ou
involuntrio de algumas associaes,3 que revelam um modelo de
comunicao restrita, que se dirige da esfera do Estado em direo

1
2
3

Professor PPGSD/UFF. Pesquisador do INEAC/NUFEP-UFF.


Gutmann (1998).
Rosenblum (1998); Walzer (1998).

199

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

sociedade por intermdio de interlocutores privilegiados e exclusivos,


que dominam e so dominados por uma gramtica particular.4
Apresentarei alguns exemplos etnogrficos para, em seguida, sugerir
algumas consideraes analticas. Comeo com minha verso para a
trajetria de uma entidade associativa de pescadores associada a uma
poltica de governo de corte socioambiental (as Reservas Extrativistas Resex), a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo/RJ.
Passo para a descrio de um modelo organizativo bastante distinto
em um mesmo contexto poltico, a Reserva Extrativista Marinha de
Corumbau/BA. Concluo a parte etnogrfica com uma reconstruo
para o associativismo amaznico, a partir de um projeto de pesquisa
realizado coletivamente nas reas de vrzea do Rio Amazonas.
Em seguida, apresento uma digresso sobre o papel das lideranas,
dos representantes dos grupos que ocupam lugares-chave nessas
organizaes. A compreenso deste processo quase que to importante quanto o do lugar das associaes em nossa gramtica poltica.
Com esses elementos, inicio uma discusso a partir dos dados de campo em direo s teorias e s posies sobre o associativismo como
so descritas entre ns e em outras sociedades. Concluo este artigo
com algumas sugestes sobre um lugar diferenciado da informao
e sua circulao nesse sistema.
2 Uma verso para a trajetria do associativismo
nas reservas extrativistas
A reconstruo aqui apresentada foi construda a partir de relatos de
alguns dos intrpretes presentes desde os primeiros momentos de formao da poltica at as Reservas Extrativistas chegarem a Arraial do
Cabo, em 1995.5 A partir de 1996, entrou em cena o etngrafo e autor
deste texto. O foco inicial foi o vale do Xapuri, no Acre. Outros cenrios foram importantes para o desenho da poltica, como Rondnia
e o Vale do Juru, mas para a reconstruo efetuada, a centralidade
em Chico Mendes permitiu uma abrangncia maior para o desenho
do mosaico de influncias e seus efeitos.

4
5

Lobo (2006).
Uma reconstruo mais detalhada foi apresentada em minha tese de doutorado (LOBO,
2006). Cf. K-O. Apel, em Cardoso de Oliveira (2000, p.175).

200

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Em uma representao grfica busquei considerar as esferas de interlocuo, ou esferas sociais que se formam em cada encontro, que se
estabeleceram e que exerceram um alcance diferenciado nos nveis
micro, meso e macro.6 A apresentao bidimensional considera, no
eixo vertical, o afastamento espacial e, no eixo horizontal a evoluo
temporal. O tamanho dos ns no est vinculado a uma avaliao
de sua importncia; muitas vezes apenas correspondente ao texto
que o identifica. O tempo se acelera em alguns perodos como na
representao de Sahlins para o campeonato de basebol em 19517 ,
notadamente em torno do binio 1988-1989, quando foram criadas as
primeiras Resex, e em torno do ano de 2000, quando da promulgao
da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservao SNUC.8
Como sugesto de leitura do quadro na pgina a seguir e em funo de
meu interesse neste artigo, percorrerei alguns dos ns que podem ser
interligados em um mesmo contexto. Tomo o associativismo, ento.
A primeira referncia so as CEB Comunidades Eclesiais de Base.
Elas representaram a retomada da reao ao perodo de exceo da
poltica brasileira no campo e tiveram na reorganizao do movimento
sindical combativo seu paralelo no meio urbano. Um outro polo foram
as lutas contra a agroindstria que buscava se instalar na fronteira
noroeste e as lutas contra o patronato nos seringais do Alto Juru.9
Os empates na regio Xapuri foram frutos da organizao inicial dos
seringueiros locais, em um contexto de luta de classe.10
A aliana com ndios e outros grupos sociais da Amaznia representou um primeiro esforo de ampliar a visibilidade no movimento no
contexto nacional. Articulado com a preocupao internacional com
a proteo a Amaznia e a consolidao do conceito de desenvolvimento sustentado, o movimento teve que se organizar e construir
uma imagem miditica global. Chico Mendes e os caciques Raoni e
Juruna, lderes Xavante foram figuras emblemticas deste perodo.11
6
7
8
9
10
11

Apel (1992).
Sahlins (2004, p.131).
Lei 9.986/2000.
Eliane Cantarino ODwyer mostra esta trajetria para o vale do Juru (ODWYER, 1998).
Mendes (1989).
O cacique Raoni esteve em vrias cruzadas internacionais ao lado de Sting, lder do grupo
musical The Police. O cacique Juruna foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro e foi
um dos parlamentares constituintes.

201

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Figura 1: Representao grfica da trajetria das Resex

202

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Entretanto, a Constituio de 1988 reconheceu explicitamente apenas


os direitos indgenas em seu corpo permanente. Apareceu em suas
disposies transitrias o reconhecimento ao direito de propriedade
dos grupos remanescentes de quilombos. Outros grupos formadores
da identidade nacional tiveram sua proteo estabelecida em suas
dimenses culturais (CFRB, arts. 215, 216).12
O Conselho Nacional dos Seringueiros havia sido criado para rebater
as polticas de assentamento do governo e a administrao da poltica da borracha. O assassinato de Chico Mendes, a ampliao da
identidade do grupo para populaes tradicionais e a insegurana
poltica para a sucesso do presidente Jos Sarney propiciou a criao
de quatro reservas extrativistas no incio de 1989.13
A regulamentao das reservas extrativistas previa a criao de uma
associao local que, representando o grupo tradicional, faria em
um primeiro momento a co-gesto da unidade de conservao com
o rgo responsvel pela proteo do meio ambiente, o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
Ibama , criado aps a constituio com a fuso de vrios rgos
ambientais, entre eles a Superintendncia da Borracha Sudhevea.
Quando ocorresse o amadurecimento desse modelo de gesto o Estado
deveria celebrar um Contrato de Gesto, o qual permitiria que o grupo
assumisse isoladamente a gesto da rea protegida. Deve ficar claro
que tal associao no se enquadraria em uma definio de associao
voluntria, nem representava um processo natural aos grupos locais,
formados por extrativistas de recursos naturais renovveis.
Foi com essa nfase no extrativismo que se desenhou o instrumento
de gesto desses espaos, o Plano de Utilizao (posteriormente
manejo), um documento que foi definido pelo Centro Nacional do
Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais CNPT
, rgo do Ibama responsvel pela criao e co-gesto das Resex,
como um documento administrativo a ser construdo no interior das
associaes das reservas e homologado pelo governo em documento
oficial, um decreto.
12

13

A efetivao do direito de propriedade dos remanescentes de quilombo no ser tratado neste


artigo. Mas vale ressaltar que para ter direito titulao definitiva das terras ocupadas os
quilombolas devem se organizar em associaes e ser a estas associaes que o territrio
ser afetado e no aos remanescentes de quilombos.
Cunha; Almeida (1999, 2000).

203

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Entretanto, o contexto da dcada de 1990 produziu intensas mudanas na trajetria das reservas extrativistas. Aps a ECO 92, a nfase
da poltica deslocou-se em direo proteo ambiental, com seu
pice em 2000, quando foi aprovada o SNUC. Nessa lei, entre outras
mudanas, o Plano de Manejo passou a ser um documento tcnico,
a ser elaborado com vistas a garantir a sustentabilidade dos recursos
e proteo dos espaos, significativamente no mais no interior das
associaes das reservas.
Outra mudana fundamental decorreu da disseminao dos conceitos
de participao disseminados por manuais de organizaes multilaterais como o Banco Mundial e o BID.14 Nesses manuais as noes
empowerment e gesto participativa e o conceito de stakeholder deram
novas feies gesto e criao das Reservas Extrativistas.
A dimenso classista, ou de reconhecimento de direitos de grupos
minoritrios diluiu-se em uma pretensa concertao em que todas
as vozes passaram a ter igual peso. Nem redistribuio, nem reconhecimento, o princpio passou a ser a proteo da natureza, da
biodiversidade, mesmo quando associado a direitos culturais. O exemplo vem da regulamentao do SNUC, em 2002, quando as reservas
extrativistas passaram a ser geridas por um Conselho Deliberativo, no
qual devem ter assento no s a populao tradicional local, mas todos
os stakeholders. Mas, para que esta participao seja mais equnime
deve-se proceder ao empoderamento das lideranas locais. Mas no
devem restar dvidas de que as possibilidades da gesto efetiva local
ficaram comprometidas, seno inviabilizadas.
Esta verso factvel? Passo a dois relatos sobre processos associativos em duas reservas extrativistas marinhas: a de Arraial do Cabo,
no estado do Rio de Janeiro, e a de Corumbau, no Estado da Bahia.
Em seguida, ofereo uma trajetria do associativismo amaznico, na
qual se pode perceber uma mesma matriz organizativa.
3. Associaes em duas reservas extrativistas marinhas
A Associao da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo
Aremac foi construda no mesmo tempo em que unidade de conservao era criada. Pela legislao poca (1997), para cada Reserva
14

Ver o Resource Book on Participation, do Banco Interamericano para o Desenvolvimento,


e o World Bank Sourcebook on Participation, do Banco Mundial, ambos de 1996.

204

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Extrativista haveria uma Associao, com a qual o poder pblico faria


uma gesto compartilhada at que fosse celebrado um Contrato de
Gesto com a entidade local para que os extrativistas seguissem seus
rumos de forma autnoma.15
O desempenho das quatro primeiras gestes da Aremac16 at 2006
pode ser traado atravs da explicitao de perfis de atuao distintos
de seus presidentes. A primeira gesto, cujo presidente era dono de
pescaria de traineira, durou da criao da Resex at pouco depois
de sua reeleio, em 1999, quando renunciou.17 Esta gesto pode
ser caracterizada por seu tom organizativo, conciliador entre os de
dentro e duro com os de fora. Em suas palavras, a resex tinha
vindo para garantir a sobrevivncia do pescador.
Essa gesto teve o tom da defesa dos interesses dos pescadores
cabistas,18 por meio da consolidao da Resex e da exclusividade de
acesso aos recursos pesqueiros em seu interior. O entendimento do
momento era que os interesses dos pescadores cabistas passaram a
ser direitos, a partir da criao da Resex, em funo da contrapartida
ambiental que promoviam.
A partir do apoio que o prefeito de Arraial do Cabo poca ofereceu consolidao da Resex, foram feitos movimentos para ajudar
a construo da Resex-Mar de Itaipu/RJ, com forte integrao com
lideranas locais. O saldo organizativo da gesto foi bastante grande
e em julho de 1999, quando houve a reeleio da diretoria da Aremac
reeleita por aclamao , estavam aptos a votar mais de 300 scios.
Com o afastamento do presidente, no meio de seu segundo mandato,
assumiu seu vice-presidente, mestre de pescaria de canoa da Praia
Grande um dos poucos negros mestres de pescaria fora da Prainha.19
Seguindo a tradio dos pescadores da Praia Grande na luta pela ga15
16
17

18

19

Ver Lobo (2000, 2006).


De 1997, ano da criao da Reserva e da Associao, a 2004.
H duas verses para sua renncia. Uma que ele estava cansado de lutar em vo pela Resex,
e perdia dinheiro com o tempo que dedicava Aremac. Uma outra que ele brigou com
o diretor da reserva porque teve uma carga de sardinha fora do tamanho apreendida e sua
posio no lhe trouxe nenhum benefcio.
Este termo utilizado localmente para identificar os pescadores tradicionais de Arraial do
Cabo.
Os pescadores da Prainha eram denominados carings por serem considerados imigrantes,
vindo de outros estados para Arraial do Cabo em funo da instalao da Cia. Nacional de
lcalis, na dcada de 1950. Ver Britto (1997); Prado (2000).

205

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

rantia do espao social de produo a praia , esta segunda gesto


pode ser caracterizada pela busca da consolidao do espao da Resex.
Foi nesse perodo, at agosto de 2001, que atuaram em Arraial do Cabo
os fiscais colaboradores.20 Tambm foram retomadas discusses com
os surfistas sobre a prtica deste esporte na Praia Grande e estabelecida uma longa disputa com a Marinha. Entre outras divergncias,
havia a desavena sobre o direito de interdio de reas da Resex
navegao dos pescadores sob a alegao de motivos de segurana
nacional e de exerccios de navegao da armada.
Esta gesto tambm buscou dar visibilidade Resex para alm dos
limites de Arraial do Cabo. Recebeu representantes dos pescadores de
outras localidades que estavam construindo suas reservas uma delas
foi de Itacar/BA. Esteve na ento recm-criada Reserva Extrativista
Marinha de Corumbau. Incentivou o Conselho Tcnico Cientfico
CTC da Aremac. O CTC era prestigiado e a direo interagia com as
suas recomendaes. A lancha recebida como doao de empresrios
de So Paulo foi logo colocada em condies de exercer a fiscalizao
dos limites da Resex.
A co-gesto da Resex ocorria dentro dos limites do aceitvel. Entretanto, deciso por parte do Ibama quanto a cobrana de uma taxa de
visitao na Unidade de Conservao fez com que os conflitos internos
crescessem exponencialmente. Houve um certo recuo, pois uma coisa
era brigar com os de fora, outra coisa era brigar com os que ficaram
de fora, mas eram de dentro, ou, ento, eram autoridades.21
Por outro lado, nesta gesto deu-se novo impulso ao Festival da Lula,
que comeou como um festival gastronmico para o mais importante
recurso pesqueiro da Praia Grande no Vero, poca, at se transformar em uma importante atividade do calendrio cultural de Arraial
do Cabo, no ano de 2005.22 O carter multifacetado dessa gesto e
os conflitos deflagrados em seu perodo podem ter produzido um
resultado inesperado, pois ao fim desse mandato, estavam aptos a
votar nas eleies da Aremac apenas 21 associados.
20
21

22

Atualmente denominados Agentes Ambientais Voluntrios.


Discuto esta questo em minha dissertao de mestrado e em trabalho apresentado na IV
Reunio de Antropologia do Mercosul RAM, em Curitiba (LOBO, 2000, 2001b).
Que contou com o patrocnio da Petrobrs na verso de 2005, dentro do Projeto Mosaico
desta empresa.

206

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Foi neste contexto que assumiu nova diretoria, eleita com apenas um
voto de associado que no compunha a chapa23 um novo presidente,
dono de pescaria na Praia Grande, funcionrio pblico aposentado,
mas como ele mesmo disse na sua posse, apesar de suas trs profisses, a que ele escolhera era a de pescador. O primeiro movimento
dessa gesto foi esvaziar a anterior com denncias de uso indevido
dos recursos da Associao, principalmente aqueles que o Festival
da Lula arrecadara.
O segundo foi aumentar o nmero de associados em um processo de
distenso poltica em relao Colnia de Pesca Z5 e aos pescadores
da Praia dos Anjos. Neste sentido afastou-se da co-gesto da Reserva
ao perceber que os recursos que desejava para seu projeto no viriam
da arrecadao da Taxa de Visitao da Unidade de Conservao. O
projeto desta gesto era o assistencialismo, o social do pescador.
A Aremac deveria obter recursos e oferecer servios.24
Nesse perodo, com a entrada em vigor da regulamentao do SNUC,
teve incio a discusso para a construo do Conselho Deliberativo da
resex de Arraial do Cabo. Vrias tentativas foram feitas, sem nenhum
sucesso at 2007.
Uma das consequncias foi um novo refluxo na vinculao dos
pescadores com a Aremac e um rompimento definitivo da gesto
compartilhada, tanto em relao a Resex quanto ao CTC. O presidente da Aremac foi um dos signatrios do pedido do afastamento do
agente do Ibama que criara a resex de Arraial do Cabo e da Resex,
mas no logrou obter grandes dividendos com isto. Pelo contrrio,
ao final do primeiro mandato, parte da diretoria formou outra chapa
e, em 2003, pela primeira vez houve disputa eleitoral para a direo

23

24

Dos 21 associados aptos a votar quinze compunham a chapa. Cinco eram diretores em
segundo mandato, que haviam levado a direo at o final, e se consideravam de oposio
chapa que se inscrevera. Sobrou um eleitor. Que votou a favor da nova direo.
Talvez para interesses polticos particulares, pois j havia sido candidato a vereador e voltou
a concorrer nas eleies de 2004, sem obter sucesso.

207

Arenas Publicas.indb 207

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

da Aremac. A vitria foi apertada, apenas 5 votos de diferena, em


um universo de 40 eleitores.25
Diante dos fracos resultados obtidos em seu projeto de associativismo, o segundo mandato desta gesto voltou-se para a conquista de
reas para a maricultura. Um projeto da Associao dos Catadores
e Criadores de Mariscos de Arraial do Cabo Acrimac j havia
obtido apoio de uma ONG japonesa e do Banco do Brasil,26 tornando
a atividade interessante sob vrios pontos de vista.
A quarta gesto da Aremac voltou-se para a administrao da unidade
de conservao, em conjunto com a gesto do Ibama local. Presidida por um mergulhador de fundo, a associao afastou-se da Praia
Grande, alugou sua sede perto da sede do rgo governamental, e
cuida de licenas de turismo, fundeio de plataformas de petrleo e
outras embarcaes no Porto de Arraial do Cabo. Manejo de recursos
naturais renovveis em uma unidade de conservao? Nem pensar!
No se pode dizer que uma histria de sucesso. De fato, o associativismo em Arraial do Cabo j se encontrava desgastado h muito
tempo. A Colnia de Pescadores no conseguiu se estruturar de forma a representar os interesses dos pescadores locais. Houve outras
entidades, como a Associao Livre dos Pescadores de Arraial do
Cabo, fundada quando da cruzada de Frei Alfredo Schnuettgen, h a
Associao dos Pescadores da Praia Grande e outras entidades menores. A fuso de todas em torno da Colnia de Pesca fora tentada,
e a Aremac poderia ter cumprido este papel, em funo da gesto
compartilhada do espao de produo e reproduo social dos pescadores que uma Resex.
A descrio da trajetria do associativismo na regio de Corumbau/
BA permite destacar outros aspectos que a poltica das reservas extrativistas pode acionar. Devo destacar que esta Resex foi criada no
25

26

No se pode dizer que os pescadores de Arraial do Cabo se percebam enquanto classe, ou


que acreditem nos princpios de delegao poltica (KRADER, 1970). Apesar de representar
o maior contingente profissional da cidade, apenas um pescador j foi eleito vereador. Nas
eleies de 2000, um respeitado vigia da Praia Grande, filho de pescador tradicional do
Arraial do Cabo, que trabalha para vrias companhas, no teve mais do que 60 votos, mesmo
apoiado pela diretoria da Aremac. Nas eleies de 2004, o presidente da Aremac poca,
candidato pelo PFL, teve apenas 51 votos enquanto as propostas do presidente anterior,
candidato pelo PSDB, conquistaram 30 eleitores.
Este projeto foi alvo de vrias denncias e resultou na fisso da diretoria da Acrimac em
dois grupos. Um que teria se beneficiado indevidamente e o outro que ficara de fora.

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momento de promulgao da lei que criou o SNUC, e que por este


motivo experimentou os dois modelos da poltica praticamente de
forma concomitante.
Para apresentar as mudanas do SNUC de forma bastante simplificada,
basta lembrar que a centralidade da co-gesto com uma associao
da reserva saiu de cena. A gesto compartilhada passou a ser feita
em um Conselho Deliberativo formado por representantes dos atores locais interessados na unidade de conservao. De forma geral,
os pescadores perderam a centralidade na gesto. Por outro lado, o
aspecto organizativo ficou mais flexvel, e a Associao da Reserva
Extrativista de Corumbau Aremaco criada para ser a associao
de todos os pescadores da Resex perdeu este universo representativo,
passando a falar apenas pelos pescadores da Vila de Corumbau.
A alternativa adotada para garantir o protagonismo dos pescadores
na resex de Corumbau foi a indicao da construo de associaes
de pescadores por vilas e localidades em que eles se concentram.
Assim, em localidades do municpio de Prado/Ba foram criadas vrias
associaes, como em Cumuruxatiba, Barra do Cahy e Veleiro. No
municpio de Porto Seguro, a aldeia patax de Barra Velha construiu
sua entidade representativa dos interesses dos ndios pescadores e, em
Carava, uma associao de nativos ocupou o lugar da representao
dos pescadores locais.
A partir desse desenho que nos anos de 2000 a 2002 construiu-se
um Plano de Manejo consagrando a identidade extrativista para os
pescadores autorizados a pescar no interior da reserva e foram classificados em extrativista principal, secundrio e eventual, de acordo
com sua dependncia econmica do recurso marinho.
Tal identificao e clivagem do grupo beneficirio da Resex no se reproduziam na organizao das associaes locais. No ano de 2004 era
possvel identificar o seguinte panorama. Cumuruxatiba era, talvez,
a associao na qual a diretoria estivesse mais distante do conjunto
das preocupaes dos pescadores. Talvez a tenso que havia ocorrido
devido incluso de Cumuruxatiba nos limites da Resex no ano de
1999, fosse um indcio. De qualquer forma, dois elementos pareciam
ser centrais para a organizao local. Se a diretoria no mais acreditava na renda da pesca e apostava no turismo como fonte de renda
alternativa, e buscava garantir as condies de liberdade para o setor
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dentro da Resex, o grande contingente de pessoas envolvidas com


a atividade da pesca a empurrava na direo de abrir novas frentes.
Era do conhecimento da diretoria da associao os conflitos ocorridos
em Arraial do Cabo entre os operadores de turismo e a gesto da Resex, a cargo do Ibama. Durante um bom perodo toda a atividade de
turismo marinho em Arraial do Cabo teve de se subordinar aos interesses da pesca artesanal e dos pescadores. O limite foi a equiparao
da Resex de Arraial a um Parque para fins da cobrana de uma Taxa
de Visitao, como ocorre em vrias UCs, inclusive a de Abrolhos.
Em Barra do Cahy a associao local havia sido criada por um
pescador com circulao em vrias esferas da poltica local. Havia
sido protagonista de um assentamento em uma rea abandonada de
explorao de areia monaztica na dcada de 1950 e j havia sido
administrador regional da Vila de Cumuruxatiba. E, apesar de ter uma
viso de mundo bem diferente dos demais integrantes da Associao
dos Pescadores Artesanais e Amigos da Costa do Descobrimento,
sua atuao demonstrava total sintonia com os interesses coletivos
do grupo.
interessante notar a incluso da categoria amigos no nome da
entidade. Repetiu-se a estratgia adotada em Itaipu/RJ, quando da
fundao da Associao Livre dos Pescadores e Amigos da Praia de
Itaipu. Para um dos seus fundadores, alm da oposio s Colnias
de Pesca, consideradas por Frei Alfredo Schnuettgen como prises
dos pescadores, era necessrio que a nova entidade contasse com
a participao de pessoas no vinculadas pesca, os amigos que
poderiam fazer intermediaes e trazer benefcios.
Outro aspecto particular dessa associao foi sua recusa em adotar
um estatuto padro, conforme foi indicado pela direo da Resex,
reafirmando a pluralidade das vrias localidades expressas em suas
entidades em termos organizacionais. Um estatuto de uma associao
deve, alm de reproduzir exigncias legais padronizadas, refletir as
realidades dos grupos locais que se congregam na entidade.
O grupo local, entretanto, apresentava signos diacrticos em relao
aos demais grupos sociais da regio. Haviam perdido h algum tempo
o acesso livre ao mar, e estavam espalhados em uma rea rural na
qualidade de posseiros, meeiros etc. Por outro lado, manifestavam
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claramente o desejo de voltar a atividades pesqueiras, entendendo o


sistema natural local como um consrcio entre terra e mar, caracterstico dos grupos caiaras do litoral brasileiro.
Em outra localidade mais ao norte, Veleiro, podia-se encontrar quase todas as idiossincrasias da regio. A separao da representao
local da associao de Barra do Cahy parece ter sido acertada, pois
havia poucos paralelos entre os dois grupos. O mais evidente era o
afastamento da beira da praia e a nfase atual na renda do trabalho
assalariado/avulso nas fazendas ou da agricultura familiar. Talvez a
relao de dependncia dos grandes fazendeiros tambm as aproximasse. Mas acredito que as semelhanas terminassem por a.
As diferenas, entretanto, eram vrias. Em primeiro lugar, existiam
pelo menos em torno da Associao de Pescadores de Veleiro vrias
pessoas que se movimentam em torno da representao de grupos e de
interesses. Em outras palavras, h mais de uma liderana e, consequentemente, mais disputas. Tambm no se deve esquecer da presena
de uma Aldeia Tau ressurgida recentemente na regio, que poderia
ser reivindicada para permanncia no local, ou o estabelecimento
de outros territrios tradicionais que no os definidos pela Resex.
O grau de escolaridade da regio mais elevado e a proximidade
dos assentamentos e agrovilas do MST e as estradas facilitam uma
interao com um universo cognitivo mais amplo.
Foi o grupo que apresentou de forma mais clara suas necessidades
e aspiraes, bastante ancoradas em tradies e artes de pesca que
esto desaparecendo. Foi l que surgiu a ideia de um projeto para a
construo de novas embarcaes e foi rapidamente incorporada a
ideia de construo e uso coletivo destas.
Essa coeso aparente no existia em Corumbau. A vila em que tudo
comeara, em 1997, era, decerto, a que se encontrava mais afastada
da gesto da Resex. Alguns elementos contriburam para este quadro.
Uma anlise simplista poderia apontar a disputa entre lideranas locais, motivada, entre outras coisas, pela questo da sede da associao,
como responsvel pela fragmentao de um grupo cuja unio havia
conquistado a criao da Resex-Mar de Corumbau. Outros elementos
parecem ter contribudo bastante para a situao da poca.
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Em primeiro lugar, pode ser citada a mudana promovida pela promulgao da Lei do SNUC no papel da Aremaco. Esta associao
fora criada para ser a co-gestora da Resex com o Ibama no primeiro
momento, at se capacitar para exercer a gesto autnoma, por meio
do Contrato de Cesso de Uso da rea Resex. Seria no espao dessa
associao que os pescadores iriam construir o Plano de Utilizao, a
ser homologado e publicado no Dirio Oficial pelo Ibama. Mudanas
e atualizaes seriam discutidas e decididas neste espao, e ento
ecoadas para os rgos competentes.
No SNUC este espao foi ocupado por um Conselho Deliberativo,
no qual os extrativistas passaram a aparecer em conjunto com outras
organizaes da sociedade civil. Neste sentido, foram criadas as associaes de cada localidade, o que tambm aconteceu em Corumbau,
com a Associao dos Pescadores de Corumbau Apaco. Entretanto,
a balana poltica pendeu para a Aremaco, a nova associao, com
um desenho de representatividade semelhante aos das demais integrantes da representao dos pescadores no Conselho Deliberativo
no prosperou. A Aremaco ocupou o espao de uma associao local,
mesmo em desacordo com seu estatuto inicial e quadro de associados
pescadores de todas as localidades envolvidas com a resex.
O deslocamento da responsabilidade sobre a Resex rumou exclusivamente na direo do Ibama. Por outro lado, este s conseguiu se
fazer presente de forma cotidiana a partir de 2002. Como resultado
a parceria Ibama/Pescadores se desfez. Neste vazio, outros atores
ocuparam o espao de parceiros da Associao.
Mas no se deve perder de vista que esta a localidade mais prxima
do ncleo de um novo limite para a Terra Indgena TI Patax.
a que est mais estreitamente ligada a grandes empreendimentos
tursticos e por que no dizer pesqueiros. a que com mais clareza
enuncia sua condio de nativo no patax, mas que no se v
ameaada de expulso com a incluso de sua rea nos limites da TI
porque no tero problemas em reivindicar e ver reconhecida sua
identidade tnica patax.
Na Aldeia Barra Velha havia a melhor estratgia de representatividade
por interesse/afinidade dos participantes e seus representantes. Os
porta-vozes, as lideranas que representam os interesses indgenas
no se confundem com lideranas que cuidam do dia a dia da vida da
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aldeia. Isso fazia com que ocorresse um controle sobre a atuao dos
representantes de Barra Velha na Resex ao voltarem com as decises
das reunies do Conselho.
Alm disso, havia o desafio da dupla afetao do territrio: Unidade
de Conservao e Terra Indgena. O patamar que tinha de ser alcanado era o da conciliao entre prticas e formas de ao de rgos
governamentais to dspares, e tradicionalmente antagnicos, como
o Ibama e a Funai. A meta no era devolver ou introduzir nas aldeias
pataxs tcnicas sustentveis e produtivas de produtos agrcolas,
devia-se buscar incrementar a atividade pesqueira na Aldeia Barra
Velha em consonncia com as demais artes praticadas na Resex, desde
que esse fosse o desejo dos pescadores da aldeia, o que nem sempre
se expressava como verdadeiro.
E na localidade mais ao norte da Resex, a organizao dos pescadores
de Carava se dava na Associao de Nativos de Carava, a ANAC.
Uma associao numerosa, com mais votantes do que nas eleies de
2002. Entretanto, como integrante do Conselho Deliberativo da resex,
essa densidade poderia ser um problema. Explico. Era consenso que
s existiam poca cerca de 20 pescadores em Carava. Ou seja, a
associao que os representava, representava tambm um conjunto
seis vezes maior de no pescadores. Mas o que no quer dizer que
no obtinham renda, direta ou indiretamente do espao da Resex.
Mas no eram extrativistas marinhos. Poderiam at ser terrestres. Mas
definitivamente no eram, nem se reconheciam como pescadores, mas
eram nativos, ou tinham laos familiares com a pesca local.
O Conselho Deliberativo era formado por representantes dessas seis
entidades, rgos e entidades pblicas da regio, algumas organizaes no governamentais ambientalistas locais, em um desenho no
qual a maioria dos votos se concentrava nas mos dos pescadores.
Entretanto, no havia nenhuma instncia em que seus pontos de vistas
e decises fossem aferidos, construdos coletivamente. O que ocorria
na prtica era que nas votaes viam-se pescadores votando contra
pescadores acompanhados ou acompanhando rgos, entidades e
associaes no ligadas pesca.
O Conselho, apesar de operante, no se conformou com uma arena
pblica, quando muito um espao de referendo de decises que
eram tomadas em outros espaos e articulaes. Estar fora dessas
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articulaes significava estar fora do centro das decises. Quanto s


associaes locais, seu desenvolvimento, agregao ou desagregao
seguiu caminhos que nem sempre foi determinante para a reserva
extrativista.
4. O associativismo em uma trajetria amaznica
A partir de um dos ns da Figura 1, pode-se vislumbrar um outro
percurso para o associativismo. relevante destacar o movimento
particular no cenrio amaznico das formas de associao utilizadas
pelos grupos sociais denominadas comunidades. Se as considerarmos como originadas no movimento das Comunidades Eclesiais de
Base CEB , em toda sua historicidade, poderamos vincul-las s
demais CEB espalhadas pelo pas. Entretanto, acredito que algumas
particularidades do cenrio amaznico as tornam diferentes das demais e a generalizao do uso local do conceito como descritivo de
diversos grupos sociais distintos merece uma reflexo.
Em um panorama construdo para uma pesquisa do ProVrzea/Ibama27
ficou visvel que a atuao da Igreja Catlica, com a disseminao
do conceito das CEB, produziu cenrio frtil para o crescimento do
associativismo. De tato, no vimos dados que pudessem vincular
este sistema descentralizao poltico-administrativa nacional
mais recente. Os dados sugeriam o oposto. A matriz do oficialismo
reafirmava a presena do Estado, mesmo quando travestido de uma
ONG, uma Organizao da Sociedade de Interesse Pblico Oscip
ou uma Organizao Social OS.
No Alto Solimes duas classes de demarcao espacial eram empregadas: os pares Terra Indgena/Terra Civilizada e rea Rural/
rea Urbana. Os pequenos povoamentos rurais na maioria eram
referidos como comunidades. Sua constituio estava tanto referida a
27

Trata-se do Estudo Estratgico: Situao Socioeconmica diagnstico dos tipos de


assentamentos, demografia e atividades econmicas, realizado sob a coordenao de Deborah
Lima durante os anos de 2002 a 2004. As informaes que utilizo constam dos relatrios de
pesquisa assinalados, porm, assumo total responsabilidade pela compilao aqui apresentada.
A reflexo incorpora, tambm, as discusses nos seminrios de discusso do projeto e minha
prpria jornada de campo em Maus, no estado do Amazonas, e Monte Alegre, Prainha e
Soure, no estado do Par. As referncias so: Alto Solimes, Edna Alencar (2002); Tef,
Alvares e Coari, Delma P. Neves (2002); Itacoatiara, Parintins e Maus, Mariana Pantoja
(2002); Baixo Amazonas, municpios de Santarm, Monte Alegre, bidos, Alenquer, Curu,
Prainha e Oriximin, Eliane C. ODwyer (2003).

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um processo histrico vinculado s CEB quanto existncia de uma


organizao poltica voltada para a representao externa.
Na regio de Tef/AM, as comunidades eram vistas como um estgio mais desenvolvido de uma localidade. Este desenvolvimento
significava a construo de um estatuto, diretoria, sede e inscrio
no Cadastro Nacional de Pessoas Jurdicas CNPJ. Algumas congregaes comearam a se denominar comunidades, o que descolava
mais ainda o foco de legitimao do conceito o prprio grupo local
, de quando estava vinculado s CEB. Entra o Estado oficializando
a comunidade, travestida de associao.
Em Itacoatiara/AM apareceu uma nova gradao, alm da organizativa: a demogrfica. Uma comunidade seria formada por menos de 50
famlias. Da mesma forma que uma vila, ela teria escola, igreja e
centro social. Existiam tambm as associaes com maior poder
de fogo, pois eram de natureza estritamente econmica.
Parintins/AM mostrava a presena das igrejas evanglicas. Surgiram
os ncleos, em oposio s comunidades, que tambm fornecem
carteiras de pertencimento local. A emisso dessas carteiras podia
ser pela Igreja Catlica, pela Prefeitura ou pelas Igrejas Evanglicas.
Em Maus/AM foi explicitado que o objetivo das comunidades, tal
como o acesso a benefcios e o coordenador da comunidade, acabava por atuar mais na direo do poder pblico, do qual acabava
dependente. No estaria mais voltado para sua comunidade, de quem
deveria ter suporte, em ltima instncia.
Em vrios municpios do Par, a partir de Santarm em direo foz
do Rio Amazonas, tanto os Sindicatos de Trabalhadores Rurais STR
quanto as Colnias de Pesca eram utilizados como instrumentos de
intermediao com o Estado. Sempre para fins de obteno de direitos
ou vantagens. Tal arranjo fazia com que a direo dessas organizaes
exercesse seu poder discricionrio de tal forma que direitos eram
transformados em concesses. Ao cabo, construam novas redes de
clientelismo e patronagem.
Nessa regio, o conceito comunidade tambm representava um sucessor mais evoludo dos lugares e localidades. A classificao dos
grupos da regio que viviam na vrzea e na zona rural era: localidade,
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Arenas Publicas.indb 215

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

comunidade, retiro e colnia. A localidade no possuiria organizao


formal perante uma comunidade. O retiro corresponderia a uma localidade pequena, utilizada por pequenos perodos, como no vero.
Uma colnia seria a regio de moradia de um conjunto de lavradores
que se estabeleceram em terra firme.
O Projeto Administrao dos Recursos Pesqueiros do Mdio Amazonas: Estados do Par e Amazonas Projeto IARA possua uma
definio mais completa para uma comunidade. Esta seria o aglomerado humano que apresenta o uso comum de uma infraestrutura,
como, por exemplo, sede constituda pela edificao de uma capela,
escola e barraco comunitrio [...] e, ainda, h um campo de futebol para a prtica esportiva.28 O Ibama, para fins operacionais na
regio, definia comunidade como agrupamentos nos quais existem
estruturas de uso comum.
O associativismo amaznico seria um movimento que se reproduzia
tanto no espao rural quanto no espao urbano. Aceitava denominaes religiosas variadas, algumas construdas com matizes polticos
enquanto outras eram desprovidas de contedos ideolgicos ou partidrios. Pode-se dizer que sua crescente laicizao visava construir
uma via de intermediao com o mundo exterior, seja em um movimento de exteriorizao de bens e produtos, seja em um movimento
de interiorizao de recursos. So formas que esto voltadas para uma
intermediao com um mercado, de bens simblicos ou materiais.
J o associativismo vinculado s polticas ambientais tem algumas
caractersticas distintas. A grande maioria se constituiu em decorrncia de uma determinada demanda ou, como no caso das reservas
extrativistas, por determinao legal. De fato, as associaes so as
nicas interlocutoras autorizadas a se relacionar com o Estado ou seus
representantes. E devo deixar claro que essa exclusividade no foi conquistada pelos grupos sociais e sim concedida ou imposta pelo Estado.
Tais caractersticas mltiplas fizeram-me buscar uma reflexo terica
e emprica sobre o conceito, a partir da literatura que aborda esta
questo, tanto nos marcos da organizao do chamado Terceiro Setor
quanto em outras perspectivas, como a religiosa. As associaes, no
contexto do ambientalismo, so tratadas como intimamente ligadas
28

Projeto IARA apud ODwyer (2002, p.40).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

ao conceito de comunidade. Elas so vistas como representantes ou


so criadas para representar os interesses de uma comunidade.
Talvez no representem. O que conduz discusso para a noo de
representao, ou o papel do representante, do lder nesse sistema.
Vale a pena discutir um pouco essa figura, muitas vezes operando em
um sistema mimtico com sua associao.
5. O papel das associaes e suas lideranas nas relaes
com o estado brasileiro
Neste tpico apresento algumas discusses acerca dos papis de
representantes, porta-vozes, intermedirios, organizados ou no, em
suas relaes com o Estado Brasileiro ou em contextos em que um
grupo delega poderes a um de seus membros de falar pelo coletivo.
Esse movimento seria a base do modelo de Democracia Representativa
adotado em praticamente todos os pases contemporneos. De fato,
ao elegermos um deputado, um senador, um vereador, um prefeito,
delegamos parte de nosso poder a um representante, em um processo
que foi denominado delegao primria.29 Algumas, ou muitas
vezes, a quem delegamos poder exerce este poder por intermdio de
terceiros, inaugurando uma nova delegao a secundria sobre a
qual no temos ingerncia, mas no podemos deixar de reconhecer
nosso comprometimento com ela, pois est fundada na delegao
primria feita por ns.
Mas existem momentos em que est prevista a nossa participao em
um outro modelo: a democracia direta o que se evidencia nos plebiscitos, nas aes diretas de inconstitucionalidade, nas emendas populares.
Bem, em alguns desses eventos no participamos diretamente. Em
alguns casos, h outras organizaes que falam por ns: Ordem dos
Advogados do Brasil OAB , Associao Brasileira de Imprensa
ABI , Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNBB etc.
Ento, v-se que escolher um representante delegar poderes. Quanto
de poder? Todo o poder? S parte? At que ponto? Como se recupera
o poder transferido? Como controlar o mandato dos representantes?
Sempre que se escolhe um representante est se transferindo poder?
29

Krader (1970).

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Arenas Publicas.indb 217

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

No caso mais simples a delegao da fala vemos vrios sistemas


em que se escolhe um representante para falar por um coletivo.
aquele que sabe falar, erra pouco no portugus, mas nem sempre fala
para dentro do grupo. algum que fala para fora, para os outros
ouvirem, mas no tem poder de movimentar as prprias pessoas que
representa. s vezes o representante para fora, no o lder para
dentro. E isso um grande problema para o grupo, para o lder e,
dependendo do representante, para ele tambm.
Em geral, preciso ter clareza no momento da delegao, da escolha
do representante, o que est sendo delegado. O poder da fala, o poder
da deciso ou o da escolha em nome do grupo. Como ser exercido o
controle da representao, ou em outras palavras, como a delegao
poder ser retirada, ou como o poder ser recuperado pelo grupo?
O que complica mais ainda essa questo, que nas relaes com o
Estado surgiu um personagem, que se diz representante da sociedade
civil organizada, mas que no tem, ou teve, sempre este papel. As
associaes, os sindicatos ou as Organizaes No Governamentais
ONGs. Em vrios casos o lugar dessas associaes o inverso. Suas
lideranas no so os representantes, ou porta-vozes, dos coletivos
que representam. So os encarregados de transmitir as decises dos
governos s vezes benefcios aos seus representados. Este o
caso de alguns sindicatos, centrais sindicais e outras organizaes
de trabalhadores.
Vamos, ento, discutir um pouco o movimento que criou, ou refundou,
este personagem entre ns: o associativismo urbano. Sem recuar muito
na histria, podemos ver no Brasil do sculo XVIII alguns modelos
de associaes, que eram, poca, fechadas: as corporaes de ofcio
(ferreiros, teceles, carpinteiros etc.), cuja nica forma de acesso era
a escolha dos aprendizes pelos mestres de ofcio. No sculo seguinte
vimos nascer dois modelos de associaes: as irmandades religiosas e
as maonarias. As primeiras tinham formas de acesso livre dentro de
camadas sociais ou de devotos. As segundas seriam entidades fechadas,
cuja adeso somente se dava por meio de seus integrantes. No sculo
XX vimos florescer associaes obrigatrias para o acesso aos direitos
de cidadania: os sindicatos. A nica forma de acesso era a profisso,
o ramo de atividades o emprego formal. Mais adiante, vimos nascer
as associaes abertas, do tipo associao de moradores e amigos
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Arenas Publicas.indb 218

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

de bairros e localidades. Na virada do sculo nos deparamos com as


associaes voluntrias, como as Organizaes No Governamentais,
que tm como critrio de acesso identidades ou interesses comuns.
Nessa rpida viagem pudemos notar alguns pontos importantes: o
acesso s associaes foi ampliado; o interesse imediato foi diminudo; as opes de vnculo/pertencimento aumentaram. Podemos dizer
tambm que, no passado, pertencer a uma associao era a nica forma
de se obter direitos, benefcios ou vantagens para grupos fechados.
Hoje, as associaes voluntrias podem ser formas de reivindicar
direitos, benefcios e vantagens coletivas para grupos abertos (associaes comunitrias), formas de expressar opinies/sentimentos em
conjunto com outras pessoas que pensam/sentem da mesma forma
(ONGs ambientalistas); formas pelas quais quem detm o poder
(governos, grandes empresas, rgos de financiamento) se relaciona
com as pessoas/servios pblicos (Organizaes da Sociedade Civil
de Interesse Pblico OSCIP ou as Organizaes Sociais OS)
6 Um pouco de discusso
Do ponto de vista liberal, entre tantas instituies caractersticas
das formas de sociabilidade do capitalismo tardio, as comunidades
amaznicas, e outras, podem ser pensadas como uma modalidade
de expresso de Associaes Voluntrias AV . Em determinada
medida, possuem os mesmos fundamentos das ONGs e, independentemente de sua denominao, as ONGs so descritas no Brasil
como estruturas capazes de viabilizar a afirmao de direitos legais
e morais por parte de indivduos independentes.30
Apesar da f daqueles que vem no associativismo um veculo para
a construo de uma cidadania planetria ou como um instrumento
capaz de enfrentar a matriz patriarcal, hierrquica e corporativa da
cultura brasileira,31 a anlise da bibliografia internacional e o acompanhamento da execuo de algumas polticas pblicas, sugerem
outras possibilidades. Destaco que no relaciono o associativismo ao
processo de descentralizao poltica realizado no Brasil, ao longo da
dcada passada, pois tais mecanismos podem ser acionados de forma
independente, mesmo quando aparecem em conjunto.
30
31

Fernandes (1995, p.23).


Ibidem; Moouah (1995, p.37).

219

Arenas Publicas.indb 219

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

Argumenta-se que as associaes representam o espao de uma


cidadania compartilhada. Seria um locus de realizao da autonomia pessoal. Dessa forma, a construo de uma identidade comum
potencializaria a consecuo de determinados objetivos comuns.32
Nesse sentido, posso pensar em grupos de Hip-Hop, Rap, e outras
manifestaes artsticas tnicas, como o grupo que se rene em torno da Capoeira Angola, que busca explicitamente construir novas
formas de sociabilidade de viver juntos. Entretanto, a construo da
identidade comum matizada de forma distinta pelos integrantes do
grupo, sejam eles afrodescendentes brasileiros ou norte-americanos.
No Brasil, o mestre fundador do movimento um bedel de uma escola pblica soteropolitana, Mestre Pastinha. Nos Estados Unidos,
as razes do movimento tiveram de ser deslocadas para a frica, e
Mestre Pastinha perdeu sua posio de fundador de um movimento,
para ser apenas um elo de uma cadeia que volta s origens africanas.
Em outra dimenso, vemos que as associaes, na medida em que
crescem cada vez mais, estratificam a contribuio de seus integrantes, mantendo a autonomia pessoal a um grupo restrito, como ocorre
em vrias organizaes. Mesmo quando no esto imbricadas em
processos de manipulao ideolgica, ou de dependncia organizacional, pode-se dizer que a autonomia pessoal que o compromisso
associativo proporciona no um bem pblico em si mesmo (idem).
O segundo argumento aponta as associaes como um espao que potencializa os vnculos de reciprocidade, sociabilidade e solidariedade
associativas (idem). Entretanto, o que se v com mais frequncia, so
organizaes que reproduzem um sistema de relaes hierrquicas,
que seguem princpios de filiao, fidelidade, cumplicidade, como
sindicatos e at ONGs.
Nesse universo, o tempo da poltica33 se reproduz em espaos de
poltica, entrelaando faccionalismo com parentesco, fidelidades com
ao conjunta, em um universo poltico em que no h apenas interesses
em jogo. Vises de mundo, ideologias, utopias, paixes so acionadas
com pouca reflexividade. Sair de uma ONG para uma outra , na prtica, quase como mudar de time de futebol: uma traio sem perdo.

32
33

Cefa (2002, p.95).


Heredia (1996); Palmeira (1996).

220

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Como um todo, esses vnculos, quando reforados, no representam


um aumento de experincia pblica para seus membros e sua ao
se dirije em direo a bens pblicos, ou coletivos. Na prtica, o processo de construo dessas associaes privilegia a identificao e a
formao de lderes. Faz com que se construam representantes que
se especializam em falar para fora, aprendam um novo idioma e
percam suas referncias comunicativas, para dentro. Em casos limites,
vemos representantes que no mais representam os interesses de seus
coletivos de origem, mas de seus prprios interesses, ou de outros
crculos externos associao.34
H, tambm, o argumento de que so espaos de produo e acumulao de capital social, por meio das relaes de interao face a face
e relaes de reciprocidade horizontais que propiciam um crculo
virtuoso que, por sua vez, favorece o fortalecimento do compromisso
cvico.35 H inmeros argumentos positivos ou contrrios a esta tese.
No vi processos associativos verdadeiramente horizontais. Na grande
maioria das vezes, o que se verifica um processo associativo que
visa a facilitar as relaes com o Estado, com outra ONG ou agilizar
o acesso ao crdito ou ao mercado.
Talvez o sucesso atual de algumas associaes, ou a chave de seu
fracasso no futuro sejam as relaes construdas por seus dirigentes
com os gestores pblicos, que canalizam recursos para a rea de atuao da entidade. Muitas vezes so relaes construdas sob o signo
do projetismo36 que transformaram relaes sociais em clusulas,
monetarizam o tempo e criam dependncia e no autonomia.
Um outro aspecto do associativismo diz respeito sua possibilidade
de produzir, traduzir, elaborar e fazer circular informaes em um
universo mais amplo.37 O contato com os representantes segue padres
particulares. Hoje no se pode pensar em fazer uma reunio com
vrias entidades sem a presena de um facilitador, sem tcnicas
de reunio de grupo que, inicialmente, no so dominadas pelos
participantes, a no ser pelo facilitador. Com o tempo, as relaes
dos representantes dos grupos locais com o universo externo, acaba
por se conformar a este modelo. Qualquer outra forma de contato no
34
35
36
37

Bourdieu (1998).
Putnam (1998).
Pareschi (2002).
Cefa (2002, p.98-99).

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autorizada, ou tem valor menor do que aquelas que cumpriram os


novos rituais de ratificao da assimetria de poder.
Nesse sentido poderiam ser pensadas como escolas de democracia
deliberativa.38 Nestes espaos, o trabalho de formao poltica e os
espaos de tomada de deciso, quando ocorrem, poderiam despertar
um sentido crtico, desenvolver estratgias argumentativas que seriam
formadas por consensos de interseo.39 Entretanto, o universo das
associaes aqui descritas mostra dois sistemas distintos, no qual
quando houve consenso, ou ele no foi construdo em uma interseo de trajetrias distintas ou no foi valorizado, nem interna, nem
externamente. Como espaos de formao poltica, as associaes
comunitrias revelam-se um palco para a disseminao de ideologias
e vises de mundo externas aos grupos e o florescimento de processos
de colonizao de coraes e mentes.
De fato, as assembleias desde o movimento sindical at o Congresso
Nacional constituem-se em espaos em que o exerccio da fala est
concentrado nos lderes ou nos formadores de opinio. Como enunciados performticos, os atos de instituio tm sua eficcia vinculada a
uma instituio capaz de definir as condies para que a magia das
palavras possa operar.40 Em vrios casos a entidade que responsvel
pela garantia da eficcia mgica um coletivo que no corresponde
nem ao indivduo, nem associao e, muito menos, ao Estado. So
grupos internos, que se formam por meio de identificaes diversas,
mas que acaba por ser a base do movimento e o maior responsvel
pelo sucesso ou insucesso de um ao coletiva.
Outra caracterstica sugerida para as associaes modernas diz
respeito competncia cvica e inculcao de valores cvicos que
proporcionam.41 No tenho elementos para julgar se tais princpios
so verdadeiros e inerentes ao associativismo. Alm de questes no
resolvidas acerca das tenses entre o individualismo e o coletivismo,42
em uma sociedade na qual a cultura cvica no partilhada com sentidos comuns, fica a pergunta sobre qual o sentido da competncia a
ser adquirida e que valores sero inculcados.
38
39
40
41
42

Cohen apud Cefa (2002, p.100).


Ricoeur apud Cefa, ibidem.
Bourdieu (1998).
Rosenblum (1998) apud Cefa (2002).
Ibidem, p.103.

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Como espaos de formao poltica, as associaes comunitrias


revelam-se um palco para a disseminao de ideologias e vises de
mundo externas aos grupos e processos de colonizao. O ideal de
educao ambiental a mudana de atitudes e valores na qual
no h preocupao em conhecer quais atitudes e valores eram praticados. Toma-se por garantido que os novos so superiores e, portanto,
vlidos para inculcao nos grupos locais. Aprende-se muito mais
conceitos modernos, como desenvolvimento sustentvel, futuras
geraes, do que sobre sua posio concreta no mundo contemporneo, que escolhas podem fazer e quais so as consequncias que
podem advir de cada deciso.
Seus espaos de tomada de deciso, como as assembleias de pescadores que elaboram o Plano de Utilizao da Resex, acabaram sendo
esvaziados. Foram duplamente atacados. Por um lado, o saber local
ficou subsumido ao saber cientfico, como vimos no Captulo 1, por
outro, intrpretes do processo questionaram o aspecto democrtico
de tais assembleias.43
O argumento utilizado foi que nessas assembleias a voz corrente era a
dos mestres de pescaria e aos demais companheiros restava acompanhar os mestres nas votaes. A crtica parece vlida, pois corresponde
a falas de alguns pescadores, mas, por outro lado, descreve os personagens centrais das assembleias dos pescadores. Entretanto, uma
observao mais atenta dos espaos da poltica, entre ns, e as formas
de sociabilidade entre os pescadores, poderiam validar as assembleias
como espaos legtimos de tomada de deciso e os seus resultados.
Como enunciados performticos, os atos de instituio tm sua eficcia vinculada a uma instituio capaz de definir as condies para
que a magia das palavras possa operar.44 No caso dos pescadores de
Arraial do Cabo, a instituio responsvel pela garantia da eficcia
mgica a companha e no a Associao, o Ibama, a Colnia, o pescador individual. E, em uma companha, seja em um barco a motor
com equipamentos modernos, como um sonar, ou em uma canoa a
remo sendo orientada por um vigia no alto de um morro, a voz do
mestre a voz do sucesso ou do insucesso, da segurana ou do risco,
da continuidade dos companheiros de uma pescaria.
43
44

Silva (2004).
Bourdieu (1998).

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Como instncias concretas, as associaes tambm possuem uma


historicidade, enquanto processo. Alm de no serem estruturas
recentes, no ordenamento social ocidental, o perfil das associaes
mudou bastante ao longo desses ltimos sculos. Utilizarei dois modelos para efeito de anlise.
Na Finlndia, por exemplo, as primeiras instituies desse tipo foram
criadas no seio de classes abastadas, como um mecanismo de afirmao
da prpria classe. J ao final do sculo XIX, as associaes finlandesas
haviam incorporado o cidado comum e eram dirigidas por princpios
de igualdade liberais. A virada do sculo testemunhou o crescimento
das caractersticas classistas destas organizaes, propiciando a classificao das redes destas entidades em campos polticos de direita ou
de esquerda e, ao longo do sculo XX, seu carter foi cristalizando-se
como espao de representao de interesses coletivos.45
Em consequncia desse processo, as AV eram o mecanismo central da
mediao entre a sociedade civil e o sistema poltico. Os limites entre
o Estado e a sociedade civil eram dados por essas AV. Nesse caso, o
Estado finlands estava construdo de forma implcita como um dos
componentes do modelo ideal local de associao. Os ativistas das
associaes confiavam mais nas instituies polticas do que a mdia
da populao confiava no Parlamento e na Igreja locii por excelncia
da democracia burguesa e da sociedade civil. Em seguida, outras instituies estatais, tais como universidades, autoridades arrecadadoras e
fiscalizadoras, tribunais e a polcia. Jornais, revistas, rdio e televiso
eram menos confiveis, aos ativistas, em relao ao resto da populao.
Os finlandeses pareciam confiar mais em instituies que estavam
vinculadas ao Estado ou semivinculadas, provavelmente porque estas
instituies estiveram conectadas s atitudes positivas do Estado de
Bem Estar Social Finlands. Os movimentos sociais finlandeses foram
tradicionalmente centrados no Estado e orientados para ele. Portanto,
construdos de forma centralizada (idem).
No Brasil, os estudos histricos de associaes voluntrias seguiriam
em grande parte esse modelo, somente at o incio do sculo XX.
At o Imprio, as associaes voluntrias, como as maonarias e as
irmandades, ajudavam a preservar o Estado patrimonialista, herana
45

Este autor revela que entre os pases nrdicos o ndice de filiao s AV era de 90% na
Sucia, 89% na Noruega e 77% na Finlndia. Cf Siisiinen (1999).

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do colonialismo portugus. Algumas Mtuas, como a de alfaiates


em Niteri/RJ, deram incio a processos de proteo social, mediante
agrupamentos corporativos.
No Imprio, surgiram outras formas de associao (no to voluntrias), como as Capatazias, institudas em 1849, como forma de
organizar os pescadores artesanais da costa brasileira, vinculadas
s Capitanias dos Portos, criadas no ano anterior. O vnculo a tais
capatazias tornava os pescadores fora reserva da Marinha Brasileira,
correspondendo a uma forma alternativa de servio militar obrigatrio.
Na Primeira Repblica as Capatazias foram transformadas, a partir
de 1912,46 nas Colnias de Pesca. Na dcada de 1920, estas foram
multiplicadas ao longo de todo o litoral, por meio da misso colonizadora de um oficial da Marinha, o Capito Villar. A Marinha, a
quem as Colnias estavam vinculadas,47 reduziu os pescadores a sua
fora reserva, em suas novas estruturas que foram, em sua maioria,
lideradas por um suboficial aposentado. Entretanto, as Colnias de
Pesca foram, segundo seu idealizador, a obra mais genuinamente
republicana realizada pela Repblica.48
A revoluo de 30 e o governo Vargas buscaram eliminar o patrimonialismo tradicional da herana ibrico-lusitana, ao qual a Primeira
Repblica somara o fisiologismo gerado pela poltica dos governadores. Surgira a primeira das gramticas pela qual o Estado brasileiro
fala com a sociedade: o clientelismo.49 No Estado Novo, o fim da
Poltica dos Governadores deu lugar ao centralismo federativo e o
Estado Patrimonial cedeu lugar ao Estado Corporativo. Os estamentos
foram estatizados, j no bastavam as ordenaes para o controle
da ordem. Era necessrio que o amortecimento dos conflitos entre o
Capital insurgente e a mo de obra assalariada ressurgente passasse a
ser feito no s pelo, mas dentro do Estado. Entretanto, reconhecendo
a assimetria entre esses polos, o Estado Brasileiro criou uma Justia
do Trabalho. O Contrato de Trabalho no um instrumento entre cidados iguais, mas representa um pacto entre representantes de estratos
46
47

48
49

Lei 2.544/12.
Desde o sculo XIX as relaes dos pescadores artesanais com o Estado so vinculadas,
alternativamente, ao Ministrio da Marinha e ao Ministrio da Agricultura. Atualmente
esto divididas entre o Ministrio da Agricultura e a Secretaria Especial de Aquicultura e
Pesca SEAP.
Villar (1931, p.16).
Nunes (1997, p.34).

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distintos, no s econmica, mas tambm social e politicamente. A


Carteira de Trabalho no apenas um documento de identidade, mas:
pelos lanamentos que recebe, configura a histria de uma vida. Quem a examinar, logo ver
se o portador um temperamento aquietado ou
verstil; se ama a profisso escolhida ou ainda
no encontrou a prpria vocao; se andou de
fbrica em fbrica, com uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo
a escala profissional. Pode ser um padro de
honra. Pode ser uma advertncia. (A. Marcondes Filho, Carteira de Trabalho.)

Na continuao do governo Vargas e de seu esforo em construir uma


identidade verdadeiramente nacional, construram-se mais duas expresses de poder alm do corporativismo: o insulamento burocrtico
e o universalismo de procedimentos, ambos pensados para substituir
o clientelismo.
O insulamento burocrtico correspondeu a uma transformao e
elevao do estamento burocrtico, fragmentado no nvel estadual
pela Repblica Velha. Nos termos de Edson Nunes, o insulamento
burocrtico o processo de proteo do ncleo tcnico do Estado
contra a interferncia oriunda do pblico ou de outras organizaes
intermedirias.50 A universalizao de procedimentos correspondeu
fase final da reforma administrativa realizada, cujo componente
modernizante, a partir da construo de um domnio pblico, seria o
mais importante. Esta se constituiu em um conjunto de normas que
poderiam ser formalmente utilizadas por todos os indivduos da
polity, ou a eles aplicadas, ao elegerem representantes, protegerem-se
contra abusos de poder pelo Estado, testarem o poder das instituies
formais e fazerem demandas ao estado.51
Apesar de todas as dificuldades, houve modificaes nos mecanismos
de sustentao do poder das elites naquele perodo. No ocorria uma
dominao patrimonialista, na qual o poder nascia da propriedade
de todos os bens e do direito desapropriao de todas as rendas.
Houve uma formalizao crescente do relacionamento de agncias
50
51

Nunes (1997, p.34).


Ibidem, p.23.

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estatais com os grupos de interesses afetados por suas decises.52 As


instituies tpicas deste perodo so as Caixas de Peclio e Penses
embries do sistema previdencirio universal de hoje e as unidades
do Sindicalismo de Estado. As caractersticas deste sindicalismo so:
1) uma estrutura que limita a prtica sindical; 2) funo desorganizadora das classes trabalhadoras; 3) dominao ideolgica, por meio da
figura do sindicato oficial; 4) tutela por parte do Estado; e 5) reflexo
de uma ideologia populista.53
A dmarche da institucionalizao da vida poltica e social brasileira
tambm pode ser acompanhada a partir da definio do conceito de
cidadania regulada, resultado do processo corporativista iniciado na
dcada de 1930. Seu pice corresponde explicitao de um hbrido
institucional brasileiro, que se caracteriza pela associao de uma
morfologia polirquica, excessivamente legisladora e regulatria, a
um hobbesianismo social pr-participatrio e estatofbico.54
O conceito de hbrido institucional corresponde a um modelo de
organizao poltica que percorreu o eixo da participao e, posteriormente, o da liberalizao, e chega ao estgio polirquico. Entretanto,
nesse estgio, outros componentes fazem com que o output das instituies liberais desenvolva-se no sentido de uma ultra-regulao,
na qual o mercado, ou a sociedade, tem pouca autonomia, diante do
oficialismo estatal. O comportamento dos elementos societrios, tomados individualmente, tem caractersticas de ultra-maximizao.
Um estado de natureza, anterior a qualquer contrato social, anterior
prpria vida em sociedade.55
Podemos pensar no cidado do hbrido institucional como um Homem Econmico Irracional, cuja busca pela maximizao de seus
ganhos pode colocar em risco a si prprio, ou as instituies sociais.
De qualquer forma, o hbrido institucional brasileiro poderia ser
enunciado como um modelo no qual um lado da sociedade ocupa-se
em regular a vida do outro, enquanto este se ocupa em no respeitar
os regulamentos elaborados pelo primeiro.
52
53
54
55

Diniz (1991, p.120).


Boito (1991, p.12-13).
Santos (1994, p.79, grifos do autor).
Santos (1994).

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No vento da redemocratizao da dcada de 1980, e dando continuidade resistncia que a Igreja Catlica iniciara no campo, o ideal
associativo e representativo foi responsvel pela criao de inmeras
associaes de moradores nas principais capitais. Elas atuavam como
atores polticos efetivos no cenrio democrtico em reconstruo.56
Entretanto, foram rapidamente absorvidas pela lgica verticalizante
da memria do Estado Corporativo, ou do Oficialismo, e passaram
a se estruturar em associaes locais, federaes, confederaes.
Alguns de seus membros ingressaram no universo poltico eleitoral,
por exemplo, um deles chegou a ser eleito Vice-Prefeito, na cidade
do Rio de Janeiro.57 Pouco depois, o movimento segmentou-se. Um
grupo de associaes de moradores passou a representar as classes
mdias urbanas e outro, os grupos de mais baixa renda, que buscaram
manter uma estrutura federativa.
A dcada de 1990, sob as diretrizes da nova Constituio Federal,
foi palco de exploso de associaes, dos mais variados tipos. Os
servidores pblicos oficializaram suas organizaes no formato sindical, e suas lideranas foram beneficiadas pelo papel dos sindicatos
oficiais. Foram habilitadas a falar com o Estado em nome de sua
categoria, no apenas dos associados, ou com delegaes especficas. ONGs nasceram, ocupando novos espaos, notadamente na
rea ambiental e tnica. Vrias polticas pblicas, como o Programa
Comunidade Solidria, as Reservas Extrativistas, a titulao de terras
de remanescentes de quilombos, passaram a exigir a existncia de
uma associao local para a concesso dos benefcios dessas polticas,
vistos como coletivos.
Outra perspectiva de anlise sobre as ONGs d conta de sua vinculao com modelos de organizao social que foram criados nos pases
centrais, em funo de desenvolvimentos sociais e polticos, que no
faziam parte de nossa histria.58 Outras anlises mais rigorosas j foram
feitas, identificando-as como executoras de uma funo de controle e
mistificao de ideologias. O nmero de ONGs no Terceiro Mundo

56
57

58

Pelo menos no Estado do Rio de Janeiro.


J Resende era Presidente da Associao de Moradores da Tijuca, depois da federao
estadual Famerj , e foi eleito na chapa com Saturnino Braga, pelo PDT.
No posso deixar de pensar que, como j foi dito, nunca tivemos um Estado de Bem Estar
Social, mas tentamos viver um estgio posterior a ele.

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foi estimado em cerca de 50.000, que gerenciam mais de US$ 10 bilhes ao ano,59 fora os recursos repassados pelos governos nacionais.
O crescimento acelerado desse tipo de associao, no ltimo quarto
do sculo passado tanto pode ser interpretado como uma reao a governos totalitrios, em vrios cantos do mundo, quanto como um freio
nos movimentos sociais radicais. Os canalizou para formatos mais
adequados ao controle, por parte das elites locais e transnacionais. Esta
aparente contradio seguiu, entretanto, uma linha ideolgica clara.60
Organizaes humanitrias e de defesa de direitos humanos o fazem
localmente. Raramente buscam associar prticas violentas nacionais a
mecanismos internacionais, como agncias de fomento. Muitas vezes
esto associados a projetos de desenvolvimento e expanso do livre
mercado. Outras associaes se voltaram para conceitos de autoajuda
e auto-organizao, no sentido de superao de desigualdades sociais.
O modelo no foi questionado, mesmo que novas identidades tivessem
de ser construdas.
As ONGs tambm corresponderam a um setor que absorvia a mo de
obra formada nas universidades, com origem nas classes dominantes e que no encontravam espao no mercado de trabalho oficial.61
Entretanto, no Brasil, a marca dessas relaes de trabalho a informalidade, criando no futuro um grande dficit para as polticas pblicas
de seguridade social e/ou abrindo mercado para os fundos de penso
e assistncia sade privados.
Outra dimenso relevante das ONGs diz respeito a seu financiamento. A
ideia de um terceiro setor local, organizando-se e encetando uma ao
coletiva em direo aos seus objetivos, no encontra eco na realidade.
Vemos como modelo geral um sistema de financiamento que estatal
na maioria dos casos estados nacionais ou estrangeiros. Quando no
estatal, sua fonte so recursos internacionais que tiveram origem em
renncia fiscal em seus pases sede. Vrios movimentos esto em ao:
culpa, solidariedade, ou filantropia. Seriam como se estivssemos em
uma etapa do retribuir, sem ter muito bem definido o que foi dado.
Nas linhas de uma nova forma de colonialismo, as prioridades de
formas de atuao so definidas nos pases centrais e posteriormen59
60
61

Petras; Veltmeyer (2003, p.128).


Ibidem, p.130.
Ibidem, p.131.

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

te vendidas s comunidades locais, mediante ONGs parceiras.


ONGs priorizam projetos, no movimentos. Mobilizam pessoas para
produzirem s margens do sistema, no para disputar o controle dos
meios de produo e riqueza.62
Nessa linha de anlise, so identificados efeitos de reduo do descontentamento social, que ajustes estruturais impostos pelas agncias de
fomento multilaterais, como Banco Interamericano para o Desenvolvimento BID , Banco Mundial, Programa das Naes Unidas para
o Desenvolvimento PNUD , a agncia de fomento internacional
inglesa DIFD , o banco alemo para apoio internacional KFW
, entre outros, impem, para a concesso de financiamentos. O foco
muitas vezes deslocado para pequenos projetos, de alcance local,
que muitas vezes acabam por despolitizar movimentos sociais locais.63
Fao uma ligao com o conceito de Projetismo, j discutido.
Estas organizaes e suas lideranas crescem de importncia na
medida em que controlam parcelas cada vez mais significativas dos
movimentos sociais. O comportamento das ONGs frente chegada
de outras ONGs semelhante s empresas capitalistas diante de um
concorrente, por fatias de mercado. No so considerados os efeitos
positivos que um maior leque de aes poderia trazer aos grupos,
ambiente e recursos naturais. O que ser considerado a competio
pelos recursos pblicos e privados passveis de serem captados, para
a perpetuao dos problemas sociais e ambientais.
O conceito de sociedade civil seria desprovido do sentido virtuoso
que lhe assegurado. De fato, mesmo incorporando um iderio positivo, ou de esquerda, ele ainda , na maioria dos casos, exgeno e
incompleto. Empoderamento, igualdade de gnero, desenvolvimento
sustentvel so conceitos que acabam por servir como um arcabouo
de colaborao com rgos e agncias do Estado e dos financiadores.
Esse iderio to atrativo que proliferam atores representantes de uma
poltica pessoal. Atores privados que participam de dispositivos e
atuao pblica, provocando a fluidez nas fronteiras entre uma esfera e
outra.64 Tornadas frgeis, as fronteiras permitem tambm o movimento
inverso em uma estrutura de poltica pessoal: atores pblicos que se
62
63
64

Petras; Veltmeyer (2003, p.133).


Ibidem.
Cefa (2002, p.93).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

movimentam de acordo com seus interesses e ideologias particulares.65


Assim que proliferam os ING.
Quem ainda no conheceu uma ONG, no Brasil, que formada por
apenas uma pessoa, ou s uma fala, age, decide, entretanto, no em
seu nome, mas em nome de sua associao. Nesses casos, as relaes face a face que poderiam construir boas polticas no interior
das organizaes66 s acontecem entre ego e seu alter ego, o que
certamente dificulta alcanar o objetivo desejado.
Uma caracterstica marcante entre os ING a rapidez com que se
movem nos cenrios de conflito, como mudam as formas como
significam as disputas. Se for possvel traar as trajetrias de uma
determinada organizao e posicion-la dentro de um contexto de
ao inteligvel, um ING dificilmente permitir que esta construo
seja feita. O que interessa a quem detm o poder, pois a cooptao
fica mais fcil e seu mecanismo mais invisvel.
Seria somente a sociedade que abrigaria esses representantes? certo
que no. Entre os representantes do Estado existe o que chamo de IG,
os Indivduos Governamentais. So funcionrios pblicos efetivos
ou no que no exerccio de sua funo pblica pautam-se no nas
polticas e diretrizes do rgo ou do governo, mas em seus interesses
e ideologias prprias.
Por outros motivos distintos daqueles que descrevi em outro texto,67
os IGs no esto, nem a servio do Estado e nem do Pblico. Esto a
servio de si mesmos, de suas crenas, ideias, motivaes. O que poderia
no ser um problema, dependendo da instituio e da funo. Em uma
universidade, por exemplo, espera-se que o ensino seja o mais plural
possvel. Esta a diretriz desse rgo e o que a sociedade espera dele.
Trata-se de discutir a prpria ideia de cidadania. O exerccio dos
trs componentes clssicos de cidadania, direitos legais, polticos e
sociais68 definem o cidado? Em nossa sociedade, os direitos legais
explicitam uma igualdade que negada por meio de um princpio
65

66
67
68

No me refiro acerca de situaes de corrupo ou de no cumprimento de dispositivos legais


(incria) por parte de servidores pblicos, onde estes estariam auferindo benefcios materiais
de alguma forma. Os benefcios neste sistema so simblicos e referem-se a posturas e aes
que dizem respeito a ideologias particulares.
Putnam (1998).
Lobo (1998).
Marshall (1964).

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

hierrquico holista.69 Isso quer dizer que h uma organizao que


discrimina segmentos em termos de acesso a direitos, justia ou
informao para toda a sociedade. Os segmentos superiores constroem
filtros que inibem a mobilidade social e o acesso a direitos universalizados. Por tudo isto nossa sociedade no deve ser classificada como
uma sociedade igualitria e individualista.
O acesso ao Meio Ambiente exemplar. O direito de todos condiciona direitos diferenciados de acesso e benefcios. Em uma unidade
de proteo integral, pesquisadores, turistas e, por conseguinte,
operadores de turismo tm acesso franqueado. Os grupos tradicionais que l habitavam, no.
O acesso aos direitos sociais, sem que os dois outros estejam universalizados, no pode ser realizado de forma plena. Acabam por ficar
alm de direitos passivos, tornam-se direitos tutelados, ou seu conjunto acaba por reproduzir continuamente uma cidadania tutelada.70
Essa tutela, atualizada pelo Estado e seus representantes, apara outros
setores da vida nacional e ultrapassa as dimenses da concesso ou
obteno de direitos. Potencializada por conceitos como o desenvolvimento sustentvel, coloniza pensamentos, padroniza aes e constri
seres mimticos sem a autonomia dos modelos originais.71
Em determinada medida o comportamento das ONGs so mimticos
em relao aos do Estado. Mas o Estado tambm construiu um duplo
mimtico, as Organizaes Sociais OS e em uma proposta mais
atual, as Fundaes Estatais de Direito Privado FEDP. Usando uma
imagem que une a sociedade civil e o Estado, pode-se dizer que as
ONGs so uma forma de a sociedade civil se apropriar do poder do
Estado. Em contrapartida, quando o Estado deseja ter a liberdade da
sociedade civil, ele cria uma OS, ou uma FEDP. Com as particularidades de cada uma, so verses cujo poder bem menor do que seus
correspondentes originais, mas cumprem papeis que os originais no
poderiam, ou no desejam, desempenhar.
Em ambas, um aspecto desejado pelo liberalismo encontrou um campo
frtil: o da flexibilizao das relaes de trabalho. Considerado uma
herana indesejvel do Estado de Bem Estar, os direitos trabalhistas,
principalmente aqueles destinados aos direitos de seguridade social,
69
70
71

Kant de Lima (2000).


Santos (1994).
Taussig (1993).

232

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

movimentam recursos cobiados pelo mercado. Planos privados de


sade, proteo contra acidentes de trabalho, planos de previdncia privada buscam aumentar sua base de adeses no necessariamente pela
oferta de servios diferenciados. Esse setor pretende a total desregulamentao das relaes de trabalho, e se assenhorear dos recursos que,
hoje, alimentam um sistema de seguridade social pblico e universal.
7. Algumas concluses
A discusso aqui desenvolvida aponta para aspectos caractersticos do
desenvolvimento do associativismo em nossa sociedade. Analisado
em uma perspectiva de longo prazo com uma lente de amplo espectro,
ele apresenta aspectos includentes e ampliados e j foi vinculado ao
aumento da participao democrtica no Brasil contemporneo.72 Se
trocarmos a lente por uma que nos aproxime das associaes e seu
funcionamento, poderemos chegar a concluses bastante distintas.
A primeira refutao acerca do carter voluntrio de grande parte do
associativismo contemporneo, ou de seu significado como potencializador da livre expresso de seus participantes. O associativismo que
se instalou entre ns nunca foi livre, construdo de baixo para cima.
Ele no representou uma caixa de ressonncia de vozes concordantes
em seu dilogo com o Governo, como nos sugere a interpretao
sobre o associativismo nrdico. As associaes, compulsrias como
as Colnias de Pesca, ou livres, como as associaes de pescadores,
cada uma em seu momento pretendeu libertar os pescadores do julgo
do Estado, apenas estabelecendo uma outra forma de cerceamento da
expresso e da comunicao.
Mesmo em uma poltica pblica que nasceu de um movimento social
emancipador como as reservas extrativistas conquistadas pelos seringueiros, vimos que o carter compulsrio do associativismo tanto
constri redes institucionalizadas que so utilizadas para conformar os
grupos locais a modelos pr-concebidos em algum outro tempo e lugar
quanto reproduzem interesses particulares de lideranas eventuais.
Conceitos exticos como desenvolvimentos sustentvel, empoderamento, gesto participativa, stakeholders, so assimilados sem
nenhum grau de conscincia crtica. Nada mais significativo do que
a fala de uma liderana da Resex de Corumbau sobre o desenvolvimento de um projeto na resex: Vocs cobram a organizao do
72

Kerbauy (2004).

233

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

pescador. Mas vocs, consultores, ONGs, Ibama chegam aqui tudo


desorganizado. Cada um fala uma coisa. Acho que vocs deviam se
organizar primeiro, depois vir cobrar da gente.
No toa que os exemplos constantes do The World Bank Participation Sourcebook so de pases do terceiro e quarto mundos: Yemem,
Egito, Brasil, Colmbia, Nigria, Benin, Paquisto etc. Ou para o primeiro mundo no h necessidade de um manual sobre participao,
ou no h experincias exitosas de participao. Mesmo quando no
tempo essas experincias no tenham sido to bem-sucedidas como
seus autores pretendiam.73
De fato, acredito que seja esse papel inculcador de valores e princpios
a sntese do associativismo que praticado contemporaneamente entre
ns. Como as redues jusuticas de nossa colonizao, as associaes
obrigatrias em nosso ordenamento sociopoltico representam espaos
em que uma gramtica e um vocabulrio disseminado, para que o
Estado comunique suas diretivas e receba filtradas as demandas dos
grupos. Um novo mapa cognitivo pouco a pouco desenhado nessas
lideranas, que passam a deter um novo referencial de reconhecimento. No mais do grupo em direo ao exterior, mas exatamente
em sentido contrrio. Nem redistribuio, nem reconhecimento.
Estruturas que permitem uma nova cadeia de dominao, baseada
no controle e manipulao das informaes e aspiraes dos grupos.

REFERNCIAS
APEL, K.-O. A necessidade, a aparente dificuldade e a efetiva possibilidade de uma macro tica planetria da (para a) humanidade.
Revista da Comunicao e Linguagem, So Paulo, n. 15-16 tica e
Comunicao, p.11-26, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas: o que falar
quer dizer. So Paulo: Edusp, 1998.
CEFA, Daniel. Accin asociativa y ciudadana comn: La sociedad civil como matriz de la res publica? In: BENEDICTO, Jorge;
MORN, Maria Luz. Aprendiendo a ser ciudadanos: experiencias
sociales y construccin de la ciudadana entre los jvenes. [S.l.]:
Estudios Injuve, 2002. Disponvel em: <http://www.injuve.mtas.es/
injuve/contenidos.downloadatt.action?id= 1395427125>.
73

Ver Lobo (2006).

234

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

CUNHA, Manuela C.; ALMEIDA, Mauro B. W. Indigenous people,


traditional people and the conservation in the Amazon. Daedalus,
Cambridge, v. 129, n. 2, 2000.
. Populaes tradicionais e conservao ambiental. In: Biodiversidade na Amaznia Brasileira. Braslia, DF: Instituto Socioambiental: Estao Liberdade,1999.
FERNANDES, Rubem C. Elos de uma cidadania planetria. Revista
Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, ano 10, n. 28, jun. 1995.
GUTMANN, Amy. Freedom of association: an introductory essay.
In:
. (Ed.). Freedom of association. Princeton: Princeton
University Pres, 1998.
HEREDIA, Beatriz. Poltica, famlia, comunidade. In: PALMEIRA,
Moacir; GOLDMAN, Mrcio. Antropologia, voto e representao
poltica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1996.
KANT DE LIMA, Roberto. Carnavais, malandros e heris: o dilema
brasileiro do espao pblico. In: GOMES, L. G.; BARBOSA, L.;
DRUMOND, J. A. (Org.). O Brasil no para principiantes. Rio de
Janeiro: FGV, 2000. p.105-124.
KERBAUY, Maria Teresa Miceli. Associativismo e comportamento
eleitoral na eleio de 2002. Opinio Publica, Campinas, SP, v. 10,
n. 2,2004. Disponvel em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 22
dez. 2007.
KRADER, Lawrence. A formao do estado. Rio de Janeiro: Zahar,
1970.
LOBO, Ronaldo. Cosmologias polticas do neocolonialismo:
como uma poltica pblica pode se transformar em uma poltica do
ressentimento. Tese (Doutorado)PPGAS, UnB, Braslia, DF, 2006.
Disponvel em: <www.unb.br/ics/dan/teses >.
. Entre tutela e liberdade: uma discusso sobre as relaes
de poder entre a sociedade envolvente e os pescadores profissionais
artesanais da beira da praia. Texto apresentado no I Seminrio nacional de Monitoramento e Estatstica da Atividade Pesqueira, Braslia,
DF, 2007.
. O mar de todos, o mar de alguns, o mar do Ibama. Trabalho
apresentado na XXI Simpsio Nacional de Histria, realizado em
julho de 2001, na cidade de Niteri. 2001a .
235

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

. Reservas extrativistas marinhas: uma reforma agrria no


mar?: uma discusso sobre o processo de consolidao da Reserva
Extrativista Marinha de Arraial do Cabo/RJ. Dissertao (Mestrado)Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Cincia Poltica,
Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2000.
. Servidor pblico: a servio do Estado ou a servio do pblico? Monografia de graduao em Cincias Sociais, Universidade
Federal Fluminense, Niteri, 1998.
. Sou Federal! Sou Municipal! Chamem a Estadual!: uma
anlise de um conflito entre esferas de poder na marina pblica de
Arraial do Cabo. Trabalho apresentado na IV Reunio de Antropologia do Mercosul, realizada em novembro de 2001, na cidade de
Curitiba. 2001b.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:
Zahar, 1964.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a sdiva. Lisboa: Ed. 70, 2001.
MENDES, Chico. O testamento do homem da floresta: Chico Mendes por ele mesmo. Org. e notas por Cndido Grzybowski. Rio de
Janeiro: FASE, 1989.
MOOUAH, Paulo S. AS ONGs: dos bastidores ao centro do
palco. Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, ano 10, n.
28, jun. 1995.
ODWYER, Eliane C. Relatrio do estudo estratgico: situao scio-econmica diagnstico dos tipos de assentamentos, demografia e
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Monte Alegre, bidos, Alenquer, Curu, Prainha e Oriximin. [S.l.]:
ProVrzea: IBAMA, 2002.
. Seringueiros da Amaznia: dramas sociais e o olhar antropolgico. Niteri: EdUFF, 1998.
PALMEIRA, Moacyr. Poltica, faces e voto. In:
; GOLDMAN, Mrcio. Antropologia, voto e representao poltica. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 1996.
PARESCHI, A.C.C. Desenvolvimento sustentvel e pequenos
projetos: entre o projetismo, a ideologia e as dinmicas sociais. Tese
(Doutorado) Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social,
Universidade de Braslia, Braslia, DF, 2002.
236

Arenas Publicas.indb 236

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3 Prova / Kthia /01/05/2011

PETRAS, James; VELTMEYER, Henry. Globalization unmasked:


imperialism in the 21st century. London: Zed Books, 2003.
PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia. Rio de Janeiro: FGV,
1998.
ROSENBLUM, Nancy l. Compelled association: public standing, selfrespect, and the dynamic of exclusion. In: GUTMANN, Amy (Ed.).
Freedom of association. Princeton: Princeton University Pres, 1998.
SANTOS, Wanderley G. Razes da desordem. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the
senses. New York: Routledge, 1993.
WALZER, Michael. On involuntary association. In: GUTMANN,
Amy (Ed.). Freedom of association. Princeton: Princeton University
Pres, 1998.

237

Arenas Publicas.indb 237

3/5/2011 01:02:00

Arenas Publicas.indb 238

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

QUANTO CUSTA SER


QUILOMBOLA NO BRASIL?:
MOBILIZAES COLETIVAS
E ASSOCIATIVISMO
NO BRASIL CONTEMPORNEO
Fabio Reis Mota1
A identidade de cada pessoa constituda de uma
diversidade de elementos que no se limitam evidentemente quilo que figura sobre os registros oficiais. H
para uma grande maioria, o pertencimento a uma tradio religiosa; a uma nacionalidade, s vezes duas; a
um grupo tnico ou lingustico; a uma famlia mais ou
menos extensa; a uma profisso; a uma instituio. A
lista bem mais longa ainda, virtualmente ilimitada.2
Amin Maalouf

1 Cenas
Manh ensolarada em uma bela praia do litoral sul do estado do Rio
de Janeiro, uma das regies litorneas mais valorizadas no Brasil,
localizada em uma Ilha, a Ilha da Marambaia, ocupada por descendentes de escravos, pescadores artesanais tradicionais e fuzileiros da
Marinha de Guerra do Brasil; ocupaes distribudas ao longo dos 40
quilmetros de extenso de areia, mar e morro. Nessa manh de 2003,
dezenas de pessoas entre mulheres, crianas, homens e alguns, mas
poucos, cachorros esperam um momento solene, um ritual esperado
por muitos h anos, e desconsiderados por outros: a posse da primeira
1
2

Professor do Dep. de Antropologia da UFF e do PPGA/UFF. Pesquisador INEAC/NUFEP/UFF.


Extrada de Amin Maalouf, Les identits meurtrires.

