Silêncio Ruído - Audiodrama

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teatro em livro.

Silêncio ruído

autoria: Vana Medeiros, Murilo Franco,


Fernanda Rocha, Rudá, Diego Cardoso,
Bruna Menezes, Daniel Veiga e Lucas Moura.

capa: Murilo Thaveira


diagramação: Marcus Mazieri
projeto gráfico: Marcus Mazieri e Lígia Souto
revisão: Lígia Souto e Eduardo Aleixo
edição: Eduardo Aleixo, Lígia Souto e
Marcus Mazieri

@editoraefemera

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silêncio ruído [livro eletrônico]. -- 1. ed. --


São Paulo : Editora Efêmera, 2023.
PDF

Vários autores.
ISBN 978-65-999133-2-7

1. Dramaturgia 2. Podcast (Redes sociais online)


3. Teatro brasileiro.

23-148753 CDD-B869.2
Índices para catálogo sistemático:

1. Teatro : Literatura brasileira B869.2

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Realização:
este livro é parte do
projeto ‘Audiodrama:
dramaturgias para
podcast’.

para ouvir os textos


deste livro em podcast,
é só clicar aqui.
8~ MUDA ESSA
HISTÓRIA!
~Marici Salomão

12~ Escuta (e) palavras


~Diego Cardoso
23~ O museu do fim
do(s) mundo(s)
~Vana Medeiros
45~ Doralice
~Murilo Franco
70~ Tormenta
~Fernanda Rocha
88~ TravaS
~Rudá

115~ Mito
~Diego Cardoso

151~ Hoje foi amanhã


~Bruna Menezes

176~ Abate
~Daniel Veiga

208~ Girô
~Lucas Moura
MUDA ESSA
HISTÓRIA!
~Marici Salomão
9~

Oito vozes.
Oito singularidades.
Infinitas potências!
Como coordenadora de cursos e núcleos de
fomento às novas dramaturgias, tenho tido nas últi-
mas duas décadas a oportunidade sagrada de conviver
com jovens autores teatrais que estão transformando
profundamente os temas e as formas dramatúrgicas.
Quando a principal figura da peça Mata Teu Pai, de
Grace Passô, brada: “Olha pra mim! Muda essa história!
Para de achar que a gente é um destino, muda essa his-
tória”, eu vejo uma legião de dramaturgas e dramatur-
gos empunhando como arma essa palavra para efetuar
essa grande revolução. Nas páginas que se seguem, oito
vozes com suas singularidades expressam em frequên-
cia máxima suas infinitas potências, apresentando pen-
samentos e geometrias que não se repetem, como se
acostumou ver no teatro dramático tradicional. (Nada
contra o tradicional, mas não tenho a menor dúvida
sobre a importância do novo.)
Seis dessas vozes tive o prazer – e, digo também,
a honra – de conhecer diretamente no Núcleo de Dra-
maturgia do SESI-British Council e no curso de Dra-
maturgia da SP Escola de Teatro: Lucas Moura, Vana
Medeiros, Bruna Menezes, Dani Veiga (Daniel Veiga),
Fernanda Rocha e Diego Cardoso. Vozes que se somam
10~

às de Murilo Franco e Rudá. Pari passu com as lutas


do contemporâneo, mostram em suas dramaturgias
mundos que até pouco tempo atrás tinham pouco
“direito” às ações que se executam nos palcos (palcos no
sentido de espaços teatrais).
São dramaturgias que apresentam uma
florescente interseccionalidade, ou seja, contêm
personagens que são resultado da sobreposição de
marcadores ou identidades sociais – de gênero, raça,
classe, etnia, localização geográfica e sexualidade.
Suas narrativas são brados contra formas de opressão,
discriminação e dominação. Mas não fazem isso como
gritos discursivos, panfletários ou propagandísticos,
mas como arte que nos toca com sua veia lúdica. Textos
que chegam em boa hora, no sentido de formarem um
painel contra-hegemônico aos discursos reacionários,
violentos e segregativos, que recrudesceram nos últimos
anos no Brasil (felizmente, a despeito da violência que
ainda grassa nas ruas, famílias e instituições do país,
estamos tendo a chance de uma nova mudança).
Os temas revelam a urgência de reflexão sobre
seres cotidianos como sujeitos políticos: na enfermeira
negra que enfrentou uma pandemia ou no bombardeio
de informações que assola a mente de uma mulher; nos
pensamentos de uma mulher dentro de um ônibus,
depois de um dia de trabalho. Mas também convidam
a pensar nas consequências de governos que baseiam
suas ações no autoritarismo e terror, levando às proje-
ções de tenebrosos sistemas distópicos.
11~

As oito dramaturgias foram escritas para serem adap-


tadas para podcast, num projeto do Audiodrama, origi-
nalmente concebido por Diego Cardoso. Nesta edição, o
tema de provocação foi “o som e os silêncios de agora”.
Nessa dualidade, os autores compartilharam seus pro-
cessos de escrita uns com os outros, além de envolver
uma série de atividades em torno das criações. Como
nova modalidade, esse projeto de podcast tem possi-
bilitado a exploração de linguagens interseccionadas
e de novas plataformas de construção e divulgação de
dramaturgias.
Sem ficar esperando por que sejam chamados
ao trabalho, arregaçaram as mangas e propõem pro-
jetos, trabalhos, materiais que desejam desenvolver.
Estão inventando novos mundos, dando vazão a novos
temas e explorando formas dramatúrgicas que também
se opõem às formas mais tradicionais da personagem
fechada e dos diálogos, fazendo assim jus aos temas a
que se propõem debater. Inventam à luz de uma neces-
sidade e não por puro modismo. E isso parece contribuir
para que seus trabalhos ganhem uma luminosidade
ímpar. Luminosidade que é guia para a criação de novos
destinos e de novas histórias. Assim tem sido, assim
está sendo.
Que sejam frutíferas as leituras!
Escuta (e) palavras
~Diego Cardoso
13~