Arenas Publicas.indb 239

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

diretoria da indita associao de moradores da Ilha a Associao


da Comunidade Remanescente de Quilombo da Ilha da Marambaia.
Aps quase duas dcadas de luta contra as investidas do Poder Pblico
que atravs da Marinha de Guerra do Brasil empreendera diversas
estratgias para expulsar a populao nativa com a alegao de que a
mesma era invasora do territrio chegava um novo momento para
os nativos da Ilha. A vivncia de um longo drama social resultou na
articulao dos moradores na defesa dos direitos de suas terras, de seu
lugar, de suas memrias guardadas em cada canto da Ilha pelos passos
de seus ancestrais escravizados, que ali, logo aps o fim da escravido,
viveram, trabalharam, produziram e foram aos poucos constituindo
suas roas, suas casas, suas famlias, suas vidas, seu pertencimento a
um territrio que representava muito mais do que um patrimnio fsico,
mas um patrimnio imemorial, imaterial, sentimental.
Alguns quilmetros do centro do Rio de Janeiro, ao sul do Estado,
a Marambaia constitui um dos mais belos patrimnios ecolgicos
nacionais, com uma fauna rica, uma flora diversa, numa regio de
grande importncia econmica devido ao seu potencial turstico. A
chamada Costa Verde rea de intensa movimentao imobiliria
desde os anos 1970, quando, no perodo da Ditadura Militar, foi
construda a BR 101 (Avenida Rio-Santos) com o propsito de ligar
o centro da cidade do Rio ao litoral sul fluminense abriga uma
diversidade de populaes que podemos denominar de tradicionais
(agricultores, pescadores, populaes remanescentes dos escravos,
grupos indgenas etc.). A sua paisagem foi sendo modificada pouco
a pouco com a introduo de grandes manses, hotis de luxo, resultando no deslocamento dos habitantes nativos, seja por meio da
compra de seus terrenos, seja com as expulses foradas e violentas.
Portanto, a gente da Marambaia, como em outras regies do litoral
brasileiro, como Maric, por exemplo,3 representa a resistncia do
milho contra o tosto, na disputa pelo acesso terra contra as investidas do poder imobilirio ou mesmo das aes do prprio Estado,
como o caso da Marambaia. O Estado brasileiro, por intermdio
da Marinha de Guerra do Brasil, estabeleceu uma srie de medidas
polticas e judiciais, com a inteno de expulsar a populao nativa
da Ilha, proibindo roas, impedindo a construo de novas casas,
interditando as reformas nas habitaes e, no final da dcada de 90
3

Mello; Vogel (2004).

240

Arenas Publicas.indb 240

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

do sculo XX, impetrando aes judiciais de reintegrao de posse


contra diversas famlias locais.
Diante de tal controvrsia, ainda que em um quadro desfavorvel de
relaes de fora poltica, simblica e econmica, os moradores da
Ilha da Marambaia se mobilizaram, reivindicando o reconhecimento
do direito de permanncia nas terras de seus ancestrais com o propsito de deixar de ser ignorante para deixar de ser ignorado, como
anunciou em seu discurso o primeiro Presidente da Associao.
Nesse quadro, associar-se, mobilizar-se, so modalidades de ao
que viabilizam destinar visibilidade para as demandas dos direitos
do grupo em um conflito com o Estado, encarnado nessa situao
por uma instituio militar, cuja representao poltica central no
cenrio pblico brasileiro. Uma deciso que no se fundamenta por
um clculo estritamente racional-utilitrio, muito menos se estabelece
em uma harmonia absoluta; ao contrrio, essa mobilizao se processa
em um quadro complexo e conflituoso, em que diferentes atores se
apresentam com posies muitas vezes divergentes, resultado de diversos eventos que se desenrolam ano a ano, de situao a situao, de
negociao a negociao. O processo de mobilizao dos moradores
se deu em uma circunstncia em que as memrias, enquanto dispositivo poltico, tornaram-se o epicentro da controvrsia, de eventos
que ordenavam e reorientavam a leitura da condio de escravos
ontem a pescadores tradicionais expulsos hoje, como sintetizou um
documento da Comisso Pastoral da Terra, ligado Igreja Catlica.
Os quadros das memrias foram esquadrinhados pelos atores em um
longo processo de ao social e do processo de interao e negociao
das formas de representar a memria, bem como sua prpria histria, modificando a organizao social e poltica local. Essa manh
ensolarada, em que mulheres, homens e crianas marambaienses se
reuniam era apenas o comeo de uma longa jornada...
2 Os planos dos cenrios
Para analisar as situaes de mobilizaes coletivas, pressuponho que
seja essencial a produo minuciosa, uma descrio etnogrfica como
recurso pertinente interpretao dos fenmenos sociais na construo
da Res Publica. Desse ponto de vista, alinho-me linhagem terica
do presente livro, lanando mo de uma abordagem etnogrfica. Parto
de uma experincia compartilhada no trabalho de campo, no engaja241

Arenas Publicas.indb 241

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

mento conversacional com atores para interpretar tal problemtica.


Tomo como ponto de partida o estudo de uma situao, considerando
que Geertz nos dizia acerca do trabalho antropolgico: antroplogos
no estudam aldeias, mas estudam em aldeias.4
A perspectiva etnogrfica que adoto articula, ou pretende articular,
diversos planos terico-metodolgicos. Considero essencial observar
e interpretar no apenas a ao humana, o seu contexto, mas esta
em relao aos objetos, quilo que Bruno Latour denominou de no
humanos,5 com o propsito de compreender em que medida os objetos
e os seres humanos em interao produzem esses espaos hbridos
ou fruns hbridos. Quando incorporo tal dmarche, penso na possibilidade de considerar em uma anlise sociolgica, antropolgica, os
elementos materiais como faixas, ofcios, cartazes, vestimentas como
agentes constitutivos para a construo de um problema pblico, em
uma mobilizao coletiva. Imaginem uma mobilizao poltica, uma
passeata, por exemplo, sem as diversas parafernlias, como radiofones, cartazes, camisetas, caminhes de som ou coisa do gnero?!
Num outro plano, a anlise dos sentimentos fundamental a pesquisa
etnogrfica. Considero que as contribuies de Mauss,6 importantes
para um olhar antropolgico que possa privilegiar o sentimento
como um objeto de pesquisa, so cruciais para lanar um olhar sobre
as expresses obrigatrias dos sentimentos que se apresentam no
universo pblico das manifestaes polticas. Os atores, por meio de
seus sentimentos, exprimem vises de mundo, explicitam categorias,
classificam e codificam a realidade social. Em uma mobilizao coletiva, por exemplo, as pessoas evidenciam um repertrio de gestos,
de emoes, lanam mo de distintas corporalidades que exercem
um papel importante na mise en scene da vida cotidiana. Podemos,
por exemplo, observar a importncia das expresses dos sentimentos na descrio que Vogel, Mello e Pessoa,7 realizam sobre o rito
de iniciao no candombl. Particularmente a sada do Ia missa
ritual marcante ao iniciante do candombl, cujo objetivo consiste
em um rito final, se apresentar em pblico numa missa, com as indumentrias referentes ao candombl so evidenciados as posies
e lugares dos atores nesse processo de mobilizao e ao pblica.
4
5
6
7

Geertz (1973, p. 22).


Latour (1997).
Mauss (1999).
Vogel; Mello; Barros (2005).

242

Arenas Publicas.indb 242

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Nesse rito de passagem, nessa transio entre o lugar do iniciante e


do iniciado, diversos gestos, emoes, em uma srie de protocolos de
etiquetas, so expressos publicamente com o propsito de marcar e
inscrever esse iniciado em seu novo papel social. Mas do que um rito
religioso, a ida do Ia missa pode ser interpretada como um tipo de
mobilizao coletiva pela afirmao de uma identidade paradoxal.8
O Ia deve se exprimir, pelo corpo, pelos gestos, seu pertencimento,
sua identidade pblica de forma a afirmar seu lugar, marcando sua
fronteira no espao pblico.
Portanto, parto do princpio que a descrio dos fenmenos sociais,
ou sua descrio densa,9 permite compreender os significados e os
processos de interao. Nos termos de Geertz, explicar as explicaes dadas pelos interlocutores (p. 9) no que consiste o trabalho do
antroplogo. Partindo dessa dmarche, a cultura pode nos reportar
aos conjuntos de signos pertencentes ao universo pblico. Nesse caso,
a cultura como um sistema simblico10 permite um outro modo de
perceber a ao humana, olh-la como um texto.
A cultura dota os homens de um conjunto de operaes cognitivas,
conscientes e inconscientes, orientando as aes e os discursos na
vida cotidiana. Nesse aspecto, a cultura pensada como uma orientao cosmolgica em que as aes se articulam aos signos que so
internos ao sistema nativo. Ou, no sentido colocado por Hannerz,
em que a cultura considerada como uma questo de significado.
Estud-la significa estudar ideias, experincias, sentimentos, tanto
quanto as formas externas nas quais essas internalidades se tornam
pblicas, sociais.
Portanto, fazer uso do conceito de cultura no significa de modo algum
totalizar uma interpretao de fenmeno social, mas destinar um olhar
que possibilite compreend-lo em sua lgica, em sua complexidade
interna. Por exemplo, as mobilizaes coletivas, fenmeno de escala
mundial, no detm o mesmo sentido ou contedo simblico e prtico
quando observamos as associaes em distintas regies do Brasil, da
Frana, dos EUA etc. Na Frana, por exemplo, associar-se significa
se engajar a problema pblico, partilhar de preocupaes que esto
orientadas e dirigidas ao bem comum,11 sendo que a justificativa de
8
9
10
11

DaMatta (1976).
Geertz (1973).
Geertz (1973, p. 17).
Cefa (2007b).

243

Arenas Publicas.indb 243

3/5/2011 01:02:01

3 Prova / Kthia /02/05/2011

uma ao associativa deve se pautar pela ideia de interesse geral.12


De um ponto de vista de uma cosmologia brasileira, associar-se
corresponde a participar, e no necessariamente se engajar por um
problema pblico, pois muitas vezes, as questes particulares, como
no caso dos indivduos no governamentais,13 podem prevalecer sobre
o interesse do bem comum.
Desse modo, meu objetivo tratar desses processos de mobilizaes
enquanto provas afetivas em que os signos de humilhao, de desrespeito que se exprimem numa linguagem poltica, num choque moral,14
num insulto moral.15 As mobilizaes cumprem um papel significativo
no processo de afirmao das identidades e no estabelecimento de
fronteiras, bem como so espaos primordiais para a constituio
dos novos sujeitos, para a manifestao da pluralidade das aes e
de exposio do eu em seus mltiplos regimes de engajamento.16
3 Os atores e seus cenrios
As mobilizaes coletivas esto, em muitas ocasies, relacionadas
com controvrsias e conflitos pblicos de diferente natureza: pela
posse da terra, pelo acesso aos recursos naturais, pela aquisio de garantias trabalhistas etc. Na situao de grupos que se autodenominam
quilombolas as mobilizaes coletivas emergem a partir de situaes
em que o territrio ou os espaos fundamentais para a reproduo
econmica e simblica esto em risco.
Desde a dcada de 1990 do sculo XX, com a difuso do artigo 68 que
reconhece o direito das denominadas comunidades remanescentes de
quilombos,17 assistimos a uma crescente mobilizao de demandas de
direitos vinculadas a essa nova identidade: o quilombo.
O artigo 68, assim como outros diversos instrumentos jurdicos, foi
inscrito na Constituio Federal de 1988 com o propsito de reconhecer e garantir os direitos das denominadas comunidades remanescentes
de quilombos. O termo quilombo, enquanto categoria poltica, como
12
13
14
15
16
17

Boltanski; Thvenot (1991)


Lobo (2004)
Jasper (1997)
Cardoso de oliveira (2004).
Thvenot (2006)
Segundo o artigo 68, includo nos Atos de Disposio Constitucional Transitrias da
Constituio Federal de 1988, aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras reconhecida propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
os ttulos respectivos.

244

Arenas Publicas.indb 244

3/5/2011 01:02:01

3 Prova / Kthia /02/05/2011

ressalta Alfredo Wagner,18 surgiu em 1740 em carta-resposta ao rei


de Portugal em virtude de consulta feita ao Conselho Ultramarino,
que classificava quilombo como agrupamento de escravos fugidos.
A inscrio do artigo 68 na Constituio de 1988 permitiu, por intermdio de vrias aproximaes, desenhar uma cartografia indita na
atualidade, reinventando novas figuras do social,19 como ao mesmo
tempo novos sujeitos de direitos, cuja visibilidade est intimamente
atrelada ao reconhecimento dessa identidade.
Nos anos 1990, ainda quando o artigo 68 era restrito e pouco discutido
no espao pblico brasileiro, moradores da Ilha da Marambaia passam
a se figurar como litigiosos de processos judiciais, cujas acusaes
se assentavam no argumento de que eles tinham sido invasores e
predadores do Patrimnio Pblico. Este, afetado duplamente por dois
regimes de propriedade, rea de Segurana Nacional e de Preservao
Ambiental, era intitulado como rea da Unio. Nesse perodo a Marinha de Guerra, administradora da Ilha, por meio da Advocacia Geral
da Unio, rgo responsvel pela defesa dos interesses do Estado,
impetrou dezenas de aes judiciais contra os moradores de distintas
praias e famlias da Ilha.
De um modo estratgico, segundo relatam os moradores locais, essas
aes foram deliberadamente distribudas por diferentes praias e famlias de modo a fragmentar a populao e permitir a construo de uma
interpretao de que se tratava de um problema de fulano de tal. Essa
estratgia dificultava uma tomada de deciso e de mobilizao coletiva, sobretudo diante das caractersticas da organizao social local.
Como para muitos essas aes eram tidas como problemas individuais
com a Marinha de Guerra, as pessoas no se comunicavam umas com
as outras a respeito, ou mesmo se sentiam constrangidas em faz-lo. Do
ponto de vista nativo, ter problema com a justia mal pressgio, concebido como algo negativo e constrangedor. Pois quem tem algo com a
justia, tem culpa no cartrio, como diz o ditado popular brasileiro.
Entretanto, na medida em que as aes comearam a ser julgadas, quase
sete anos depois, as decises adquirem uma nova conotao: casas
interditadas, outras demolidas, famlias expulsas... Esse novo cenrio
provocou profundos choques morais e uma instabilidade emocional,
j que essa circunstncia no apenas criava um problema material,
18
19

Almeida (2002).
Odwyer (2002).

245

Arenas Publicas.indb 245

3/5/2011 01:02:01

3 Prova / Kthia /02/05/2011

mas tambm suscitava feridas sentimentais com o impedimento de


permanecer em um local cujo pertencimento estava aliado no s ao
nascimento, mas s razes com a histria do lugar, com a histria dos
ancestrais escravos e de antigos pescadores tradicionais que tiravam
seu sustento das guas da Maramabaia; um lugar em que nasceram,
cresceram e que, para muitos, significava sua nica referncia espacial
e emocional. No se tratava, nesse caso, apenas de uma propriedade
nos termos da teoria poltica clssica, mas de um lugar, cujas histrias
e memrias compunham a identidade das famlias locais; lugares de
uso, lugares de memrias, como o cemitrio que frequetemente era
lembrado pelos mais antigos da Ilha como o local que guardava a velha
Camila, escrava que havia morrido com mais de 100 anos.
Nesse caso, era uma batalha que se travava contra aqueles que tiveram
toda sua histria e vicissitudes ligadas ao lugar. A partir desse evento
as memrias sobre a Ilha ganham novos contornos, a Ilha do velho
Breves, a Ilha dos escravos, a Ilha da engorda, a Ilha da Escola, a Ilha
das Crias... Tais histrias compunham um repertrio de uma luta, em
que a disputa resultava em ganhar ou perder, pois nessa circunstncia,
como dizia um antigo da Ilha, se ficar o bicho come, se correr o bicho
pega, portanto seja o que Deus quiser.
Nesse contexto, o risco adquire uma forma diferente do modo como
ele articulado por Callon, Barthes e Lascomes, pois designa um bem
no identificado, ou em vias de ser descortinado por meio da abertura
boite noire judicial, pois muitas das aes eram mesmas julgadas a
revelia, ou seja, sem a defesa da parte em jogo, ou mesmo eram aes
que recebiam um tratamento da Defensoria Pblica, que tradicionalmente incumbida de tratar de aes dos carentes, ocasionando um
tipo de atendimento diferenciado no que concerne comunicao entre
cliente e defensor; ou atravs de servios de atendimento de balces
de direitos em universidades, cujos advogados so geralmente jovens
estudantes bem intencionados, porm pouco experientes.
Todos esses aspectos, somados ao poder de barganha e de legitimidade destinado Marinha de Guerra, criavam uma situao de alta
vulnerabilidade na medida em que os moradores possuam parcos
recursos simblicos e materiais para fazer valer seus direitos e para
serem reconhecidos como sujeitos de direitos. Havia um sentimento
de desamparo, ou seja, de ausncia de suportes institucionais e
emocionais que pudessem fazer valer algumas garantias legais, ao
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passo que as pessoas partilhavam de um medo de serem punidas,


caso se envolvessem em qualquer tipo de mobilizao ou organizao
contra as investidas da Marinha de Guerra.
Com a presso crescente da Marinha, os julgamentos judiciais favorveis a ela (reintegrando as casas Unio) levavam os moradores a
solicitar a colaborao de uma das mais importantes redes de apoio
aos agricultores, pescadores, moradores de rua no Brasil: a Central
Pastoral da Terra (CPT). A CPT teve um papel histrico importante
no apoio s mobilizaes campesinas nos anos 1970, com a organizao das Comunidades Eclesiais de Base, e permaneceu influente,
mesmo com sua perda sensvel de fora aps a perda de espao da
Teologia da Libertao no seio da igreja catlica, ainda nos anos de
1990 at os dias atuais. A CPT operava, e opera, a partir de redes de
apoio ligadas a grupos estabelecidos em diferentes regies do Brasil
e do mundo, o que permitia uma construo de um slido apoio
causa da Marambaia.
Um dos momentos-chave desse processo de aproximao com a CPT
foi a realizao de uma grande reunio em que se encontravam moradores da Ilha, padres de diferentes igrejas ligados CPT, pastores
da Igreja Batista (que possua uma sede em uma das praias), cujas
discusses foram animadas por discursos emocionados de pessoas
da Ilha que, nessa situao, sentiam-se a vontade para narrar suas
histrias, seus dramas, vivncias e angstias diante do conflito com a
poderosa Marinha. Entre verses preenchidas de emoes, surgiam
distintas proposies e deliberaes para a resoluo do conflito.
Dentre os diferentes instrumentos, um elemento no-humano fundamental que apareceu foi o Dossi que possua uma dezena de matrias
jornalsticas que relatavam o caso dos moradores da Marambaia,
mesclado aos dados histricos relativos poca da escravido na Ilha,
de uma importante Escola de Pesca fundada pelo ento Presidente
Getlio Vargas na Marambaia, dentre outras matrias que relatavam
a situao atual das famlias. Tratava-se de um repertrio de justificaes preenchidas de emotividade, de modo a buscar sensibilizar
os atores externos que poderiam se juntar luta pelo reconhecimento
dos direitos dos proprietrios da Ilha, j que a mesma havia, como
lembravam os mais antigos, sido doada de boca pelo antigo dono da
Ilha e dos escravos, o Comendador Breves. O dossi tinha um ttulo
que propunha apelar para uma dimenso da injustia produzida no
passado e reproduzida no presente. O dossi se intitulava Povos da
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Terra Povos do Mar Ilha da Marambaia: Do Trfico de Escravos,


Ontem, aos Despejos de Famlias Pescadoras, Hoje.
Foi a partir, primordialmente, desse Dossi que as outras autoridades
pblicas, entidades de Defesa dos Direitos Humanos, Organizaes
No Governamentais, polticos etc. puderam tomar conhecimento do
caso da Marambaia, sendo o mesmo um actante que faria com que
essa controvrsia adquirisse um carter pblico,20 criando redes, mobilizando pessoas, sensibilizando atores sociais e polticos importantes
que destinou uma visibilidade nacional ao conflito entre os escravos
de ontem e Marinha de Guerra de hoje.
A memria sobre a escravido, j anteriormente presente a partir de
histrias contadas, marcava o legado dos sofrimentos, do pertencimento histrico vinculado a uma ancestralidade; ela ganha pouco
a pouco contornos cada vez mais institucionais na medida em que
os remetia a uma demanda de reconhecimento pblico, adquirindo
uma legitimidade diante dos organismos estatais. Diferentemente da
situao do filme os Narradores de Jav em que habitantes de uma
pequena vila buscam histrias importantes que possam balizar suas
demandas diante de empreendimento que extinguiria a rea habitada
pelo povo de Jav que no conseguem compor um lugar comum
sua memria, os moradores da Marambaia tornam pblico suas
narrativas, criando um lugar prprio da luta do povo da Marambaia
ao tomar como porto seguro as histrias, fbulas, mitologias, contos
e narrativas sobre a escravido. Esse pertencimento que os agregava
levou-os ao processo de mobilizao.
O primeiro momento da institucionalizao dessa memria se deu
com a presena da Fundao Cultural Palmares. A mesma foi fundada no ano de 1988, com o propsito de elaborar e executar polticas
pblicas dirigidas populao negra brasileira era, poca, o rgo
governamental responsvel a reconhecer, demarcar e titular as terras
dos denominados remanescentes de quilombos. Com a Fundao no
interior do conflito, as justificaes passam a adquirir outros contornos com a aplicao poltica e pblica do termo remanescente de
quilombo. Tratava-se de escravos ou quilombolas? Pobres ou pescadores? O surgimento desses novos atores reconfigura a paisagem
social, reorientando os papis e posies na controvrsia pblica. No
se tratava da defesa da paisagem provenal francesa, como no caso
20

Dewey (2003); Gusfield (2006).

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analisado por Callon sobre a controvrsia da implementao TGV


Sul-Leste, mas na defesa de uma outra imagem: de uma Ilha habitada
por ex-escravos, preenchida de histrias e contos.
Nesse caso, a Fundao Palmares ao identificar comunidade da
Marambaia como um quilombo, vindo a publicar e divulgar em
documentos oficias essa informao, trouxe tona outra face do
conflito. Essa situao ocasionou uma srie de debates, documentos,
informaes na internet que fizeram propagar como raios eletromagnticos, justificaes favorveis e desfavorveis oficializao ou
no da Marambaia como um quilombo.
Criou-se uma verdadeira guerra de papis, em que ofcios, cartas,
circulares vo esfera pblica promovendo um grande debate acerca
do reconhecimento do direito dos quilombolas da Marmabaia; ao mesmo tempo movera emoes, ligaes pessoais, convices polticas
e morais, levando mesmo o pronunciamento, mesmo que ainda no
sendo oficialmente sua funo, de um Procurador da Repblica, que
por meio de um Oficio dirigido Presidenta da Fundao Palmares
solicitava a anulao do ato de identificao da Marambaia como
quilombo por tratar-se de uma falsificao histrica.
Foram operados publicamente, por aqueles que eram favorveis
Marinha de Guerra, trs regimes de justificao. O primeiro ancorado
na ideia de falsidade histrica. O quilombo, num sentido clssico do
termo, o quilombo histrico, folclrico, estaria diretamente relacionado ideia de fuga. Sendo a antiga fazenda dos Breves uma ilha,
seria impossvel a mobilidade, resistncia e a fuga dos escravos, que
seriam facilmente capturados.
A segunda justificao estava diretamente ligada com a relao entre
humanos no humanos, pois reivindicavam a defesa do meio ambiente
como um elemento importante a se considerar. Reivindicavam dados
de pesquisas que demonstravam o valor ecolgico do ecossistema
da ilha e apontavam a necessidade de mant-lo longe do alcance dos
homens. O meio ambiente torna-se um agente no desenvolvimento
dessa controvrsia pblica. Um terceiro elemento era o argumento
nacional. A Ilha considerada rea estratgica para a defesa nacional.
Todos esses diferentes planos faziam parte dos repertrios de justificaes
para fazer valer o argumento de que o Estado no poderia categorizar a
ilha da Marambaia como um territrio de remanescentes de quilombos.
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Em contrapartida, outros atores exerciam um papel importante, como


o caso da imprensa que, em muitas das vezes, apelava para o carter
emocional, da vida cotidiana, dos sofrimentos vividos para esboar
algumas justificativas favorveis ao caso da Marambaia.
Se essa disputa pelo reconhecimento dos direitos dos moradores
da Maramabaia gerava fortes embates pblicos, muitas vezes nem
to pblico assim, com a insero do Ministrio Pblico Federal
que assistiremos a uma reorganizao das cenas e dos atores. Se os
pescadores da Maramabaia encontravam dificuldades para destinar
visibilidade s suas demandas, de garantir legitimidade s suas narrativas, histrias e memrias, a insero do MPF no conflito vem
destinar uma qualificao pblica demanda dos mesmos.
Uma reunio no ano de 2002 na Ilha foi paradigmtica. Aquele ritual
foi fundamental para algumas mudanas na estrutura local. Assim,
como a chegada do Capito Cook s Ilhas Sandwich, a chegada do
Procurador na Ilha foi festejada e vivida como um importante evento
pelos habitantes locais.
A chegada foi celebrada com um rito solene, no qual moradores assistiam a chegada do Procurador em um barco especial da Marinha,
destinado s autoridades. No cais, alm dos diversos habitantes locais,
encontravam-se os Fuzileiros com as indumentrias prprias de uma
cerimnia de recepo de autoridades
O Procurador, ao desembarcar com sua auxiliar e alguns funcionrios
de uma ONG e um dos advogados dos habitantes locais, foi recepcionado, ao som das cornetas, por um Oficial da Marinha. Os moradores,
em fila indiana, encostados no canto do cais, esperavam a passagem
das ilustres autoridades que cumprimentavam os ilhus. A situao se
caracterizava pela formalidade, tanto por parte dos Fuzileiros, como por
parte do Procurador e das demais autoridades que o acompanhavam.
Logo de incio, para estabelecer uma relao formal entre as autoridades presentes, estabelecendo as prioridades e hierarquias, o Oficial da
Marinha convidou o Procurador para um caf da manh nas instalaes
da Marinha. Entretanto, o Procurador propunha realizar antes uma
reunio com os pescadores e seus familiares. Sendo assim, dirigiram-se para uma pequena praia, prxima ao cais, para o incio da reunio.
O Oficial ainda acompanhou o grupo at o incio da Praia, no entanto,
o Procurador solicitou que a reunio com os moradores se realizasse
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sem a sua presena o que foi seguido parcialmente pelo Oficial, pois o
mesmo permaneceu caminhando de um lado para o outro em frente ao
terreno em que se encontravam os moradores e o Procurador para que
a comunidade ficasse mais vontade para se exprimir sua situao.
O inicio da reunio foi marcada por uma apresentao geral do papel
do MPF, sua atribuio; de forma geral o Procurador qualificava o
MPF como o espao de defesa dos direitos dos cidados. Em especial,
como ressaltara o Procurador, o MPF era encarregado de defender
os direitos dos grupos tnicos, sobretudo aqueles respaldados pela
Constituio Federal. Dava explicaes acerca das caractersticas do
artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, que trata
da titulao de terras de remanescentes de quilombos. Fez questo de
frisar que o dispositivo jurdico no era destinado apenas s comunidades de quilombos, mas a comunidades negras rurais que possussem
vnculos histricos e identitrios com o tempo da escravido. Assim,
como era o caso da Marambaia, segundo sugeria o Procurador.
O Procurador esclarecera que havia entrado com uma Ao Civil
Pblica contra o rgo responsvel pela titulao e reconhecimento,
poca, das comunidades negras rurais: a Fundao Cultural Palmares, com a finalidade de agilizar o processo de reconhecimento da
comunidade da Marambaia.
Prestou explicaes a respeito da Ao Civil Pblica ajuizada pelo
MPF contra a Fundao Palmares e a Unio. Lembrou que o MPF
solicitara quatro providncias por parte da Unio: o fim da expulso
dos moradores nativos, a no destruio das residncias, a tolerncia
do modo de vida tradicional e o retorno de moradores que porventura
tiveram suas casas derrubadas. Esclareceu que a juza deferiu em
parte o pedido do MPF, julgando procedente avaliar posteriormente
o pedido de retorno dos antigos moradores Ilha.
O Procurador informou que, em virtude da Ao, a Fundao Palmares
teria agilizado o processo de reconhecimento da comunidade. Para
tanto, seria necessrio a elaborao de uma laudo antropolgico a
ser produzido por uma OnG responsvel por levantar quilombos.
Com o laudo finalizado, a Fundao Cultural poderia continuar com
os procedimentos necessrios para a demarcao e titulao do territrio, lembrava o Procurador.

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Arenas Publicas.indb 251

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Os moradores, como no conheciam suficientemente tais procedimentos, seguiram com perguntas, questionamentos, queixas, demandas.
Na medida do possvel, o Procurador as respondia, destinava solues,
apontava caminhos.
A situao parecia apontar, do ponto de vista dos moradores, para
uma renovao dos estoques de energia para continuar na batalha
pelo direito terra. A presena de uma autoridade pblica, encarnada
na figura do Procurador, lhes destinava novas possibilidades de poder
continuar a luta do milho contra o tosto. Entusiasmados com as
novas e repentinas notcias, os habitantes viam nesse momento uma
oportunidade para criar uma Associao. Demandaram ao Procurador
que o mesmo fosse interlocutor com a Marinha de Guerra para que
esta cedesse um espao para a constituio da sede da Associao.
Na mesma hora, estabeleceu-se uma comisso de moradores com
membros de diversas praias, responsvel por mobilizar os demais
pescadores e familiares para a composio das chapas, visando, com
isso, realizar as eleies o mais rpido possvel. Seria a oportunidade
de colocar em prtica uma organizao social local, pois em outras
circunstncias tentou-se organizar associaes, como no caso da
Associao dos Moradores e Amigos da Marambaia, em 1990, e
da Associao Para o Desenvolvimento Socioeconmico Cultural
da Ilha da Marambaia-RJ, em final 1998, cujas tentativas foram
frustradas diante das dificuldades encontradas com a falta de apoio,
como lembram os moradores da Marambaia, da Marinha e de outros
organismos governamentais e sociais.
Entretanto, a empolgao inicial por parte dos moradores foi, paulatinamente, substituda pela incerteza diante das desistncias de
muitos que se engajaram ao projeto. Particularmente, nesse primeiro
momento, foram os moradores protestantes (seja da Assembleia de
Deus ou da Igreja Batista) os primeiros a abrir mo de participar mais
ativamente do processo de construo da Associao; fosse porque
desacreditavam no xito dessa nova empreitada, ou mesmo porque
temiam participar de algo que poderia culminar em represlias da
Marinha; j alguns foram desencorajados pelos Pastores de ambas as
igrejas que viam nessa ao um indcio de embate com a Marinha, o
que era visto negativamente pelos mesmos.
Por outro lado, havia outra barreira. A ao coletiva implicava agrupar
diferentes identidades e pertencimentos em uma nica roupagem:
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quilombola da Marambaia. A organizao econmica, a pesca, e o


histrico de ocupao do territrio pelas famlias dos escravos da casa
grande e os escravos da senzala, eram variveis fortes que barravam
a ao entre esses mltiplos grupos. No caso da pesca, os companheiros so os pescadores que atuam em uma unidade produtiva, e
os demais so competidores, pelo produto, pelo espao, pela renda.
Cada unidade produtiva autnoma e oposta a outra unidade, criando
um ambiente de fragmentao das relaes e de disputa. Ao mesmo
tempo, a relao entre os escravos era altamente estratificada e segmentada, entre escravos da casa-grande, escravos da senzala, capites
do mato, mucamas etc. Pesava ainda as divises territoriais entre as
praias que, por conseguinte, eram entrecortadas pelas divises de
laos de parentesco e alianas entre os ex-escravos.
Apesar de todos esses elementos, a ideia da criao da Associao
foi posta em prtica. Os moradores engajados no projeto elaboraram
estatuto, fizeram reunies, mobilizaram grupos de apoio, sendo que
no incio do ano 2003 os participantes da ainda incipiente associao
se reuniram em uma das Praias da Ilha com o objetivo de realizar a
primeira assembleia geral da Associao. Nesse mesmo dia foi escolhido o nome da mesma, sendo apresentados quatro nomes como
sugesto: Associao Esperana do Quilombo Renascido da Ilha
de Marambaia, Associao de Quilombos da Ilha de Marambaia,
Associao de Quilombolas da Ilha de Marambaia e Associao da
Comunidade dos Remanescentes de Quilombos da Ilha de Marambaia. Foi esse ltimo nome o escolhido com o total de 42 votos no
universo de 50 pessoas presentes na reunio. No dia foi discutido,
e consta em ata, que foi feita a meno da importncia de constar o
termo quilombo no nome da Associao.
Alguns meses depois foi eleita a primeira diretoria da Associao
da Comunidade dos Remanescentes de Quilombos da Ilha de Marambaia. A constituio da Associao oferece aos marambaienses
condies de se colocarem publicamente, de reivindicarem justia e
demandarem o reconhecimento dos direitos territoriais negados pelo
Estado e, em parte, pela Justia.
Os custos da ao coletiva, a qual me reportava acima, fora amenizada
diante da tutela estabelecida pelo MPF a partir da Ao Civil Pblica,
pois os recursos necessrios ao coletiva foram redistribudos,
tornando a ao coletiva simbolicamente menos custosa na medida
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

em que em um conflito dessa natureza ou perde ou ganha tudo.


Nesse aspecto, o grupo possui exatamente a dimenso desse custo
social e simblico de uma investida poltica, tanto que se ancoram
em agentes externos para adquirirem voz, tendo em vista que, como
muitos dizem na Ilha, a Marinha como rei l dentro, tudo pode, e
tudo faz. Nessa circunstncia, em que as partes no detm o mesmo
capital simblico e material, no h possibilidade da construo de
consenso e de barganha.
Desse modo, o que est em jogo nesse momento a diminuio dos
custos dessa ao coletiva, lanando mo da tutela do Ministrio Pblico como forma de expressar e reivindicar determinados direitos pois,
nesse caso, a Marinha reconhece o MPF como um interlocutor. J os
pescadores artesanais brasileiros so considerados pela mesma como
non-entity, gente subalterna. Sendo assim, a tutela estabelecida pelo
MPF sobre a populao local vista positivamente pelos moradores,
pois minimiza os custos da ao coletiva em uma situao em que as
relaes de fora esto desigualmente estabelecidas.
Atualmente, com a grande publicidade dada ao caso da Marambaia, a
Associao da Comunidade dos Remanescentes de Quilombos da Ilha
de Marambaia participa de uma extensa rede nacional de apoio luta
dos remanescentes de quilombos, participando de eventos nacionais,
reunies interministeriais, falando em rdios, jornais, publicizando
textos, fazendo demandas aos rgos governamentais. O quilombo
foi incorporado dinmica local a partir de discursos, cumprimentos
(saudaes quilombolas), nas vestimentas, nas histrias, nos livros,
na vida cotidiana em que vivem e experenciam esse novo regime de
engajamento: ser quilombola.
4 Alguns esboos finais
Buscamos retratar o processo de constituio de uma associao,
tomando como ponto de partida um olhar etnogrfico e microssociolgico. As associaes aparecem21 ordenadas ao redor de frmulas
de coordenao entre pessoas e coisas, repousando sobre os compromissos das pessoas com suas histrias, memrias, pertencimentos,
identidades e percepes emotivas do mundo. A confrontao a uma
situao problemtica exigiu que se colocasse em evidncia os procedimentos de transao por meio dos quais os atores reduzem suas
21

Thvenot (2006)

254

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

diferenas, apaziguam seus litgios e disputas, achando formas viveis


de organizao de suas experincias e de suas atividades.
So um conjunto de argumentos, de maneiras prticas de se engajarem
numa situao, de conferir sentidos s suas aes, projetos, selecionando finalidades e os objetivos e de constituir os recursos de ao, de
se articularem com seus pares numa dinmica de cooperao e competio, que do sentido a uma forma de se associar. Os julgamentos,
as aes e as formas de coordenao das aes intra e interpessoais
podem, no entanto, ser analisadas tambm a partir do modo como os
atores coordenam suas aes.22 Tal como salientam Boltanski e Thvenot23 as pessoas so confrontadas nas sociedades com um pluralismo
radical de situaes e testes cotidianos, exigindo delas um aparato de
competncias, justificaes e argumentaes para fazer valer suas
demandas. A ao humana assim concebida transcorre em diferentes
sequncias, nas quais as pessoas mobilizam competncias diversas para
se adequar a uma dada situao apresentada, cujos momentos pblicos
de disputa, de conflito e de controvrsia, levam os prprios atores a
manifestarem e evidenciarem suas razes, crticas ou justificaes.24
O ator, ao se confrontar com uma situao problemtica, necessita colocar em evidncia os procedimentos de transao por meio dos quais
os demais atores, eles mesmos, reduzem suas diferenas, amenizam e
apaziguam seus litgios e disputas, buscando, na geometria varivel
das formas, viabilizar acordos, perenes ou temporrios, para prosseguirem em suas aes coletivas. Tais formas de acordo ou desacordo
encontradas pelos atores, na vigncia de suas interaes, constituem,
na maior parte das vezes, um refinado conjunto de argumentos e de
maneiras prticas de se engajarem numa situao, sopesando seus
projetos, selecionando e decidindo finalidades e objetivos, almejando
constituir na cena pblica um repertrio aceitvel de gestos para a
consecuo da ao visada e de se articularem com seus pares numa
apropriada dinmica de cooperao e competio. Atrelada a essa
dinmica pblica de justificao, de denunciao e de reivindicao,
h toda uma srie de modalidades de experincia e de ao que pode
ser pensada, seja sob o ttulo de regimes de proximidade (aqueles
nos quais vigoram os laos de familiaridade com as coisas e com as
pessoas) ou sob o ttulo de regimes de ao pblica (aqueles nos quais
22
23
24

Thvenot (2006).
Boltanski; Thvenot (1991).
Breviglieri; Stavo-Debauge (1999); Mota (2008).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

se enfatizam os laos pblicos). Estes assim denominados regimes


entram em relao processual quando observamos como as categorias mais gerais do Direito imprimem dinmica e produzem efeitos
nas experincias mais ntimas,25 tal como ocorreu com os moradores
da Ilha da Marambaia que imprimiram outro sentido s formas de
sociabilidade e de interao com a emergncia da associao.
Estas argumentaes e aes articulam-se e inscrevem-se num
conjunto de significados e gramticas que lhes conferem plausibilidade. Aes e justificaes ganham, portanto, contornos especficos
diante das distines entre os significados emprestados s categorias
pblico/privado em diferentes gramticas e tradies jurdicas. No
Brasil, por exemplo, o domnio do pblico no representado como
o lugar da regra local e explcita, de aplicao universal, de todos
conhecida e a todos acessvel, logo, a todos aplicvel igualmente e
universalmente. O domnio do pblico seja moral, intelectual ou
at mesmo sua inscrio no espao fsico o lugar controlado pelo
Estado, de acordo com suas regras, frequentemente de difcil acesso
e, portanto, onde tudo virtualmente permitido, at que seja proibido
ou reprimido pela autoridade; essa espcie de categoria encarnada
e, ao mesmo tempo, operador classificatrio que detm no s o
conhecimento do contedo, mas principalmente a competncia para
a interpretao correta da aplicao particularizada das prescries
gerais, sempre realizada por meio das formas e frmulas implcitas
e do acesso privilegiado.26
J na Frana, a civil law tradition construiu um publique regido por
regras universais, a serem seguidas por indivduos participativos e
engajados, mas genricos. O mundo cvico francs requer que todas
as relaes, para serem legitimadas, sejam mediatizadas pela referncia a entidades coletivas que garantam o interesse geral, tais como
associaes, instituies democrticas etc.27 O universalismo radical
francs recusa qualquer tipo de particularismo de tratamento. O todo
sobressai s partes, pois a Nao e a volont gnral so indivisveis
e inalienveis. O pacto social funda, assim, a identidade entre o indivduo e o corpo poltico republicano (MOTA, 2009).28
25
26
27
28

Breviglieri; Stavo-Debauge (1999); Mota (2008).


Kant de Lima (2000).
Boltanski; Thvenot (1991).
Mota (2009).

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Arenas Publicas.indb 256

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

A consequncia direta dessa caracterstica em relao noo de


pblico seu efeito na produo de certa concepo de cidadania.
Na gramtica brasileira tal noo se exprime e est associada a uma
dimenso relacional,29 ou a uma dimenso regulada,30 na qual
est pautada em concepes hierrquicas, no se caracterizando
como universal, mas como produtora de desigualdades, distinguindo
cidados e no cidados, configurando-se assim numa cosmologia
anti-igualitria.31 Consequentemente, entre ns, tal noo aparece
sob a espcie do carter tutelar, tal como, por exemplo, a concepo
de que alguns cidados para terem acesso aos seus direitos, devem
ser concebidos como hipossuficientes,32 como o MPF classifica a
populao da Maramabaia.
Do mesmo modo, existe um contedo atribudo cidadania e suas
implicaes nas identidades pblicas que, comparado relao
entre as dimenses legal e moral dos direitos nos EUA (liberal) e
no Brasil, tal como salienta Cardoso de Oliveira,33 aponta para uma
relao diferenciada entre os princpios de justia e solidariedade:
enquanto na sociedade norte-americana a absolutizao dos direitos
individuais expressaria a dificuldade em manifestar expresses de
considerao pessoa e dignidade de seus concidados, na sociedade brasileira, em contrapartida, a dificuldade estaria em respeitar
os direitos individuais, em detrimento de uma excessiva manifestao
de considerao pessoa do interlocutor. Vale lembrar que comum
no Brasil considerarem a cidadania como um recurso disponvel de
determinados nveis sociais: assim, o trabalhador em oposio ao
bandido, pessoas com estudo em detrimento do vagabundo, so
considerados, respectivamente, cidados distintos, ou no cidados.
29
30
31
32

33

DaMatta (1985).
Santos (1979).
Mota (2005).
Hipossuficincia uma categoria jurdica atribuda aos sujeitos vulnerveis, que no tem a
capacidade de ter sua autonomia reconhecida, tendo necessidade de um tutor. Papel esse que
o Ministrio Pblico Federal (MPF) tem sistematicamante desempenhado. O MPF uma
instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado. Seu papel defender a
ordem jurdica do regime democrtico e os interesses sociais e individuais. Os princpios
institucionais do MPF so: intervir no caso de crimes; sustentar a acuso pblica do crime etc.
O MPF pode ainda propor aes em nome da sociedade, quando esto em jogo os interesses
e os direitos difusos. O MPF age na funo de tutela de curadoria-geral da sociedade e
dos hipossuficientes, e da defesa dos direitos da criana e do jovem.
Mota (2005).

257

Arenas Publicas.indb 257

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Nesse aspecto, como algumas pesquisas tm revelado,34 as associaes


no Brasil tm-se caracterizado de uma maneira ambgua, porque, por
um lado, cada vez mais crescem os apelos ao associativismo e ao
capital social, com a difuso de ONGs, comunidades solidrias, associaes. Fato que cria, a princpio, uma iluso de difuso de princpios
cvicos, mas, por outro lado, essas associaes surgem cada vez mais
como intermedirios de interesses de grupos, que reivindicam direitos,
reforando uma tutela por parte de organizaes da sociedade civil
sobre esses grupos. Ou seja, a autonomia que, a princpio, garantiria
a difuso de princpios cvicos sobrepujada diante de interesses de
grupos que se colocam como intermedirios e porta-vozes desses
atores perante suas demandas.
Tal fenmeno articula-se ao fato de que muitas vezes os atores
pblicos, para acessarem determinados direitos, so obrigados a
se organizarem em grupos associativos, comunitrios, para obterem recursos credticios, acessarem aos emprstimos de bancos ou
mesmo a determinados servios pblicos bsicos.35 No toa que
assistimos a uma emergncia de novas organizaes na sociedade
civil na luta pelas garantias de direitos, como grupos de pescadores
artesanais, quilombolas, indgenas etc.,36 que buscam acessar direitos
organizando-se em espaos associativos particulares.
Portanto, as associaes podem adquirir outros sentidos e contornos,
como no caso do Brasil contemporneo em que elas figuram como
espaos privilegiados de um tipo de empoderamento brasileira
em que o custo de ser cidado ser associado a uma nova modalidade
de identidades pblicas reconhecidas como legtimas pelos olhos do
Estado e seus intermedirios.

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34
35
36

Kant De Lima; Mota; Pires (2005); Lobo (2005); Mota (2004).


Kant de Lima; Mota; Pires (2005).
Lobo (2006).

258

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

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SOFRIMENTO E DEMANDA
SOCIAL: UMA POLTICA
PBLICA MUNICIPAL
EM NITERI
Ktia Sento S Mello1

Este trabalho tem por objetivo a compreenso e a interpretao das


prticas e discursos constitutivos de uma poltica pblica implementada pela Secretaria de Segurana Pblica e Direitos Humanos
do municpio de Niteri em 2005, tendo em vista a promoo do
ordenamento urbano da cidade.2
Esta poltica, baseada no recadastramento dos camels, foi idealizada como um mecanismo de incluso social queles que demandavam
licena para atuar como vendedores ambulantes, bem como queles
cujas licenas haviam expirado.
Considerando que no basta mudar, elaborar e implantar leis ou fazer
planos oramentrios para que a resoluo de conflitos no espao
pblico seja alcanada, trata-se de compreender os efeitos que esta
poltica provocou no segmento social para o qual foi desenhada, assim como os aspectos conflituosos e os limites em torno das decises
propostas e executadas pelo governo local.
1

Doutora em Antropologia pelo PPGA/UFF; Professora do Dept de Poltica Social e Servio


Social Aplicado da ESS da UFRJ; pesquisadora do NUSIS/ESS/UFRJ; Pesquisadora
associada do INEAC/NUFP/UFF e do NECVU/IFCS/UFRJ.
Este artigo uma verso resumida do captulo 5 da minha tese de doutorado: Igualdade e
Hierarquia no espao pblico: anlise de processos de administrao institucional de conflitos
no municpio de Niteri, PPGA/ICHF/UFF, maro de 2007.

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A poltica pblica de recadastramento dos camels de Niteri foi


implementada com o objetivo de resolver o que, para o subsecretrio
de Direitos Humanos, era o problema mais grave naquele momento:
o excesso de camels com as licenas vencidas nas ruas. De acordo
com ele, cerca de 800 barracas de ambulantes estavam espalhadas
pela cidade, concentrando-se, principalmente, no Centro e em Icara,
o que quase sempre provocava reclamaes por parte dos moradores
e dos comerciantes da regio. A situao, vista pela SSPDH como um
problema grave, derivava, segundo o discurso da equipe, das licenas
que haviam sido emitidas em 2001 pelo ento secretrio de Segurana
do municpio, para sua rede de amigos e destes para outros amigos.
A licena, cuja validade deveria ser de um ano, havia sido expedida
por ele com validade at o ano de 2004.
O primeiro passo dado pelo subsecretrio de Direitos Humanos
foi uma reunio com os membros da Associao dos Vendedores
Ambulantes Licenciados de Niteri-AVALNI. De acordo com ele,
o objetivo era trabalhar em conjunto com esta associao de modo
que os critrios definidos para a emisso de novas licenas fossem
estabelecidos com transparncia. Para o subsecretrio, tratava-se de
definir a situao de residncia daqueles que requeriam a licena, ou
seja, quem era e quem no era residente do municpio, bem como a
situao econmico-social que representasse um perfil de pobreza e
dependncia dessa atividade para a sua sobrevivncia.
Ainda segundo o subsecretrio de Direitos Humanos, o primeiro
momento do processo de recadastramento, o perodo da rua, permitiu o corte das gorduras. O processo constou inicialmente, do
contato com a AVALNI que fez uma circular convocando todos os
ambulantes para uma assembleia na qual membros da Subsecretaria
de Direitos Humanos estiveram presentes para informar e esclarecer
os critrios para a requisio da emisso de novas licenas. Alm
disso, acrescentou que, acompanhado por membros da associao,
em maro de 2005, foi de barraca em barraca nas principais ruas
de Niteri para traar o perfil de cada uma das pessoas. Este
procedimento permitiu determinar as irregularidades encontradas:
pessoas que usavam a barraca de um camel que j havia falecido;
pessoas que transacionavam barracas seja por intermdio de cartrio,
onde compravam barracas cujas licenas eram intransferveis, seja
de boca, promovendo, um comrcio ilegal, no qual os preos
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

variavam entre trs e cinco mil reais no Centro de Niteri, chegando


mesmo a oito mil reais, em Icara. Alm desses casos, o subsecretrio
acrescenta que havia donos de lojas que tinham 20 barracas alugadas
para terceiros que, por sua vez, contratavam empregados, estes sim,
trabalhando como camels, recebendo salrios que variavam entre
R$ 35,00 e R$ 40,00 por semana (Centro de Niteri) e entre R$ 50,00
e R$ 60,00 (Icara), o que no compunha um salrio-mnimo por ms.
Para os membros da Subsecretaria de Direitos Humanos que trabalharam no recadastramento, esta situao revelava uma explorao
capitalista dentro da prpria atividade de ambulante.
Os casos interpretados como irregulares pela equipe que trabalhou
no recadastramento no pararam a. As ruas estavam repletas de
pessoas com perfis e motivos os mais variados que foram, ao longo
do processo, sendo cortados pela implementao da nova poltica
que visava o ordenamento urbano dentro da legalidade. Vrios tipos
foram identificados e assim relatados:
o cara era fiscal de renda, tinha doze mil reais
de penso e tinha oito barracas; este perdeu a
licena. A outra pessoa, ns ligamos para fazer a
atualizao e ela estava na Blgica com a famlia, ou seja, no tinha o perfil de quem precisava
desta atividade para sobreviver; perdeu a barraca. (membro da equipe de recadastramento)

De acordo com o subsecretrio, aps este trabalho na rua, o nmero


de barracas diminuiu de oitocentas para quatrocentas, quando ento
anunciaram a segunda fase: inscrio para as pessoas que quisessem
requerer a licena. O total de inscritos somou 515 requerimentos
dos quais a grande maioria j trabalhava com barraca na rua, afirma
o subsecretrio. Ele acrescenta ainda que, destas pessoas, aquelas
que j tiveram licena em algum momento, ainda estavam nas ruas
mesmo depois do pente fino que a gente passou; outras, que tinham
perdido a licena depois do levantamento se inscreveram, e outras
ainda, que nunca tiveram licena, tambm fizeram a inscrio. Com
os formulrios preenchidos e os requerimentos nas mos, a equipe
partiu para um terceiro momento do processo de recadastramento que
constou da visita s casas dos camels (515 pessoas que haviam
feito a inscrio).
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Segundo a explicao de um dos membros da equipe, os camels


que pediram autorizao pela primeira vez ou a sua renovao, pagaram o Documento de Arrecadao Municipal (DARM) no valor
de R$ 21,00, foram SSPDH, preencheram um cadastro com dados
referentes idade, local de residncia, nmero de filhos, estado civil,
propriedade, tamanho e tempo de residncia no municpio, renda,
tipo de mercadoria a ser comercializada e local em que pretendia
vend-la. Alm desses dados, os vendedores escreveram, no verso
do cadastro, um requerimento justificando o seu pedido. Aqueles
que no sabiam escrever tinham o seu requerimento escrito por um
terceiro e a sua assinatura registrada pela estampa do dedo polegar.
O discurso pblico da SSPDH o de que o vendedor ambulante no
podia ter uma renda familiar acima de um salrio-mnimo da poca,
ou seja, acima de R$ 300,00 condio que estabelecia um perfil
de excluso social, alegado pelo secretrio de Segurana.
A prioridade foi dada queles que residissem em Niteri e que estivessem dentro do perfil socioeconmico. Outro critrio anunciado
pelo secretrio de Segurana foi: no seria permitido o monoplio
familiar, ou seja, uma famlia com diversas barracas. Segundo o subsecretrio de Controle Urbano de Niteri, Coronel Sidney Coutinho,
h casos de camels que moram de aluguel em apartamentos de
Icara, com custo mensal de aproximadamente R$ 1.500,00 (um mil
e quinhentos reais). Uma pessoa que pode pagar esse valor de aluguel
no pode ser ambulante (O Fluminense, 13/07/05).
Acompanhei de perto a fase do processo de recadastramento, tanto na
organizao dos cadastros, como nas visitas. Os cadastros eram devidamente organizados por bairros pelos membros da Subsecretaria de
Segurana e Direitos Humanos. frente de cada cadastro foi colocada
uma folha de rosto com um questionrio que, ao chegar na residncia daquele que havia feito o pedido, era preenchido por um desses
tcnicos no momento da entrevista ao vendedor ambulante. Esse
questionrio continha perguntas referentes ao perfil socioeconmico:
se o imvel era de propriedade ou alugado pelo candidato licena;
quantidade de cmodos; aquisio de objetos eletrodomsticos como
televiso se preto e branco ou colorida ; aparelho de som; mquina
de lavar roupa; forno microondas; liquidificador; quantos dependentes
residiam na casa; renda familiar; quem trabalhava na casa; se mais
algum da unidade domstica tambm estava requisitando licena.
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Alm destas, havia um espao reservado ao tcnico da equipe no qual,


chegando sede da SSPDH, fazia a sua prpria avaliao a respeito
da condio do camel.
Todos os dias, pela manh e pela tarde, munido de um certo nmero
de questionrios e cadastros, saa um membro da equipe, em carro
da Guarda Municipal de Niteri, que traz escrito SSPDH e Secretaria
Nacional de Segurana Pblica (SENASP), com um guarda ao volante. O destino era a residncia de cada pessoa que estivesse pedindo
a licena para vender suas mercadorias, e o objetivo era conferir se
ela havia dito a verdade. Aps a entrevista dos funcionrios com
o candidato e o preenchimento do cadastro, era explicado que os
relatrios seriam encaminhados ao secretrio de Segurana para que
este desse o parecer final se os vendedores ambulantes poderiam ou
no permanecer no local ou se teriam ou no direito licena (no
caso daquele cujo pedido de licena era o primeiro).
Antes de sair da sede da SSPDH, a equipe lia os requerimentos das
pessoas que seriam visitadas, conferia o percurso para se chegar ao
endereo fornecido, levando questionrios, cadastros e cpia xerox
do mapa de ruas tirada do caderno de endereos do municpio. Alguns
foram avisados sobre a visita por telefone; outros, estando ausentes
na primeira visita, foram avisados por vizinhos, com os quais os
tcnicos haviam deixado recado. interessante registrar que, apesar
de ser uma poltica considerada de incluso social, que tem como
um dos critrios a residncia no municpio, os membros da equipe
do recadastramento, incluindo guardas municipais, tinham muita
dificuldade de identificar a localizao dos endereos que constavam
dos cadastros. Muitos da equipe no residiam no municpio, mas eram
os agentes que, no final das contas, definiriam aqueles que iriam ser
contemplados ou no com as licenas.
Questionados sobre quais procedimentos iriam adotar para descobrir
se a renda declarada era verdadeira, visto que, em sendo trabalhadores informais, muitos no teriam como comprovar a sua fonte, os
membros da equipe responderam que avaliariam as condies de
moradia das pessoas. No entanto, a lgica parece revelar um sistema
de classificao subjetivo que comporta discrepncias e, ao mesmo
tempo, aponta para as excees que eram feitas a partir de uma anlise subjetiva da pessoa que estava visitando a casa do camel. As
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

pretendidas objetividade e profundidade do recadastramento, como


uma poltica pblica de incluso, ficavas refratrias s avaliaes
pessoais dos membros da equipe que parecem revelar um substrato de
valores dado a priori que permitiu esta classificao. A fala a seguir
ilustrativa da maneira como a avaliao era feita:
O nosso olhar era muito de acordo com as
condies de onde a pessoa morava, a realidade
daquela casa, se era uma casa de posse, uma
casa prpria com escritura, quantas pessoas
moravam, quantos eram dependentes. Muitas
vezes, claro, essa coisa de definir se a pessoa
tem renda ou no, muitas vezes a gente via, as
pessoas acabavam falando porque difcil, no
tem sistema de informao, de levantamento
dessas pessoas. Mas eu acho que ia muito
assim da entrevista que a gente fazia com as
pessoas e com os familiares e que levava muito em considerao a situao da casa e dos
dependentes porque, por exemplo, a gente foi
em casa de pessoas que no tinham banheiro
sanitrio e a gente foi em casa de pessoas que
moravam em apartamentos e que s deixaram
a gente entrar depois que o advogado chegou
para acompanhar a visita. Ento, a gente ia
vendo as discrepncias. Ao mesmo tempo,
tinha pessoas que moravam ali no Morro da
Chcara, tinha uma pessoa que morava numa
casa de plstico, no era nem de pau a pique,
era plstico, era uma coisa precria; e tinha
outras pessoas que tinham dentro de casa um
quarto s de equipamento de mergulho. Tinha
a casa de um cara no Ing que tinha uma caminhonete com uma lancha enorme e um quarto
s de equipamento de mergulho. A, esse tipo
de coisa, a gente chegava numa casa e via um
barco, anotava a placa, anotava a placa do barco
e depois fazia o levantamento. (subsecretrio de
Direitos Humanos)

Outro procedimento adotado para a verificao das informaes a


respeito de quem requeria a licena, baseava-se em conversas reali268

Arenas Publicas.indb 268

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

zadas com os vizinhos. Havia tambm os casos em que a regra no


era seguida devido avaliao pessoal que era feita e ao entrosamento
que acontecia no decorrer da visita o que, por sua vez, demonstra
um nvel de arbitrariedade contido no processo. Ainda segundo o
subsecretrio de Direitos Humanos:
A gente ia, e isso no era uma coisa fechada, no
era uma frmula pr-estabelecida, uma frmula
absoluta. Eu visitei uma casa de um senhor que
ganhava, ele e a esposa, tinham uma renda de
mil e quatrocentos reais por ms, morava num
apartamento prprio, um kitnet, mas prprio.
S que, s de remdio e plano de sade, ele
gastava mais de mil reais. Ento, embora ele tivesse uma renda de mil e quatrocentos reais por
ms, a renda da barraca era fundamental para
complementar a renda deles porque s de sade
eram mil reais e sobravam quatrocentos reais
para o resto. Ento, a gente foi analisando caso
a caso. (subsecretrio de Direitos Humanos).

De acordo com o resultado final do processo, foram 240 pessoas que


receberam a licena para atuarem como camels nas ruas da cidade.
Desse total, 190 j trabalhavam na rua com licenas anteriores e 50
receberam a licena pela primeira vez, sendo que estas 50 trabalhavam
sem licena, ou seja, faziam parte do grupo de camels denominados
perde e ganha, ou seja, aqueles que podem vender a mercadoria
num dia e no outro perd-la com a apreenso da fiscalizao dos
guardas municipais.
O recadastramento, no entanto, no foi o nico instrumento que, sob
o ttulo de poltica pblica, visava ao ordenamento urbano dentro da
legalidade em Niteri. Um outro instrumento de controle foi utilizado
pela Subsecretaria de Direitos Humanos, em acordo com a AVALNI,
com o objetivo de impedir a situao descrita como problemtica pela
SSPDH, qual seja, o termo de ajuste de conduta. Este documento
representou um manual do que seria permitido ou no fazer de parte
dos 240 camels que foram legalizados aps o processo de recadastramento: proibio de explorar mo de obra infantil, vender CD,
comercializar fora do ponto, alugar a barraca para terceiros.
269

Arenas Publicas.indb 269

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Quando indagados se entre aqueles que ficaram sem a licena havia


pessoas que preenchiam o perfil por eles estabelecido, argumentaram
que havia e que tambm criaram critrios para o desempate. Esta
situao foi assim descrita:
Ento, voc vai me perguntar: dos 515, s 240
estavam dentro do perfil?. No, outros estavam
no perfil tambm. Os 190 que j estavam antes
foram prioridade, todos eles ficaram; essas 50
outras pessoas ns tiramos no critrio de desempate: por ser portador de deficincia, a idade e
tambm a situao de pobreza, nvel de pobreza
mesmo. Quando a gente fazia aquelas visitas,
na casa a casa, a gente tirou l um cdigo que
eram de tarjas verdes. Quando era muito pobre
que chamava a ateno, a gente marcava com
uma tarja verde e esses a foram, dos que nunca
tiveram licena, na hora de dar licena, esses
tiveram prioridade porque foi o que eu te falei,
tinha lugar que a gente ia e no tinha banheiro, no tinha nada, moravam 50 pessoas num
cubculo. (membro da equipe da Subsecretaria
de Direitos Humanos)

No entanto, existe, uma profunda contradio no mecanismo da


implantao dessa poltica de ordenamento urbano por um lado so
estipulados critrios padronizados para a emisso das licenas assim
como um documento disciplinador da conduta daqueles que foram
por ela contemplados, mas por outro, excees conforme a descrita
em relao ao casal que possua uma renda de mil e quatrocentos
reais por ms:
Ento, a gente priorizou a questo, por exemplo,
tinha gente que morava no Morro do Palcio,
que tinha casa prpria, de dois cmodos, se
ele conseguir uma licena vai ajudar na renda,
mas no vai ser fundamental para o sustento.
(membro da equipe da Subsecretaria de Direitos
Humanos)

Ao contrrio da promoo da igualdade atravs da autonomia dos


cidados no mercado, esta poltica tambm no compensa as desigual270

Arenas Publicas.indb 270

3/5/2011 01:02:05

3 Prova / Kthia /02/05/2011

dades, como seria de se esperar da ao de um Estado numa sociedade


que se apresenta regida por um paradoxo legal,3 construindo uma
nova classificao dos mesmos como pobres, como miserveis,
reforando a ordem social vigente. Esta prtica, no entanto, no
nova. Recenseamento, listagem, classificao e seleo daqueles
que merecem ser assistidos so procedimentos que se inscrevem em
diferentes editos, regulamentos, leis e aes de caridade desde a Idade
Mdia, quando diferentes prticas voltadas para o auxlio ao pobre
terminaram por construir uma imagem social do mesmo.4 No caso
particular de Niteri, pareceu-me que, os camels, excludos de tal
poltica, reagem mesma, e isso contribui para o aprofundamento da
sua representao enquanto pobre.
A visita: construo de um perfil de pobreza atravs
da aplicao da poltica de recadastramento
Os camels, no encontrando fruns legais para a formalizao das
suas demandas por direitos, estando destitudos da licena anterior ou
mesmo no esforo de adquiri-la, parecem construir politicamente uma
identidade de miserveis que publicizada por meio do discurso
e performance do sofrimento. Uma das dimenses desta identidade
constituda no espao das suas casas quando da visita da equipe da
SSDH, conforme demonstrarei a seguir.
Cabe ressaltar que acompanhei as visitas realizadas por trs tcnicos contratados pela Subsecretaria de Direitos Humanos, um deles
cursando o doutorado em Engenharia de Produo na Universidade
Federal do Rio de Janeiro; o outro recm-formado em Geografia pela
Universidade Federal Fluminense; o terceiro, na realidade, uma guarda municipal lotada na Subsecretaria, o que, de certa forma, parece
ter contribudo para diferentes formas de conduzir as visitas, assim
como para as diferentes percepes sobre as condies de pobreza
das pessoas visitadas. As visitas foram realizadas em diferentes bairros do municpio. Acompanhei algumas visitas sendo que em certas
residncias os moradores no se encontravam. Das visitas em que
participei, destaco a seguir aquelas que pareceram expressar melhor
o universo aqui analisado.
3
4

Kant de Lima (2004).


Himmelfarb (1988); Mollat (1989).

271

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3/5/2011 01:02:05

3 Prova / Kthia /02/05/2011

Na casa da Dona Maria Morro Juca Branco/Fonseca


Dona Maria5 uma senhora vestida de roupa gasta pelo tempo, estatura
baixa, com mais de 70 anos de idade, pernas inchadas, e reside em
um local que, segundo escreveu no seu requerimento, um lugar
de risco,6 numa casinha em terreno doado pelo Brizola h mais
ou menos 30 anos atrs. Ela pede uma licena para vender pequenos
objetos que descreve como miudezas para sobreviver e cuidar de
um filho deficiente. Relata ainda que hipertensa e que no recebe
nenhuma renda. Diz que precisa comprar remdios para ela e para o
filho, que no tem com quem contar e que no poderia trabalhar em
outra coisa que no fosse como camel porque j muito velha. Ao
responder a questo a respeito da sua escolaridade, disse que nunca
sentou em uma sala de aula e que seu pai a ensinou s um pouquinho de letras e palavras que ela foi aprendendo olhando nos jornais,
mas que mesmo assim ela no consegue entender muito bem aquilo.
Chegar sua casa no foi fcil. Ela mora em um dos morros considerados at pelo membro da Subsecretaria e o guarda municipal
que conduzia o carro mais perigosos de Niteri. A geografia dos
bairros no corresponde exatamente ao registro cartogrfico; em
muitos no encontramos placas com nomes de ruas como comum
nas esquinas. Chegamos a um ponto que parecia prximo ao endereo
indicado e da comeamos a perguntar s pessoas que encontramos
pelo caminho. O funcionrio da Subsecretaria, gegrafo, perguntou
primeiramente a um adolescente que se encontrava numa das ruas de
ladeira que conduziria casa da Dona Maria. Com ar desconfiado,
ele, timidamente, informou que deveramos voltar, pegar a rua esquerda de onde vnhamos seguir mais adiante e pegar a esquerda
de novo. Tentamos, em vo, encontrar o endereo. Perguntamos a
um homem que passava na calada e este, tambm desconfiado, nos
indicou o caminho anterior, justamente passando pela ladeira na qual
encontramos o adolescente que, dessa vez, j no se encontrava mais
5

Os nomes das pessoas entrevistadas foram alterados para garantir a privacidade dos
interlocutores.
Embora a interlocutora no tenha definido explicitamente o que considera lugar de risco,
a sua percepo difere das reflexes presentes na literatura sociolgica sobre o tema. A
concluso a que chegam diferentes autores de que, associada ao sentimento de insegurana
que impede o discernimento entre os locais de ocorrncia real de violncia daqueles que so
presumidamente violentos, esta classificao aponta para uma base territorial (MIRANDA,
2004; DIRK et al., 2004), ou seja, para o fato de que as reas ou locais de risco correspondem
sempre aos bairros diferentes daqueles nos quais os interlocutores residem.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

l. A impresso que tive era a de que os moradores poderiam estar


zombando da nossa presena. Este fato foi avaliado pelo funcionrio
como sendo o medo que as pessoas que residem nesses lugares de
risco tm quando notam a presena de uma autoridade da prefeitura, pois acham que pode ser a polcia ou qualquer agente, disposto a
investigar o que acontece no lugar.
Finalmente chegamos rua indicada. Paramos diante de uma casa que
se encontrava em obras com trs senhores trabalhando. Perguntamos
ento se eles conheciam a Dona Maria que morava naquela rua. Eles
ento falaram ah sim, aquela que tem um filho deficiente, que est
pedindo autorizao pra montar barraca na rua, no ?. Com poucos
passos, estvamos perante um pequeno porto feito de tbuas de
madeira tambm gastas pelo tempo. O funcionrio bateu no porto e
bateu palmas at que obtivemos a resposta j estou indo. Olhando
entre as frestas do porto, a senhora parecia desconfiada. O funcionrio se apresentou e mostrou os papis. Com timidez e se desculpando
pelo estado precrio da casa, ela abriu o porto que estava fechado a
chaves e pediu que entrssemos.
Descemos por uma pequena escada feita de terra que conduzia a
um pequeno quintal ante a entrada da casa. Com uma pequena sala,
dois pequenos quartos e uma cozinha, esta casa era feita de cimento,
inclusive o cho, o teto com vrios remendos feitos por Dona Maria.
Cortinas de pano, rasgadas, fechavam a porta e a janela gradeadas.
Ao entrarmos na sala, encontramos seu filho, cerca de 40 anos de idade
que, sentado em uma cadeira de rodas, teve dificuldade de levantar o
brao para apertar nossa mo. Abaixo da janela uma fileira de sacos
de cimento se misturava a pequenos objetos como uma barraca de sol
enferrujada e pedaos de pano. As nicas cadeiras que tinham foram
cedidas a mim e ao funcionrio da SSPDH.
O funcionrio explicou: estava ali para fazer o relatrio sobre a
condio socioeconmica dela e que, uma vez encaminhados todos
os relatrios ao secretrio, somente este teria a autoridade para decidir quem iria obter a licena. Dona Maria, ento, chorando, disse
que tinha muito medo do que pode acontecer ao filho quando ela
falecesse, que ele era a sua cruz e que, a cada dia, tornava-se mais
difcil lev-lo ao hospital para fazer exames porque ela no aguenta
mais o seu peso e subir as escadas da casa com ele. A esse respeito
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

o funcionrio da SSPDH a orientou a solicitar ajuda Secretaria de


Assistncia Social para enviar um carro. Ela acrescentou que tinha
problemas em deixar a barraca montada na rua porque eles cobram
R$ 15,00 para tomar conta e se ela no tem dinheiro, tiram um ou
outro ferro da barraca. Apesar de ter sido indagada diversas vezes
sobre quem eram este eles, ela no conseguiu, ou no quis, dar
maiores explicaes.
Diferentemente dos outros funcionrios, este no fez as perguntas
referentes aquisio de eletrodomsticos: se ela possua mais de
uma televiso, geladeira duplex, vdeo cassete ou DVD, mquina de
lavar roupa. A partir da observao da casa da Dona Maria, marcava
as opes de respostas referentes a tais perguntas. A situao falava
por si prpria. No entanto, pelo que pude perceber, a partir dos comentrios posteriores na sede da SSDH e ao longo do acompanhamento
das visitas, nem todos perceberam a situao da mesma maneira, pois
alguns acreditavam francamente que estas perguntas e as respostas
constituam uma fonte indiscutvel do perfil socioeconmico desses
camels.
Na casa do Sr. Jos Largo da Batalha
Chegamos prximo ao endereo informado. Seu Jos aguardava o
pessoal da prefeitura na rua principal, ao lado de uma grande loja
comercial, conforme indicado no formulrio. Um guarda municipal
conduzia o carro e outro fez a entrevista.
Ele pedia licena para vender ma do amor, morango e uva argumentou que queria trabalhar por si prprio porque antes trabalhava
como ambulante para outra pessoa, mas no dava para tirar muito.
Sua casa de trs cmodos: um deles divido por um pequeno degrau
que criava dois ambientes cozinha e sala; outro, que servia de quarto
e, finalmente um banheiro.
Quando indagado pela guarda municipal se possua os aparelhos
eletroeletrnicos que constavam dos itens do formulrio, o morador,
progressivamente, respondia que no e que bastava olharmos ao
redor para nos certificarmos disso, afinal, disse ele, eu no tenho
condies de comprar nada, a minha casa muito pobre, eu s tenho
uma televiso por causa do meu filho pequeno. Acrescentou ainda
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

que havia sofrido uma queimadura no abdmen quando era adolescente e que at hoje apresentava sequelas do acidente. Como parte
do discurso, levantou sua blusa, mostrando a ferida, ainda aberta, que
havia-se formado, e que, por isso, precisava trabalhar para comprar
os remdios necessrios ao tratamento, bem como para sustentar seu
filho e esposa. Indagado se a esposa trabalhava, informou que esta
conseguia pouco servio e como faxineira; ela ganha s R$ 80,00
(oitenta reais) por ms, no d para fazer muita coisa com isso.
Conforme orientao da SSDH, a guarda municipal, aps fazer as
perguntas do questionrio, pediu para ver a casa, mas explicou-me
que, diante da situao precria da residncia, o morador parecia
dizer a verdade, confirmando as informaes que havia colocado
no formulrio de inscrio para a obteno da licena. Por esse motivo, escreveria na avaliao que ele se encaixava no perfil elaborado
pela Secretaria.
Embora houvesse uma tentativa de padronizao dos procedimentos
para a realizao do recadastramento, as abordagens dos tcnicos
eram diferenciadas. Enquanto dois engenheiro e guarda faziam
as perguntas e a vistoria nas casas diretamente, o outro tcnico,
para no constranger as pessoas visitadas, evitava algumas perguntas
que, para ele, eram preliminarmente respondidas com a observao
geral das casas.
interessante, tambm, observar que embora alguns entrevistados
no tivessem percebido a lgica de avaliao subjacente poltica
de recadastramento, como aconteceu no caso de uma das entrevistadas, a maioria deles pode perceber, ou se antecipar ao significado
da visita e, por isso, prepararam um discurso de sofrimento que, da
sua perspectiva, aprofundava o perfil de misria por eles vividos,
na expectativa de mobilizar os sentimentos dos tcnicos e lev-los a
uma avaliao positiva, segundo o perfil socioeconmico delineado
na poltica de recadastramento.
Mas se isso possvel, porque parece existir um patrimnio comum
de esteretipos, compartilhado tanto pelos operadores da poltica
implantada na esfera da gesto pblica local quanto pela populao
para a qual se dirigiu, ou seja, para camels. Trata-se, portanto, da
enunciao pblica de um discurso no qual os atores, para se defi275

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

nirem e existirem socialmente, precisam lanar mo de elementos


lingusticos e da sua vida cotidiana.
Mas esse discurso tambm constri uma identidade coletiva que no
dada previamente em fatos brutos da existncia cotidiana, mas o
resultado de um trabalho coletivo no qual representaes e elementos
lingusticos o tornaram possvel. Em Les cadres, Boltanski analisa
a formao de um grupo social como o produto de um trabalho de
enunciao preexistente sua identidade coletiva7 e que, quando o
discurso sobre esta identidade se torna pblico, tem um duplo efeito:
de explicao e implicao. Diz o autor que
o simples enunciado daquilo que j existia
em estado de latncia, na indeciso relativa
da prtica cotidiana, uma interpretao que
recalca na ordem do implcito os significados
laterais que outras formas de introspeco
dirigidas (e dirigidas por outros em outras
situaes) podem sugerir [...].8
Dessa forma, seguindo esta perspectiva de interpretao, o discurso
e a nfase atribudos aos sinais de pobreza (ausncia de aparelhos
eletroeletrnicos ou a casa simples) e sofrimento (as feridas no corpo
ou o mal-estar) parecem ser a demonstrao de que esses elementos j foram formulados e interpretados a partir do que constitui a
experincia vivida pelos atores envolvidos. Por compartilharem um
patrimnio comum de esteretipos, a demonstrao presente no
enunciado dos camels no espao da rua refora a representao
da identidade de miserveis e o discurso do sofrimento como um
meio atravs do qual acreditam poder ter acesso ao direito da licena
para atuarem como camels.
O camel como espectador moral
Os elementos constitutivos da percepo dos camels que foram
visitados em suas residncias pelos funcionrios da SSPDH em
relao ao recadastramento, tambm encontram eco na percepo
que outros camels, no espao da rua, tm sobre a mesma poltica.
7
8

Boltanski (1982, p. 22).


Ibidem.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

O trabalho de campo que realizei sobre os camels se constituiu da


observao nas ruas do centro de Niteri, de entrevistas e conversas
que se realizaram desde outubro de 2005. Minha ateno foi centrada
na Pracinha dos Aposentados ou, como os camels portadores
de deficincia fsica (PDF) denominam, Pracinha dos Chumbados,
em aluso ao fato de que a maioria dos seus frequentadores so PDF
e pessoas destitudas economicamente. Localiza-se na esquina da rua
Visconde do Uruguai com a avenida Amaral Peixoto, no centro de
Niteri. Em funo do perodo de festas de fim de ano que aumenta
o movimento no centro da cidade, assim como da presena de ambulantes, o Secretrio de Segurana declarou ao jornal O Fluminense
(13/07/05) que a ordem era colocar todos os guardas municipais nas
ruas (at mesmo aqueles que fazem o servio interno) para controlar
os camels, que onde houver guarda no h camel. Como em
todas as grandes cidades no Brasil, essa poca de corre-corre para
as compras e vendas, pequenos furtos e roubos nas ruas e conflito
entre guardas municipais e camels.
Iniciei o campo caminhando pelas seguintes ruas: avenida Rio Branco,
rua Aurelino Leal, rua Jos Clemente, rua da Conceio, rua Visconde
de Uruguai, rua So Joo, rua So Pedro, rua Coronel Gomes Machado e rua XV de Novembro. Procurei observar os movimentos e os
diferentes tipos de servios encontrados. Essas ruas so marcadas pela
presena de comerciantes de sapatos, roupas, botequins, lanchonetes,
papelarias, farmcias, cursinhos de pr-vestibular e preparatrios para
academia militar, e bancos. Os servios prestados por esse comrcio
parecem destinados a um perfil bem popular de pessoas. As lojas
no ostentam a sofisticao das grandes ou pequenas butiques que
se encontram em grandes shoppings de classe mdia, nem nas ruas
de comrcio de Icara, por exemplo. Na rua Jos Clemente ainda
h uma loja de aposta do Jockey Clube Brasileiro. No h nenhum
servio voltado para o atendimento e orientao de utilidade pblica
de acesso justia ou sade. No entanto, foi possvel observar a presena de lojas de crdito pessoal que oferecem emprstimos a serem
descontados em folha. Considerando a alta circulao de pessoas no
centro de Niteri, foi notvel a ausncia de banheiros pblicos, uma
das queixas dos camels.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Suas histrias e representaes


Ansio tem 30 anos de idade e reside em uma rea pobre prxima
a Pendotiba. casado, pai de trs filhos e h 20 anos trabalha como
camel no Centro de Niteri. Ansio portador de deficincia na
perna esquerda e, por isso, precisa de muletas para caminhar. Relata
que adquiriu a deficincia porque foi baleado pelo ex-namorado de
uma moa com quem saa antes de se casar. De acordo com Ansio,
possui um laudo mdico que leva consigo cotidianamente porque,
munido desse documento, obtm autorizao legal para entrar em
qualquer repartio pblica, mesmo trajando bermuda. Diz que
normalmente barrado por causa da crueldade das pessoas.
Conta que estudou at a 3 srie primria e escolheu ser camel
por causa da condio de liberdade e acolhimento que a rua lhe
proporciona. Diz: eu gosto da rua por causa da liberdade. Eu ando
aqui e todo mundo diz: bom dia, boa tarde, j almoou? Numa firma
no assim.
Descrevendo a sua trajetria, conta tambm que nasceu e cresceu
nas ruas do Centro de Niteri e que os guardas municipais, nos anos
1980 ajudavam-no oferecendo a comida e roupas. Por outro lado, a
situao atual percebida como a perda da condio anterior visto
que, para ele, a poltica do recadastramento deixou muita gente de
fora injustamente. assim a que descreve:
Aquilo foi uma falcatrua danada, foi cometida
muita injustia. Tem gente aqui que mora em
So Gonalo, que j tem licena antiga e agora
tem camel de verdade que mora em Niteri
e que vive disso h muito tempo e no pode
mais trabalhar na rua porque no tem licena.
(Ansio)

Ansio disse que foi processado pelos coronis (referindo-se aos


gestores da SSPDH, ao comandante e inspetores da Guarda Municipal)
sob a acusao de fazer pirataria vendendo CD e peas de computador. No entanto, ele nega esta acusao e acrescenta que j tentou
se defender, mas diz que no teve direito a defesa, fato que, segundo
ele, comum maioria dos camels de Niteri. Ele assim descreve
a poltica de segurana no municpio de Niteri:
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Nenhum camel aqui tem direito de defesa. Se


o Secretrio, que de Segurana e Direitos Humanos, mandou tirar a barraca de um camel,
no vai ser ele mesmo que vai deixar colocar
de novo. Sendo secretrio de segurana e de
DH ele no vai desfazer de um lado o que fez
do outro lado. Alis, deveriam ter duas secretarias separadas, uma de segurana e outra de
DH. (Ansio)

A sua percepo sobre a atuao das autoridades locais responsveis


pela implantao de polticas municipais de Segurana : negligenciam completamente ou tratam-nos com violncia. Alm disso,
embora sendo um rgo pblico, esta concepo no aplicada,
uma vez que nem todos tm o direito de entrar l, evidenciando a
representao de pblico como o que estatal e, por isso, contra o
cidado, no com o sentido de coletividade presente na sociedade
brasileira.9 Segundo Ansio,
Eu ainda quero levar voc [referindo-se a
mim] comigo l na Secretaria e voc fica do
outro lado da rua s para ver como que eles
nos tratam. Outro dia eu fui barrado por um
segurana armado na portaria da SSPDH. Isto
no est certo porque l um local pblico,
mas eu no posso entrar; um rgo pblico
com o porto fechado. Os guardas usam a sua
carteira em benefcio prprio, n, porque com
a gente eles so muito truculentos e batem em
mim e nos outros. (Ansio)

Em uma das conversas na Pracinha dos Chumbados, entre Ansio e


seus colegas, sobre o que achavam da poltica do recadastramento,
outro camel interveio dizendo:
Chega esse coronel [referindo-se ao Secretrio
de Segurana de Niteri] para dizer que se a
gente tem casa, televiso, som dentro de casa,
a gente no pode trabalhar como camel. Parece
que ao invs de andar para frente, a gente tem
que andar pra trs. Todo mundo vai passar o
9

Kant de Lima (1997, 2001, 2003, 2004).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

natal bonito e comer bem, e a gente no pode


nem comer um frango? A gente t sendo humilhado. Isso abuso de poder! (X, camel
h 20 anos no Centro de Niteri)

Essa percepo confirmada por outro camel que, no momento da


conversa, declarou:
Esse perfil no tem lgica porque a gente trabalha para melhorar de vida, mas eles chegam
l na casa da gente e se a gente tem um eletrodomstico e uma casa mais ou menos, ele [o
Secretrio] no quer dar a licena. (Y, camel
h 18 anos no Centro de Niteri)

Este mesmo camel, que estava vendendo CD, descreveu a ao dos


guardas da seguinte maneira:
Eles agarram a pessoa mesmo se ela no est
com a mercadoria exposta no cho. s vezes
a gente pe a mercadoria na mochila e corre e
eles correm atrs como se ns fossemos ladres.
(Y, camel h 20 anos no Centro de Niteri)

Quando indagados sobre o que achavam da poltica de recadastramento, todos os camels entrevistados foram unnimes em dizer que a
aplicao foi injusta e covarde. Quanto ao critrio que exigia a residncia do camel no municpio de Niteri, duas crticas principais eram
enunciadas: uma de que o critrio no era igualmente aplicado a todos,
uma vez que alguns camels que obtiveram a licena moravam em
So Gonalo; outra era a de que, mesmo residindo em So Gonalo,
alguns camels se ressentiam do fato de que haviam prestado servios ao municpio, uma vez que trabalharam no mesmo durante quase
toda as suas vidas e igualmente se ressentiam do fato de que haviam
ajudado Guarda Municipal em diferentes momentos, ora auxiliando
com material e mo-de-obra na construo do gabinete da direo, ora
nas festas de comemorao de Natal e de fundao da instituio. Alm
disso, outra crtica recorrente: tendo trabalhado toda a sua vida na rua
como camel, esta era a nica atividade que sabiam e gostavam de
fazer. O relato de um dos camels mais antigos de Niteri revelador:
Ento, hoje, eu vou dizer a minha vida, para
a senhora, na rua. Eu, dos 8 anos de idade at

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

59, s tive dois inimigos fiscais. A fiscalizao


sempre foi apaixonada por mim, a Guarda
Municipal sempre foi apaixonada por mim, e
hoje entraram esses coronis, porque a gente
no sabe se guarda ou se quartel da polcia.
Do meu ponto de vista eles so uns monstros,
no entendem nada disso. Eu acho que cada
prefeito tem que tomar conta da sua cidade,
cada prefeito tem que dar emprego aos seus,
como se diz, s pessoas que pagam imposto
no municpio, vamos dizer, filhos da cidade.
Se eu sempre fui de Niteri, nunca trabalhei
um dia no Rio, nunca trabalhei um dia em So
Gonalo, nunca trabalhei um dia em Icara;
eu s conheo essa rua daqui, a senhora no
acha que eu tenho direito a minha licena? A
senhora acha que algum tem o direito de tirar
a minha licena, o meu direito de trabalho? Eu
no aprendi a fazer mais nada a no ser camel. A Guarda Municipal hoje tem um gabinete
que fui eu que fiz. Antes havia um diretor que
era bravo, ele tinha o nome de campeo de
luta brasileira, esse foi um deles, h uns 12
anos; mas ele se comunicava com a gente. Ele
no esculachava a gente. Alm dele ser forte
e bravo, ele beijava o nosso rosto e a gente
nunca abusou dele. Ento, o que acontece? Eu
fazia a festa da Guarda no final do ano. Pode
perguntar a todos os guardas antigos ou a esse
diretor porque ele ainda vivo. Eu arrumava
com os meus amigos, camels tambm; um
dava uma caixa de cerveja, quem podia dar dava
duas; dava caixa de refrigerante. Ento juntava
aquilo tudo; um dava uma caixa de fruta, outro
dava outra caixa de fruta; a gente juntava. De
barraca em barraca eu pedi brinquedo para dar
de presente aos filhos dos guardas. Eu pagava
do meu bolso um conjunto para tocar no dia da
festa, uma aparelhagem de som. (camel h
51 anos no Centro de Niteri)

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Dar implica receber: estabelecer uma comunicao de reciprocidade10 que garante as relaes sociais, comprometendo os indivduos
que entram na troca entre si e a coisa que dada, que transmitida,
oferecida, no inerte. Quem presenteia algum com alguma coisa,
d uma coisa de si, da sua substncia. Da decorre igualmente a
obrigao de retribuir, pois que a no retribuio implica em no
aceitao da substncia do doador ou, em outros termos, na sua
desconsiderao.11 Mauss que ainda destaca dois elementos
essenciais no potlach que servem como referncias para pensar os
valores depreendidos do relato do camel: o elemento da honra, do
prestgio, de mana que confere a riqueza e o da obrigao absoluta de
retribuir essas ddivas sob pena de perder esse mana, esta autoridade,
esse talism e esta fonte de riqueza que a prpria autoridade.12
Uma vez a reciprocidade rompida (a no retribuio) de parte da
Guarda Municipal, e no lugar da troca/comunicao a represso, o
relato desse camel parece indicar que este rompimento, que o
tratamento baseado na represso e no no reconhecimento da ddiva
oferecida pelos camels percebido por eles como um esculacho.13 Decorre da que neste perodo marcado por conflitos abertos
entre os guardas e os camels, uma certa percepo sobre o que
fazer poltica local valorizada e reforada, desvalorizando, de certa
forma, a representao da Guarda Municipal como autoridade local.
Ao contrrio de considerar uma poltica formal, baseada em critrios
impessoais e procedimentos previamente estabelecidos e acordados
com a prpria ALVANI, como o que foi descrito sobre o recadastramento, este relato valoriza a poltica com base em princpios de
reciprocidades pessoais. Olhando para o passado, o camel revela
um perodo no qual o diretor da Guarda se comunicava com os
camels e ainda que fosse bravo e campeo de luta brasileira,
ele tambm os beijava no rosto. como se no houvesse nos dias
de hoje o reconhecimento da ddiva que os camels ofereceram
no passado: a construo do gabinete da Guarda, os preparativos e
presentes para o dia da festa.
10
11
12
13

Mauss (1974).
Cardoso de Oliveira (2002); DaMatta (1983).
Mauss (1974, p. 50).
Esta categoria tem sido recorrente no discurso de camels de outros municpios e em
contextos de conflitos com outros agentes de Segurana. Uma anlise aprofundada sobre o
esculacho pode ser encontrada em Pires (2005).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

De acordo com o relato dos camels, esta poltica e a atuao dos


guardas municipais tm como consequncia a usurpao de um direito
que lhes garantia anteriormente uma vida digna, deixando-os atualmente em situao de misria e humilhao. Esse antigo camel
do Centro de Niteri descreve assim a sua situao atual, semelhante,
segundo ele, a de todos os camels que ficaram excludos do processo de emisso das licenas:
Alm deles tirarem o nosso direito ao trabalho,
deixando nossa famlia passando necessidade,
passando humilhao, eles deixam uma ferida
muito grande dentro da gente, uma revolta.
No tem remdio nenhum que cure essa ferida.
Olha, eu estou h seis meses com o aluguel
atrasado, a dona da casa s no me botou para
fora porque ela gosta de mim, porque me acha
uma pessoa sria, mas j no est aguentando
mais. Minha luz, j no sei quantas vezes eu
parcelei; o telefone j foi cortado; estou sem
nada em casa para comer. Antigamente eu
colocava 3, 4 caixas de frutas nas costas e saa
correndo; hoje eu no posso mais, hoje eu no
aguento andar. Uma vez na Cmara, na audincia aberta a todos eu peguei e falei: eu em
Niteri no preciso de licena dentro da minha
bolsa; a licena a minha cara. Qual o fiscal
que no me conhece, qual o vereador que
no me conhece? Qual o guarda que no me
conhece? Para qu eu preciso de licena? Tenho
51 anos massacrados; o que esses coronis esto
fazendo ai hoje coisa do arco da velha, isso
caso de polcia, isso caso do presidente da
repblica e ningum v. Mas se a gente liga
para o RJ TV, eles apanham os nossos dados,
fazem contato com a Secretaria [referindo-se
SSPDH], mas no vem o nosso caso porque
so todos comprados. Voc liga para uma emissora de televiso, eles dizem ah, ns vamos
a, mas eles vo l na Secretaria, vem o outro
lado; chega l, comprado, a gente sabe disso,
ns no somos bobos. (camel h 51 anos no
Centro de Niteri).

283

Arenas Publicas.indb 283

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Quando indagados sobre a mobilizao para reverter esta situao,


os camels tambm foram unnimes em dizer que nem todos acreditavam na sua associao porque esta est vendida aos coronis
e que entram na justia, mas que esta no atende s suas demandas
porque a justia em Niteri funciona na base das relaes pessoais e da amizade. Um dos relatos descreve que alguns camels
foram acusados de terem recebido licenas falsas durante a gesto
do primeiro secretrio Municipal de Segurana de Niteri e que as
venderam a outros camels. Acrescenta ainda que, devido ao fato
de terem entrado na justia esto sofrendo perseguio por parte de
autoridades locais e uma das consequncias foi justamente no terem
conseguido obter a renovao das suas licenas:
Eles dizem que em 3 anos ns movimentamos
3 milhes, mais do que o deputado Jferson.
S que ele to imbecil, com toda a formao
dele de coronel, que ele ainda botou o nome
dele: Cel. Hlio Luiz [Secretrio de Segurana
Pblica de Niteri]. Ento, ns entramos com
ele na justia para ele provar; ns pedimos o
direito de resposta ao jornal O Globo, e o jornal
no recebeu a gente. Ns fomos ao Batalho,
no Comando Geral e demos parte dele; fomos
na promotoria pblica e demos parte; entramos
com uma queixa crime contra ele na delegacia,
uma queixa de perdas e danos e danos morais.
Ele vai ter que provar. Se ns vendemos 600
licenas, inclusive ele deixou 3 colegas deles
mal, que passaram l como secretrios: dois coronis como ele e um vereador: coronis Paulo
Srgio e Josaf e o vereador Marival. Ento
eles vo ter que dizer como que ns retiramos
essas licenas do comando porque elas vm de
dentro pra fora. Como que ns temos acesso
a computador, acesso ao Ministrio da Fazenda
pra gente conseguir essas licenas? A, o que
aconteceu? A virou uma guerra pessoal, no
? E poucos tm coragem de denunciar eles,
mas ns tivemos coragem; ns fomos ao juiz,
fomos delegacia. E est rolando l o processo.
E com isso ele persegue a minha famlia. Para

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

a senhora ter uma ideia, ele mistura o lado


profissional com o lado pessoal. Como o meu
filho excepcional, o que ele tem a ver com as
minhas atitudes, com o meu modo de ser, o meu
modo de viver? Ele foi, tirou a licena do meu
filho tambm. Conforme ele tirou a licena do
meu compadre, que um dos que brigam com
ele na justia, a esposa do meu compadre tinha
licena e ele tambm tirou, o irmo do meu
compadre e o filho dele. Tirou todo mundo.
Agora, do presidente da associao atual, que
se aliou a ele, tem a licena dele e do irmo. O
presidente da associao tem carro, tem casa
bonita e os filhos bem empregados. (Camel
h 51 anos no Centro de Niteri)

interessante notar que, embora assinalando criticamente que a justia em Niteri funciona na base das relaes pessoais, o argumento
utilizado pelo mesmo camel anteriormente destaca uma espcie
de ressentimento por essas relaes terem sido rompidas na lgica
das trocas estabelecidas no passado. Ao contrrio da crtica aparecer
como um argumento que sublinha uma prtica poltica baseada em
critrios impessoais, e consequentemente universais, por parte das
autoridades locais, a manifestao dos camels parece reforar a
crena nessas prticas e tambm negar o Estado como o lcus que,
por excelncia, detm a autoridade legtima da imposio de uma
viso do mundo social, como argumenta Bourdieu.
O sofrimento teatralizado
A imagem que os camels PDF constroem deles mesmos a de que
so destitudos economicamente, excludos socialmente e vtimas de
deficincia fisica. Com base nessa imagem, esses camels relatam dramas e problemas que so, do seu ponto de vista, produzidos
e agravados pelas prticas resultantes de polticas de segurana cujas
propostas de reconhecimento legal e real de direitos permanecem
como uma promessa no cumprida. Argumentando que so incapazes de conquistarem seu acesso aos direitos dos quais se julgam
elegveis, lanam mo de estratgias performticas que acentuam uma
identidade coletiva de miserveis, compatvel com as exigncias da
poltica de recadastramento.
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

De acordo com Ansio, uma das estratgias encontradas por ele para
lidar com estes problemas no dia a dia passa pela tentativa de mobilizao dos sentimentos de indignao e piedade dos espectadores
das cenas que se passam diante dos seus olhos no espao pblico. Ele
diz que como eu sou assim, um PDF, e no tenho direito de defesa,
eu me defendo da forma que eu posso eu mordo os guardas. Ele
acrescenta que, para chamar a ateno das pessoas e impedir que os
guardas batessem mais nele:
Um dia eu estava vendendo guarda-chuva e
os coloquei dentro de um carrinho desses de
supermercado; os guardas vieram para pegar
a minha mercadoria e eu me joguei dentro do
carrinho por cima dos guardas-chuvas para que
eles no pegassem nada; que sendo PDF, eles
no podem me bater, existe uma lei federal que
protege os PDF, mas mesmo assim eles levaram
tudo. (Ansio)

As suas estratgias, no entanto, no param a, pois o deboche tambm


uma das prticas para mobilizar os sentimentos dos espectadores
presentes no espao pblico e, consequentemente, precipitar neles o
engajamento na causa desses camels. Em um dos seus relatos o
mesmo camel conta que:
Um dia eu forrei o cho com uma lona em
frente Pracinha dos Chumbados e coloquei
um monte de lixo em cima capa de celular
rasgada, pilha que no funcionava, pente usado,
lpis quebrados e canetas sem tinta. O guarda
chegou e pediu que eu tirasse as mercadorias
dali. Eu falei que no ia tirar nada no. O guarda
disse ento que seria obrigado a recolher a mercadoria e eu falei: ah, lixo o que voc quer?
Ento toma a o seu lixo!. Eu peguei a minha
muleta por baixo da lona e levantei tudo para
cima do guarda; o lixo foi todo pra cima dele e
eu continuei a falar: toma o seu lixo, toma o
seu lixo. (Ansio)

De acordo com ele, a partir desse dia ficou marcado pelo guarda, na
ocasio um inspetor do ordenamento urbano da Guarda Municipal.
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Arenas Publicas.indb 286

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Outra forma de mobilizar os sentimentos das pessoas foi a tentativa


de chamar a ateno da mdia em manifestaes por eles organizadas, uma delas na Ponte Rio-Niteri e outra em frente ao Palcio
Guanabara, sede do governo do Estado do Rio de Janeiro. Uma das
interlocutoras descreveu assim essas manifestaes:
Eles se acorrentaram no vo central, numa
sexta-feira, h mais ou menos uns quatro meses,
na vspera de feriado de finados, em novembro
[2005], final de outubro. Eles se acorrentaram
no pescoo, agarrados um no outro, ficaram
em p em fileira e prenderam a corrente numa
mureta no vo central; eles ficaram acorrentados em p. Isso causou um congestionamento
de 10km, dito pelos jornais. Ns comunicamos
todas as rdios, todos os jornais para irem l,
mas ningum conseguiu chegar porque deu um
tor, deu um dilvio; era 4 e pouca da tarde e
parecia que j era de noite essa tempestade que
deu. E a maior sorte dos meus colegas que a
Polcia Federal chegou na hora com o pessoal
do socorro da Ponte para retirar eles seno eles
poderiam cair por causa da ventania, entendeu?
Retiraram eles e levaram eles pra sala da Federal
l na Ponte mesmo e fizeram uma entrevista
com eles. Tem at essa matria no jornal,
que o Anselmo fez, e falou que todo dia eles
tinham que ir para a Prefeitura para aporrinhar
o Prefeito porque o Prefeito que tinha que
resolver esse problema. Se o Secretrio est
fazendo o que est fazendo porque o Prefeito
est dando ordem, e se ele est pensando que
nessa eleio que vem agora ele vai se eleger,
eu acho meio difcil porque tem muita gente
revoltada com a retirada das barracas, principalmente deficiente. A, depois disso eles [os
camels] foram para o Palcio da Rosinha, l
no Guanabara, se acorrentaram l tambm. Ela
estava viajando, mas um assessor dela atendeu
eles e deixaram at um carto porque qualquer
coisa que precisassem era para ligar para eles.
Eles estavam reivindicando que a Rosinha

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Arenas Publicas.indb 287

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

ela que a patroa do Secretrio, no ? Ela


que manda no Secretrio de Segurana. Aqui,
sendo uma secretaria municipal, a Prefeitura.
Ele veio emprestado do Rio pra c porque ele
um coronel, l no Rio. (Mara, camel h 16
anos no Centro de Niteri)

Uma terceira manifestao se caracterizou pelo acampamento que um


grupo de 12 camels PDF, fez durante dois dias, no incio de 2006,
em frente ao novo prdio da Prefeitura. De acordo com esses camels, mais do que conseguir objetivamente o direito, esta manifestao
teve a inteno de envergonhar o prefeito e o secretrio diante da
opinio pblica. Segundo duas moas que trabalham em uma corretora
de crdito pessoal na Avenida Amaral Peixoto, nas proximidades da
Pracinha dos Chumbados, simpatizantes da causa dos camels e
amiga de trs daqueles que frequentam a mencionada pracinha, eles
so submetidos a uma situao de humilhao, covardia e violncia
por parte dos guardas e das autoridades locais. Elas dizem que so
as suas madrinhas e que, sempre que necessrio, testemunham a
seu favor. Durante a manifestao do acampamento elas contam que
iam visit-los, levando para eles gua e comida.
Consideraes finais: os atores sociais enquanto
espectador moral
Minha entrada no espao dos camels de Niteri foi marcada pelo
meu encaminhamento, por parte do interlocutor a quem eu havia
sido apresentada por um conhecido, a um grupo de camels que
so denominados e se auto denominam PDF: particularmente defi
cincia visual, locomotora e, como eles mesmos dizem, m-formao
postural. O discurso principal era: apesar de serem portadores de
deficincia fsica, e por isso elegveis como um grupo prioritrio
dentro da poltica de emisso das licenas, eram vtimas constantes de
maus-tratos e agresses por parte dos guardas municipais, bem como
negligenciados pela Secretaria de Segurana Pblica do municpio
de Niteri. O reforo dos sinais fsicos do seu sofrimento representa
que a prova da eminente dignidade da pobreza dada por meio
de suas manifestaes extremas, insustentveis e, particularmente,
dos mais espetaculares atentados contra a integridade corporal, do
mesmo modo que a prova mais irrecusvel da divindade de Cristo
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Arenas Publicas.indb 288

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

a sua morte ignominiosa na cruz.14 As precrias condies de vida,


a dificuldade de acesso ao trabalho devido s deficincias fsicas,
e, consequentemente, a impossibilidade de proverem uma vida digna
para eles e suas famlias foram exemplos que, do ponto de vista do
grupo, faziam deles pessoas excludas socialmente.
A recorrncia de aspectos do sofrimento material e fsico, sempre
invocados como evidncias de que deveriam ter a demanda contemplada, levou-me a fazer uma reflexo sobre o problema a partir de
elementos utilizados pelos atores sociais na construo de um discurso do sofrimento aceitvel enquanto discurso poltico, estratgia
de construo de uma identidade coletiva que possibilitaria a sua
considerao enquanto sujeitos de direitos.
Em sua anlise sobre a souffrance distance, Boltanski, partindo da
perspectiva que o homem constri a sociedade e, por isso, no est
preso aos constrangimentos impostos por uma estrutura social preexistente, considera que os atores sociais tm capacidade reflexiva
sobre as suas aes, ou seja, tm competncia para julgar, criticar
e denunciar os fenmenos vividos e observados por eles na vida
cotidiana. Em seu livro, o autor parte da indagao a respeito das exigncias morais e da dimenso poltica que o sofrimento distncia
impe ao espectador quando este se depara com cenas de sofrimento
veiculadas pela televiso. Pergunta ele: em quais condies o espetculo do sofrimento distncia, interposto pela mdia, moralmente
aceitvel?.15 Ao desenvolver sua anlise, Boltanski oferece alguns
elementos importantes para se pensar o discurso do sofrimento no
como uma emoo individual e espontnea, mas como construo
social que operada como estratgia para o acesso a direitos.
Por intermdio da metfora do teatro, Boltanski destaca a pertinncia
poltica do sofrimento no espao pblico, colocando em evidncia a
presena dos atores sociais como espectadores. O que isso quer dizer?
Ao contrrio de tratar a metfora do teatro como suporte exterior de
uma relao crtica sociedade, na qual o sujeito tratado como ator,
Boltanski prope a considerao da mesma como objeto de um deslocamento que permite que significados novos lhe sejam atribudos.16
Dessa maneira, a nfase colocada sobre o sujeito social enquanto
14
15
16

Castel (2005, p. 67).


Boltanski (1993, p. 9).
Ibidem, p. 47.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

espectador.17 Este espectador, no um sujeito emprico, que observa do ponto de vista de uma objetividade sem perspectiva,18 mas
um sujeito sobre o qual se impe uma moral. Ento, como possvel
articular os diferentes atores sociais de modo que possam ser pensados
enquanto espectadores morais e, por isso, tornar o sofrimento uma
estratgia poltica no espao pblico?
Dentro dessa perspectiva, importante a considerao de Boltanski
de que o espao pblico se constitui em torno de causas que so institudas a partir de deslocamentos de posies e representaes dos
fenmenos sociais por este espectador. E, para o autor, nada mais
favorvel formao de causas do que o espetculo do sofrimento...
inicialmente em torno do sofrimento dos infelizes que as pessoas,
at ento indiferentes, se sentem inclinadas a aderir a uma causa.19
Alm disso, no estando voltado para uma objetividade, sem a tomada
de posicionamento por parte dos atores sociais, o autor considera que,
no espao pblico, o sofrimento modifica as condies do debate,
submetendo-o urgncia e exigindo das pessoas o seu engajamento
para as causas do sofrimento.20
Considerando-se o lugar do espectador diante de pessoas que sofrem,
o autor argumenta que lhe restam duas opes. Ele pode simplesmente ver o espetculo do sofrimento e no se pronunciar ou, por outro
lado, dar voz ao sentimento que tal sofrimento lhe imps. A primeira posio leva crtica a respeito de uma atitude essencialmente
negativa, caracterizada por um olhar egosta por meio do qual o
espectador absorve internamente as emoes suscitadas pelo espetculo do sofrimento emoes de fascinao, de horror, de prazer etc.
A segunda posio, por permitir a construo de um olhar voltado
para o exterior, segundo o critrio da palavra pblica, aquele que
expressa a sua piedade e a inteno de acabar com o sofrimento
daquele que sofre, ainda que o espectador no esteja em condio de
agir concretamente. Para o autor, a simples inclinao do espectador
para comunicar a um pblico ilimitado a emoo suscitada j , por
princpio, uma palavra pblica.

17
18
19
20

Boltanski (1999, p. 45).


Ibidem, p. 78-79.
Ibidem, p. 53.
Ibidem, p. 53.

290

Arenas Publicas.indb 290

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Como as implicaes polticas, nesse caso, esto referidas s exigncias morais impostas observao que um espectador faz do
sofrimento, importante apresentar a distino que Boltanski estabelece entre uma poltica da justia e uma poltica da piedade, que
compreende trs pontos essenciais. A poltica da justia, apoiando-se sobre uma teoria da justia considerada, ela mesma, pelo que o
senso comum percebe como justia, visa administrao de disputas
e representa um modelo que separa as pessoas pelas suas grandezas21
e no por serem felizes ou infelizes. Nesse modelo, a questo que
se coloca saber se a maneira pela qual as pessoas so ordenadas
segundo a sua grandeza e valor justa ou no. Em segundo lugar, as
qualidades que definem as diferentes grandezas das pessoas no esto
ligadas s condies das pessoas. Por fim, uma poltica da justia
busca resolver as disputas, operando uma lgica de equivalncias no
contexto de uma prova.
A poltica da piedade caracteriza-se pelo inverso: fundamentalmente
pelo fato de que no importa se o sofrimento ou a infelicidade so
justificveis, ou seja, o sofrimento no acompanhado pela prova,
ele invoca a urgncia da ao, ainda que seja pela enunciao da piedade do espectador. preciso ainda esclarecer o que essa poltica
da piedade e em que medida o seu contedo est presente tanto na
manifestao do discurso do sofrimento dos camels que so
portadores de deficincia fsica, como na poltica do recadastramento
proposta pela Secretaria de Segurana do Municpio de Niteri.
Em seu livro La socit dcente, Margalit prope que uma sociedade
decente aquela na qual no somente os indivduos, mas igualmente
as instituies que dela fazem parte, no humilham as pessoas. Entre
as sociedades que no podem se caracterizar como decentes, o autor
destaca aquelas nas quais a condio da misria humana tratada
com humilhao: o abandono, a ausncia de abrigo e de meios de
defesa, o abandono ao revs, a batalha pela vida, o rebaixamento de
algum que conduzido a um nvel bestial numa luta desesperada
pela existncia; a ausncia de fraternidade humana sem compaixo
nem simpatia.
21

Por este termo, o autor, em parceria com Thvenot, argumenta que as pessoas no so
classificadas a priori, mas a partir de uma situao na qual so colocadas em disputa e na qual
uma srie de objetos: humanos e no humanos, para tomar Bruno Latour, so considerados
no julgamento do que justo nesta situao de disputa e, consequentemente, no peso, ou
melhor, na grandeza que estes objetos tm nesta situao (BOLTANSKI; THVENOT, 1991).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Margalit argumenta que a piedade o motor emotivo que impulsiona as pessoas a ajudar os pobres nas sociedades de beneficncia,
sendo necessrio, porm, distinguir entre uma relao de piedade e
uma de compaixo. Para ele, a piedade uma relao assimtrica
que pressupe o sentimento de superioridade do doador para com o
miservel que recebe o seu auxlio sob a forma de caridade, esmola. A compaixo, por outro lado, se caracteriza por uma relao
simtrica.
Diz ele que aqueles que se beneficiam da piedade tm uma boa razo
de suspeitar que eles no so respeitados na medida em que a piedade
desencadeada pela viso da impotncia e da vulnerabilidade. Se as
pessoas so mestras delas mesmas, no se tem piedade por elas, mesmo quando elas caem na misria. A piedade endereada s pessoas
que perderam importantes motivos de respeito delas mesmas e que
esto ao ponto de perderem os meios de defender a sua dignidade
pessoal.22
Piedade, pit, piti, derivam do latim pietas, sendo que, em
ingls, como em francs, sofreram uma modificao semntica. A piedade expressa um sentimento religioso sustentado por uma obrigao
incondicional e sincera em relao ao outro que sofre, uma extenso
da obrigao do homem para com Deus, e no um sentimentalismo
condescendente em relao aos pobres.
Dessa forma, utilizando um discurso, elaborado a partir de relatos e
de enunciaes, bem como da dramatizao do seu sofrimento, que os
camels parecem querer impor uma questo moral aos espectadores
populao em geral, mdia e autoridades locais no sentido de que
estes se tornem engajados na sua causa. Se esta estratgia poltica
obter realmente a resposta do espectador no sentido de que este torne
o seu sofrimento pblico, outra coisa. Por outro lado, na medida em
que, mesmo que a resposta do espectador no contemple o fim do
seu sofrimento, a sua causa tornada pblica quando publicizada
no espao pblico no qual o discurso transmitido.

22

Margalit (1999, p. 221-222).

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Arenas Publicas.indb 292

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

REFERNCIAS
BOLTANSKI, Luc. Les cadres: la formation dun groupe social. Paris:
Les ditions De Minuit, 1982.
. La souffrance distance: morale humanitaire, mdias et
politique. Paris: Mtaili, 1993.
; THVENOT, Laurent. De la Justification: les conomies
de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.
BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Lisboa: DIFEL, 1989. (Coleo Memria e Sociedade)
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social: uma crnica
do salrio. 5. ed. Petrpolis: Vozes, 2005.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Direito legal e insulto
moral: dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. So Paulo:
Relume Dumar, 2002. (Coleo Antropologia, Ncleo de Antropologia Poltica)
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris: para uma
sociologia do dilema brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
HIMMELFARB, Gertrude. La idea de la pobreza: Inglaterra a princpios de la era industrial. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1988.
KANT DE LIMA, Roberto. A Antropologia da Academia: quando
os ndios somos ns. 2. Ed. Niteri: EDUFF, 1997.
. Carnavais, malandros e heris: o dilema brasileiro do
espao pblico. In: GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lvia;
DRUMOND, Jos Augusto (Org.). O Brasil no para principiantes:
carnavais, malandros e heris: 20 anos depois. 2. ed. Rio de Janeiro:
FGV, 2001.
. Direitos civis, estado de direito e cultura policial: a formao policial em questo. Revista Brasileira de Cincias Criminais,
So Paulo, 2003.
. Os cruis modelos jurdicos de controle social. Insight/
Inteligncia, [S.l.], abril/ jun. 2004.
MARGALIT, Avishai. La socit dcente. [S.l.]: Editions Sisyphe/
Climats, 1999.

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Arenas Publicas.indb 293

3/5/2011 01:02:09

3 Prova / Kthia /02/05/2011

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva, forma e razo da troca nas


sociedades arcaicas. Sociologia e antropologia, So Paulo, v. II, 1974.
. Fragment dun plan de sociologie gnrale descriptive. Annales Sociologiques, Paris, srie A, fascicule I, 1934.
MIRANDA, Ana Paula Mendes de; DIRK, Renato Coelho; PINTO,
Andreia Soares ; AZEVEDO, Ana Luiza. Avaliando o sentimento de
insegurana nos bairros da Cidade do Rio de Janeiro. Comunicao
apresentada no XXVIII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu,
2004.
MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
PIRES, Lenin. Esculhamba, mas no esculacha!: um relato dos usos
dos trens urbanos da Central do Brasil no Rio de Janeiro. Dissertao
(Mestrado)Programa de Ps-Graduao em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2005.

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Arenas Publicas.indb 294

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OS VIZINHOS
E OS DE FORA
O PROCESSO DE DEFINIO
DE UMA COMUNIDADE
Luca Eilbaum1

Quarta-feira, 8 de maro de 1999. Notas de campo.


No dia anterior, tomei conhecimento, atravs de um aviso no jornal
La Nacin, da realizao do evento Jornadas de Segurana Pblica
e Controle Comunitrio, na Sala de Convenes do Hotel Claridge, no Centro da cidade de Buenos Aires. O evento era organizado
pela Secretaria de Segurana da Nao. Participariam dele o chefe
da Polcia Federal Argentina, o secretrio de Segurana da Nao
e, como convidada especial, a chefe do Departamento de Assuntos
Comunitrios da Polcia de Nova York.
No hall do Hotel, um dos mais luxuosos da cidade, perguntei pela
sala do evento e me foi indicado o segundo andar. Quando entrei o
evento acabava de comear. O mestre de cerimnias apresentava os
integrantes da mesa, que se encontrava em um nvel mais alto. Detrs
da mesa, visualizavam-se os smbolos da Polcia Federal Argentina, do
Exrcito Nacional, da Marinha e da Fora Area. Do lado, o anncio
da Secretaria de Segurana. O mestre tambm agradeceu a presena do pblico: magistrados, membros das foras de segurana, de
1

Doutora do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal


Fluminense. Pesquisadora do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas do INEAC/UFF e do
Equipo de Antropologia Poltica e Jurdica da Universidade de Buenos Aires Pesquisadora
PRONEX/NUFEP/UFF).

Arenas Publicas.indb 295

3/5/2011 01:02:09

3 Prova / Kthia /18/04/2011

organizaes no governamentais, acadmicos, deputados, senadores,


membros da comunidade.
Sentei em um dos poucos assentos disponveis, do lado de um homem
de uns 60 anos, com a farda da PFA. Senti-me afortunada, pois pensei
que poderia acompanhar os comentrios dele sobre as apresentaes
dos palestrantes.
O primeiro a falar foi o secretrio de Segurana. Entre outros assuntos, discutiu a relao entre segurana interna e defesa nacional,
ressaltando que, a partir da dcada de 1980, muda-se a noo do
sujeito da segurana, deixando de ser o estado para ser o cidado,
a comunidade. [...]
O segundo palestrante foi o chefe da PFA. Registrei com ateno o
ltimo trecho do seu discurso:
[...] Na poca democrtica, a polcia no pode
combater o crime e a violncia sozinha. assim
que aparece como um imperativo a necessidade
das foras policiais se associarem com suas
comunidades, atravs do uso de polticas ou
servios comunitrios. A busca de mtodos
alternativos de insero comunitria, de participao, surge espontaneamente nas diferentes
polcias de pases democrticos. As pessoas j
no aprovam ao policial violento, enrgico,
inflexvel. Liquidar criminosos foi bem visto
em outra poca. Hoje a resposta deve ser outra.
Ela descansa em um maior compromisso com a
comunidade na tarefa de construir uma sociedade mais segura [...] O sistema vigente est em
crise; somos obrigados a re-pensar nossa funo
a partir de um novo ponto de vista, aquele que
provm do destinatrio natural dos esforos
policiais: a comunidade.

Por ltimo, a policial nova-iorquina apresentou a poltica de relacionamento com a comunidade implantada na Polcia de Nova York. O
evento continuou com um debate, aps um apetitoso coffee-break, j
clssico desse tipo de encontro.
Aproveitei a ocasio para puxar uma conversa casual com o policial
ao meu lado, comentando aprobatoriamente os discursos ouvidos.
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Arenas Publicas.indb 296

3/5/2011 01:02:09

3 Prova / Kthia /18/04/2011

Respondeu afirmativamente, mas com um tom um pouco ctico. De


fato, no foram muitos segundos que passaram at que mencionou as
dificuldades que ele, como chefe de uma comisara,2 encontrava em
todo esse papo da polcia comunitria, a participao da comunidade
nos assuntos de segurana e a nova abertura da polcia. Explicou-me
que em todas as comisarias esto se conformando os chamados Conselhos de Preveno Comunitria com os vizinhos da rea. Comeou
a me explicar rapidamente de que se tratavam quando, de repente,
interrompeu a explicao e me disse: quer saber melhor de que se
trata? Venha nesta quinta-feira comisara 17a, s 20h. Agradeci o
convite e, como de costume nas minhas interlocues com policiais,
passei a ser o objeto da indagao: quem era, como me chamava, por
que estava no evento, o que fazia etc. S uma nova chamada do mestre
de cerimnias para retomar as atividades interrompeu o interrogatrio.
Eu estava feliz: tinha conseguido o primeiro convite para assistir
s reunies dos Conselhos. Um possvel caminho emprico tinha se
aberto para que eu pudesse entender, em ao, todo aquele vocabulrio da comunidade.
O evento retratado nesse registro de campo se insere em um contexto
da cidade de Buenos Aires, em finais dos anos 1990, no qual a questo da (in)segurana pblica era um assunto obrigatrio da agenda
poltica e miditica. Discusses sobre o aumento dos crimes, sobre
polticas de endurecimento da lei penal, sobre os limites da liberdade
e dos direitos das pessoas, sobre o aumento do efetivo policial nas
ruas, sobre a ampliao das faculdades policiais e sobre a ineficincia da interveno policial eram tpicos de campanha eleitoral e de
discursos polticos e jornalsticos. As respostas a essa situao, por
parte dos distintos atores, foram variadas. No entanto, um discurso
comeou a ganhar espao na agenda pblica e, especificamente, na
agenda policial: o discurso comunitrio.
2

A comisara era a sede policial no nvel mais descentralizado. Nesta, eram registradas as
denncias de crimes, bem como solicitados certos documentos emitidos pela instituio
(atestado de perda de documentos, atestado de pobreza). Tambm era a sede do trabalho
de investigao e preveno em uma determinada rea geogrfica. Mantenho a categoria
original no espanhol, porque no Brasil, em particular no Rio de Janeiro, no existe uma
repartio semelhante. Diferentemente da cidade de Buenos Aires, as atividades de preveno
e investigao esto divididas entre duas instituies distintas: Polcia Militar e Polcia Civil,
respectivamente. No nvel mais descentralizado, a primeira est organizada nos batalhes e
a segunda nas delegacias. No mesmo sentido, mantenho no espanhol as categorias comisario
e subcomisario, que so, nessa ordem hierrquica, as autoridades da comisara.

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Arenas Publicas.indb 297

3/5/2011 01:02:10

3 Prova / Kthia /18/04/2011

O mesmo foi veiculado, especialmente, entre os anos 1998 e 2000, por


meio de um programa desenvolvido pela Policia Federal Argentina
(PFA), na cidade de Buenos Aires, chamado La Polica Al Servicio
de la Comunidad. O programa tinha como objetivo aproximar a
polcia com a comunidade e criar uma relao de maior confiana
entre ambos.3
O cerne dessa poltica foi o apelo comunidade como destinatrio natural dos esforos policiais. Os jornais e programas de rdio
institucionais e o discurso policial na imprensa enfatizaram ideias
tais como polcia comunitria, participao comunitria, controle
comunitrio sobre a polcia, segurana comunitria. Todas as viaturas
e sedes policiais de atendimento ao pblico passaram a portar o nome
do programa: Al Servicio de la Comunidad. Entre as medidas realizadas, uma das principais foi a criao dos conselhos de Preveno
Comunitria. Incentivando a associao de representantes de um
mesmo bairro, foi proposta a realizao de reunies peridicas entre
estes e as autoridades policiais locais.
Entre maro de 1998 e maio de 2000, acompanhei a implementao
e funcionamento desses conselhos em diferentes bairros da cidade
de Buenos Aires, por meio da observao das reunies realizadas
nas comisaras.4 Realizei tambm entrevistas com participantes dos
conselhos e com as autoridades policiais. Como mostra o relato do
incio deste trabalho, paralelamente observei a realizao de eventos
(jornadas, seminrios, encontros) organizados em torno da questo da
segurana pblica, por diferentes fundaes, partidos polticos, jornais
ou rgos do governo. O acompanhamento da imprensa escrita em
relao ao assunto tambm foi importante, j que, como mencionado,
o mesmo virou o tema mais citado da poca.
Neste trabalho, a partir do material colhido no campo, proponho uma
reflexo sobre a forma particular de associao derivada dos conselhos
de Preveno Comunitria. Buscarei focalizar seus participantes e
os modos em que se desenvolveram as estratgias de demanda e as
respostas s mesmas. A partir dessa descrio, gostaria de discutir
os possveis sentidos de entender o pblico-alvo dessa poltica em
3
4

Orden del Da: Creacin de los Consejos de Prevencin Comunitaria, PFA, 2/11/98.
Fiz esse acompanhamento nas comisaras correspondentes a bairros de regies e nveis
socioeconmicos distintos: La Boca, Parque Patrcios, Almagro, Nuez, Flores, Palermo,
Colegiales e Congreso.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

termos de uma comunidade, tal como expressado na proposta do


Programa. Proponho tambm uma reflexo sobre quais os interesses
que associaram, sob o amparo de uma iniciativa estatal durante uma
poca especfica, moradores de um mesmo bairro, em um espao
comum.
A comunidade
O apelo comunidade como o sujeito da poltica policial foi um dos
aspectos que, desde o incio da pesquisa, chamou muito a ateno. Por
um lado, observava, por meio do acompanhamento dos discursos na
mdia e, sobretudo, nos mltiplos eventos nacionais e internacionais
realizados na cidade, que a categoria comunidade e seu derivado
comunitrio tinham-se transformado em obrigatrias das polticas
de segurana pblica.
O mercado na rea estava se constituindo e crescendo em torno de
um discurso de transformao da poltica policial tradicional em
um modelo moderno prprio da poca democrtica: a chamada
polcia comunitria. Nesse mercado, o discurso sobre a comunidade
estabelecia-se e definia-se como a poltica oficial e legtima. Assim,
esse mesmo discurso deslegitimava tambm o modelo policial
tradicional, caracterizado por seus novos crticos como repressivo,
burocrtico, centralizado, impessoal, prprio de uma poca passada
em que liquidar criminosos foi bem visto.5
Por outro lado, embora estivesse ciente da crescente legitimidade
do uso da categoria comunidade, me perguntava pelo sentido da
escolha desse ator social para falar de e para um mundo urbano,
heterogneo, impessoal, como a cidade de Buenos Aires. Quem, ou
que grupos sociais, estavam no imaginrio desse apelo? Como se
articularia esse imaginrio comunitrio com a diversidade dos bairros portenhos? Em que tipo de associao derivaria essa iniciativa
comunitria?
Nessas minhas perguntas, estava presente uma noo de comunidade definida em termos de conceito antropolgico e no como
5

Nesta dimenso, o plano discursivo da nova poltica adquiriu um papel fundamental, ao


legitimar uma srie de iniciativas portadoras da marca comunitria. De alguma forma,
como sugere Bourdieu, o uso oficial da lngua quer dizer, de certas categorias, formas
gramaticais etc. estava definido em um mercado em que se estabeleciam os parmetros
do legtimo e do ilegtimo (1996, p. 30).

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

categoria nativa prpria de um grupo social especfico. Esta estava


associada a uma unidade homognea, definida territorialmente, autossuficiente, consensual e personalizada.6 Uma oposio fundamental
caracterizava essa viso, diferenciando o comunal ou comunitrio do
estatal e societrio. Desse ponto de vista, o uso de comunidade para
o contexto urbano trabalhado provocava-me um certo estranhamento.
Assim, centrei minha preocupao em descobrir quem respondia, na
cidade de Buenos Aires, a esse apelo comunitrio. Foi a que pensei
que eu s conseguiria saber observando como ocorriam as reunies
dos Conselhos. Quer dizer, aceitando o convite do policial do evento
e indo quela reunio. A mesma seria a primeira de dois anos posteriores de pesquisa.
As reunies
Tera-feira, 24 de novembro de 1998. Notas de campo. Primeira
Reunio do Conselho de Preveno Comunitria da Comisara 9,
bairro de Almagro.
Cheguei sozinha e encontrei um grupo de pessoas esperando na sala
da Comisara. Perguntei no balco pela reunio do comisario com
os vizinhos. Uma policial, de camisa branca e cala azul, indicou-me que comearia em breve e que aquele grupo de pessoas tambm
aguardava o comisario. Lembrei que uma das medidas da campanha
Al servicio de la comunidad tinha sido o uso de uniformes de cor
branca para aqueles policiais dedicados ao atendimento ao pblico,
deixando as camisas pretas para aqueles dedicados vigilncia e
represso nas ruas.
Aproximei-me do grupo de vizinhos que rapidamente tinham olhado
para mim quando perguntei pela reunio. Mais uma vez, percebi que,
entre outros motivos, minha presena chamava a ateno por ser a
nica jovem (20-30 anos) entre os participantes. [...]
Um policial, tambm de camisa branca, conduziu o grupo sala da
reunio. Os vizinhos foram-se acomodando nas cadeiras disponveis,
at que chegou um homem de terno e gravata, de aproximadamente 40
anos. Era o comisrio. Deu as boas-vindas ao grupo e comeou a falar:

Gellner (1997); Redfield (1965); Williams (1988).

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

Boa noite. Esta reunio faz parte de um programa que se chama


Programa dos Conselhos de Preveno Comunitria. So conselhos
que comearam a funcionar em todas as comisaras da cidade. Esto
constitudos por dez, doze membros, que so pessoas destacadas da
comunidade. Elas se renem todas as semanas na comisara com as
autoridades policiais locais, para analisar e avaliar os problemas do
bairro e encontrar mecanismos de respostas e uma comunicao mais
fluida entre a comunidade e a polcia. Muitas vezes nos deparamos
com que claro no qualquer um que vai nessas reunies, mas
a ideia que v o presidente da comisso que agrupe os comerciantes
da rea, que v algum de alguma instituio de fomento, que seja
das mais reconhecidas do bairro, que participem tambm o padre,
que participe a diretora da escola mais importante, da cooperativa
da escola mais importante. De forma tal que da, nesse mbito da
comisara em que se rene o Conselho de Preveno Comunitrio, o
contato direto com policiais, atue como vaso comunicante com todas
as organizaes. A nos deparamos sempre com o mesmo problema;
com o problema de que existe muita reclamao por parte dos vizinhos, mas que quando os chamamos para participar, eles no vm.
Pedem-se canais de comunicao, mas quando se abrem os canais
de participao depois somos poucos os que participamos. Mas, no
importa, mais vale tarde do que nunca e mais vale que sejamos poucos,
mas bons. O importante trabalharmos juntos.
A reunio continuou, por mais duas horas, com as intervenes desordenadas dos vizinhos [...].
Os discursos de boas-vindas das autoridades policiais, ao receber os vizinhos nas suas comisaras, eram uma cerimnia obrigatria do incio
de todas as reunies. Estas aconteciam semanal ou quinzenalmente,
com a presena do comisario ou do subcomisario. A informao sobre
a realizao das mesmas era difundida por meio do Jornal da Polcia
(Dirio La Federal) que se conseguia nas comisaras e eventualmente
em algum comrcio. Outra forma para se informar sobre o horrio e
dia da reunio era atravs de avisos colados nos elevadores de certos
prdios ou telefonando para a Comisara. O nmero de participantes
variava geralmente entre sete e 20 pessoas. Acontecia, s vezes, que
em algum evento especfico houvesse o aumento do pblico, devido
presena do secretrio de Segurana; de um deputado; pela ocorrncia
de algum homicdio ou crime no bairro que tivesse uma repercusso
pblica maior.
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3 Prova / Kthia /18/04/2011

Nas idas ao campo, passei a prestar especial ateno ao discurso


dos policiais porque por meio deles se expressavam categorias que
refletiam o pblico imaginado pela poltica de participao comunitria. Por um lado, veiculavam-se categorias, em princpio genricas,
como a comunidade, vizinhos, cidados. Por outro, falava-se
de pessoas destacadas da comunidade, associaes reconhecidas,
a escola mais importante. De um lado, incentivava-se a participao
cada vez maior; de outro, celebrava-se a assistncia de poucos, mas
bons. Essas tenses me conduziram para uma observao cuidadosa
de quem eram os participantes dessas reunies. Em outras palavras,
quem integrava a comunidade imaginada pela participao comunitria?
A observao das reunies em diferentes bairros da cidade me permitiu traar um perfil comum dos participantes dos Conselhos. Apesar
de os diferentes Conselhos acompanhados pertencerem a reas da
cidade de perfis socioeconmicos distintos, o pblico das reunies
tinha em comum o fato de pertencer faixa etria entre 40 e 70 anos,
estar distribudo equilibradamente entre homens e mulheres e pertencer classe mdia. Neste perfil, destacavam-se como ocupaes
predominantes os comerciantes, os militares afastados, aposentados,
donas de casa e sndicos. Tambm participavam, em minoria, profissionais tais como: advogados ou arquitetos. Era comum que alguns
dos participantes, alm de sua ocupao formal, fossem presidentes
ou membros de uma instituio de fomento ou de caridade.
Esse foi o primeiro perfil que tracei dos participantes das reunies.
Com o tempo, medida que frequentava mais reunies em um mesmo
Conselho, e que conversava com seus integrantes, fui percebendo
outras clivagens prprias desse mbito de participao.
Os amigos
8 de maro de 1999. Primeira reunio do Conselho da Comisara
21, bairro de Palermo. Notas de campo. [...]
Senhora: ns estamos aqui apresentando problemas, pedindo pessoal, um monte de coisas para
conseguir solues, mas conhecemos os problemas do comisario. Eu proponho formar uma
comisso com uma meta e um plano de ao.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

Comisario: espere que eu lhe comento uma


coisa. Ns, a comisara 21, neste momento se
mantm graas colaborao da Agrupao
Amigos da comisara 21, da qual o senhor
Fernndez ao meu lado o presidente. Eu lhe
digo com toda sinceridade e com toda honestidade: se no fosse pela Agrupao Amigos no
poderamos nos manter, porque o subsdio que
o Estado pode nos dar igual a nada. Ento,
eu vejo perfeito o que a senhora est dizendo,
mas o que eu digo que armem uma comisso
com a Agrupao Amigos, para que a senhora
fale com o senhor ou com a outra senhora e
venham alguns, no venham quarenta. Bom,
quem quiser vir tambm pode. Isto aberto,
mas armem uma comisso entre vocs, depois
se comuniquem com a Agrupao Amigos,
com os comerciantes da rea, com os vizinhos.
E quando vocs quiserem vir na comisara,
falem com o senhor Fernndez e fazemos a
reunio. No um grupo muito grande e nos
entendemos melhor.

As reunies incentivadas pelos Conselhos no eram uma novidade


no mbito das comisaras. Sob outros moldes e outros discursos, h
mais de 50 anos que vizinhos de um bairro se reuniam nas chamadas Agrupaes Amigos de uma comisara.7 Desde aquela poca,
funcionavam como associaes voluntrias de vizinhos dedicadas a
brindar apoio material e econmico comisara e apoio moral e
espiritual a seu pessoal.8 Este objetivo era alcanado, fundamentalmente, por meio do trabalho dos amigos no recolhimento de recursos
materiais entre os vizinhos da rea correspondente. Cada agrupao
mantinha reunies mensais com as autoridades da comisara, onde
se administravam e distribuam os recursos recolhidos, conforme
os problemas existentes no momento: se uma viatura quebrasse, se
faltasse papel para receber as denncias, se o policial no tivesse os
sapatos oficiais, entre outras necessidades.
7

Existia uma Comisso Central, sediada no Departamento Central de Polcia, que ligava as
Agrupaes de uma circunscrio que, por sua vez, reunia as de cada comisara.
Agrupao Amigos: a constante colaborao junto aos vizinhos. Diario La Federal, ano
3, n. 18, dez. 1998.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

As atividades desenvolvidas pelos amigos faziam parte da rotina


das comisaras e permitiam um aprofundamento das relaes pessoais
com os policiais, sendo o contato entre ambos muito fluido e familiar. Os amigos tambm trabalhavam como intermedirios entre os
vizinhos e os policiais, pois o trabalho de recolhimento de fundos
e a organizao de eventos locais exigia deles circulao pelo bairro
e interao com os vizinhos.9
Assim, a trajetria dos amigos na participao no trabalho policial
lhes proporcionou um lugar privilegiado na hora da conformao dos
novos Conselhos de Preveno Comunitria. Eles foram especialmente chamados a participar por parte dos comisarios. Nas reunies, esse
grupo podia ser rapidamente identificado pela notria proximidade
que mantinha dentro das instalaes da comisara e com os policiais.
Eram os que conduziam os vizinhos at a sala da reunio,10 apresentavam s autoridades os policiais presentes e anunciavam data e
hora da prxima reunio. Os amigos exibiam um tratamento familiar
com os policiais, chamando-os pelo nome e tratando-os de voc.
Era tambm muito frequente ouvir depoimentos de agradecimento
dos policiais expressando o reconhecimento e gratido pelos anos
de trabalho junto com a comisara.11
Os amigos tambm eram a principal via de convocatria de vizinhos, pois suas tarefas de recolhimento de fundos para a comisara,
no mbito da Agrupao, envolviam o contato com comerciantes,
sndicos e outros vizinhos. Por isso, mantinham um contato fluido
com muitos vizinhos, especialmente com aqueles que tinham demonstrado uma predisposio para colaborar com o apoio material e
econmico da repartio. Assim, parte dos vizinhos que integrou
os Conselhos era o tradicional contato das Agrupaes Amigos com
o bairro.
De alguma forma, a participao dos amigos e de sua rede de vizinhos imprimiu um carter particular proposta de participao
9

10

11

Esta relao se dava especialmente com os comerciantes, sendo que os comrcios que
colaboravam tinham, na janela ou no interior, um anncio atestando o aporte Eu colaboro
com a Agrupao de Amigos da Comisara X e, portanto, garantindo a pertena a certa
rede de relaes.
A maioria das reunies era realizada no chamado casino, onde comia e descansava o
pessoal da comisara. Quando o nmero de participantes era reduzido, costumava-se usar a
sala do comisario.
Esse tipo de frase, nas falas dos comisarios, era continuamente enfatizado em oposio
populao que, na viso deles, no entendia nem respeitava o trabalho policial.

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Arenas Publicas.indb 304

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

comunitria. Era notvel, nas reunies, como os amigos caracterizavam seu discurso a partir da explicitao da falta de recursos
disponveis por parte dos policiais para desempenhar suas funes de
forma eficiente, de acordo com as demandas apresentadas por outros
vizinhos nas reunies. A proposta do programa de participao comunitria sobre a abertura do trabalho policial para a comunidade
era, no mbito das reunies, apresentada na voz dos amigos que
no lugar dos policiais explicavam sobre a escassez de viaturas, as
dificuldades para consertar peas quebradas, o fato de os policiais
terem de comprar seus prprios equipamentos de trabalho, como o
rdio, entre outros problemas apresentados como justificativas diante
das queixas dos vizinhos que no faziam parte da rede de amigos.
Essa dinmica fazia com que as reunies se transformassem em um
novo espao de recrutamento de apoio para a comisara por parte dos
amigos. A solicitao de ajuda muitas vezes era percebida pelos
vizinhos como um canal natural de ajuda no nvel local. Assim,
eles podiam reclamar e muito do fato do Estado no prover os
recursos suficientes e, ao mesmo tempo, garantir de forma particular
os meios de trabalho no mbito mais prximo, tal como a comisara.
Em muitos Conselhos foram vrias as cartas escritas s autoridades do
Executivo e do Legislativo reclamando da falta de ateno e empenho
na questo da segurana pblica. Nestas, era comum a demanda de
aes concretas nos bairros da comisara representada, em geral, pelo
envio de mais policiais e/ou de mais viaturas.
Contudo, o que mais me chamou a ateno nas tentativas de relao
com o governo nacional no foi o que efetivamente era conseguido,
pois quase nunca esteve presente nas reunies uma autoridade nacional, como tambm no foram enviados os recursos solicitados.
Tratava-se da forma como a proposta de apelao ao poder nacional
transformava-se em uma demonstrao, por parte de alguns vizinhos, dos vnculos e influncias que tinham com as esferas de poder.
Os vizinhos prestigiosos
24 de maio de 1998. Primeira reunio do Conselho da comisara 35,
bairro de Nuez. Notas de campo. [...]
Comisario: o que queremos hoje formar o
conselho com as autoridades que vocs esco-

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

lham e coloc-lo em ao imediatamente para,


de alguma forma, lhe dar um assento fixo, um
dia e as pautas, porque, como h muitas coisas
que muita gente ignora do tema policial, seria
bom apresentar uma guia para que possam se
orientar sobre nossa funo.
Senhor: desculpe, comisario, mas eu gostaria de
integrar essa comisso, pois conheo de perto
os assuntos policiais e de segurana e acho que
poderia aportar muito; pois no verdade que
todos desconheamos sobre a funo policial.
Eu fui por vinte anos comisario da Federal e sei
do que estamos falando.
Senhora: eu proponho que trabalhemos em comisses, mas, como comunicadora social, digo
que se ns nos juntamos aqui e ningum sabe o
que fazemos no serve para nada.
Comisario: sim, estas reunies so para os
vizinhos. A ideia tentar criar os conselhos
de ao comunitria, onde vamos tentar ter
sete integrantes que vo ser os responsveis de
fazer parte cidadania dos problemas policiais.
Lamentavelmente eu no vou poder ouvir a
todos, mas se vocs formarem uma comisso
de notveis, com o senhor (indica o policial
retirado), a senhora (indica a jornalista), um
diretor de escola, o presidente da associao
de comerciantes. No sei, acho que no todos
podem participar, ento, uma comisso de notveis poderia articular as demandas.

Como exprimiu o comisario, no, todos podem participar. Por isso,


uma comisso de notveis que articule as demandas foi uma das
propostas privilegiadas na organizao dos Conselhos. Se no caso dos
amigos e da rede de vizinhos convocada por eles, apresentei um
predomnio do apoio material que os Conselhos poderiam oferecer
comisara, neste ponto enfatizo como esse apoio e a promoo das
iniciativas eram vinculados, da parte de vizinhos posies prestigiadas ou de poder , ao carter notvel dos mesmos.
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Arenas Publicas.indb 306

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

Esses participantes costumavam destacar, nas suas intervenes, um


atributo pessoal relativo posse de um conhecimento especfico,
apresentado sempre como de interesse do grupo. Assim, nas falas
dessas figuras, eram enfatizadas as vantagens que sua experincia
ou influncia poderiam trazer aos demais vizinhos do Conselho.
As experincias relatadas eram referidas a dois tipos de conhecimento. Um especfico de profissionais vinculados rea da segurana:
coronis afastados e policiais aposentados, assessores de funcionrios, advogados. Com relao aos dois primeiros, quando o clima
do debate esquentava porque as crticas ao policiamento da rea
j no suportavam as explicaes do comisario local , era comum
essas figuras intervirem contando experincias da poca de servio ou
mesmo explicando e reafirmando as dificuldades do trabalho policial
colocadas pelas autoridades policiais presentes nas reunies.
No caso dos assessores de funcionrios do governo, era frequente se
referirem ao conhecimento pessoal de algum personagem influente, a
fim de encaminhar uma solicitao de forma rpida e personalizada.
Lembro, numa reunio, da interveno de um coronel aposentando
(Solis), tambm assessor de um deputado na Comisso de Segurana
da Cmara: a discusso girava em torno das crticas aos funcionrios
do Executivo e, sobretudo, do Legislativo porque, segundo o comisario, as leis atuais no permitem ao policial agir com agilidade
e presteza. O coronel se apresentou e disse: como organizao da
comunidade, todos os vizinhos unidos deveriam solicitar a presena
do secretrio de Segurana na prxima reunio. Contudo, ele se oferecia para mediar na solicitao, pois tinha muitos contatos e boa
chegada com o Secretrio. A interveno foi to bem-vinda que
algum vizinho se animou a dizer que quem deveria ser secretrio de
Segurana era o coronel.
Os advogados e outros profissionais gostavam de demonstrar familiaridade com o trabalho policial e, sobretudo, com a legislao vigente.
Era comum pedirem a palavra para brindar longas exposies sobre
questes tcnicas, sempre fazendo referncia formao e experincia
profissionais qualificadas.
Outro tipo de conhecimento exibido nas reunies tambm evidenciava
o prestgio social de quem participava. Esta situao acontecia especialmente nas reunies das comisaras situadas em bairros de classe
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Arenas Publicas.indb 307

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

mdia alta, como Palermo ou Bairro Norte. Consistia nas intervenes


de vizinhos que gostavam de contar suas viagens ao exterior e as
percepes sobre a segurana nas cidades de Nova York ou Lyon,
por exemplo. Em certa medida, esta situao no era estranha para
outros participantes, pois a referncia a experincias internacionais
em matria de segurana e de participao comunitria era, naquela
poca, um tema frequente na mdia.
As intervenes destes distintos tipos de especialistas (militares,
profissionais, polticos) explicitavam a experincia desses vizinhos
anterior e externa a sua participao nos Conselhos. Nos seus discursos, evidenciavam a articulao de laos pessoais com posies de
poder, por meio de conhecimentos adquiridos graas a uma posio
privilegiada na questo da segurana, graas a uma formao em nvel
superior, ou bem a um capital cultural adquirido pela possibilidade
de conhecer outros pases. A constante meno de seus sobrenomes
tambm deixava claro o fato de se tratar de trajetrias pessoais diferenciadas do resto dos vizinhos.
Junto a esse saber especializado, chamou minha ateno um terceiro tipo de conhecimento, produto de uma trajetria pessoal no
relacionada diretamente profisso ou formao nenhuma, mas a
experincias pessoais vinculadas aos problemas definidos na rea
da segurana pblica.
Os vizinhos do medo
Segunda reunio do Conselho de Preveno Comunitria da comisara, bairros Almagro e Abasto. Registro de campo [...]
A reunio estava acontecendo sob uma dinmica que achei muito peculiar. Sistematicamente,
um vizinho apresentava uma queixa e o comisario respondia dizendo, em resumo, que ele
no podia fazer nada, seja porque o problema
no era da competncia da polcia, seja porque
a legislao impedia a interveno policial. [...]
Senhor: ento, eu sim vou colocar um problema
prprio de segurana. So os quiosques que
vendem bebidas a menores e quando percebem
a presena policial ficam violentos.

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Arenas Publicas.indb 308

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

Comisario: com o tema dos menores eu no


posso fazer nada. Sobre o quiosque que o senhor
est me dizendo, ns j fomos e o fechamos.
Senhora: sim, mas de noite voltam a abrir,
quando a polcia no est.
Comisario: agora que a senhora me disse isso,
vamos fazer alguma coisa, mas eu no sabia.
Por isso, eu preciso que vocs me digam. Essa
gente do bairro?
Senhora: sim, eu sei onde moram. Dormem
nos carros abandonados que h nessas quadras.
Comisario: h carros abandonados? Ns tiramos vrios. (Pede para o policial ao lado anotar
o endereo)
Senhora: eu j apresentei uma denncia pelo
tema do quiosque, mas no aconteceu nada.
Porque, alm de beber, durante a noite toda
fazem barulho e perturbam.
Comisario: contra as perturbaes a polcia no
pode fazer nada e por barulho vocs tm que
apresentar a queixa na Prefeitura.
Senhora: mas na Prefeitura no fazem nada.
Senhora 2: eu j no sei mais o que devemos
fazer. Eu fui assaltada duas vezes e no outro dia
assaltaram meu filho. O que tenho que fazer?
Pegar a arma e ento ir presa? Vale a pena?
Comisario: no!!! Olhe senhora, a gente est
aqui como amigos, eu estou lhe falando como
amigo. Por isso, eu disse no incio que o nico
lugar onde vo ser ouvidos na comisara.
Diante deste tipo de casos, h que fazer uma
denncia penal.

Como mencionado, a relao dos amigos e dos vizinhos prestigiosos com os policiais ou com o mundo policial no nasceu
com a criao dos Conselhos de Preveno Comunitria. No caso dos
amigos, data de anos atrs e, inclusive, sempre foi desenvolvida nas
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3 Prova / Kthia /18/04/2011

reunies na comisara. No caso dos vizinhos prestigiosos, por serem


muitos deles profissionais vinculados segurana pblica, tambm
tinham certa proximidade com esse mundo. Para estes, o chamado
participao comunitria da nova poltica institucional no significou
uma novidade na qualidade de seu relacionamento com a polcia, mas
na forma dessa relao. Parte dessa mudana esteve tambm relacionada incluso de um novo tipo de atores: os vizinhos do medo.
Este personagem, menos treinado no trato com a polcia, apresentava-se ligado diretamente ao contexto poltico e social no qual surgiu a
proposta de participao comunitria como resposta chamada crise
de segurana, que envolveu tpicos como o aumento vertiginoso
da criminalidade, o crescimento da sensao de insegurana, o
medo e as novas formas de convivncia, entre outros.12 De alguma
forma, o chamado participao comunitria significou uma novidade
para aqueles vizinhos atingidos por experincias pessoais de crimes.
Nas reunies, os vizinhos do medo relatavam os episdios sofridos, s vezes com certo dramatismo, outras quase com naturalidade.
A situao anteriormente relatada evidencia dois tipos de conflitos
frequentemente apresentados: um vinculado convivncia e rotina
do bairro (venda de bebida alcolica a menores, jovens que fazem
barulho e perturbam) e outro s vtimas de assaltos. Alis, um aspecto que observei foi o fato de a maioria das situaes criminosas
expostas estarem referidas a crimes contra a propriedade: roubos e
assaltos. Dentre estes, era majoritria a presena de comerciantes
que denunciavam a quantidade de vezes que suas farmcias, lojas ou
restaurantes tinham sido assaltados sem resposta nenhuma da polcia.
Conforme esses vizinhos se manifestavam nas reunies e nas conversas informais comigo, a sua relao com a polcia, prvia aos
Conselhos, ocorria por meio de seu papel de frequentes denunciantes de fatos criminosos no balco das comisaras. Assim, no se
tratava de uma relao pessoal, nem direta com as autoridades, mas
com os policiais de planto. Tambm no era um lao permanente,
mas restrito ao momento da denncia. E, sobretudo, era um vnculo
fortemente caracterizado pela decepo, pois a polcia nunca faz
nada. Eu denuncio quase por esporte, porque resultados nunca tive.
12

Os jornais dos anos 1998-1999 tm sido profcuos na apresentao desses temas, em especial
Clarn e La Nacin.

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

As reunies dos Conselhos apareceram para esses vizinhos como


um mbito mais personalizado e menos annimo para fazer suas
queixas. De fato, a sua presena nas reunies sups uma rearrumao
significativa dos vnculos tradicionais preexistentes, sendo permanente objeto dos debates.
Eles vieram a ocupar, no mbito dos Conselhos, o papel da queixa,
do reclamo, da desconformidade. Se os amigos se centravam na
preocupao pela insuficincia de recursos da instituio e os vizinhos
prestigiosos focalizavam suas intervenes em demonstraes de
saber ou de influncia, os vizinhos do medo no poupavam palavras
para manifestar oralmente o que inmeras vezes tinham denunciado
por escrito. Essa interao pessoal e direta com as autoridades abriu as
reunies a uma troca de crticas e justificativas entre esses vizinhos
e os policiais, ausente na interao com os outros tipos apresentados
neste trabalho.
Esta dinmica caracterizava em grande medida as reunies, abrindo
a discusso a uma verdadeira luta pela denncia. Os vizinhos
criticavam a inoperncia da polcia e os comportamentos irregulares
dos policiais de rua: no estar no posto, chegar tarde, no intervir,
ser grosseiro. As crticas sempre apontavam para a ineficincia do
trabalho policial em casos concretos, e, s vezes, para situaes de
corrupo curiosamente, nunca para casos de violncia policial.
Embora a denncia fosse visualizada pelos vizinhos como um instrumento intil e desgastante, os policiais insistiam na necessidade
de continuar denunciando. Os comisarios enfatizavam que, sem a
denncia, no podiam fazer nada. Sem denncia no podemos investigar, no podemos aprender os elementos do crime, no podemos
prender os suspeitos. Por isso, sempre estamos pedindo a denncia,
explicava um comisario diante das crticas de uma vizinha que insistia
em afirmar que, tendo a denncia, tambm no faziam nada.
De alguma forma, as reunies transformaram-se num espao informal de apresentao de denncias. A colaborao dos vizinhos do
medo no apontamento de locais perigosos ou inseguros e de figuras
suspeitas e perturbadoras do bairro foi o esprito da participao dos
mesmos nos Conselhos. Na minha perspectiva, foi a maior novidade
introduzida pela poltica de participao comunitria. As demandas
por eles apresentadas e as respostas policiais s mesmas definiram
em grande medida os limites dessa participao.
311

Arenas Publicas.indb 311

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

As demandas: os de fora
Quarta-feira 25 de novembro de 1998. Reunio do Conselho da comisara do bairro de La Boca. Registro de campo. [...]
Senhora: eu venho com um fato pontual que me
aconteceu no ms de julho deste ano. Eu vivo
na rua Brandsen 500, e na esquina de minha
casa tenho gente de mau viver, que todos os
vizinhos conhecem, isto por todos conhecido.
Numa sexta-feira do ms de julho, vim nesta
comisara para apresentar a denncia. O fato
aconteceu s 19h e eu s sa da comisara s 10h
da noite, com meu filho de seis anos no colo. E
os senhores de mau viver, tranquilinhos nas suas
casas. E o pior que quando voltei para minha
casa, passei pela esquina, os senhores estavam
reunidos no mesmo lugar. Fui ao telefone pblico e liguei para comisara e me disseram que j
ia sair uma viatura para o local. Estiveram at
meia noite e ningum se perturbou em ir at l.
Comisario: senhora, sabe o que que acontece?
Todos temos a responsabilidade de denunciar,
mas sabe que h dez anos atrs este tipo de
reunies no existiam. Essas reunies agora
existem e, aos poucos, vamos ir mudando e
vamos ir tratando de estar juntos. Mas a senhora
me diz gente de mau viver, o que quer dizer
mau viver para a senhora?
Senhora: mau viver? Significa que so maus
vizinhos, que esto em todo tipo de roubos, com
substancias proibidas, em outras palavras, droga, que se dedicam a bater nos vizinhos, e toda
vizinhana sabe disso. Se isso no mau viver,
em bom espanhol quer dizer que so chorros.13

A discusso entre o comisario e a senhora estava se prolongando e


um vizinho decidiu interromper:
13

Categoria informal para se referir a ladro. Um termo semelhante no portugus pode ser
gatuno.

312

Arenas Publicas.indb 312

3/5/2011 01:02:12

3 Prova / Kthia /18/04/2011

mas importantes para colocar. Um outro tema


que eu acho importante o tema da imigrao.
Ns, os que somos tradicionais de La Boca,
vemos com muita dor que as casas nas quais
temos morado por anos esto ocupadas.
Mas esto ocupadas por estrangeiros. No
que a gente queira que eles saiam, mas sim
saber quem so, se eles tm documentos, se
eles alugam com legalidade, atravs de um
documento. Mas como h pessoas que no
esto legais no pas, eles se intrometem. Ns
queremos que venha Imigraes,14 mas no
conseguimos que venha e que os documente ou,
pelo menos, que nos notifique quem quem,
de onde so, porque no gente de La Boca,
mas a tem ocupado. Sobretudo, a gente est
vendo, agora, com essa explanada bonita que
temos em Caminito,15 que nos est chegando
gente para fazer de flanelinhas e que tambm
no pertence ao bairro. Ns, com esta nova
explanada, podemos desfrutar os espaos, mas
essa gente que nos vem de fora, que nos invade
nos finais de semana... porque a gente de La
Boca nos conhecemos, os de La Boca j nos
conhecemos. [...]

As demandas apresentadas pelos vizinhos nas reunies dos Conselhos tinham vrias caractersticas que outorgaram a esse tipo de
associao um carter peculiar. Em primeiro lugar, eram demandas
de tipo individual e conjuntural. Tratava-se de manifestar, diante das
autoridades policiais locais, problemas especficos de um horrio e/
ou local do bairro, que traziam algum tipo de perturbao no cotidiano dos vizinhos. Alis, era frequente um vizinho participar de
uma reunio, apresentar sua demanda e no voltar a participar ou s
faz-lo em vrias reunies posteriores.
A sua vez, a forma de expresso das demandas se repetia vizinho aps
vizinho, reunio aps reunio e bairro aps bairro:
14

15

Refere-se Direo Nacional Migraes que o rgo que responsvel pelo controle da
populao estrangeira na Argentina.
rea do bairro de La Boca, na beira do rio Riachuelo, que constitui um dos pontos de turismo
mais famosos de Buenos Aires.

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Arenas Publicas.indb 313

3/5/2011 01:02:12

3 Prova / Kthia /18/04/2011

na porta do meu prdio, na rua J altura 1000,


desde zero horas do sbado at zero horas do
domingo h uma reunio permanente de meninas e meninos que tem ocupado a quadra como
local de encontro e que gritam, sujam, urinam e
bebem cerveja; na quadra do meu comrcio,
na avenida SF entre P e A, h uma invaso de
punguistas a espreita de meus clientes; na esquina de minha casa nas ruas JJ e VG, todas as
sextas-feiras e sbados h um baile funk no qual
se juntam multides de pessoas fazendo barulho
e bebendo lcool; e assim inmeras queixas.

As respostas dos comisarios, quando no eram que no tinham competncia para intervir porque era competncia de outra repartio
pblica, consistiam em tomar nota dos locais problemticos assinalados pelos vizinhos e prometer uma medida pontual para esse
problema, tal como destinar mais policiais ao local ou intervenes
diretas, como detenes, ou, dar um susto, perturbar por algumas
horas ao pessoal denunciado.
Em segundo lugar, as demandas aqui citadas evidenciavam que, junto
aos poucos casos de crimes denunciados nas reunies, o maior nmero
de demandas correspondia a problemas de convivncia, mais do que a
demandas entendidas como propriamente policiais. Contudo, a recorrncia de demandas contra a desordem demonstrava que, embora
as crticas eficincia do trabalho policial fossem muitas e enfticas,
esses vizinhos partilhavam a viso de que a soluo policial era
a resposta mais adequada e legtima para os problemas elencados.
Esta opinio e, portanto, a prtica de apresentar esse tipo de queixa
no mbito da comisara, definiu, em parte, algumas caractersticas
ainda no destacadas do perfil dos participantes dos Conselhos.
Quer dizer: nem todos os moradores dos bairros da cidade de Buenos
Aires partilhavam a opinio de que a polcia seria o melhor canal para
tratar problemas tais como os mencionados.16 O fato de as reunies
se realizarem nas comisaras, por exemplo, excluiu, de incio, um
16

Inclusive nem todos concordam que essas situaes sejam um problema. Contudo, interessame enfatizar a relao entre a busca de uma interveno policial para esse tipo de casos, pois
acredito que muitos moradores se sentiam perturbados ou atemorizados pela presena de
jovens bebendo cerveja na porta de seus prdios, mas que no achavam que se manifestar
diante da polcia fosse um bom encaminhamento do problema.

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Arenas Publicas.indb 314

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

pblico mais crtico da instituio policial. Sem dvida, foi o caso dos
jovens, assim como de profissionais de uma classe mdia da chamada
tendncia progressista.
Em terceiro lugar, a forma e o contedo das demandas estabeleceram
fronteiras entre os vizinhos, sujeitos da participao comunitria, e
os que vm de fora, que no so do bairro, que no conhecemos,
a gente de mau viver, que gritam, sujam, urinam e bebem cerveja,
os ilegais, os chorros. Incluam-se nestas categorias camels,
prostitutas, travestis, jovens, mendigos, imigrantes.
Na percepo dos vizinhos, esses grupos ameaavam o espao
pblico; porque sujavam, faziam barulho, brigavam, furtavam, eram
ilegais. Assim, as demandas por segurana pblica eram definidas,
nessa viso, no s como questes de criminalidade, mas tambm
como problemas morais e estticos. Manter a limpeza e pureza do
bairro, assim como estar de acordo com a legalidade, apareciam como
valores comuns entre os vizinhos participantes. Nessa dinmica,
aqueles que eram objeto-alvo das demandas dos vizinhos eram
implicitamente definidos como os de fora do bairro e, portanto, de
fora dos Conselhos.
Consequentemente, a participao comunitria no os incluiu como
seu pblico, pois no s no partilhavam dos valores morais presentes nas reunies mas tambm na percepo de seus participantes, os
ameaavam. Os jovens na porta do prdio, as pessoas ocupando a rua
na entrada do baile funk, as prostitutas nas caladas, eram percebidos
como grupos que faziam um uso inadequado do espao pblico, pois,
entre outros motivos, tratava-se de pessoas estranhas, desconhecidas,
que no pertencem ao bairro.
Concluses
Procurei, ao longo deste artigo, descrever a forma como se efetivou, em diferentes bairros da cidade de Buenos Aires, a criao e
a dinmica dos Conselhos de Preveno Comunitria organizados
nas comisaras locais. Como mencionado no incio, a pergunta que
tentei responder foi: quem eram os participantes da comunidade
imaginada pela poltica de participao comunitria?
A pergunta surgiu de um primeiro estranhamento sobre o fato de que
uma poltica pblica, impulsionada pela polcia, apelasse comuni315

Arenas Publicas.indb 315

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

dade para se referir aos moradores dos bairros da cidade de Buenos


Aires. Em parte, esse estranhamento diminuiu quando, medida que
mergulhava no assunto, percebi que a categoria comunidade tinha
se tornado um termo recorrente para apresentar (e legitimar) certas
medidas de segurana pblica em um contexto de crescente descrdito
das instituies policiais. Mas, mesmo assim, ainda me perguntava
pelos significados do uso dessa categoria para impulsionar um modelo
policial que contrastasse com o modelo tradicional, voltado para o
trabalho repressivo e burocrtico.
Assim, meu estranhamento continuou no sentido de imaginar, em
termos de comunidade, o potencial pblico aqueles chamados a
participar. Assim que comecei o trabalho de campo, vrias foram as
situaes que deixaram claro que no se tratava de uma poltica destinada populao em geral (a pouca difuso das reunies, o fato de
serem sediados na comisara, uma relao historicamente conflituosa
com a polcia, entre outras). O acompanhamento das reunies dos
Conselhos foi fundamental para identificar o pblico participante.
medida que fui participando de mais reunies, procurei sistematizar
os participantes conforme o tipo de interveno, sua relao com a
polcia e, sobretudo, segundo as caractersticas por eles destacadas
nas reunies: a colaborao e a familiaridade com a polcia no caso
dos amigos; a posio social e de poder no caso dos vizinhos de
prestgio e a denncia e crtica policial no caso dos vizinhos do
medo.17 A partir desse trabalho de classificao, tambm se evidenciou a contrapartida dessa participao comunitria: aqueles que no
participavam; os de fora.
Assim, uma anlise mais detalhada e afastada do calor dos debates,
permitiu-me pensar na questo da comunidade de uma outra perspectiva, que no fosse aquela imaginada teoricamente como unidade
homognea, harmnica e estvel. Vrias situaes confrontavam com
essa viso. Em primeiro lugar, nem todos os membros dos Conselhos
confluam no mesmo objetivo: os amigos ampliavam seu trabalho
tradicional de apoio instituio, os vizinhos de prestgio exibiam
suas influncias e os vizinhos do medo buscavam um mbito em
17

Ao sistematizar o perfil dos participantes em categorias, estou introduzindo na descrio


uma tipologia, de acordo com as nfases que os atores outorgavam a suas identidades nas
reunies. No entanto, gostaria de ressaltar as nuances possveis entre elas. Por exemplo, um
vizinho prestigioso tambm podia se apresentar como vitima reiterada de delitos (vizinho
do medo), ou mesmo, um amigo podia ser considerado um vizinho de prestigio.

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Arenas Publicas.indb 316

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

que pudessem insistir nas suas reclamaes. Em outras dimenses,


tambm o pblico no era absolutamente homogneo: profissionais,
donas de casa, aposentados, comerciantes, funcionrios pblicos,
sndicos, moradores de bairros ricos e pobres da cidade. O recorte
espacial (por bairro) do programa tambm no correspondia a um
interesse comum, pois os grupos de pertena dos participantes eram
variados e estavam longe de se definirem a partir de seu pertencimento ao Conselho. Este, no caso, funcionava como mbito apropriado
para expor outras afiliaes sociais: profisso, emprego, laos de
afinidade e amizade, associao em outras agrupaes, entre outros.18
Em segundo lugar, as reunies caracterizavam-se enquanto um caldo
de discusses, brigas, interrupes para falar acima da voz do outro,
reclamaes individuais e desistncias permanentes. As crticas
diante dos comisarios e, inclusive, a denncia sobre comportamentos
irregulares dos policiais da rua eram enfatizadas nas reunies. Os
comisarios, apesar de demonstrarem uma atitude pblica receptiva,
muitas vezes perdiam a pacincia com os vizinhos, cortando as falas
com um tom enrgico e impaciente. Os vizinhos entre si tambm
discutiam em relao organizao da reunio ou de certas medidas
a serem tomadas.19
A relativa heterogeneidade, a participao individual e o conflito
caracterizaram, em grande medida, a forma desse tipo de associao.
Decidi, ento, prestar mais ateno s manifestaes e reaes dos
participantes no mbito das reunies. Pensei, assim, que o termo participao comunitria no podia ser entendido como um chamado
a uma comunidade preexistente, moradora dos bairros portenhos,
pois esta no existia como tal. Ao contrrio, percebi que o prprio
processo de participao criou, entre aqueles que participaram, uma
comunidade. Quer dizer, foi no mesmo mbito dos Conselhos, das
18

19

Clifford Geertz (1999), usa a noo de afiliao social para descrever as aldeias balinesas.
Destaca que a aldeia balinesa no , em nenhum sentido, uma unidade territorial orgnica
que coordena todos os aspetos da vida em termos de residncia ou propriedade fundiria
[...], mas sim um conjunto de estruturas sociais, cada uma baseada em um princpio diferente
de afiliao social, que se ajustam uns a outras somente na medida em que isso parece ser
essencial (1999, p. 279). No caso analisado por Geertz, esses princpios podem ser o culto, a
residncia, a propriedade dos arrozais, o status social, os laos consanguneos e de afinidade,
a filiao e a subordinao legal.
Como tm demonstrado, entre outros trabalhos, as etnografias de Ana Claudia Marques
(2002) e John Comerford (2003), o conflito uma dimenso constitutiva das relaes sociais
e, portanto, de grupos tais como a famlia ou a comunidade, tradicionalmente identificados
como harmnicos e consensuais.

317

Arenas Publicas.indb 317

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

discusses, demandas, respostas e cobranas, que se constituiu um


grupo de pessoas que tinham em comum a partilha de certos valores
morais.20 Estes referiam a um entendimento especfico sobre a concepo de um bairro seguro e de um uso legtimo do espao pblico.
As demandas colocadas e o grau de consenso e legitimidade alcanado
pelas mesmas entre os participantes,21 traaram uma fronteira entre
aqueles sujeitos da participao e os que eram o objeto das queixas
e motivo de desordem, sujeira, insegurana nos bairros. Nos termos
deste trabalho: entre vizinhos e os de fora.22
Assim, a qualidade de vizinho se definiu no processo de participao
nos Conselhos, a partir da iniciativa espontnea daqueles que, por
diferentes motivos, decidiram se aproximar das comisaras e fazer
parte dessa poltica. Nesse sentido, no houve nenhum impedimento
prvio participao, nem um trabalho de cooptao da parte dos
policiais para conseguir audincia. Poderia dizer que no foi a polcia
que procurou os vizinhos, mas estes que procuraram a polcia e
,nessa procura, definiram os limites morais da comunidade.

REFERNCIAS
BAILEY, F. G. Gifts and Poison. In:
Oxford: Basil Blackwell, 1971. p.1-25.

. Gifts and poison.

BOURDIEU, Pierre. A produo e a reproduo da lngua legtima.


In:
. A economia das trocas lingusticas. So Paulo: Edusp,
1996. p.29-52.

20
21

22

Bailey (1971); Gilmore (1987); Pitt-Rivers (1971).


As discusses nunca se referiam ao tipo de problema colocado, mas ao tempo de reunio
consumido, ao fato de furarem a ordem da palavra, e, em alguns casos, falta de legitimidade
por no frequentarem assiduamente s reunies.
Esta relao tem muitos aspectos em comum com a figurao estabelecidos outsiders
sugerida por Norbert Elias (2000). Entre outros, o que ele chama de scio dinmica da
estigmatizao (2000, p. 23), atravs da qual um grupo tem a possibilidade de afixar em
outro um rtulo de inferioridade e faz-lo prevalecer. Por sua vez, as acusaes de sujeira,
perigo, imoralidade, tambm respondem a uma dinmica semelhante quela descrita por
Abdelmalek Sayad nos seus estudos dos migrantes argelinos na Frana e relao entre as
percepes de ambos os grupos (1998, 2001).

318

Arenas Publicas.indb 318

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3 Prova / Kthia /18/04/2011

COMERFORD, John. Remapeamentos: municpios, parquias e


comunidades. In:
. Como uma famlia: sociabilidade, reputaes e territrios de parentesco na construo do sindicalismo rural
na Zona da Mata de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Relume Dumar,
2003. p.141-208.
ELIAS, Norbert. Ensaio terico sobre as relaes entre estabelecidos
outsiders. In:
; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os
outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p.19-50.
GEERTZ, Clifford. Forma e variao na estrutura da aldeia balinesa.
Mosaico: Revista de Cincias Sociais, So Paulo, ano 2, n. 1, v. 1,
p.279-303, 1999.
GELLNER, Ernest. O Maghreb como espelho para o homem. In:
. Antropologia e poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
p.205-215.
GILMORE, David. Agression and community: paradoxes of
Andalusian culture. London:Yale University Press,1987.
MARQUES, Ana Claudia. O inimigo parente. In:
. Intrigas
e questes: vingana de famlia e tramas sociais no serto de
Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002. p.119-161.
PITT-RIVERS, Julian. Amistad e autoridad. In:
. Un pueblo
de la Sierra: Grazalema. Madrid: Alianza Editorial, 1971. p.161-179.
REDFIELD, Robert. The little community as a whole. In:
.
The little community and peasant society and culture. Chicago: The
University of Chicago Press, 1965. p.1-16.
SAYAD, Abdelmalek. Elghorba: o mecanismo de reproduo da
emigrao. In:
. A imigrao ou os paradoxos da alteridade.
So Paulo: EDUSP, 1998.
. Uma famlia deslocada. In: BOURDIEU, Pierre (Org.). A
misria do mundo. Petrpolis, RJ: Vozes, 2001.
WILLIAMS, Raymond . Common. In:
. Keywords: a
vocabulary of cultures and society. London: Fontana Press, 1988a.
p.61-62.
319

Arenas Publicas.indb 319

3/5/2011 01:02:13

3 Prova / Kthia /18/04/2011

WILLIAMS, Raymond. Community. In:


. Keywords: a
vocabulary of cultures and society. London: Fontana Press, 1988b.
p.65-66.
. Society. In:
. Keywords: a vocabulary of cultures
and society. London: Fontana Press, 1988c. p.243-247.

320

Arenas Publicas.indb 320

3/5/2011 01:02:13

O DEVER DE CIDADANIA
POLTICAS PBLICAS
DE PLANEJAMENTO
URBANO E PARTICIPAO
POPULAR NO BRASIL
Alex Varella1
Um desejo de organizao cujas razes esto
na sociedade inteira...
Walter Gropius

Participar muito rpido e fcil.


Campanha publicitria na TV ESPN

Neste artigo visamos ao Plano Diretor Participativo segundo sua


significao poltico-urbanstica como realizao e modo de reiterao da unidade nacional pela universalizao do dever, que rene
este plano federal quase totalidade dos municpios brasileiros.
Plano Diretor Participativo2 o nome do ltimo lance das polticas
pblicas de planejamento urbano no Brasil, que pela primeira vez une
o plano exigncia de participao popular por meio do carter diretivo
(diretriz) que, na experincia brasileira, seria comum a ambos.
1
2

Professor aposentado da UFF.