Dramaturgia e podcast: o projeto audiodrama

É possível afirmar em alto e bom som que a dramatur-


gia brasileira e contemporânea possui algo de ímpar no
modo como se apresenta, se organiza e se desloca por
suas correrias1. Essa singularidade, paradoxalmente,
diz respeito à diversidade das formas da criação do
texto para a cena, tanto na estrutura quanto nos seus
conteúdos. A multiplicidade representa, também, a
formulação de processos de criação variados, que não
se limitam mais a pressupostos hegemônicos ou tota-
lizantes.

Da inquietação que ecoa dessa constatação é que foi


criado o podcast audiodrama, com o intuito de ser um
espaço de discussão e divulgação da produção dramatúr-
gica do ponto de vista dos processos de criação – afinal, a
pluralidade que existe nas identidades é elemento indis-
sociável do que define a dramaturgia contemporânea.

1 Correrias e correrias. No sentido que concerne à etimologia de discurso, cujo


significado remete àquilo que corre por todos os lados, ou seja, que transita sobre
múltiplos sentidos. E, também, no sentido dos muitos caminhos que se trilham
com velocidade, astúcia.
14~

Entre 2019 e 2020 foram produzidas duas temporadas


de entrevistas com autores e autoras sobre suas obras,
práticas e temas que atravessam seus processos. Como
explicita em seu nome, o audiodrama foi idealizado com
o propósito de explorar o espaço da dramaturgia dentro
do formato do podcast. Para esse projeto, desde o início o
podcast se mostrou como uma mídia propícia para falar
e pensar dramaturgia, qualquer que fosse o enfoque. E
isso não se deu apenas pela facilidade e praticidade da
ferramenta.

Tal qual a dramaturgia, o podcast2 também se destaca


pela singularidade de ser extremamente plural nos for-
matos e possibilidades que oferece para abordagem de
um assunto ou tema, ainda que restrito à linguagem do
áudio. O histórico de décadas de existência dos podcasts
é composto por produções que confirmam a diversidade
nos modos de exploração do áudio na organização de nar-
rativas, ambiências e relação com quem escuta. O espaço
conquistado por podcasts brasileiros entre a audiência de
plataformas de áudio atesta a variedade de produções,
que vão de jornalísticos e narrativas de true crime a revis-
tas paródicas e programas lúdicos para crianças.

2 Embora, por definição, seja restrito ao áudio, recentemente se popularizaram os


chamados podcasts em vídeo, que consistem no formato de entrevistas e conver-
sas entre participantes veiculadas com imagem em plataformas de vídeo e redes
sociais.
15~

Como resultado daquele projeto, o audiodrama produ-


ziu, dentre os episódios de diálogos com dramaturgos
e dramaturgas, um especial em formato documental
sobre Qorpo-Santo3 e episódios dramatizados produ-
zidos em parceria com o projeto Terça em Cena, que
apresentaram textos, antes escritos para cena, com
interpretação, direção e sonorização.4

Essa experiência marca um primeiro momento da


investigação pretendida pelo audiodrama, caracterizado
também pelas condições de produção independente.
Um segundo momento se constitui quando um novo
projeto se organiza em torno do pensamento segundo
o qual a semelhança da “pluralidade enquanto singu-
laridade” que há entre dramaturgia e podcast poderia
ser um ponto de partida de uma investigação sobre
como ambas as linguagens podem potencializar uma à
outra. Questionamentos se acumularam desde o início,

3 José Joaquim de Campos Leão, dramaturgo e também poeta e jornalista (entre


outras ocupações) brasileiro, habitante do Rio Grande do Sul, que escreveu suas
peças no século XIX. Por conta dos elementos absurdos e surreais de sua obra, é
considerado um precursor do que seria chamado, no século seguinte, de Teatro do
Absurdo.
4 A sequência de cinco episódios intitulada “Projeto Audiodrama - Terça em Cena”
se tratava da gravação e sonorização de textos apresentados no Teatro Cemitério
de Automóveis, em São Paulo, que se caracterizavam por suas formas breves. Os
episódios foram ao ar entre os meses de novembro e dezembro de 2020. A produção
foi realizada em parceria com o dramaturgo Lucas Mayor, idealizador do projeto
Terça em Cena.
16~

levando a imaginar quais outros movimentos possíveis


poderiam existir para além de somente transportar a
dramaturgia para dentro do áudio; ou então, como a
experiência da escuta poderia inspirar a escrita, e esta
de um texto cênico, mas apenas para ouvir; como as
proposições de uma dramaturgia cada vez mais híbrida
na sua forma poderiam provocar a materialidade do
podcast.5 Um ciclo, disparado pela escuta, que chega
à escrita que, por sua vez, se completa, de volta, na
escuta – e somente nela.

Esta publicação se insere como parte desse novo projeto.


Nela estão reunidas as dramaturgias inéditas resultantes
de um processo de investigação que convidou autores e
autoras6 para se proporem a criar textos a partir daquelas
provocações. A sua realização se efetiva através de uma
parceria quase inevitável com a editora efêmera, que cada
vez mais se prova agente da ampliação, do acesso e da
investigação dos contornos da dramaturgia brasileira.