Plano Diretor Participativo: guia para elaborao pelos municpios e cidados. Braslia, DF:
Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia / Ministrio das Cidades, 2004.

Arenas Publicas.indb 321

3/5/2011 01:02:13

3 Prova / Kthia /02/05/2011

Aqui, compreendemos o Plano como manifestao do ethos universalista e intervencionista do planejamento urbano,3 que o inspira,
sugere e estatui de imediato um ente jurdico codificado em regras
externas e coercitivas,4 nas quais se traduz e converte, de direito
cidade5 em dever de cidadania. Diante deste, a participao assume
os foros de um mecanismo e forma de aprovao, expressos numa
ocasio paradigmtica, que deve se repetir a cada cinco anos.
Neste sentido, o Plano Diretor Participativo uma lei, um ente jurdico, cifrado nos modos da tradio formalista positiva, que constitui
a conduta legal e legtima a partir de regras a priori que no supem,
em sua formao (gnese) e aplicao, a participao dos atores
cujos comportamentos regula.
No Brasil, a participao popular em processos de planejamento
constitucional.6 Significa que teramos passado diretamente, num
intervalo que pode ser contado em meses, desde a ditadura militar,
cujo projeto de modernizao criou o Ministrio do Planejamento e
consolidou o prestgio dos tcnicos, a uma nova espcie de repblica
participativa?
Como e por qual processo tal mudana teria se operado? Representa
continuidade ou ruptura com a tradio cultural e urbanstica?
Municpios de 20.000 habitantes j esto obrigados ao Plano (federal) Diretor Participativo, ainda que jamais suas populaes hajam
manifestado qualquer demanda por planejamento ou participao.

Para a crtica de tal ethos, ver Teoria de la deriva i altres textes situacionistes. Barcelona:
MACBA, 1996.
Quando, ao contrrio, as regras sociais, isto , culturalmente ou socialmente consideradas,
envolvem internalidade e alguma espcie de reconhecimento e convencimento dos atores
quanto aos lances vlidos e formas corretas de jogar o jogo, isto , de acordo com a regra.
Cf Winch (1970); Wittgenstein (1975); Hart (1986).
Programa poltico-ideolgico de universalizao de direitos em contexto urbano, tais como
o de moradia, trabalho e cultura, tornou-se, no Brasil, um ncleo doutrinrio das prticas
polticas e celebraes associativas dos profissionais da cidade arquitetos, gegrafos,
urbanistas... (LEFEBVRE, 1991).
Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Ver Oliveira (2006).

322

Arenas Publicas.indb 322

3/5/2011 01:02:13

3 Prova / Kthia /02/05/2011

O Plano Diretor Participativo imperativo,7 e surpreende a quantidade e severidade das punies previstas, a serem aplicadas queles
que o descumprirem em seu carter participativo, em particular os
prefeitos, sujeitos perda de mandato e outras sanes, caso no
submetam os projetos e polticas pblicas dos tcnicos associados
aprovao do auditrio dos interessados, e s depois Cmara dos
Vereadores, num processo que deve concluir-se obrigatoriamente at o
dia 10 de outubro de 2006 e, a partir de ento, repetir-se a cada cinco
anos. O PDP um ser jurdico destinado a produzir efeitos jurdicos.
Para que se chegasse a tal concepo de repblica participativa,
com a negao da soberania dos tcnicos, que ela implica, supe e
prope, teria sido qui necessrio um perodo de sua exaltao, na
ditadura militar, quando esses especialistas, presumveis detentores
de um saber objetivo e infenso a preferncias e injunes partidrias,
galgaram o poder e o comando das polticas pblicas, em aliana com
o estamento militar. dessa poca, por exemplo, o incio da carreira
poltica que o levaria por duas vezes prefeitura de Curitiba do
arquiteto-urbanista Jaime Lerner, inicialmente nomeado ao cargo de
Secretrio Extraordinrio da rea Metropolitana do Rio de Janeiro
pelo almirante Faria Lima, ungido por seus colegas militares governana do Rio de Janeiro (1975-1981).
De outra parte, o apelo participao, que distingue o plano atual dos
anteriores , no Brasil, sem complementos, difuso e indeterminado,
como no prprio PDP.
Exemplo disso o uso repetido da palavra no anncio televisivo
das eleies de 2006, construdo de tal forma que dele s retemos a
exortao final participe, transformada agora no verdadeiro ncleo
da mensagem, que s pode expressar-se como tal no mbito de um
sentimento coletivo de participao, para o qual transferida a nfase,
esquecido o mbil original da ao.
Na cultura brasileira, a participao assume a forma de um sentimento
de participao, como esta instncia que deve operar a conciliao
e dissolver a oposio entre a esfera tcnica do planejamento e o
7

[...] nos planos imperativos a nota saliente a cogncia. Os particulares ficam submetidos
s regras do plano e obrigados a uma determinada conduta, sob pena de consequncias at
mesmo de carter criminal, de multas e outras sanes administrativas (COUTO; SILVA,
1987, p.3).

323

Arenas Publicas.indb 323

3/5/2011 01:02:13

3 Prova / Kthia /02/05/2011

povo participante, de maneira anloga ao uso ttico-instrumental


da forma religio pelos positivistas na Religio da Humanidade,8
como um sistema retrico-comunicacional de eficcia comprovada,
cujas formas, emotivas e sentimentais, se devem preservar,
emprestando-lhes os contedos modernos-modernizadores do planejamento. Neste sentido, segundo Sofia Beatriz Lins Peixoto, Comte,
o criador desta religio sem deuses exceo da humanidade,
autocultuada tambm teria esboado, ainda na primeira metade do
sculo XIX, a ideia, to atual, de planejamento.9
Desse modo, a participao est representada como uma forma vazia
e disponvel, que se deve preencher daquilo que realmente importa
o fundo do plano.
O plano diretor participativo data do perodo de redemocratizao,
mais exatamente da Constituio de 1988, qual pertence como um
dever constitucional que constrange a cidadania.
A nvel local, o municpio de So Jos do Vale do Rio Preto, pouco
mais de 20.000 habitantes,10 antes pertencente Petrpolis, no Rio
de Janeiro, instalado em 1 de janeiro de 1989, j sob a gide da
constituinte de 88, tambm consagra, em sua lei orgnica, a constituio municipal, o planejamento urbano moderno.11
Tal incluso da cidade no planejamento , no Brasil, um bem de raiz,
o que explica a fora de tais polticas de antecipao, clinicamente
chamadas de preveno: ainda se emancipando... e j se antecipando na superao e preveno dos males urbanos e sociais (como a
superpopulao) que suscitaram a inveno do urbanismo moderno
enquanto exerccio continuado de seu diagnstico e teraputica.
No so apenas princpios gerais, mas procedimentos exemplares do
planejamento urbano moderno que ali esto consagrados enquanto
princpios orgnicos do municpio, como o zoneamento, postulado
8
9

10

11

Comte (1988). Tambm Cruz Costa (1967).


Ele (Comte) sustentava, inclusive, que, pelo estudo da realidade social, o homem pode
acelerar a marcha da civilizao, esboando, assim, a ideia to atual de planejamento. Ver
Peixoto (1972, p. XIX).
Dezenove mil duzentos e setenta e oito (19.278), segundo o censo de 2000. Estudo
Socioeconmico 2004 So Jos do Vale do Rio Preto (Tribunal de Contas do Rio de
Janeiro, 2004, p.9).
Lei Orgnica do Municpio de So Jos do Vale do Rio Preto. SJVRP: Cmara municipal
de So Jos do Vale do Rio Preto, Rio de Janeiro, 1990.

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como medida de correo, reinveno e teraputica das condies de


vida nas grandes metrpoles, aqui constitucionalizada neste pequeno
municpio do Rio de Janeiro.
Tambm a lista dos projetos prioritrios aos quais se consagra a
prefeitura no presente momento, evidencia os elos com o estilo
internacional, isto , universal, do movimento moderno, na concepo da arquitetura e do planejamento urbano, seja nas unidades
habitacionais,12 do arquiteto Jlio Otoni, ex-secretrio de obras do
municpio, evocando diretamente Le Corbusier e seu edifcio de
Marselha; seja no projeto de transferncia da administrao municipal para o centro geomtrico do municpio, na localidade de Morro
Redondo,13 projeto para o qual, significativamente, busca-se os servios e o talento do arquiteto de Braslia, Oscar Niemeyer.
Foto 1 Projeto de habitao social
em Pedras Brancas, So Jos do Vale do Rio Preto-RJ.

Acrescente-se, ainda, a presena e atuao, em numerosos projetos, de equipes de arquitetos e urbanistas de distinta procedncia e
nacionalidade,14 para os quais o Brasil, tantas vezes tido como pas
12
13
14

Pavesi (2005-2006).
Ibidem.
Ibidem.

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do acaso (a que se atribuiu sua descoberta), do improviso e do imprevidncia, tambm o pas do planejamento, que mais longe levou o
planejamento urbano, ao ponto de materializar suas receitas nos espaos racionais da capital construda para ser cone e smbolo do pas.
De um ponto de vista do municpio ou do pas, para culturas penetradas
por um forte sentimento de esgotamento e exausto das ideologias
totais, a que correspondem territrios exguos e possibilidades de
deslocamento inesgotveis, o Brasil ainda , consoante a promessa
moderna, mais do que um continente, um mundo a planejar.
1
Se, como pensa o autor do Direito Cidade,15 a Filosofia Urbana o
exame crtico da atividade dos urbanistas, tal esclarecimento incide
cada vez mais sobre o binmio planejamento urbano-participao
popular.
O relacionamento entre os dois termos pode ser acompanhado tanto
do ponto de vista das disciplinas da planificao quanto do contexto
poltico e filosfico que os rene e compreende.
Os anos 1960, nos Estados Unidos e na Europa, constituem o marco
temporal inicial de seu encontro, aproximao e desenvolvimento
histrico-problemtico.
No que se refere s disciplinas da planificao, a temtica da
participao revela-se como manifestao e produto de uma crise do
modelo tcnico autoritrio, fundado na presuno de desinteresse,
objetividade e universalidade da cincia, da qual o urbanismo
racionalista moderno e seu estilo internacional se representa como
fiel aplicao. Trata-se de uma crise no modo de autocompreenso e
de atuar das disciplinas tcnicas (e, em ltima anlise, da prpria
modernidade), da qual emergir o discurso da participao.16
Aqui so os prprios urbanistas e arquitetos que passam a admitir
e defender a presena do pblico na definio dos meios e fins do
planejamento urbano, o modelo hermenutico da aplicatio17 que, em
oposio aplicao universal-autoritria, envolve o reconhecimen15
16
17

Lefebvre (1991).
Hall (1995, p.392- 402).
Gadamer (1991, p.51).

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to dos atores, circunstncias e contextos que demandam alteraes,


adaptaes ou, quem sabe, at mesmo o arquivamento dos planos da
cidade dos urbanistas, elaborados na presuno de ignorncia e incapacidade do pblico, cliente ou usurio, de definir, ou pelo menos de
participar da tomada de deciso sobre aquilo que incide diretamente
sobre sua vida presente e futura.
A disposio e radicalismo em aceitar e praticar o novo discurso da
participao, candidato a paradigma na esfera tcnica, em particular
no planejamento urbano, pode ser medido numa escala cujo fruto
mais extremo o advocacy planning, o planejamento advocatcio.18
Antigos demiurgos convertidos modesta condio de intrpretes,
abrindo mo de seu direito de plasmar ao plano sozinhos, com ateno apenas a seus pares e, naturalmente, aos investidores e polticos,
propem-se agora, generosamente, a transferir sua linguagem, mtodos, processos e meios de composio, como se seus advogados
fossem, aos grupos diretamente interessados e excludos (na lgica
prevalecente, excludos porque interessados), aos quais se concede o
direito a definir meios e fins.
J se passara o perodo herico do modernismo arquitetnico, quando Walter Gropius, o fundador e diretor da Bauhaus, afirmara sem
papas na lngua a soberania do arquiteto diante dos tmidos gostos e
preferncias do usurio e do cliente quanto ao edifcio e cidade.19
O cliente tende a fazer escolhas irracionais, dizia Gropius, secundado
por Le Corbusier e toda a primeira gerao do movimento moderno,
e tais preferncias no s contrariam o telos do desenvolvimento
histrico e social como, no fundo, seus prprios interesses particulares, que s poderiam se desenvolver verdadeiramente em relaes
de sintonia, subsuno e harmonia com o todo social, concebido
alternativamente como organismo ou mquina.
Mais tarde, exilado nos Estados Unidos, Gropius seria um personagem
de ponta na propagao do dogma do modernismo arquitetnico,
podendo-se atribuir parte da reao participativa dos crculos
construtivos (arquitetos e urbanistas) norte-americanos a um efeito
18
19

Davidoff (1965, p.186-197).


Gropius (2005); Wolfe (1990).

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perverso de sua agressiva pregao da soberania dos tcnicos, quando


na cultura americana de mercado, o cliente tem sempre razo.
Longe daqueles tempos hericos, j estvamos agora, nos anos 1960,
poca da terceira gerao do movimento moderno, quando Aldo
Van Eick, por exemplo, nos revela a estranha perenidade da forma
da aldeia Dogon, que permanece a mesma, indiferente s aflies
historicistas e invocao ao progresso universal, to ao gosto da
vanguarda arquitetnica moderna.20
Admite-se, ento, tendo em vista o carter cultural e relativo da
cincia da arquitetura e da cidade, um compromisso entre o saber
dos tcnicos e as expectativas, necessidades e preferncias dos
destinatrios de seu trabalho.
A partir dos anos 1970, a temtica da participao popular e do planejamento participativo ganha espao tambm na Amrica do Sul, via
Europa e Estados Unidos, de que testemunho o prestgio e presena
acadmica constante, e em crculos tcnicos, do socilogo espanhol
Manuel Castells21 e, no Brasil, do antroplogo-urbanista Carlos Nelson
Ferreira dos Santos, interlocutor constante das nascentes associaes
de moradores em suas demandas de participao.22
Do ponto de vista externo esfera tcnica, isto , do contexto poltico
e filosfico que instrui e, por assim dizer, prepara, nos Estados Unidos,
a aproximao a que estamos nos referindo, entre o planejamento
urbano e o programa da participao popular, devemos apontar a
conexo entre as posies da new left (nova esquerda) e a tradio
cultural do liberalismo e do pragmatismo americano. Este ltimo no
desqualifica o interesse, mas, pelo contrrio, concede-lhe cidadania e
o constitui como fonte, expresso e definio da verdade23 e, em tal
contexto, a cultura liberal do indivduo consumidor tende a representar
a participao como um direito de mercado, que afeta a clientes e
usurios como consumidores.
Embora no seja exato dizer que o pragmatismo est para a cultura
americana como o positivismo para a brasileira, so poucos os exemplos de tal insero cultural de uma filosofia, em que pese o carter
20
21
22
23

Eick et al. (1972).


Castells (1988).
Freire; Oliveira (2002).
Rorty (1993).

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oficial ou oficioso, estatal e institucional do positivismo no Brasil,


enquanto o pragmatismo americano, antes de ser de James, Dewey
ou Rorty, americano. Tem origem na sociedade e no no Estado.
Enquanto isso, o positivismo de Comte, a partir do qual se constitui
o positivismo brasileira, trilha caminho inverso ao da soberania
popular atualizada pelos usurios, interessados ou simplesmente
cidados e representa uma tradio fortemente antiparticipativa,
se assim podemos dizer, expressa na exigncia de uma cientifizao
da poltica, parte dos planos necessrios reforma da sociedade
e que, justamente, deve reforar e concentrar as decises nas mos
dos tcnicos.24
Tal direo se fortalece nos perodos de ditadura, no tempo de Vargas,
que teria sido ele prprio um fiel da doutrina e, posteriormente,
da ditadura inaugurada em 1964, quando os polticos profissionais
e ligados ao quadro partidrio so alijados do comando da mquina
estatal e das polticas pblicas, em benefcio de uma aliana militar-tecnocrtica.
Dessa forma, num contexto cultural e filosfico muito distinto
daquele do pragmatismo e do liberalismo norte-americanos, que se
enuncia pela primeira vez entre ns, nos anos 1970, o discurso da
participao popular na esfera tcnico-urbana.
2
Em verdade, nenhum clamor popular levou a constituinte de 88 a
adotar a regra da participao, nem qualquer presso irrecorrvel,
ainda que democrtica, se abateu sobre o presidente Cardoso, para que
este a corroborasse, na forma do planejamento participativo, quando
sancionou, em 2001, o Estatuto da Cidade.25
Algumas associaes de classe, em particular o IAB, que rene
arquitetos e urbanistas, e entidades populares afins, defenderam o
estabelecimento da norma da participao junto s bancadas e partidos
prximos suas demandas profissionais e polticas, mas um exagero
dizer que sua instituio resulta da presso e reivindicao organizada
24
25

Comte (1972); Lins (1967).


Estatuto da Cidade. Braslia: Presidncia da Repblica, Casa Civil, Subchefia para
Assuntos Jurdicos, lei no 1o 257, de 10 de julho 2001. Tambm: Estatuto da Cidade para
compreender.... Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Administrao Municipal, 2001.

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dos diretamente interessados, isto , a populao que sofre a ao e


os efeitos da atividade planificadora, em especial do planejamento
urbano. Alm do que, preciso lembrar que a regra foi apoiada e
aprovada pela maioria conservadora reunida no Centro,26 bastando
consultar, de outro lado, uma lista de entidades intervenientes na
discusso, programao e divulgao do Estatuto da Cidade,
explicitamente nominadas em publicao oficial do IBAM, para se
ter ideia do comprometimento dos profissionais da cidade com o
plano e, inversamente, da relativa ausncia e alheamento das entidades
populares, que renem os diretamente interessados. Entre 15 nomes
citados, contam-se apenas os de quatro movimentos sociais, os
demais designando associaes de classe, organismos e sindicatos
de engenheiros, arquitetos, urbanistas, economistas, gegrafos e
assistentes sociais.27
Contudo, em parte coincidindo com o interregno autoritrio, que
se entende de 1964 a 1988, uma cultura da participao j se fizera
anunciar no Brasil desde incio dos anos 1960, nas artes visuais e na
pedagogia participativa de Paulo Freire,28 fenmenos de reconhecimento e prestgio internacional.
Na esfera da arte, Hlio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape so os
iniciadores e principais propositores da arte da participao.29
Para eles, a atividade artstica no mais se confunde com a construo do
artefato e sua entrega fruio do espectador, mas visa promover atos
livres, no alienados, de apropriao e reapropriao da realidade.
Enquanto a pedagogia da libertao promovia o educando e seu
contexto participante do processo educacional (ousadia de que
26
27

28
29

Saule (1997).
CONFEA-Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia; FASE-Solidariedade e
Educao; FNA Federao Nacional de Arquitetos; Fundao Bento Rubio; IAB Instituto
de Arquitetos do Brasil; IBAM Instituto Brasileiro de Administrao Municipal; IBASE
Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e econmicas; Instituto Polis; IPEA Instituto de
Pesquisa Econmica Aplicada; IPPUR/UFRJ Observatrio de Polticas Urbanas e Gesto
Municipal; MMC Movimento Moradia So Paulo; Movimento Pr-Favela Rio de
janeiro; MSTC Movimento dos Sem-Teto So Paulo; sindicato dos Engenheiros de So
Paulo; Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro; UMC Unio dos Movimentos de
Moradia So Paulo. Estatuto da Cidade para compreender. Rio de Janeiro: Instituto
Brasileiro de Administrao Municipal, 2001.
Freire (1967, 1970).
Brett (1986, sem indicao de pgina).

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guarda memria a prtica de atribuir conceito e nota por participao), Hlio Oiticica dava um passo alm.
Para dar nfase ao aspecto ativo da participao (o inverso absoluto
de ser participado), inventa um neologismo, o participador,30
quando tinha ao seu dispor o termo participante, de orla mais
receptiva, passiva.
Seu trabalho no apenas propicia escolhas (como na obra aberta),
mas faz do antigo espectador, agora participador, seu autor, na
medida em que com o prprio e intransfervel corpo se inscreve na
obra desde o incio, quando escolhe o orifcio por onde vestir a capa-parangol e, destarte, a faz existir.
Ademais, a escolha e participao no se atm aqui essencialmente
aos materiais e s formas e meios da ao, como em Paulo Freire.
Neste autor, efetivamente, os fins da ao permanecem margem
da discusso.
A pedagogia, ou melhor, a educao, visa formao da
autoconscincia, e poderia ser descrita, imagem da fenomenologia
hegeliana, como o caminho que vai desde a conscincia natural
conscincia de si como ser poltico e genrico.31
Mas Hlio Oiticica no determina os fins da ao.
Voc no apenas pode vestir como quiser a capa Parangol, como
tambm pode fazer o que quiser com ela: passear, fruir de seu contato na pele, danar..., mas nenhuma dessas coisas o fim necessrio
e ltimo da ao.32
Ela no est direcionada, como o educando participante de Paulo
Freire est direcionado pela realizao de determinada essncia, a
formao do homem livre e autoconsciente, o que naturalmente inclui
a conscincia de sua circunstncia.
Mas se a questo da participao recebe, na dimenso da cultura
erudita, os aportes originais da vanguarda participacional e da pe30
31
32

Oiticica (1986, p.71).


Hegel (1977).
Oiticica ([19--]).

331

Arenas Publicas.indb 331

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

dagogia participante de Paulo Freire, ntido, por outro lado, seu


descompasso com os movimentos sociais.
No Rio de Janeiro, o fortalecimento da representao das associaes
de moradores e sua constituio em forma federada, a Federao
das Associaes de Moradores do Rio de Janeiro, data somente dos
anos 1980, quando passa a ser um dos interlocutores privilegiados
do governo estadual, particularmente depois da ascenso poltica do
militante J Resende, ele prprio antigo dirigente comunitrio de
bairro, mais tarde guindado, j nos anos 1990, em aliana com as
elites tcnicas e polticas locais, ao cargo de vice-prefeito da cidade.
A conquista de tal vigor pelas entidades e organizaes populares
no ser, contudo, linear e progressiva, bastando lembrar que o prefeito eleito na chapa da qual J era o vice, Saturnino Braga, era ele
prprio egresso das elites tcnicas aninhadas no aparelho do Estado,
um engenheiro e economista que integrava o corpo tcnico do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social, o BNDES.
Alguns anos mais tarde, a eleio ao cargo de prefeito e o exerccio
mais ou menos simultneo da administrao pblica por trs conhecidos
urbanistas de importantes cidades brasileiras no sinaliza uma
presumida contraofensiva dos tcnicos, hipoteticamente ameaados de
serem apeados dos ncleos decisrios, mas um projeto de conciliao
e concesso deste saber-poder representado como axiologicamente
neutro, imparcial e objetivo, ao poder emergente dos delegados e
representantes dos interessados, tirados em assembleias diretas.
Luiz Paulo Conde, professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e ex- Secretrio Municipal de Urbanismo; Jaime Lerner,
ex-Secretrio Extraordinrio para a Regio Metropolitana do Rio
de Janeiro, e Joo Sampaio, professor da Universidade Federal Fluminense e ex-Secretrio Municipal de Urbanismo de Niteri, iro
propor e experimentar formas qui mais abertas e democrticas de
se relacionar com os movimentos sociais, mas sem abrir mo da
precedncia e autoridade dos tcnicos sobre os interesses e a opinio popular, tanto no diagnstico, que implica na leitura tcnica
precedendo a comunitria,33 quanto na prescrio de meios e fins
para a terapia urbanstica da cidade.
33

Roteiro de trabalho para a urbanizao de favelas: guia prtico. Belo Horizonte: Secretria
de Estado do Trabalho e Ao Social, 1987.

332

Arenas Publicas.indb 332

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Tal ascenso mais ou menos simultnea e contempornea de coadjuvantes guindados a protagonistas da cena principal, se realiza em
nome da representao do tcnico o urbanista, o engenheiro, o
economista como dotado de um saber e um ethos de interesse
geral, alm do fracionamento da vida societria e poltica, dispersa
numa multiplicidade de paixes e interesses particulares conflitantes,
de indivduos, grupos ou partidos.
3
Antes era o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, o PDDI,
no tempo da ditadura militar. Agora, Plano Diretor Participativo,
quando neste ltimo termo reside toda a novidade, e no apenas por
razes eufnicas.
Mas no prprio do plano ser dirigente e direcional, ainda que seja
meramente indicativo?
indicativo quando tem carter apenas sugestivo, no obrigatrio,
o poder pblico no se comprometendo com sua execuo e
implementao.34
Corresponde a um cumprimento meramente retrico da funo
planificadora do Estado. Se este no possui os recursos, materiais
ou polticos, para implement-la, faz-la efetiva ao nvel fsico-construtivo,das pedras, a realiza como discurso, destinado a
produzir efeitos simblicos e fazer visvel a presena do Estado.
Tem um carter quase de aconselhamento cidadania responsvel,
diante da qual o Estado assume posio ambgua, ausentando-se para
preservar e confirmar sua presena diretora na funo de indicao.
J o incitativo um plano de incentivos, amide materiais, como, por
exemplo, o municpio abrir mo da cobrana do IPTU para aqueles
que destinarem suas propriedades urbanas a determinados usos, considerados convenientes ou estratgicos. Assim, o poder pblico no
abre mo de sua funo diretora, com a qual distribui as atividades
urbanas, valendo-se de perdo e penalizao. A legislao urbana
o instrumento de seus fins.

34

Couto e Silva (1987, p.3 et seq.); tambm Saule Jr. (1997, p.143-149).

333

Arenas Publicas.indb 333

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

O terceiro tipo de plano o imperativo. o nico dos trs que prev


uma penalizao no condicional e universal, no sentido do universo
de sua aplicao.
diferena do incitativo, no se aplica apenas como reverso do
benefcio que o cidado poderia obter caso atendesse aos apelos do
plano, sua incitao, provocao.
Na modalidade imperativa, todos igualmente esto sujeitos punio
pelo no cumprimento do plano. O PDP imperativo. Imperativo e
participativo: participa! Mas, na lngua do Brasil, o imperativo, gramaticalmente falando, em que pese o latim imperare, tem o sentido
mais de exortao do que de comando: participe!35
O PDP exortativo, e uma exortao uma convocao que obedece
a um apelo externo quele que a recebe. Este se deve deslocar, fsica,
espiritual, mental ou simbolicamente, em direo ao alvo ou bem para
o qual aponta o discurso de exortao, seja patritico, religioso ou
outro. Mas no qualquer alvo que capaz de produzir um discurso
de exortao; assim, surpreende exortar um outro ao cumprimento
de tarefas comuns e rotineiras.
A exortao da ordem do extraordinrio, e no Plano Diretor Participativo, o PDP, sucessor do PDDI, exorta-se a participar como meio de
integrar-se ao todo de que emana ser e sentido, o mito da participao,
como o denominava Vaneigem,36 como negao da finitude e irredutibidade do vivido enquanto fundamento e condio de possibilidade
do plano. Por tal anlise, o conceito de participao seria interno e
constitutivo da prpria ideia de Plano, como prtica de distribuio,
incluso, alocao e significao das partes por participao no todo
que assim as constitui, no configurando, pois, nenhuma novidade
em relao a este.
Por outro lado, o termo diretor comparece aqui como um reforo de
plano, para enfatiz-lo, a par de seu carter participativo, pois, nesta
perspectiva, o PDP um plano diretor que tambm participativo.

35

36

Quando empregamos o imperativo, em geral, temos o intuito de exortar o nosso interlocutor


a cumprir a ao indicada pelo verbo. , pois, mais o modo da exortao, do conselho, do
convite, do que propriamente do comando, da ordem. Cf Cunha (1976, p.451).
Vaneigem (1977, p.226).

334

Arenas Publicas.indb 334

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

De tal ponto de vista, o Plano Diretor Participativo configura-se,


ento, desde a denominao, realando os elementos contidos nos
dois primeiros termos, como um compromisso entre as solues e
propostas dos tcnicos-planejadores e os procedimentos consulta-aprovao que lhes foram agregados.
Assim concebido, preciso indagar de que participao se trata e em
que sentido comparvel quela tematizada exausto nos campi
norte-americanos da dcada de 1960.
Aquela era uma concepo extensionista da participao, segundo a
qual seu conceito sua extenso aos receptores, usurios ou clientes,
como um direito antes restrito aos tcnicos, investidores e polticos
de decidir, elaborar e aplicar polticas pblicas a que esto afetos,
e que, por isso mesmo, na condio de afetos e afetados, devem ter o
direito a discutir, decidir, alterar ou recusar, em um sistema no qual
liberalismo e cultura pragmatista formam o background do planejamento participativo nascente.
A participao brasileira, ao reverso, frequentemente um verbo
sem complemento e uma ao sem objeto.
Convoca-se ou exorta-se a participar sem que seja ao menos necessrio
dizer, a cada passo, de que e como. A publicidade, sobretudo a tv, seu
veculo e linguagem de tal participao indeterminada. A mensagem
de exortao participe! pronunciada e repetida ao final da pea
publicitria, e quando esta se acaba, ela que fica na memria, como
se fosse o nico e verdadeiro alvo da campanha: participe! Exemplar,
neste sentido, a convocao participao em eventos, processos
e mbitos nos quais nossa ao no tem, manifestamente, o poder
de alterar ou gerar resultados visveis, como, por exemplo, aquela
participao na caminhada da seleo rumo ao hexa.
Exortao integrao do particular sub specie o todo de que
participante, a participao brasileira o envolve na atmosfera vaga
e inclusiva do sentimento, e assim o faz ainda mais indistinto,
irreconhecvel em sua identidade e alteridade, como parte que no
alcana enunciao e reconhecimento.
Mas, se O PDP exortativo, como saber o como e o quando do cumprimento de uma exortao?
335

Arenas Publicas.indb 335

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

4
conhecido o episdio no qual um grupo de arquitetos-urbanistas,
sob a liderana de Le Corbusier, freta um navio em Marselha, e
entre debates e conferncias acaloradas, empreende uma viagem
filosfica aos fundamentos, para participar do CIAM (Congresso
Internacional de Arquitetura Mundial ) de 1933, na antiga polis
grega, de que resultou o documento-sntese do urbanismo moderno,
a Carta de Atenas,37 de autoria do arquiteto franco-suio. Na volta, faz
o mesmo trajeto e programa: de Atenas Marselha, via porto e mar
do Egeu, entre projetos e sonhos de inveno e correo urbanstica.
O fato daquele congresso ter sido realizado em Atenas e as circunstncias que cercaram o empreendimento, no deixam dvidas quanto
sua significao fundadora: se a atividade dos construtores e reformadores de cidades obedece a uma constante e recorrente seduo,
e mais que isso, a uma verdadeira nostalgia do lugar, a capital filosfica e intelectual de Ocidente parece ser a cidade ideal para, desde
o passado, velar pelo futuro.
FOTO2 - Projeto de habitao social
em Pedras Brancas, So Jos do Vale do Rio Preto, RJ.

37

Carta de Atenas. Belo Horizonte: Diretrio Acadmico da escola de Arquitetura da


Universidade de Minas Gerais, 1964.

336

Arenas Publicas.indb 336

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

A atividade dos urbanistas uma forma particular de colonizao


do futuro, para usar uma expresso com a qual Giddens se refere
aos processos modernos,38 e seu ncleo programtico e ansioltico
o controle, desqualificao e domnio sobre o particular e o finito
urbano, por sua presena e participao no todo de que parte.
O instrumento mximo de tal desqualificao , como se sabe, a
representao do conhecimento segundo o par doxa-epistme.
De um lado, o saber fundado sobre o modelo das cincias formais-matemticas, universal e necessrio; de outro, a mera opinio,
engano e manifestao do interesse e da pregnncia do discurso
circunstncia e lugar que o motiva e efetiva.
O saber objetivo-universal (objetivo porque universal e universal
porque objetivo), unifica a experincia pela via do conhecimento e
deve se impor s representaes que falseiam e deformam a realidade como fruto da viso perspectivada e particularizante. A tcnica
moderna no se constitui como a tecn grega, mas enquanto campo
de aplicao da cincia como saber objetivo, universal e necessrio.
A persistncia desta representao essencialista e autoritria pode ser
percebida na prpria tecnificao do que deveria ser seu contraponto
nos processos de planejamento o programa de participao popular.
Neste sentido, se constitui a figura do facilitador como um mediador, intrprete ou especialista em participao, ainda que o
advento do tcnico em mediao v em direo contrria ao projeto
da democracia participativa.
O facilitador uma espcie de representante da esfera tcnico-poltica
junto ao auditrio dos interessados, dele se esperando um papel de apresentao e traduo, desde o diagnstico s prescries tcnicas. um
mediador que no foi solicitado em seus servios pelos interessados.
Personagem da participao brasileira, que o PDP trouxe cena,
criatura da esfera tcnica do planejamento, com a qual constitui uma
comunidade do desinteresse e dos desinteressados.
De outra parte, a questo da extenso do auditrio dos interessados
tem implicaes que vo alm do argumento quantitativo.
38

Giddens (2002, p.135).

337

Arenas Publicas.indb 337

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Este aponta para a objeo mais frequente democracia participativa,


segundo a qual esta seria impraticvel em auditrios to extensos
quanto as cidades modernas.39
Diante de tal objeo, os defensores da participao direta e generalizada, na representao da democracia participativa, esperam
salvar o princpio com a reduo e multiplicao de seus mbitos de
aplicao, isto , seguindo aparentemente um caminho oposto ao da
generalizao pretendida, qual seja, o da setorizao como reduo
da extenso, em verdade um subproduto do argumento quantitativo:
dada impossibilidade de reunir toda a cidadania, o participacionismo
se faz em partes (ou em gotas), no local de trabalho, na moradia, no
colgio dos filhos ou em sua terapia psicolgica.
Da se chega rpido a pensar que, no que diz respeito cidade, os
diretamente interessados, aos quais se exorta a participar, esto circunscritos a unidades de participao, setores, como os bairros, a rua
etc., negando-lhes, assim, a viso geral e panormica, de totalidade,
que constitui a representao da cidade, na Filosofia e na ideologia
urbana,40 e a que corresponde a constituio do cidado, categoria que
amplia e universaliza a dos diretamente interessados, liberando-a
de definies e condicionantes espaciais e territoriais.
A verdade que mesmo um plano parcial e setorial requalifica todo
o espao urbano, o re-significa, ainda que no o tenha por alvo
direto; e se tal considerao tem sentido, mais ainda em pequenas
cidades de vinte mil habitantes, que a lei subordina s exigncias do
PDP, inclusive quanto sua periodicidade e abrangncia, agregando
municpios de 20.000 habitantes a grandes metrpoles, um universo
completamente heterogneo.
Dispensa-se, por exemplo, a mediao da categoria de regio, to
ativa em outros contextos. O Plano o mesmo, qualquer que seja
o plano, independentemente de agregao e integrao da regio.41
39
40
41

MacPherson (1978, p.97-118).


Lefebvre (1991).
J o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, o PDDI, da poca do autoritarismo,
reconhece a regio como categoria bsica de integrao territorial, econmica e poltica.

Analisando sua denominao, diz Saule Jnior: Integrado, pois deveria se integrar no
desenvolvimento da regio em que se situasse o municpio e nos planos regionais existentes,
como tambm constituir um conjunto integrado de diretrizes e programas de ao, nos vrios
setores da atividade municipal econmico, social-territorial, administrativo e financeiro.
Cf Saule (1997, p.37-38).

338

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

No h praticamente municpio que possa ficar fora do Plano Diretor


Participativo (o Distrito Federal?), ou que no possa ser punido por
seu descumprimento.
A possibilidade de punio rene os punveis. O plano diretor participativo uma ocasio exemplar, paradigmtica, de reforo e celebrao
da lei e da instaurao jurdico-normativa da sociedade.
5
Da perspectiva em que estamos falando, diferentemente da anlise
conceitual que revela a mtua implicao de plano e participao, o
PDP nos aparece como um plano diretor e participativo, no qual o
ltimo termo se agrega ao primeiro numa relao externa, emprica
e associativa entre diferentes.
Nenhum lao de necessidade os une.
So dois e no um, de tal sorte que qualquer modificao em um
deles, no provoca mudana no outro.
Primeiro o plano, depois a participao: a forma unitria do compsito de trs nomes Plano Diretor Participativo revela-se aparente
e enganosa a uma anlise mais detida.
Na denominao, o segundo termo, diretor, pertence ao primeiro, pois
no se concebe um plano que no seja um sistema diretriz, ainda que
proveniente da participao popular, como o advocacy planning.
Ento, a forma tautolgica cumpre uma funo retrica de reforo da
instncia do plano, que repercute em som e sentido plano diretor
mostrando que no PDP quem d as cartas e inicia o jogo a esfera
pblica do planejamento.
Ademais, ainda no plano da linguagem, h uma separao42
conceito oposto ao de participao que constitutiva da prpria
conjuno e que tem escapado anlise conceitual e investigao
emprica que, no entanto, devem interpret-la exibindo a forma oculta
no enunciado verbal e cujo significado se constitui empiricamente
como projeo dos usos e preferncias dos profissionais da cidade,
arquitetos e urbanistas, em cujos gabinetes nasceu, como proposta
urbanstica, a proposio que, uma vez modificada, incorporada e
42

Bornheim (1983, p.36-38).

339

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

sistematizada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1988, deu


origem e forma ao PDP.
Para os membros do grupo interno, o plano, positivado em regras
jurdicas federais que o determinam previamente em sua aplicao
municipal, no diretor participativo, mas diretor e participativo,
planejamento e participao se constituindo cada um por si em
duas metades separadas e autrquicas, nele reunidas.
Tais partes no interferem nem se modificam mutuamente, concebidas
e desenvolvidas como momentos distintos e complementares perante
a unidade e a identidade do plano. Destarte, no configuram a este
sob o modelo da unidade interna ou da sntese orgnica dos elementos, e sim como uma associao entre pores heterogneas que,
quando se comunicam entre si, o fazem por meio da figura de um
mediador, no Brasil chamado facilitador, criatura da esfera tcnica
do planejamento, a parte primeira lgica, cronolgica e ontologicamente falando relativamente ao complemento da participao
popular, localizado em sua fase de aprovao.
Assim, por tal representao, planejamento e participao so as
partes constituintes do PDP, correspondentes, respectivamente, aos
momentos de elaborao e aprovao de um plano federal, obrigatrio
para a quase totalidade dos municpios brasileiros, responsveis por
sua atualizao e aprovao a nvel municipal at 10 de outubro de
2006, obrigao legal-constitucional que, a partir de ento, deve ser
renovada a cada cinco anos.
Do ponto de vista que corresponde primeira de suas partes, o
PDP se constitui em iderio, instrumento e bandeira do programa
poltico-ideolgico do Direito Cidade, hegemnico nas formulaes ideolgicas dos urbanistas brasileiros desde antes de 1988,
ano em que servem de base proposio dos artigos constitucionais
de nmero 182, que estabelece a poltica das funes sociais da
cidade e da propriedade43 e 183, que institui o usucapio urbano,44
codificando-se em regras jurdicas concebidas em sua formao e
aplicao de modo apriorstico, externo e imperativo, na forma de
um meta-plano que avana, antecipa, explicita, tutela e substitui os
43

44

Estatuto da Cidade: para compreender. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Administrao


Municipal, 2001. p. 7.
Ibidem.

340

Arenas Publicas.indb 340

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

contedos e formas que, segundo seu prprio texto, deveriam surgir


da praxis participativa da cidadania, em cada caso.
A tal articulao e dissociao do plano em suas partes, como ao
planejada45 e ao participante, deve-se creditar sua inconsistncia
lgica e metodolgica, ademais da ineficcia e inrcia prtica em
relao aos fins declarados, seja por disfuno estrutural, inadequao ou incompatibilidade prtica e terica entre o modelo
exaustivo a priori, externo e imperativo da formao e aplicao
das regras sociais e jurdicas do planejamento moderno e, de outro
lado, a atividade de construo e ressignificao por parte do cidado-participante, cujo conceito supe, nas culturas de origem Estados
Unidos e Europa a receptividade que deriva da experincia da
abertura, incompletude e inacabamento essencial dos cdigos e dos
comportamentos como condio e promessa da participao.
6
Se de um lado sobra regulao; de outro, falta.
Ora, participao uma palavra cujo significado depende de seu
uso nas situaes e contextos em que empregada, como dizem as
investigaes de Wittgenstein, ou ento um termo de textura aberta, para falar como Waissman e o jus-filsofo Hart. Para torn-lo
operativo, deveramos ento especificar suas condies de verdade
ou seu mtodo de verificao.46
Assim, na Alemanha, o Parlamento, ao promulgar a Lei de Fomento
Urbanstico, em 1971, explicitou, em primeiro lugar, as reas de
interveno da participao cidad, restringindo-as ao saneamento
e desenvolvimento urbano, enquanto, no Brasil, o PDP ilimitado,
e tambm desse ponto de vista, da extenso, inverificvel, pois este
plano pode abarcar tudo, a cidade e o campo, a economia e os espaos
urbanos, a legislao municipal e tudo o mais que possa estar contido
em um plano geral: antes de 1988, de desenvolvimento integrado;
hoje um plano de participao. Em segundo lugar, o Parlamento
alemo definiu a participao dos afetados como um processo de
discusso e tomada de deciso em duas etapas, a de preparao, que
no PDP est restrita aos tcnicos que inclui a discusso dos obje45
46

Schutz ([19--], p.123).


Struchiner (2002).

341

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

tivos do plano e, subsequentemente, a de resoluo quanto sua


aprovao e implementao final.47
Ora, ao optar por no definir as formas e usos nos quais poderamos
afirmar ou negar sua ocorrncia, a participao no Brasil ser compreendida e operada a partir das representaes prevalecentes na cultura
brasileira, na qual no indica o reconhecimento e aditamento de novos
atores e pautas o que constitui o objetivo do jogo nas culturas de
origem, Estados Unidos e Europa mas, ao contrrio, sua integrao em uma unidade omnicompreensiva, representada pelo Estado
nacional autor do dito, face aos municpios que lhe devem lealdade
e obrigao, renovadas periodicamente.
O modelo apriorstico de antecipao e precedncia da regra face aos
campos reais e possveis de sua aplicao constitui ao Plano Diretor
Participativo atual como um conjunto de normas imperativas em modelo de subsuno formal e poltica que consagra ao todo sobre suas
partes, de cuja ao no provm regras, e de onde, portanto, no pode
provir participao como aditamento e incluso (social) de pautas.
A incapacidade do PDP em atingir os fins propostos deve ser creditada,
ento, inconsistncia do Plano frente aos objetivos declarados e sua
imantao na dimenso retrica em que o discurso o negativo da ao
e a eficcia buscada se basta no simblico.
De tal forma que o PDP no Brasil no um modo prtico e receptivo
de conjugar a pauta da ao planejada com demandas de participao
e incluso social; mas meio e instrumento simblico de uma ocasio
paradigmtica e ritual, renovada periodicamente, de comemorar os
valores da vida planejada e os vnculos tradicionais de lealdade dos
sditos para com a unidade da federao.
O modelo more geometrico apriorista, externo e coercitivo da
formao e aplicao da regra tcnica e jurdica que constitui ao Plano
Diretor Participativo, conleva uma concepo e prtica contraditrias
ao programa da participao dos atores na construo do sentido,
inabilitando ao Plano, seja por defeito de fabricao (involuntrio)
ou estratgia bem urdida, a produzir os efeitos antecipados
esfera prtica-pregnante. Ele os transfere ao mbito do simblico,
pela capacidade de gerar solidariedade e controle social, mas tal
47

Guerra (2000, p. 25-26).

342

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

transferncia no opera sua constituio e compreenso a partir da


ao do ator-participante.
Produto mais recente da ideologia do planejamento no Brasil, o Plano
Diretor Participativo se constitui como incompatvel e inadequado aos
fins sociais que se prope alcanar, em relao aos quais se mantm em
posio de rigorosa autocontradio; no uma forma prtica receptiva
de conjugar a pauta da ao planejada com demandas de participao
e incluso social, mas o meio e instrumento simblico de uma ocasio
paradigmtica e ritual, renovada periodicamente a cada cinco anos, de
reiterar os vnculos tradicionais de lealdade dos sditos, muncipespartcipes, para com a unidade da federao, representada pelo estado
nacional fonte do dito.

REFERNCIAS
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Arenas Publicas.indb 343

3/5/2011 01:02:17

3 Prova / Kthia /02/05/2011

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344

Arenas Publicas.indb 344

3/5/2011 01:02:17

3 Prova / Kthia /02/05/2011

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345

Arenas Publicas.indb 345

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ASSOCIAR-SE:
Reivindicar direitos

Arenas Publicas.indb 347

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Arenas Publicas.indb 348

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NDIOS DE PAPEL: ETNICIDADE


E ASSOCIATIVISMO FRENTE
A GRANDES PROJETOS
DE DESENVOLVIMENTO
NO ESPRITO SANTO
Felipe Berocan Veiga1
a comunidade poltica que costuma despertar, por
toda parte, mesmo quando apresenta estruturas muito
artificiais, a crena na comunho tnica.
Max Weber

Depois dos relatrios


Este artigo2 visa apresentar e discutir a formao de duas associaes
indgenas no municpio de Aracruz, litoral norte do Esprito Santo, com
especial enfoque na interculturalidade observvel nas novas formas
de organizao social, poltica e econmica dos ndios Tupiniquim
e Guarani, diretamente relacionadas monocultura do eucalipto em
expanso na regio e vizinhana de um grande complexo industrial.
O estudo das complexas relaes entre populaes tradicionais e a
sociedade envolvente fornece, no caso apresentado, um rico material
emprico para a realizao de uma etnografia poltica e moral associada
s formas particulares de afirmao tnica. Tal procedimento permite
1

Doutorando e Mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF),


pesquisar do Laboratrio de Etnografia Metropolitano (LeMetro/IFCS-RJ) e do INEAC/UFF.
Agradeo os gentis comentrios e leituras crticas dos colegas e amigos Daniel Cefa (Univ.
Paris X-Nanterre), Celeste Ciccarone (UFES), Ana Mara Gorosito Kramer (UNaM), Patrcia
Brando Couto (UERJ) e Martinho Silva (LACED-MN/UFRJ).

Arenas Publicas.indb 349

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

analisar, ao longo das ltimas dcadas, as estratgias indgenas


de negociao e de contrapartida a grandes projetos econmicos
incentivados por governos dos trs nveis federal, estadual e municipal.
De 2003 a 2005, coordenei dois estudos antropolgicos em atendimento
s condicionantes da FUNAI referentes aos impactos de dois empreedimentos lineares da Petrobras sobre terras indgenas em Aracruz o
Gasoduto Lagoa Parda Vitria, construdo durante o regime militar,
e o Gasoduto Cacimbas Vitria, ento em processo de licenciamento
ambiental,3 e cujo traado inicial atravessava uma rea em disputa
com a Aracruz Celulose, empresa considerada pelos ndios como sua
arqui-inimiga, no conflito pela retomada de seu territrio tradicional.
No contexto especfico da pesquisa antropolgica aplicada, realizei
sucessivas viagens a campo para as quatro Terras Indgenas do Esprito
Santo TI Comboios (2.987 ha), TI Pau Brasil (1.579 ha), TI Caieiras
Velhas (2.997 ha) e TI Caieiras Velhas II (57 ha) todas concentradas
em Aracruz, entre a faixa litornea e a sede do municpio. Inmeras
reunies de trabalho foram realizadas com caciques, lideranas indgenas e diferentes instncias da FUNAI, tanto nas sete aldeias de
Aracruz, quanto em Governador Valadares (MG) e Braslia (DF),
nas sedes regional e nacional do rgo indigenista. Alguns encontros
importantes tambm ocorreram na capital Vitria (ES), envolvendo
tanto a participao de outras instituies federais e estaduais, como a
Petrobras, o Ministrio Pblico Federal e a Secretaria de Meio Ambiente
(SEMA), quanto diversas organizaes no governamentais, como o
3

O processo de licenciamento ambiental no Brasil composto por fases distintas, reguladas


por diversos estudos tcnicos e pelo atendimento s condicionantes indicadas pelos rgos
ambientais. Produzidos por empresa de consultoria a servio dos empreendedores, com
relativo grau de autonomia, os primeiros relatrios tcnicos so o EIA (Estudo de Impacto
Ambiental), e sua verso compacta, o RIMA (Relatrio de Impacto Ambiental), alm do EAR
(Estudo de Anlise de Risco), tendo em vista a obteno da Licena Prvia (LP). O EIA-RIMA
contempla uma extensa caracterizao socioambiental, seguida por uma anlise dos impactos
previstos e por medidas recomendadas para sua reduo. Esses estudos so produzidos com
base em um Termo de Referncia emitido pelo IBAMA (para projetos interestaduais) ou por
secretarias estaduais de Meio Ambiente (no caso analisado, pelo IEMA), responsveis pela
avaliao tcnica dos resultados. Conforme a regio e o tipo do empreendimento, outros
rgos setoriais do Governo Federal podem ser convocados para emitir Termos de Referncia
especficos, solicitar e analisar novos estudos, como os referentes ao patrimnio arqueolgico
(responsabilidade do IPHAN) e a populaes indgenas (FUNAI) e quilombolas (Fundao
Cultural Palmares). Somente aps o cumprimento das exigncias indicadas nesses relatrios,
o empreendedor pode iniciar as obras, com a emisso da Licena de Instalao (LI). Por fim,
o funcionamento autorizado pela Licena de Operao (LO). Os dois estudos em pauta
foram condicionantes da FUNAI emisso da LP e da LI do Gasoduto CacimbasVitria.

350

Arenas Publicas.indb 350

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), a Pastoral Indigenista, a


Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional (FASE/
ES) e o Movimento Alerta Contra o Deserto Verde, que agrega mais de
uma centena de entidades da sociedade civil em oposio expanso
das plantaes de eucalipto e outras formas de monocultura.
Esses encontros sucessivos produziram um frum permanente de
discusso sobre os processos de implantao de dois gasodutos da
Petrobras e reacenderam crticas contundentes sobre outros projetos
realizados em uma regio altamente impactada pela ideologia do
desenvolvimento. O foco do debate, no entanto, invariavelmente
desviava da questo dos gasodutos para crticas tenazes Aracruz
Celulose. A tal ponto as experincias anteriores de negociao eram
percebidas negativamente, que os Tupiniquim e Guarani, a cada
reunio, manifestavam reaes fortemente contrrias a palavras como
projeto, acordo, desenvolvimento e fomento (que associavam
palavra fome), retrica da empresa que era interpretada como
uma tentativa explcita de corromper os ndios e controlar, adiar
ou mesmo deslegitimar e, portanto, extinguir definitivamente suas
pretenses fundirias.
A oscilao entre negociao e conflito, consonncia e dissonncia
de valores e atitudes morais; explicitao e ocultamento das clivagens internas e tendncias polticas, foram aspectos que chamaram
a ateno durante a pesquisa de campo realizada de 2003 a 2005,
juntamente com outros colegas,4 para a produo de estudos e relatrios antropolgicos solicitados e analisados pela FUNAI como peas
fundamentais do processo de licenciamento ambiental. Isso interferia
diretamente nas prprias formas de interao com os ndios, uma vez
que a cobrana sobre uma posio favorvel s suas demandas polticas constitua um elemento fundamental, logo no primeiro contato,
4

Destaco aqui a participao dos antroplogos Celeste Ciccarone e Sandro Jos da Silva,
professores da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), que realizaram trabalhos
de campo de longa durao nessas reas indgenas em seus doutorado e mestrado,
respectivamente; dos pesquisadores do PR-NDIO/UERJ, Jos Ribamar Bessa Freire,
Mrcia Malheiros e Valria Luz; da sociloga Mnica Lepri (CPDA-UFRRJ) e da biloga
Maria Beatriz Dallari, coordenadora dos estudos ambientais do Gasoduto Cacimbas-Vitria,
entre outros tcnicos contratados pela Biodinmica, empresa de consultoria responsvel
pelos estudos. Como avaliadores crticos dos relatrios e parceiros da pesquisa de campo,
participaram diretamente do trabalho os tcnicos da FUNAI Jorge Luiz de Paula (EAR Gov.
Valadares/ MG-ES) e Ludmila Guerra (CGPIMA/ DF).

351

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

para o exerccio de uma relao de confiana, indispensvel para a


realizao do trabalho de campo.
A mobilizao dos jovens caciques e lideranas das aldeias, ao
desempenharem seus papis e reafirmarem suas posies internas,
tinha como grande objetivo a unificao das Terras Indgenas em um
territrio contnuo, com a criao da TI Tupiniquim, unificando as TIs
Pau Brasil e Caieiras Velhas 1 e 2 em uma rea de 13.579 hectares.
Tal demarcao j havia sido recomendada anteriormente em relatrios tcnicos da FUNAI, produzidos em 1994 e 1998, incluindo rea
vizinha ao complexo industrial da Aracruz Celulose. Aps um perodo
de relaes instveis, os ndios decidiram romper um acordo frgil e
compulsrio que mantinham com a empresa,5 derrubando eucaliptos
para demarcar tanto suas fronteiras fsicas quanto morais, e fundando
duas novas aldeias no disputado territrio.
A atuao das organizaes indgenas a Associao Indgena Tupinikim Guarani (AITG) e a Associao Indgena Tupinikim de Comboios
(AITC)6 sempre presentes nas reunies e discusses ao longo da
pesquisa de campo, possibilitou mapear suas principais atividades e
compreender o contexto de sua formao, imposta pelas negociaes
jurdicas e financeiras com a empresa em 1998. Todo esse material
extremamente rico ficou de fora dos relatrios tcnicos, em funo
dos prazos e das prprias solicitaes da FUNAI equipe tcnica.
Cabe agora analisar aqui particularmente esse aspecto, articulando
questes relativas etnicidade desses povos indgenas a uma etnografia de suas formas de engajamento poltico e dos novos modelos
de organizao social, em um tenso e conturbado processo de disputa
contra uma grande empresa de capital internacional.
Para se ter uma ideia de seu porte empresarial, a Aracruz Celulose
vem-se firmando como responsvel pela produo de 23% de todo
5

O acordo, fixado por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em 1998, previa 20 anos
de trgua entre as partes. Os ndios deveriam receber dez milhes de dlares da empresa sob
a forma de projetos socioeconmicos e, em contrapartida, abrir mo da disputa fundiria
nesse perodo. Firmado em situao de conflito, foi assinado em Braslia sem o consentimento
pleno das lideranas indgenas, pressionadas a adotar uma soluo imediata para um problema
de longo prazo, razes para o rompimento em 2005.
Atualmente os ndios preferem a grafia Tupinikim com k para se representar, tambm como
modo de afirmao da diferena, se distinguindo da forma corrente na lngua portuguesa.
Os antroplogos, no entanto, tm optado pela grafia Tupiniquim, tal como aparece nas
referncias histricas e na documentao oficial da FUNAI (FREIRE, 1995; SILVA, 2000;
VEIGA, 2004).

352

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

o papel branqueado do mundo, sendo a maior parte para exportao.


Somente a unidade de Barra do Riacho situada a apenas cinco
quilmetros da aldeia Pau Brasil, que convive com o pssimo cheiro
dos tanques de efluentes da fbrica o maior complexo industrial
de celulose do planeta, com capacidade para produzir 2,3 milhes de
toneladas anuais do produto. Com escritrios comerciais nos EUA,
Europa e China, o objetivo estratgico da empresa ampliar as divisas
anuais de 2 bilhes de dlares e atingir a cifra recorde de 7 milhes
de toneladas por ano em 2015.
Os maiores acionistas da Aracruz Celulose, com 28% dos ttulos cada,
eram, ento, o Banco Safra, o Grupo Votorantim e a nobre famlia
Lorentzen, do cunhado e dos sobrinhos do rei Olavo V da Noruega,
o que motivou numerosos protestos contra a empresa naquele pas e
visibilidade internacional causa indgena. Em 2008, a Votorantim
adquire a parte dos nobres noruegueses e passa a liderar o controle
acionrio da empresa. Impulsionado pela expanso fundiria e pela
poltica de fomento ao cultivo de eucaliptos junto a pequenos e mdios
agricultores, hoje um imenso eucaliptal ocupa vastas reas no sul da
Bahia, leste de Minas Gerais, Esprito Santo e norte fluminense, alm
de novas frentes de expanso no Rio Grande do Sul, aproximando-se
de 300 mil hectares de plantio.7
No mais no ambiente acadmico, mas integrando, na funo de
antroplogo coordenador, o corpo tcnico de uma empresa de
consultoria ambiental, a pesquisa de campo representou uma iniciao
para o etnlogo em mltiplas dimenses. Tratava-se de sua primeira
experincia como antroplogo profissional em uma sociedade
indgena, um grande desafio tanto terico quanto emprico, sobretudo
diante de um ambiente de tenso e conflito iminente entre os ndios e
as empresas da regio. Alm disso, a posio de mediao cultural do
antroplogo conferia tambm uma peculiaridade especial pesquisa,
coordenando uma equipe tcnica interdisciplinar e atuando entre ndios
Tupiniquim e Guarani, engenheiros da Petrobras, representantes do
poder pblico e ONGs, procurando reduzir os esteretipos recprocos
e sensibilizar a todos para a importncia de um entendimento comum,
diante de um novo empreendimento no local.

Aracruz Celulose (2008).

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Os tupiniquim: do contato ao anonimato


Antes do trabalho de campo propriamente dito, a pesquisa bibliogrfica no Museu do ndio e nos arquivos da FUNAI revelou a presena
constante dos Tupiniquim nos documentos histricos, registrada desde
os primeiros contatos com os europeus. Ao considerar a dimenso inicitica da pesquisa de campo, Roberto DaMatta classifica esse perodo
inicial como indispensvel para a investigao antropolgica, caracterizado pelo excesso de conhecimento literrio e distinto, portanto,
de uma experincia concreta especfica e vivenciada. Assim, na fase
terico-intelectual, as aldeias so diagramas, os matrimnios se resolvem em desenhos geomtricos perfeitamente simtricos e equilibrados,
a patronagem e a clientela poltica aparecem em regras ordenadas, a
prpria espoliao passa a seguir leis e os ndios so de papel.8
Ao se deparar com a farta documentao relativa aos ndios do perodo
colonial, o pesquisador atento logo identifica que as referncias aos
Tupiniquim vo progressivamente desaparecendo do papel, especialmente nos dois ltimos sculos. Essa invisibilidade gradual ocorreu,
sobretudo, a partir do processo dito civilizatrio, com os chamados
descimentos para misses jesuticas, a catequizao crist, o trabalho
forado e a apropriao dos territrios anteriormente ocupados por
aldeias, seguindo a ideologia da integrao compulsria e vigente por
mais de 400 anos, desde os tempos coloniais at o desenvolvimentismo dos regimes militares. Assim, com o intuito de transformar
ndios em caboclos, a cada pgina da histria se procurava passar
uma borracha sobre suas marcas identitrias para, com elas, apagar
tambm suas demandas por direitos.
De acordo com evidncias arqueolgicas, documentos histricos e
descries dos viajantes, a presena Tupiniquim no litoral norte do
Esprito Santo antecede a colonizao europeia. Estima-se, poca da
chegada dos portugueses, que uma populao de 55 mil ndios dessa
etnia vivesse espalhada pelo litoral, desde os atuais Estados de So
Paulo, Rio de Janeiro e Esprito Santo at a baa de Camamu, na Bahia,
conforme apresenta Curt Nimuendaju no mapa etno-histrico do Brasil.9
Na literatura quinhentista, as mulheres aparecem com suas vergonhas
expostas na certido de nascimento do Brasil escrita por Pero Vaz de
8
9

Matta (1978, p. 24).


Nimuendaju (2002).

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Caminha, protagonizando o encontro inaugural entre navegadores e


nativos nas areias de Porto Seguro.10 Os Tupiniquim tiveram sua lngua
registrada em um precioso e revelador dilogo transcrito por Jean de
Lry11 e, ao lado dos conquistadores lusitanos, lutaram contra a captura
de Hans Staden por ndios Tupinamb em So Vicente.12 Esse grupo
tnico, inimigo histrico dos Tupiniquim e aliado dos franceses, foi
totalmente massacrado ainda no sculo XVI por sua cultura fortemente
centrada na guerra, que culminava, para espanto e horror do colonizador
europeu, na euforia dos rituais antropofgicos.
Aps diversos massacres ocorridos no governo de Mem de S (15581572), os Tupiniquim foram um dos primeiros grupos submetidos s
polticas de aldeamento e catequizao jesutica, intervindo diretamente sobre suas formas originais de organizao social, sistema de
crenas, viso de mundo e prticas rituais. Em 1556, na foz do rio
Piraqu-Au, o padre Afonso Brs fundou um dos primeiros aldeamentos jesuticos na capitania do Esprito Santo, ento denominado
Aldeia Nova hoje, o distrito de Santa Cruz, em Aracruz, vizinho
TI Caieiras Velhas. Em 1580, os jesutas fundaram o aldeamento
de Reis Magos, hoje Nova Almeida, transferindo grande parte da
populao para 15 quilmetros ao sul.13
O primeiro reconhecimento do direito indgena a um territrio na regio
foi a doao, em 1610, de uma sesmaria de terras aos Tupiniquim, por
meio de escritura pblica lavrada no Livro de Tombo de Nova Almeida
e assinada pelo governador da capitania do Esprito Santo, Francisco
de Aguiar Coutinho. Nos dois sculos seguintes e com a expulso dos
jesutas do Brasil, os limites da sesmaria foram sendo gradativamente
alterados, sob a alegao da Cmara Municipal de Santa Cruz de que
suas reas de mata nativa se tratavam, na realidade, de terras devolutas, abrindo espao para a colonizao italiana incentivada pelo
governo da Provncia. Essa sesmaria original um marco histrico
constantemente mencionado em estudos e relatrios, no esforo de
legitimar os processos fundirios em favor do grupo remanescente.14
10
11

12
13
14

Caminha (2006).
Trata-se do Colquio de Entrada ou Chegada ao Brasil, entre a Gente do Pas Chamada
Tupinamb e Tupiniquim, em Linguagem Braslica e Francesa, em Lry (1997, p. 275-292).
Staden (1999).
Freire (2000).
Freire (2000); Guimares (1982); Silva (2000).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Tambm referidos nos laudos antropolgicos da FUNAI aparecem


diversos cronistas viajantes do sculo XIX que registraram suas visitas
e o modo de vida dos Tupiniquim do litoral norte do Esprito Santo,
como o prncipe Maximiliano de Wied-Neuvied (1815), o botnico
Auguste de Saint-Hilaire (1818) e o pintor Auguste Biard (1862).
Em 1860, o prprio Imperador D. Pedro II esteve em Nova Almeida,
Santa Cruz e na foz do rio Sahi, travando contato com uma velha
Tupiniquim e com outros ndios durante a viagem. Nessa ocasio, o
Imperador ratificou o termo de doao de terras aos ndios da regio,
mais um captulo importante para as reivindicaes fundirias atuais.15
A miscigenao incentivada pelo Estado e a integrao dos Tupiniquim
com a sociedade local fizeram com que, praticamente, desaparecessem
as fontes documentais sobre o grupo no final do sculo XIX e no
incio do XX, gerando discusses a respeito da etnicidade e da
prpria existncia ou no de um grupo remanescente. Assim como
ocorreu com os povos indgenas do Nordeste, considerados ndios
misturados,16 por muitas vezes sua identidade tnica foi questionada
ou no reconhecida em documentos oficiais, diante de suas pretenses
polticas e reivindicaes fundirias. Apontados como ndios
civilizados, caboclos ou roceiros, diante da suposta perda de sua
pureza ou carter original, um laudo elaborado por L. Helena de
Mello para a FUNAI em 1982 procurou demonstrar o que chamou de
a extino dos Tupiniquim enquanto etnia diferenciada, ressaltando
a gramtica da perda dos valores originrios.17
Assim, a situao histrica de interculturalidade dos ndios vista
como algo absolutamente impuro, sinnimo de degenerao e de
degradao moral, pois, como diria Mary Douglas, a pureza
inimiga da mudana, da ambiguidade.18 A perda da lngua nativa,
motivada pela colonizao nos aldeamentos jesuticos e por sucessiva
proibio do uso de lnguas nativas, serviu como forte argumento
para reforar a tese da descaracterizao da cultura Tupiniquim,19
base dos laudos contrrios s demandas fundirias. A propsito do
termo, de se observar a prpria densidade semntica da palavra
tupiniquim na lngua portuguesa, usada como designao pejorativa
15
16
17
18
19

Rocha (1980).
Oliveira (1994, 1998).
Mello (1982).
Douglas (1976, p. 196).
Silva (2000).

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ou irnica do produto nacional no autntico, de mau-gosto e qualidade duvidosa; ou seja, daquilo que colonizado, descaracterizado
ou pouco civilizado, numa autocrtica selvagem s nossas prprias
mazelas nacionais: o governo tupiniquim, a justia tupiniquim,
a educao tupiniquim, a mdia tupiniquim etc.
No princpio do sculo XX, as primeiras atividades do Servio de
Proteo ao ndio SPI no Esprito Santo e em Minas Gerais estiveram
totalmente voltadas para a pacificao dos temidos ndios Botocudo ou
Krenak do vale do rio Doce, que constituam forte ameaa e resistncia
na implantao das ferrovias Bahia-Minas e Vitria-Minas. Embora
tivesse conhecimento do grupo, o SPI reconhecia sua dificuldade em
promover a assistncia e a proteo dos chamados ndios pacficos
da regio20 entre eles os Tupiniquim e alguns Krenak do Esprito
Santo, os Maxakali de Minas Gerais e os Patax do sul da Bahia.
Na dcada de 1940, o impacto de um grande empreendimento chega
regio, quando o Estado do Esprito Santo concedeu o uso de 10 mil
hectares de terras indgenas Companhia de Ferro e Ao de Vitria
(COFAVI) para a produo de carvo vegetal. Com a devastao de
vrias matas nativas e a implantao de diversas carvoarias, as capoeiras resultantes passaram a ser aproveitadas para a agricultura de
subsistncia. A ocasio serviu tambm para a entrada de posseiros
na regio desmatada.21
O sentimento de ameaa, no entanto, s se tornou mais evidente com a
chegada do empreendimento seguinte sobre as grandes reas abertas e
reduzindo ainda mais a mata nativa. Em pleno regime militar, a partir
de generosos incentivos fiscais e financiamentos dos governos federal
e estadual, surge a empresa Aracruz Florestal, servindo-se de formas
autoritrias de intimidao e de apropriao do territrio. Transforma
a regio em uma imensa plantao de eucalipto, clula embrionria
para a instalao do complexo industrial da Aracruz Celulose, hoje
uma das maiores empresas privadas do Brasil.
Os meados dos anos 1960 marcaram o incio de um perodo crtico
e definitivo para os Tupiniquim. Em dezembro de 1966, a Aracruz
Celulose comprou os 10 mil hectares da COFAVI e se instalou definitivamente na regio, dando incio a um empreendimento industrial
com o plantio de imensos campos de eucaliptos que redesenhou defi20
21

Freire (2000).
Guimares (1982).

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nitivamente a paisagem local. A presso sobre os grupos indgenas e


os posseiros foi progressivamente se intensificando, sobretudo aps a
venda simblica pelo governo capixaba, a preos irrisrios, de mais 30
mil hectares de terra originalmente indgena para a Aracruz Celulose.22
Esse perodo coincidiu com a chegada dos ndios Guarani-Mbya
regio, com seu movimento migratrio em direo ao litoral, por
caminhos anteriormente conhecidos. Considerado por autores clssicos
como uma busca da Terra sem Mal,23 ou seja, o paraso na Terra,
o oguat ou a caminhada Guarani no s de inspirao msticoreligiosa, mas tambm fortemente poltica.24 Assim, logo que chegaram,
os Guarani foram acolhidos e se incorporaram ativamente chamada
luta pela terra empenhada pelos Tupiniquim. Entretanto, depois de
seguirem as vises premonitrias de sua lder xamnica Tatati Yva Rete
e chegarem ao litoral capixaba, os Guarani-Mbya foram reduzidos e
confinados por um longo perodo em uma fazenda em Minas Gerais,
como tentativa do rgo tutelar indgena de conter a mobilidade do
grupo. Entretanto, por sua tenaz determinao, os Guarani acabaram
retornando para a vizinhana dos Tupiniquim, na qual fundaram a aldeia
Boa Esperana (Tekoa Pora), ocupando e preservando uma rea de
mata ainda no destruda pelo avano da monocultura de eucalipto.25
A luta por reconhecimento e a luta pela terra
medida que os ndios de papel desapareciam dos registros documentais, considerados extintos ou assimilados pela cultura nacional,
seu ambiente passava por transformaes profundas ao longo do
sculo XX, abrindo espao para reflorestamentos voltados para a
produo celulsica em larga escala, com o respaldo dos polticos
locais. Da esfera jurdica econmica, o mesmo papel que, dcadas
antes, certificava em documentos o fim da cultura Tupiniquim, agora
era produzido em larga escala, forando a reduo de seu territrio.
Assim, a produo altamente poluente de papel branqueado e seu
complexo de extensas plantaes e indstrias foram progressivamente
envolvendo e ocupando as reas indgenas. Ameaas, grilagens de
terras e conflitos relatados pelos ndios instalaram a questo fundiria
22
23
24
25

Guimares (1982).
Clastres (1978).
Ciccarone (2004, p. 82).
Ciccarone (2001)

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que, por 30 anos interferiu diretamente na relao dos Tupiniquim e


dos Guarani com a sociedade local.
A partir da dcada de 1970, os Tupiniquim contemporneos passaram
a demandar reconhecimento como grupo tnico remanescente dos
antigos ndios do litoral capixaba. Comearam a ganhar visibilidade
como grupo indgena a partir de reportagens com forte tom de denncia vinculadas na imprensa alternativa, fruto da atuao engajada
do jornalista e ativista Rogrio Medeiros.26 O reconhecimento tardio,
por parte da FUNAI, da existncia dos Tupiniquim no Esprito Santo
e de sua situao social, no ano de 1975, marcou o incio das tentativas do rgo tutelar de dirimir os problemas enfrentados pelo grupo,
que se agravaram nos anos posteriores com a implantao de novas
empresas e indstrias na regio.27
Para reconstruir sua etnicidade esquecida ou negada, os Tupiniquim
vo estabelecer coerncias, continuidades e historicidades especficas
no processo conhecido como etnognese. assim que grupos, novos
ou no, reivindicam, no campo da ao social e poltica, a herana e
o pertencimento a uma etnia historicamente conhecida, destacando
sinais diacrticos prprios s sociedades indgenas e sendo a questo
territorial o foco central de suas demandas polticas.28
Os atuais Tupiniquim investiram no fortalecimento de sua autoestima,
na afirmao identitria e na formao poltica em defesa de suas
causas. Desde suas primeiras lutas pela terra, a Pastoral Indigenista
e o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) braos combativos da
Igreja Catlica vm exercendo um papel relevante, tanto no nvel do
discurso e da formao de lideranas quanto no mbito das prticas e
aes. Contudo, nem todos descendentes dos antigos ndios optaram
pela diferena. Na restinga de Comboios, enquanto uns aderiram
luta por reconhecimento nos termos de Axel Honneth29 como
grupo Tupiniquim, outros parentes preferiram continuar vivendo no
povoado de Regncia, praticando a pesca artesanal na foz do rio Doce,

26
27
28
29

Medeiros (1972, 1983).


Monteiro (2001).
Oliveira (1994, 1998).
Honneth (2003).

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em outras cidades vizinhas ou mesmo na capital, sem reivindicar


nenhum pertencimento tnico especfico.30
Como estratgia de sobrevivncia em seu territrio, a aliana dos Tupiniquim, que historicamente perderam a lngua e a religio original,
com os ndios Guarani Mby, que no detinham a ocupao imemorial
da terra mas preservaram fortemente a lngua e a religio, tornou-se
um arranjo fundamental na conformao de um territrio tnico e na
luta e preservao de seus direitos comuns. Enquanto os prximos
moradores de Regncia e de outros distritos vizinhos tornaram-se distantes, por suas opes de ideologia e de vida, os Guarani
transformaram-se nos irmos de luta dos Tupiniquim, com base na
concepo de uma origem comum presumida entre os dois povos.31
Assim, os descendentes dos antigos Tupiniquim construram sua
etnicidade em torno dessa estratgica aliana, na qual um grupo passou
a certificar a indianidade do outro, e em relao direta s ameaas
representadas por um grande projeto econmico, que logo assumiu as
conformaes de um inimigo comum: a Aracruz Celulose. Dessa
maneira, o papel dos ndios, em suas relaes internas e externas, foi
se tornando, cada vez mais, um papel poltico, em torno de um projeto
comum e em oposio ao poder econmico constitudo, respaldado
pelo governo local.
Curiosamente, as aes de reconhecimento dos ndios junto FUNAI
ocorreram paralelamente implantao da indstria de celulose com
capital estrangeiro e financiamento do BNDES, envolvendo diferentes
setores do Governo Federal em processos que logo se tornariam
antagnicos. A relao da etnicidade com o Estado indicava, assim,
as contradies do prprio Estado, de um lado demarcando reas
indgenas e, de outro, financiando projetos econmicos vizinhos e
sobrepostos a essas mesmas reas. Por sua visibilidade poltica, a lgica
do desenvolvimento parecia, no entanto, prevalecer, uma vez que as
trs fbricas da Aracruz Celulose foram inauguradas, cada uma delas,
por um presidente da Repblica diferente.
30

31

A partir da pesquisa Novos territrios tnicos: ndios na cidade de Vitria (2006-8),


Celeste Ciccarone analisa como esses se afirmam e so reconhecidos como ndios genricos
no contexto urbano e como sua etnicidade se expressa por outros caminhos que no o da
reivindicao identitria vinculada aos direitos territoriais. Nesse caso, observa que se pode
expressar a identidade indgena nas prticas, saberes, experincias, memrias da origem,
histrias de vida, relaes de parentesco e redes sociais, sem se reivindicar explicitamente
o pertencimento tnico.
Weber (2004).

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Em 1979, um ano aps a inaugurao da primeira fbrica da Aracruz


Celulose, prxima Barra do Riacho, a FUNAI instituiu um Grupo
de Trabalho (GT) que estabeleceu a criao de trs Terras Indgenas:
Caieiras Velhas (2.700 hectares), Pau Brasil (1.500 hectares) e Comboios (2.300 hectares), ento consideradas o mnimo para garantir a
sobrevivncia do grupo.32 Reaes contrrias por parte da empresa,
afirmando-se legtima proprietria das terras, retardaram o processo
de demarcao dessas reas, motivando a primeira manifestao dos
ndios como novos sujeitos polticos.
Diante da morosidade do processo, os Tupiniquim iniciaram, em junho
de 1980, o que chamam de primeira autodemarcao de suas terras,
derrubando rvores de eucalipto e abrindo uma grande clareira a golpes de machado e serra eltrica. Esse gesto desenhou uma forma ritual
de ao poltica, com grande dimenso simblica e reflexos na mdia
nacional, que se vai consolidar como modo extremo de pressionar
a empresa e o Governo Federal em suas reivindicaes polticas.33
Em 1981, aps acordo entre a Aracruz Celulose e a FUNAI, a rea
das trs Terras Indgenas juntas, de 6.500 hectares, foi reduzida para
4.492 hectares e, finalmente, homologada em 1983.
Somente dez anos depois, os Tupiniquim passaram a reivindicar com
veemncia a unificao das trs Terras Indgenas junto FUNAI, alegando uma drstica reduo de seu territrio original desde o incio
do cultivo do eucalipto na regio, agravado pela diminuio da rea
demarcada. Um novo GT, composto em 1994 para analisar a nova
demanda, props a unificao de Caieiras Velhas e Pau Brasil para a
criao da Terra Indgena Tupiniquim em uma rea de 14.270 hectares,
o que, segundo o relatrio tcnico, retomaria o territrio de mais de 30
aldeias destrudas por grileiros de terras nas dcadas de 1960 e 1970.
Aps o manifesto da Aracruz Celulose seguindo o princpio do contraditrio, o Ministrio da Justia criou novo GT em 1998, que concluiu,
mais uma vez, pela necessidade de ampliao do territrio Tupiniquim,
recomendando, ento, uma rea de 13.579 hectares.34 Apesar do parecer
tcnico da FUNAI, o ento ministro da Justia ris Resende, cedendo
ao enrgico lobby e apoiando os argumentos da empresa, editou trs
portarias reconhecendo uma rea equivalente a 7.061 hectares, o que
gerou um forte sentimento de indignao nas aldeias indgenas e
32
33
34

Monteiro (2001).
Guimares (1982); Mugrabi (2001).
Freire (1995).

361

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resultou na segunda autodemarcao, com base na proposta original


reivindicada pelos ndios. O processo, apoiado por movimentos sociais
e polticos de esquerda, passou por momentos exaltados de conflito e
tenso, minuciosamente narrados por seus protagonistas indgenas no
livro Os Tupinikim e Guarani na Luta pela Terra. 35
A mobilizao poltica das lideranas Tupiniquim levou a Aracruz
Celulose a assinar, em 30 de junho de 1998, um Termo de Ajustamento de Conduta, no qual os ndios se comprometiam a aceitar por
20 anos os limites territoriais definidos pelas portarias demarcatrias,
perodo em que a empresa repassaria o equivalente a 10 milhes de
dlares em investimentos socioeconmicos, sobretudo voltados para
a agricultura. O acordo, mediado pela FUNAI e pelo Ministrio Pblico Federal (MPF), suspendeu temporariamente, mas no encerrou
o conflito entre ambas as partes.
Vale ressaltar que essa foi a primeira vez que o MPF subscreveu um
acordo dessa natureza, dirigido questo indgena no Brasil, o que
refora a importncia da questo no mbito poltico e jurdico nacional.36 No entanto, cabe acrescentar que sucessivamente a 6 Cmara do
MPF, responsvel pela defesa dos povos indgenas no mbito judicirio, retirou o apoio assinatura do referido acordo, por consider-lo
inconstitucional. Embora a disputa tenha sido suspensa por quase dez
anos, ela voltou tona em 2005 com o rompimento do acordo por parte
dos ndios e os episdios que culminaram na terceira autodemarcao,
forando a FUNAI, o Ministrio da Justia e a Presidncia da Repblica
a buscar uma nova e definitiva resoluo para o conflito.
A relao dos ndios Tupiniquim e Guarani do Esprito Santo com a
FUNAI e, por extenso, com o Governo Federal , por vezes, marcada
por ambiguidades, sobretudo durante as situaes de conflito, com
o deslocamento macio de efetivos da Polcia Federal para as reas
indgenas. Em 1998, os ndios acusaram o Ministro da Justia de ceder
aos interesses econmicos dos grandes empreendedores na regio.
Os ndios, por sua vez, foram considerados pelo Governo, durante as
aes de derrubada de eucaliptos da Aracruz Celulose, como massa
de manobra de grupos de esquerda, tais como o Conselho Indgena

35
36

Monteiro (2001); Mugrabi (2001).


Isa (2000).

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Missionrio (CIMI), o Movimento dos Sem-Terra (MST), o Partido dos


Trabalhadores (PT) e o Movimento Alerta Contra o Deserto Verde.37
no mbito das negociaes da Aracruz Celulose com os ndios que
surgem novas agncias polticas, como parte das exigncias do prprio
acordo jurdico firmado com os ndios Tupiniquim e Guarani. Eis,
ento, que o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) passa a exigir,
como obrigao jurdica, a constituio de associaes indgenas, com
estatutos, composies de diretoria, assembleias regulares e registros no
Cadastro Nacional de Pessoa Jurdica (CNPJ) para o repasse semestral
dos recursos, estabelecendo, nas duas maiores aldeias Tupiniquim
Caieiras Velhas e Comboios novas formas de organizao social e
poltica bastante diferentes da representao tradicional dos caciques.
As associaes indgenas e a rotina dos papis
Ao considerar as chamadas terras tradicionalmente ocupadas, Alfredo Wagner Berno de Almeida aponta para o surgimento de novas
demandas fundirias de grupos minoritrios, a partir de mudanas
vigentes na legislao brasileira.38 exatamente no contexto das
transformaes produzidas pela Constituio de 1988, chamada de a
constituio cidad, que os Tupiniquim e Guarani do Esprito Santo
vo procurar respaldo jurdico para suas aes polticas, tendo como
meta fundamental a ampliao do territrio.
O acordo com a Aracruz Celulose alterou de modo significativo a
dinmica econmica e social dos grupos indgenas beneficirios, com
a criao compulsria da Associao Indgena Tupinikim e Guarani
(AITG) e da Associao Indgena Tupinikim de Comboios (AITC).
Havia um problema a gerir: cerca de 1.700 hectares de eucaliptais da
empresa foram incorporados como rea indgena na demarcao de
1998. Caberia s associaes, de acordo com o TAC, administrar o
manejo das plantaes de eucalipto nas novas reas demarcadas, no primeiro corte e nas trs rebrotas seguintes, seguindo seu ciclo vegetal de
cultivo, assim como o transporte direto empresa em carretas pesadas.
A aliana estabelecida entre as associaes Tupiniquim e Guarani e
as organizaes catlicas na luta pela terra resultou na assessoria,
em suas fases iniciais de estruturao e consolidao, prestada pelos
ativistas do CIMI. Ao longo da ltima dcada, os ndios foram adqui37
38

Mugrabi (2001).
Almeida (2006).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

rindo competncia no exerccio cotidiano frente das associaes,


possibilitando, assim, novas formas de deliberao no mundo dos
papis e das demandas por escrito.
A AITG surgiu como instncia jurdica obrigatria para administrar
os recursos da Aracruz Celulose, sob a forma de projetos socioeconmicos, voltados principalmente para a produo agrcola. Essa, no
entanto, era basicamente desvinculada da alimentao bsica, com os
plantios de eucalipto e de caf para revenda, pois o prprio TAC previa
atividades de fomento nos plantios de eucalipto na rea demarcada.
O secretrio da AITG, Ervaldo Almeida, relatou sobre as recomendaes da poca, que
tinha que ter uma associao registrada para se
receber os recursos do acordo. Na poca, no
foi nem discutido um estatuto, porque se tinha
muita pressa em resolver. O administrador
regional da FUNAI nos trouxe um estatuto da
associao Xakriab e este acabou sendo adotado, fizemos s algumas mudanas.

Assim, se traduz uma forma particularmente comum de associaes,


cuja normatividade e instrumentalizao dirigem-se ao atendimento de
demandas externas ao grupo, tendo como objetivo no propriamente
estimular a vida associativa, mas sim coroar negociaes, legitimar
repasses de recursos e, por conseguinte, fortalecer assimetrias e relaes de dependncia em relao aos mesmos.
Caieiras Velhas, a maior das sete aldeias, logo se transformou em
centro poltico e econmico de decises. Uma observao do dia
a dia da maior associao indgena local e de seu funcionamento
interno permitiu notar o surgimento de um grupo mais diretamente
beneficiado pelo acesso aos recursos da Aracruz Celulose, formando
uma espcie de elite local. Cada carreta com 70 metros cbicos de
eucalipto rendia R$2.100,00 aos cofres da associao. A rentabilidade
do novo negcio tambm passou a instituir novos status e padres
econmicos at ento incomuns na realidade local.
Com repasses semestrais obtidos pelo acordo, a AITG chegou a
movimentar cerca de 80 funcionrios, a maior parte diretamente envolvida no cultivo financiado de eucaliptos, atividade lucrativa que,
paradoxalmente, invertia suas posies ideolgicas e colocava sua
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prpria etnicidade em questo, agora a servio da indstria de papel.