Esta coletânea corresponde à faceta textual de uma nova


temporada, composta por episódios que traduzem no
áudio as dramaturgias e seus expedientes. Ela comple-

5 A elaboração desse projeto teve início no ano de 2021. Sua execução se tornou
possível com a contemplação no edital ProAC 38 — Modalidade 13.
6 São eles e elas: Bruna Menezes, Daniel Veiga, Diego Cardoso, Fernanda Rocha,
Lucas Moura, Murilo Franco, Rudá e Vana Medeiros, integrantes da produção dra-
matúrgica, fundamentalmente, paulista.
17~

menta o resultado da investigação proposta ao docu-


mentar as obras e as diversidades dos modos com que
dialogam com uma linguagem distinta. Juntamente
com uma leva de episódios extras, que também com-
põem a temporada, dedicados à exposição dos proces-
sos de criação na voz dos próprios autores e autoras,
a publicação constitui uma parte fundamental de uma
experiência criada para ser ouvida, lida e debatida. O
histórico de democratizar o acesso a textos teatrais que
identifica a editora efêmera se combina ao propósito do
audiodrama de investigar as muitas maneiras de pensar
e fruir as dramaturgias.

Aos leitores se abre o lugar singular da pluralidade.


Tem-se a possibilidade de experienciar o episódio e o
livro, o áudio e a escrita, o podcast e a dramaturgia, de
mais de uma maneira. Ouvir e depois ler, ouvir lendo,
ler e depois ouvir. Cada uma delas sendo única; em cada
uma delas o som e o texto citam, acenam e se relacio-
nam um com o outro.

É nítido constatar que o longo processo de criação dessa


temporada, possibilitado por uma política pública que
permitiu uma ampliação das condições de produção do
audiodrama, é ainda mais longo, uma vez que se com-
pleta na co-agência do ouvinte que se coloca a escutar e
criar junto.
18~

As dramaturgias: os silêncios e os ruídos de agora

A criação das oito dramaturgias partiu de um dispara-


dor comum que indagava: “quais os sons e os silêncios
do Brasil de agora?”. Sob a perspectiva do podcast e da
dramaturgia, esse disparador pergunta sobre o que
ouvimos, mas também sobre o que entendemos e pen-
samos sobre as vozes que disputam a arena do discurso,
os sentidos que elas criam e os gestos que as abafam.

Cada uma das dramaturgias responde à pergunta lan-


çada de um modo diferente, construindo universos e
dialogando com ecos do “agora” de um Brasil recente
e em risco. Na perspectiva do aspecto temático, as dra-
maturgias ecoam o passado recente – do período pan-
dêmico, do acirramento do autoritarismo, do ataque às
subjetividades – e entoam futuros possíveis – onde as
consequências do presente são trágicas ou inesperadas.
A maneira como esses ecos são criados e trazidos nos
textos evidencia as descobertas e os lugares aos quais
os caminhos riscados no processo de criação levaram.
Além de diferentes abordagens temáticas, as dramatur-
gias exploram também diferentes estruturas dramatúr-
gicas. Numa exploração que se debruçou sobre o áudio,
isso se refletiu em proposições que focam no formato,
19~

na assimilação e elaboração de indicações sonoras em


vez de cênicas, na agregação de outros materiais e na
relação com o ouvinte.

O que observamos nos textos é que a provocação do


podcast como “meio” da dramaturgia teve efeito dire-
tamente sobre um elemento que constantemente já
é matéria de deslocamentos e poéticas na escrita: a
palavra. Na escrita cênica a palavra é elemento central
da criação, mas se complementa com a associação a
outros elementos importantes que, na cena, fazem
ampliar seus sentidos com suas próprias dramaturgias,
como a atuação, a encenação, e as visualidade, como a
iluminação, a cenografia, o figurino. Quando a palavra
ocupa um espaço dentro do áudio, tudo o que se tem
é o elemento sonoro. A tarefa com a palavra passa a
ser, então, descobrir como ela pode dar conta de criar
imagens e sentidos tendo apenas o som à sua disposi-
ção. Na palavra reside a matéria usada para construir
ambientes, espaços e sentidos numa plataforma sonora
como o podcast. A palavra, quando dita, é som; e, quando
negada, é silêncio; conforme gerada, faz ruído.

O que as dramaturgias dessa temporada fizeram passa,


primordialmente, pela palavra e as formas de expandi-las.
20~

Pensar na palavra em sua dimensão somente sonora


conduz uma investigação que, necessariamente, atra-
vessa o gesto da escuta, do lugar do outro, da interlocu-
ção e, até, da alteridade. A partir da palavra como ponto
de partida, abrem-se outros caminhos de investigação
que se refletem na lida com outros elementos da com-
posição dramatúrgica. Talvez seja possível destacar
alguns desses pontos de chegada do processo que cada
autor e autora percorreu e que são traços caracterizan-
tes dessa temporada.

Um primeiro deles diz respeito a propostas que buscam


reproduzir formatos próprios do áudio, como um áudio
guia de um museu ou um podcast narrativo de inves-
tigação. Nesses casos, verifica-se que as narrativas se
constroem em torno da posição do ouvinte e do modo
como a encaram.

Um segundo ponto marcante é a presença do elemento


real, que surge como um material externo, extraído de
uma obra ou espaço social e incorporado à camada fic-
tícia, mas sem esconder sua procedência. Experimenta-
ções nessa direção se remetem à potência documental
do podcast, em que um momento ou evento real captado,
21~

ainda que repetido inúmeras vezes, permanece um


registro inalterado.

Por último, ponto comum entre as dramaturgias, estão


as experimentações com deslocamentos e atravessa-
mentos de tempos, espaços e perspectivas que incitam
recursos sonoros característicos do podcast, como a
sobreposição, a simultaneidade e a alternância. Cons-
truções possíveis na linguagem do áudio que estimulam
e potencializam esses deslocamentos quando ocorrem
numa narrativa.

No exame detido de cada dramaturgia, outras especifi-


cidades e sinais da combinação entre escrita e podcast
poderão ser encontrados. Eles estão documentados
nesta publicação, parte essencial do projeto dessa
nova temporada, dimensão indissociável do projeto
ambicioso que envolveu diversos artistas da escuta e
da palavra, que consiste em pensar e investigar os ecos
da dramaturgia entre os silêncios e os ruídos de outros
dispositivos.
23~
O museu do fim
do(s) mundos(s)
~Vana Medeiros

sinopse~
Um museu em que os itens em exibição são os últimos cidadãos de
países que deixaram de existir. O que estamos ouvindo aqui é um
audio tour, uma espécie de trilha em áudio de uma visita guiada a
este museu. Obrigado por se juntar a nós no dia de hoje. Ao con-
trário do que muitos dizem por aí, o mundo ainda não acabou. Não
todo ele, apenas certas partes. E aqui você pode conhecê-las. Caso
queira mudar o idioma deste tour, retorne à loja e peça para trocar
seu equipamento para qualquer uma das sete línguas disponíveis,
incluindo as recém-adicionadas latim e esperanto. Por favor, a
partir da porta de entrada, conte 453 tijolos amarelos e você estará
aqui, em nosso salão principal. Nesta seção do nosso museu, em que
você acaba de entrar, irá encontrar os três espécimes mais valiosos
de toda a nossa exposição. Aqui, à esquerda da porta de entrada,
começamos pelo primeiro, com suas botas cor de berinjela e seu guar-
da-chuva laranja: Aquele Que Não Previu O Dilúvio. Mais adiante,
completamente nua em sua sala rodeada de espelhos, está Aquela
Que Fez A Revolução. E, por último, iluminado por uma única vela,
está o Velho De Um País Sem Palavras. Boa visita a todos!
M
O FI )
U D O(S
USE UND
O M S) M
DO(
25~

Microfone é ligado sem querer. Capta o som ambiente.


Muito vento. Gelo. Uma sensação de frio polar.

Alguém respira mais forte. Cantarola uma música qualquer.


Talvez Palco, de Gilberto Gil.

Toca com o dedo no microfone uma, duas, três vezes, batidinhas


surdas.

GUIA
(depois de alguns segundos)
Tá ligado?
(com a voz empostada)
SOM. UM, DOIS, TRÊS, SOM.
(para alguém)
Posso?
(depois de ouvir a resposta, ao fundo)
Bora.

Tosse.
Limpa a garganta.
Toma uma água.
Limpa a boca.

GUIA
(testando diferentes vozes)
Bem-vindo, visitante.
Bem-vinda, visitante.
Welcome, visitors.
Bienvenido, el visitante.
(decidindo pela mais Frank Sinatra das vozes até então)
Parabéns por adquirir a experiência de áudio do Museu do Fim
do(s) Mundo(s). Recentemente, nossa instituição teve o prazer
26~

de receber o título de maior museu em metros quadrados dos


seis continentes! Somos, ainda, o único deles a se localizar na
Antártida. Contamos com 3 milhões 350 mil metros quadrados,
aproximadamente o tamanho de 329 campos de futebol. Logo,
esperamos que tenha separado um tempo considerável para o
passeio educativo e cultural que te espera.
Agradecemos imensamente a sua visita.
A partir da porta de entrada, conforme as instruções no mapa
que aparece neste momento na tela de seu aplicativo, você deve
contar 453 tijolos amarelos até chegar em nosso salão principal.
Pode começar. Eu espero.

Música instrumental

Enquanto isso, algumas explicações importantes para que você


aproveite seu dia da melhor maneira possível.
Ao contrário do que muitos dizem por aí, o mundo ainda não
acabou. Não todo ele, apenas certas partes. E aqui você pode
conhecê-las.
Em nossas dezenas, centenas de corredores, estão te esperan-
do milhares, milhões de espécimes em exposição que estão
aguardando pacientemente pelo seu cuidadoso olhar.
Em cada cubículo, devidamente numerado pela ordem de che-
gada de seus ocupantes a esta instituição, é possível encontrar
o último cidadão de um país que chegou ao fim, uma cultura
que oficialmente já não faz mais parte deste Planeta, mas cujos
últimos rastros temos o privilégio de conservar por aqui. Alguns
destes países terminaram há poucos minutos. Outros, eras
atrás.
Nossa curadoria é especializada em realizar as aquisições as-
sim que a morte do país é determinada, muitas vezes antes
mesmo dos próprios cidadãos receberem a notícia. Eles são, en-
tão, encaminhados para dentro de nossas confortáveis paredes,
em acomodações especialmente pensadas para cada um deles,
27~

com controle de temperatura e pressão adequados, emulando


as condições climáticas de seus países de origem e sendo bem
alimentados com refeições típicas de suas extintas culturas,
preparadas por nossos talentosíssimos chefs. A trilha sonora de
seus espaços também é fruto de uma extensa pesquisa, que
resulta em uma afinadíssima playlist apenas com as melhores
canções entre aquelas compostas por seus antepassados…