Seus diretores chegavam a afirmar mesmo que a gente, que trabalha
aqui dentro, pensa diferente da comunidade. Ns temos uma viso,
os caciques tm outra.
A folha de pagamento da AITG nessa poca chegava a quase 50 mil
reais. Depois do acordo em 1998, uma vez instaladas as associaes
e feitas as ampliaes ainda que no nos limites desejveis sobre
plantaes da empresa Aracruz Celulose, os Tupiniquim se transformaram eles mesmos em eucaliptocultores, produzindo matria-prima
para a indstria celulsica. Eram quase 40 funcionrios diretamente
envolvidos no manejo, corte e transporte de eucalipto, entre roadores,
adubadores, responsveis pelo controle de pragas com a aplicao de
fortes herbicidas e formicidas, motosserristas, encarregados de servios gerais, tcnicos agrcolas, vigilantes e motoristas, com salrios
variando em torno de R$500. Esses ofcios, com a predominncia
de jovens rapazes, muitos deles diplomados em cursos tcnicos financiados pela empresa, logo se transformaram na mais lucrativa e
importante forma de trabalho e renda nas aldeias Tupiniquim.
O quadro geral da situao chamou muito a ateno da equipe de
antroplogos realizando consultoria para analisar os impactos de um
empreendimento futuro na regio. Diante das questes demandadas
pela FUNAI para o relatrio e da realidade emprica contrastante com
qualquer concepo indgena de produo, no havia como no se
deparar com os erros do processo de negociao anterior com uma
grande empresa:
O resultado desse novo acordo foi o desmantelamento progressivo da organizao
comunitria dos ndios Tupiniquim e Guarani,
sujeitos a um modelo econmico estranho que,
a partir de uma associao, proposta pela FUNAI e pela Aracruz Celulose, que converte o
trabalho comunitrio especfico de cada grupo
e famlia em mo-de-obra assalariada. O que
se presencia hoje nas aldeias uma situao
ambgua: os ndios se tornaram funcionrios
indiretos da Aracruz Celulose, gerindo, mantendo e se endividando por conta do modelo
capitalista clssico de assalariamento. A AITG
configura-se numa espcie de prefeitura da

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Aracruz, fazendo a gesto dos recursos dos projetos que a empresa aprova e deixando de lado
projetos de interesse das diferentes demandas
locais. Um cartaz afixado na porta de entrada
da AITG explicita bem a situao: informa que
no h cestas bsicas e pede que, por favor,
no insistam.39

Os ndios internalizaram a lgica dos documentos e contabilidades


na AITG, mergulhados em pilhas de papel e na rotinizao dos recibos, carimbos, livros de atas, envelopes e papis timbrados, siglas,
contratos, notas fiscais, prestaes de contas, personalidade jurdica
e toda sorte de procedimentos escritos e assinados. Por indicao oficial das prprias instncias mediadoras do acordo com a empresa,
como chamavam a Aracruz Celulose, passaram a incorporar no s os
procedimentos, mas tambm a lgica cartorria-escriturria vigente
desde o Brasil colnia. As narrativas de vindicao de direitos,40
utilizadas pelos ndios como recurso fundamental, se enfraqueciam
com o peso das escrituras legtimas e dignas de f pblica que
agora eles prprios tambm produziam.
A lgica de mercado fazia do funcionamento rotineiro da AITG algo
semelhante ao cotidiano das reparties, instituindo tal como ocorre
com muitas associaes, que passam a se assemelhar a empresas e
servios pblicos a gramtica das deliberaes burocrticas: a hierarquizao detalhada dos organogramas, o uso de uniformes com funes
definidas na lapela e nas costas, a proliferao dos arquivos, o quadro de
avisos na parede, a presena estratgica dos computadores como sinal
de eficincia tecnolgica, o agendamento constante de reunies e de
viagens a trabalho de seus dirigentes. Todo um esforo de alinhamento
institucional passava a existir diante das novas condies de organizao
indgena. Tudo isso coroado por um cocar de penas como logomarca da
AITG, semelhante ao smbolo utilizado pela prpria FUNAI.
No por acaso, as associaes indgenas se instalaram em casas
situadas ao lado dos postos indgenas da FUNAI, formando uma espcie de prolongamento orgnico do escritrio encarregado de atuar
como ramo capilar do servio indigenista nas aldeias. Postos que, na
opinio de sua prpria chefa em Caieiras Velhas, correspondiam
39
40

Veiga et al. (2004, p. 64).


Mello; Vogel (2004, p. 277-286).

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a uma instituio central no atendimento aos ndios, capaz de emitir


documentos como a carteira de identidade indgena, redigir e enviar
ofcios, mediar conflitos internos e externos. Aqui atuo como delegada, psicloga, juza e assistente social, revelou aos antroplogos
em tom de desabafo. Postos esses que, sob o comando da esquerda
catlica no primeiro mandato do governo Lula, correspondiam
socializao primeira dos Tupiniquim e dos Guarani com a rotina
burocrtica. Como uma espcie de trao distintivo dos ndios, contudo,
e em oposio s estruturas de alvenaria, foi construdo um maloco
com cobertura de palha para as grandes assembleias em cada uma
das sete aldeias, com muitos bancos e cadeiras para o pblico das
disputadas reunies com a empresa.
Por conta do acordo firmado e ancorado no ciclo produtivo, ou seja,
no tempo do eucalipto, a AITG recebia repasses de recursos a cada
semestre, intensificando as discusses nos meses de junho e dezembro,
quando os ndios avaliavam os resultados de sua produo e, consequentemente, de suas relaes com a empresa, o que muitas vezes
resultava no acirramento de posies. Nos perodos de corte, a AITG
assinava um contrato de venda com a Aracruz Celulose, estabelecendo os preos por metro cbico de eucalipto baixos, se comparados
aos gastos com cultivo, corte e transporte custeados pela associao.
Assim, a assimetria nos negcios foi-se transformando em oposio
radical, logo convertida em manifestaes pblicas dos ndios, que
encarnaram novamente seus papis como espritos guerreiros.
Dessa forma, mesmo incorporando a seu modo os modelos de
produo e de associativismo dos brancos, os ndios de Aracruz
oscilavam entre a adaptao econmica sociedade envolvente e
a manifestao de uma alteridade radical, construda em oposio
grande empresa e reforada a cada rodada de negociao. Assim,
em vez de cooptar pacificamente as lideranas indgenas no ofcio de
eucaliptocultores, como pretendiam, civilizando-os pela burocracia
e pela aceitao pacfica das circunstncias, o acordo provocou,
alguns anos depois, uma reao ainda mais contundente dos ndios
dependncia econmica e incentivou a reorganizao das associaes
como novas foras de luta e presso poltica.
Ao longo desse processo, desigualdades foram se acentuando na
relao entre os grupos Tupiniquim e Guarani. Em funo do predomnio populacional Tupiniquim, de sua maior articulao poltica e de
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sua primazia na ocupao do territrio, passou a haver uma notvel


supremacia do grupo nos benefcios adquiridos. Menos adaptados
institucionalizao da AITG, os branchements41 ou interconexes
estabelecidos entre as duas etnias se fragilizaram, resultando em crticas recprocas entre os dois grupos tnicos e deslocando, na poltica
interna, lderes Tupiniquim e Guarani para polos opostos no campo das
estratgias e interesses. Por suas prprias caractersticas ideolgicas
e resistncia s formas de organizao institudas pelos brancos, os
Guarani nunca estiveram em posies expressivas nos quadros da Associao, que inclua, contudo, o nome de seu povo como marketing.
O cerne das crticas dos Guarani e Tupiniquim de outras aldeias era
que a AITG passou a se constituir como uma empresa indgena de
eucaliptocultura, cooptada pela Aracruz Celulose. A partir disso,
surgiram radicais oposies internas entre os ndios, abrindo caminho
para a emergncia de novas lideranas. Isso fez com que praticamente
todos os caciques que negociaram com a Aracruz Celulose em 1988
fossem substitudos por jovens lderes decididamente contrrios s
relaes amistosas com a empresa, criticadas pelos ndios como um
modo de perpetuao da desigualdade e, mais do que isso, como
uma forma de corrupo de seus valores morais. Assim, a diferena
tnica novamente se fortalecia e se transformava, cada vez mais,
em uma diferena poltica. Os Guarani passaram a ser mais ouvidos
em suas consideraes crticas a respeito do acordo com a Aracruz
Celulose: o problema que a AITG foi criada pela empresa e hoje
uma empresa dentro da empresa, observava poca Marcelo Wer
Djekup, liderana Guarani de Trs Palmeiras.
Com a clivagem entre associaes e conselho de caciques nos quadros polticos internos, marcando a descontinuidade das formas de
organizao social existentes, a reconciliao entre as lideranas
indgenas vai ocorrer com a iminncia do fim dos repasses financeiros da Aracruz Celulose, em 2005, e a ascenso de dois irmos
Tupiniquim esfera poltica: Vilson Jaguaret se torna cacique de
Caieiras Velhas, e Vilmar, o novo presidente da AITG. Esses novos
atores reconduzem o jogo dialtico das negociaes para o conflito,42
41
42

Amselle (2001).
Cf. observam Andrade; Dias; Quintella (2001) ao enfatizar a transitoriedade dos acordos
cooperativos e a iminncia dos conflitos ao longo das relaes entre a Aracruz Celulose e
os ndios.

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levando ao rompimento do acordo com a empresa e aos episdios da


terceira autodemarcao, em maio daquele ano.
Dessa forma, as tentativas de controlar as formas de organizao
indgena no impediram uma guinada poltica das associaes
indgenas, que passaram a se constituir como elementos-chave de
articulao e fora contrria aos objetivos externos fossem eles dos
agentes governistas ou dos empresrios industriais que no somente
sugeriram, como exigiram sua formao. Foi o que aconteceu com a
AITG: sabendo que o perodo de corte do eucalipto iniciado em 1998
duraria at 2005, de espcie de subsidiria local da empresa logo se
transformou em quartel-general de articulao do rompimento do
acordo com a Aracruz, a partir dos questionamentos dessa relao
desigual e da assessoria das organizaes de esquerda.
No rastro do tatarap
Em 2003, o acordo dos ndios com a Aracruz Celulose estava prestes a
romper. Nas aldeias havia uma forte percepo de desigualdade e explorao pelo regime de fomento do eucalipto e pelas recentes mudanas
na forma de pagamento do produto final, antes medido por toneladas
e agora por caminhes de toras. Com base no conhecimento financeiro
adquirido pelas associaes indgenas sobre juros e correes, acusavam
ainda a empresa de no realizar o devido repasse dos recursos previstos,
pois esses haviam sido fixados em dlares no TAC e estavam sendo
pagos sem os reajustes do cmbio aps a grande desvalorizao do
real em 2002, resultando, portanto, em um descumprimento do acordo.
nesse ambiente de efervescncia que se iniciam os estudos ambientais
para a chegada de um novo empreendimento na regio: o Gasoduto
CacimbasVitria da Petrobras. Aps audincia pblica realizada na
Cmara Municipal de Aracruz, em 18 de novembro de 2003, na qual
lideranas indgenas e funcionrios da FUNAI compareceram em peso
reivindicando participao no processo de licenciamento, ficou evidente
a necessidade de se realizar um estudo antropolgico considerando
especificamente a proximidade do traado do projeto com as quatro
Terras Indgenas do Esprito Santo j demarcadas e, sobretudo, a
passagem do novo empreendimento linear por um territrio reivindicado
pelos ndios e recomendado pelos GTs da FUNAI.
Os altos funcionrios da Petrobras sabiam que estavam pisando em
um terreno minado e logo trataram de conduzir as negociaes com os
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ndios de modo a no se deixarem confundir com a Aracruz Celulose,


procurando garantir ao mximo a participao e a voz s lideranas indgenas, tanto nas reunies quanto nos relatrios tcnicos produzidos,
buscando dar transparncia s negociaes. Seu carter constitutivo
como empresa pblica de capital misto, ligada ao setor estratgico e
orientada por ideais nacionalistas, fazia com que a questo indgena
fosse particularmente objeto das mais altas preocupaes.
Durante o trabalho de campo, pudemos perceber o quanto os Tupiniquim e os Guarani haviam internalizado a prtica das reunies como
dispositivo fundamental para discusso, articulao e resoluo de
questes ligadas ao uso do territrio compartilhado pelas duas etnias.
Ao analisarem o traado proposto para o novo gasoduto em estudo,
cruzando 7,5 quilmetros da rea em disputa com a Aracruz Celulose, os caciques imediatamente reagiram diante da presena de mais
um projeto na regio. A percepo indgena reforava a ideia de que
no havia como se medir os impactos de um s empreendimento em
um estudo ambiental, como define a prpria legislao. Pois ali, em
uma regio litornea bastante marcada pela presena humana e pela
transformao da paisagem natural, havia um acmulo de muitos
impactos que deveriam ser tambm considerados.
Entre os projetos de desenvolvimento que interferiram em seu modo
de vida, enumeravam, em primeiro lugar, o parque industrial, o forte
cheiro acre de gs sulfdrico liberado de seus tanques de efluentes
e as imensas plantaes da Aracruz Celulose na regio, avanando
sobre as reas desmatadas por antigas carvoarias; o manilhamento e
o desvio de rios e riachos usados para a monocultura de eucalipto;
um gasoduto da Petrobras construdo em 1983, passando prximo s
trs aldeias Guarani e atravessando 20 quilmetros da Terra Indgena
Comboios; a construo da ponte sobre o rio Piraqu-Au e a pavimentao da rodovia ES-010, paralela a esse gasoduto, com a retirada
de terra da rea indgena; a construo do distrito de Coqueiral para
trabalhadores da Aracruz Celulose, no limite da TI Caieiras Velhas,
e, o pior, de sua estao de esgoto dentro de rea indgena, chamada
pelos ndios de penico; e o plano de explorao calcria da foz do
rio Piraqu-Au pela empresa Thotham Minerao, primeiro projeto
econmico que os ndios conseguiram embargar na justia, graas a
uma ao conjunta com ambientalistas da regio e que possibilitou a
demarcao da TI Caieiras Velhas II.
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Diante de todos esses empreendimentos, as lideranas indgenas afirmavam: ns aqui estamos imprensados. As imagens via satlites
apresentadas pela equipe contratada pela Petrobras aos ndios confirmavam essa opinio corrente nas sete aldeias, aumentando a convico
indgena sobre a necessidade de expanso do territrio demarcado.
Pude verificar que a habilidade de leitura e interpretao de mapas
e imagens feitas por satlites entre os Tupiniquim e os Guarani era
sofisticada, no somente pelo conhecimento topogrfico da regio,
mas tambm pela colaborao empreendida durante a realizao dos
GTs da FUNAI para ampliao da rea.
Mais de duas dcadas aps sua construo, o Gasoduto Lagoa PardaVitria voltava a ser um tema central de debate entre as lideranas
indgenas, diante da construo iminente de mais um gasoduto na
regio. Batizado pelos Guarani de tatarap, ou seja, o caminho do
fogo, o antigo gasoduto era visto como um ser malfico, um ente
desconhecido e sobrenatural que cortou nossa terra ao meio e sobre
o qual nada poderia vingar, a no ser o receio e a ideia de risco.43
Ouviam chiados e fortes barulhos de suas vlvulas de despressurizao e sentiam medo, sem saber se aquilo iria explodir. Lus Barbosa,
jovem lder de Comboios, resumiu bem a percepo indgena sobre
o tatarap em uma de nossas reunies:
Aquilo pior do que uma ona, porque o ndio
no sabe o que tem ali dentro. A Petrobras diz
que no nenhum bicho de sete cabeas, mas
para a gente . Dos bichos selvagens, das onas
do mato, a gente sabe dos riscos, mas de uma
tubulao, a gente no sabe. Ningum sabe se
explode. E ns vamos ficar no meio de dois
gasodutos.44

Como resultado do primeiro estudo, recomendamos Petrobras que


somente decidisse o traado do novo projeto aps uma consulta s
populaes indgenas. A questo era muito delicada, no s por envolver empreendimentos anteriores, mas tambm porque no havia
uma posio consensual nem entre os ndios, nem entre os prprios
43

44

Os mais diversos estudos sobre os Guarani-Mbya so unnimes em destacar a importncia


religiosa do nome nessa cultura, desde os mitos chamados de divinas palavras (ayvu rapyta)
registrados por Cadogan (1992), at o ritual de nominao e batismo coletivo das crianas
nas aldeias (nemongarai).
Veiga (2004).

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membros da equipe tcnica, sobre qual seria a proximidade aceitvel


da nova obra. Se o Gasoduto CacimbasVitria passasse pela rea
em litgio com a Aracruz Celulose, os ndios teriam mais poder de
barganha para conseguir uma indenizao maior da Petrobras. Por
outro lado, se fosse realizado um desvio para fora da rea pretendida,
seria menos um empreendimento envolvido na j to complicada
disputa fundiria. As associaes indgenas defendiam claramente a
primeira alternativa, diante da grave reduo oramentria com o fim
dos repasses da indstria de papel. Mas os caciques disseram no com
um argumento definitivo, baseado na experincia das negociaes
anteriores: o dinheiro acaba, mas a terra nunca acaba.
As formas de deliberao dos ndios ao longo do processo de licenciamento, e depois nas negociaes da indenizao retroativa com a
Petrobras, eram marcadas por uma aguda observao e pelo silncio
dos caciques e lideranas na fase inicial. Ouviam com ateno todas
as ponderaes da empresa para depois se reunirem em separado
em outra sala, da qual s retornavam com uma posio fechada e
uma argumentao incisiva sobre o tema. A ento manifestavam
suas contrariedades de forma unnime, reforando as falas uns dos
outros e evitando ao mximo a exposio pblica de suas diferenas
internas. Portando marcas de etnicidade como cocares e pinturas
corporais, hoje utilizadas somente em reunies, protestos polticos e
em festas nas aldeias os ndios compareciam em peso aos longos
encontros em que mantinham com firmeza suas decises coletivas,
demonstrando publicamente seu pertencimento tnico e pressionando
os empreendedores a cumprirem exigncias estabelecidas anteriormente. No se fiavam mais por promessas, passando a exigir eles
prprios o protocolo dos termos por escrito como garantia a cada
passo da negociao com as empresas.
s vsperas da vistoria in loco exigida pelos ndios Petrobras, houve
uma reunio bastante tensa em Comboios, no dia 6 de janeiro de 2005,
justamente na Terra Indgena mais diretamente afetada pelo gasoduto
antigo e cujo acesso era feito somente por barcos controlados pelos
ndios. Com a presena de mais de 20 tcnicos da Petrobras, incluindo
a autoridade mxima do gerente da malha de gasodutos de todo o
Sudeste brasileiro, um dos lderes indgenas levantou-se na reunio
e dirigiu-se em alta voz ao negociador: se vocs no cumprirem
com o prometido, que negociar a passagem dessa tubulao de gs
h 22 anos em nossas terras sem indenizao, ns vamos botar fogo
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Arenas Publicas.indb 372

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no gasoduto!. Os aplausos e gritos exaltados da plateia indgena


contrastavam com o visvel desconforto dos visitantes, j em dvida
sobre a tranquilidade do retorno programado para o mesmo dia.
Nessa reunio, caciques indgenas e engenheiros da Petrobras assinaram
acordo estabelecendo termos e prazos mnimos para a realizao de
um novo estudo especfico solicitado pela FUNAI, novamente sob
minha coordenao tcnica. O interesse do rgo indigenista, ento,
era verificar o histrico, os impactos e a situao do gasoduto anterior
para proceder com uma ao indenizatria retroativa, incluindo tambm
o zoneamento ambiental das quatro Terras Indgenas j demarcadas.45
Esse novo relatrio inaugurou a srie dos Estudos Etnoecolgicos
solicitados pelo rgo indigenista a empresas envolvidas em processo
de licenciamento nas proximidades (ou mesmo no interior) de reas
indgenas em todo o Brasil, com base em uma nova metodologia que
considerava, entre outras coisas, a participao efetiva dos ndios nas
equipes tcnicas de trabalho.
Assim que os ndios decidiram pelo desvio, em um documento enviado FUNAI em 18 de janeiro de 2005, que basicamente reforava
a ideia da luta pela terra, a Petrobras imediatamente concordou e
props um novo traado fora da rea em disputa, antes mesmo do
incio dos trabalhos para o novo estudo. Logo foi possvel compreender que o reconhecimento da pretenso indgena sobre esse territrio
por parte de uma grande empresa de energia, alterando o traado de
um de seus empreendimentos lineares, era algo mais valioso para
os Tupiniquim e os Guarani do que qualquer indenizao imediata.
No ms seguinte, adotando a nova metodologia, incorporamos equipe
tcnica os chamados pesquisadores-ndios. Esses foram indicados pelas
prprias aldeias e seu trabalho, assim como o dos demais membros da
equipe, foi remunerado por empresa de consultoria contratada pelo
empreendedor. O resultado final foi surpreendente: alm da habilidade
dos ndios em receber os mais diversos grupos tcnicos, dividindo-se
conforme suas especialidades e revelando intimidade com a rotina
de pesquisa de antroplogos, bilogos, hidrlogos e agrnomos, houve
a contribuio efetiva e o envolvimento direto dos ndios em todas as
fases do trabalho de campo. Por sugesto da sociloga da equipe, registraram com mquinas fotogrficas descartveis o que consideravam
ser os pontos positivos e negativos em suas aldeias. Essas imagens,
45

Veiga (2005).

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acompanhadas das narrativas recolhidas no momento da entrega das


fotos reveladas, compuseram as chamadas foto-histrias, uma das
sesses mais bem avaliadas do Estudo Etnoecolgico.
Diferentemente das demais aldeias, Caieiras Velhas indicou um senhor
de idade, Otaciano Domingos Pajeh, como seu pesquisador-ndio.
Logo descobrimos que esta seria uma sbia deciso. Afinal de contas,
Otaciano havia sido o cacique da aldeia quando, entre 1987 e 1988,
negociou com a Petrobras a passagem do gasoduto antigo pela Terra
Indgena de mesmo nome. No balco de sua Mercearia Pajeh, seu
Otaciano nos apresentou, para nossa surpresa, a memria detalhada do
acordo anterior no s em narrativas vivas, mas em um cuidadoso dossi reunindo papis que nem a Petrobras, nem a FUNAI dispunha mais.
Os dados tcnicos, as atas de reunio, as notas fiscais e oramentos,
as listagens de famlias beneficiadas, tudo havia sido cuidadosamente
documentado por ele em uma pasta conservada em sua casa. Assim,
pudemos comprovar que a Terra Indgena Comboios, justamente a
rea mais atingida, de fato havia ficado de fora das negociaes, alm
de reconstituir o acordo feito com os ndios de Caieiras Velhas e todo
o histrico da passagem do empreendimento pela regio.
Logo aps a finalizao, a entrega Petrobras, a aprovao pela
FUNAI e a apresentao aos ndios do segundo relatrio tcnico, teve
incio a rodada de discusses entre engenheiros e lideranas indgenas
para decidir sobre a indenizao do Gasoduto Lagoa PardaVitria.
Passados 22 anos desde sua construo, os Tupiniquim de Comboios
finalmente foram beneficiadas em R$ 4,5 milhes, sendo parte dos
recursos alocados em projetos e parte destinado s famlias, o que
incluiu parceria entre a FUNAI e o Banco do Brasil na orientao
para o bom uso do dinheiro em investimentos. No Balano Social e
Ambiental 2005 da maior empresa brasileira, ficou registrado que como
alguns gasodutos esto instalados em faixas de terra pertencentes a
comunidades indgenas, a Petrobras adota uma poltica de negociao
e de reconhecimento do direito dessas comunidades.46
Alm da indenizao conquistada, o desvio do novo gasoduto deu
fora poltica aos ndios, fortalecendo suas reivindicaes territoriais
perante a Aracruz Celulose e diante do prprio Governo Federal.
Simbolicamente, este foi o primeiro reconhecimento oficial de uma
grande empresa de que a terra em disputa era indgena. Os relatrios
46

Petrobras (2005, p. 39).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

tcnicos reacenderam a discusso fundiria na FUNAI, reabrindo


o processo demarcatrio e reforando as demandas indgenas pela
ampliao e unificao das Terras Indgenas no Esprito Santo.
O sucesso no relacionamento com a Petrobras acabou situando em
polos opostos as duas empresas a fornecedora de gs e uma de
suas maiores clientes abalando relaes diplomticas e gerando
constrangimento na negociao da passagem pela rea do desvio,
propriedade da Aracruz Celulose. Desse modo, as empresas, acostumadas a dividir os ndios em negociaes feitas separadamente
com cada aldeia, associao, faco poltica ou grupo tnico, vivenciaram a situao inversa, diante de suas posturas e pontos de vista
radicalmente diferentes sobre o que antes era considerada somente
uma vizinhana indesejvel. Diante das habilidades adquiridas pelos
ndios como exmios negociadores, internalizando a lgica das reu
nies, documentos e acordos, esse foi um passo fundamental em suas
demandas por reconhecimento e por direito ao territrio reivindicado.
O jogo identitrio e a negao dos papis
As associaes indgenas surgidas em uma crise, como forma de
apaziguar as relaes dos ndios com a empresa de celulose, logo
passaram a acentuar ainda mais a crise, quando seus membros se
qualificam ativamente para lidar com o mundo dos papis. O total
descrdito dos acordos com a Aracruz, o bom resultado da negociao com a Petrobras e a retomada do esprito combativo em torno de
uma nova autodemarcao, fizeram com que os ndios voltassem a
figurar nos papis. Diversos documentos, relatrios tcnicos, trabalhos
acadmicos e notcias na mdia impressa, agora somados grande
expresso na TV e na mdia eletrnica, reconduziram novamente os
Tupiniquim e os Guarani a uma posio de destaque na arena local.
Reunidos em assembleia em 19 de fevereiro de 2005, 350 ndios
decidiram romper definitivamente o acordo com a empresa, sob
o argumento de que plantar eucalipto no replantar a nossa
esperana,47 e abriram um inqurito civil pblico no MPF para apurar
irregularidades na demarcao anterior. A procuradoria confirmou
47

Em 28 e 29 de abril de 2005, os ndios da aldeia Tupiniquim de Iraj convidaram organizaes


camponesas e comunidades remanescentes de quilombo para o Encontro Replantar a Nossa
Esperana, compartilhando experincias sobre os impactos da monocultura do eucalipto na
regio.

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a validade das denncias, recomendando ao Ministro da Justia o


reconhecimento da rea indgena.
A propsito de seus estudos sobre os Guarani-Mbya em Misiones,
Argentina, rea limtrofe com Brasil e Paraguai que tambm enfrenta o
avano da eucaliptocultura, Ana Mara Gorosito Kramer observa que
se adquire identidade com a incorporao satisfatria de um modo
particular de significar a realidade, e sem dvida essa identidade tem
um protocolo de expresso pblica.48
Conscientes do poder simblico dos rituais e tratando de criar um fato
consumado, os ndios realizaram uma grande ocupao da rea em
litgio, abrindo uma clareira na plantao de eucalipto para construir a
aldeia Olho dgua em abril de 2005, como marco geogrfico de um
antigo povoamento Tupiniquim. Brincando com as palavras, a clareira
no calipal corruptela de eucaliptal usada pelos velhos Tupiniquim
era tambm uma clareira no mundo do capital defendido pela empresa.
Com os limites fundirios novamente em pauta, a controvrsia acabou reacendendo o debate sobre a identidade indgena, e de forma
ainda mais radical. Tupi or not tupi: that is the question. Assim
renova-se a pardia modernista de Oswald de Andrade para o texto
de Shakespeare, diante da identidade indgena como objeto de radical controvrsia, contrariando a autodeterminao como paradigma
vigente na legislao internacional.49
Na contramo dos direitos diferenciados, entre eles o direito prpria identidade, a reabertura do processo de demarcao da rea em
disputa desencadeou aes veementes da Aracruz Celulose, incluindo
a desconstruo da imagem dos Tupiniquim no portal da empresa na
internet, tratando-a como uma verdadeira fico tnica. Ao mesmo
tempo, aes contrrias das associaes de trabalhadores da empresa
na mdia reconstruram a velha imagem dos ndios como empecilho
ao desenvolvimento regional em uma srie de outdoors espalhados
por reas urbanizadas e vizinhas s aldeias indgenas. Foi dentro desse
esprito que a empresa editou uma cartilha, buscando comprovar e
48
49

Gorosito Kramer (1997, p. 102).


O critrio de autodeterminao tnica foi estabelecido pela Conveno 169 da Organizao
Internacional do Trabalho (OIT) desde junho de 1989, incluindo o Brasil como um dos pases
signatrios. Desde ento, os relatrios de identificao tnica deixaram de se apresentar como
atestados de indianidade, tal como ocorria no passado. Entretanto, a Aracruz Celulose
adotou essa linha argumentativa em seus relatrios.

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difundir a ideia nas escolas locais e junto populao de que esses


ndios, de fato, no eram mais ndios.
Entretanto, quanto mais se questionava a identidade indgena dos
Tupiniquim e dos Guarani, mais ela se afirmava e conquistava apoios
importantes, dentro e fora do pas. A mdia local, contudo, carregava
nas tintas para reforar as palavras de sua grande anunciante e fornecedora de papel. Carlos Lindenberg Filho, proprietrio do jornal mais
lido no Esprito Santo e diretor da Rede Gazeta, afiliada da Rede Globo,
chegou a escrever em linguagem bandeirante: embora esses ndios e
pseudo-ndios sejam todos importados, h que se pr ordem em seus
comportamentos inadequados que afrontam autoridades, empresas e
pessoas, sem que se lhes d um corretivo exemplar previsto em lei.50
Os slogans anti-indgenas estampados em outdoors na cidade e nos
distritos de Aracruz difundiam as seguintes ideias: Basta de ndios
ameaando trabalhadores, contrapondo essas duas identidades e
reeditando a clssica viso do indgena indolente, que implementou a
escravido indgena no Brasil colonial como forma de curar seu esprito avesso ao trabalho. Esses argumentos lembravam a retrica dos
velhos livros escolares que apresentavam s crianas a ao violenta
dos bandeirantes do sculo XVIII como uma necessidade imperiosa,
justificando plenamente a escravido e o genocdio indgena em nome
do ideal do progresso, necessidade maior da Nao.51
Em outro outdoor, a empresa de capital noruegus encarnava o ideal
positivista e distorcia os sentimentos nacionais, tratando os ndios
como forasteiros e como massa de manobra de agentes do poder pblico: A Aracruz trouxe o progresso. A FUNAI, os ndios, em que
esses ltimos se tornavam sinnimo de desordem, em clara aluso
ao lema nacional. O rgo indigenista era acusado de criar protees
totalmente indevidas do ponto de vista da empresa, como se esses
no fossem direitos constitucionais: A FUNAI defende os ndios.
Quem defende nossos empregados?. E para encerrar, a posio de
vtima reaparecia no ltimo slogan da srie: Essa agresso Aracruz
Celulose atinge nossas empresas tambm.
Alm do ataque generalizado, a empresa promoveu na cartilha em
papel couch um ataque pessoal sem precedentes, apresentando
50
51

Artigo Isentos da Lei, A Gazeta, 08/09/2006.


Sobre a imagem estereotipada dos ndios nos livros didticos brasileiros, ver Barbosa de
Almeida (1987) e Rocha (1996).

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uma foto do cacique Vilson Jaguaret, de Caieiras Velhas, para


desconstruir sua representao como lder indgena. A comear do
Jaguaret, nome que recentemente adotou e que no um nome
Tupiniquim, dizia o documento. Passando em revista seus adornos,
o argumento da autenticidade era depois dirigido para sua borduna,
vista como uma apropriao indevida dos ndios Txucarrame; para
o cocar e a pintura corporal, apresentados como de origem Caiap; e
finalmente para o colar, que no caracterstico dos Tupiniqum.52
A figura do cacique era apresentada como uma mistura espria e de
mau-gosto, ou seja, como uma mixrdia, uma bricolagem desconexa
de grupos indgenas supostamente puros da Amaznia.53 Ao analisarem o documento didtico da Aracruz Celulose, Celeste Ciccarone e
Sandro Jos da Silva destacam as trs representaes mais frequentes
sobre os ndios na regio: a de falsos ndios; a de ndios estrangeiros, vindos do Sul (Guarani) ou da Bahia (Tupiniquim); e a dos
ndios mortos, ou seja, presos irremediavelmente ao passado e a
vestgios arqueolgicos. Segundo os autores, a cartilha, j condenada pelo Ministrio Pblico como abusiva e preconceituosa aps
vrias manifestaes dos ndios, um resumo da atuao da empresa
nos ltimos 30 anos.54 Celeste Ciccarone define tais aes como
atentados empresariais, visto que a imagem dos ndios, individual
e coletiva, foi drasticamente afetada desde esse episdio.
O documento Questo Indgena no Esprito Santo, uma espcie de resumo do laudo de manifestao da empresa no direito ao contraditrio
junto ao Ministrio da Justia, procurando dar ares de cientificidade
questo, por muito tempo esteve disponvel com destaque no portal da
empresa na internet, em portugus e em ingls, expressando concepes contrrias aos ndios e prpria poltica indigenista nacional.55
Vale ressaltar que, desde a Constituio de 1988, nunca uma empresa se
manifestou em pblico de forma to veemente contra povos indgenas
52
53

54
55

Ciccarone; Silva (2007, p. 1).


A propsito da renovao urbana e da diversidade tnica de um bairro, o Prof. Marco Antonio
da Silva Mello afirma que h uma mistura que pode ser tolerada e agradvel, e tem tambm
a mixrdia. s vezes, a mistura sociologicamente criativa de Belleville vista por muitos
outros usurios da cidade de Paris como sendo uma mixrdia, essa mistura indesejvel,
essa coisa que transgride o bom gosto e as formas de civilidade... MELLO, entrevista para
o filme etnogrfico 10 rue Lesage, Belleville: arqueologia urbana de um bairro popular
parisiense (2009).
Ciccarone; Silva (2007, p. 4).
Aracruz Celulose (2007).

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como nessa ocasio. A tal ponto que a Aracruz Celulose foi obrigada
a retirar seu contedo na internet pelo MPF por ao de danos morais
coletivos aos ndios, sob pena de receber pesadas multas dirias. Com
o acirramento das posies e diante da intensa propaganda difamatria,
contudo, se articularam novas estratgias indgenas de autoafirmao,
reforando seu carter combativo e a impossibilidade de dilogo.
Diante da indignao moral, a resposta foi um ousado protesto
indgena em outubro de 2005, quando 200 ndios conseguiram ocupar
o ptio industrial da Aracruz. No ato, de grande repercusso na mdia
nacional, os ndios danaram e discursaram em cima de grandes rolos
de papel para exportao, portando faixas com as frases plantaes
de eucalipto no so florestas, a Aracruz destri culturas e quem
so os invasores?. No houve confronto, mas o irreverente protesto
motivou a ira dos executivos da empresa.
Em 20 de janeiro de 2006, um mandado de reintegrao de posse,
ilegalmente expedido por um juiz local a favor da Aracruz, transformou
Olho dgua em cenrio de guerra. Aps uma srie de irregularidades,
pois os caciques no foram notificados e a FUNAI sequer foi
comunicada, as casas da nova aldeia foram destrudas e os ndios
atingidos por balas de borracha em uma ao truculenta da Polcia
Federal. Para agravar o quadro, os policiais federais receberam visvel
apoio da empresa, se instalando na Casa de Hspedes da Aracruz
Celulose e l efetuando prises de lderes indgenas, utilizando seus
tratores para a destruio das casas e contando com o reforo de
sua segurana particular. Passava-se, portanto, da agresso moral e
simblica para o radicalismo da agresso fsica.
A ao violenta da Polcia Federal, somada s evidncias do apoio
logstico da Aracruz Celulose na operao e ao pedido dos ndios de
indenizao por danos morais Unio, obrigaram o presidente Lula
a ouvir sua manifestao no aeroporto de Vitria, somente 20 dias
depois do ocorrido, quando em visita ao Estado para inaugurar uma
subestao de energia eltrica. Como argumento incontornvel, Dona
Helena, ndia Tupiniquim de Caieiras Velhas, mostrou as cicatrizes
dos ndios, marcas corporais da violncia, ao presidente da Repblica,
que prometeu uma visita urgente rea do Ministro da Justia e a
futura demarcao da rea pretendida.
Diante da visibilidade crescente na mdia internacional, outro resultado imediato do confronto foi a presso de ONGs ambientalistas sobre
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a famlia real da Sucia, que no mesmo ms se desfez de todos os


papis e ttulos que detinha da empresa fundada por Erling Lorentzen.
O auge da grandeza56 e da fora do capital simblico foi a viagem de
dois ndios Tupiniquim e Guarani Noruega para protestar contra a
famlia real, se contrapondo aos valores do mercado, pressionando
seus parceiros econmicos e buscando legitimidade no direito diferena tnica e preservao ambiental. Em Oslo, os ndios foram
recebidos por parlamentares, pelo Banco da Noruega e receberam o
apoio de organizaes religiosas e do povo Sami (ou Lapo), a etnia
indgena mais expressiva do norte da Europa, que prometeu pressionar
o governo noruegus a retirar investimentos da Aracruz, levando a
questo a seus prprios parlamento e emissora de televiso.
Na Alemanha, com o apoio expressivo do Partido Verde alemo,
tambm se mobilizaram pela reviso de financiamentos e certificaes
ambientais da empresa, alm de dirigir-se diretamente a um de seus
principais compradores com um protesto de repercusso internacional,
paralisando os acessos fbrica da P&G. O ponto alto da viagem, no
entanto, foi a denncia do lder Tupiniquim Paulo de Oliveira e do
cacique Guarani Antonio Carvalho (Wer Kwaray) contra a Aracruz
Celulose no Tribunal Permanente dos Povos, evento paralelo quarta
Cpula Unio Europeia Amrica Latina e Caribe, em maio de 2006.57
Assim, o novo slogan utilizado pela empresa em grande campanha
publicitria, fazendo um bonito papel no mundo inteiro, era no
s questionado, pois se revelava s avessas, como na prtica parecia
perfeitamente apropriado aos lderes indgenas, diante da visibilidade
internacional conquistada por suas demandas polticas.
Em outubro de 2006, a XVII Feira do Verde em Vitria, patrocinada
pela Aracruz Celulose, tambm foi palco de uma grande e performtica manifestao estudantil a favor dos ndios. Chamada de a farsa
do verde, a solenidade de abertura foi interrompida por um ruidoso
grupo de alunos da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES)
portando faixas de protesto e fantasiados de eucalipto, com cones
verdes na cabea e tnicas marrons com a logomarca da empresa.
Se considerarmos a metfora utilizada por Goffman da sociedade como
um teatro,58 desdobrando-se em cenas, protagonistas, coadjuvantes,
palco, plateia, bastidores, enredo e em todas as metforas relacionadas
56
57
58

Boltanski; Thvenot (1991).


Sculo Dirio (2006).
Goffman (2005).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

ao espetculo e constitutivas do campo da dramaturgia e das artes cnicas, veremos que os papis representados pelos ndios e pela Aracruz
Celulose se construram mutuamente sob a forma de um antagonismo
radical. Assim, gerando no plano identitrio e na cena pblica uma
recusa recproca, a empresa e os ndios passaram a desqualificar reciprocamente seus papis sociais, em interaes cada vez mais tensas.
Enquanto os ndios Tupiniquim e Guarani, acusados de serem uma
espcie de farsa ideolgica pela Aracruz Celulose, tinham seus
direitos polticos considerados como absurdos e descabidos, a empresa, em contrapartida, viu sua fachada de responsabilidade social
e de sustentabilidade ambiental ser frontalmente atacada por eles
e seus aliados. Na longa disputa com a Aracruz Celulose, os ndios
acusaram a empresa e foram simultaneamente acusados de invasores
e de violentos, resultando em atitudes de no reconhecimento e de
desrespeito mtuo. A denncia recproca ou o crculo da denncia
estabelecido fez com que perseguidores e vtimas alternassem os papis, segundo as diferentes verses em disputa e cada qual tomando
sua prpria causa como a nica portadora de legitimidade moral.59
Diante do conflito insolvel entre os ndios e a Aracruz Celulose e da
negao recproca de seus papis sociais, configurou-se um drama
social irreparvel, aps a ruptura das relaes dialgicas e a escalada
crescente da crise que atingia ento seu pice.60 Sobretudo a partir da
afronta impressa e estampada na cartilha e nos outdoors, reforando
esteretipos negativos sobre os ndios, e do limite ultrapassado pela irrupo da violncia fsica nos episdios envolvendo a Polcia Federal.
Como um tiro pela culatra, a argumentao equivocada da empresa,
a ao desastrosa de reintegrao de posse na justia local e a participao explcita no embate policial iriam motivar uma deciso
favorvel aos Tupiniquim e Guarani no final do processo, em agosto
de 2007. O papel denunciador das ONGs e da mdia independente,
levando a questo para alm da dimenso local, foi tambm decisivo
nesse processo, assim como os novos relatrios tcnicos enviados
FUNAI reafirmando a necessidade de resoluo do conflito fundirio
59

60

Sobre a denncia e suas distintas modalidades individuais e coletivas, ver Boltanski; Darr;
Schiltz (1984).
Ao formular o conceito de drama social, processo que emerge em situaes radicais de conflito,
Victor Turner aponta para a dimenso dramtica da vida social e as possibilidades de um cisma
irreparvel, diante do fracasso da ao reparadora. constitudo por quatro fases: (1) ruptura,
(2) crise, (3) ao corretiva e (4) reintegrao ou cisma irreparvel, dependendo do desfecho
do drama social (TURNER, 2008, p. 33-37).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

em favor dos ndios. Nesse contexto, relaes assimtricas podem ter


se tornado igualitrias,61 diante de um novo equilbrio de foras e a
partir da sensibilidade do governo Lula para os movimentos sociais.
Sobretudo, no caso indgena, com a tomada de posio favorvel, em
2005, demarcao em rea contnua da Terra Indgena Raposa-Serra
do Sol, em Roraima, objeto de grande polmica na poltica, na justia,
nas foras armadas e na mdia, com enorme repercusso internacional.
De forma grosseira, a Aracruz Celulose procurou deslocar a questo
do direito terra tradicionalmente ocupada pelos ndios, garantida
pela Constituio de 1988, para outra questo: o direito diferenciao tnica, cujo carter contrastivo, conforme expresso de
Roberto Cardoso de Oliveira,62 foi constantemente negado em seus
relatrios tcnicos durante o contraditrio, o que certamente reforou
os prprios argumentos indgenas em torno do no-reconhecimento
explicitado, por parte da empresa, de seus direitos diferena e
terra, por conseguinte.
O debate jurdico em torno do direito das minorias um tema amplamente analisado por Will Kymlicka nos mais variados contextos
nacionais, pensando o direito diferena e as reaes s formas
possveis de cidadania diante das culturas majoritrias.63 Foi dentro
desse quadro compsito, a partir do processo de autoatribuio das
especificidades culturais, que a monotonia da paisagem do eucalipto e
o discurso pelo desenvolvimento econmico passaram a contrastar com
a emergente pluralidade sociocultural na regio, na qual novas identidades contrastivas se constituram ao longo das ltimas trs dcadas.
Assim, dentro da perspectiva da cultura como um fluxo constante,
tal como consideram os estudos de Fredrik Barth e Ulf Hannerz,64 que
identidades locais como a dos ndios Tupiniquim, dos quilombolas de
So Mateus e dos pescadores artesanais de Regncia passaram a se
constituir pela diferena e em oposio ao megaprojeto, e no pela
homogeneidade que conforma o senso-comum da sociedade envolvente sobre o iderio nacional de um Brasil (no) singular. Estudantes e
professores universitrios, partidos polticos, ativistas religiosos, ambientalistas e lderes do Movimento Sem-Terra passaram a constituir
61
62
63
64

Turner (2008, p. 33-37).


Oliveira (1976).
Kymlicka (1996).
Barth (1995, 2000); Hannerz (1997).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

um grupo chamado nas reunies de seus apoiadores, participando


ativamente das manifestaes em prol dos interesses indgenas.
Com suas aldeias estrategicamente assentadas sobre sambaquis as
chamadas caieiras velhas e outras marcas de ocupao imemorial
indgena, os novos Tupiniquim tiveram o jogo poltico-econmico
local como o principal motivo para sua diferenciao tnica. Aps
a ruptura de uma relao de dependncia instituda pelo acordo de
1998, viveram dramaticamente o questionamento de sua identidade
autoatribuda, entre a vinculao de seu modo de ser com um povo
indgena clssico do litoral brasileiro e a prtica acusatria da empresa
e da mdia local de que seus sinais diacrticos foram inventados ou
adquiridos de outras culturas.
Max Weber, em seu ensaio pioneiro sobre a questo da etnicidade,
j afirmava que a identidade tnica , ao mesmo tempo, uma identidade poltica.65 A origem comum presumida e o histrico das lutas
vividas, por vezes, estabelecem clivagens e os grupos se percebem
como diferentes; em outros casos, contudo, podem construir unidades
e laos de afinidade e irmandade nunca antes imaginados. Afinal de
contas, so sentimentos comuns que orientam as aes, estabelecendo
destinos polticos comuns.
Se, conforme Barth, identidade algo altamente instrumentalizado
no campo da ao poltica,66 podemos pensar que o reconhecimento
dos Tupiniquim, ou seja, seu processo de etnognese surge paralelo
e intimamente ligado ao megaprojeto da indstria de celulose no municpio de Aracruz, municpio esse que se confunde com a empresa
por seu nome e smbolos como o braso e a bandeira.67 Assim, se
municpio e empresa so anlogos, a emergncia dos Tupiniquim e
as dinmicas de flutuao de sua identidade tnica so tambm, de
certa forma, produtos do empreendimento, pois se construram a partir
dessa relao de oposio. E, pela lgica que estrutura a lei da ao e
reao, quanto mais a empresa questionou a identidade indgena dos
Tupiniquim ou o pertencimento dos Guarani ao territrio, mais estes
65
66
67

Weber (1991, p. 270).


Barth (2000).
O braso tem em seu escudo central uma cruz vermelha sobre um rio com a imagem de
um peixe, referindo-se condio litornea e vocao crist do municpio, cujo nome foi
criado pela juno das palavras ara (altar) e cruz. O braso, encimado por uma coroa, situase entre duas chamins fumegantes e sobre um conjunto de toras de madeira, exaltando o
desmatamento e a indstria de celulose.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

radicalizaram e, por oposio, assumiram sua diferena, preferindo


optar pelo conflito s formas diplomticas de negociao.
Com base no estudo de Boltanski e Thvenot sobre a justificao, a
propsito dos princpios superiores comuns, poderamos at pensar
no caso dos ndios de Aracruz como uma forma derivada do mundo
cvico, no preocupada, contudo, em alcanar um ideal comum de
civilidade, mas em estabelecer uma distino ao modelo de civilidade ideal.68 Nesse sentido, muitas vezes emerge entre os ndios, em
diferentes contextos de ao, uma recusa sistemtica, uma oposio
desafiadora ao que podemos chamar de monoplio da civilizao
por parte do poder dominante constitudo. Como argumento central
na disputa pelo territrio, a perspectiva indgena a de que h outras
civilizaes possveis, que no a da hegemonia identitria e paisagstica constitutiva do mundo industrial.
No contexto estudado, portanto, a etnicidade se construiu por
oposio, e no em consonncia aos projetos de desenvolvimento,
procurando radicalizar posies quando a questo era abrir mo do territrio diante das tentativas de composio com as grandes empresas.
E assim, conforme Benedict Anderson, pode-se at mesmo dizer que
o Estado imaginou seus adversrios locais, em um agourento sonho
proftico, muito antes deles existirem historicamente.69
Eplogo: kuati guasu e a festa da vitria
Da produo celulsica impresso de documentos, o papel afiana
compromissos e faz obrigatoriamente as pessoas se relacionarem
umas com as outras, criando outros domnios no plano das relaes
interpessoais e institucionais. Diferentes tipos de papel estiveram
envolvidos na contenda entre os Tupiniquim e os Guarani e a Aracruz
Celulose: documentos histricos, registros cartoriais e paroquiais,
livros, relatrios tcnicos, mapas e fotografias de satlites, termos de
acordo, portarias e decretos, listas de presena em reunies, cartilhas,
panfletos, notcias em jornais e revistas e at mesmo outdoors, ora
como meios de mediar relaes, ora instaurando conflitos.
E eis que, em 27 de agosto de 2007, os ndios tiveram conhecimento
de que o documento que tanto esperaram, o kuati guasu, ou seja, o
grande papel, havia sido finalmente publicado no Dirio Oficial da
68
69

Boltanski; Thvenot (1991).


Anderson (1991, p. xiv).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Unio. A Portaria n 1.463, assinada pelo Ministro da Justia Tarso


Genro, demarcou uma superfcie de 14.227 hectares que unificou
as Terras Indgenas Caieiras Velhas e Pau Brasil, assegurando,
finalmente, a legitimidade e o reconhecimento do direito indgena
sobre a rea reivindicada, na qual no passado se situavam antigas
aldeias de seu territrio original destrudas pela explorao econmica.
No dia 7 de setembro, coincidindo com a data nacional, fui juntamente
com a colega antroploga Celeste Ciccarone festa da demarcao
na aldeia Pau Brasil, em Aracruz, uma ilha num mar de eucaliptos.
Essa aldeia, a mais prxima do conjunto de fbricas de celulose, sobreviveu ao dos grileiros da antiga Aracruz Florestal e considerada
um smbolo maior da resistncia. Trata-se de uma metfora vegetal
que contrape o pau-brasil nativo e avermelhado, quase extinto pelo
primeiro empreendimento colonial, ao eucalipto branco trazido da
Oceania pelos colonizadores europeus.
No centro da aldeia, foi construdo um grande maloco de palha para
receber os ndios de todas as aldeias e seus convidados. Primeiramente,
os discursos dos ndios, os donos da festa, consolidavam a relao entre
os dois grupos tnicos: ns, lideranas Tupiniquim-Guarani, era uma
frase inicial comum. Assim, j se representavam como uma identidade
hifenizada, construda politicamente a partir da constituio hbrida da
associao e de suas novas formas de mobilizao coletiva.
Paulo, lder Tupiniquim que se destacou fora das aldeias integrando a
Articulao dos Povos e Organizaes Indgenas do Nordeste, Minas
Gerais e Esprito Santo (APOINME), discursou em nome de outros
povos em processo de etnognese:
a luta no s de um cacique, nem s das
lideranas, nem s de um povo, mas de vrios
povos. Quantos lderes j morreram, como o cacique Chico Xukuru em Pernambuco? Quantas
lideranas indgenas esto sendo criminalizadas
por estarem lutando pelos seus direitos, em
uma democracia que no passa do papel? So
40 anos de luta aqui, e muitos outros povos,
especialmente l no Nordeste, j tem nossa luta
como referncia.

Vilson Jaguaret, atingido moral e fisicamente durante os conflitos,


no pde conter o choro pblico durante a fala, recordando a brutali385

Arenas Publicas.indb 385

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

dade sofrida durante o embate com a polcia e a destruio da aldeia


Olho dgua no ano anterior. Representando as mulheres indgenas,
Deusdeia fez um discurso exaltado, evidenciando, pela entonao ao
microfone, sua filiao s igrejas crists renovadas.
Um ex-cacique, seu Antonino, falou em tom sereno, mas de forma
emocionada:
sou um jovem de 71 anos. Se me levarem, j
tenho onde cair. Pois vou cair, passo a passo,
nessa terra. Essa terra foi aprovada nossa primeiramente por Deus, depois pelos homens da
lei. Hoje um dia de liberdade! Foi o dia em
que o Brasil teve liberdade e o dia da liberdade
nossa tambm.

Por fim, entre os apoiadores, discursaram dois ativistas do CIMI


que migraram para a FASE e que deram apoio poltico aos ndios ao
longo de todo esse longo processo. Fbio Villas falou sobre o grande
nmero de pessoas que os apoiaram nessa luta, no Brasil e no exterior,
tema reforado por Winfridus Overbeek, missionrio holands ameaado de deportao durante os episdios da segunda autodemarcao,
em 1998. Esse leu mensagens de felicitao enviadas por e-mail de
vrios pases, como a ndia e a Alemanha. O nico poltico presente
era um vereador de Aracruz, Luciano Frigini, que manifestou apoio
aos ndios em seu breve discurso.
Vindo do Rio de Janeiro para Vitria na vspera especialmente para a
ocasio, fiz questo de me manifestar em pblico. Essa foi a primeira
oportunidade de retorno a campo sem nenhum vnculo com as empresas,
e pude situar os resultados dos relatrios tcnicos sobre os gasodutos
da Petrobras no quadro das novas conquistas. Apresentei um breve
histrico dos estudos e agradeci a acolhida das sete aldeias, citando
nominalmente nossos anfitries e colaboradores mais constantes, fundamentais para o desenvolvimento dos trabalhos. Mencionei o desvio
do Gasoduto Cacimbas-Vitria como o primeiro reconhecimento por
parte de uma grande empresa do direito indgena sobre o territrio
pretendido, alm da indenizao retroativa conseguida pela aldeia de
Comboios por outro gasoduto construdo h duas dcadas. Disse que,
pela primeira vez, as empresas divergiram em relao ao direito indgena no Esprito Santo e os conflitos se acirraram, mas foram definitivos,
pois foraram uma soluo por parte do Governo Federal.
386

Arenas Publicas.indb 386

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Ao final da assembleia, tarde, as filas para o almoo atravessavam


o campo de futebol no centro da aldeia. Bebida e churrasco eram
distribudos, e a carne assando em grande quantidade sobre grelhas
improvisadas pareciam uma reatualizao do rito antropofgico, em
que os inimigos dos povos Tupi do litoral eram devorados em clima
de grande festa.70
No dilogo cultural intenso com os negros da regio, os Tupiniquim
aqueceram seus tambores e passaram a danar entoando seus versos
do congo, com reco-recos chamados de casacas fazendo a marcao:
ndio lutou, ndio sofreu... Entrou na guerra, mas o ndio no morreu.
So os versos preferidos para narrar a luta pela terra, que finalmente chegava ao fim. No entanto, a festa animada e a msica foram
interrompidas aps uma briga, com gritos do outro lado do campo.
A peleja entre dois jovens de aldeias distintas, Pau Brasil e Iraj, acabou antecipando o fim da celebrao. Paulo Tupinikim mandou ligar
imediatamente o motor dos nibus que levariam o pessoal das outras
aldeias para casa, provocando uma debandada como um balde de gua
fria. Assim, curiosamente, as disputas internas emergiram na festa da
demarcao como o ltimo ato encenado na arena pblica, gerando
mal-estar e recolhimento ao final. Finda a controvrsia com o grande
inimigo comum, a tendncia reaparecerem as diferenas internas entre
os Tupiniquim e os Guarani. Nesse sentido, novas associaes indgenas
devem surgir em Aracruz, gerando a especializao das demandas tanto
por aldeia quanto por etnia e a atomizao da representao to evitada
pelas ONGs por considerarem que dividir enfraquece a luta diante
de um movimento poltico que parece inevitvel.71

REFERNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente
ocupadas: processos de territorializao, movimentos sociais e uso
comum. Manaus: PPGSCA, 2006.
ALMEIDA, Rubem Thomaz de; CICCARONE, Celeste; SILVA,
Sandro Jos et al. Debate: povos indgenas e regulao fundiria
no Esprito Santo: uma questo aberta. Revista de Cincias Sociais,
Vitria, v.1, n.1, p.295-309, 1998.
70
71

Cf. Staden (1999).


Ciccarone, com. pess.

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DA ASSOCIAO
AO SINDICATO.
UMA ETNOGRAFIA
DO ACESSO DAS EMPREGADAS
DOMSTICAS DO RIO
DE JANEIRO AO DIREITO
Dominique Vidal1

Este texto se prope a evidenciar as principais dimenses da ao


do Sindicato dos trabalhadores domsticos do Municpio do Rio de
Janeiro (doravante, o STD).2 Esta pequena organizao, oriunda da
transformao da associao profissional das empregadas domsticas
em sindicato, exerce, na verdade, um papel importante no acesso
justia do trabalho e na difuso de uma conscincia dos direitos das
mulheres da classe trabalhadora da camada popular.3 Todo ano, oito
mil dentre essas trabalhadoras procuram a sede do sindicato em busca
de seus direitos, seja aps (ou por causa de) um conflito com o seu
1
2

Professor da Universit Piderot - Paris VII.


O STD traz a marca do masculino plural, embora no Rio, assim como em todo o Brasil, mais
de 93% dos trabalhadores domsticos sejam mulheres. Com mais de cinco milhes dentre
elas classificadas na categoria trabalhadores domsticos no recenseamento de 2000, o
emprego domstico o primeiro emprego feminino, dando salrio a aproximadamente 20%
das mulheres que trabalham.
Salvo quando se faz referncia ao ponto de vista do empregador, preferi a expresso
trabalhadora domstica, que corresponde ao ingls domestic worker, em vez de
empregada domstica, termo considerado pejorativo e quase nunca mencionado
pelas mulheres que vivem do emprego domstico, que preferem usar, como referncia
terminolgica, ou a palavra vinculada atividade exercida no mbito domstico (bab,
acompanhante, cozinheira etc.) ou o eufemismo indicativo da posio subalterna,
ilustrado na frase Eu trabalho em casa de famlia.

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empregador, seja para prevenir um conflito futuro. A central telefnica


do sindicato recebe, em mdia, 50 chamadas por dia.4
Discutiremos, primeiramente, como o acesso dos trabalhadores domsticos a novos direitos sociais contribuiu para a formao de um
novo sentido do justo e para a proliferao dos litgios jurdicos entre
eles e seus empregadores. Veremos, em segundo lugar, que este sindicato se encontra em uma posio ambivalente, devido sua insero
no mbito da justia do trabalho. Trataremos, em seguida, das tenses
entre as diferentes categorias de atores pblicos na sede do sindicato,
tenses estas que nos informam muito sobre o contedo das relaes
sociais. Abordaremos, finalmente, o papel do STD perante a justia do
trabalho, de onde as trabalhadoras domsticas saem frequentemente
com a sensao de ter reconhecidos os seus direitos.
De toda sorte, pretendemos evidenciar como uma etnografia pode
contribuir para o debate sobre a democracia no Brasil, documentando,
,ao mesmo tempo, a mudana introduzida pela referncia ao direito
e alguns obstculos relativos sua implementao.
1 A insero do direito na esfera privada
1.1 Novos contextos de interpretao
A relao de trabalho domstico, considerada, durante muito tempo,
no Brasil, como um trato particular de pessoa para pessoa, passou
a integrar a esfera pblica. Promulgada logo aps o fim do regime
militar, a Constituio Federal de 1988 concedeu numerosos direitos
sociais aos empregados domsticos: garantia de salrio nunca inferior
ao mnimo, a irredutibilidade de vencimentos sem a alterao do
contrato de trabalho, aviso prvio de um ms em caso de demisso,
dcimo-terceiro salrio, repouso semanal remunerado, 120 dias de
licena maternidade e 30 dias de frias por ano, em vez dos 20 dias
concedidos anteriormente. Mesmo sem terem conhecidos todos os
direitos dos empregados privados (em especial aqueles referentes ao
4

Fruto de um ano de pesquisa, aproximadamente, e dividido em quatro perodos entre 2001


e 2005, este artigo se baseia em 57 histrias de vida compartilhada com trabalhadoras
domsticas ou antigas trabalhadoras domsticas, bem como em entrevistas com empregadores,
patres de agncias de emprego, magistrados e advogados, representando uma etnografia de
espaos pblicos frequentados por essas mulheres, do sindicato dos trabalhadores domsticos
e do Tribunal Regional do Trabalho.

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seguro-desemprego, carga horria semanal de trabalho, regulamentao do trabalho noturno e ao pagamento das horas-extras), os
trabalhadores domsticos podem, de agora em diante, reivindicar um
nvel de proteo relativamente elevado, principalmente se comparado
ao restante da Amrica Latina. Tudo isso reafirmado por meio da sua
integrao ao regime da Previdncia Social, obtida em 1972, que assegura o direito aposentadoria e licena para tratamento de sade.5
Sem querer fazer da condio de domstica uma condio invejvel,
fato que essas mudanas trouxeram uma melhora sensvel das
condies de trabalho dessas trabalhadoras. Segundo as estatsticas
do Instituto Brasileiro de Geografia e de Estatsticas (IBGE), a categoria dos trabalhadores domsticos aquela cujos vencimentos
mais aumentaram ao longo dos anos 1990. Embora permanecendo
baixos, eles atingem hoje um nvel equivalente ao salrio de outras
categorias de trabalhadores sem qualificao (isto , em mdia, cem
euros por ms nos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro, So
Paulo e Braslia). Durante essa dcada, marcada pelo crescimento do
setor informal, a formalizao dos trabalhadores domsticos tambm
se acentuou, fato notvel mesmo considerando-se que mais de dois
teros das mulheres que encontram nessa profisso seu meio de sobrevivncia no so registradas por seus empregadores.
A implementao desse quadro jurdico permitiu que se formasse um
novo contexto interpretativo por meio do qual um nmero crescente
de trabalhadoras passou a avaliar suas condies de trabalho. Cada
vez mais frequentemente elas consideram que um bom patro no
apenas aquele que as trata com considerao e as socorre em momentos difceis, mas tambm aquele que observa o direito social.
E hoje no podemos compreender as relaes estabelecidas entre
essas mulheres e seus empregadores sem demonstrar o impacto dessa
conscincia sobre o direito.6
A possibilidade de se recorrer ao direito de imediato obscurece a possibilidade de distinguir claramente os conflitos interpessoais, ligados
a diferenas de temperamento ou a tenses inerentes copresena do
empregador e da empregada, e os conflitos provocados pelo descum5

At 1972, os trabalhadores domsticos no eram contemplados pelo direito social e


negociavam suas condies de trabalho amigavelmente com seus empregadores.
Sobre o interesse do estudo da experincia do direito nos indivduos comuns, ver Plisse
(2005).

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primento da Lei, segundo a distino feita por Barbosa (2000). Uma


incompatibilidade de humor persistente ou uma fala desagradvel
de um patro leva muitas vezes uma trabalhadora domstica a entrar
na justia para obter uma indenizao por violao da lei, violao a
qual ela havia se submetido at ento. Em contrapartida, o desrespeito
do empregador a um direito , com frequncia, visto como uma falta
de reconhecimento que afeta a relao pessoal entre as duas partes.
Este efeito da lei sobre o conflito no se traduz apenas em um aumento
dos litgios. Ele afeta tambm o estabelecimento de uma relao
de confiana. Em muitos casos, a ruptura resulta de um sentimento
de traio. o que ocorre, por exemplo, quando uma trabalhadora
domstica descobre que sua patroa, que dizia ser [sua] amiga, lhe
fazia acreditar que recolhia as contribuies previdencirias quando, na
verdade, jamais o havia feito. Esses conflitos decorrentes da ausncia
de formalizao da relao de trabalho evidenciam a importncia do
reconhecimento jurdico na construo da identidade das trabalhadoras
domsticas. Mais do que aquilo que foi negado (o estabelecimento
de um contrato de trabalho pela assinatura da carteira de trabalho) ou
negligenciado (contribuies previdencirias, supostamente quitadas,
mas, na verdade, nunca pagas), o fato de a domstica ser considerada
como algum a quem se pode enganar que suscita nela um sentimento
de humilhao e revolta. Ora, o acesso ao direito introduz uma nova
possibilidade de perda de confiana nas relaes entre domsticas
e empregadores. Ela me fez de boba, ouvimos frequentemente
das primeiras em relao s patroas. Poucas se restabelecem dessa
experincia que provoca nelas o sentimento de terem sido tratadas
conforme a imagem estereotipada da empregada, pessoa simplria que
pode ser facilmente enganada sem que o perceba. O atrativo desaparece
e, com isso, muitas acabam por largar a casa em que serviam. Isso
quando no so mandadas embora antes, por se mostrarem insistentes
em sua reivindicao. Tais situaes, frequentemente categorizadas
pelas trabalhadoras domsticas como falta de respeito, revelam,
todas, insulto moral que, atingindo diretamente a autoestima, afeta a
sua identidade pessoal.7

Ver sobre este tema a obra de Cardoso de Oliveira (2005).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

1.2 Conflito e autorreconhecimento


Essas transformaes acentuam, sobretudo, a dificuldade do conflito
no emprego domstico, no qual o trabalhador no pode esperar o
autorreconhecimento, diferentemente do que Renaud Sainsaulieu
(1996) mostrou em relao s grandes empresas industriais.
Inspirando-se no esquema hegeliano da dialtica do mestre e do
escravo, ele enfatiza o carter estruturante do conflito do trabalho
para os trabalhadores, explicitando que s quando consegue fazer com
que o outro reconhea o seu prprio desejo que o sujeito atinge o
seu autorreconhecimento. Ele assinala igualmente que o acesso a si
mesmo pela via do conflito depende da possibilidade de manter sua
posio, enquanto que o extremo condicionamento imposto pela
dominao massacrante do outro conduz, seno obrigatoriamente
loucura, ao menos impossibilidade de tomar conscincia das
diferenas8. Se, por um lado, as trabalhadoras domsticas podem
obter, ocasionalmente, um aumento de salrio ou uma reduo
da jornada de trabalho, por outro lado, elas podem se envolver
irremediavelmente num conflito com o seu empregador. A fragilidade
intrnseca das relaes mantidas pelas duas partes faz com que suas
ligaes no resistam a uma desavena duradoura. Como observou
Genevive Fraisse9, o conflito, nesse tipo de relao de emprego, no
se insere no modelo da dialtica do mestre e do escravo, no qual cada
um chega ao reconhecimento de si mesmo por intermdio do outro,
mas, ao contrrio, leva a um jogo de oposio sem sada.
O acesso das trabalhadoras domsticas ao direito permite, entretanto,
um outro modo de acesso ao autorreconhecimento pela via do
conflito, baseado no mais nessa dialtica com o empregador, mas
sim no rompimento definitivo da relao e no acesso ao direito.
Normalmente, as aes judiciais das trabalhadoras domsticas so, de
fato, muitas vezes motivadas tanto pelo desejo de mostrar seu poder de
resistncia quanto pela perspectiva de se obter uma reparao moral
por meio de uma indenizao.
A justia do trabalho fundamental nesse processo de reparao.
Centrada no princpio da conciliao entre as partes, as indenizaes
obtidas pelos reclamantesso, geralmente, de valor inferior ao que
8
9

Cardoso de Oliveira (2005, p.318).


Fraisse (1979).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

teriam recebido se o empregador tivesse cumprido a lei. Porm, as


trabalhadoras domsticas tm alguma confiana em sua capacidade
de reparar o prejuzo do qual elas se dizem vtimas, enquanto
que raramente pleiteiam nos tribunais soluo para um conflito
de vizinhana ou para uma desavena conjugal. O acesso das
trabalhadoras domsticas ao direito social no modifica radicalmente
o arranjo das relaes sociais, porm, muda sua percepo do lugar
que elas ocupam na ordem social e do que podem esperar disso. O
reconhecimento jurdico permite a essas mulheres se pensarem como
sujeitos de direito, vinculadas a um empregador mediante um contrato
formal, e no apenas dependentes das oscilaes inerentes s relaes
convencionadas amigavelmente. lgico que o direito no as protege
das tenses prprias das atividades ligadas aos servios domsticos
ou pessoais. Mas, ao permitir que as trabalhadoras domsticas se
definam em relao aos padres mundiais ou universais, o direito
d uma forma jurdica dignidade que elas reivindicam e fornece
critrios que lhes permitem avaliar diferentemente o justo e o injusto.
2 Uma posio ambivalente
Alm de conceder novos direitos sociais aos trabalhadores domsticos,
a Constituio Federal de 1988 permitiu s associaes de trabalhadores domsticos que se tornassem sindicatos dotados de poderes
jurdicos, habilitados a representar os interesses de sua categoria
profissional perante as autoridades, bem como a negociar convenes
coletivas e a proceder a rescises de contratos de trabalho. Mais de 15
anos aps a criao desses primeiros sindicatos, o movimento sindical
conta com poucos militantes,10 porm desempenha um papel central
no acesso das trabalhadoras domsticas ao Judicirio, permitindo,
sob certas condies, o ajuizamento de aes contra um empregador
que no tenha cumprido a legislao trabalhista.11
10

11

Somente cerca de 20 mulheres participam regularmente das atividades do STD e menos


de 40 pessoas pagam a cota mensal correspondente a dois euros, que confere a condio
de membro, sendo que o financiamento do STD se apoia essencialmente nos seus servios
jurdicos.
As entidades de trabalhadores domsticos, de maneira geral, jamais atingiram uma forte
adeso daqueles que pretendem defender seus interesses. Em contextos scio-histricos
bem diferentes, a dificuldade desses atores sempre residiu em seu isolamento, na sua fraca
identificao com uma atividade estigmatizada e na grande diversidade das relaes de
emprego (CASTRO, 1989; CHANEY; CASTRO, 1989; FRAISSE, 1979; HONDAGNEUSOTELO, 2001; MARTIN-FUGIER, 1979; PALMER, 1989; VASSELIN, 2002).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Contudo, a Constituio de 1988, ao legitimar esses sindicatos como


atores jurdicos, colocou-os em uma situao ambivalente. Na verdade, o STD no somente uma entidade de luta por melhores condies
de trabalho das trabalhadoras domsticas. tambm uma instituio
jurdica que integra a estrutura geral da Justia do Trabalho e, por
isso, frequentemente considerado como um servio pblico pelas
trabalhadoras domsticas que a ele se encaminham.
Retomando a reflexo sobre a origem desses sindicatos, as caractersticas sociolgicas de seus militantes e as modalidades de seu
funcionamento, compreenderemos melhor a especificidade do seu
trabalho e as dificuldades que tem de enfrentar.
2.1 A criao do sindicato dos trabalhadores domsticos
A Constituio de 1988 permitiu que os trabalhadores domsticos se
organizassem em sindicatos sem lhes exigir que comprovassem uma
representatividade mnima e que obtivessem autorizao especfica do
Ministrio do Trabalho. As associaes profissionais das trabalhadoras
domsticas, que haviam sido fundadas desde o incio da dcada de
1960, no seio da Juventude Operria Crist (JOC), se transformaram
em sindicatos em diversas Cidades: o sindicato do Rio foi fundado
nas ltimas semanas de 1988.
Essa capacidade da associao sindical de se constituir em sindicato
esboa o incio de uma nova fase da militncia das trabalhadoras domsticas brasileiras, dada a necessidade de se organizarem para dar
apoio a todas aquelas que procuravam o sindicato com o intuito de
verem respeitados os novos direitos promulgados pela Constituio.
Nada de menos evidente, pois, se por um lado houve o reconhecimento
jurdico dos trabalhadores domsticos como categoria profissional, por
outro, o engajamento militante no propiciou uma efetiva revoluo
na mudana das associaes em sindicatos. Ao inserir os sindicatos
de trabalhadores domsticos na categoria de atores jurdicos, a Constituio de 1988 lhes atribuiu a funo de prestadores de servios,
sem, no entanto, conceder-lhes instrumentos capazes de efetiv-los de
forma conveniente. Com isso, o STD se v sobrecarregado de trabalho
ao se responsabilizar pelos pleitos das requerentes e mal consegue levar a cabo campanhas informativas e executar programas de formao
profissional. Apesar disso, os sindicatos de trabalhadores domsticos
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3 Prova / Kthia /02/05/2011

no renunciaram ao objetivo de tornar o trabalho domstico uma profisso como as outras, regida por estatutos jurdicos equivalentes. Um
importante avano nessa direo aconteceu em 2000, com o advento
do fundo de garantia por tempo de servio opcional, que concede
ao empregador a possibilidade no a obrigao de integrar a sua
empregada domstica no FGTS e, com isso, por meio do recolhimento
da contribuio previdenciria equivalente, permitir que ela receba a
indenizao do fundo em caso de demisso.
2.2 Sindicalistas de um determinado perfil (ou de um perfil
particular ou especfico)
Nove mulheres se revezam no STD para garantir o atendimento ao
pblico, atender ao telefone, ajudar a duas assistentes sociais e a trs
advogados, administrar a entidade e represent-la em duas instncias.
As caractersticas sociolgicas das militantes se assemelham muito.
Todas tm mais de 50 anos e, com exceo de uma, nascida no sul
do Brasil, todas as demais so provenientes de zonas rurais ou de
pequenas cidades dos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais ou
da Regio Nordeste. Na sua maioria, comearam a trabalhar como
empregadas domsticas no incio da adolescncia. Quase todas passaram mais de duas ou trs dcadas servindo mesma famlia, embora
as estatsticas revelem um forte turnover (rotatividade) nesse tipo de
emprego. E, ainda que no estejam mais trabalhando com as mesmas
famlias, continuam mantendo um relacionamento que, segundo elas
prprias, marcado por mtua afetividade. Revela-se a um paradoxo.
Embora seja recomendado s trabalhadoras domsticas que evitem
o envolvimento emocional com seus empregadores, a relao que
mantm com seus patres ou ex-patres parece contradizer tal conselho. O engajamento dessas trabalhadoras domsticas na militncia
sindical certamente testemunho da capacidade delas de escaparem
da ascendncia psicolgica daqueles que as empregam. Em contrapartida, isso pode sugerir que foi a estabilidade e a qualidade da
relao de trabalho que lhes forneceu o equilbrio social e psicolgico
necessrio militncia. Todas, enfim, chegaram ao sindicalismo por
meio da participao em grupos ligados Igreja Catlica: as mais
velhas pelo vis da JOC, no incio dos anos 1960, e as mais jovens
frequentando a Pastoral da domstica que se rene nas igrejas do Rio.

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O perfil sociolgico de suas militantes contribui para o carter atpico desse sindicato no mbito dos sindicatos brasileiros. Ainda que
os estudos sobre os dirigentes sindicais no Brasil tenham acentuado
como uma marca do campo esse progressivo distanciamento dos dirigentes em relao ao seu ambiente original (AGIER; CASTRO, 1995;
BROCHIER, 2001), essas mulheres mantiveram-se em contato com o
emprego domstico. Das dez mulheres mais envolvidas na atividade
sindical, trs recebem aposentadoria aps terem sido trabalhadoras
domsticas durante mais de 30 anos, e as outras ou ainda prestam servios a uma famlia ou fazem faxina. Elas moram sempre em bairros
populares e nas favelas da Cidade. De fato, seus vencimentos no lhes
permitem pensar em adotar um modo de vida diferente daquele das
outras trabalhadoras domsticas. Seus empregadores pagam em geral
s um pouco melhor do que seus antigos patres e os extras recebidos
por planto no sindicato constituem apenas um mdico ganho complementar. Diferentemente tambm do que se observa na maioria dos
sindicatos profissionais brasileiros, no caso das trabalhadoras domsticas o engajamento sindical no lhes oferece nenhuma possibilidade de
ascenso social, embora modifique seu universo sciocultural, levando-as a participar de congressos e a se encontrarem com polticos eleitos,
com outros sindicalistas e com militantes feministas.
3 As dificuldades da assessoria jurdica
A pesquisa sobre o atendimento prestado nos guichs dos servios
pblicos revelou a ambivalncia dos agentes encarregados de atender
aos usurios (DUBOIS, 1999; SIBLOT, 2002; WELLER, 1999). A
relao desses funcionrios com o pblico pode ser tanto uma relao
de poder e de controle, quanto uma relao amistosa que garante a
socializao desses indivduos em uma situao precria (ou provisria). Se o STD no foi pensado como um servio pblico, o fato
que a maioria daqueles que o solicitam consideram-no como tal. Da
que se tem dois conjuntos de tenses que podem nos ensinar muitas
coisas sobre as relaes sociais no Brasil. O primeiro est ligado
posio ambgua do sindicato. Embora os sindicalistas considerem-no como uma entidade reivindicativa que visa profissionalizao
do emprego domstico, as trabalhadoras domsticas consideram-no
um espao administrativo e no o identificam como sendo o rgo

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representativo da categoria profissional. O segundo, mais complexo,


remete s situaes de copresena (ou reciprocidade) que ocorrem no
sindicato. A distino das relaes entre os sindicalistas, as requerentes e os empregadores revela representaes e estgios diferentes
da hierarquia, da igualdade e da semelhana.
3.1 Vinculaes com o emprego e com o direito em oposio
A maioria das trabalhadoras domsticas no conhece o STD quando o
procuram pela primeira vez. Embora algumas tenham ouvido falar do
sindicato por intermdio de um parente ou de uma vizinha, a maioria
encaminhada para l por um setor do Tribunal do Trabalho cuja
funo exatamente indicar ao sindicato da categoria profissional
aqueles que pretendem recorrer justia do trabalho. especialmente
por isso que o STD visto pelas trabalhadoras domsticas como um
servio pblico vinculado ao tribunal. Por mais que os sindicalistas
tentem sindicaliz-las, reiterando que o sindicato uma entidade de
luta cujo objetivo melhorar a condio das empregadas domsticas,
poucas so aquelas que o legitimam como se no fosse um rgo
da administrao pblica. Tudo o que aparece como inadequado
avaliado em relao ao mau funcionamento dos servios pblicos
em geral. A longa espera comparada quela verificada nas longas
filas dos hospitais pblicos. A impossibilidade para o STD de resolver dificuldades financeiras ou conflitos que no afetam ao direito
do trabalho vista da mesma forma aos olhos das requerentes, ou
seja, como fruto de descaso dos rgos pblicos com os pleitos dos
desfavorecidos. E as contribuies destinadas assistncia social e
assessoria jurdica muito raramente so entendidas como formas
legtimas de manter o sindicato. Na verdade, essa contribuio vista
como mais uma dentre tantas taxas que permitem o enriquecimento
indevido de uma minoria nas costas da classe trabalhadora.
Quando as requerentes descobrem que no podem pleitear na justia
aquilo que imaginam ter direito, a decepo enorme. Isto revela
vrias dimenses do vnculo das empregadas domsticas com a sua
instituio sindical. Em primeiro lugar, estas trabalhadoras no entendem que o STD tem como objetivo a sua autoorganizao. Isso
no chega a ser um fato surpreendente:na maior parte dos casos, os
sindicatos brasileiros, criados com base na hierarquia, e por muito
tempo sob a tutela do Ministrio do Trabalho, quase nunca fomentaram
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uma forte identificao entre os trabalhadores. Em segundo lugar,


as empregadas domsticas so incapazes de aceitar os limites que o
contexto jurdico impe ao do STD. Nesse aspecto, o caso no
exclusivo do Brasil. expressivo de todas as situaes onde existe
uma assimetria entre aquele que faz a queixa e aquele que a registra
(JOSEPH, 1998). um exemplo tpico de rejeio do conselho,
onde o querelante no pode obter daquele que o escuta a empatia
necessria sua satisfao (JEFFERSON; LEE, 1981). Por mais
benevolente que seja, a sindicalista responsvel pelo primeiro atendimento s pode considerar admissveis aquelas queixas pertinentes
ao direito social. Ora, quem formula a reclamao, na maioria das
vezes, ao se expressar, caracteriza como injustias determinadas
situaes decorrentes da relao de trabalho que o direito no abarca. Uma terceira dimenso da decepo que uma resposta negativa
suscita em um primeiro atendimento se deve ao fato de que as manifestaes das sindicalistas oscilam entre o registro do funcionrio
que examina de forma impessoal a adequao do pedido s regras do
direito, e um linguajar militante que acentua a identidade comum de
domstica tanto daquela que recebe a queixa quanto da que a formula.
A ltima dimenso deriva da anterior e reside no fato de que um
semelhante que julga a queixa denegada e, ao faz-lo, questiona a
si mesmo diante daquilo que prope a querelante. A indignao que
frequentemente toma conta das empregadas domsticas quando veem
seu pedido negado faz lembrar situaes de disputa entre vizinhas ou
entre mulheres de uma mesma famlia.
A diferena na relao com o direito e a maneira de conceber o servio
domstico o que estrutura os juzos de valor que as sindicalistas
fazem sobre as requerentes. Estas ltimas tendem a considerar que
trabalhar fora do contexto definido pela lei aceitvel, na medida
em que elas esto convencidas de que quando a relao de trabalho
no mais lhes satisfizer, recorrer ao Judicirio corrigir eventuais
transaes desfavorveis. Ora, mas so justamente esses tratos que
o STD denuncia o tempo todo como uma barreira juridicizao das
relaes entre empregadores e trabalhadores domsticos. Boa parte
das crticas imputadas s requerentes diz respeito ao fato de legitimarem condies de trabalho que violam o direito. As trabalhadoras
domsticas tentam, em vo, explicar que estavam em uma situao
financeira desesperadora na poca da admisso e que no tinham
outra escolha a no ser aceitar as condies impostas na esperana
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de uma renegociao posterior, mas as sindicalistas julgam que elas


cometem erros ao agirem assim.
Ser criticada por no ter conseguido impor ao seu empregador a
obedincia s normas jurdicas , com efeito, uma acusao de fraqueza psicolgica que no agrada s requerentes. As sindicalistas se
mostram bastante irritadas com as empregadas domsticas que, em
s conscincia, aceitam o descumprimento da Lei em nome de uma
pretensa amizade com a patroa. Atacar a ignorncia e a ingenuidade
das requerentes permite, ento, a essas militantes, reafirmar constantemente a unidade de seu pequeno grupo. Este discurso sobre o trabalho
domstico rompe radicalmente com as representaes dominantes
dessa atividade junto quelas que a exercem e aos que a empregam.
Ao mesmo tempo em que as requerentes s veem nessa profisso
uma ocupao reservada quelas cujo baixo nvel de qualificao
impede de ascender a empregos mais valorizados, elas a consideram
tambm como uma profisso que requer competncias e que lhes d
orgulho. Chegamos aqui a um discurso sobre si mesmo frequente nos
indivduos em situao de inferioridade que se tornaram militantes.12
3.2 Tenses entre hierarquia, igualdade e semelhana
Observar as interaes entre sindicalistas, requerentes e empregadores
nos espaos do STD revela problemas que se colocam na permuta
social devido ao apego a prerrogativas ligadas a formas de identificao. Na verdade, ou a discusso se limita a uma grande banalidade
pela preocupao das partes em manter um entendimento, ou torna-se
invivel devido ao fato de os atores em interao se reconhecerem
como desiguais, julgando-se uns superiores aos outros.
Tais tenses derivam primeiramente da incompreenso frequente entre
os sindicalistas e as jovens trabalhadoras domsticas. Os estmulos
das primeiras sindicalizao e previdncia suscitam, muitas vezes, a ironia das segundas, convencidas de que a vida lhes reserva
um destino melhor. Esta uma das maiores dificuldades enfrentadas
pelo sindicato no esforo de organizar as trabalhadoras domsticas.
As jovens trabalhadoras domsticas no escondem o desprezo pelas
mulheres que no souberam encontrar um homem para faz-las escapar condio de empregada domstica. evidente que este ideal
12

Gauljac (1996).