Música instrumental

A esta altura, se eu calculei bem, você acaba de chegar ao tijolo


número 453 da estrada de tijolos amarelos. Para confirmar se
você está no lugar certo, é só se virar para a esquerda e obser-
var o enorme umbral marrom construído com madeira nobre de
mogno que se abre ao seu lado. Acima dele, você deve conse-
guir ler, em distintas letras serigrafadas em prata, inscrições em
um alfabeto antigo. Estou correto? Vou te pedir que não entre
por esta porta ainda.
Antes de qualquer coisa, vamos admirar a estrutura deste palá-
cio arquitetônico em que temos o privilégio de estar.

Já foram tantas as guerras atravessadas por esta construção


que eu desafio o visitante a tentar encontrar uma única escola
estética que tenha inspirado estas paredes. Pelo contrário, cada
pedaço delas, com sua cor e seu estilo distinto do outro, parece
ter sido inspirado por um tempo diferente, e as camadas vão se
sobrepondo até que as percamos de vista, como esta imponen-
te colcha de retalhos que é a História.

Olhe para cima. No teto construído sobre este pé direito gigan-


tesco, com mais de 25 metros de altura, é possível reconhecer
praticamente todos os materiais, técnicas e cores usados nos
concretos de suas paredes; e todas as variedades de pedras
preciosas existentes — algumas irreconhecíveis a olhos contem-
porâneos — ostentadas em seus ornamentos.
28~

Caso o visitante esteja interessado em encontrar uma sala es-


pecífica, ou visitar um espécime do qual tenha ouvido falar, o
melhor a fazer é procurar por ele direto no próprio mapa do apli-
cativo oficial de nossa instituição. Não tente, de maneira nenhu-
ma, deduzir a lógica de organização dos espaços. Você não vai
conseguir, e a probabilidade maior é que se perca nos corredo-
res por horas, talvez dias, até ser resgatado por um funcionário
do museu. Por isso, é importantíssimo que você nunca se afaste
de seu mapa. Ele é a garantia de que você poderá voltar em
segurança para a civilização, ou para o que sobrou dela, como
prometido no pacote turístico que você adquiriu.

Por exemplo: a sala que já conteve a maior parte dos Países


Terminados Por Alguma Espécie De Cataclisma Global já ficou
localizada exatamente ao lado da sala que abriga os habitantes
de Países Terminados Pela Ação De Fascistas De Extrema Direi-
ta. Não deu muito certo. Os cidadãos da primeira sala estavam
a todo momento culpando a ignorância democrática dos países
da segunda pelos seus problemas, e foi assim que começou a
primeira das Grandes Guerras Civis pela qual passou esta insti-
tuição no começo do século passado. Quando a sétima e última
contenda chegou ao fim, toda a ala norte teve de ser reconstru-
ída, e a estruturação das salas passou a ser feita de maneira
completamente aleatória, com alternâncias diárias de local para
cada habitante, impedindo que eles, digamos assim, como po-
demos dizer?, se organizem.

A única ala isenta desta tarefa diária de esvaziar suas acomo-


dações e partir para um novo espaço é a sala dos países que
terminaram por inércia, devido ao fato de que ninguém acredita
realmente que eles sejam capazes de se radicalizar.

Música instrumental

Lembrando que o que estamos ouvindo aqui é um audio tour,


uma trilha em áudio que vai te acompanhar na visita ao nos-
so museu, disponível em nosso aplicativo exclusivo. Eu tenho a
honra de ser seu guia hoje. Caso queira alterar o idioma em que
29~

deseja ouvir as nossas informações, durante qualquer momen-


to do passeio, é só voltar ao menu principal em seu aparelho.
São sete as línguas disponíveis, incluindo as recém adicionadas
latim e esperanto.

Música instrumental

Voltemos, portanto, às inscrições prateadas na porta à nossa


esquerda. O idioma antigo no qual estão escritas nunca foi total-
mente decifrado, mas se acredita que se trata de um aviso aos
navegantes que diz: “A pior coisa que pode acontecer a um país
é um cidadão”. Sugestivo. Vamos entrar.

Música instrumental

Poucos passos à frente são suficientes. Eu quero que você pare


aqui, na entrada da sala por um instante e observe. Se for mais
confortável, pode se sentar em um dos bancos de madeira à
sua esquerda. Daqui, você deve estar vendo três enormes es-
paços, cada um cercado por suas paredes de vidro blindado,
em que nossos espécimes devem estar executando suas tare-
fas diárias. Não se engane. Estes são três dos mais perigosos
— e valiosos, aliás — artefatos expostos atualmente em nossa
instituição. Esta é nossa Ala De Segurança Máxima. Cada um
destes habitantes não só é o último de sua cultura como foi o
próprio causador da extinção de seus conterrâneos, de manei-
ras completamente acidentais e providas de excelentes inten-
ções. Alguns funcionários deram o apelido carinhoso a esta sala
de “Ninguém Tinha Perguntado”.
Mantenha uma distância segura e em hipótese nenhuma tente
contato.

Barulhos de cliques e botões sendo apertados.