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feminino no compartilhado pelas sindicalistas, que se reconhecem


no modelo da mulher autnoma que sabe se opor e existir por sua
vontade prpria.
A presena de maridos acompanhando as requerentes tambm provoca, regularmente, tenses com as sindicalistas. Elas atribuem a
dificuldade dos homens das camadas populares de falar em p de
igualdade com uma mulher nesse ambiente ao fato de que muitos
dos que as acompanham acreditam no pleno funcionamento da Justia do Trabalho. Ao ouvi-los dando lies de direito s requerentes
que aguardam o atendimento, constata-se, contudo, que os mesmos
possuem parcos conhecimentos da matria. S tratam de pontos
especficos ou questes pontuais e nunca o processo entendido
em seu conjunto. Inspiram-se apenas em experincias pessoais, isto
, em aes que j propuseram em face de um empregador. Dessa
forma, quase todos desconhecem que o direito dos trabalhadores
domsticos difere daquele das outras categorias de trabalhadores e s
descobrem no STD que as trabalhadoras domsticas no tm direito
a uma indenizao pela perda de emprego calculada em funo do
nmero de anos trabalhados. Nem sempre as sindicalistas conseguem
convenc-los do problema e, quando conseguem, eles veem a uma
prova da incompetncia do sindicato que, segundo eles, no consegue
garantir os mesmos direitos de outras entidades de trabalhadores.
Porm, o que tende a endurecer o dilogo a vontade desses homens
de impor um discurso s sindicalistas. Em muitos casos, so eles
que tomam primeiro a palavra para explicar o conflito que conduziu
suas mulheres a ir buscar seus direitos, e durante todo o tempo as
mulheres ficam escutando e balanando a cabea em sinal de aprovao. raro que as sindicalistas no se irritem com esse discurso
marginalizado no qual a requerente relegada ao segundo plano pelo
homem que aproveita para indicar o que preciso fazer para resolver a questo. As sindicalistas reforam, ento, o papel de cada um
para retomar o controle da situao. Tal interferncia nem sempre
agrada ao acompanhante, e se alguns aquiescem resmungando, outros
ofendem a sindicalista. Trata-se, ento, para ambas as partes, de no
perder a pose. O acompanhante da trabalhadora domstica quer dar
prova de sua experincia e acusa a sindicalista de ser incompetente, acrescentando s vezes que ela foi comprada pelos patres.
A sindicalista lhe responde que ele no sabe de nada e que melhor
que fique de boca calada para que se encontre uma sada para o caso.
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Se a requerente no toma a iniciativa de mostrar a seu companheiro


que ele deve se calar, a tenso geralmente s vai acalmar com a sada
do casal ou com a interveno de outra sindicalista que venha dar
respaldo a sua colega, contrabalanando para convencer o homem
irritado a parar de argumentar.
As tenses nas interaes das sindicalistas e empregadores so de
outra ordem. exceo de um pequeno nmero que, por zelo de
legalidade, faz questo de proceder resciso do contrato de trabalho
perante um advogado, os empregadores s vm ao sindicato quando,
no tendo mais nenhum recurso para escapar ao processo, se resignam
a uma conciliao com uma antiga empregada. Porm, o atendimento
formal que lhes reservam as sindicalistas no tem nada a ver com a
polidez que uma empregada domstica deve mostrar no trato com
seus patres. Representa, por um lado, o tratamento das relaes de
atendimento em que prevalecem competncias civis. E, por outro, do
mesmo modo, refletem o cuidado das mulheres do sindicato em manter
uma igualdade fundamental no dilogo entre as duas partes, mesmo
num clima de certa tenso. Seja qual for o contedo da interlocuo,
so sempre relaes de igualdade que as sindicalistas estabelecem com
os empregadores que as convocam. Quando estes tentam impor sua
fala em nome de um conhecimento jurdico ou arguindo-as sobre sua
posio social, elas os colocam sutilmente em seu lugar, convidando-os a esperar sua vez ou a se submeter opinio dos advogados do
STD. uma situao pouco comum para indivduos que, no dia a dia,
tm por hbito se dirigir a mulheres subalternas ou em tom autoritrio
ou em tom paternalista. Eles ficam frequentemente desconcertados,
sem saber que papel representar quando essas mulheres, que tm os
traos das empregadas que lhes servem, lhes respondem calmamente,
porm com firmeza, olhando-os nos olhos.
As interaes entre empregadores e sindicalistas podem, entretanto,
dar origem a uma troca por meio da qual ambas as partes representam
um smbolo da igualdade e da similaridade. Quando os primeiros
manifestam imediatamente a inteno de respeitar o direito ao trmino da relao com a empregada domstica (demisso ou pedido de
afastamento), as sindicalistas os recebem como aliados de sua causa
e os consideram como bons patres. Isso as leva, s vezes, a manter
um dilogo em que todos consensualizam sobre a irresponsabilidade
das domsticas que no fazem o que previsto pelo direito social
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ou tm um comportamento que no corresponde concepo da


profisso de trabalhador domstico defendida pelo sindicato. Esse
, particularmente, o que ocorre quando as empregadas domsticas
pedem aos patres que no paguem as contribuies previdencirias
em troca de um aumento de salrio, ou quando no anunciam com
um ms de antecedncia a inteno de deixar o emprego. Essas interlocues descontradas so menos evidentes do que parecem ser de
primeira vista, pois nem as sindicalistas nem os empregadores esto
habituados a esse tipo de relacionamento. Cada um parece buscar
permanentemente a aceitao do outro e desfrutar de situao de
igualdade pouco frequente na vida social. Assim, a conversa nunca
vai alm de generalidades sobre a necessidade do sindicalismo, a
importncia do direito ou o triste destino de muitas empregadas domsticas. A fragilidade da situao parece impor a uns e outros que
se atenham ao acordo, sem dar sequncia ao dilogo que, se levado
mais adiante, poderia revelar diferenas e desfazer uma igualdade que
cada um sabe inexistir na essncia das relaes sociais.
4 Perante a justia do trabalho
A dificuldade de acesso justia para os indivduos mais pobres
tem sido amplamente registrada.13 A justia do trabalho brasileira
no escapa a esta constatao. Aqueles que temem seu empregador,
que se sentem impotentes perante o Poder Judicirio, aqueles que
no podem contratar um advogado, ou no tm tempo, no recorrem
muito justia e frequentemente renunciam aos seus direitos durante o
processo. A principal atividade do STD respaldar mulheres pobres e
vulnerveis nesses processos, que muitas temem. Quando, por ocasio
do primeiro atendimento, as sindicalistas acham que uma requerente
pode ajuizar ao contra seu empregador e hesitam sobre se devem
ou no dar prosseguimento ao pedido, elas as encaminham a uma
assistente social ou a um advogado do STD. Se inicia o recurso ao
direito propriamente dito. Trata-se, ento, para o sindicato, de fazer
com que o patro venha sua sede para proceder resciso do contrato
de trabalho, ou, se o caso considerado suficientemente importante,
ingressar com uma reclamao na Justia do Trabalho.14

13
14

Ver, principalmente, a smula reunida por Cappelletti; Garth (1978).


Sobre o procedimento diante da Justia do Trabalho, ver Martins (2001).

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4.1 Administrar a fragilidade das requerentes


Esse trabalho de assistncia jurdica torna-se difcil pela vulnerabilidade das requerentes, mulheres pobres para as quais uma ao
na justia representa uma via crucis. Para acessar ao direito, elas se
levantam de madrugada, fazem fila no tribunal do trabalho e, depois,
informadas da existncia do STD, vo at l e ficam horas num lugar sem conforto antes de serem atendidas pela assistente social ou
pelo advogado. A este desgaste fsico soma-se um custo financeiro.
Comprar vrias passagens de nibus representa uma quantia grande
para essas mulheres de poucos recursos. Alm disso, ir at o sindicato
significa, para algumas, perder um dia de trabalho e correr o risco
de chamar a ateno ou atrair a desconfiana do novo empregador,
que pode descobrir que sua empregada do tipo que falta ao trabalho
para entrar na justia contra seu antigo patro. Nesse sentido, no
surpreende que para muitas requerentes o primeiro contato com o
STD seja um momento aguardado com bastante angstia.
Aps o primeiro atendimento, uma assistente solicita que entrem.
Ela se informa sobre o caso da requerente lhe pedindo informaes
biogrficas, sua situao profissional, as razes pelas quais ela foi
demitida ou largou o trabalho, e se tem ou no registro na previdncia social. A assistente social pergunta em seguida se o empregador
lhe fez assinar algum documento. Com isso, ela procura evitar perda
de tempo com uma requerente que, por ter assinado, sem saber, um
recibo de resciso contratual, no poder entrar na justia contra seus
antigos patres. Ultrapassadas estas questes, as requerentes mostram
os documentos exigidos, comumente guardados religiosamente em
sacos de supermercados fechados com ns to apertados que s vezes
o saco precisa ser rasgado para que possam mostrar os documentos
assistente social. Este momento pattico em que a requerente deve
produzir a prova de sua identidade e fornecer uma base para a sua
reclamao ilustra a grande importncia que se atribui aos documentos
oficiais, em sua prpria definio. Ento, a assistente social verifica os
documentos um a um e calcula os perodos trabalhados, quando foram
registrados na carteira de trabalho, se as contribuies previdencirias
foram quitadas e quando o empregador devolveu os cupons dos carns
de pagamento sua empregada conforme a lei exige.

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Arenas Publicas.indb 408

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Os elementos de biografia trazidos pela requerente permitem


assistente social avaliar a veracidade de sua fala. De fato, acontece
de o caso levado ao sindicato ser mais confuso do que a empregada
contava s outras requerentes na sala de espera. Algumas no foram
demitidas como dizem, e sim largaram voluntariamente o trabalho
sem aviso prvio. Outras, ainda, aceitaram acordos verbais que dificultam o recurso ao direito.
No entanto, as diferentes formas de discurso (ateno ou injuno)
da assistente social nem sempre so suficientes para libertar a palavra. Algumas requerentes persistem e continuam contando a mesma
histria at que a assistente social encerre a entrevista. Poucas so
aquelas que voltam ao sindicato e, mesmo assim, no certo que no
renunciem ao judicirio, apesar de muitos advogados do Foro do Rio
de Janeiro aceitarem o patrocnio de casos duvidosos. Outras trabalhadoras domsticas comeam a falar aos borbotes ou ento com uma
fala entrecortada pelo choro. Acusadas de roubo ou de maus tratos,
elas costumam ser ameaadas de priso caso entrem na Justia. As
trabalhadoras domsticas mais jovens e as mais bonitas evocam ainda
os assdios sexuais do homem da casa. Dizem no ceder ao assdio e
por isso serem demitidas por uma bobagem qualquer ou ento pedirem demisso. Essas declaraes tm natureza de confisses e, nesse
sentido, libertam as trabalhadoras domsticas. Porm, as assistentes
sociais raramente as levam a srio, de tanto casos que acontecem em
que dvidas subsistem. As assistentes sociais sabem tambm que as
suspeitas de roubo e de maus tratos com crianas esto longe de serem
sempre infundadas, e sabem que algumas requerentes foram presas na
armadilha de jogos de seduo aceitos por elas durante muito tempo.
Na etapa seguinte, a assistente social procede ao clculo da quantia devida pelo empregador para encerrar legalmente a relao de trabalho,
independentemente de o patro ter reconhecido ou no o vnculo, por
meio da assinatura da carteira de trabalho. Ela datilografa o clculo
nos seus mnimos detalhes em um formulrio com o cabealho do
sindicato intitulado Informaes para a resciso de contrato de trabalho. Uma vez de posse desse documento, muitas requerentes no
mais voltaro ao sindicato STD. Obt-lo frequentemente o nico
objetivo da visita dessas trabalhadoras ao sindicato, seja porque o
empregador lhes pediu o clculo para fechar as contas, seja porque
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isto bastar para negociar com eles uma indenizao sem passar pelo
procedimento formal de resciso do contrato de trabalho.
4.2. Negociao, conciliao, impasse
A simples existncia do formulrio do STD leva, muitas vezes, os
empregadores recalcitrantes a negociarem, preferindo um acordo aos
aborrecimentos de um processo. A interveno pessoal da assistente
social tambm constitui, com frequncia, um elemento essencial na
deciso de um patro para acabar com o conflito indenizando sua
antiga empregada. Um simples telefonema pode bastar para convenc-lo a cumprir a lei.
Quando a assistente social no tem xito na sua tarefa, ela passa o
pleito da requerente a um dos advogados do STD. Se este considera
que a ameaa de uma ao na justia pode levar o empregador a
transigir ou que a opo pelo processo no segura, ele convoca
o empregador para ir ao sindicato proceder resciso do contrato
para pagar as verbas devidas. Quando isso no basta ou quando lhe
parece que o caso deve ser levado justia, o advogado apresenta
uma reclamao ao Tribunal do Trabalho, por meio da qual aponta
os aspectos jurdicos que foram desrespeitados pelo empregador,
pleiteando a respectiva indenizao, sem, no entanto, narrar os fatos
que ensejaram a resciso.
Os litgios administrados pelo sindicato entre trabalhadoras domsticas e empregadores s raramente se convertem em processo. Embora
cerca de 700 trabalhadoras solicitem, mensalmente, os servios do
STD, apenas em torno de 35 veem seu caso se resolver no tribunal. A
maioria dos empregadores prefere, na verdade, negociar a conciliao
com sua antiga empregada somente aps ter recebido a intimao
do sindicato para ir regularizar a sua situao jurdica ou aps tomar
cincia da reclamao na Justia.
Durante a tentativa de conciliao, o advogado do STD se esfora
para convencer as partes de que prefervel um entendimento a um
confronto diante de um juiz. Seu trabalho consiste em lev-los a
concesses mtuas, coisa que no nada fcil, j que cada um est
convicto do seu direito. Ele tenta persuadir a requerente dizendo-lhe
que, renunciando a uma parte do que lhe devido, ela receber mais
rapidamente aquilo a que tem direito e acabar com um caso que
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flagela sua vida. Ele convida da mesma forma o patro a considerar


que de seu interesse encerrar o conflito aceitando a conciliao e
pagando uma parte do que deveria ter sido pago. Nesses momentos, o
advogado explicita as vantagens e as desvantagens. No faz nenhum
mistrio de sua inteno de tentar obter o mximo para a requerente
se o caso for parar na justia, j que ela tambm sua cliente. Mas
lhe recorda, tambm, as garantias da homologao, um documento
jurdico que prova que o empregador regularizou e encerrou qualquer
possibilidade de ao na justia contra ele.
Entretanto, a conciliao se revela impossvel quando nenhuma das
partes aceita fazer concesses. Os motivos do trmino da relao de
trabalho, ocasionalmente, decorrem de tanto ressentimento que a
requerente assume que renunciar ao que lhe parece justo um ataque
ainda maior a sua dignidade. Por sua vez, alguns empregadores no
entendem que devam ceder quela que os leva ao sindicato. O orgulho
prevalece e a mediao fracassa. Muitos acordos esbarram no sentido
de justia de alguns empregadores que julgam ter demitido a empregada domstica por um bom motivo. E quando persiste o impasse, as
partes e o advogado se reveem perante o juiz no Tribunal do Trabalho.
guisa de concluso
A ampliao do acesso das trabalhadoras domsticas ao direito no
eliminou a explorao do trabalho, e seria ilusrio, de maneira geral,
imaginar que no Brasil, como em outros pases, o direito possa ser suficiente para eliminar o que Everett Hughes chama de o drama social
do trabalho. Mas, quer seus patres respeitem quer no respeitem o
direito, as trabalhadoras domsticas do Rio avaliam, doravante, suas
condies de emprego em relao s normas jurdicas. H 15 anos
vm crescendo o nmero de aes judiciais decorrentes de conflitos
de natureza trabalhista. Contrariamente ao que sustentam alguns analistas da justia do trabalho no Brasil, o direito no simplesmente
um elemento que permite a dominao patronal.15 Por mais complexas
que sejam essas aes, o direito oferece s trabalhadoras domsticas
um horizonte a partir do qual elas podem negociar suas condies de
trabalho e, caso elas se envolvam em um conflito, tenham a possi15

Sobre este efeito do direito social, remetemos Alain Supiot (2001, p.152), para quem [O
direito social (direito do trabalho e da previdncia social)] permanece igualmente inteligvel
para aqueles que se recusam a sair da anlise jurdica formal, assim como para aqueles que
se recusam a entrar nessa anlise e pretendem dissolv-lo na anlise socioeconmica.

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Arenas Publicas.indb 411

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

bilidade de se insurgirem contra o seu empregador. O sindicato dos


trabalhadores domsticos est no cerne desse processo. Sua ao
sugere que a implementao desse campo jurdico, em pouco tempo,
permitiu s mulheres que vivem de um emprego domstico pensarem
sobre novas e diferentes perspectivas de encararem o seu trabalho.
O direito no bastar, sem dvida, daqui para frente, para resolver
todos os problemas inerentes realizao do trabalho domstico.
Assim como o pensamento feminista do care no cansa de lembrar,
enquanto este trabalho no for socialmente valorizado e igualitariamente compartilhado entre os sexos, mais provvel que continue a
ser passivamente delegado, tanto nos pases nrdicos como nos do
Sul, s mulheres em situao de inferioridade econmica e social.16
Enquanto se espera, dever das sociedades que proclamam um ideal
democrtico levar a srio a questo do seu enquadramento jurdico
para melhorar as condies de trabalho daquelas que tiram da seus
meios de subsistncia.

REFERNCIAS
AGIER, M.; CASTRO, N. Projet ouvrier et destins personnels Bahia
(Brsil). In: CABANES, R.; COPANS, J.; SELIM, M. (Ed.). Salaris
et entreprises dans les pays du Sud: contribution une anthropologie
politique. Paris: Karthala-Orstom, 1995. p.153-182.
BARBOSA, F. C. Trabalho e residncia: estudo das ocupaes de
empregada domstica e emprego de edficio a partir de migrantes
nordestinos. Rio de Janeiro: EdUFF, 2000.
BROCHIER, C,. Les volutions du syndicalisme brsilien dans les
annes 1990: une tude de cas dans le btiment. Sociologie du Travail,
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CASTRO, M. G. Empregadas domsticas: a busca de uma identidade
de classe. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 123, p.49-58, 1989.
16

Ver a esse respeito Ehrenreich; Hochschild (2002).

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Arenas Publicas.indb 412

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

CHANEY, E. M.; CASTRO, M. G. (Ed.). Muchachas no more:


household workers in Latin America and the Carribean. Philadelphia:
Temple University Press, 1989.
DUBOIS, V. La vie au guichet: relation administrative et traitement
de la misre. Paris: Economica, 1999.
EHRENREICH, B.; HOCHSCHILD, A. R. (Ed.). Global woman: nannies, maids and sex workers in the new economy. London: Granta, 2002.
HONDAGNEU-SOTELO, P. Domstica: immigrant workers cleaning and caring in the shadows of affluence. Berkeley: University of
California Press, 2001.
FRAISSE, G. Femmes toutes mains: essai sur le service domestique.
Paris: Seuil, 1979.
GAULJAC, V. Les sources de la honte. Paris: Descle de Brouwer,
1996.
JEFFERSON, G.; LEE, J. The rejection of advice. Journal of Pragmatics, [S.l.], v. 5, p. 399-422, 1981.
JOSEPH, I. Erving Goffman et la microsociologie. Paris: PUF, 1998.
MARTIN-FUGIER, A. La place des bonnes: la domesticit fminine
Paris en 1900. Paris: Grasset, 1979.
MARTINS, S. P. Direito processual do trabalho: doutrina e prtica
forense; modelos de peties, recursos, sentenas e outros. So Paulo:
Atlas, 2001.
PALMER, P. Domesticity and dirt: housewives and domestic servants
in the United States, 1920-1945. Philadelphia: Temple University
Press, 1989.
PLISSE, J. A-t-on conscience du droit? Genses, Paris, v. 59, p.
114-130, juin. 2005.
SAINSAULIEU, R. Lidentit au travail. Paris: Presses de la FNSP,
1996.
SIBLOT, Y. Stigmatisation et intgration sociale au guichet dune
institution familire: e bureau de poste dun quartier populaire.
Socits Contemporaines, [S.l.], n. 47, p. 79-99, 2002.
SUPIOT, A. La fonction anthropologique du droit. Esprit, [S.l.], p.
151-173, fv. 2001.
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Arenas Publicas.indb 413

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

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des mtiers. Paris: PUF, 2002. (Le lien social). p. 77-98.
VIDAL, D. Les bonnes de Rio: emploi domestique et socit dmocratique au Brsil. Lille: Presses du Septentrion, 2007. (Le regard
sociologique)

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Arenas Publicas.indb 414

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O DIREITO AO LUGAR:
UMA TRAJETRIA
DOS PROCESSOS
DE MOBILIZAO E
CONSTITUIO DAS ARENAS
PBLICAS DO MUNICPIO
DE ITACAR (BA)
Patrcia de Arajo Brando Couto1

1 Do que pretendemos tratar


O municpio de Itacar, situado no litoral sul do estado da Bahia, possui
atualmente 20 mil habitantes dos quais 8 mil esto concentrados na
rea urbana. Antigo porto de comrcio de cacau, a cidade vive hoje do
turismo. De acordo com o Registro Civil de Pessoas Jurdicas do Municpio, at o ms de maro de 2006, 142 entidades associativas foram
registradas no cartrio local. Tamanha expressividade numrica gera
de imediato exclamaes e se estabelecida uma comparao entre seu
ndice populacional e associativo , curiosidades e indagaes quanto
aos usos e representaes desta forma de participao da sociedade civil.
Este artigo tem por objetivo apresentar uma anlise sinttica dos
acontecimentos centrais, motivaes e experincias2 que permitiram
1
2

Mestre e doutora em Antropologia (PPGA/UFF). Pesquisadora do LEMETRO/UFRJ.


Segundo Victor Turner, W. Dilthey, assim como J. Dewey, estabelecem uma mesma distino
entre o que consideram como mera experincia e uma experincia. A mera experincia
adquire sua forma por meio da conscincia como uma experincia individual no tempo
fluido. A segunda, na qual estamos particularmente interessados, refere-se a uma articulao

Arenas Publicas.indb 415

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

a configurao associativa atual do referido municpio. Nessa


perspectiva, tomo como referncia as principais situaes sociais3
que propiciaram os diferentes tipos de associativismo encontrados
nesta localidade, a saber: um conflito fundirio emblemtico que teve
seu incio nos anos 1980, questes ambientais emergentes no final
desta mesma dcada e o turismo, que na dcada de 1990 surge para
ressiginificar a histria municipal.
Os dados etnogrficos, histrias e memrias que sero apresentados,
foram coletados durante minha pesquisa de campo, entre 2002 e 2006
para a elaborao da tese O direito ao lugar: situaes processuais de
conflito na reconfigurao social e territorial do municpio de Itacar,
BA.4 Para que se entenda o contexto analisado, faz-se necessrio uma
breve introduo histria do lugar.
2 Um pouco do passado para compreender o presente
Os habitantes de Itacar costumam dividir a histria do municpio
em duas fases: antes e depois da construo da Estrada Parque
Itacar-Serra Grande que ocorreu entre 1996 e 1998. Antes, embora
relativamente isolado devido dificuldade de acesso terrestre, o
municpio destacou-se economicamente como importante produtor
de cacau, que escoava toda a produo5 do sul do estado da Bahia
atravs de seu porto natural, situado na foz do Rio de Contas, na
qual se desenvolveu a cidade de Itacar, atual sede do municpio.
Sua relevncia porturia para o escoamento do produto, deu-se principalmente entre o final do sculo XIX e o incio da dcada de 1920,
quando perdeu sua importncia regional, devido construo do
porto de Ilhus (1924-1925). At o final da dcada de 1960, o porto
de Itacar continuou a escoar a produo municipal e a embarcar

3
4

intersubjetiva da experincia, com comeo e fim, porm transformada em expresso. Assim,


pode ser definida como aquela que tem um processo estrutural, ou uma sequncia temporal,
constituda por intermdio de distintos estgios, onde cada um envolve um grande repertrio
de pensamentos, desejos, sentimentos e aes que se interpenetram em muitos nveis. Veja-se
Turner (1986, p.3).
Gluckman (1987).
Defendida em maro de 2007, pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense.
Segundo Falcon (1195), a cultura do cacau no sul da Bahia se desenvolveu em trs ciclos:
1746/1820 plantio e desbravamento da regio seguindo-se estagnao sem consequncias
1820/1895 reincio do plantio com as primeiras exportaes chegando a atingir 100 mil
sacos; 1895/1930 afirmao do cacau como base econmica da regio sul do estado.

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os passageiros que rumavam para Salvador, quando foi desativado


devido ao assoreamento crescente do Rio de Contas.
Seus segmentos sociais originais constituam-se de pescadores, ribeirinhos, pequenos produtores voltados para a agricultura de subsistncia
e grandes proprietrios rurais, vinculados economia cacaueira, que
vieram a falir na dcada de 1980 devido queda do produto no mercado internacional e subsequente incidncia da Vassoura de Bruxa,
uma praga que varreu as plantaes de cacau da regio. A partir de
ento, o municpio entrou em franca decadncia, acentuada por seu
difcil acesso e consequente isolamento.
A chamada crise do cacau no afetou somente o municpio, mas todo
o sul da Bahia. Os baixos preos ditados pelo mercado e a ausncia
de um fruto saudvel provocaram o endividamento dos fazendeiros
e o desemprego de grande parte dos trabalhadores rurais. A busca
por atividades econmicas alternativas estimulou a j expressiva
extrao de madeira da mata atlntica regional e a expanso da pecuria. O alto ndice de desemprego6 desencadeou simultaneamente
um grande xodo rural e o significativo aumento de reivindicaes
por Reforma Agrria.
Dentre as estratgias governamentais para reordenar a economia do
estado, foi criado no ano de 1991 o Plano de Desenvolvimento do Turismo da Bahia com a finalidade de reposicionar a indstria turstica
estadual no ranking nacional. Esse planejamento elaborou uma srie
de metas e redesenhou a geografia turstica do estado dividindo-o
em sete reas tomando como base futura e comum de sustentao
para os distintos eixos de desenvolvimento a estratgia poltica de
proteo ambiental vinculada ao turismo ecolgico.7 Como resultante
deste planejamento, em 1993, o Decreto 2.186, criou no municpio
de Itacar, polo de uma das sete reas a Costa do Cacau, rea de
Proteo Ambiental Itacar/Serra Grande8 cujo intuito era preservar as paisagens e belezas cnicas remanescentes de mata atlntica,
alm de incentivar o desenvolvimento sustentvel de seus recursos
naturais atravs do turismo.9
6

7
8
9

De acordo com Demeter (1996), 200 mil trabalhadores rurais desta rea ficaram
desempregados no perodo citado.
Gaudenzi (2004).
Vrias outras unidades de Conservao foram criadas no Estado da Bahia neste perodo.
Veja-se no site <www.itacare.com.br/itacare/apa/guia.php>.

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Com a criao do Prodetur NE I (Plano de Desenvolvimento do Turismo dos Estados do Nordeste) no ano de 1994, o estado da Bahia
conseguiu financiamento para seus projetos tursticos junto ao BID
Banco Interamericano de Desenvolvimento e, em 1996, foi iniciada a pavimentao da Estrada Parque Ilhus-Itacar.10 Em 1997,
comeou a ser implementado o Plano de Manejo da rea de Proteo
Ambiental Itacar-Serra Grande, que visava definir o zoneamento,11 a
utilizao da rea e os novos postulados ambientais a serem seguidos.
O estabelecimento de restries ao uso e ocupao da regio gerou
uma srie de conflitos entre a populao tradicional12 local, os novos
moradores atrados pela possvel expanso da economia turstica e
aqueles que determinavam os instrumentos de controle ambiental.
Para ampliar a complexidade do quadro, a estrada concluda em
1998 e o turismo surgem como fatores irreversveis de mudana.
Implementada com finalidades a priori econmicas, a estrada
rapidamente atingiu seu objetivo, pois se antes Itacar era frequentada
somente por veranistas baianos, viajantes alternativos e surfistas
em busca de parasos naturais e ondas perfeitas que enfrentavam as
difceis condies de acesso terrestre para usufruir das belas paisagens
do municpio, a partir de ento, esta localidade tornou-se acessvel
nacional e internacionalmente. A facilidade de acesso, alm de
possibilitar a presena de fluxos populacionais sazonais, acarretou uma
onda migratria em direo regio, tanto por parte das populaes
circunvizinhas em busca de novas oportunidades econmicas, quanto
por parte de pequenos empresrios e grandes especuladores imobilirios
vindos da regio sudeste, posteriormente seguidos pelo empresariado
internacional. Alm disso, trs assentamentos rurais foram efetivados
na regio entre meados da dcada de 1980 e incio da dcada de 1990.
Como podemos observar, tratava-se de uma configurao social,
econmica, ambiental e espacial bem mais complexa se comparada
ao perodo anterior construo da estrada, quando o municpio se
encontrava em relativo isolamento. Nas palavras de Vogel e Mello,13
isto o que poderamos denominar como uma mudana social
10

11

12
13

A nova estrada recebeu esse nome porque foi a primeira rodovia brasileira a contar com
monitoramento ambiental em toda a sua fase de obras.
De acordo com este Plano de Manejo (1998), a APA Itacar Serra Grande ficou dividida em
17 Zonas com diretrizes e planejamento.
Little (2002).
Vogel; Mello (1989, p.3-25).

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dirigida, ou seja, mudanas provenientes de polticas pblicas ou


aes de carter governamental, por vezes vinculadas a intervenes
internacionais, que pretendem multiplicar determinados padres
de desenvolvimento, fundamentados em princpios transculturais
de uma racionalidade neutra sem, no entanto, levar em conta as
configuraes culturais locais.
3Entendendo a ordem dos acontecimentos locais
Ao observarmos o grfico apresentado, constatamos que o associativismo
local tem como marco inicial o ano de 1970.14 Naquela dcada, somente
trs entidades associativas so fundadas (at 1973), para, posteriormente,
estabelecer-se um grande hiato temporal at 1986. A partir de ento,
num crescente, sero registradas 14 entidades associativas at o final
da dcada de 1980, 52 na dcada de 1990, e de 2000 em diante 73
entidades, at a ltima checagem realizada em maro de 2006. Tais
entidades associativas iriam se perfilar de diferentes formas ao longo
das referidas dcadas, gerando tipos de associativismo distintos.
Grafico

Constam dos registros da dcada de 1970, a fundao do Clube de


Mes Dr. Jos da Cruz, a Associao de Proteo Maternidade e
14

Esta pesquisa foi estruturada a partir dos registros das entidades associativas encontradas
no cartrio local.

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Infncia e a Colnia de Pescadores Z18. As duas primeiras entidades


associativas esto diretamente vinculadas, pois foram criadas por um
grupo de senhoras pertencentes chamada elite do lugar, que se
reuniram com o propsito de encontrar solues possveis para as
questes emergenciais de sade no municpio. Num trabalho consecutivo ambas atingiram seus objetivos, angariando fundos junto aos
grandes produtores de cacau da regio para a construo da primeira
maternidade de Itacar, que durante um longo perodo foi o nico
centro de atendimento na rea de sade no municpio. A Z18, por
sua vez, constituiu-se como uma colnia de pescadores artesanais,
importante segmento da populao tradicional local, embora sua
criao, segundo a narrativa dos prprios pescadores, seja decorrente
de um decreto governamental.
Essas entidades associativas fundadas na dcada de 1970 so, portanto, decorrentes de aes verticalizadas: as duas primeiras apontam
para uma mobilizao setorizada do segmento social dominante da
sociedade civil local, que se une com o propsito de adquirir recursos
para estruturar um bem pblico, vital para a localidade como um todo,
ao passo que a fundao da Colnia Z18, no indica a mobilizao dos
pescadores para sua criao e nos remete implementao de projetos
da poltica federal.15 Essas associaes tm fins direcionados para
questes especficas, circunscritas a um determinado raio de ao que
no provocam novos desdobramentos e mobilizaes. Como estamos
tratando de um perodo de grande represso poltica a ditadura que
se instalou no pas entre os anos 1964 e 1985 no podemos esquecer a dificuldade de articulao poltica da sociedade civil quando a
questo girava em torno de interesses pblicos ou comuns.16
A partir de 1986, o pas entra em franco processo de redemocratizao, estabelecendo um marco divisrio de mudana no que se refere
15

16

Sobre a atividade pesqueira e sua relao com as polticas pblicas ver Mello; Vogel (2004);
Silva (1998).
As observaes de Tocqueville quanto s situaes que possibilitam a articulao da sociedade
civil parecem bastante pertinentes para o referido contexto: Quando os cidados s se
podem associar em certos casos, encaram a associao como um processo raro e singular
e quase no se deixam pensar nela, uma vez que difcil distinguir aquilo que proibido
daquilo que permitido. Assim, [...] na dvida abstm-se de todas e se estabelece uma
espcie de opinio pblica que tende a fazer considerar uma associao qualquer como uma
empresa ousada e quase ilcita pois, temem pagar caro por ela. Penso que as observaes
de Tocqueville (1998, p.398), podem ser teis para nos ajudar a pensar o Brasil dos anos de
1970 e princpio dos anos de 1980.

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Arenas Publicas.indb 420

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

possibilidade de participao da sociedade civil junto ao Estado.


claro que esta mudana global na macroesfera nacional incide,
mesmo que indiretamente, nas microesferas locais, pois o que est
em pauta o processo de reorganizao poltica do pas. Trata-se de
um fato histrico, cuja ordem de grandeza cvica17 redimensiona
atitudes, comportamentos e procedimentos em todas as direes.
Sem perdermos a dimenso desta ordem de grandeza que interage
com os menores contextos da realidade nacional, interessa-nos fechar
o foco para iluminar os pequenos acontecimentos do municpio de
Itacar no incio dos anos 1980 e entender os motivos particulares de
sua ascendncia associativa.
4 Anos 1980: novos atores e novas questes sociais
Embora relativamente isolada, devido ao difcil acesso terrestre, Itacar j se habituara a receber como veranistas, gente rica de Vitria
da Conquista, Jequi, Itabuna e imediaes, que nos perodos ureos
do cacau, durante a alta estao, ocupavam seus grandes casares,
estarrecendo a pequenina cidade com hbitos refinados e caros.
Mas nem s os veranistas conheciam Itacar. procura de ondas
perfeitas, os surfistas comearam a baixar nessas paragens durante
a dcada de 1970. Como ondas, eles iam e vinham atrados pelas
grandes mars das estaes chuvosas, desaparecendo na estiagem
do fim do inverno. De acordo com os relatos locais, grande parte
dos veranistas e surfistas que visitavam a regio sazonalmente, permanecem numa condio praticamente marginal no que se refere
interao social com os habitantes do lugar. Com exceo de alguns
poucos surfistas que j na dcada de 1970 fixaram-se na regio, foi
somente no incio da dcada de 1980 que outros jovens comearam
a chegar para ficar. Dessa vez, as idlicas paisagens do lugar atraram
outro tipo de estrangeiro18 disposto a interagir com os moradores:
os adeptos da vida alternativa.
A palavra alternativo(a) pode estar orientada para mltiplas direes
por servir a um vasto campo semntico, mas, neste caso, nos referimos
aos grupos ou indivduos que por novas combinaes das dcadas
mais recentes, assumiram a condio de herdeiros da contracultura
17
18

Boltanski; Thvenot (1991).


Simmel (1983).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

dos anos 1960. Contra o racionalismo decorrente da tecnocracia,


fundamentada na objetividade cientfica,19 os partidrios desse
movimento preconizavam o reencantamento do mundo atravs da
irrupo de irracionalidades temporariamente domesticadas pela
modernidade.20 Ao contestar os dolos da modernidade, tinham entre
seus propsitos retorno natureza, valorizao do corpo fsico atravs
da alimentao natural, explorao dos modos de conscincia no
intelectiva, desapego material, arte como forma de transcendncia
e humanizao, transformao do comportamento social e vida em
comunidade.21
E foi com o propsito de fundar uma comunidade alternativa que
alguns desses jovens se instalaram na cidade de Itacar no incio da
dcada de 1980. Ainda que a to sonhada comunidade alternativa
no tenha vingado, a communitas,22 acabaria por se esboar de um
modo completamente inusitado, quero dizer, a partir de um conflito
fundirio entre posseiros e proprietrios da fazenda Estrela do Mar.23
4.1 A contenda e suas consequncias
Em seu longo perodo de ascendncia econmica, a cultura do cacau
foi desenvolvida nas grandes propriedades da rea interiorana do
municpio. Seu extenso litoral, embora fatiado em propriedades pelas
famlias importantes do lugar, por ser considerado desprezvel para o
cultivo do cacau, ficou aos cuidados ou foi ocupado por pescadores
e agricultores da regio. Durante os anos 1950, algumas empresas
madeireiras adquiriram terras ao longo de suas encostas e passaram
a explorar o vasto potencial da Mata Atlntica municipal.
De acordo com sua cadeia sucessiva de posses, s no incio dos anos
1970 a fazenda Estrela do Mar teve seus 262 hectares titulados no
cartrio local que, fronteirios s regies limtrofes do ento pequeno
vilarejo de Itacar, englobavam 5 dos 30km de litoral do municpio.
Entre 1950 e 1960, pertenceu sucessivamente a duas empresas madeireiras que para a atividade extrativista empregaram algumas famlias de
pescadores e agricultores que ali tambm desenvolviam seus cultivos de
19
20
21
22
23

Roszak (1972).
Albuquerque (2001, p. 4).
Ibidem.
Turner (1974).
Nome fictcio.

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Arenas Publicas.indb 422

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

subsistncia. Finda a explorao da madeira, os ditos proprietrios no


utilizaram as terras para qualquer outra atividade deixando a extensa
rea em relativo abandono. Em meados de 1960, a fazenda vendida e
registrada por seus novos proprietrios no incio dos anos 1970. Aps
sua titulao revendida para uma empresa turstica e imobiliria da
cidade de So Salvador que pretende desenvolver na extensa rea um
projeto de loteamento e empreendimento turstico.
Sem qualquer notificao sobre as transaes comerciais realizadas,
as famlias anteriormente empregadas na atividade extrativista permanecem nas terras da fazenda, mantendo suas residncias e plantaes.
No tm qualquer contato com os proprietrios que, por sua vez, s
reivindicaro a propriedade das terras em meados dos anos 1980,
quando passam a exigir que as famlias residentes se retirem da rea.
Por no reconhecerem a legitimidade das posses e direitos fundirios
dos trabalhadores rurais e pescadores residentes na fazenda que em
muitos casos j excediam o prazo legal para usucapio24 os proprietrios se recusam a indeniz-los. Este procedimento inaugura um
drama social,25 expressivo da clivagem de interesses decorrentes
de uma infrao moral e consuetudinria para os posseiros, e legal,
no sentido do direito positivo para os proprietrios.
A histria dessa fazenda poderia terminar como muitas outras que se
entrelaam problemtica estrutura fundiria do pas, com a vitria
daqueles que se intitulam proprietrios e a derrota dos posseiros que por
geraes ocuparam de fato a rea. Todavia, o autoritarismo explcito nas
sucessivas aes coercitivas dos proprietrios, desperta a indignao
dos novos moradores para lembrar, alguns surfistas e alternativos ,
recentemente aportados no idlico lugarejo, que numa ao coordenada
se organizaro em solidariedade aos posseiros dessa fazenda.
Segundo os relatos dos colaboradores desta pesquisa, em princpio
o pequeno grupo, num gesto solidrio e espontneo, ocupa desordenadamente as terras inativas da fazenda como forma de se agregar e
ampliar o nmero de posseiros ali fixados. Como tambm so rechaados pelos empregados dos proprietrios partem para a elaborao de
estratgias mais eficazes e iniciam uma investigao no cartrio local
24

25

De acordo com o Cdigo Civil Brasileiro o direito de usocapio pertinente queles que
ultrapassarem 10 anos de posse presente e 15 anos de posse aos ausentes. (NEGRO;
GOUVEIA, 2006, p.271-275)
Turner (1982).

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Arenas Publicas.indb 423

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

sobre a legalidade das terras tituladas no municpio. Neste inventrio,


descobrem uma srie de fraudes na titulao de algumas propriedades,
seja porque fossem terras devolutas, seja porque seus ttulos haviam
caducado e seus proprietrios se encontrassem em situao deficitria
junto ao Instituto Nacional de Reforma Agrria (INCRA).
Munidos de informaes cartoriais precisas, os novos moradores incentivam os antigos posseiros da fazenda Estrela do Mar a permanecerem
na rea em que tambm iro se fixar, formando pequenos ncleos de
resistncia. Alm disso, ao disponibilizarem as informaes vasculhadas e fomentarem um processo concomitante de ocupao de terras
improdutivas do municpio, encontram novos aliados para a questo
fundiria local: os trabalhadores rurais demitidos das fazendas de cacau
de regies vizinhas, que desde o incio dos anos 1980 chegam regio
em busca de terra e trabalho. Trabalhadores rurais, surfistas, alternativos
e posseiros locais ao estabelecem esta curiosa aliana por um interesse
comum, iro formar um tipo de pblico26 heterogneo que posteriormente se desdobrar em vrios pblicos, mas que inicialmente unidos
daro vida e forma s aes coletivas que acontecero no municpio.
Os embates entre posseiros e proprietrios da fazenda Estrela do
Mar se tornam acirrados. Outros habitantes, no diretamente vinculados ao conflito e que inicialmente condenavam a rebeldia dos
estrangeiros alternativos, comeam, ento, a perceber a gravidade
da situao, posto que a rea pleiteada pelos proprietrios tambm
no pertencentes localidade demasiado extensa: avana sobre os
limites da cidade impedindo quase por completo sua possibilidade de
expanso. Este motivo, adicionado s intimidaes constantemente
sofridas pelos posseiros e presenciadas pelos moradores, faz com que
o conflito, ao se tornar pblico, ganhe novos adeptos para a causa.
Com o propsito de dar visibilidade ao conflito at ento regulado
pelas oligarquias locais, em 1986 os novos aliados conseguem apoio
na cmara municipal para criarem a Fundao para Desenvolvimento
da Criana (FUNDESC). Ao contrrio do que seu nome possa sugerir,
esta fundao tinha o propsito de ser uma espcie de instituio
guarda-chuva que articulasse estratgias para viabilizar a resistn26

De acordo com a concepo de John Dewey, 1991, p.137, o pblico se constitui a partir
de [...] um corpo de pessoas que possuem um interesse comum nas consequncias das
transaes sociais. Existem muitos pblicos, pblicos muito dispersos e difusos e tambm
intrincados em sua composio[...].

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Arenas Publicas.indb 424

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

cia dos posseiros da fazenda Estrela do Mar. Como a fundao est


institucionalmente legitimada perante o poder pblico do municpio,
ela pode assumir publicamente projetos, congregar os diferentes interesses e divulg-los, bem como denunciar os atos ilcitos de carter
municipal junto s instituies estaduais, promovendo inclusive a
visibilidade dos conflitos locais.
Dentre os principais projetos elaborados pela FUNDESC para legitimar
a posse dos antigos e novos posseiros da rea disputada, destacam-se:
a ideia da criao de um bairro alternativo e um Cinturo Verde
de Abastecimento para a cidade, onde ficava previsto a diviso em
lotes de 5ha para cada famlia residente na rea comunitria. Para
publicizarem27 o problema nos canais miditicos exteriores ao
municpio, realizam a I Semana de Proteo Ambiental de Itacar, que
ter grande repercusso. Indito na histria do municpio e convergente
com o debate ambiental ento emergente no pas, este evento se torna
um marco na formao do espao pblico local. Por intermdio de
debates, shows e demais atividades organizadas, possibilita uma
reflexo sobre o futuro do lugar, ao fomentar discusses em torno de
seu conflito central que polariza a populao tradicional local e um
projeto turstico para a localidade. Tamanha mobilizao em torno de
sentimentos coletivos de injustia28 conquista a adeso de gente de
fora, ou seja, de novos atores sociais que, ao participarem da realizao
do evento, se solidarizam com a causa e passam a contribuir com o
insurgente movimento de resistncia.
Determinadas situaes sociais podem provocar crises de tal modo
profundas que criam uma ciso simblica entre o antes e o depois:
seus significados possibilitam vir tona a conscincia coletiva, que se
manifesta por meio da elaborao de um vocabulrio de motivos29
que permite o estabelecimento de novas convenes sociais. Em tais
crises, os indivduos podem, mediante experincias singulares, virem a
assumir suas capacidades pessoais enquanto formadores de um corpo
poltico e transgredirem os cdigos impostos, j estruturados como
valores dominantes. Nesse sentido,veremos surgir na pequena cidade
de Itacar um espao pblico, antes praticamente inexistente, silencioso ou amorfo, no qual diversas arenas pblicas30 se organizam
27
28
29
30

Cefa; Pasquier (2003).


Honneth (2003, p 261).
Mills (1940).
Daniel Cefai (2003, p.60-62) define uma arena pblica como [...] um patchwork de maneiras

425

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

a partir de aes coletivas para administrar a indignao, a revolta, o


abandono e o esquecimento, detonados por uma situao especfica.
4.2 A produo de um mundo potencialmente cvico
Em De la Justification,31 Luc Boltanski e Laurent Thevenot se propem a elaborar um quadro analtico dos modos de justificao que
podem ser identificados nas situaes que desencadeiam sentimentos
de injustia entre atores sociais que apresentam exigncias morais
distintas. Em torno dessas exigncias se constroem comportamentos
e argumentos que variam conforme o princpio superior comum dos
atores envolvidos e que s aparecem pragmaticamente nos processos
de interao relativos s situaes de confronto. Interessa-nos, em
particular, trs formas de justificao identificadas pelos referidos
autores porque entendemos que traduzem a equao sociopoltica que
comea a ser produzida no municpio de Itacar naquele momento.
Referimo-nos aos princpios superiores comuns do mundo domstico, mundo da inspirao e mundo cvico.
No mundo domstico regem os princpios de subordinao s
cadeias hierrquicas de dependncias pessoais, onde os sujeitos so
qualificados segundo a rede de relaes que possuem. Esse mundo
pode ser considerado como anlogo aos cdigos impostos pelas
oligarquias do municpio que se mantm inquestionveis em seus
postos at o surgimento desse drama social. J o mundo da inspirao regido por princpios superiores que desprezam as situaes
formais e o mundo domstico da tradio. Pouco estvel, privilegia
a singularidade adquirida por meio das experincias como aes
transformadoras. O caminho inventado porque segui-lo encontrar
a prpria voz. No seria demasiado situarmos os jovens alternativos
que ancoraram seus barcos existenciais na idlica Itacar dos anos
1980 no mundo da inspirao.
Todavia tais mundos no existem de forma isolada. S adquirem potncia concreta nos processos de confronto. A crise detonada pelo conflito
da fazenda Estrela do Mar veio a modificar por completo a relao
entre estrangeiros alternativos aqui identificados como inspirados e
posseiros, compreendidos como domsticos de pequena grandeza na
31

de julgar, de crer e de existir que se expressam atravs de experimentaes engajadas em


torno da coisa pblica.
Boltanski; Thvenot (1991, p. 201-238).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

escala hierrquica do mundo domstico municipal. Poderamos, ento,


pensar numa espcie de equao, na qual as tenses no campo de foras
entre o mundo domstico e o mundo da inspirao produziram
como resultado princpios superiores comuns de um mundo cvico.
Em oposio singularidade buscada pelo mundo da inspirao, o
mundo cvico privilegia como princpio superior comum as aspiraes coletivas em detrimento das aspiraes individuais, valoriza a
legalidade e os laos de dependncia do mundo domstico so desprezados. Suprimir as particularidades e estabelecer a vontade geral faz
parte de sua ordem de grandeza. A democracia sua forma genuna
de expresso poltica, uma vez que a manifestao da vontade geral
constitui o modelo de disputa do mundo cvico.
Na situao referida, constatamos que o acolhimento s causas coletivas em detrimento das buscas pessoais, as aes que em princpio
deram um toque de anarquia constituio desse processo de mobilizao, s sucessivas formas de desrespeito por parte dos proprietrios
em relao aos posseiros, aliado ausncia de um poder pblico que
mediasse a crise, levaram a extensa rede social que se articulou em
torno da causa, a se organizar potencialmente segundo os princpios
do mundo cvico. Em outras palavras, o coletivo ganha novo sentido
poltico e a aspirao comum comea a se concretizar no espao
pblico por meio das mobilizaes coletivas.
Frente ampla pede passagem
De 1986 em diante, as estratgias de aes coletivas da sociedade
civil municipal se articulam num movimento crescente com os atores
do movimento percebem que, para tornar legtimas suas reivindicaes, precisam se organizar publicamente e ganhar espao no terreno
poltico local at ento dominado pelas oligarquias do cacau. Assim,
entre 1987 e 1989, 13 entidades associativas so criadas por diferentes segmentos sociais com o propsito de organizar seus interesses.
Sem perder de vista a causa que lhes une as diferentes frentes de
atuao organizadas pela aliana estruturada a partir do conflito
da fazenda Estrela do Mar vo-se articulando em rede e ganhando
o apoio dos segmentos populares para um projeto comum: a eleio
do prefeito Edmundo.32
32

Nome fictcio.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Trata-se da escolha, pela populao, de um chefe poltico que em


vrios momentos anteriores eleio de 1987 teve um importante
papel na mediao desse conflito, enquanto advogado dos posseiros
da fazenda Estrela do Mar. A eleio de Edmundo foi um marco
diferencial na histria poltica do municpio, que sempre fora comandado pelos mdicos e advogados das tradicionais famlias locais.
J na condio de prefeito agilizou algumas questes essenciais da
contenda a exemplo da emisso de alvars para barraqueiros de praia
que haviam ocupado uma rea litornea situada nas imediaes da
cidade e pleiteada pelos proprietrios da fazenda.
Porm, a grande vitria do novo poder pblico institudo foi a criao do bairro da Pituba, nome pelo qual ficou conhecido o bairro
alternativo, situado numa rea de conflito contgua cidade. A
consolidao do bairro alternativo de perfil popular, se deu por
um acordo entre o prefeito e os posseiros, que abriram mo de parte
de suas terras, desde que os terrenos demarcados fossem distribudos entre a parcela desprivilegiada da populao. Em contrapartida,
a prefeitura forneceria os alvars e os tijolos para a construo das
casas. A ao foi realizada e concretizou-se a situao do novo bairro
que quase 20 anos depois ainda guarda em seu perfil a miscigenao
original entre pescadores, surfistas, alternativos e antigos agricultores.
Os dois anos de gesto do prefeito Edmundo foram bastante expressivos da vontade poltica que entusiasticamente crescia em sintonia
com os acordes de redemocratizao do pas. Em pouco tempo de
atuao, diferentes segmentos da populao ganharam espao e reconhecimento perante o poder pblico recentemente institudo, que,
por sua vez, procurou viabilizar os diferentes interesses comuns.
Em termos concretos constatamos: foi nesse perodo que se criou o
maior nmero de entidades associativas voltadas para a promoo
do bem pblico.33

33

Para se ter uma ideia foi criada uma feira semanal com o propsito de se reunir e comercializar
a produo dos pequenos produtores do municpio; a Comisso Interisntitucional de Sade,
para atender as reas mais distantes e carentes da regio; uma secretaria de Reforma
Agrria, para inventariar e redistribuir as terras improdutivas do municpio; os sindicatos
dos trabalhadores rurais e dos professores foram reativados; projetos vinculados expanso
urbana estimularam a criao de associaes de moradores com o propsito de reconhecer
e ordenar o crescimento da cidade de Itacar e instituiu-se uma Cooperativa de Pesca com
o intuito de organizar essa atividade no municpio.

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Arenas Publicas.indb 428

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Entretanto, se a consolidao de diversos projetos enaltecia o


reconhecimento da cidadania e da fora poltica das camadas desprivilegiadas, tais aes comearam a incomodar profundamente
a oligarquia local, preocupada com as consequncias do exerccio
democrtico propiciado pela aliana entre posseiros, alternativos e
um poltico progressista reconhecido publicamente como chefe local.
Os obstculos comearam a aparecer e artimanhas polticas foram
engendradas para estancar o movimento cvico que se alastrava pelo
municpio. O golpe certeiro foi a cassao de Edmundo, destitudo
do cargo de prefeito no final de 1989.
5Movimento ecolgico boto negro:
uma nova moldura para as lutas polticas municipais
Os anos 1990 comearam de forma conturbada na pequena localidade de Itacar no qual parte da populao assistia decepcionada ao
processo de cassao do prefeito, responsabilizado por fraudes nas
contas pblicas. Consequentemente, o processo de diluio da fora
poltica opositora oligarquia local abriu novas brechas para novas
represlias s vitrias anteriormente alcanadas pelos posseiros que,
poca, estavam em pleno processo de consolidao da ocupao do
bairro alternativo da Pituba. Como no podiam destruir as casas de
alvenaria j construdas, os empregados da fazenda, em espordicas
investidas, surpreendiam as famlias de posseiros, tratando de dar
cabo das casas de taipa e plantaes, cujas evidncias da condio
de posse eram menos sensveis prova jurdica.
Atordoados com o enfraquecimento do movimento que alm de
tudo ficou fragilizado com a partida de um dos principais mentores
da FUNDESC , alguns posseiros, sentindo-se acuados, comeavam
a desistir do enfrentamento, pois, muito embora a criao do bairro
representasse uma grande vitria, para muitas famlias a luta pela
posse das terras estava longe de encontrar soluo jurdica.34 Diante do
quadro observado era preciso que novas lideranas se organizassem,
sendo assumidas por outros atores que tambm protagonizaram as
aes coletivas anteriores.

34

Desde 1986 uma ao coletiva estava sendo movida pelos posseiros contra os proprietrios
da fazenda.

429

Arenas Publicas.indb 429

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Foi mantida, assim, a lgica da legitimidade das representaes associativas enfatizada pela Constituio de 1988, e efetivada durante
os dois anos de gesto do prefeito Edmundo. Como a Associao dos
Moradores do Bairro da Pituba teve seu registro negado no cartrio da
cidade, que se recusava a reconhecer a legitimidade da ocupao, era
preciso outra moldura que reunisse os principais interesses e buscasse
novas estratgias de aglutinao e mobilizao. Foi por esse motivo,
que o Movimento Ecolgico de Resistncia Boto Negro, registrado no
ano de 1990 como Movimento Ecolgico Boto Negro por exigncia
do cartrio que se recusou a incluir o termo resistncia saiu de sua
condio existencial perifrica para reunir em sua bandeira ambiental,
diversos interesses comuns e assumir a posio de protagonista das
aes coletivas municipais.
Esse movimento iniciou sua atuao em abril de 1987 e teve como
fato fundador um desastre ambiental de grandes propores ocorrido na praia do Piracanga, situada na rea norte do municpio. Nessa
ocasio, durante uma semana, centenas de cetceos, posteriormente
identificados como Botos Negros, numa espcie de suicdio coletivo
conforme o interpretado pela populao dirigiam-se praia para
morrer. Consternada, a populao se mobilizou para ajudar os pescadores, que tentaram interferir no obstinado suicdio dos cetceos,
devolvendo-os ao mar exaustivamente, no entanto, foi intil a tentativa
diante da morte anunciada. A longa durao do fenmeno despertou
o interesse de experts que se dirigiram ao local para tentar identificar
a causa mortis dos cetceos enquanto a mdia tratou de divulg-lo,
transformando-o num acontecimento nacional. Findo o desastre, restou
populao a consternao e a perplexidade de um fenmeno inquietante jamais visto na localidade. A partir dessa experincia comum do
mundo sensvel, o referido acontecimento percebido como um sinal
de alerta pelos membros do futuro grupo, que encarnam o luto dos
botos, transformando-os em totem de um movimento de resistncia.35

35

Segundo Chateauraynaud e Torny (1999, p.9-38), situaes de risco ou anncios de perigos


eminentes, para alm de mobilizarem tcnicos, experts e dispositivos de controle do Estado,
tm a capacidade de produzir reflexo e atitude em qualquer dos atores envolvidos e inseridos
no tecido social ordinrio. Qualquer pessoa que presencie uma catstrofe ou fenmeno
inquietante, mesmo que no necessariamente equipada para qualific-lo, tm suas percepes
sensoriais acionadas posto que as sensaes funcionam como o primeiro sinal de alarme
para o devir.

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Arenas Publicas.indb 430

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Se seus membros, com iderios alternativos, j estavam envolvidos


nos conflitos fundirios locais, esse novo fator incorporado como
aprendizado e os mobiliza como lanadores de alerta, uma vez que
a vigilncia ambiental adicionada ao repertrio do ncleo que se
formara em torno do drama social da fazenda Estrela do Mar. Conforme observaremos no curso dos acontecimentos, no que concerne s
questes ambientais, ser a lgica da vigilncia que ir orientar as
aes do grupo produzindo alertas derivados. Isso, independentemente
das denncias relativas ao conflito fundirio que os une.36
Os interesses do Boto Negro j tinham uma correlao direta com as
aes de carter ambiental promovidas pela FUNDESC, a exemplo
da I Semana Ambiental de Itacar e o projeto do Cinturo Verde. A
diferena que, se numa primeira etapa de mobilizao a FUNDESC
que assume a responsabilidade pelas aes coletivas porque se institui
de modo formal e pblico, nesse segundo momento, ser o Boto Negro
que tentar ser um perfil menos informal, ao se reestruturar com estatuto e registro, no intuito de fazer valer suas reivindicaes pblicas.
Todavia na informalidade de sua organizao interna que, a partir
do incio da dcada de 1990, o Boto Negro assume a condio de
vigilante dos problemas pblicos locais. Entre as principais bandeiras
defendidas por seus integrantes, podemos identificar: a segurana e a
integridade do bairro alternativo; o reconhecimento das reas de mata
atlntica do municpio e a vigilncia ambiental da regio; o incentivo
criao de novas entidades associativas que reforcem a representao e participao da sociedade civil local; o desenvolvimento de
projetos de educao ambiental junto rede escolar do municpio;
a elaborao de um projeto de desenvolvimento sustentvel para o
municpio que inclua a romntica alternativa do ento denominado
turismo ecolgico; a luta pela aprovao do projeto do Parque Ecolgico Mata Atlntica37 e a ampliao dos contatos externos com a rede
ambientalista do Estado, fosse por seus interesses ecolgicos ou por
seu repertrio principal, quero dizer, funcionar como dispositivo de
denncia do drama social intermitentemente vivido pelos posseiros
da fazenda Estrela do Mar.
36
37

Chateauraynaud; Torny (1999, p.9-38).


Este ltimo era uma releitura do antigo projeto do Cinturo Verde, no qual os posseiros da
fazenda Estrela do Mar permaneceriam no parque como moradores, desenvolvendo culturas
menos agressivas e compatveis com a ideia de desenvolvimento sustentvel.

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Arenas Publicas.indb 431

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Esses problemas pblicos so ento denunciados,38 constituindo um


jogo de denncias e contra denncias entre posseiros e proprietrios
junto mdia regional e estadual, para o qual, aos poucos, os ambientalistas conseguem atrair o interesse de artistas, polticos e instituies
de peso, como foi o caso da CUT,39 da FASE40 e da Pastoral da Terra.
Em 1993, essas trs entidades passam a funcionar como canais de
auxlio jurdico para os posseiros e institucional para o Movimento
Ecolgico Boto Negro, que ganha fora e projeo regional. Durante
um longo perodo, portanto, a questo agrria que se configura como
repertrio principal do grupo e devido a esta causa que agncias
atuantes em escala nacional, manifestam interesse e disposio para
auxili-los na estruturao poltica do movimento.
Com o passar do tempo, por influncia e orientao dos agentes
externos o emblema ambientalista, que a princpio uma questo
secundria nas aes do grupo, ganha consistncia tanto nas aes
coletivas quanto na prpria possibilidade de atrair recursos financeiros
junto a agncias internacionais sensibilizadas pela temtica ambiental.
Todavia, o Boto Negro ainda tropea nas prprias contradies: ao
mesmo tempo em que uma espcie de multiprocessador dos diferentes conflitos, recusa-se a assumir uma postura institucional que
no condiz com os iderios alternativos do grupo.
Podemos dizer, no entanto, que com sua aura despretenciosa e seu
complexo repertrio, entre 1987 e 1995, o Movimento teve um papel
relevante no sentido de garantir as conquistas passadas por meio
da manuteno do espao pblico no qual as questes fundirias,
ambientais e o futuro econmico do municpio funcionaram como
um elo de ligao entre os distintos segmentos sociais locais.
Sobre nova gesto: conquistas e controvrsias
A desingularizao do Boto Negro s comear a acontecer em meados
dos anos 1990, quando uma outra leva de estrangeiros, chega
cidade de Itacar, passando a engrossar as fileiras do movimento j
38

39
40

Em La dnonciation, ao estudar as gramticas que do conta das variaes que afetam os


atos de protesto, tanto individuais quanto coletivos, Luc Boltanski (1984, p.3-5), observa
que todo e qualquer denunciador deve instituir uma crena, ou seja, a denncia tem por
objetivo dar credibilidade causa denunciada e recrutar novos partidrios para a causa e,
para tanto, preciso diminuir aquele que considerado responsvel pela injustia cometida.
Central nica dos Trabalhadores.
Federao de rgo para a Assistncia Social e Educacional.

432

Arenas Publicas.indb 432

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

de certo modo consolidado por seus embates no municpio. Dessa vez,


os estrangeiros so pessoas de nvel universitrio, quase todos micro
empresrios, em busca de qualidade de vida e simpticos s ideias
preconizadas pelo ecoturismo que j ento circulava nos grandes
centro urbanos do pas.
Por ecoturismo, apesar do vasto campo semntico que o define
e redefine, podemos compreender um tipo de turismo vinculado
a preocupaes de ordem ambiental econmica e social41 ou
ainda como uma viagem recreativa responsvel42 uma atividade
econmica de baixo impacto ambiental;43 uma atividade voltada
para a conservao da biodiversidade e da sociodiversidade;44 uma
ao estratgica e educativa. No entanto, de modo sinttico podemos
dizer que o ecoturismo que conhecemos hoje um somatrio de uma
srie de questes que surgem no campo da contracultura dos anos
1960, adquire sua essncia nas discusses ecolgicas dos movimentos
ambientalistas dos anos 1970 e toma sua forma concreta no campo da
economia capitalista, que se reapropria dos paradigmas ambientais
para transform-los numa atividade de mercado, ou seja, um produto
rentvel vinculados ao prazer.
Desse modo, ao renovarem os quadros do movimento, os novos estrangeiros em busca de uma vida alternativa, assumiro uma postura
diferenciada, tanto em relao ao vocabulrio de motivos do grupo,
que concentrar seu foco nas questes relativas ao meio ambiente e
ao turismo, quanto na sua forma de ao, um tanto mais pragmtica
e adaptada aos formatos institucionais requeridos pelo poder pblico.
Essa disposio para o engajamento institucional, reconfigurou efetivamente a posio do movimento mediante as questes pblicas locais e
pode ser objetivamente verificado nas situaes que descrevo a seguir.
Em outubro de 1996, os boatos e notcias com relao possvel
pavimentao da estrada, que ligava a cidade de Itacar ao municpio
de Ilhus, deixaram de ser mera hiptese para passar ao campo das
reais probabilidades, quando a populao de Itacar foi chamada a
participar de uma audincia pblica a ser realizada com membros do
governo do Estado, do DERBA e do BID. Nessa reunio, o projeto
41
42
43
44

Western (2002, p.16-17).


Pires (1998, p.190-197).
Rodrigues (2003, p.31).
Furlam (2003, p.53).

433

Arenas Publicas.indb 433

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

da estrada foi apresentado e discutido os prazos de construo e


concluso previstas para 1998.
Presentes, os membros do Boto Negro questionaram o traado da
estrada porque, segundo as observaes dos mesmos, em se tratando
de um dos ltimos redutos da Mata Atlntica, o cuidado com os mananciais, restingas e florestas, enfim, com a biodiversidade do trajeto,
pareciam no priorizados pelas agncias responsveis pela realizao
do projeto. Observe-se que a nova direo do grupo tinha entre seus
integrantes pessoas tecnicamente capacitadas para confrontar os
argumentos dos tcnicos do projeto com a consistncia necessria o
para enfrentamento diante das instituies financiadoras.
Mediante a eficcia do questionamento, o grupo foi convidado a participar das reunies prvias, relativas s discusses tcnicas junto ao
Instituto de Estudos Scio Ambientais da Bahia IESB e ao IBAMA.
Durante o andamento das discusses, foi apresentado um estudo tcnico
do projeto, alm de serem convidados a integrar a comisso interinstitucional formada pelo DERBA, as prefeituras dos municpios de Itacar
e Serra Grande, o IESB e os engenheiros das empreiteiras envolvidas
na execuo do projeto da estrada. Segundo alguns integrantes do Boto
Negro, que participaram do grupo interinstitucional, a grande preocupao que os uniu em torno do projeto foi criar o mnimo de impacto
possvel nessa regio da Mata Atlntica, tendo sido inclusive acolhida
a ideia de que a estrada adotasse os critrios das estradas-parques,
seguindo um modelo internacional o que levou ao nome da nova
rodovia posteriormente batizada como Estrada Parque Ilhus-Itacar.
A integrao do grupo aos empreendimentos estaduais voltados para
a localidade, levou-os a estabelecer novos contatos com as ONGs da
rede estadual e a tomar cincia dos projetos de mudana social dirigida direcionados para o municpio, como, por exemplo, o decreto
estadual de 1993, que institura a rea de Proteo Ambiental Itacar
Serra Grande e cujo Plano de Manejo estava em pleno processo de
negociao no Conselho Estadual de Proteo Ambiental CEPRAM.
Esse fato bastante relevante, uma vez que a populao do municpio
no tinha conhecimento do decreto e to pouco do Plano de Manejo
que estava sendo negociado nos bastidores do poder estadual revelia
de seus interesses.

434

Arenas Publicas.indb 434

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Informado sobre a real situao ambiental do municpio, o Boto


Negro entra em contato com o rgo estadual a tempo de interferir
minimamente no processo de zoneamento da rea. Essa interveno
foi crucial porque estavam em jogo os interesses de grandes especuladores, j devidamente articulados com os meandros do poder para
que no fossem prejudicados em seus futuros empreendimentos.
Nesse momento a atuao do grupo precisa, uma vez que conseguem
alterar algumas clusulas que, se includas, seriam ambientalmente
devastadoras para toda rea das cobiadas encostas.
Ao ampliarem e fortalecerem os contatos com a rede de ONGs regionais
e principalmente com o poder pblico estadual, foram convidados pelo
IESB para executar o Projeto de Educao Ambiental e Ecoturismo da
APA, um projeto do governo estadual que ficara aos cuidados do IESB
e que passou a vigorar em 1997. Esse projeto tinha por intuito preparar
a populao do municpio para os novos postulados ambientais a serem implementados com a efetivao da rea de Proteo Ambiental,
Itacar Serra Grande. Para se responsabilizarem pelo projeto, remanejamentos burocrticos foram necessrios e por isso, o movimento
fez um novo registro, sendo renomeado como Instituto Ambiental Boto
Negro, tornando-se desse modo a primeira ONG da localidade.
Tanto a passagem do movimento para o terceiro setor, quanto sua participao efetiva num projeto indiretamente governamental, reconfiguram
publicamente sua posio nas relaes de poder local. Quero dizer,
ao mesmo tempo em que ampliam seu raio de ao e adquirem maior
prestgio junto ao poder pblico municipal, so criticados publicamente
por outras entidades associativas constituintes das arenas pblicas
municipais, devido a suas novas posies, uma vez que, dessa perspectiva, deixam de fazer parte da oposio para se integrarem situao.
As crticas mais veementes partem dos pequenos agricultores e assentados da rea rural (antigos aliados), que no aceitam a imposio dos
novos postulados ambientais preconizados para a regio, divulgados
pelos membros do projeto de educao ambiental, que condena as
queimadas realizadas para o plantio da mandioca, um cultivo tradicional da populao local desde o sculo XVIII. Tal questo se tornar
o motivo de muitas contendas publicizadas nas arenas pblicas
locais, uma vez que pequenos produtores rurais e ambientalistas no
mais compartilham dos mesmo propsitos.
435

Arenas Publicas.indb 435

3/5/2011 01:02:34

3 Prova / Kthia /02/05/2011

Observamos, portanto, que entre 1995 e 1996, o Movimento Ecolgico Boto Negro modifica sensivelmente seu perfil ao afastar-se das
questes fundirias. A chegada de novos atores sociais na cidade
renova seus quadros de lideranas e seu repertrio de ao ento
redefinido por uma perspectiva essencialmente ambientalista. Ao
ampliar seus contatos e afirmar-se publicamente para alm das fronteiras do municpio, a institucionalizao compreendida como uma
etapa definitiva para o reconhecimento das causas ambientais que se
tornam a bandeira principal do instituto.
Ainda que o movimento, tenha assumido uma posio controvertida
e decepcionante perante seus antigos aliados, ao associar-se ao IESB
para assumir a execuo do projeto ambiental, conseguiu ter pela
primeira vez uma sede para reunir seus integrantes e divulgar seus
propsitos, posto que se tornaram responsveis pela edio do Jornal
da APA. Um informativo financiado pela Secretaria de Meio Ambiente
do Estado e que se transformou num grande canal de circulao e troca
de informao interna entre os dois municpios que formam a rea
de Proteo Ambiental. A despeito de seu carter didtico e vigilante
em relao s questes ambientais, esse jornal abriu espao para a
formao e manifestao da opinio pblica local, anteriormente
desprovida de espaos miditicos. Alm disso, estimulou a organizao de novas entidades associativas com o propsito de organizar
os diferentes interesses que j ento se ampliavam no municpio
devido chegada de novos atores sociais, atrados pela estrada e pelo
turismo. De fato, entre a anarquia dos primeiros tempos e sua incorporao ao terceiro setor, no se pode dizer que o movimento tenha
mantido suas caractersticas contraculturais fundadoras. No entanto,
tambm no podemos negar que, ao assumir seus novos preceitos,
teve um importante papel na ampliao do espao pblico local e na
perpetuao da reflexividade poltica iniciada em meados de 1980.
6 Gesto participativa:
uma gramtica da institucionalizao instrumental
Mello e Vogel,45 ao refletirem sobre os projetos desenvolvimentistas,
ditados pelos EUA aos pases perifricos no perodo de 1960 a 1970,
observam que, para que as sociedades receptoras absorvessem a nova
ordem era necessrio que fossem implantados novos padres de
45

Vogel; Mello (1989, p.3-25).

436

Arenas Publicas.indb 436

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

eficincia e eficcia ditados pela didtica magna da prosperidade do


pas implementador. Conforme verificamos, a proposio dos autores
em relao implementao do que nomeiam como mudana social
dirigida no se restringe aos projetos desenvolvimentistas do perodo
histrico analisado, posto que a didtica magna da prosperidade
ainda um instrumento fundamental de regncia dos muitos projetos
pblicos implementados em nosso pas. Vejamos a resultante dessas
aes verticalizadas no municpio de Itacar.
Ao apresentar anteriormente um breve histrico do municpio,
mencionei o fato de que a construo da nova estrada municipal
foi resultante do Prodetur I. O Prodetur foi desenvolvido a partir de
estudos encomendados pelo BNDES no comeo da dcada de 1990,
com o objetivo de identificar atividades que apresentariam vantagens competitivas caso desenvolvidas na regio Nordeste. O estudo
apontou o turismo como uma das oportunidades mais viveis para a
regio, devido a seus recursos cnicos e culturais significativos, alm
da mo de obra em abundncia com custos relativamente baixos. 46
Para financiar as atividades, o BNDES, com o apoio do BID, inaugurou em 1994 o Programa Nordeste Competitivo (PNC) que ampliou
as oportunidades de negociaes entre a SUDENE, o BNB, o BID e o
Ministrio dos Esportes e Turismo. Desta interao entre as diferentes
instncias poltico-econmicas estaduais, nacionais, internacionais
e surgiu o Prodetur I. Coube ao Banco do Nordeste o papel de gerenciador dos recursos internacionais provenientes do BID, para
redistribu-los entre os estados envolvidos no projeto.
Um dos condicionantes do BID para a liberao dos recursos do
PRODETUR I, implicava diretamente na implementao dos seminrios de gesto participativa, com o objetivo de fortalecer e ampliar
institucionalmente as entidades locais envolvidas na instaurao do
projeto turstico para o municpio. Sendo assim, o fortalecimento
institucional se apresenta como um elemento globalmente estruturante do projeto, que, em seu desdobramento nas escalas locais, deve
tambm estimular a organizao institucional da sociedade civil,
inclusive atravs do associativismo que neste caso ser estimulado
por meio dos seminrios de gesto participativa, tambm conhecido
46

Disponvel em: <http://www.bnb.gov.br>. Acesso em: 22 nov. 2006.

437

Arenas Publicas.indb 437

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

como metologia GESPAR.47 Este processo implica na organizao de


oficinas de apoio gesto, seminrios, treinamentos, monitorao,
nos quais um capacitador deve agir como mediador ou facilitador
da reflexo e do dilogo do grupo, orquestrando as ideias produzidas
pelo mesmo no sentido de prioriz-las e sistematiz-las.48
No caso especfico da implantao do Prodetur I, essa escala de sistematizao global se refletiu na instncia municipal de Itacar da
seguinte maneira: a partir de 1996, durante o projeto de implementao
da estrada, coube a Bahiatursa Empresa de Turismo da Bahia AS ,
o papel de ministradora de alguns seminrios de gesto participativa
no municpio. Nesses seminrios foram debatidos temas referentes
implantao do turismo na localidade, tais como gerenciamento de negcios, capacitao de pessoal, mapeamento dos produtos ecotursticos
da regio, estmulo ao associativismo como forma de organizao e
participao da sociedade civil no novo projeto de desenvolvimento,
estipulado pelas instncias federal e estadual para o municpio.
Em 1998, o governo estadual sai de cena e delega s ONGs ambientalistas locais e regionais a implementao dos princpios ecolgicos
necessrios reordenao deste territrio como uma unidade de
conservao destinada explorao turstica segundo os princpios
do desenvolvimento sustentvel. Porm, tal como o ecoturismo,
entendemos que o referido conceito bastante complexo e controvertido em sua definio. De acordo com a Constituinte de 1988 deve
ser entendido como um tipo de desenvolvimento [...] que atende s
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das geraes futuras atenderem s suas prprias necessidades.49 Todavia,
sabemos que o conceito envolve disputas polticas e econmicas
que, de acordo com os diferentes contextos, redefinem sua aplicao.
A pressuposio de que os seminrios de gesto participativa iriam
suprir os vazios sociais e polticos das regies contempladas pelo
Prodetur I, em certos casos pode ter funcionado na medida da proposio, mas no caso especfico de Itacar, repercutiram como uma
verdadeira bomba! O que os idealizadores do projeto no sabiam,
47

48
49

Existem vrios outros mtodos de gesto participativa que tambm foram adotados nos
seminrios municipais a exemplo do GPO (Gesto Participativa Organizacional); GEP
(Gesto Estratgica Participativa) e ZOPP (Ziel Orientierte Projekt Planung).
Alves; Silveira (1998).
Comisso da Constituinte (1988, p.46).

438

Arenas Publicas.indb 438

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provavelmente porque no procuraram verificar anteriormente,


que, apesar de isolados na Mata Atlntica, devido falta de estradas,
a populao do municpio, a duras penas, desde os anos 1980, vinha
fertilizando seu campo poltico por meio das lutas que travara.
Os colaboradores desta pesquisa contam que os gestores do projeto,
ficavam perplexos com o nvel de participao da sociedade civil local
que abarrotava os seminrios, vida por informaes sobre as novas
oportunidades que o governo anunciava. s vezes maravilhados
com os temas discutidos, outras vezes insatisfeitos ou desconfiados,
discordavam, questionavam e propunham, demonstrando interesse,
experincia e conhecimento, diferenciados em relao s causas
coletivas. Desse modo, os seminrios acabaram por funcionar como
catalizadores de novas mobilizaes, gerando novas arenas pblicas
como o Frum de Cidadania e o Conselho Gestor da APA.
O Frum de Cidadania funcionou entre 1998 e 2000, sendo criado pelos
moradores da cidade de Itacar com o propsito de suprir as deficincias
do poder pblico local que, por sua vez, segundo o depoimento dos moradores da cidade, encontrava-se totalmente despreparado para ordenar
e regular as desordenaes consequentes do fenmeno turstico50 que
chegara com a estrada. J o Conselho Gestor, institudo em 1999, teve
um percurso mais tortuoso, uma vez que, para sua constituio, no
dependeu somente da vontade poltica da populao.
Como os processos de mobilizao coletiva que venho descrevendo
partem quase sempre de situaes sociais51 particulares, que se
constituem como pequenos dramas sociais52 e acabam por engendrar
um processo de interao entre diferentes pblicos e atores, resultando
muitas vezes na formao de arenas pblicas e na criao de novas
entidades associativas, o Conselho Gestor tambm foi resultado das
aes coordenadas e das interaes aqui descritas. No entanto, teve
como diferencial o fato de ser um dispositivo legal das polticas pblicas elaboradas para reas de conservao ambiental, que, no caso,
foi acionado pelos ambientalistas de Itacar, durante os seminrios
de gesto participativa e apoiada pela populao.

50
51
52

Veja-se a definio do fenmeno turstico em Barretto (2003, p.20-21).


Gluckman (1987).
Turner (1982).

439

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O conhecimento e a divulgao da legislao das APAs bem como do


artigo que postulava a exigncia da criao de um frum permanente
que deveria ser composto por representantes do governo estadual,
municipal e pelas lideranas das entidades associativas53 do municpio
trouxeram baila, um longo debate pblico que perdurou aps o trmino
do seminrio e se ampliou para um pblico maior, envolvendo outras
entidades associativas locais, interessadas na implantao do referido
Conselho. A disponibilidade participativa dos distintos setores locais,
serviu como um instrumento de presso junto aos rgos pblicos
envolvidos no processo de formao da APA e, seis meses depois, foi
criado o frum de acompanhamento e fiscalizao da rea de Proteo
Ambiental que, segundo os colaboradores dessa pesquisa, foi o primeiro
Conselho Gestor efetivado dentre as APAS do estado da Bahia.
Em 2002, quando tomei parte pela primeira vez de suas reunies
mensais, o conselho tinha 26 membros efetivos54 e contava com amplo engajamento das entidades associativas locais, que se ampliaram
ainda mais em visitas posteriores. Na ocasio, chamou a ateno o
alto ndice de participao: 45 pessoas que permaneceram entre 10
horas da manh e 3 da tarde discutindo avidamente os problemas
locais. Aos poucos, conforme fui me familiarizando com o ambiente,
pude perceber a relao compsita da reunio e me surpreendi com a
presena dos mais distintos segmentos sociais: assentados, pequenos
produtores, empresrios, surfistas e pescadores ali interagindo com
diferentes posies por distintas causas e interesses comuns. Posso
dizer sem dvida que assisti a uma arena pblica,55 obviamente que
ainda sem poder perceber com nitidez as desigualdades de posio e
participao dessa relao compsita, embora muitas rivalidades se
explicitassem na exposio dos diferentes problemas que giravam
em torno da regulao do turismo e do meio ambiente na localidade.
Entre 2000 e 2005, o Conselho Gestor funcionou como uma espcie
de gora da cidade, um lugar para onde convergiam grande parte
dos problemas pblicos, a sociedade civil e suas tentativas por vezes bem-sucedidas de solucionar tais problemas. Mas j em 2006,
em meu retorno ao trabalho de campo para finalizar a pesquisa, me
deparei com uma sede desativada e um ncleo j bastante reduzido
53
54
55

Plano de Manejo da APA Itacar- Serra Grande


De acordo com Ata de janeiro de 2002.
Cefa (2002).

440

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de participantes nas duas reunies do Conselho Gestor que tive a


oportunidade de presenciar.
O esvaziamento do Conselho foi justificado pelos colaboradores desta
pesquisa por diferentes perspectivas: alguns alegaram que este fato
era o resultado de uma tendncia bvia elitizao do conselho;
outros justificaram-no devido ao descrdito com relao eficcia
e representao do rgo; houve ainda quem falasse da excessiva
fragmentao das entidades associativas; de uma nova ONG chamada Yonic, que estaria arregimentando a esperana da sociedade civil
local e quem atribusse a desmobilizao do conselho s frustraes
com o processo democrtico na sociedade brasileira. Apesar do
esvaziamento do Conselho Gestor, um fato era inquestionvel, 40
novas entidades associativas haviam sido registradas no cartrio local.
7 Para entender a indigenizao de um idioma institucional
Portanto, observamos que, se por um lado, os seminrios repercutiram
de forma positiva porque foram redimensionados pelos atores sociais e
pelo passado poltico da localidade, por outro lado trouxeram baila a
gramtica da institucionalizao instrumental. Se entre 1986 e 1996, a
criao das entidades associativas foi uma resultante do engajamento
e da vontade poltica dos habitantes de Itacar que viram nas aes
coletivas e nas representaes associativas uma forma de reconhecimento e de luta por seus direitos de cidados , aps este perodo, o
repertrio de engajamentos passa por uma notvel transformao em
seus significados e sentidos. Quero dizer com isto que o incentivo verticalizado dos seminrios organizao e participao da sociedade civil,
institucionaliza o engajamento associativo como um idioma a ser formalizado e seguido pela localidade. Refaamos a trajetria percorrida.
At o incio de 1996, 34 entidades associativas haviam sido registradas no cartrio local, muitas delas foram mencionadas ao longo deste
trabalho. Algumas foram criadas com o objetivo de promover o bem
pblico, outras para fortalecer alguns segmentos profissionais, resolver
questes urbanas e rurais ou se organizar em torno de repertrios identitrios, culturais e ambientais. Algumas tiveram curta durao, outras
perduram na atualidade, mas pode-se dizer que todas estas entidades
associativas saram do papel e demonstraram ao que vieram, enquanto
algumas que fizeram histria no municpio jamais foram registradas.
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Arenas Publicas.indb 441

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De minha perspectiva, a exploso associativista posterior ao perodo


mencionado est diretamente associada a trs questes convergentes:
um campo fertilizado pelas experincias polticas locais durante o
processo de redemocratizao do pas; os seminrios de gesto participativa, que ao fomentarem o associativismo na populao rural e
urbana, alimentaram o entendimento de que a via institucional seria
o caminho para a viabilizao de todos os propsitos e carncias dos
diferentes segmentos da populao e a dinmica do fenmeno turstico, que quase sempre estabelece posies antagnicas nas relaes
de pertencimento. Refiro-me aqueles que so considerados como de
dentro e de fora do lugar.
Desassistidos pelo poder pblico local, os produtores da rea rural,
iro registrar suas entidades associativas, com o intuito de ganhar
visibilidade e chamar a ateno para suas causas, na maioria das vezes
de ordem estrutural como, por exemplo, a necessidade de subveno governamental e assistncia tcnica para seus plantios ou para
a aquisio de bens pblicos como luz, gua, estradas e escolas. Os
pescadores, por sua vez, recorrero criao de entidades associativas
na esperana de conseguirem recursos para a compra de barcos ou
para suprirem as muitas deficincias da pesca artesanal.
A chegada da estrada modifica sobremaneira o ambiente urbano. Atrai
novos pblicos para a localidade, acirra a rivalidade entre antigos
e novos moradores, seja pela disputa no mercado de trabalho, pela
moradia, ou por diferenas de comportamento. Isso leva a populao
a tentar se reconhecer na nova ecologia urbana por meio de nichos
identitrios que legitimem suas posies. Como as associaes, na
cartilha simblica local, adquirem o significado de legitimidade e
pertencimento ao lugar, as frentes associativas se multiplicam como
fachadas por vezes mal desenhadas. No quero dizer com isso que os
novos vocabulrios de motivos no sejam legtimos, o problema
que parte dessas novas associaes no se sustentam coletivamente:
algumas meramente fictcias, tornam-se uma hiprbole do contedo
poltico de outrora. Mas o que fazer se para ser ouvido preciso falar
e compreender um mesmo idioma?
Se a princpio a expressividade numrica das associaes municipais nos conduz a possveis questionamentos quanto efetiva
representatividade das mesmas, o conhecimento de suas motivaes
442

Arenas Publicas.indb 442

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

e experincias nos permite constatar que os repertrios e formas de


engajamento esto diretamente associados aos contextos nos quais
so produzidos. Portanto, a produo do pblico no algo esttico,
submetido s regras atvicas de um pas em que o pblico foi quase
sempre sinnimo de um Estado distante que no nos pertencia. Pelo
contrrio, o microcosmos associativo desse municpio nos permite
identificar, na linha temporal de seus acontecimentos polticos, situaes reflexivas do processo de redemocratizao do pas. A dinmica
dos engajamentos, tanto pela mudana nas motivaes fundirias,
ambientais, econmicas e identitrias quanto pelos atores que se
integram aos diferentes processos de mobilizao, traduz um aprendizado poltico para o exerccio da cidadania.
Ainda que essa localidade tenha se deparado com os signos duvidosos
embutidos na didtica magna da prosperidade, no se pode dizer que
sua histria associativa artificializou-se e perdeu sua fora e sentido,
mas que, ao que tudo indica, procura novas ressignificaes e sintonias com a atual paisagem poltica do pas. Em 2008, ao retornar ao
municpio, tive a notcia de que trs associaes rurais criadas durante
os seminrios de gesto participativa tiveram recentemente suas reas
rurais reconhecidas como territrios quilombolas. Mas isto outra
histria das muitas histrias que comeam a se esboar.

REFERNCIAS
ALBUQUERQUE, L.M.B. Oriente: fonte de uma geografia imaginria. Revista de Estudos da Religio, So Paulo, v. 3, 2001. Disponvel
em: <http://www.pucsp.br/rever/rv3_2001/i_albuqu.htm. Capturado
em 16/6/2006>.
ALVES, M. A.; SILVEIRA, L. L. Entre o tutorial e o participativo:
a abordagem de interveno na estratgia de ao do Banco Nordeste.
Artigo apresentado no XXXVI Congresso da Sociologia Brasileira
de Economia e Sociologia Rural, Poos de Caldas, 1998.
BOLTANSKI, L.; THEVENOT, L. De la justification.
Paris: Gallimard, 1991.
BOLTANSKI, L.; DARR, Y.; SCHILTZ, M.-A. La dnonciation.
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 51, 1984.
443

Arenas Publicas.indb 443

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

CEFAI, D. Quest-ce que cest une arne publique?: quelques pistes


pour une approche pragmatiste. In: CEFAI, D.; JOSEPH, I. (Org.).
LHritage du pragmatisme: conflits durbanit et preuves de civisme.
Paris: Presses Universitaires de France, 2002.
CHATEAURAYNAUD, F.; TORNY, D. Les sombres prcurseurs:
une sociologie pragmatique de lalerte et du risque. Paris: cole des
Hautes tudes en Sciences Sociales, 1999.
DEMETER, P.R. Combatendo o desemprego na regio cacaueira da
Bahia: o papel dos Movimentos Sociais Populares. Itabuna: FASE,
1996.
DEWEY. The public and its problems. Ohio: Ohio University Press,
1991.
CEFAI, D.; PASQUIER, D. Les sens du public: publics politiques,
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FALCON, G. Os coronis do cacau. Salvador: IEMANJ, 1995.
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Disponvel em: <http:www.bahia.ba.gov.br/sct/turismo>. Acesso em:
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GLUCKMAN, M. Analise de uma situao social na Zululandia
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sociedades contemporneas. So Paulo: Global Universitria, 1987.
HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos
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vigor. Livro III. Ttulo III. Captulo II. 25. ed. So Paulo: Saraiva,
2006.
444

Arenas Publicas.indb 444

3/5/2011 01:02:36

3 Prova / Kthia /02/05/2011

PIRES, P. Ecoturismo no Brasil: uma abordagem histrica e conceitual


na perspectiva ambientalista. Tese (Doutorado em Geografia Humana)Programa de Ps- Graduao em Geografia Humana, Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo,
So Paulo, 1998.
RODRIGUES, A. B. Ecoturismo: limites do eco e da tica. In:
RODRIGUES, B. A. (Org.). Ecoturismo no Brasil: possibilidades e
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ROSZAK,T. A contracultura. Petrpolis, RJ: Vozes, 1972.
SILVA, L.G. Os pescadores na histria do Brasil. v. 1: Colnia e
Imprio. Recife: Comisso Pastoral dos Pescadores, 1998.
SIMMEL, G. O estrangeiro. In: MORAES FILHO, E. (Org.). Sociologia. So Paulo: tica, 1983.
TOCQUEVILLE, A. A democracia na Amrica. Belo Horizonte:
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TURNER, V. Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology
of experience. In: TURNER,V.; BRUNER, M. (Org.). The
anthropology of experience. Illinois: Illini Books, 1986.
. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrpolis, RJ:
Vozes, 1974.
. Social dramas and stories about them. In:
. From
ritual to the theater: the human seriouness of play. New York: PAJ
Publications, 1982.
VOGEL; MELLO. O experimento de Tobiki: algumas reflexes
sobre a didtica magna da prosperidade. Forum Educacional, Rio de
Janeiro, v. 13, n. 1-2, fev./ maio 1989.
WESTERN, D. Como definir o ecoturismo. In: LINBERG, K.;
HAWKINS, D. (Org.). Ecoturismo, um guia para planejamento e
gesto.So Paulo: [s.n.], 2002.

445

Arenas Publicas.indb 445

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Arenas Publicas.indb 446

3/5/2011 01:02:36

SEM VERGONHA, GAROTA


NOTAS SOBRE A
PROFISSIONALIZAO
DE UM MTIER NO BRASIL
Soraya Silveira Simes1
Juro que a terra ser seguramente completa
para aquela ou aquele que for completo...
Canto da Terra Girando, Walt Whitman.

Gatinha Mimosa
No dia 19 de setembro de 2002, um desfile protagonizado por jovens
prostitutas atraiu para o baixo meretrcio carioca jornalistas, atores
e atrizes, ativistas de diversas causas, militantes de ONGs, historiadores, funcionrios da rede municipal e estadual de sade, polticos,
irms de caridade e centenas de clientes da prostituio. Este diversificado pblico veio a se reunir em um terreno baldio situado ao final
da rua em que esto localizados os inmeros bordis, bares e boates
conhecidos, em seu conjunto, por Vila Mimosa II.
A ideia do concurso havia sido concebida por uma cafetina e diretora da
Associao dos Moradores do Condomnio e Amigos da Vila Mimosa II
(AMOCAVIM), to logo soube que o figurino utilizado pelas prostitutas
do sculo XX seria objeto de uma reportagem a ser publicada no jornal
1

Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF), pesquisadora


do Laboratrio de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ) e do INEAC/UFF e do
Centre Lillois dtudes et de Recherches Sociologiques et conomiques (CLERS Universit
de Lille 1).

Arenas Publicas.indb 447

3/5/2011 01:02:36

3 Prova / Kthia /02/05/2011

destinado categoria2 e distribudo em todas as reas de prostituio


do pas. O desfile seria tambm ocasio para difundir a notcia de que
aqueles notrios bordis da cidade estavam, agora, sob nova direo.
Convencidos do momento oportuno para a realizao de um desfile, os
diretores da Associao comearam, ento, a convocar as prostitutas
inicialmente por meio de um boca-a-boca e, posteriormente, afixando
cartazes e faixas nos estabelecimentos daquela rea de meretrcio.
Quarenta candidatas participaram dos primeiros ensaios. Apesar do
entusiasmo inicial, o nmero de desistncias aumentava conforme
se aproximava o dia do desfile. Cogitou-se o adiamento ou mesmo
o cancelamento do concurso. Diante desta iminncia e da quebra de
um contrato feito, ainda que informalmente, pela cesso do terreno,
a presidente da Associao da Vila Mimosa encontrou outra soluo
para o problema que j supunha estar determinando o aumento de
abstenes: a visibilidade pessoal. Mscaras coloridas, ornadas com
paets, foram, ento, compradas para cobrir parcialmente os rostos
das concorrentes e satisfazer, com isso, a vontade de se preservar a
identidade. Com essa garantia, os ensaios prosseguiram.
Na noite do desfile, as mscaras foram trazidas e deixadas em um canto do camarim, improvisado com a lona de um caminho nos fundos
do terreno. Do lado de fora do recinto, a excitao da multido que
se aglomerava em torno da passarela provocava alvoroo entre as 14
candidatas. Aflitas, por detrs da lona, todas se desejavam boa sorte,
davam gritinhos de ansiedade, retocavam a maquiagem, passavam
leo no corpo e experimentavam sandlias, vestidos e biqunis cedidos
pelo dono de uma barraca de roupas da Vila Mimosa.
Com quase uma hora de atraso, a presidente da Associao subiu
ao palco e, com um discurso lido a um s flego, abriu oficialmente
o desfile. Para a surpresa dos organizadores, as candidatas foram
surgindo na passarela, uma a uma, sem mscaras, exibindo os rostos
e provocando a plateia ora com acenos e beijos, ora sacudindo envelopes de preservativos.

Jornal Beijo da Rua, financiado pelo Ministrio da Sade como item de ao estratgica de
preveno de HIV/AIDS e DSTs junto ao pblico que constitui o universo da prostituio
no pas.

448

Arenas Publicas.indb 448

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Aqueles que se ajuntavam ao redor do estrado demonstravam de modo


mais explcito a preferncia por uma ou outra candidata, animando-as por meio de aplausos ou outras expresses de estmulo. Efusivas
salvas de palmas, em torno destes, davam sequncia formao de
torcidas empenhadas em influenciar a deciso do jri.3
A cada entrada na passarela, o apresentador acrescentava novas informaes sobre as concorrentes: praia que frequentavam, time de futebol
para o qual torciam, Estado em que nasceram, ator que admiravam.
O jri, enquanto isso, ia dando notas segundo os quesitos a serem
observados: beleza, simpatia, traje e harmonia. As mulheres, por sua
vez, exibiam seus trajes de noite, praia e dia a dia, caprichando
nas expresses faciais, nos gestos das mos e na cadncia dos passos.
Ao final, a tenso no camarim era grande. Na plateia, inmeras
prostitutas se diziam arrependidas por no terem participado da
competio. Enquanto aguardava a contagem de votos, o dono de
um dos bordis j comentava a realizao de um novo concurso. A
msica Malandragem4 tocava nos alto-falantes quando foram
anunciadas as cinco finalistas entre elas, a vencedora. Sem conter a
emoo, a presidente da Associao, tambm cafetina e ex-prostituta,
entregou primeira colocada um colar de ouro e a faixa onde se lia
Gatinha Mimosa. Sua voz, comovida, ressoou: Essas meninas so
todas vitoriosas, so todas como se fossem minhas filhas!.
Daspu
Trs anos depois, em uma praa do centro comercial do Rio de Janeiro,
um outro grupo de prostitutas organiza e protagoniza um novo desfile
concebido, tal como o anterior, a partir de uma reportagem. Dessa
vez, no entanto, jornais de grande circulao noticiavam o escndalo de sonegao fiscal envolvendo as proprietrias de um suntuoso
magazin da capital paulista Daslu que supre com a haute couture
os guarda-roupas da elite brasileira.

Composto pela fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas (Gabriela), pelo diretor da ONG
SOS Complexo do Alemo (Jorginho), uma representante do Arquivo Pblico (Isabel), por
um diretor da Regio Administrativa III Tijuca (Carlos Alberto) e por uma atriz de um
programa humorstico (Suelen Napoleo).
Quem sabe ainda sou uma garotinha, esperando o nibus da escola sozinha. Versos de
Cazuza na voz de Cssia Eller.

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Arenas Publicas.indb 449

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

O senso de oportunidade e a inteligncia sociolgica das prostitutas


dessa praa alcanaram notoriedade internacional com o lanamento
de uma grife prpria a Daspu durante a manifestao em forma de
desfile de modas.5 A empresa paulista contribuiu de forma inesperada
para a publicidade da nova grife carioca, movendo contra o grupo
uma ao judicial por plgio que ganhou as pginas dos maiores
jornais do pas e do exterior. O efeito de tal publicidade se fez notar
sensivelmente no dia do desfile. Nas imediaes do hotel em que as
prostitutas trabalham concentrou-se uma multido de curiosos, habitus, jornalistas, msicos, estudantes, artistas plsticos e intelectuais
partidrios da crtica e simpticos ao modo irreverente como elas a
expunham. Uma manequim internacional desdenhou o desfile oficial
da cidade, realizado naquela mesma noite no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, indo participar deste, em uma rua daquela praa
do centro da cidade na qual h dcadas se pratica o trottoir.6
O cho de paraleleppedos fora ornamentado com ptalas de rosas
vermelhas por sobre as quais as prostitutas desfilaram as roupas da
Daspu e os parangols de Hlio Oiticica, cedidos pela direo do centro cultural dedicado ao artista, situado na extremidade daquela rua.
A praa pblica, ponto de convergncia das coisas no oficiais, gozou
naquela noite, com a performance das prostitutas, daquele seu direito
5

Ver os jornais O Globo de 17 de dezembro de 2005, 10 de janeiro de 2006, 21 de fevereiro


e 19 de maio; Revista Isto de 30 de novembro de 2005; Beijo da Rua, dezembro de 2005;
alm de outros artigos nos jornais O Dia, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, Estado de S.
Paulo, Zero Hora e outros de tiragem regional, em todo o pas; e das revistas Isto Dinheiro
e poca, alm das crnicas de Afonso Romano de Santana e Alcione Arajo e das notcias
setorizadas nos cadernos de moda em diversos sites na Internet, entre eles o <http://moda.
terra.com.br> do dia 11 de abril de 2006.
No dia 15 de setembro de 2007, a rede de televiso francesa Arte exibiu o documentrio
Rio, le trottoir fait as mode, produzido pela TV alem, e cuja redifuso aconteceu nos
dias 18 e 22 daquele ms. A seguir, transcrevo na ntegra a chamada para o filme. Rio, le
trottoir fait sa mode, un reportage de Carmen Butta. Haute lieu de la prostitution Rio, la
ruelle Imperatriz Leopoldina est le thtre dun drle de conte de fes: les travailleuses du
sexe ont cre avec succs leur propre marque de vtements. Depuis toujours, les prostitues
souhaitent tre acceptes socialement, affirme Jane Eloy, 32 ans, mre de trois enfants et
sur le trottoir depuis plus de quinze ans. Nous avons donc dcid de crer une collection de
mode, surtour pour attirer lattention. Pari gagn! La marque Daspu abrviation portugaise
de das putas a mis le monde de la mode brsilienne sens dessus dessous et veill la
curiosit de la presse internationale grce des crations pleines doriginalit. Et alors que
les grandes maisons prsentent leurs collections la Rio Fashion Week, lun des plus grands
salons de mode dAmrique du Sud, les prostitues de Rio, elles, organisent leur propre dfil
devant lhtel o elles travaillent quotidiennement. Samedi, 15 septembre 2007 21h35.
Geo 360.

450

Arenas Publicas.indb 450

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mais legtimo sobre o qual Bakhtin se debruou: o de manter-se


margem do mundo da ordem e da ideologia oficiais.7
*
Esses dois episdios exerceram um forte apelo na mdia, tendo sido
fartamente noticiados pela imprensa nacional e estrangeira.8 Os leads
enunciavam um certo encantamento pela forma como se deu, nos
dois casos, a exibio pblica de uma tal identidade social. Aludiam,
contudo, a manifestaes organizadas por grupos distintos em torno
dos quais se estruturam duas das principais reas do baixo meretrcio
na cidade do Rio de Janeiro.
Na Vila Mimosa II, uma associao de proprietrios dos bordis locais
se ocupa de gerir essa espcie de cidade cenogrfica da prostituio
carioca,9 cuidando do espao e das pessoas que o frequentam. Na
Praa Tiradentes, localizada na rea central de negcios da cidade, as
prostitutas que ali praticam o trottoir se mobilizam para permanecerem
no lugar em que esto sendo investidos 12 milhes de dlares10 para
o projeto de revitalizao urbana financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).11
As associaes formadas tanto por prostitutas quanto por empresrios
da prostituio disputam hoje recursos provenientes, sobretudo, de
programas financiados pelo Ministrio da Sade por intermdio de
acordos bilateriais estabelecidos com o Banco Mundial, o BID e a
USAID.
Dispensados para a sustentao de campanhas de preveno da AIDS
e de outras doenas sexualmente transmissveis (DST), tais recursos
7
8
9
10
11

Bakhtin (1996, p.132-133, 138).


Ver os jornais Beijo da Rua, agosto e setembro de 2002, e nota de p de pagina 3.
Mello et al. (2007).
Cf. jornal Beijo da Rua, edies de maio e dezembro de 2002.
Trata-se do Projeto Monumenta, concebido pelo Ministrio da Cultura para a revitalizao
dos centros histricos de vrias cidades brasileiras. Alm de substituir as obras de restaurao
do casario por servios de conservao, um dos objetivos precpuos do Programa, de
acordo o documento Projeto Tiradentes, publicado pela Secretaria Municipal de Cultura
e pelo Departamento Geral de Patrimnio Cultural (disponvel em: <http://www.archi.fr/
SIRCHAL/seminair/sirchal4/NicolaeffVPT.htm>) visa associar a recuperao do patrimnio
revitalizao econmica e social dos espaos restaurados o que, segundo as finalidades
do Programa, poder provocar mudanas de atitude na populao, com efeito direto no
nvel de vida dos residentes no local recuperado. Sobre a revitalizao da Praa Tiradentes
e sobre a mobilizao das prostitutas face aos investimentos de transformao do bairro, ver
o jornal Beijo da Rua, edies de maio e dezembro de 2002.

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so obtidos por meio de projetos de preveno orados em at 50


mil reais12 e encaminhados pelas associaes ao Ministrio da Sade.
As rubricas podem contemplar a capacitao de pessoal, o trabalho
de campo, a elaborao de material para campanhas preventivas e
o fomento institucional, entre outras possibilidades mais pontuais.
Mas o estmulo formao de novas associaes de profissionais do
sexo o principal objetivo a ser alcanado com o financiamento, tanto
para os fins ideolgicos da Rede Brasileira de Prostitutas quanto para
o fortalecimento poltico da Comisso Nacional de AIDS (CNAIDS),13
composta por associaes diretamente interessadas no controle da
doena. A participao dos chamados profissionais do sexo
categoria que abrange prostitutas, travestis e michs14 no trabalho de
preveno da AIDS e das DST considerado, tanto pelos agentes do
Ministrio da Sade quanto pelos demais membros da CNAIDS, um
dos fatores responsveis pelo reconhecimento do programa brasileiro
AIDS como um dos mais bem estruturados e eficazes do mundo.
Utilizando a metodologia por pares e beneficiando-se da ideia de
agente multiplicador, ou seja, da ao de um membro da categoria
informando os outros membros sobre determinado problema e modos
de agir, o Ministrio da Sade no s consubstanciou a formao
das associaes como as transformou em seu brao direito15 no
combate s doenas venreas e AIDS.
O auxlio institucional e financeiro para campanhas de fortalecimento
da identidade coletiva representou, para o grupo, a consolidao
de um novo capital social e poltico e, do mesmo modo, cumpriu o
papel de um seed money que viria contribuir, finalmente, no processo
de definio da categoria como uma ocupao reconhecida pelo
Ministrio do Trabalho.16
12
13

14
15

16

Cerca de US$ 21.800,00. Dlar a R$ 2,30 em outubro de 2008.


Instituda em 1986, a CNAIDS rene representantes da sociedade civil no assessoramento
ao Ministrio da Sade e ao seu Programa Nacional de Aids na definio de aes e medidas
concernentes ao controle da AIDS, em todas as suas dimenses.
Homens que se prostituem.
De acordo com Everett Hugues, a transferncia de tarefas tcnicas de uma categoria
profissional outra supe implicitamente que aquele que ocupa a posio de brao direito
ultrapassa os limites de sua autoridade a fim de proteger os interesses de todas as pessoas
implicadas. Cf. Hughes, 1996, p.65.
Da metodologia de pares e do seu imprescindvel reconhecimento de uma determinada
categoria social, ainda que para fins estratgicos, adveio, como dissemos, o sucesso do
programa brasileiro de AIDS e o capital poltico que lhe permitiu exigir do governo americano

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O leitmotiv de toda esta empreitada se assenta, entretanto, nos argumentos de resgate da autoestima, resgate da cidadania e de
reduo de vulnerabilidades,17 como forma de melhor estimular o
cuidado de si no mbito da vida pessoal, mas tambm, e de maneira
inextrincvel, no mbito da vida cvica.
Problemas pblicos e identidade social
Contudo, foi para conter a violncia policial e legitimar o direito
cidade diante dos processos de grilagem e renovao urbana ocorridos
nas reas degradadas que o movimento associativo das prostitutas teve
incio, nos anos 1980, vindo a consolidar-se, em 1987, com a criao
da Rede Brasileira de Prostitutas.
A partir de ento, o debate foi sendo conduzido para o reconhecimento
da atividade como ocupao legal. Entre os episdios mais marcantes
desse processo, est o pedido de revogao dos artigos 228, 229 e 231
do Cdigo Penal todos relativos ao lenocinio ou favorecimento
da prostituiao e, tambm, o pedido de tombamento da hoje extinta
Zona do Mangue, situada na regio central do Rio de Janeiro, duas das
primeiras reivindicaes pblicas feitas pela Rede durante o I Encontro Nacional de Prostitutas, realizado, em julho de 1987, no Centro
Calouste Gulbenkian, tambm localizado na rea central da cidade.18
As duas razes evocadas violncia policial e coao diante das
transformaes urbanas no eram, portanto, sem fundamento. J
na dcada de 1920, os estudos sobre a ecologia urbana desenvolvidos
pela Escola de Chicago se dispunham a compreender a cidade e seus
problemas mediante anlise que levasse em conta a expanso urbana
como um processo. Ernest Burgess, em um artigo de 1925, props

17

18

a reviso das condies impostas para o financiamento das campanhas de preveno de HIV
e AIDS no pas. Enquanto houvesse, entre outras, a clusula de compromisso de combate
prostituio, o governo brasileiro prescindiria dos US$ 40 milhes destinados aos projetos de
preveno, graas s condies impostas, a seu turno, pelas ativistas do movimento social de
prostitutas. A metodologia por pares, recente e hoje bastante utilizada para a implementao
das mais variadas polticas pblicas, fomenta o processo de construo de categorias sociais
que, por fim, contribuem com as estatsticas oficiais.
Documento referencial para aes de preveno das DST e da AIDS: profissionais do Sexo.
Braslia, DF: Ministrio da Sade, Secretaria de Polticas de Sade, Coordenao Nacional
de DST e AIDS, 2002. 160p.(Manuais, n. 47).
v. Moraes, 1996 e os jornais: Tribuna da Imprensa e O Fluminense de 20/07/1987; O Globo,
O Dia, Jornal do Brasil e ltima Hora de 21/07/1987; O Globo de 22/07/1987 e ltima
Hora de 24/07/1987.

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ilustr-lo por uma srie de crculos concntricos designadores tanto


das zonas sucessivas de extenso urbana quanto dos tipos de reas
diferenciadas no processo de expanso.19 Assim, j naquela poca,
ele situava a prostituio na zona de Loop, tambm chamada Zona
Central de Comrcio (I); na zona de transio, ou de deteriorao (II)
e na zona residencial (IV).
Transpondo o seu esquema para a cidade do Rio de Janeiro, vemos
que aqui o mesmo ocorria: no centro de comrcio, no qual se situam
a Praa Tiradentes e o Campo de Santana, e em cujo prolongamento
tambm se encontra a Praa Mau, junto ao cais do porto, o cenrio
marcado pela presena das prostitutas de rua, que fazem o trottoir
e frequentam bares, clubes e cinemas cuja programao se destina
exibio de filmes ou espetculos erticos. A prostituio de bordel,
tambm chamada prostituio localizada,20 concentra-se na zona de
transio, na qual podemos classificar a Vila Mimosa II, situada em
um recanto da Praa da Bandeira, e, igualmente, o Mangue e o seu
ltimo ncleo de prostituio, a Vila Mimosa, cujas casas, transformadas em bordis, funcionaram na regio central da cidade at 1996,
quando a prefeitura ps abaixo o casario para a construo do Centro
Administrativo e Comercial do Municpio.21 Um tipo de prostituio
mais discreta, pois confinada aos apartamentos e sustentada por um
pblico de maior poder aquisitivo, ficaria reservada, por fim, s reas
residenciais da cidade. Nesta modalidade, o bairro de Copacabana se
sobressai na geografia moral carioca.

19

20

21

Burgess, 1970, p.356. Neste trabalho, Burgess define o zoneamento da cidade da seguinte
maneira: A figura I [o ncleo dos crculos concntricos] representa uma construo ideal
das tendncias de qualquer cidade para expandir-se radialmente da sua Zona Central de
Comrcio representada na figura pelo Loop (I). Circundando a rea central h normalmente
uma zona de transio, que est sendo invadida pelo comrcio e pela manufatura leve (II).
Uma terceira zona (III) habitada por trabalhadores das indstrias que fugiram da rea de
decadncia (II), mas que desejam viver em ponto de fcil acesso ao seu trabalho. Alm dessa
zona acha-se a zona residencial (IV) de prdios de apartamentos de alta classe ou de sees
restritas de moradias isoladas de uma s famlia. Mais longe, alm dos limites polticos da
cidade, acha-se a zona de commuters reas suburbanas ou cidades satlites onde residem
os commuters, que cada dia til vo ao centro de manh para trabalhar e voltam noite
dentro de trinta ou sessenta minutos de viagem da zona central de comrcio.
A esse respeito, ver a entrevista com Armando Pereira, delegado que durante anos trabalhou
no 13. Distrito de Polcia, situado na Zona do Mangue, regio central da capital carioca onde,
durante quase um sculo, se concentrou o baixo meretrcio da cidade. Ver Pereira (1966).
Simes (2010).

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O denominador comum de cada um desses tipos de prostituio o


lenocnio, isto , a organizao comercial que garante a prostituio
de outrem. O cften, o rufio, a cafetina, o proxeneta, o gigol, o
dono de bordel, de termas ou de casas de massagem, figuras, enfim,
que possibilitam o trabalho ou vendem proteo prostituta contra
ataques de clientes ou mesmo contra agentes do Estado, so, segundo
as leis brasileiras, o nico aspecto criminal da prostituio. Enquanto
a chamada prostituio localizada costuma ser tolerada por configurar uma espcie de cordo sanitrio e regio moral que responde
aos interesses do poder pblico, a prtica do trottoir, mais visvel e
difusa, combatida por mtodos muitas vezes violentos. Na dcada
de 1960, a polcia da capital recolhia cerca de 80 mulheres por dia,
o que, ao final do ms, somava cerca de 1400 mulheres levadas s
delegacias e encaminhadas s malocas, local em que permaneciam
detidas de dois a cinco dias em condies inexistentes de higiene.
Nesses recintos, eram obrigadas a dormir no cho e, frequentemente,
tambm molestadas pelos policiais que as guardavam.
A humilhao ou a obrigao de obedincia so, contudo, prticas
de controle igualmente disseminadas nos estabelecimentos da chamada prostituio localizada. Nessas cidadelas geridas pela figura do
proxeneta,22 a prostituta torna-se a menina da casa. Mas, para tanto,
deve ser domesticada pelos gerentes ou proprietrios. No final dos anos
1950, em um bordel da capital paulista, Lagenest presenciou a cena em
que uma cafetina virou na mesa o prato com o almoo de uma prostituta que lhe devia trs dirias.23 J em 2002, o gerente de uma casa na
Vila Mimosa II contou a esta etngrafa ter agredido uma prostituta que
trabalhava em seu estabelecimento, pois a mulher fazia uso da cocana.
Com a formao das associaes de prostitutas, portanto, as agresses
fsicas e outras humilhaes, atos que marcam o processo incriminatrio do sujeito, passaram a ser identificados como problemas no mais
individuais, mas coletivos e, principalmente, concernentes aos direitos
civis. Para compor e difundir esta conscincia entre os membros da
categoria, as reunies semanais, mensais e anuais tornaram-se uma das
atividades mais importantes dessas associaes. No Rio de Janeiro, o
22

23

O termo grego proxenus, segundo o Dictionary of Classical Antiquities, designa o


representante do Estado destacado para proteger e assistir os estrangeiros. H ainda a
acepo que lhe designa a funo de hospedeiro pblico ou intermedirio em transaes
comerciais.
Lagenest (1960, p.13).

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Frum de Profissionais do Sexo, de mbito estadual, foi criado para


ser um espao em que as mulheres pudessem discutir questes relativas, especificamente, ao trabalho sexual e qualidade das interaes
mantidas com outros agentes durante o exerccio do seu ofcio. O teor
ftico das conversas e narrativas trazidas para esse tipo de encontro em
que expem seus dramas pessoais e coletivos contribui, em uma certa
medida, para fortalecer a identidade e fundar a solidariedade de classe.
Em um sobrado prximo ao Campo de Santana, parque situado a
poucos metros da Praa Tiradentes, acontecem esporadicamente as
reunies do Frum de Profissionais do Sexo. Em um desses encontros, a diretora, h mais de 30 anos na prostituio, informava aos 22
presentes que o grupo, assim como as reunies, tinham sido criados
para acabar com a discriminao. Discursava vigorosamente sobre a
importncia da autoestima para o desempenho satisfatrio de todos os
papis que sua vida lhe exigia e citava, como exemplo, os de me,
av, dona-de-casa e esposa, mostrando que o de prostituta
no a impedia de exercer aqueles representativos da vida domstica,
da mulher direita, da mulher da casa e feita para o casamento.
A minha profisso prostituio, mas eu sou Ivanilda Santos de
Lima e quero ser reconhecida como pessoa, certo? Uma das coisas
do grupo isso: mostrar pra sociedade que somos pessoas.24
Na experincia do amor, como diz Honneth, se inscreve a possibilidade de autoconfiana; na experincia do reconhecimento jurdico,
o auto-respeito e, por fim, na experincia da solidariedade, a da
autoestima.25 Esses trs padres de reconhecimento so, por assim
dizer, as condies intersubjetivas sob as quais o sujeito adquire novas
formas de se autoperceber. Segundo o autor, os indivduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros
que os assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos
como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades.26
A profisso mais antiga...: evocao do mito
e completude do sujeito
evocao de um mito espera-se restituir um sentido qualquer no
mundo. Considerar a prostituio como a profisso mais antiga ,
24
25
26

Reunio de 25 de julho de 2001.


Honneth (2003, p.272).
Ibidem.

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entre outras coisas, imaginar um status mais elevado para essa atividade. No sculo XIX, o uso do termo profisso se aplicava aos mtiers
prestigiosos e qualificados caracterizados por servios prestados em
benefcio de outrem. De acordo com esse princpio, mdicos e advogados eram prottipos do que se entendia por profisso,27 ou seja,
um papel a ser desempenhado por meio de determinadas atividades e
tarefas socialmente reconhecidas como moral e eticamente corretas.
Por essa razo, Everett Hughes considerava que o conceito de profisso antes um julgamento de valor e prestgio do que um termo
descritivo. Em sua opinio, a pergunta este ofcio uma profisso?
obscurece questes mais fundamentais como, por exemplo, em que
circunstncias os membros de um mtier tentam transformar o seu ofcio em uma profisso?.28 A resposta nos oferecida pelo prprio autor
quando conclui: que a tendncia profissionalizao corresponde
mobilidade coletiva de uma parte de seus membros.29 Desembaraar
o ofcio daqueles que no acompanham essa mobilidade , portanto,
tambm um dos objetivos do empreendimento de profissionalizao,
uma vez que o termo profisso pode ser interpretado como um
smbolo da concepo do trabalho que reivindicado e, por conseguinte, um smbolo do eu.30
Considerando ser o termo profisso um julgamento de valor e apregoando, junto com o senso comum, que a prostituio a profisso
mais antiga do mundo, ouviremos, sem dificuldade, muitas histrias
tristes e nada prestigiosas sad stories integrando o repertrio de
argumentao da prostituta de modo a justificar, paradigmaticamente,
a sua entrada noo demarcadora na prostituio.
O indivduo munido de uma triste histria, diz Goffman, pode organizar sua vida; mas, em contrapartida, dever resignar-se a viver
em um mundo incompleto no qual figura como algum prestes a ser
desacreditado em funo dos atributos do esteretipo que encarna.31
Ao fazer uso da histria triste, que relata o momento fundador da
possesso do seu estigma,32 a prostituta se desembaraa, justamente,
27
28
29
30
31
32

Hughes (1966, p.63).


Ibidem, p. 77.
Ibidem.
Hughes (1966, p.77).
Goffman (1975, p.30).
Ibidem.

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da responsabilidade de ter efetuado uma escolha pelo ofcio. Por serem


eminentemente tristes, essas narrativas justificadoras distanciam o
sujeito das virtualidades confiana, respeito e estima que lhe asseguram o autorreconhecimento positivo do qual necessita para se sentir
uma pessoa normal33 e, entre outras coisas, uma profissional.
Mudar o registro da justificao de uma fatalidade para algo que
pode ser percebido como uma opo entre outras , portanto, abrir
uma perspectiva sobre as responsabilidades implicadas nessa escolha.
Um horizonte profissionalizante pode, ento, se esboar. E, entre as
responsabilidades assumidas para a oferta de tal servio, o cuidado do
prprio corpo se pronuncia como uma das tarefas requisitadas para o
desempenho da funo de prostituta. Embora tal tentativa de conserto
no mude o status do indivduo estigmatizado, permite, contudo, uma
transformao do ego34 e, com isso, novas formas de agir.
neste sentido que fazer reconhecer a prostituio como uma
ocupao35 tornou-se um dos principais objetivos das associaes
de prostitutas, no Brasil e em outros pases, encontrando apoio entre
os agentes do Ministrio da Sade. Aps o I Encontro Nacional de
Prostitutas, realizado no Rio de Janeiro, em 1987, outros similares
foram sendo organizados em vrias capitais do pas. No I Encontro
Norte-Nordeste de Prostitutas, realizado em Recife, em 1988, elas
discutiram a retirada do captulo V do Cdigo Penal e lanaram o
primeiro jornal destinado categoria, o Beijo da Rua; no I Encontro
das Prostitutas Gachas, realizado em Porto Alegre, em 1989, foram
relatados os problemas de humilhao institucionalizada, como, por
exemplo, a existncia de um termo de vadiagem a ser assinado na
delegacia pelas prostitutas presas ilegalmente nas ruas da cidade; e
no I Encontro de Prostitutas do Par, realizado em Belm, no ano
de 1991, as mulheres puderam contar com o apoio institucional do
governo daquele estado. Naquele mesmo ano, uma rdio comunitria foi criada na Vila Mimosa.36 E, no ano seguinte, o Programa
Prostituio e Direitos Civis desvincula-se do Instituto de Estudos da
Religio (ISER) e passa a existir como a organizao no governamental Davida Prostituio, Sade e Direitos Civis, assessorando
33
34
35

36

Ibidem.
Ibidem, p. 18-19.
A diferena entre ocupao e profisso tnue, e depende, como j vimos at aqui, mais
do prestgio de um ofcio do que de suas prticas e tcnicas.
Leite (1992); Moraes (1996); Simes (2010).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

a fundao de novas associaes em todo o pas e difundindo, por


intermdio do jornal Beijo da Rua, os ideais da Rede.
No devemos negligenciar o fato de que o contexto poltico brasileiro
havia se tornado, tambm, propcio ampla mobilizao social. Em
1988, a Assembleia Constituinte promulgou a nova Constituio, e,
com ela, o Ministrio da Sade criava o Sistema nico de Sade (SUS)
e o seu Programa Nacional de AIDS, que viria a desempenhar um
papel determinante de incentivo formao associativa das prostitutas
em todo o pas por meio das coordenaes estaduais e municipais de
DST/AIDS.37 O aparato institucional de promoo e apoio s associaes passou a refletir tanto o resultado da mobilizao desse grupo
quanto um estmulo participao poltica cada vez mais florescente.
Agentes de sade, profissionais do sexo e, mais recentemente,
profissionais da sexualidade so terminologias gestadas e cunhadas na
dmarche desse tipo de atividade associativa e no dilogo estabelecido
entre os grupos organizados e o Estado. Para este, tais terminologias
permitem melhor formular as aes multiplicadoras, com a qual
se espera alcanar um determinado resultado junto aos membros da
categoria do agente. No que concerne aos interesses dos grupos, essas
terminologias, de fato, no passam de eufemismos, mas, por outro lado,
realam procedimentos e capacidades desenvolvidas por uma prtica,
possibilitando manter o debate sobre a prostituio, nas mais diversas
arenas,38 sob a perspectiva do trabalho e, mais precisamente, luz de
determinadas competncias reconhecidas para o exerccio de um ofcio.
Ofcio e custos aprendidos, por sua vez, nas interaes que ocorrem
em determinados horrios, situaes, ruas e casas da cidade e que
sero, a seguir, objeto de nossa ateno.
A prostituio e a cidade: trajetria de um grupo
Durante quase todo o sculo XX, o Rio de Janeiro comportou, em sua
regio central, conhecida como Cidade Nova, uma vasta rea onde
o baixo meretrcio floresceu e perdurou. A Zona do Mangue, como
era chamado aquele conjunto de ruelas e casas que se estendia s
37

38

Para maiores informaes sobre as aes desse programa junto a este pblico, ver o
Documento Referencial para Aes de Preveno das DST e da Aids, Srie Manuais no 47,
do Ministrio da Sade (2002).
Para a definio do conceito, utilizo o trabalho de Cefa (2002).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

margens do canal, estava prxima das estaes dos trens da Central


do Brasil e da Leopoldina, e ligava-se ao cais do porto pelo bairro
da Gamboa. Alm disso, abrigava em seu permetro pequenos alojamentos, cortios, penses e casas de zungu39 que logo propiciaram o
acolhimento dos trabalhadores que por ali passavam em suas rotinas
cotidianas ou na chegada cidade.
Precisamente pela sua localizao e pelo alto nmero de pessoas que
concentrava,40 instalaram-se nos limites do Mangue duas instituies
disciplinares responsveis por destinar quela rea a funo capital
de um cordo sanitrio. A primeira delas foi o Hospital So Francisco de Assis, em 1922, que passou a funcionar no antigo prdio do
primeiro asilo de mendigos da cidade. Dois anos antes de abrirem as
portas como hospital destinado ao tratamento de doenas venreas,
o governo da antiga capital da Repblica j havia mandado retirar as
prostitutas que faziam o trottoir em outros bairros centrais, obrigando-as a permanecerem nos lupanares do Mangue durante a visita do rei
e da rainha da Blgica cidade. A segunda instituio disciplinar
instalada naquela zona foi o 13 Distrito de Polcia, que mantinha
em seus arquivos um fichrio com o nome de todas as mulheres que
trabalhavam nos bordis locais.
Tais medidas prenunciavam ser o Mangue o lugar ideal para a localizao do baixo meretrcio carioca, contribuindo para a definio dos
espaos morais da cidade e, pela tica higienista de ento, tambm
para o controle da sfilis e de outras doenas venreas que assombravam a vida da populao no incio do sculo XX. Junto a isso, a
grande mobilidade dos habitantes dessa rea era um dos distintivos
que davam Cidade Nova o carter de rea natural41 do baixo meretrcio no Rio de Janeiro.
39

40

41

O termo zungu data de 1877 e, em lngua quimbundo (nzangu), quer dizer confuso,
barulho, rixa. As casas de zungu possuam as mesmas caractersticas das casas de cmodo.
Entre 1920 e 1930, para cada trs brasileiras que trabalhavam no Mangue havia uma
estrangeira. As polacas e as francesas eram maioria, contabilizando cerca de dez mil
escravas brancas que entre 1918 e 1930 desembarcaram nos portos brasileiros para se
prostiturem. Nas fichas reunidas no 13 Distrito de Polcia v-se que ali tambm aportaram
romenas, russas, iugoslavas, argentinas e, entre todas, predominavam as judias, pois muitos
traficantes de mulheres eram israelitas. Cf Pereira (1966).
Este conceito, criado por Robert Ezra Park para designar reas cujas atividades resultam
da interao social e no do planejamento oficial, evoca a ideia de uma ecologia urbana
determinada por fatores econmicos e sociais que influem na distribuio da populao em
reas de trnsito, lazer, moradia e trabalho. Cf Park (1979); Zorbaugh (1970, p.410).

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Entretanto, o inexorvel processo da expanso urbana pouco a pouco confinou e reduziu os seus domnios. Em 1945, a construo da
Avenida Presidente Vargas ps abaixo cerca de quinhentos edifcios
da regio, entre eles quatro igrejas, um mercado, a sede da prefeitura e muitas casas onde funcionavam bordis, espalhando, entre os
moradores da cidade, o medo de que a prostituio proliferasse para
outros bairros. Em 1954, iniciou-se a experincia conhecida como
Repblica do Mangue, termo cunhado pelos policiais da Delegacia
de Costumes e Diverses (DCD) com o objetivo de fichar as prostitutas daquela rea para que fossem exercidos os controles mdico42 e
policial.43 Em 1967, a visita da rainha Elizabeth II e de sua comitiva
tornaria o casario parcialmente invisvel para aqueles que cruzassem
a Avenida Presidente Vargas. A ordem dos militares era esconder o
Mangue com tapumes e, com isso, traar, finalmente, os limites da
zona. Em 1970, o Jornal do Brasil chegou a anunciar o fim do
Mangue. Mais de 30 casas estavam sendo desapropriadas e outras
tantas deveriam passar pelo mesmo processo, pois, desde o incio,
a dcada de 1970 seria marcada pelas obras de construo do metr
e do Centro Administrativo So Sebastio (CASS), nova sede da
Prefeitura do Rio de Janeiro.44
Com as obras, a rea abrangida pelo CASS no mais deixava espao
para um novo deslocamento das prostitutas. Havia, porm, em um
pequeno trecho fronteirio entre a Cidade Nova e o bairro do Estcio,
uma travessa com casas, prxima ao stio reurbanizado e estao
de metr, onde os bordis seriam reinstalados, pela ltima vez naquele bairro, em 1979. Em seu prtico se lia Vila Mimosa, e a vila,
anteriormente ocupada por famlias, viria a se tornar um smbolo de
resistncia da Zona do Mangue.45
O mangue resiste
Meu desejo seria estar presente, em pessoa, ao
ato pblico do 10 de dezembro, no Circo Voa42
43
44

45

Sob a orientao do Hospital Gafre e Guinle.


A cargo do 13. Distrito de Polcia.
A populao da cidade prestou uma jocosa anti-homenagem nova sede do governo
municipal, apelidando-o de Piranho, uma explcita aluso alcunha popular de prostituta
e meno que faz voracidade carnvora do peixe amaznico. Na cidade, todos conhecem
a sede da prefeitura pelo nome de Piranho, e mesmo os seus funcionrios se referem ao
local de trabalho utilizando este nome. Mais recentemente, um prdio anexo foi construdo e,
novamente, a populao lembrou a antiga rea dos bordis, dando-lhe a alcunha de cafeto.
Moraes (1996).

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dor, para assegurar minha total solidariedade


Rede Nacional de Prostitutas engajada em luta
dura e difcil para denunciar as violncias de
que esto sendo vtimas os habitantes da regio
do Mangue, em especial as prostitutas, s quais
so negados quaisquer direitos, os mais mnimos, vtimas de grilagem urbana, especulao
imobiliria, corrupo e irregularidades administrativas e discriminaes sociais. O que est
sucedendo algo monstruoso e deve despertar a
indignao de cada um de ns, de todos os que
desejamos o fim do arbtrio e da discriminao.
Juntemos nossas vozes e nossos esforos aos
dos habitantes do Mangue que pleiteiam que a
regio seja transformada em rea de preservao ambiental. Busquemos impedir que mais
um crime seja cometido contra a populao do
Rio e, em especial, contra o grupo social mais
terrivelmente marginalizado e perseguido: as
prostitutas. No podendo estar pessoalmente
presente, venho me solidarizar com o que nesse ato se decida em defesa da democracia dos
direitos humanos.
(Jorge Amado, Bahia, 1987)

Meses depois do I Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, os


jornais novamente fariam a cobertura da mobilizao da categoria, desta
vez contra as ameaas que vinham sofrendo dos prepostos de um pastor
da igreja evanglica,46 dono de uma extinta rede de TV,47 cujos estdios
haviam sido instalados no prdio ao lado dos bordis da Vila Mimosa.
A carta acima transcrita anteriormente, enviada da Bahia pelo escritor
Jorge Amado, expressava o quanto a questo adquiria gravidade num
pas recentemente redemocratizado. Os problemas que se abatiam
sobre as prostitutas eram, cada um deles, os mesmos que ameaavam
a nova ordem: arbtrio e discriminao.
Com o apoio de ONGs, artistas e pessoas ligadas a pastorais da Igreja
Catlica, as prostitutas da Vila Mimosa organizaram um ato pblico
46
47

Nilson Fanini.
TV Rio.

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de repdio contra a violncia, a especulao imobiliria e a discriminao social, quando disseram entender que atos como este no
servem seno para discriminar e extinguir no s com as prostitutas,
mas tambm com outras comunidades carentes que lutam pela preservao do seu espao e a garantia dos seus direitos.
Este texto, parte do discurso lido durante a manifestao O Mangue
resiste,48 passou a integrar um dossi organizado pela Associao da
Vila Mimosa, fartamente documentado com abaixo-assinado, recortes de jornal, cartas, telegramas, levantamento das desapropriaes
e relatos de habitantes do entorno. O drama chegaria ao fim com o
decreto assinado pelo prefeito Saturnino Braga instituindo a concesso do comodato das casas da Vila Mimosa s suas proprietrias.49
Quase 20 anos se passaram at que, em 1995, a Vila Mimosa teria
seu fim determinado pelo Projeto Teleporto, que previa um traado
inteiramente novo para o entorno do CASS, no qual seria instalado
o mais moderno centro de telecomunicaes da cidade. A prefeitura
indenizou os proprietrios dos bordis, efetuando o pagamento de
Cr$ 350 mil em nome da Associao de Prostitutas da Vila Mimosa.
Mas o montante, segundo a crnica do grupo, fora roubado pela
presidente e com ela desaparecera poucos dias antes do incio das
demolies.
Novamente espalhou-se pelos bairros centrais e pelos subrbios da
Central e da Leopoldina o rumor e o temor da instalao da zona
em suas circunvizinhanas. Decididas a reconstrurem aquele cenrio,
cafetinas e prostitutas se cotizaram na compra de um galpo industrial
desativado, com 2500m2, existente nas proximidades do antigo ponto.
Os moradores do lugar resistiram manifestando-se nos dias que antecederam a mudana e construindo, naquele dia, barreiras de pneus, s
quais ateavam fogo, diante do nico acesso ao lugar, feito por sob o
pontilho dos trilhos dos trens da Central. Mas os caminhes da prefeitura avanavam, trazendo nas carrocerias as mulheres e seus pertences.50
48

49

50

Realizado no Circo Voador, no dia 10 de dezembro de 1987. V. Jornal do Brasil e Tribuna


da Imprensa de 10/12/1987.
V. Jornal do Brasil de 25 de novembro de 1987: O Mangue Resiste: prostitutas garantem
ajuda do prefeito na luta contra o pastor, O Globo do mesmo dia e os jornais Tribuna da
Imprensa, O Dia e O Globo de 26 de novembro de 1987.
V. jornais O Dia, 03/01/1996; O Globo, A Notcia, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa
e O Dia, 04/01/1996; Jornal do Brasil e A Notcia, 05/01/1996 e tambm o jornal francs
Le Monde, cuja capa do dia 06/01/1996 anunciava Le dmnagement spectaculaire des

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Durante os primeiros dias, at mesmo carros que permaneceram


estacionados em frente ao galpo foram queimados pelos moradores
contrafeitos. Uma cafetina registrou imediatamente a ata de fundao
da nova associao e as negociaes com a vizinhana pouco a pouco
foram dando o tom de uma convivncia possvel que, por fim, mudaria
de modo radical a vida, a economia e o comrcio de proximidade desse
recanto situado nas cercanias da Praa da Bandeira. Os moradores,
outrora irredutivelmente contra a instalao dos bordis, foram, com
o tempo, percebendo na nova vizinhana uma demanda por servios
e, para supri-la, passaram a alugar quartos, vender roupas ntimas,
perfumes, bijuterias e comida, cuidar de crianas, lavar roupas e at
mesmo oferecer aulas de reforo para jovens estudantes. At uma
capela foi ali erguida, marcando a fronteira moral entre antigos e
novos habitantes do lugar.
Dentro do galpo, o arranjo do espao foi concebido de tal modo a
recriar a ambincia de uma rua, com janelas voltadas para o passeio
e as soleiras prontas a exibirem mulheres para todos os gostos. A
extravagncia das cores e dos materiais das fachadas, bem como as
luzes vermelhas, fluorescentes ou mesmo estroboscpicas que escapam pelas janelas e portas dos 38 estabelecimentos indo iluminar o
corredor por onde circulam, diariamente, os milhares de clientes da
Vila Mimosa II, fazem dessa inslita avenida uma espcie de galeria
benjaminiana de quadros vivos, para xtase e contemplao de seus
frequentadores mais exigentes. 51 Hoje no mais restritos ao interior
do galpo chamado, ento, de Vila Me, os bordis ocupam os dois
lados da rua, em quase toda a sua extenso, junto com as barraquinhas
de comida e bebida, lanhouses52 e um ou outro salo de beleza, facultando uma flanerie ainda mais convidativa e propiciando clientela
maior oferta de servios.
Todas essas casas, antes habitadas por famlias residentes, foram por
estas vendidas para os novos empreendedores locais durante o processo de expanso do negcio, que acabou por valorizar esses imveis em
at 500%.53 O aumento surpreendente se deve estipulao do preo
51
52

53

prostitues de Rio.
Mello et al. (2007).
Estabelecimentos comerciais que oferecem acesso internet. So frequentados
majoritariamente por jovens, em especial do sexo masculino, que l passam horas jogando
videogames pela internet.
Segundo clculos de seus atuais donos, muitas casas foram vendidas por cerca de R$5.000,00,

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de cinco reais pelo aluguel de um quarto para cada vinte minutos de


programa,54 o que, considerando a mdia de cinco quartos em cada
casa e a circulao de milhares de homens nos fins de semana, indica a rentabilidade do negcio ainda acrescida do alto consumo de
bebidas que, a despeito de seu elevado preo na Vila Mimosa, muitas
vezes responde pelos lucros do estabelecimento.
Deixamos de ser zona: somos vila mimosa
Qualquer prostituta pode trabalhar na Vila Mimosa II, bastando,
para isso, pagar R$5,00 ao gerente da casa pelo uso da cabine onde
atender o cliente. At chegar ao local, entretanto, a mulher j recebeu indicaes de pessoas conhecidas ou que, em algum momento,
tomaram conhecimento de sua necessidade de trabalhar ou de complementar o oramento ou, ainda, identificaram uma carncia afetiva,
condio que tambm favorece o encaminhamento da mulher para
o trabalho na prostituio. Taxistas, gerentes e outras prostitutas so
os principais agenciadores, pois conhecem o mtier e logo percebem
ou procuram saber as razes que tornam possvel o aceite da novia.
Cerca de 1500 pessoas trabalham nos 78 estabelecimentos da Vila
Mimosa II, em dois ou trs turnos. Este nmero contempla gerentes,
vendedores ambulantes, barraqueiros,55 seguranas, cabeleireiros,
manicures, taxistas, motoboys,56 funcionrios da associao e, em maior
nmero, prostitutas. Quanto a estas, a Associao diz serem mais de
mil, nmero este que flutua devido permanncia intermitente das
mulheres na prostituio. Grande parte das que trabalham na Vila
Mimosa tem entre 20 e 29 anos e somente o primeiro grau completo.
Se os motivos que as fazem optar por essa atividade se caracterizam
por carncia pecuniria ou afetiva, o casamento o que mais contribui
para o afastamento da prostituio. No meio de uma tarde, horrio de
baixa frequentao nos bordis, a etngrafa participa de uma conversa
com o dono de um estabelecimento e a prostituta que considerava a

54

55
56

chegando, em 2008, a receberem uma cotao de at R$100.000,00.


Termo com que se nomeia o perodo em que a prostituta passa com o cliente para efetuar a
relao sexual.
Pessoas que vendem comida e bebida em pontos fixos dentro dos galpes ou na rua.
Servio de txi feito em motocicletas existente, hoje, em grande parte das favelas da cidade
para suprir uma demanda local. O preo fixo e bastante inferior ao cobrado pelos taxistas.

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possibilidade de mudar de ofcio, at que ele, exagerando um certo


ar de fastio, resume a chorumela: Vocs casam toda hora!.57
Este mesmo empresrio, sempre que lhe parecia necessrio, proferia
palavras enaltecedoras e carinhosas para as prostitutas. O acolhimento,
dizia ele, era crucial para o bom andamento do trabalho. Seria um
estmulo para a prostituta se engajar no acirrado jogo da seduo
de um cliente. Mas o acolhimento, naquele vero de 2001, no se
restringia mais apenas interao face a face entre donos-de-casa,
gerentes e prostitutas. Referia-se infraestrutura para o trabalho,
organizao para o lazer e prpria propaganda do lugar. Por isso o
investimento na construo de sales de beleza na sede da associao
e nos bastidores de algumas casas; na realizao de desfiles de moda
e festas comemorativas de aniversrios e dias santos; na instalao
de aparelhos de musculao para uso das mulheres; na implantao
de um ambulatrio e no atendimento psicolgico destinado a elas;
nos projetos de incluso digital e bancria para benefici-las;58 nas
atividades que visam informar sobre a preveno de DST, do HIV e da
AIDS; e, por fim, na construo de um site (<www.vilamimosa.com.
br>) que divulga na Internet as aes promovidas pela Associao.
A assuno de um projeto institucional pelos donos e donas-de-casa59
da Vila Mimosa II se desdobrou, enfim, na criao de mecanismos
que visavam elevar os traos positivos da coletividade, de maneira a
eclipsar aqueles que colocam em perspectiva as inmeras histrias
tristes da vida na prostituio. Entretanto, o trabalho social aparece
no site como a grande vedete das aes promovidas pela associao
dos donos-de-casa.60
Pensadas luz de novas justificativas sociais que pudessem produzir
contextos mais favorveis insero dessa associao nos campos poltico, econmico e social, tais iniciativas buscavam tambm dissociar
a ideia de baguna, de desordem, sinnimos de uma das acepes
57

58

59
60

Bruna Surfistinha, garota de programa que conquistou fama internacional ao publicar sua
autobiografia, confessa: eu parei de fazer programas porque eu consegui atingir o que eu
queria e encontrei um verdadeiro amor..
A Caixa Econmica Federal enviou dois funcionrios Vila Mimosa II para realizarem a
abertura de contas sem exigncia de comprovao de renda para as prostitutas. Foram abertas
mais de 300 contas, com depsitos iniciais de R$250,00 a R$1.000,00. V. jornal Beijo da
Rua, dezembro de 2003: Caixa vai zona abrir contas para profissionais.
Categoria local para cafetina.
Uma de suas mais ativas diretoras acaba de se formar no curso de Servio Social.

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de zona, do ambiente da prostituio. Vontade esta sintetizada nas


palavras de um dos membros da associao: deixamos de ser zona:
somos Vila Mimosa.
As instituies que hoje apoiam os projetos da Associao figuram
na pgina principal do site: Unesco, Governo do Estado do Rio de
Janeiro, Governo Federal, Ministrio da Cultura, Escritrio contra
Drogas e Crime das Naes Unidas, Conselho Nacional de DST/
AIDS e Assessoria DST/AIDS do Ministrio da Sade, Secretaria
de Sade do Estado do RJ, Centro de Articulao de Populaes
Marginalizadas (CEAP), Brazil Foundation e Fundo Angelo Borba
de Recursos para Mulheres. Um anncio intermitente indica: Aqui
voc tem: assistncia mdica, atendimento psicolgico, aulas de
ingls/espanhol, aula de informtica, palestras sobre cidadania, conta
bancria, poupana, plano de previdncia, consrcio para a casa
prpria. A pgina Biblioteca destina-se exclusivamente difuso
de textos sobre DSTs e AIDS. H fotografias de festas, campanhas
de preveno e campanhas polticas nas quais aparecem desfigurados
os rostos das prostitutas; apenas algumas donas-de-casa se deixam
mostrar. Por fim, e com grande destaque, o visitante pode conhecer
a histria pica registrada pela associao sobre a Zona do Mangue,
a Vila Mimosa e a Vila Mimosa II.
O submundo no congresso
No mesmo ms em que a Associao da Vila Mimosa II organizou o
desfile inaugural, o diretor e a presidente foram a Ipanema, na Zona
Sul da cidade, participar de um jantar oferecido pelo deputado federal
Fernando Gabeira. O assunto que os levara quela reunio estava
diretamente associado aos seus interesses empresariais, pois, naquela
noite, o parlamentar apresentaria a 50 convidados o seu projeto de lei
para a retirada dos artigos 228, 229 e 231 do cdigo penal.61 Inspirado
na legislao alem,62 em vigor desde janeiro daquele ano, o projeto
brasileiro pressupunha a possibilidade de contratos trabalhistas entre
prostitutas e cafetes e cafetinas que, com a retirada do lenocnio do
universo da ilegalidade e do crime por meio do reconhecimento legal
de seu exerccio, passariam a ser vistos como empresrios.
61
62

Ou seja, aqueles que capitulam criminalmente o lenocnio.


Em 01 de janeiro de 2002 entrou em vigor na Alemanha a lei que suprimiu do Cdigo Penal
Alemo o crime de favorecimento da prostituio.

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Junto com prostitutas das praas Mau e Tiradentes e do Campo de


Santana, jornalistas, ativistas e empresrios do bas-fond carioca, os
dois representantes da Vila Mimosa II ouviram atentamente a exposio do deputado que, com sua postura poltica libertria e habitual
nonchalance, devotadas, desde o incio de sua carreira, elucidao
dos usos e dos costumes que instituem a marginalidade social e poltica de determinados grupos sociais, props ser o porte-parole das
prostitutas no Congresso Nacional. Quero esclarecer que nasci e vivi
ao lado de uma zona de prostituio e as prostitutas tiveram um papel
fundamental na minha educao, protegendo-me e orientando-me
em situaes perigosas. Uma calorosa salva de palmas confirmou a
aceitao de sua proposta. Para todas aquelas ali presentes, o projeto
do deputado representava o coroamento dos vrios anos de aguerrida
participao nas mais diversas arenas pblicas pelo reconhecimento
dos direitos civis, polticos e sociais da categoria.
No entanto, para o diretor e a presidente da Vila Mimosa II, o projeto
era apenas o comeo das mudanas que poderiam afetar completamente seus negcios, e merecia, portanto, ser ampla e exaustivamente
debatido. A presidente se contrapunha ideia aludindo vergonha
de ter o nome do ofcio registrado em uma carteira de trabalho e aos
desdobramentos negativos de tal exibio curricular. O diretor, por
sua vez, enumerava as aes da Associao para melhor contrast-las
e distingui-las, moralmente, da dissimulao da prostituio levada a
termo pelos proprietrios de hotis e motis cariocas, conscientes da
necessidade de se desembaraarem desse tipo de relao de trabalho.63
Embora ausentes, no foi sem incmodo que se ressentiu, na ocasio,
a falta dos pudicos representantes da hotelaria carioca.
As divergncias entre os representantes das duas categorias prostitutas e proxenetas se explicitaram naquele jantar, agora para um
grupo seleto porm ecltico de ativistas e, como se no bastasse, em
uma instncia heternoma. A plateia testemunhava que, aos olhos
dos dois empresrios, a prostituio era uma atividade provisria e
circunstancial, enquanto que para as prostitutas militantes, as mais
interessadas no projeto de lei, era fundamental esclarecer a possibilidade da escolha pela prostituio, assim como a permanncia na
atividade para, por conseguinte, se poder exigir a garantia de direitos
63

V. Beijo da Rua, ago./set. 2002.

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trabalhistas, incluindo os demais benefcios previdencirios garantidos


pelo tempo de trabalho em determinado tipo de ocupao.
No chamado submundo, a venda de proteo prostituta, ou seja, o
lenocnio a mercadoria poltica64 responsvel pela manuteno da ordem. O mercado onde esse tipo de mercadoria circula essencialmente
criminalizado e a extorso e as transaes de proteo dependem
de uma rede de estranha forma de confiana estabelecida entre os
envolvidos e derivada da situao de ilegalidade de que partilham.
Conforme observa Misse, a economia das ligaes perigosas entre
mercados informais de bens econmicos ilegais ou criminalizados e
mercadorias polticas ilcitas se alimenta, assim, paradoxalmente, das
prprias polticas de criminalizao que demarcam esses mercados.65
Sem vergonha, garota: voc tem profisso
Paralelamente arena formada em torno da descriminalizao das
relaes de trabalho no universo da prostituio, o Ministrio do
Trabalho se empenhava para inserir a atividade na ltima edio de
sua Classificao Brasileira de Ocupaes (CBO). O novo inventrio
das ocupaes brasileiras seria publicado em 2003, mas foi tambm
naquele ano de 2002 que os delegados do MT reuniram-se em um
hotel, em Copacabana, com dez prostitutas representantes das cinco
regies do pas Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste para
cumprirem a tarefa de definio da atividade a partir das condies
gerais do seu exerccio, das competncias66 pessoais exigidas e dos
recursos materiais necessrios para o seu pleno desempenho.

64
65

66

Misse (1997).
O autor cita como exemplos desse tipo de mercadoria poltica, cuja criminalizao decorre
do emprego da violncia para fins privados, a proteo oferecida pela mfia siciliana, as
negociaes de preo pelo resgate de sequestrados no Rio de Janeiro, ao longo dos anos
1990, e o assassinato por encomenda feito pelos chamados grupos de extermnio.
Ocupao e competncia so as bases conceituais da CBO. O primeiro termo compreende,
em sua definio, emprego ou situao de trabalho, que um conjunto de atividades
desempenhadas por uma pessoa, com ou sem vnculo empregatcio. O segundo faz distino
entre nvel de competncia e domnio (ou especializao) da competncia, sendo aquele
funo da complexidade, amplitude e responsabilidade das atividades desenvolvidas no
emprego ou relao de trabalho e este as caractersticas do contexto do trabalho como
rea de conhecimento, funo, atividade econmica, processo produtivo, equipamentos,
bens produzidos que identificaro o tipo de ocupao ou profisso. Cf. Informaes Gerais
sobre a CBO, documento disponvel no site do Ministrio do Trabalho e Emprego: <http://
www.mtecbo.gov.br/informacao.asp>.

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

Foram dois dias e duas noites de intensas discusses e muitas ponderaes e reflexes a respeito do ofcio e das vantagens e desvantagens
encontradas durante as atividades, segundo as diversas reas geogrficas do Brasil. As prostitutas do estado do Par,67 no norte do pas,
defendiam como parte do trabalho ocupar-se das compras e das roupas
de seus homens no garimpo, assim como a aplicao de sua renda
em pepitas de ouro. Os contextos criados pela prostituio nos mais
variados meios urbanos do pas ali se manifestavam, dando mostras
da complexidade dos procedimentos e da metodologia aplicada pelo
MT na construo das categorias profissionais brasileiras.
A principal etapa do processo de definio de uma nova categoria
consiste em enumerar todas as atividades que constituem o ofcio e
as competncias que os membros consideram relevantes para o seu
pleno exerccio, de modo que seja possvel, em seguida, evidenciar
o contexto em que as aptides se fazem necessrias. Tal propedutica
visa dar maior preciso ao conjunto que distinguir uma ocupao
de outra, estabelecendo particularidades e limites entre labores que
demandam competncias muitas vezes idnticas.
De acordo com o sistema classificatrio da CBO, a prostituio pertence ao Grande Grupo 5, que rene:
[...] trabalhadores dos servios e vendedores
do comrcio em lojas e mercados. Este grande
grupo compreende as ocupaes cujas tarefas
principais requerem para seu desempenho os
conhecimentos e a experincia necessrios para
prestaes de servios s pessoas, servios de
proteo e segurana ou a venda de mercadorias em comrcio e mercados. Tais atividades
consistem em servios relacionados a viagens,
trabalhos domsticos, restaurantes e cuidados
pessoais, proteo s pessoas e bens e a manuteno da ordem pblica, venda de mercadorias
em comrcio e mercados.

No conjunto de tarefas elaborado pela comisso ad hoc de representantes do mtier, encontram-se atividades designativas de outras
ocupaes lavar roupas, por exemplo, e situadas em contextos
67

Grupo de Mulheres Prostitutas da rea Central de Belm (GEMPAC).

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

bastante especficos o garimpo. Como competncia, foram citados,


unanimemente, os diversos modos de seduo. Nesse momento, diante
do acordo sobre a principal prtica da prostituio, algum sugeriu
incluir uma competncia cuja propriedade era, antes, a de uma tica:
no cortejar companheiros de colegas de trabalho. Paradoxalmente
marcada pelo decoro, a compostura e a moralidade, a deontologia da
ocupao prostituio ganharia forma, a partir daquele instante, para
em seguida ganhar mundo nas pginas da Classificao Brasileira
de Ocupaes (CBO).
As participantes definiram as competncias e atividades caractersticas da prostituio a partir da enumerao das etapas que abrangem
desde a preparao para o trabalho produzir-se at o cuidado
com a formao de aprendizes isto , a difuso de um conhecimento
elaborado pela prtica do ofcio. As etapas do trabalho de prostituta
foram assim definidas: batalhar programa, minimizar as vulnerabilidades, atender clientes, acompanhar clientes, administrar
oramentos, promover a organizao da categoria e realizar
aes educativas no campo da sexualidade. Cada etapa configurou
um grupo formado por competncias especficas, dentre as quais
surgiram: dar conselhos a clientes com carncias afetivas, posar
para fotos, fazer compras para o garimpo, lavar roupas dos garimpeiros, cuidar de garimpeiros enfermos, inventar histrias,
cuidar da higiene pessoal do cliente, encantar com a voz, seduzir
com o olhar, conquistar com o tato, envolver com o perfume,
reconhecer o potencial do cliente, satisfazer o ego do cliente,
denunciar discriminao, usar e distribuir preservativos e manter
relaes sexuais. Alm das prticas sinestsicas e, por que no dizer,
psicanalticas voltadas para a interao com o cliente, para o pleno
desenvolvimento do ofcio foram includas, ainda, aes educativas
no campo da sexualidade, com a elaborao de roteiros para peas
teatrais, aconselhamento a meninas de rua, palestras na rede de ensino
e nos cursos de formao e reciclagem de policiais.
Note-se que a construo mesmo da categoria ocupacional sintetiza o
drama social do prprio trabalho. Os personagens, portanto, esto l:
garimpeiros, policiais, clientes, companheiros das colegas.68 Com eles,
68

Il faut se rappeler quun mtier nest pas seulement un faisceau de tches, mais aussi un
rle social, le personnage que lon joue dans une pice [drama] (HUGHES, 1996, p.72).

471

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

os cuidados a serem observados durante a interao que engendram:


usar preservativo, denunciar discriminao e violncia fsica.
E, desse modo, finalmente evidenciam-se, na construo de uma
categoria profissional, alguns princpios fundamentais que justificam
socialmente a atividade. A inspirao do artista, a tradio de um
mtier, a competncia tcnica de uma profisso ou o civismo de um
ofcio so alguns exemplos de princpios reclamados como virtudes
e tica de suas respectivas identidades.69
Apesar das particularidades includas no registro e no necessariamente experimentadas por todos os membros da categoria, a exegese
da ocupao deixa entrever que as circunstncias enfrentadas por um
membro e as maneiras com que ele responde a elas so muito semelhantes quelas experimentadas e resolvidas por outros integrantes da
mesma categoria. Goffman observou que essas semelhanas existem
apesar da caracterstica ou do estigma que os aproxima, e no
por causa dela, constatando, com isso, a pertinncia de um estudo
institucional do eu, entre o eu e sua sociedade significativa, sem
precisar depender manifestamente de dados a respeito do que a pessoa
diz que imagina ser.70 Nesse sentido, a exegese de uma ocupao
acaba sendo tambm a exegese dos mores de uma sociedade.
As efemrides de 2002 fizeram, assim, com que as associaes das
prostitutas gozassem de uma espcie de anno mirabilis da histria
da prostituio no Brasil. Essa foi em muito favorecida pelas relaes construdas com as instituies federais, especialmente com o
Ministrio da Sade que, alm de financiar os projetos institucionais
das associaes, lanou, tambm em 2002, uma campanha nacional
de preveno das DST e da AIDS intitulada Sem vergonha, garota:
voc tem profisso. No Brasil, sem vergonha tambm sinnimo
de mulher da vida, puta, prostituta. A campanha tirou partido desse
denominativo, conferindo-lhe outro sentido: conclamando a prostituta
a deixar, ao contrrio, de ter vergonha, pois, afinal, o papel desempenhado ascendia ao status honroso de uma profisso.71
69
70
71

Desrosires; Thvenot (2002, p.37).


Goffman (1961, p.112).
O jingle da campanha, veiculado nas rdios de todo o pas, fazia coro a esse chamado: Sei
que a vida a levou por diversos caminhos / Por sobrevivncia ou amor voc vende carinhos
/ No se arrisque nem um instante, no v se esquecer / A sua sade importante / Cuide
bem de voc / Voc profissional do amor, profissional do prazer / Por isso tome cuidado,
com cliente ou namorado / Voc tem que se proteger.

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Destinada especificamente s prostitutas, a campanha se empenhou


em afirmar, pela primeira vez na histria das polticas pblicas, a
identidade profissional da prostituta, agora alada brao direito
do trabalho preventivo proposto pelo Ministrio da Sade.
Em uma sociedade bacharelesca, para dizer nos termos de Gilberto
Freyre, ter uma profisso significa, entre outras coisas, ser mais respeitado por indivduos e instituies pblicas. Everett Hughes investe
na mesma direo e prope que se entenda em quais circunstncias
os membros de um mtier passam a pretender transform-lo em uma
profisso, e quais so as etapas que tm de vencer para aproximarem-se do modelo valorizado de uma profisso.72
Professio, palavra latina da qual se origina, designa o ato de proferir,
de manifestar publicamente ou diante de uma comunidade religiosa
os votos expressivos da crena, da f ou da opinio que se apregoa.
Desse ponto de vista, sugere a eleio e o engajamento rotineiro em
um conjunto determinado de atividades e modos de proceder. Supe,
portanto, uma dedicao constante, em vez das intermitncias provocadas por alguma eventualidade ou pelo circunstancial. Suscita,
finalmente, a assuno de um papel e, com isso, determinados modos
de se definir situaes no drama da vida social.
Concluso
Robert Ezra Park j havia observado, em 1916, que na cidade,
qualquer vocao, mesmo a de mendigo, tende a assumir o carter
de profisso.73 Qualquer savoir faire , na cidade, passvel de desenvolver uma organizao com posies socialmente definidas e
regras de conduta que regulam o trabalho nessa ocupao.74 A prpria
cidade, enquanto cenrio, se encarrega de desenvolver nos indivduos
talentos especficos resultantes do hbito, do costume, da educao
e sobretudo das trocas e interaes que encontram lugar nos mais
variados meios urbanos.
Diferentemente dos grupos sociais, os tipos vocacionais, na concepo
de Park, no surgem de interesses comuns, mas, antes, de estmulos
provenientes de outras formas de associao que se baseiam na con72
73
74

Hughes (1996, p.77).


Park (1979, p.26-67).
Becker (1986).

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tiguidade a vizinhana, por exemplo e na associao pessoal. Por


isso, frequentar lugares na cidade tanto criar quanto submeter-se
aos acontecimentos que neles ganham vida. , em poucas palavras,
ser socializado.
Em nossa anlise da prostituio e de suas formas de organizao
e mobilizao, cuidamos para que o leitor no perdesse de vista a
cidade, ela mesma resultado de incontveis formas associativas. Sem
a materialidade de suas construes, de seus edifcios, casas, esquinas, praas, ruas e avenidas, seus horrios, ritmos e jogos de luzes e
sombras, os personagens e seus dramas no poderiam ser perseguidos
pela observao a que nos propomos.

REFERNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. O vocabulrio da praa pblica na obra de
Rabelais. In:
. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo: Hucitec;
Braslia, DF: Edunb, 1996.
BARRUEL DE LAGENEST. Lenocnio e prostituio no Brasil. Rio
de Janeiro: Agir, 1960.
BECKER, Howard. A Escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro, v.
2, n. 2, p.177-188, 1986.
BURGESS, Ernest. O crescimento da cidade: introduo a um projeto de pesquisa. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia
humana. So Paulo: Livraria Martins, 1970.
CEFA, Daniel. Quest-ce quune arne publique?: quelques pistes
pour une perspective pragmatiste. In: CEFA, D.; JOSEPH, I. (Ed.).
Lhritage du pragmatisme. La Tour dAigues: ditions de lAube,
2002. p.51-83.
DESROSIRES, Alain; THVENOT, Laurent. Les catgories socioprofessionnelles. Paris: La Dcouverte, 2002.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
1961.

. Manicmios, prises e conventos. So Paulo: Perspectiva,

474

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3 Prova / Kthia /02/05/2011

HONNETH, Axel. Luta pelo reconhecimento: a gramtica moral dos


conflitos sociais. So Paulo: Ed. 34, 2003.
HUGHES, Everett C. Le regard sociologique: essais choisis. Paris:
ditions de lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, 1996.
LEITE, Gabriela Silva. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1992.
MELLO, Marco Antonio da Silva et al. Si tu vas Rio!: Isaac Joseph
et lexprience brsilienne. In: CEFA, Daniel; SATURNO, Carole
(Org.). Itineraires dun pragmatiste: autour dIsaac Joseph. Paris:
Economica, 2007.
MISSE, Michel. As ligaes perigosas: mercado informal ilegal,
narcotrfico e violncia no Rio. Contemporaneidade e Educao, Rio
de Janeiro, v. 2, n. 1, p.93-116, 1997. Disponvel em: <http://www.
ifcs.ufrj.br/~misse/perigo.doc>.
MORAES, Aparecida Fonseca. Mulheres da Vila: prostituio, identidade social e movimento associativo. Petrpolis, RJ: Vozes, 1996.
PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano em meio urbano. In: VELHO, Otavio Guilherme
(Org.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p.26-67.
PEREIRA, Armando. Prostituta no caso de polcia. In: PEREIRA,
Armando et al. A prostituio necessria? Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966. p.59-74.
SIMES, Soraya Silveira. Vila Mimosa. Niteri: EdUFF, 2010.
SURFISTINHA, Bruna. O doce veneno do escorpio: o dirio de
uma garota de programa. So Paulo: Panda Books, 2005.
ZORBAUGH. reas naturais. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos
de ecologia humana. So Paulo: Livraria Martins, 1970.

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POSFCIO

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ISAAC JOSEPH: DIRIO


DE BORDO, PERCURSOS,
EXPERINCIAS URBANAS
E IMPRESSES DE PESQUISA
Marco Antonio Mello,1 Roberto Kant de Lima,2
Licia do Prado Valladares,3 Felipe Berocan Veiga4

Ao longo de 16 anos, de 1988 a 2004, Isaac Joseph visitou cinco vezes o Brasil.5 Aqui permanecendo por muitas semanas e percorrendo
numerosas regies de extenso continental, teceu profundas relaes
com seus colegas e estudantes e desenvolveu com seus amigos brasileiros uma rede de trocas acadmicas e de pesquisa.
So essas interaes que abordaremos, apoiados sobre testemunhos
de pesquisadores e estudantes brasileiros. E o faremos oferecendo ao
leitor uma apreenso de conjunto dessas interaes acadmicas distribudas e organizadas em quatro momentos: a descoberta do Brasil
e a constituio de uma primeira rede de amizades; a cooperao
universitria por meio do programa Capes-Cofecub; o trabalho de
expertisecomo consultor; por fim, a consolidao das amizades e o
engajamento com os estudantes sur place, ou seja, no campo.
1

2
3
4
5

Professor do Departamento de Antropologia da UFF e UFRJ. Coordenador do LEMETRO


e Pesquisaro do INEAC/UFF.
Professor da UFF e Coordenador do INEAC/UFF.
Professor da Universit CILLE 1.
Doutorando do PPGA/UFF. Pesquisador LEMETRO UFRJ e INEAC/UFF.
Uma verso desse texto foi originalmente publicada em Francs, com o ttulo Si Tu Vas a
Rio! Lexprience brsilienne dIsaac Joseph In: CEFA, D.; SATURNO, C. (Ed.). Itinraires
dun pragmatiste: autour dIsaac Joseph. Paris: Economica, 2007. p.235-259.

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

1 O estrangeiro descobrindo o Brasil


A primeira viagem de Isaac Joseph ao Brasil remonta a 1988, por
ocasio da conferncia Urban Restructuring: Trends and Challenges, organizada pelo comit de pesquisa 21, Urban and Regional
Development, da Associao Internacional de Sociologia. Acolhida
pelo Instituto Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro IUPERJ
e coordenada conjuntamente por Edmond Prteceille e Licia Valladares, o colquio teve lugar no Rio de Janeiro. Isaac Joseph havia sido
convidado para participar de uma sesso sobre a violncia urbana e
a fazer, alm disso, palestras e conferncias em outras instituies
de ensino e de pesquisa.
Parece que essa primeira experincia foi determinante para a continuidade de uma promissora histria das relaes entre o socilogo e
o Brasil: de sada, uma forte cumplicidade se estabeleceu com alguns
colegas brasileiros, incio de uma aventura apenas em seus comeos.
Desde essa primeira visita, a cidade do Rio de Janeiro, seus moradores
e tipos populares deixaram uma forte impresso sobre Isaac Joseph.
As cores, os contrastes no espao social e no espao pblico, a pobreza, a alegria, os corpos se esbarrando, a juventude da populao.
Ele queria ver tudo e tudo saber. Observador atento e refinado, um
acaso feliz lhe permitiu entrar em contato com os bastidores, o que
todo antroplogo desejaria encontrar durante suas pesquisas.
Por ocasio do colquio e das discusses sobre a violncia urbana, um
dos participantes apresentou seu trabalho sobre a polcia brasileira
a partir de uma rica etnografia que vinha de analisar em sua tese de
doutorado em Harvard. Era Roberto Kant de Lima, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ao fim dos debates, Kant, em
resposta s objees no pertinentes que lhe foram dirigidas, convidou
alguns colegas para uma inabitual visita a uma delegacia de polcia
que se encontrava nas proximidades, justamente ao lado do prdio da
sala de conferncias, como maneira de dissipar as dvidas que tinham
sido levantadas, em lugar de se perder em rplicas enfadonhas em
torno de argumentos dissociados da dimenso emprica, oferecendo
a todos uma oportunidade imperdvel de colocar em prtica aquilo
que acabava de ser apresentado. Animado pela provocao do convite, Isaac Joseph era um daqueles que partiram para a delegacia,
onde evidentemente o delegado no se encontrava. Apesar de uma
certa resistncia do policial de planto, o grupo foi admitido e todos
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puderam ver os procedimentos e as condies materiais de deteno


dos delinquentes: a cadeia e as celas da delegacia.
Esse primeiro contato tinha sensibilizado Isaac Joseph. O socilogo e
o antroplogo se engajaram a partir de ento numa animada conversa,
o que levou Roberto Kant a convidar seu colega a passar um final de
semana do outro lado da baa de Guanabara, em Niteri. A cidade a
porta de entrada de uma regio lacustre, onde esto algumas das praias
mais procuradas pelas classes mdias e abastadas do Rio. Na praia
de Itaipu, Kant apresentou Isaac Joseph aos pescadores que tinham
sido objeto de uma etnografia realizada nos anos 1970. Ele encontrou
tambm nessa ocasio Marco Antonio da Silva Mello, antroplogo
que tinha conhecido anteriormente, na Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ. Este tambm tornar-se-ia um amigo e passaria, anos
mais tarde, um perodo acadmico e de pesquisa na Frana, realizando
ento trabalho de campo sobre o bairro parisiense de Belleville.
Naquela poca, Isaac Joseph era ainda lyonnais, mas j trabalhava em
colaborao com a RATP. Seus trabalhos sobre o metr parisiense j
evocavam ento seu interesse pelo espao pblico, sobre a incivilidade.
Evidentemente, estas foram tambm questes da Escola de Chicago,
de Park e Simmel a Goffman e Becker. Nas suas malas, havia trazido
um vdeo sobre o metr de Paris e seu livro sobre a Escola de Chicago,
escrito e organizado em parceria com seu colega Yves Grafmeyer.6
2 Isaac joseph e a cooperao internacional
Essa primeira viagem inaugurou as seguintes. Os primeiros laos
pessoais e profissionais com um grupo de pesquisadores brasileiros
acabaram por levar, alguns anos mais tarde, a uma colaborao
sistemtica e enriquecedora para as duas partes envolvidas. nesse
quadro mais formal que as relaes entre Isaac Joseph e o Brasil
foram oficialmente desenvolvidas.
Um dispositivo institucional tornou possveis tais intercmbios: os
acordos interuniversitrios Capes-Cofecub entre o Brasil e a Frana,
visando estimular a formao e as trocas acadmicas em torno de
problemticas comuns em vrios domnios cientficos.
Sob a sugesto inicial de Roberto Kant de Lima, que via em Isaac
Joseph um parceiro potencial, intelectualmente estimulante, e que
tambm via numa cooperao internacional a possibilidade de
6

Grafmeyer; Joseph (1984).