Passos dados em um piso frio.
Mais cliques.
30~

GUIA
Muito bem, vejo que você escolheu um ótimo artefato para co-
meçar sua visita. Um dos melhores. Dependendo da cultura de
origem do visitante, no entanto, recomendamos que esta ob-
servação não seja feita por menores de idade. O artefato em
questão está, como se pode verificar em uma rápida observa-
ção, completamente nu. Seu espaço é rodeado por espelhos,
e ele passa a maior parte do tempo assim, olhando para eles e
procurando em seu corpo novos motivos para se admirar, o que
ocasionalmente o coloca em posições um tanto quanto agressi-
vas aos olhos do visitante. Tome cuidado.
Seu país de origem não é muito fácil de se precisar, tendo em
vista que teve seu nome alterado mais de cem vezes em seus
poucos séculos de existência. Este espécime é ninguém menos
do que A Primeira Pessoa Deste País A Sugerir Que Se Fizesse
Uma Revolução. Não uma reforma, entenda. Uma revolução. Da-
quelas completas, com estátuas sendo substituídas e tudo, com
novo nome, esperanças renovadas, enfim, pacote completo.
Não que ele não gostasse das coisas como estavam, para ele a
vida não andava tão ruim assim. Mas… você sabe… pobreza, de-
sigualdade social, essas coisas. Não por ele, que não era exata-
mente pobre, claro. Pelos outros, os pobres. A revolução estava
ali, tão pertinho, quase ao alcance das mãos, alguém tinha que
fazer. O problema é que a maior parte dos conterrâneos deste
artefato não se classificaria exatamente como pobre. Pra eles,
a ideia de uma revolução para tirá-los da pobreza era quase,
pois é, ofensiva. Eles tinham batalhado muito para chegar onde
estavam. Mereciam o que tinham conquistado. Em revoluções
não é comum que se tirem coisas de um pra dar pros outros?
Não, obrigado, não estavam interessados. Dali a 20 dias, o país
inteiro implodiu. Puft. No ar. E só sobrou ele que, depois de cer-
ca de 10 minutos questionando se deveria se martirizar pelos
caminhos escolhidos, decidiu que não adiantava nada lamentar
e foi adquirido pela nossa instituição, onde decidiu ser muito fe-
liz, muito vaidoso, muito orgulhoso de seu caminho, sua luta por
uma vida melhor para sua família, seus amigos, seu país, todos
a esta altura bem mortos.
31~

VISITANTE
Oi?

Barulho de um toque tímido no vidro.

Silêncio.

VISITANTE
Tudo bem por aí? Quer conversar?

De repente, barulho de um espelho de vidro sendo quebrado com


violência no chão.

Barulhos de cliques e botões sendo apertados

Um som de água constante, sendo movida em baldes de um canto a


outro, acompanha todo o próximo bloco.

GUIA
Ótimo! Um novo artefato escolhido para sua visita! Com suas
botas cor de berinjela e seu guarda-chuva laranja, ele deve es-
tar bastante ocupado retirando a água de dentro dos baldes
espalhados pelo espaço, colocados estrategicamente debaixo
de algumas goteiras artificiais desenhadas pela nossa produ-
ção. Este espécime não saberia sobreviver de outra maneira.
Contam os historiadores, seu país já abrigou um dos maiores e
mais atraentes desertos do mundo. Não um daqueles desertos
desérticos mesmo, que flertam com a morte. Um deserto funcio-
nal, turístico, cujas areias douradas recebiam visitantes de todo
o mundo montados em deslumbrantes dromedários. O único
defeito deste país era abrigar também, além do deserto, alguns
cientistas inquietos, em uma equipe liderada exatamente por
este simpático e rechonchudo homem de meia idade vestindo
galochas cor de berinjela à sua frente. Foi ele que, procurando
32~

resolver um problema que, contam mais uma vez os historia-


dores, ninguém tinha, desenvolveu em laboratório a primeira
nuvem artificial criada pela humanidade. E depois a segunda.
E, infelizmente, a terceira. Foram tantas as nuvens artificiais
criadas pelos cientistas orgânicos que este belo país desértico
ficou conhecido como o País do Dilúvio Acidental. No princípio,
eles até acharam interessante. Era só mudar o tom do pacote
turístico, uma nova narrativa, mais úmida, por assim dizer. Mas,
aos poucos, como era óbvio de se imaginar, mas nem tão óbvio
assim que eles pudessem realmente ter imaginado, nem todos
os baldes da nação foram suficien/

Barulho de clique, como se um botão no celular tivesse sido apertado.


Barulhos de toques no vidro.
Uma, duas, três batidinhas leves, como quem chama alguém.

VISITANTE
Olá?

Um balde cai.

VISITANTE
Olá?

Silêncio. O barulho de água é interrompido.

VISITANTE
Deve ser difícil. Passar o dia inteiro assim.

Timidamente, o barulho de água volta.

VISITANTE
Quero dizer. Para os meus parâmetros. Na minha cultura seria difícil.

O barulho de água para mais uma vez.


33~

VISITANTE
Não quero usar o meu ponto de vista como universal, entende?
Sou mais esclarecido do que isso.

O barulho de água volta mais uma vez, com mais força.

VISITANTE
Isso tudo que aconteceu com vocês me lembrou uma coisa que
aconteceu comigo, sabe?

O barulho de água se torna ainda mais forte.

VISITANTE
(tendo que falar mais alto para ser ouvido)
No meu país, a gente também tinha alguns problemas reais e
outros mais, digamos, decorativos. E, de repente, alguém disse
que todos os nossos problemas decorativos seriam resolvidos
se levássemos no bolso um aparelhinho pequeno que ao mes-
mo tempo servia pra gente se comunicar e aprender sobre o
mundo.