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

consolidar o Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFF


(PPGA/ICHF-UFF), um acordo intitulado Espao pblico, conflitos
e democracia numa perspectiva comparada foi estabalecido entre a
Universidade de Paris X-Nanterre, a UFF e o IUPERJ.
A partir de 1998, misses de curta e longa durao foram estabelecidas
nos dois sentidos entre os dois pases, almejando a construo de uma
relao acadmica slida em torno de Isaac Joseph que, embora no
fosse o nico, era sem dvida o personagem central do acordo. Por
seu turno, Daniel Cefa, colega de Isaac Joseph em Nanterre, tinha
coordenado de 1997 a 1999 um programa de intercmbio com Vera
da Silva Telles, Maria Clia Paoli e Cibele Risek, da Universidade
de So Paulo (USP), conduzindo assim a vertente paulista da rede.
Na sequncia, Isaac Joseph, como professor titular e chefe do Dpartement de Sociologie da Universidade de Paris X, veio ao Brasil em 1998,
no quadro do acordo que acabava de ser inaugurado, retornando em
1999, para uma temporada no Rio com Martine Segalen, que o havia
sucedido na direo do referido departamento. Mas ele vai tambm a
Salvador na Bahia e participa do seminrio internacional sobre poder
local organizado por Tania Fisher, diretora do Programa de Desenvolvimento e Gesto Social. Nessa oportunidade, apresenta a comunicao
Gare du Nord Interconnections et Rseaux. Depois retornaria a
Salvador em 2000 e 2001, convidada por Anete Leal Ivo, diretora do
Centro de Recursos Humanos (CRH) da Universidade Federal da Bahia.
Tais viagens ofereceram a oportunidade de Isaac Joseph aprofundar
as relaes com os membros do programa de cooperao interuniversitria, encontrar os estudantes brasileiros, ampliar os laos com a
comunidade de pesquisadores e difundir, assim, suas ideias no Brasil.
No Rio de Janeiro, faz conferncias no somente na UFF, mas tambm no IUPERJ-UCAM, assim como em dois outros importantes
institutos de ensino e pesquisa da UFRJ: o Instituto de Filosofia e
Cincias Sociais (IFCS) e o Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional (IPPUR).
Entretanto, sua estreia diante da comunidade acadmica de cientistas
sociais brasileiros se deu por ocasio de sua participao numa mesa-redonda organizada em torno do tema A Escola de Chicago, seu
impacto no Brasil e na Frana no 23 congresso anual da Associao
Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (AN482

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POCS), a mais importante reunio do gnero no somente no Brasil,


mas em toda Amrica Latina. Num concorrido auditrio, diante de
mais de 300 pesquisadores ali reunidos, Isaac Joseph apresentou sua
original leitura da contribuio de Chicago para o campo das teorias
sociais e da pesquisa sociolgica propriamente dita, ao lado de Licia
Valladares, Gilberto Velho, Juarez Brando Lopes e Mario Eufrasio.
O interesse despertado entre seus colegas socilogos e antroplogos
abriu-lhe as portas das editoras universitrias e organismos de financiamento para as primeiras publicaes de seus trabalhos traduzidos
no Brasil. Em 2000, seu livro Erving Goffman e a Microssociologia
traduzido para o portugus. Na ocasio, concede uma longa entrevista
BIB Revista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias
Sociais sobre a Escola de Chicago e sua recepo na Frana.7 Entre
as suas publicaes no Brasil esto trs outros ttulos: Gabriel Tarde:
le monde comme ferie (belo texto de introduo obra de Tarde);8
Paisagens urbanas, coisas pblicas (artigo resultado de um trabalho
tcnico de consultoria sobre os espaos pblicos e a disponibilidade
dos servios);9 e A respeito do bom uso da Escola de Chicago (captulo originalmente escrito para referida coletnea conjuntamente
organizada com Yves Grafmeyer).10
Isaac Joseph desempenhou mais do que um simples papel de interlocutor: abriu as portas para numerosos pesquisadores brasileiros, como
um verdadeiro construtor de redes de amizades; mostrou-nos seus
campos de pesquisa e apresentou aos seus colegas do Departemento
de Sociologia de Paris X-Nanterre, do IPRAUS-CNRS, do GSPM-EHESS, do LAMES-MMSH e da RATP. Frequentemente abriu sua
agenda e caderno de endereos para ajudar os colegas a estabelecer
contatos com outros pesquisadores franceses os quais no necessariamente trabalhavam nas instituies ou sobre os temas de pesquisa
aos quais ele estava diretamente vinculado.
Mas, sem nenhuma dvida, foi o colquio em Cerisy-la-Salle (junho
de 1999), sobre o tema Culturas cvicas e democracias urbanas, o
evento catalisador para os brasileiros. Organizado por Isaac Joseph
e Daniel Cefa, esse colquio era o coroamento dos dois acordos
com o Brasil que, do lado francs, cada um deles coordenava. Os
7
8
9
10

Valladares; Kant de Lima (2000).


Joseph (2000).
Ibidem (2000).
Joseph (2004).

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

organizadores almejavam debater as relaes entre espao pblico


urbano, poltica urbana e ao coletiva e tinham convidado, alm de
brasileiros e franceses, toda uma rede de pesquisadores de diferentes
pases, entre os quais norte-americanos, colombianos, mexicanos,
venezuelanos, italianos etc. Para os brasileiros, a ocasio era uma
espcie de gesto de amizade, sob a forma gentil de contra-dom, em
retibuio ao acolhimento que ambos receberam no Brasil. O tema do
colquio o devir urbano do poltico, o devir urbano da democracia, a
constituio pluralista do pblico estava no centro das preocupaes
de muitos dos participanetes brasileiros. Esses eram numerosos: seis
professores da UFF, um da UFRJ, dois da UFBA e quatro da USP.
A publicao do livro resultado do colquio, LHritage du pragmatisme: Conflits durbanit et preuves de civisme,11 testemunha
a amizade intelectual concedida pelos editores a seus parceiros
brasileiros. Os esforos de Isaac Joseph para difundir os trabalhos
dos brasileiros aparecem tambm em muitos nmeros dos Annales
de la recherche urbaine e da revista Communications. Convidando-os sistematicamente para integrarem bancas de tese, intervirem em
seminrios, participarem de colquios e proferirem conferncias,
expressava de modo inequvoco a admirao e o respeito intelectual
que dedicava aos seus colegas brasileiros, integrando-os condignamente vida acadmica de seu pas.
No quadro do Acordo Capes-Cofecub, muitos professores-pesquisadores da UFF puderam desfrutar de perodos de trabalho na Frana,
como Roberto Kant de Lima, Marco Antonio Mello, Laura Graziela
Gomes, Delma Pessanha Neves, Simoni Lahud Guedes e Ari de Abreu
Silva. Um certo nmero de franceses desse e de outros acordos de
cooperao internacional estreitaram laos ou mesmo viajaram ao
Brasil em diferentes momentos para apresentar seminrios e conferncias: Martine Segalen, Daniel Cefa, Dominique Vidal, Michle
Jol, Roselyne de Villanova, Marc Breviglieri, por exemplo. E numerosos estudantes de doutorado, na condio de bolsistas-sanduche
da CAPES, puderam fazer seus estudos na Universit de Paris X e
na cole des Hautes tudes de Sciences Sociales: Vicente Riccio,
Vnia Morales Sierra, Renata Luzia Feital de Oliveira, Joo Roberto
Lopes Pinto, Maria Guiomar da Cunha Frota, do IUPERJ; Alexandre
Werneck, da UFRJ; e, finalmente, Patrcia de Arajo Brando Couto,
11

Cefa; Joseph (2002).

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

Ktia Santo S Mello, Soraya Silveira Simes, Fbio Reis Mota e


Letcia de Luna Freire, da UFF.
O Acordo CAPES-Cofecub foi renovado em 2003 em torno de um
novo projeto, intitulado Sociologia da experincia privada e pblica
no Brasil e na Frana. A repblica no cotidiano: conflitos sociais,
engajamentos associativos e provas pessoais, reunindo, alm de I.
Joseph, R. Kant, M. Mello et D. Cefa, pesquisadores como Marc
Breviglieri, Dominique Vidal, Pedro Jos Garca Snchez, Laurent
Thvenot e Luis Antnio Machado da Silva, entre outros. A pesquisa,
que se debruava sobre as dinmicas do engajamento coletivo, as
formas de justificao pblica e os dispositivos da ao pblica, era
confrontada com as provas de uma sociologia da experincia cotidiana,
dos sentimentos morais e dos direitos ordinrios; numa palavra, uma
microssociologia aplicada s pesquisas conduzidas por professores e
estudantes do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/
ICHF-UFF) e do Laboratrio de Etnografia Metropolitana (LeMetro/
IFCS-UFRJ).
Por ocasio de sua ltima estada no Rio, em agosto de 2001, Isaac Joseph havia passado numerosas jornadas nas universidades, no NUFEP
e no LeMetro, ouvindo com ateno os estudantes de Roberto Kant e
de Marco Mello, discutindo seus temas de pesquisa e respectivas etnografias. Alm disso, havia passado diversas tardes e soires em suas
companhias: fosse Arraial do Cabo, uma antiga aldeia de pescadores a
poucas horas do Rio, com Ronaldo Lobo, evocando as questes ambientais; ou com Paulo Thiago de Mello nos botequims, esses bistrots
cariocas que tinham sido objeto de seu trabalho de campo; ou Soraya
Simes que lhe tinha feito descobrir os bairros da prostituio na Vila
Mimosa, nos quais ela desenvolvera seu trabalho de etnografia; ou
na companhia de Felipe Berocan, frequentando a Lapa e a Feira de
So Cristvo, ambincias urbanas concorridas da cidade; ou com
Mello no bairro do Catumbi e no Mercado de Madureira, seus temas
de pesquisa urbana desde a dcada de 1970; ou, ainda, com Roberto
Kant e Ricardo Maciel visitando Itaipu, um povoado de pescadores,
discutindo um projeto de reserva extrativista marinha.
3. Isaac joseph, expert em coisa pblica
As visitas de trabalho se multiplicaram mas Isaac Joseph ainda no
havia escrito sobre o Brasil. A oportunidade, no entanto, lhe foi
oferecida entre julho e agosto de 2001, por ocasio de sua ltima
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

visita ao pas. Por iniciativa de Carlos Vainer, pesquisador do IPPUR,


Isaac Joseph foi convidado para uma consultoria tcnica a propsito
do espao pblico de Belm do Par, no quadro do programa de
democracia participativa lanado pela prefeitura, ento dirigida por
um ex-estudante do IPPUR filiado ao Partido dos Trabalhadores. Esse
texto, Belm: paysage urbain, chose publique, escrito em colaborao
de Carole Saturno, veio a ser mais tarde traduzido e publicado em
portugus.12
Isaac Joseph somente aceitou essa misso depois de ter visitado o
Brasil inmeras vezes: aprendera a decodificar os usos da praia ou
aqueles da polcia, estava a par dos problemas de proteo e manejo
ambiental, do funcionamento dos servios pblicos e havia lido
atentamente os trabalhos dos pesquisadores brasileiros. A misso
conduzida conjuntamente com Carlos Vainer tinha por objetivo
explorar as possibilidades de uma contribuio sociolgica ao trabalho deflagrado pela Prefeitura de Belm no quadro de sua poltica
de gesto municipal democrtica sobre diferentes espaos pblicos
da cidade: o Mercado Ver-o-Peso, o maior mercado de pescado da
Amrica Latina, instalado em prdio construdo na cidade amaznica,
nos ureos tempos da riqueza ligada explorao da borracha, e a
antiga zona porturia, hoje convertida em centro comercial chique,
a Estao das Docas (localmente chamado de estao dondocas).
Pela primeira vez, essa misso de pesquisa-ao tinha permitido a
Isaac Joseph encontrar-se com os polticos locais brasileiros (prefeitos,
secretariado, vereadores) e os responsveis pelo planejamento urbano
e pela estruturao das reas pblicas. Recebido pelo prefeito, ele
pde avaliar as ambies da democracia participativa brasileira,
sendo Belm uma das cidades-piloto em matria de oramento
participativo. Cada projeto era discutido localmente nos bairros.
Assim, se colocava a questo: como reabilitar o mercado um bem
tombado pelo patrimnio , associando os habitantes da cidade,
muitos dos quais, nos bairros desfavorecidos beira-rio (as baixadas),
no possuam sequer gua encanada disponvel? Nesse mesmo
sentido: como reabilitar as antigas docas para permitir o acesso de um
nmero maior de pessoas? Seria a construo de um centro comercial
chique, protegido por grades, de costas para a cidade e para as suas
realidades, a melhor maneira de restituir a cidade aos seus usurios?
12

Joseph (2004). O artigo precedido de apresentao, escrita por Carlos Vainer, p.33-39.

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

Diante dessas contradies, Isaac Joseph colocava a questo da


acessibilidade, da fronteira pblico/privado, da construo social
da paisagem, dos usos e da hospitalidade. Tinha esquadrinhado as
ruelas do mercado, das primeiras horas do dia ao pr-do-sol to
espetacular sobre o rio. As guas piscosas do rio ofereciam alguns
dos raros recursos econmicos para uma grande cidade ainda pobre.
No cais, os caminhes frigorficos com destinao ao centro-sul do
Pas aguardavam a carga de toneladas de peixes, ali mesmo lavados e
enxaguados nas ruas do centro da cidade. tarde, quando o mercado
se esvazia, o bairro passa a ter sua reputao mal-afamada. a hora
da chuva, cotidiana. Mais tarde ainda, um terrao que avana sobre
o rio, verso popular do bairro das docas, revisto e corrigido, permite
aos namorados e famlias em alvoroo contemplar o mergulho do sol
nas guas do rio. A animao se desloca para as baixadas, a noite se
estende at a madrugada ao som do brega e ao ritmo das cervejas.
Com esse trabalho de campo, Isaac Joseph pode colocar em prtica
algumas de suas ideias e competncias, sua capacidade de observao
e de anlise, reunindo um toque de reflexo comparativa internacional. A leitura do texto nos ensina que mesmo em seu papel de expert
ou de consultor, ele permanece crtico, numa postura de pesquisador
independente e observador atento.
4 Journal de voyage: percursos e impresses de Isaac Joseph no
Rio de Janeiro e Niteri
Com boa disposio e grande interesse pelo cotidiano das cidades,
Isaac Joseph passou a visitar os lugares em que seus colegas realizavam suas pesquisas. Essas idas a campo na companhia dos estudantes
tornaram-se, ao longo dos anos, atividades regulares em suas viagens
ao Brasil, aonde encontrou um ambiente acolhedor que o deixava
bastante vontade, fazendo do trabalho acadmico uma atividade
prazerosa, como deixava transparecer sua expresso de contentamento. Mostrava-se admirado com a diversidade de temas e campos
empricos aos quais se dedicavam seus colegas, como testemunham
as notas de campo e registros desses encontros, deixando entrever
os ambientes, os cenrios urbanos, as observaes e o teor das boas
conversas mantidas.

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

O Mercado de Madureira
Na Zona Norte da cidade, regio quase nunca frequentada por estrangeiros de passagem pelo Rio, situa-se o popular Mercado de
Madureira, lugar inusitado que Isaac Joseph conheceu na companhia
de Mello, em 1998. Reputado orgulhosamente por seus lojistas como
o metro quadrado comercial mais caro do Rio, o Mercado uma
espcie de centro de peregrinao do chamado povo-de-santo, como
so conhecidos os adeptos das religies afro-brasileiras. Nele so
feitas as compras piedosas dos requisitos necessrios e incontornveis
para a realizao dos rituais que constituem a complexa e requintada
liturgia dos candombls, cujas casas de culto encontram-se difundidas
por toda a regio metropolitana.
Esse importante mercado tinha sido, alguns anos antes, objeto de uma
pesquisa realizada por Mello, Arno Vogel e Jos Flvio Pessoa de
Barros. Embora conhecesse Galinha dAngola: iniciao e identidade
na cultura afro-brasileira,13 livro que resultara em grande parte daquele empreendimento etnogrfico, no se poderia dizer que a temtica
da religio entusiasmasse Isaac Joseph. No entanto, interessado na
cidade e em suas centralidades deslocadas, aceitara o convite para
visitar o terrain de seu colega.
Incerto quanto escolha do lugar para esta que seria sua primeira sada
pela cidade na companhia do amigo, inicialmente chegou a imaginar
que seu convidado pudesse sentir-se desconfortvel ou pouco interessado; mas, natural do Cairo e morando em Belleville, prximo ao
Faubourg du Temple, esse mundo no s no lhe era estranho como
particularmente o atraa. Para surpresa do colega, Isaac se movia com
absoluta naturalidade em meio s coisas do mercado. Nada lhe parecia
ser estranho. A distino, talvez, fosse a inflexo da pauta religiosa
dominante na economia desse grande mercado urbano, frequentado
por ebmins, ias e abis, muitos deles membros cultivados dessa
burguesia negra carioca, fiel s tradies afro-brasileiras.
Isaac no fazia nenhum mistrio em percorrer as galerias do Mercado
filmando tudo, sem nenhum embarao, produzindo imagens de sua
organizao e estrutura interna que se tornariam nicas, pois o edifcio,
em janeiro de 2000, pegaria fogo, sendo inteiramente destrudo. Em meio
ao conjunto de cerca de 300 lojas e pblico dirio de aproximadamente
13

Vogel; Mello; Pessoa de Barros (2007).

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80 mil pessoas, pde constatar a vitalidade dessa economia, no somente


pela variedade e quantidade dos produtos oferecidos, mas tambm
pela riqueza do artesanato ligado herldica dos orixs e da pauta de
consumo dos exigentes membros dessa pequena corte que so os
terreiros de candombl. Detinha-se em comentrios sobre os jogos de
cena envolvendo a chinoiserie dos rituais de interao desempenhados
sob os olhos atentos e indiscretamente curiosos do socilogo.
No ano seguinte, numa manh de sbado, 30 de outubro de 1999,
Isaac Joseph retornou ao Mercado; dessa vez com Martine Segalen,
sua colega de Dpartement. Na companhia de Mello, Arno e Felipe,
a ateno dos visitantes foi capturada por um gnero peculiar de
conflito: evidenciavam-se no mercado as disputas no campo religioso
entre os devotos do candombl e da umbanda e os fiis das igrejas
pentecostais e neopentecostais, inflacionadas pela arrogncia dos
membros mais exaltados da Igreja Universal do Reino de Deus. Os
embates e os processos de converso e reconverso no campo religioso
levaram muitos proprietrios de lojas a passar seus pontos comerciais
adiante. Eles dizem que tudo coisa do demnio, comentavam,
referindo-se intolerncia dos novos convertidos.Outros mudaram
completamente de ramo de negcios, aderindo aos proverbiais enfeites
de festas infantis e halloweens, em total desacordo com a ambincia
mais envolvente.
No Bairro do Catumbi
Alm da visita ao Mercado, Mello props a Isaac conhecer ainda
os lugares e os amigos de um antigo terrain, empreendido por ele e
Arno, em 1979, sobre os usos e as formas de apropriao dos espaos
pblicos para fins de lazer em um bairro tradicional carioca. Aceito
o convite, seguiram para o Catumbi, bairro contguo s adjacncias
da rea central de negcios do Rio de Janeiro.
Como nos velhos tempos, e na certeza de que encontraria os amigos
de sempre e os frequentadores das animadas rodas de conversa, Mello
levou Isaac at o Armazm So Jos, na esquina das ruas Van Erven
e Emlia Guimares, um dos postos preferidos de observao da vida
ativa das ruas do bairro e, ele mesmo, foco da etnografia realizada
naquele ento. Sur place, o primeiro encontro logo viria desfazer,
naquela tarde excessivamente quente e abafada, qualquer dvida
ou incerteza que porventura ainda tivesse o socilogo, a respeito da
eventualidade de uma visita no proveitosa.
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

Toninho, antigo anfitrio e barman que atendia no balco do botequim


dessa estrutura compsita que fora no passado o Armazm, estava l
providencialmente. Recebeu o companheiro e seu convidado francs
de braos abertos. Isaac Joseph j havia lido Quando a Rua Vira
Casa,14 no sendo, pois, a ambincia urbana do Catumbi de todo
desconhecida. Alm do livro, o socilogo tomara conhecimento da
mobilizao poltica de seus habitantes e da criao, no final dos anos
1960, em plena ditadura militar, de uma bem-sucedida associao
de moradores que alcanaria modificar a prpria legislao federal
brasileira, no que tange s cooperativas habitacionais, protagonizando
um dos mais importantes movimentos sociais urbanos do pas.
A ocasio oferecia-lhe, agora, mais do que o exerccio imaginativo
da leitura do texto etnogrfico, com seus desenhos e fotografias, os
quais tanto haviam cativado, anos antes, sua ateno, a oportunidade
de incorporar-se ao autntico symposium dos notveis do bairro, participando da roda de conversa formada pelo grupo de habitus. Beber,
beliscar e conversar sobre o bairro e a prpria cidade o aproximava
de seus moradores, suas personalidades pblicas vocacionais, suas
formas de sociabilidade citadina e da pertinncia de suas reivindicaes e indignao moral, diante das desastrosas intervenes de um
urbanismo de extrao autoritria.
Uma situao inusitada teve o condo de despertar o socilogo, arrebatando Isaac Joseph e arrancando-o, definitivamente, da madorna
de uma desconfortvel e sonolenta viagem de retorno do subrbio
de Madureira ao centro do Rio. Havia outras pessoas no Armazm
e, nas apresentaes festivas do retorno de Mello ao bairro, Toninho,
de muletas, foi at sua casa e trouxe seu prprio exemplar do livro
com dedicatria e tudo, passando a discutir animadamente, e como
de outras tantas vezes, sobre o bairro. No prprio local e a partir das
fotografias e desenhos de Quando a Rua Vira Casa, Toninho revirava
as pginas e mostrava em detalhes os ambientes do armazm, tal como
era antes: o bar, o armarinho, os secos e molhados.
No meio da conversa, Toninho disse que conhecia a Frana. Mello
ficou desconsertado, imaginando talvez tratar-se de uma forma
enviesada de agradar e acolher o estrangeiro. Mas a histria era
verdica; e logo se revelou fantstica. Assim que venderam o velho
armazm, os portugueses que eram seus antigos donos resolveram
14

Mello et al. (1985).

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visitar a terrinha. Num gesto de gratido pelos anos de dedicado


empenho e lealdade do funcionrio e amigo, presentearam Toninho
com o convite para acompanh-los numa viagem pela Europa. A essa
poca, o prprio etngrafo ainda no havia estado no pas do colega
francs, mas seu informante desfiava lugares e contava histrias de
Paris com a naturalidade peculiar de um verdadeiro observador e
connaisseur, intrigando, a cada passo da narrativa, mais e mais o
etngrafo basbaque.
Isaac, mais uma vez, filmou e fotografou tudo, manifestando contentamento com essa ida ao Catumbi e com as relaes de camaradagem
estabelecidas no campo pelo colega. Na sada do armazm, comentou:
Voc deve ter feito realmente um bom trabalho etnogrfico por
aqui; pois as pessoas se lembram com carinho de voc.
Ferie carioca: uma noite na Lapa
Em 1999, ao imaginar os percursos da nova viagem de Isaac Joseph
ao Brasil, cogitou-se que seria fundamental apresent-lo noite da
Lapa, corao bomio da cidade, bairro do centro do Rio de Janeiro
reverenciado por cronistas de diferentes tempos, como Joo do Rio
e Mrio Lago.
Imortalizado na cano popular brasileira, talvez por isso mesmo
um lugar saturado, inflacionado de referncias dessa espcie de
imaginrio urbano, ao qual corresponde um ethos, um estilo despojado, une manire de vivre, at mesmo um jeito de andar. Reduto de
artistas, por sua frequentao bomia, o lugar foi equacionado, em
sua belle-poque, a uma espcie de Montmartre carioca, na qual
convivem e se misturam categorias sociais muito diferenciadas. o
ambiente de personagens como o malandro e o capoeira, do trottoir de
travestis, dos prostbulos, dos hotis para solteiros, das garonnires
e do folhetim das tragdias passionais.
Seu imponente aqueduto, formado por um conjunto de 42 arcos, enquadra o cenrio compsito da Lapa, que abriga grande quantidade
de bares, restaurantes, boites, casas de shows, antiqurios e centros
culturais, numa mistura particular de formas de divertimento, por
vezes reunidas em um mesmo ambiente.
Com variadas apresentaes de rua, estilos musicais to diversos
samba, hip hop, reggae, rock e capoeira , o lugar agrega as mais
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

variadas tribos urbanas. Tudo num conjunto relativamente pequeno


de ruas e quarteires, sob a aura compartilhada da diversidade cultural. Ao mesmo tempo, o bairro situa-se nas adjacncias imediatas
de templos da cultura erudita, Sala Ceclia Meirelles, Biblioteca Nacional, Museu de Belas Artes e Teatro Municipal (rplica de lOpra
de Paris).
Em 29 de outubro de 1999, noite de sexta-feira, aps uma semana de
muito trabalho, Isaac Joseph, juntamente com Licia Valladares, foi
conhecer os bares da Lapa com um grupo de estudantes da UFF e da
UFRJ. Dias antes, ele j havia estado no tradicional Restaurante Nova
Capela, frequentado por artistas, jornalistas e intelectuais, no qual se
aprecia um excelente cabrito assado com arroz-de-brcolis, especialidade da casa e espcie de pedido obrigatrio. A ideia, no entanto,
era de que Isaac conhecesse mais de perto a noite da Lapa e pudesse
se divertir em algum ambiente marcadamente musical e danante.
Esse era um momento em que havia, na municipalidade, discusses
sobre a revitalizao do bairro, buscando redesenh-lo, oferecendo
novas alternativas de lazer, durante o happy hour, aos executivos
das autarquias nacionais. A Lapa, assim revitalizada, exerceria uma
espcie de tropismo sobre os bem-aquinhoados altos funcionrios
dessa rea, em meio polmica discusso entre manter ou no os
habitantes no lugar. Isaac conhecia com intimidade a questo da renovao urbana, pois, na mesma poca, habitava a Rue Julien Lacroix,
em pleno corao de Belleville, bairro de Paris que sofreu uma das
ltimas investidas do jacobinismo, sob a espcie da gentrification e
da especulao imobiliria favorecida pelo urbanismo oficial.
O grupo seguiu a p pelas ruas, observando as fachadas das casas
antigas com suas nuances entre a decadncia e a elegncia. A
atmosfera produzida pelo sistema construdo quase em runa,
entretanto, suscitou curiosos e no menos pertinentes comentrios de
Isaac Joseph, a propsito de uma inusitada colaborao. Pois insistia
nas virtualidades positivas que o dilogo com as competncias dos
profissionais de teatro, por exemplo, poderia representar para a cidade,
bastando recordar as requintadas e minimalistas intervenes criadas
por cengrafos e iluminadores, produzindo novas ambincias, uma
verdadeira cenografia urbana. Com isso, convidava seus colegas
a revisitarem o tema da iluminao pblica mas, dessa vez, e para
surpresa dos jovens socilogos, sublinhando a esttica das artes
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

cnicas, sem recorrer ao batido repertrio ideolgico das questes


de segurana e de vigilncia.
Numa esquina da Rua do Lavradio, os estudantes se animavam em
mostrar para Isaac o ponto dos travestis. Entretanto, o que realmente
chamou sua ateno foi uma garota da noite danando de forma
explosiva diante de uma jukebox, na entrada de uma sinuca com seu
grande salo de jogos de paredes grafitadas na Rua Riachuelo. Sua
interao com a mquina, na qual selecionava msicas eletrnicas e
fazia um verdadeiro show parte, era total, fazendo semblant naquele espao pblico, alheia passagem de pedestres que observavam
aquela espcie de apresentao cuidadosamente estudada do self na
vida cotidiana.
O grupo atravessou os arcos do antigo aqueduto, reduzido agora a
mero suporte para a linha frrea do bonde de Santa Teresa, o nico
remanescente de um antigo e popular meio de transporte outrora
dominante na paisagem urbana carioca, buscando alcanar o point
do Largo da Lapa. Por ali, ss ou em bandos, gente vinda de toda
parte, nos trajes mais variados e extravagantes, circula, desfila e se
concentra na paquera diante das animadas casas de show e concorridas
danceterias, como o popular forr Asa Branca e, frequentado pelo
pblico gay, o velho Cabar Casanova, considerado o primeiro do
gnero na Amrica Latina.
A Rua Joaquim Silva, repleta de bares e ambulantes, reservaria um
agradvel fim de noite, tal como haviam programado os estudantes
oferecer ao socilogo. Percorrendo seu traado tortuoso, num cenrio
evocando em tudo as ambincias dos romances de mile Zola, novos
bares da moda se misturavam s antigas casas de cmodos, bordis,
hotis de encontro barato, pequenas oficinas e carvoarias que ainda
permaneciam funcionando a plenos pulmes, bem ali no corao da
cidade.
No Semente, o espetculo musical e danante, entretanto, s comearia por volta das 23 horas. O ambiente la mode do aconchegante
bar de esquina, assim como o prprio bairro, exaltava a diversidade
musical em sua programao. E, do samba salsa, transformava-se
o modesto lugar, ao sabor dos ritmos e coreografias, promovendo s
sextas-feiras uma descontrada noite caribenha, da qual somente
se despediriam altas horas da madrugada.
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

Um samba em Niteri
Dois dias depois da inesquecvel visita Lapa, numa noite de domingo, Isaac Joseph foi convidado para conhecer a roda de samba no
Candongueiro, em Niteri, cidade ligada ao Rio de Janeiro pela ponte
que atravessa a baa de Guanabara e que mantm com essa cidade uma
relao especular, pois de uma possvel permanentemente avistar a
outra. Era 31 de outubro de 1999 e, tambm em nossa companhia, estavam Michel Misse e Jorge da Silva, colegas do conhecimento de Isaac.
Apesar da dificuldade de acesso e da distncia, que envolve um
deslocamento sempre complicado, o Candongueiro considerado
a melhor casa de samba do Rio. O lugar fica longe de tudo, numa
casa retirada na Estrada Velha de Maric, na regio montanhosa de
Niteri. Mantm uma semelhana proposital com a ambincia dos
terreiros de candombl, restritos aos iniciados e queles que conhecem
o caminho. Isso faz com que o frequentador se sinta um privilegiado
simplesmente por estar ali e reaja a qualquer tipo de alterao que
ameace essa sua aparente exclusividade.
No Candongueiro, o samba s comea por volta das 22h30, mas o ambiente desde cedo comea a ficar cheio. A movimentao e o entra-e-sai
constantes criam uma proximidade fsica de corpos em contato, entre
frequentadores, msicos e garons, que fornece ao lugar a informalidade caracterstica das rodas de samba. O arranjo de mesas, cadeiras,
instrumentos musicais e aparelhagens de som o tempo todo refeito,
como se no houvesse espaos previamente demarcados. O ponto alto
das apresentaes, entretanto, aguardado com ansiedade, enquanto
grupos de msicos se exercitam no virtuosismo de cavaquinhos e violes, pandeiros e tamborins, animando a audincia. Grandes artistas
so especialmente convidados e costumam se apresentar ali somente
depois da meia-noite, sem compromisso com horrios predeterminados.
A palavra samba se refere, ao mesmo tempo, a esse tipo de ambincia
particular e ao gnero musical considerado a mxima expresso de
brasilidade. Em busca da autenticidade, por exemplo, cunhou-se a
expresso samba de raiz, em clara oposio ao sucesso do pagode,
considerado impuro por suas concesses indstria cultural, por seu
instrumental basicamente eletrnico, pelo visual de seus grupos e
pelo romantismo aucarado de suas letras e melodias. Como resposta
crtica a essa distino impertinente e perigosamente substancialista,
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

em busca de uma suposta pureza cultural, costuma-se dizer, ironicamente, que quem tem raiz mandioca.
A ideia cultivada de mundo do samba faz lembrar Howard Becker,
amigo de Isaac Joseph, e seu conceito de mundos da arte, to bem
apropriado complexidade desse campo. Numa roda de samba, por
exemplo, revelam-se clivagens e conflitos desse mundo nada homogneo. Qualquer deslize no repertrio ou na instrumentao poderia
representar crticas demolidoras por parte do pblico presente. Mas
isso evidentemente no ocorre, pois ali impera um gosto.
Nas paredes do Candongueiro, figuram desenhos emoldurados dos
grandes cones do samba, formando uma galeria de retratos com os
focos insuspeitados desse gnero musical carioca dos anos 1920 que
se espalhou por todo o Brasil e que ganhou o mundo. Para os adeptos
mais fervorosos, que cultuam o samba em feitio de orao, como
dizia Noel Rosa, essa uma espcie de panteo sagrado, no qual
figurava como divindade a prpria convidada especial daquela noite.
A casa orgulhosamente recebia Dona Ivone Lara, consagrada como
a grande dama do samba. A artista teve o mrito de romper com a
androcracia da tradicional linhagem dos compositores de samba-enredo,
no distante carnaval de 1965. Dona Ivone apresenta uma trajetria comum a muitos outros sambistas, como Clementina de Jesus, Cartola e
Ismael Silva, iniciando tardiamente uma carreira artstica regular. Do
alto de seus 77 anos, a cantora e compositora estava em plena atividade.
Isaac se impressionou que todos cantassem juntos durante horas,
formando um congraamento em unssono. As pessoas presentes na
roda de samba no s compartilhavam o gosto musical, mas sabiam
todas as letras, mesmo as mais jovens, de um vasto repertrio popular. Diante da manifestao efusiva do pblico e dos artistas, Isaac
se divertiu muito e se permitiu at sambar, ensaiando alguns passos.
Isaac, contumaz apreciador do jazz e agora convertido em aficionado
apreciador de msica brasileira, perguntou o que afinal queria dizer
candongueiro. Felipe Berocan esclareceu tratar-se de um atabaque
do jongo, gnero de ritmo sincopado, ambientado nos terreiros, preservado no vale do rio Paraba e cultivado em Madureira, evocando
os negros dos tempos da escravido.

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

Carole Saturno, dois anos depois, em viagem com Isaac ao Brasil, comentaria que finalmente o ltimo disco de Dona Ivone Lara, Nasci pra
sonhar e cantar, havia sido lanado na Frana com o inusitado ttulo
Ne pour souffrir et chanter, observando com ironia: Os franceses
talvez achem que sonhar sofrer; deve ser um problema psicanaltico!.
Isaac Joseph beira-mar
No dia seguinte ao Candongueiro, uma segunda-feira pela manh,
convidado por seus amigos da UFF, Isaac Joseph e Martine Segalen
foram ao encontro dos colegas com a finalidade de visitar Itaipu,
praia da regio ocenica de Niteri. Os amigos organizaram-se para
receb-los, cabendo a Kant e Solange Creton os conduzir at o lugar
em que os aguardavam Mello, Neiva Vieira da Cunha, suas filhas
Luisa e Julia, e Felipe. Como de outras vezes, o grupo foi direto
para a Casa da Sogra (maison de la belle-mre), um modesto estabelecimento beira-mar de propriedade da irm de Seu Chico,
frequentado por pescadores e banhistas, marcado pela descontrao
e pelo despojamento do ambiente.
ocasio de lazer e descontrada conversao, no faltaram, entretanto, oportunidades para discutir, uma vez mais, as questes relativas
ao tema dos espaos pblicos, suas apropriaes particularizadas
e usos regulados pelo Estado. O campo emprico escolhido, dessa
vez, trazia uma srie de outras implicaes. A praia e o mar, vistos
dessa perspectiva, poderiam ser tomados tambm como lugares da
controvrsia; como arenas pblicas, portanto, evidenciando conflitos,
disputas e litgios, e suscitando um repertrio argumentativo em torno
da fundamentao de direitos, prticas e da tpica pblico/privado.
O improvisado symposium beira-mar, enquanto todos aguardavam
a refeio, era acompanhado atentamente por pescadores nossos
conhecidos que intervinham, com suas consideraes e ponderaes
no debate. Seus argumentos instruam passo a passo a discusso, pois
procuravam evidenciar as dificuldades derivadas de um ordenamento
jurdico que desqualificava as suas formas tradicionais de ocupao
e apropriao da praia, como lugar prprio das fainas das pescarias,
e dos recursos ambientais da pequena comunidade, segundo regras
estritas compartilhadas e localmente observadas.
O corpus etnogrfico do direito vez, tal como havia registrado e
analisado Kant em trabalho de pesquisa ali anteriormente realizado,
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

testemunhava o refinado quadro de referncia dessas regras, invocadas na composio dos conflitos.Ao remontarem os fundamentos
de sua pretenso de constituir uma reserva extrativista marinha
(RESEX-MAR), evidenciavam tais dispositivos consuetudinrios
que regulavam a atividade pesqueira e a diversidade de usos da faixa
litornea por pescadores artesanais, para justificarem a legitimidade
de suas prticas e saberes naturalsticos.
Isaac pde acompanhar, a cada visita, o desenrolar desse processo.
Havia estado em Itaipu dois anos antes, em 1997, com Kant e Ricardo Maciel, autor de uma bela fotografia que eternizou uma excurso
etnogrfica, a bordo de uma canoa, com seu Chico, Joel e outros
pescadores, em visitao aos limites reivindicados pela comunidade
para essa rea de proteo ambiental.
O assunto voltaria inmeras vezes como tema de conversao entre
colegas brasileiros e franceses, sobretudo em funo de seus interesses de pesquisa e dos acontecimentos suscitados pelo debate pblico
em torno da constituio de reservas extrativistas marinhas ao longo
do litoral brasileiro, do qual fazia parte, em consultoria, o grupo de
pesquisa do NUFEP. A conversa animada, entretanto, foi providencialmente interrompida pelo to esperado almoo de peixe frito e
mexilhes, cuidadosamente preparado na cozinha por Chicaca,
e servido por nossa anfitri Jeti, a sorridente, bem-humorada e
operosa irm de Seu Chico.
O convite para uma caminhada pela praia e o banho de mar proporcionariam uma singela mudana no registro de impresses, uma ocasio
de proximidade e descontrada intimidade jocosa entre os colegas.
Tempos depois, saudosa do amigo, Martine iria carinhosamente se
lembrar da ocasio, talvez aquela em que esteve mais prxima de seu
colega: Ltonnant pour moi est que Isaac est li au Brsil, cest le
moment o je lai le mieux et le plus connu. Paris, nous sommes
parpills de tous cts. Ce sont des promenades avec vous sur la
plage qui me ramnent son souvenir.
Ao pr-do-sol, o grupo deixaria a praia. Martine Segalen voltou para
o Rio de Janeiro com Mello, Neiva e as crianas. No trajeto, Julia e
Luisa ensaiavam algumas notas na flauta doce. Martine comentou que
tambm tocava flauta e que tinha uma neta da mesma idade delas.
Alegre com o passeio e procurando animar as meninas, cantarolou
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

uma inusitada verso francesa do samba Madureira Chorou, que


fizera muito sucesso em Paris, no final dos anos 1950.
O samba, composto por Carvalhinho e Jlio Monteiro, fra gravado
para o carnaval de 1958. Apesar da melodia contagiante, sua letra
marcadamente lgubre e triste: Madureira chorou/ Madureira chorou de dor/ Quando a voz do destino/ Obedecendo ao Divino/ A sua
estrela levou. Essa foi uma homenagem pstuma vedete Zaquia
Jorge, atriz do teatro de revista, tragicamente desaparecida nas guas
traioeiras da Barra da Tijuca, vtima de um prosaico banho de mar.
Sua morte prematura causou grande comoo no bairro em que morava e se apresentava, entristecendo toda a cidade.
Nessa mesma poca, no Rio de Janeiro, a equipe cinematogrfica francesa envolvida com as filmagens de Orfeu da Conceio, encantou-se
com a msica e fez, em total desacordo com a letra original, a verso
Si Tu Vas Rio, composta por Jean Brousolle e gravada no mesmo
ano de 1958 por Dario Moreno,la voix smyrniote de France, um
at ento obscuro crooner turco-mexicano-francs: Si tu vas Rio/
Noublie pas de monter l-haut/ Dans un petit village/ Cach sous
les fleurs sauvages/ Sur le versant dun cteau.
Letra (paroles) e melodia tornaram-se um enorme sucesso na Frana,
vindo, 25 anos depois, a fazer parte da prpria trilha sonora do filme
Le Bal, de Ettore Scola, figurando como uma das canes mais significativas daquela dcada. Tinha razo, pois, Martine Segalen em
lembrar curiosa referncia musical sobre a cidade.
Uma visita a Arraial do Cabo
Em maio de 2001, Isaac Joseph faria uma de suas ltimas viagens ao
Brasil. Como de outras vezes, sua agenda de compromissos estava
tomada por uma srie de atividades acadmicas, s quais incluam,
alm dos encontros, seminrios e pequenas conferncias, as visitas
aos lugares onde se realizavam os trabalhos de investigao emprica,
apresentados nessas diferentes ocasies por estudantes e professores.
Nessa poca, o NUFEP tinha como locus de pesquisa a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, na qual seus pesquisadores
participaram ativamente dos processos de formulao e consolidao
dessa que, por decreto presidencial, tornou-se a primeira experincia
de implantao de uma RESEX-MAR no Brasil. Os conflitos que se
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

evidenciaram diante da incluso dos pescadores na esfera de deciso


poltica como legtimos e qualificados porta-vozes de seus prprios
interesses e direitos, em nome de um saber tradicional, de um fazer
artesanal e da sustentabilidade do meio ambiente , constituram-se em
autntica e acalorada arena pblica em torno das novas formas de gesto
do litoral de Arraial do Cabo, a 150 quilmetros do Rio de Janeiro.
Isaac conhecia bem o interesse que despertava em seus colegas a
temtica da pesca e dos conflitos envolvendo grupos de pescadores
do litoral fluminense. No somente aqueles derivados da especulao
imobiliria, da presso do turismo de massa e da expanso das indstrias naval e petroleira, mas sobretudo os conflitos com a Marinha, o
Ministrio do Meio Ambiente e a Procuradoria da Repblica, diante
da recusa veemente dos pescadores artesanais manuteno extempornea do regime de tutela do Estado ao qual estavam submetidos,
reivindicando, como sujeitos polticos, liberdade e autonomia para
estruturarem suas prprias formas de organizao e deliberao.
Entretanto, hesitava em destinar uma das dimenses do projeto de
cooperao acadmica internacional da Convention Capes-Cofecub ao
exame dessa problemtica; pois no sabia avaliar muito bem o modo
pelo qual os eventuais pareceristas (consultants) do projeto poderiam
encarar promenades beira-mar como lugares dignos e rotinas relevantes de pesquisa, a propsito da administrao dos conflitos e da
reivindicao de direitos no espao pblico.
No que lhe desgostassem os desafios aventurosos, sobretudo os
propostos sur place por seus companheiros de pesquisa. Mas o que
poderiam dele pensar seus taciturnos colegas parisienses, aqueles que
porventura ainda conservassem na memria a imagem viva das paisagens idlicas das praias de Cabo Frio, Bzios e adjacncias? Kant,
como vou colocar no projeto que vou praia?!?..., ponderava Isaac
desconcertado. Mas tem que colocar, Isaac!, retrucava, com uma
dose de impacincia, o amigo.
Tamanha reticncia e reserva do socilogo era vivamente questionada
por seu colega e parceiro brasileiro. A no ser, conjecturava este provocativamente, que tais preocupaes, de todo desmedidas, se devessem,
talvez, ao temor de que viesse a ser perigosamente identificado na academia com a flanerie desabusada de uma Brigitte Bardot! Uma hiptese
remota, certamente. Mas no de todo destituda de graa, malcia e jocosidade; pois, quem sabe, os acontecimentos que abalaram a regio, nos
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3 Prova / Kthia /03/05/2011

idos do vero de 1964, poderiam estar somente adormecidos, nest-ce


pas, mon vieux? Os moradores de Bzios, verdade, tm ainda muito
presente a lembrana do rumoroso sjour da provocante e charmosa
francesinha em suas praias, frequentadas por ela na companhia de Bob
Zagury, seu invejado boyfriend marroquino-brasileiro!
Fustigado pelo colega e amigo por argumentos de todo tipo, que
oscilavam entre a pertinncia acadmica e a irreverncia brasileira,
Isaac Joseph, finalmente convencido, no s concedera, mas aceitara
o convite para uma visita de trabalho Associao da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo AREMAC.
Ronaldo Lobo, estudante de antropologia que desenvolvia sua pesquisa para tese de doutorado na regio, recorda-se dos ensinamentos
dessa viagem, durante um breve final de semana:
Em Arraial do Cabo, nos alojamos na Pousada
Nutilus. Entre uma conversa e outra com Isaac,
em ingls, apresentando as questes com as
quais me defrontava no campo, compreendi que
tempo, espao, cognio, poder e conflito eram
passveis de serem estudados seriamente de
uma perspectiva antropolgica. Ele ouvia a tudo
atentamente, a despeito das minhas dificuldades
em expressar essas questes de um modo adequado numa lngua estrangeira. Foi graas s
suas sugestes que definitivamente incorporei
The Time and the Other, de Johannes Fabian,
s minhas leituras sobre as ligaes entre tempo e poder, evidenciadas entre os pescadores
artesanais em meu trabalho de campo.

Na Feira de So Cristvo
Isaac Joseph voltou ao Brasil duas vezes em 2001, em maio e, logo
depois, com Carole Saturno, entre julho e agosto. Dessa vez no encontraria Mello, seu colega brasileiro, que estava em Paris desenvolvendo
pesquisa de campo em Belleville. Seu ponto inicial de observao,
curiosamente, era o Bistrot Le Jardin, situado na Rue Julien Lacroix,
103, exatamente no rez de chauss do prdio onde morava Isaac.
Em 12 de maio daquele ano, uma noite de sbado, Isaac Joseph foi
juntamente com Felipe Feira de So Cristvo, grande mercado
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da Zona Norte do Rio de Janeiro onde se renem os parabas,


expressiva populao de migrantes do Nordeste do Brasil associada
emblematicamente s classes populares, vivendo nas grandes metrpoles, fiel, entretanto, a seus costumes regionais. A feira sexagenria,
composta por 700 barracas de comrcio e frequentada por aproximadamente 450 mil pessoas a cada ms, ocupava, de modo precrio, o
entorno de um gigantesco pavilho projetado por Srgio Bernardes.
A imensa estrutura, originalmente concebida para abrigar um centro
de convenes e exposies, era considerada um dos maiores e mais
imponentes vos livres do mundo, orgulho da arquitetura carioca.
Em 2003, a Feira de So Cristvo e seus perseverantes comerciantes
seriam definitivamente transferidos pelo poder pblico municipal
para o interior do modernssimo pavilho, buscando reproduzir o
estilo de comrcio, a ambincia e o gnero de negcios que tinham
marcado anteriormente a sua constituio extramuros. O crescimento
da improvisada feira a cu aberto, portanto, acabou fagocitando o
engenho megaescultural urbano, convertido, depois da visita de Isaac
Joseph, numa imensa praa de mercado popular nordestino, em pleno
Rio de Janeiro.
Esse no era um acontecimento isolado, pois os ltimos anos foram
marcados pela renovao de diversos mercados populares em todo o
Brasil, em tentativas governamentais de organizar espaos pblicos
tradicionalmente dedicados s prticas comerciais espontneas no
centro de grandes cidades, como Porto Alegre, So Paulo, Salvador,
Recife, So Luis e Belm.
Ali em So Cristvo, nas adjacncias do antigo palcio imperial
da Quinta da Boa Vista, as evocaes do universo rural ainda encontram sua representao e expresso mxima na cidade, seja pelo
ostensivo comrcio de chapus, bolsas e sandlias de couro; roupas
e paramentos de vaqueiro; seja na multiplicidade de objetos como
berrantes, redes, facas e canivetes. farta e graciosa exposio
desse shopping paysan, vinha juntar-se toda sorte de quitutes, doces
e licores; a variedade de cachaas, rapaduras, farinhas e carnes que
formam a base da alimentao do sertanejo em suas longas viagens;
as comidas prontas e expostas, com as mais afamadas e disputadas
receitas da culinria nordestina, caracterizando a grande feira agora
circunscrita pelos muros do pavilho metamorfoseado em mercado,
no qual recende a todo instante o aroma forte dos temperos modos
na hora e a cantoria dos repentistas e poetas populares.
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Tambm chamava a ateno de Isaac a competio e a diversidade


de estilos musicais e seus pblicos diferenciados. Era possvel ouvir
desde a exploso eletrnica dos forrs atuais at o tradicional forr
p-de-serra, sempre acompanhado pelo trio formado por sanfona,
tringulo e zabumba. Tudo isso passando pelos repentistas que recitavam versos em desafio, pelo sentimentalismo exagerado da msica
brega e pela presena das mquinas de karaok espalhadas por todos
os cantos, formando suas boutiques distintos ambientes de encontro
sob tendas improvisadas.
Era curioso ver aquela gente toda ali reunida, se divertindo depois do
trabalho. Isaac gostava de ver esse reverso do nordestino, genericamente
chamado de paraba e associado a porteiros de edifcios, empregadas
domsticas e trabalhadores da construo civil, reunidos no grande
espao pblico da feira, a esse tempo despertando a curiosidade, e at
mesmo a frequncia cult de jovens de classe mdia da Zona Sul carioca.
Na Barraca da Chiquita, na qual era possvel conversar um pouco
melhor, imersos naquele universo fascinante, Isaac, com gestos que
evocavam as imagens e sons dos fogos de artifcio, que, to efusivamente, provocam irresistvel apelo aos sentidos e se desdobram em
exploses mltiplas nos ares, dissertou sobre o tema da ferie, noo
evocativa de Gabriel Tarde sobre a qual se deteve em esclarecimentos
a seu companheiro de soire para referir-se vida social em profuso
que tinham sob os olhos.
Carnets de terrain: um encontro com estudantes
Em Niteri, no Programa de Ps-Graduao em Antropologia da
UFF, os estudantes propuseram a Isaac Joseph a realizao de um
encontro, um seminrio no qual pudessem apresentar e discutir suas
etnografias. Em 17 de maio de 2001, quinta-feira tarde, na sala 417
do IFCS-UFRJ, Isaac ouviu atentamente a exposio de cada um dos
jovens pesquisadores a propsito do andamento de seus respectivos
trabalhos de campo, somente interrompendo-os para um ou outro
esclarecimento que lhe permitisse uma compreenso mais adequada
das questes suscitadas aqui e ali, em torno de detalhes que eventualmente lhe escapavam.
Essas investigaes no eram dele de todo desconhecidas. No Rio
ou em Paris, costumava compartilhar com Mello os problemas e
eventuais dificuldades com os quais se defrontavam seus estudantes
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durante o trabalho de campo e na elaborao de suas dissertaes e


teses. Manifestando interesse e aceitando de bom grado o convite,
no dia marcado escolheu iniciar a conversa deixando claro que
compreendia perfeitamente a importncia da ocasio; pois conhecia
bem as dificuldades muitas vezes enfrentadas por professores e
estudantes diante das quase sempre rduas e delicadas sesses de
orientao, fazendo aflorar suscetibilidades e, o que pior, no rara
e perigosamente reduzindo e empobrecendo as virtualidades positivas
do engajamento conversacional incontornvel, quando se trata desse
gnero da interlocuo acadmica.
Tinha plena conscincia de que a gentileza do convite formulado pelos
estudantes no o liberava da imensa responsabilidade contrada pelo
respeito mtuo e pelos vnculos de amizade que o ligavam ao seu colega
brasileiro. Para alm da camaradagem e carinhosa cumplicidade, eram
os seus estudantes o mais alto penhor dessa confiana, generosidade e
reciprocidade cultivada no canteiro de obras, ao longo dos anos.
Escolheu comear com notcias do amigo em Belleville, mitigando a
ansiedade que a distncia produzia em seus alunos. Seus comentrios
bem-humorados sobre o empreendimento etnogrfico do colega foram
acompanhados de uma srie de consideraes a respeito da pesquisa
emprica no meio urbano.
As discusses, entretanto, se estenderam muito mais do que o inicialmente planejado. As exposies foram num crescendo; e a cada
vez suscitavam comentrios e observaes precisas, frequentemente
seguidas no s das habituais referncias bibliogrficas, mas, sobretudo, de pertinentes e generosas sugestes para o refinamento das
abordagens e do tratamento analtico do material etnogrfico. Todos
os projetos que naquela tarde discutiria estavam, de certo modo, relacionados, pois traduziam os temas compartilhados de pesquisa em
torno dos quais renem-se professores e estudantes no LeMetro, no
NUFEP e no NECVU.
O trabalho de campo empreendido por Soraya Simes na Vila Mimosa,
uma regio moral das mais problemticas do stio urbano, ofereceu a
Isaac Joseph, de sada, uma ocasio excepcional para apresentar no
somente o grande tema da ecologia humana la Chicago, mas ainda
a contribuio que uma certa dramaturgia social goffmaniana poderia trazer para a etnografia dessa rea de prostituio carioca. Alm
disso, sugeriu investigar o debate em torno da prostituio para alm
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do espao ecolgico, ampliando significativamente a controvrsia do


caso num espao de comunicao, ou seja, no espao simblico de
uma arena pblica, na qual se constitui como um problema pblico.
Suas sugestes logo ganhariam um contorno mais preciso, como ser
mostrado mais adiante, por ocasio da visita que acabaria fazendo,
num fim de tarde, prpria zona de prostituio.
Com a propriedade de observador refinado da vida quotidiana, Isaac
Joseph ofereceu a Paulo Thiago de Mello inmeras sugestes, durante a exposio que este fizera sobre a frequncia a um botequim
de bairro, gnero de comrcio de proximidade. O ponto central de
seus comentrios voltou-se, didaticamente, para a questo da pendura (ardoise), tendo em vista a oportunidade de fazer sua anlise
recair sobre um de seus temas prediletos de seminrio: a confiana,
esse poderoso dispositivo de reduo da complexidade do mundo. A
complexa dialtica de proximidade, reserva e distncia que estabelece
e organiza as escalas de familiaridade e estranhamento, com suas implicaes para o circuito da confiana no comrcio de proximidade; a
medida de civilidade (ou incivilidade) evidenciada pela copresena de
homens e mulheres em suas dependncias; o display dos frequentadores nas mesas e balces e sua relao com objetos e ambincias; as
relaes com o entorno e as nem sempre fceis e pacficas negociaes
com a vizinhana; bem como o papel que desempenham os Guides
que acabam restringindo as alternativas e direcionando as escolhas,
constituram o repertrio das referncias sugeridas por Isaac Joseph
ao jovem e atento socilogo.
A etnografia de um bairro insular carioca efetivada por Wilma Leito
levaria Isaac Joseph a conhecer, por pessoa interposta, a Ilha de
Paquet e sua engenhosa oposio complementar entre o Campo e a
Ponte, com todas as implicaes sociolgicas dessa dicotomia para
a vida dos moradores dessas duas metades, com suas rivalidades
cultivadas. Entretanto, o contexto dramtico de um grande acidente
ecolgico causado pelo derramamento de mais de um milho de litros
de petrleo nas guas da baa de Guanabara, decorrente do vazamento
de uma refinaria no ano anterior, iria, durante um bom tempo, afetar
radicalmente a vida do bairro. Isaac chamou a ateno no somente
para o problema da construo social do risco e da alocao da
responsabilidade, encarnado nas figuras do profeta e do denunciador,
mas, sobretudo, para o modo como, em tais circunstncias, diferentes
atores tomam a palavra. Como intervm nas distintas arenas pblicas,
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quais so os seus argumentos e como eventualmente se completam;


como, enfim, no mbito da justificao e das gramticas sociais, so
mobilizados recursos e se constri um interesse geral em torno da
tpica do patrimnio ou do meio ambiente, constituindo provas
de justia e urbanidade.
Felipe Berocan apresentou sua pesquisa sobre a Festa do Divino
Esprito Santo, em Pirenpolis, pequena cidade do Brasil Central. A
grande celebrao religiosa, popularmente difundida por quase todo
o pas, tem uma longa histria da qual faz parte o conflito entre seus
devotos, organizados em irmandades, e a Igreja Catlica, que no
aceita as formas herticas do culto em separado de somente uma das
Pessoas da Santssima Trindade. Os meandros do Imprio do Divino,
seu carater compsito, escandido em trs grandes fases da sequncia
ritual, foi o foco privilegiado da exposio. As implicaes dessa
manifestao do catolicismo rstico, entretanto, ultrapassavam em
muito a dimenso local, basculando Pirenpolis para alm da esfera
regional, conferindo-lhe uma visibilidade na mdia globalizada e
um irressistvel apelo ao turismo de massa, favorecido pela recente
espetacularizao da festa, com sua recriao numa novela de grande
audincia na TV. A etnografia do processo ritual suscitou inumeros
comentrios e sugestes de Isaac Joseph, referindo-se recente
festivalomania na Frana que pe a cidade em cena no s a
imaginria, mas tambm a real diante dos desafios da organizao
da hospitalidade. Economia e poltica, religio e marketing, tradio
e modernidade, patrimnio e indstria cultural encontravam-se,
l e c, inextricavelmente associados, constituindo uma excelente
oportunidade de colocar sob descrio a complexidade dos servios,
do agenciamento das competncias e do acolhimento ao estrangeiro.
O enfoque em etnografias da produo cultural, da organizao das
festas e de suas relaes conflituosas com a Igreja, voltaria discusso
com o trabalho de Patricia Brando Couto sobre a Festa de N S
do Rosrio, em Minas Gerais. O batuque, a dana, a melopeia e os
desafios nos quais se empenham os ternos de congado e moambique
desse catolicismo negro praticado nas cabeceiras do So Francisco,
ocultam um combate subterrneo. Um incidente iria bascular a etngrafa
para um plano at ento insuspeitado da festa: o mal-estar provocado
pelo inesperado do arrebatamento mstico-religioso, desvelaria e
tornaria vastos e inquietantes os horizontes da pesquisa de campo
em sua complexa dimenso dramatrgica. E a coreografia que tanto
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havia obcecado a jovem e atenta pesquisadora iria revelar-se, tambm


ela, plenamente como dromenon, uma coisa para ser feita, no uma
coisa para ser vista. Feitios, mandingas e todo tipo de sortilgios se
entrecortam atravessando o substrato dos grupos de dana, tecendo uma
espcie de guerra invisivel, afetando indiscriminadamente participantes
e observadores, mobilizando especialistas, configurando a intrigante
poltica de um ritual no poltico.
A exposio de Carlos Eduardo Medawar teve como campo emprico o
Mercado de Madureira e, a partir dele, a construo da identidade e os
custos da iniciao nos cultos afro-brasileiros. A etnografia do comrcio
de artigos religiosos e dos preos dos requisitos rituais indispensveis
para a feitura do santo constituiu o foco da discusso. Pouco
vontade, entretanto, para tratar do assunto e no satisfeito com a linha
dos argumentos, Isaac Joseph limitou-se a fazer as suas consideraes
sob a espcie de uma sucesso de perguntas que, a cada vez formuladas,
inquietavam mais e mais o jovem etngrafo. Pois, afinal, o preo
da iniciao era um ndice de qu? Quem eram os operadores dessa
valorizao? Que agncias lucravam com ela? Que implicaes
sociolgicas traziam os altos custos para a iniciao? J no ocupava
o candombl, ponderavaIsaac, uma posio social importanteque os
justificasse? Por que o processo de construo de identidade no se
comprava? Para Isaac Joseph, o candombl era, naquele contexto de
discusso, um bem simblico comparvel a qualquer outro; por isso as
coisas se valorizavam e os preos mudavam. Finalmente, ressaltou: O
candombl um mundo, certamente; mas no um mundo parte.
As observaes de Mirian Alves de Souza a propsito do Catumbi e
de seus moradores, considerados quanto s suas distintas nacionalidades e pertencimentos tnicos, ensejaram uma estimulante discusso
em torno dos bairros de acolhimento de imigrantes, um tema caro da
tradio dos estudos urbanos. Tratava-se de compreender as formas
por meio das quais aoreanos, portugueses do continente, espanhis,
armnios, italianos e ciganos interagiam, compartilhavam e conformavam os espaos de sociabilidade desse bairro das adjacncias da zona
porturia. Para apresentar as vicissitudes deste sistema de relaes,
elegeu os ciganos, um dos grupos em copresena, sublinhando seu
modo peculiar de insero local. Pois o grupo objeto de sua etnografia tinha alcanado uma posio no mbito do judicirio carioca que
desafiava a imaginao do pesquisador.
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A derradeira exposio daquela tarde colocaria Isaac Joseph diante de


um grupo profissional, intrigante quanto s suas origens e curiosas estratgias de negociao no espao pblico. A inteligncia sociolgica
dos ciganos calons do Catumbi, transmitindo intergeracionalmente as
competncias de um mtier, remontava chegada da Corte portuguesa
ao Rio de Janeiro, no sculo XIX, quando, como oficiais de justia
(hussiers), passaram a dedicar-se cuidadosamente aos servios do
Pao Imperial. Le fait dtre membres dune minorit ethnique
a permis aux gitans de Catumbi de bnficier dun base daction
remarquable, sans pour autant se dpartir ni de son identit, ni des
strotypes qui lui taient traditionnellement associs.
Os comentrios de Isaac Joseph sobre cada trabalho apresentado
naquela tarde foram cuidadosamente registrados e circulam at hoje
entre os colegas. A propsito do encontro profcuo, escreveu Paulo
Thiago de Mello:
A mente brilhante, os toques certeiros, as
indicaes bibliogrficas pertinentes e o humor instvel; Isaac passeava por uma srie
de disciplinas ao falar sobre nossas pesquisas
antropolgicas. Estava ali diante de ns, sobretudo o filsofo, como ele mesmo se definia.
Mas acima de tudo, um estrangeiro curioso da
cidade e, ns, na condio de apresentar a ele
aspectos do Rio que no figuram nos mapas e
guias de turismo.

A Vila Mimosa e suas fronteiras


No dia 23 de julho de 2001, por ocasio de sua ltima visita ao Brasil,
Isaac Joseph e Carole Saturno foram ento conhecer a Vila Mimosa
na companhia de Soraya Simes e seus colegas de seminrio, durante
o happy-hour. Debaixo de chuva, seguiram para a Praa da Bandeira, em cujas imediaes, na Rua Sotero dos Reis e na Rua Cear,
concentram-se diversas casas de prostituio. Embora o termo vila
remeta ao estilo de vida simples de uma vizinhana pacata e despojada dos subrbios, o socilogo iria encontrar ali, paradoxalmente, o
contrrio dessa buclica representao.
Originrias da zona do canal do Mangue, as prostitutas, deslocadas
da Cidade Nova, em meio s peripcias que marcaram a renova507

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o urbana do entorno, finalmente acabaram se estabelecendo, em


1996, nas adjacncias da referida praa e da estao ferroviria da
Leopoldina. O tradicional casario da antiga zona de prostituio foi
completamente demolido para dar lugar aos modernos empreendimentos arquitetnicos promovidos por especuladores imobilirios e
pela prpria municipalidade, para sediar nada mais nada menos que
todo o complexo de edifcios da administrao pblica, tendo por
epicentro o Piranho, ou seja, a prpria Prefeitura Municipal do
Rio de Janeiro, numa aluso jocosa voracidade carnvora do peixe
amaznico e suas ressonncias sexuais.
Na chegada, o gesto corriqueiro de quem recebe os fregueses porta,
numa manifestao de acolhimento e hospitalidade, produziria a primeira situao de embarao entre os membros da pequena comitiva
no habituados aos salamaleques do enorme segurana, dubl de
recepcionista e porteiro. A gentileza daquele brutamontes, ao abrir
as portas do txi, oferecendo aos passageiros as boas-vindas, era
em tudo deslocada. Aos olhos dos recm-chegados, mais parecia
uma ameaadora tentativa de assalto; ou, quem sabe, um sequestro,
considerando essa espcie de tcnica de apavoramento que constitui
a pletora das notcias diariamente estampadas nos jornais e exibidas
nos quiosques, como verdadeiros espantalhos urbanos, a dissuadirem
o passante de aventurar-se desavisadamente pela cidade. A reiterada
cordialidade do bruto-s-msculos logo desfaria a anlise equivocada
da situao quando, ao dirigir-se etngrafa, o fez nos termos de uma
inslita e carinhosa gramtica da intimidade: Oi, minha criana!
Feitas as apresentaes, Soraya levou os visitantes ao estabelecimento
de Fia. Vestida de camisola de dormir, comme dhabitude, a velha prostituta recebeu o grupo na sala de sua casa, acomodando os visitantes e
servindo-lhes uma boa cerveja. Fia, depois de muitos anos trabalhando
para cafetes e cafetinas, conhecendo o mtier e avaliando as possibilidades e a ocasio, resolveu abrir, ela mesma, uma casa, passando
a explorar seu prprio negcio, transmitindo s novas geraes de
inexperientes jovens recm-chegadas Vila e vida seus preciosos
conhecimentos e as regras do ofcio, adquiridos em anos de militncia.
Vila Mimosa era o nome que figurava no prtico de entrada de um
pequeno conjunto de casas de moradia que arquitetonicamente compunha a regio moral da zona do Mangue. O processo de remoo
eufemisticamente denominado de renovao urbana, entretanto,
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deixara intacto, como uma espcie de testemunho do antigo sistema construdo da Cidade Nova, exatamente esse pt de maisons.
Sua curiosa, complexa, impertinente e indesejvel vizinhana, com
seus pequenos e ruidosos negcios, acabaria precipitando as coisas.
O golpe final das derradeiras demolies no tardaria, provocando
a dispora urbana forada dos habitantes dessa verdadeira cidade
cenogrfica da prostituio carioca e, com isso, ameaando dispersar
prostitutas, rufies, cafetinas, birosqueiros e malandros pelos bairros
da cidade, contaminando-os com a impureza moral da corrupo
dos corpos e desorientando seus habitus, frequentadores eventuais,
clientes apaixonados, onanistas e voyeurs.
A inteligncia sociolgica da escria, aos olhos dos empresrios
morais e das classes mdias bem-comportadas, frequentemente
espantosa. A deciso de manterem-se reunidas, a criao de uma associao e a mobilizao permanente das mulheres da vida acabariam
contribuindo para a escolha bem-sucedida das adjacncias da velha
estao ferroviria da Leopoldina. Com o dinheiro das indenizaes
que conseguiram arrancar do poder pblico, no sem muitas lutas e
penosas negociaes, adquiriram a rea coberta de um galpo industrial desativado, com 2.500 m2.
O arranjo do espao foi concebido de tal modo a recriar a ambincia de
uma rua. No uma rua qualquer, mas uma movimentada e concorrida
rua de comrcio, o casario voltado para o passeio. Com sua combinao
extravagante de cores e materiais, a arquitetura kitsch dessa inslita
avenida formava uma espcie de galeria benjaminiana de quadros vivos,
para xtase e contemplao de seus frequentadores mais exigentes. Assim desenhada a circulao e facultada a flanerie, garantia-se o acesso
da clientela s suas preferncias, examinando e passando em revista o
que cada uma das 45 casas alardeavam como sendo suas mais convidativas e prazerosas ofertas, propiciando a realizao da boa escolha.
O sucesso da nova Vila Mimosa, agora espcie de nome-fantasia, ao
mesmo tempo referncia ao passado e recriao ps-moderna, marca
de griffe, logo iria se fazer conhecer muito alm da limitada circunscrio da vizinhana onde se instalou. O empreendimento coletivo
liderado por profissionais do sexo, no inicio violentamente rejeitado
pelas famlias e pudicos moradores da rea, iria, entretanto, mudar
de modo radical a vida, a economia e o comrcio de proximidade do
velho e decadente bairro das cercanias da Praa da Bandeira, com o
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surgimento de sales de beleza, confeces de roupas ntimas, perfumarias, comrcio de bijuterias e creches.
A animada conversa na casa de Fia, uma das primeiras a ter vindo
se instalar no novo endereo, tinha adiantado. E a ocasio oferecera
a oportunidade de uma primeira apresentao da pesquisa de carter
etnogrfico realizada por Soraya. Afinal, era preciso dar conta do
trabalho em andamento quela que de modo benevolente acolheria
sur place a etngrafa em muitas outras visitas de campo.
Enquanto conversavam, velhas prostitutas em trajes sumrios se
misturavam s meninas envoltas em toalhas de banho, que faziam a
toilette de modo estudado, deixando entreaberta a porta da salle de
bains. Outras espreitavam pelas janelas cruzando olhares, espera
dos frequentadores que, s mais tarde, chegariam em maior nmero.
Atravessando acompanhada o ambiente da sala, volta e meia uma
das meninas galgava os degraus que ostensivamente conduziam o
cliente ao gineceu de modestos aposentos. Nas ruas e nos bares,
dentro de minsculos shorts, tops e biqunis sensuais, o vaivm das
mulheres era animado pela atmosfera de um repertrio brega do
dance americano em altssimo volume, vindo de parafernlias eletrnicas que irradiavam de cada uma das casas, criando uma sonoridade
confusa para ouvidos mais sensveis.
Para espanto de Isaac Joseph, o grupo de jovens antroplogos tratava
com irritante naturalidade aquela visita ao prostbulo, enquanto ele,
ao contrrio, alerta e completamente atento a tudo o que se passava
naquele bas fond, no disfarava a preocupao em seu semblante.
Diante das circunstncias, embora no tivesse interferido no curso das
interaes e na vontade do grupo, mais tarde revelaria o que lhe havia
parecido talvez uma excessiva banalizao da experincia. Naturalizao que, a seus olhos, poderia acabar deixando de fora do campo
de observao uma srie de problemas que considerava importantes
e que, desse modo, temia jamais virem a ser colocados sob descrio.
Quem vai Vila Mimosa, centro de um tipo especfico de mercado
sexual, no vai simplesmente fazer turismo ou visita desinteressada.
Afinal, de que lado estamos?, indagava maneira de seu amigo
Howard Becker. Aos olhos locais, a mesa chamava ateno: um
estrangeiro, aparentando 60 anos de idade, denunciado por seu
accent, acompanhado de vrias moas e rapazes de fino trato, no
se encaixava bem na cena. Isaac tinha certeza de que o excntrico
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grupo estava sendo ostensivamente observado e lhe desagradava


enormemente a sensao de vulnerabilidade produzida por essa
incmoda e desabusada objetificao do observador, fragilizado pelo
assdio de olhares mais do que interessados, vidos por alcanarem
os dlares ou euros que eventualmente trouxesse na algibeira.
Todos se relembram de seu mal-estar durante essa noite no lupanar
carioca, ressentido em sua viagem ao passar por lugares nos quais
no se sentia em seu lugar, com dificuldade para compreender os
limites da pobreza e da insegurana, diante do medo de incomodar e
do embarao de quem penetra em um territrio aonde no foi convidado e, portanto, ignora seus cdigos.
Contrariando as expectativas de Isaac, ansioso por sair dali diretamente para um botequim da Lapa, o grupo mais uma vez percorreu
toda a inslita galeria em U, antes de deixar para trs a Vila Mimosa. Na sada, a viatura e os policiais ostensivamente armados da
Diviso de Entorpecentes, que pouco antes causara sobressalto aos
recm-chegados, no mais se encontravam. No obstante, a presena
incontornvel do proverbial gentleman, em mangas de camisa, no
poderia ser evitada, pois, afinal, sobre esse guardio das fronteiras
recaa a responsabilidade de se dbarrasser dos visitantes com elegante firmeza e propriedade. Logo providenciou dois txis para a
antroploga e seus amigos, no sem antes fazer pequenos reparos a
propsito de sua ausncia recente. Isaac, diante da cena, sugeriu a
Soraya tratar o solcito segurana como um informante privilegiado,
insistindo em observar que a organizao espacial da Vila era, efetivamente, uma organizao defensiva.
De volta Lapa, acomodado em uma das confortveis mesas do
tradicional bar Cosmopolita, Isaac voltou ao assunto propiciado pela
intrigante visita. E, voltando-se para Soraya, abraou-a inesperada
e carinhosamente, felicitando-a pela coragem. Com essa felicitao
pretendia muito mais do que um delicado agradecimento; com o correr
da conversa, s mais tarde viria a ateno da estudante voltar-se para
a transposio perigosa das fronteiras e para as implicaes que tm o
manejo adequado e pertinente do ofcio, na complexa arte da navegao
social. Ao mesmo tempo, fazia refletir sobre as atitudes dos nefitos no
campo, marcadas pelo encantamento participativo, essa espcie de
doena infantil do etngrafo, na expresso cunhada por seu colega
brasileiro. No se tratava, pois, de coragem; muito menos de ingenui511

Arenas Publicas.indb 511

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3 Prova / Kthia /03/05/2011

dade; mas, ao contrrio, de um certo estilo de cognio urbana, uma


indiferena estudada (blas), desde muito cedo adquirida e internalizada
pelo morador da grande cidade; talvez, por isso mesmo, traduzida em
reificaes e anestesiadas insensibilidades dificilmente explicitadas,
quando da frequncia s distintas regies morais da metrpole.
O Cosmopolita, a pedido do prprio socilogo, foi um dos muitos
bares e restaurantes que Paulo Thiago, companheiro de deambulaes
do casal, apresentou a Isaac Joseph:
Levei-o a botequins tradicionais da cidade,
onde ele e Carole puderam saborear uma pequena mostra da gastronomia carioca, feita do
encontro de diversas levas de migrantes e de
estrangeiros que, no Rio, ganhou sua feio
definitiva, transformando-se em pratos tpicos
locais. Pde tambm frequentar as ambincias
dessas casas especiais, com sua arquitetura singular, usufruindo a atmosfera de boemia dessa
metrpole sul-americana do litoral.

O estrangeiro de dentro
Em suas Reminiscncias Lricas de um Perfeito Carioca, o pintor
modernista Di Cavalcanti, amigo de Picasso e Georges Braque, mergulhado na paisagem urbana da cidade que tanto amou e retratou nas
suas telas espalhadas pelos sales e galerias das grandes metrpoles,
convidando o estrangeiro a percorrer as ruas da Lapa, o casario de
Santa Teresa e as praias da ilha de Paquet, sentenciou:
O Rio de Janeiro tem coisas de que impossvel qualquer pessoa se desligar [...]. Qualquer
estrangeiro se torna carioca em pouco tempo.
O Rio de Janeiro exerce o milagre da esperana
e todos que aqui vivem ressuscitam de hora em
hora, sentindo na boca o gosto salgado de um
novo batismo.15

E assim se deu o aquerenciamento e a sagrao de Isaac Joseph,


adotado plenamente pela cidade numa manh ensolarada, na ponta
do Arpoador. Foi arrebatado no rpido intervalo de um banho de mar
por uma experincia radical que lhe infundiria, de modo definitivo,
15

Di Cavalcanti (1964).

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as marcas inclusivas da vida vertiginosa da metrpole, sob a forma


de um verdadeiro rito de agregao do qual no estavam ausentes a
surpresa, a sbita conscincia de si e a vulnerabilidade suscitada por
um sutil e annimo gesto, de custos e consequncias inesperadas.
Inesperadas porque, de todas as suas andanas pelo Brasil, esse foi o
nico momento em que se viu confrontado com o furto, esse fantasma
urbano da , palavra de difcil traduo, e, no entanto, declinada, sem
nenhuma cerimnia, no repertrio das prticas banalizadas pela experincia cotidiana de homens e mulheres, velhos e crianas, no vaivem
das grandes metrpoles do mundo inteiro, seja nos baixios do Marais,
no metr de Paris, nos arrabaldes do Cairo ou nas glamurosas e cosmopolitas areias de Ipanema. O tributo pago na ocasio ao malin gnie
da cidade, esse insolente, pelo obsequioso, embora no demandado,
exerccio de expertise ritual dessa mais ldima arte da desapario,
foi um prosaico relgio , de valor sentimental, sem dvida; mas perdido em poucos segundos de momentneo descuido, numa espcie de
batismo de fogo do socilogo.
Isaac, entretanto, experienciou o fugidio episdio como um cmplice,
dissimulando-o com estudada e competente naturalidade, sem alardes
ou ressentimentos, como se assim quisesse retribuir e preservar a
prpria discreo do ato furtivo, mantendo na penumbra, e longe da
interveno de qualquer procedimento de uma instncia heternoma, o
genius loci da cidade que fraternalmente o acolheu de braos abertos.
Talvez tenha sido este o seu maior e derradeiro ensinamento, sua maior
lio de urbanidade; pois nela est gravada em filigrana toda a singeleza dos ritos de hospitalidade e reciprocidade, prova de sua refinada
competncia citadina e de sua adeso ao do lugar e de sua gente.
Por ocasio do sbito falecimento de Isaac Joseph, Marco Antonio
Mello escreveu com grande comoo as seguintes palavras sobre seu
amigo, para quem dirigia um e-mail quando soube da triste notcia:
Em 10 de Fevereiro de 2004, todos ns infelizmente perdemos um grande e apaixonante
colega e amigo: um grande cara, ora! E todos
ns tivemos a chance de estar ao seu lado, aqui
ou acol. Ele reuniu a ns todos! Ele falou sobre
cada um de ns para cada um de ns. E de todos
ns a todos aqueles que cruzaram seu caminho,

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para convenc-los a irem juntos se reunir um


dia, aqui ou acol. Ele gostava muito e apaixonadamente de seus colegas, seus amigos e
amigas, pois, como todos sabemos bem, Isaac
amava a vida e a cidade. Fomos todos convidados por ele a tomar lugar. Isaac nos legou
toda uma imensa rede de relaes, narrativas
de viagens, e assim, enormes possibilidades
de engajamento conversacional: estamos totalmente entretecidos em histrias que, de certa
maneira, e imaginamos ter certeza disso
somente sua memria, a memria do nosso
amigo, que ir nos permitir nos recordar um
pouco mais de ns mesmos.16

REFERNCIAS
CEFA, D.; JOSEPH, I. (Coord.). Lhritage du pragmatismc: conflits
durbanit et preuves de civisme. Paris: LAube, 2002.
DI CAVALCANTI, E. Reminiscncias lricas de um perfeito carioca.
Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1964.
GRAFMEYER, Y.; JOSEPH, I (Dir.). LEcole de Chicago: naissance
de lcologie urbaine. Paris: Aubier, 1984.
JOSEPH, I. A respeito do bom uso da Escola de Chicago. In: VALLADARES, L. (Org.). A Escola de Chicago: impacto de uma tradio
no Brasil e na Frana. Belo Horizonte: Ed. UFRG; Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2005.
JOSEPH, I. Belm: paisagens urbanas, coisas pblicas. In memoriam
Isaac Joseph, Rio de Janeiro, v. 18, v. 1 e 2, p.41-90, 2004.
16

Le 10 fvrier 2004, nous avons tous malheureusement perdu un grand et passionnant


collgue et ami: un grand mec, quoi! Et nous avons tous eu de la chance dtre ses cts,
ici ou l-bas. Il nous a tous runis! Il a parl de chacun de nous chacun de nous. Et de
nous tous tous ceux quil croisait sur sa route pour tous les convaincre daller ensemble
se rejoindre un jour, ici ou l-bas. Il aimait beaucoup et passionnment ses collgues, ses
amis et amies, car, comme nous le savons bien tous, Isaac aimait la vie et la ville. Il nous a
tous invits prendre place. Isaac nous a lgu un immense rseau de relations, des rcits
de voyages, et donc dimmenses possibilits dengagement conversationnel: nous sommes
tellement emptrs dans des histoires que dune certaine manire, et on imagine pouvoir
tre sr de a, cest seulement sa mmoire, la mmoire de notre ami, qui va nous permettre
de nous rappeler un peu de nous-mmes. (Trecho de e-mail enviado em 14/02/2004).

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JOSEPH, I. Gabriel Tarde: le monde comme ferie. Revista Antropoltica, Niteri, n. 8, p. 23-40, 1. sem. 2000.
MELLO, M. A. S. et al. Quando a rua vira casa. 3. ed. So Paulo:
Projeto, 1985.
VALLADARES, L.; KANT DE LIMA, R. A Escola de Chicago:
entrevista com Isaac Joseph. BIB: Revista Brasileira de Informao
Bibliogrfica em Cincias Sociais, Rio de Janeiro, n. 49, p.3-13,
1. sem. 2000.
VOGEL, A.; MELLO, M. A. S.; PESSOA DE BARROS, J. F. A
Galinha dAngola: iniciao e identidade na cultura afro-brasileira.
3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.

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COLEO ANTROPOLOGIA E CINCIA POLTICA


1. Os fornecedores de cana e o
Estado intervencionista
Delma Pessanha Neves
2. Devastao e preservao
ambiental no Rio de Janeiro
Jos Augusto Drummond
3. A predao do social
Ari de Abreu e Silva
4. Assentamento rural: reforma
agrria em migalhas
Delma Pessanha Neves
5. A antropologia da academia:
quando os ndios somos ns
Roberto Kant de Lima
6. Jogo de corpo
Simoni Lahud Guedes
7. A qualidade de vida no Estado
do Rio de Janeiro
Alberto Carlos Almeida
8. Pescadores de Itaipu
Roberto Kant de Lima
9. Sendas da transio
Sylvia Frana Schiavo
10. O pastor peregrino
Arno Vogel
11. Presidencialismo, parlamentarismo
e crise poltica no Brasil
Alberto Carlos Almeida
12. Um abrao para todos os amigos:
algumas consideraes sobre o trfico de
drogas no Rio de Janeiro
Antnio Carlos Rafael Barbosa
13. Antropologia - escritos exumados - 1 :
espaos circunscritos tempos soltos
L. de Castro Faria
14. Violncia e racismo no Rio de Janeiro
Jorge da Silva
15. Novela e sociedade no Brasil
Laura Graziela Figueiredo F. Gomes
16. O Brasil no campo de futebol:
estudos antropolgicos sobre
os significados do futebol brasileiro
Simoni Lahud Guedes

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17. Modernidade e tradio: construo da


identidade social dos pescadores
de Arraial do Cabo (RJ)
Rosyan Campos de Caldas Britto
18. As redes do suor a reproduo
social dos trabalhadores
da pesca em Jurujuba
Luiz Fernando Dias Duarte
19. Escritos exumados 2: dimenses
do conhecimento antropolgico
L. de Castro Faria
20. Seringueiros da Amaznia:
dramas sociais e o olhar antropolgico
Eliane Cantarino ODwyer
21. Prticas acadmicas
e o ensino universitrio
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
22. Dom, Iluminados e Figures:
um estudo sobre a representao
da oratria no tribunal do Jri
do Rio de Janeiro
Alessandra de Andrade Rinaldi
23. Angra I e a melancolia de uma era
Glucia Oliveira da Silva
24. Mudana ideolgica para a qualidade
Miguel Pedro Alves Cardoso
25. Trabalho e residncia: estudo
das ocupaes de empregada domstica
e empregado de edifcio a partir
de migrantes nordestinos
Fernando Cordeiro Barbosa
26. Um percurso da pintura: a produo
de identidades de artista
Lgia Dabul
27. A Sociologia de Talcott Parsons
Jos Maurcio Domingues
28. Da anchova ao salrio mnimo: uma
etnografia sobre injunes de mudana
social em Arraial do Cabo/RJ
Simone Moutinho Prado
29. Centrais sindicais e sindicatos no Brasil
dos anos 90: o caso Niteri
Fernando Costa

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36. A produo da verdade nas prticas


judicirias criminais brasileiras:
uma perspectiva antropolgica
de um processo criminal
Luiz Figueira
37. Ser polcia, ser militar: o curso
de formao na socializao
do policial militar
38. Antropologia e Direitos Humanos 3 Prmio ABA/FORD
Roberto Kant de Lima (Organizador)
39. Os caminhos do leo: uma etnografia
do processo de cobrana
do imposto de renda
Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto
40. Antropologia - escritos exumados 3 Lies de um praticante
Luiz de Castro Faria
41. A vida social das coisas: as mercadorias
sob uma perspectiva social
Arjun Appadurai
42. Dramas, campos e metforas: ao
simblica na sociedade humana
Victor Turner
43. Polticas Pblicas de Segurana,
Informao e Anlise Criminal
Ana Paula Mendes de Miranda e
Lana Lage da Gama Lima (Orgs.)

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44. O caminho do Mundo Mobilidade


espacial e condio camponesa numa
regio da Amaznia Oriental
Gil Almeida Felix
45. Polticas Pblicas de Segurana e
Prticas Policiais no Brasil V. 2
Lenin Pires e Lucia Eilbaum (Orgs.)
46. Notcias da Violncia Urbana Um estudo antropolgico
Elthon Mrcio Almeida da Silva
47. Polticas Pblicas de Segurana
Prticas Punitivas, Sistema Prisional e
Justia V. 3
Ana Paula Mendes de Miranda e
Fbio Reis Mota (Orgs.)
48. Cosmologias polticas do neocolo
nialismo: como uma poltica pblica
pode se transformar em uma poltica
do ressentimento
Ronaldo Lobo
49. Antropologia da academia: quando
os ndios somos ns
Roberto Kant de Lima
50. Esculhamba, mas no esculacha
Lenin Pires

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PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL


Ttulo conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)
aps a implementao de um Programa Socioambiental
com vistas ecoeficincia e ao plantio de rvores referentes
neutralizao das emisses dos GEEs Gases do Efeito Estufa.

www.editora.uff.br

Este livro foi composto na fonte Dutch 801 SWA, corpo 11.
impresso na Global Print Editora e Grfica Ltda.,
em papel Plen Soft 80g. (miolo) e Carto Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edio foi impressa em abril de 2011.
Tiragem 500 exemplares

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