Silêncio.

VISITANTE
Foi o nosso dilúvio, eu acho.

Ruídos de interferência interrompem a transmissão.


Um clique e um botão são acionados.

GUIA
Mais um artefato! Nesta velocidade, calculo que sua visita com-
34~

pleta ao nosso museu vai ser uma das mais rápidas deste ano.
Você deve percorrer todos os espaços em pouco mais do que
830 horas. Contadas as paradas para o lanche!

Nosso próximo artefato: dizem que tudo começou quando ele


descobriu que, mesmo seu país estando vivinho e bem dispos-
to ao redor dele, nada parecia para ele tão natural assim. Era
como se, conforme ele ia envelhecendo, tudo ao seu redor se
transformasse em outra espécie de coisas. As roupas, o jeito de
falar das pessoas, as ideias, tudo, de repente, era outro. Ele ten-
tava desesperadamente acompanhar o ritmo do mundo, mas
era em vão. Conforme iam se passando os tempos das guerras
civis e dos dilúvios e das revoluções, a cada cinco anos mais ou
menos, mesmo sem quase sair de casa, este artefato se sentia
como se estivesse sendo expulso de seu próprio país. Acho que
todos nós conseguimos nos identificar um pouco com isso, não
é mesmo? O problema é que ele não era um cidadão qualquer,
mas um dos linguistas mais importantes daqueles tempos, que
passou a dedicar todos os seus esforços para catalogar as mais
bonitas palavras de sua língua antes que elas se tornassem pe-
ças de museu. Começou a cultivar uma obsessão pela museo-
logia das ideias, a arqueologia dos vocábulos, o congelamento
criogênico de alguns sinônimos.

Ruídos de interferência interrompem a transmissão.


Um clique e um botão são acionados.

VELHO
Com licença…

VISITANTE
Eu… o senhor está falando comigo?
35~

VELHO
Sim, meu jovem, você tem um minuto?

VISITANTE
Acho… eu não sabia que vocês podiam falar com a gente.

VELHO
Meu amigo, o seu país tem natal?

VISITANTE
Natal?

VELHO
É, natal. O seu país tem natal? Me disseram três vezes segui-
das, em três dias diferentes, que não existe mais um único país
sobre a Terra que conserve esta grande engenhosidade que é a
tradição natalina.

VISITANTE
Jura?

VELHO
Juro. Foi substituída por outra qualquer. Assimilada. Dissolvida.
Talvez tenha ficado obsoleta.

VISITANTE
Que ironia.

VELHO
Aterrador. O natal era mais do que uma tradição, era um meca-
nismo. Uma máquina.
36~

VISITANTE
É. Pode-se dizer que sim.

VELHO
Sem ele, a convivência social torna-se praticamente impossível.

VISITANTE
Mesmo?

VELHO
Mesmo. Temos o caos instaurado. Precisamos fazer alguma
coisa.

VISITANTE
Precisamos? Nós? Por quê?

VELHO
Alguém precisa fazer alguma coisa! Só não tem como ser eu.

VISITANTE
Não tem?

VELHO
Não agora.

VISITANTE
Bom, o senhor parece meio preso aí. Esse vidro é blindado?
37~

VELHO
Blindadíssimo. E se fosse só isso tava bom. É que o senhor veja
bem, o natal não é a única coisa que desapareceu na minha
cultura.

VISITANTE
Obviamente.

VELHO
O natal foi apenas a cereja do bolo.

VISITANTE
Não me diga.

VELHO
Desapareceram inclusive os bolos. E os aniversários. O senhor
sabe o que é um aniversário?

VISITANTE
Não tenho a mínima ideia.

VELHO
Quod Erat Demonstrandum. Como queria demonstrar. Eu. Que-
ria. Queria, porque não quero mais, inclusive. Não teria nem
como. As demonstrações, muito, MUITO comuns na minha cul-
tura, também desapareceram. Ainda bem.

VISITANTE
Que coisa.
38~

VELHO
Pois é. Desapareceram junto com as palavras.

VISITANTE
Não é possível.

VELHO
As palavras, acredita? Sumiram todas. Desapareceram. Foram
assimiladas.

VISITANTE
Todas? Não acredito.

VELHO
Mas é. Eu sou incapaz de me comunicar. Completamente incapaz.

VISITANTE
E o que o senhor está fazendo agora mesmo? Comigo?

VELHO
Isso? Ah, uma besteira. Irrelevante.

VISITANTE
Não estão saindo palavras da boca do senhor?

VELHO
Umas poucas.
39~

VISITANTE
Elas não estão formando frases?

VELHO
As piores.

VISITANTE
Por favor, não se rebaixe.

VELHO
Não estou.

VISITANTE
Economize a modéstia.

VELHO
Nem sei o que é isso. Literalmente.

VISITANTE
Pra mim, o senhor está perfeitamente bem. No auge da idade.

VELHO
Hummmm… Preocupante.

VISITANTE
Como?
40~

VELHO
Preocupante o senhor achar isso.
(um pouco constrangido)
Talvez... o senhor sabe como é... Talvez... o senhor esteja desa-
parecendo também.

VISITANTE
Pelo amor de Deus!

VELHO
Pelo amor de quem?

VISITANTE
O senhor acha mesmo?

VELHO
Não sei. Talvez. Em que pé anda o seu país?

Visitante Suspira, envergonhado.

VISITANTE
Não está exatamente bem...

VELHO
Iiiiiiiih…

VISITANTE
Mas vai melhorar!
41~

VELHO
Iiiiiiiiiih…

VISITANTE
As reformas…

VELHO (rindo)
As reformas!

VISITANTE
Elas são necessárias!

VELHO (gargalha)
São muito necessárias! Sempre!

VISITANTE
A gente vai sair dessa!

VELHO (rindo ainda mais)


Claro, meu filho! Claro! Tenho certeza.

VISITANTE
O senhor pode ficar aí, falando sozinho no seu cubículo, nesse
seu mausoléu falido. Relembrando o seu país com essa nos-
talgia desesperada. Eu estou olhando pro futuro. PRO FUTURO!

Passos apressados voltam pelo mesmo corredor de que vieram.


VELHO se recompõe após a crise de riso.
42~

Chaves tilintam.
Uma gaveta é aberta.
Um pesado telefone fixo é tirado de dentro dela e colocado em cima
de uma mesa de madeira maciça.
Os números são discados.

VELHO
Com licença, eu gostaria de falar com alguém da manutenção?
Eu acredito que vocês vão precisar liberar um espaço pra chega-
da de um novo artefato. Sim, sim, claro. Não quero interferir no
processo de vocês. Não, não acabou ainda, parece. Claro, claro.
O óbito oficial, declaração, etc. Mas, só a título de curiosidade,
em que pé está a vitrine número 22? Já esvaziou?

Som de alerta do aplicativo.

GUIA
Parabéns. Você completou 0,05% da visita ao Museu do Fim
do(s) Mundo(s). Para continuar…

Visitante, ofegante, corre pelos corredores.


Barulho de um aparelho caindo no chão.

VISITANTE
O que é isso?

Barulho de chaves, trancas.

VISITANTE
Não, eu… O meu país ainda tem chance. Eu juro. Mais cinco
minutos. Só cinco minutos. Ele vai se recuperar….
43~

O som vai desaparecendo dentro de um cubo blindado de vidro


enquanto Visitante continua tentando convencer alguém de quem
não temos notícia.

VISITANTE
É o movimento natural das coisas. Elas sempre melhoram, se
adaptam. A natureza, ela faz isso. É só a gente ter paciência,
lançar pensamentos positivos para o universo. Eu sei. Eu acre-
dito.

Clique de um gravador sendo desligado.


Alguém cantarola Gilberto Gil.

______
Vana Medeiros
Dramaturga, diretora e roteirista. Escreveu, com Djin
Sganzerla, o longa Mulher Oceano (2020), filmado entre
Rio de Janeiro e Tóquio, disponível na Amazon Prime, e
que estreou na 44a Mostra Internacional de Cinema de
SP, e ganhou o prêmio de Melhor Filme no Cine-PE 2020.
Representou o Brasil na conferência Women Playwrights
International (Chile, 2018) e no Corredor Latino-Americano
de Teatro (México, 2017), e é autora de diversas peças de
teatro, entre elas A Morte da Estrela: Lembre-se de Mim, que
estreou em 2022 no Sesc Ipiranga.
44~
45~
45~

Doralice
~Murilo Franco

sinopse~
A enfermeira Doralice chega a uma casa para a qual já
havia prestado serviços, supostamente para participar de
uma festa de aniversário. Ela então percebe que há algo
fora do normal por ali e que a família está interessada
novamente em seus serviços, mas agora de uma maneira
diferente.
E
LIC
RA
DO
47~

ADERVAL, um militar da reserva


TÂNIA, filha de Aderval
VÂNIO, marido de Tânia
DORALICE, uma cuidadora/auxiliar de enfermagem

A história se passa em um apartamento de


classe média alta em um domingo e, nos
fragmentos em que há personagens em
cena, a narrativa é ouvida da PERSPECTI-
VA DE ADERVAL, que está em estado de
desordem mental. Essa perspectiva interfere
no volume sonoro em que se ouve a cena, a
depender da distância que aquele está dos
demais personagens.

Fragmentos de memória de ADERVAL inva-


dem a cena e se misturam com a situação
dramática.

Os efeitos sonoros deverão criar tensão —


um clima insólito, desconfortável.
48~

.1.

Som irritante de uma mosca voando, em alto


volume, que permanece por um tempo.
Um mata-mosca descola-se assertivamente
pelo ar e a mata.

.2.

Entra um som relaxante de água enchendo


uma banheira, passando uma sensação de
tranquilidade.
Aos poucos, esse som transforma-se na
sonoridade de uma torneira de cozinha
aberta em seu volume máximo, que é ouvida
à distância.

.3.

ADERVAL DISTANTE

Ouvimos ADERVAL, que, em seu caminhar,


arrasta o chinelo pelo corredor rumo à cozinha.
O som d’água se torna mais audível à medi-
da que ele se aproxima desse cômodo.
Ouvimos o seu balbuciar, sua respiração
ofegante, seu gemido de quem anda com
dificuldade.

TÂNIA [Falando alto, para alguém que não se encontra no mesmo


ambiente] Papai, você deixou a torneira aberta de novo!

TÂNIA fecha a torneira e o som d’água cessa.


49~

.4.

ADERVAL DISTANTE

Inicia-se uma trilha, ao fundo, que provoca


certo desconforto, algo mais atmosférico
(com ruídos, distorções) e menos melódico.

TÂNIA e VÂNIO estão tomando café da


manhã e conversam de maneira bem casual.
ADERVAL os observa à distância, sem ser
notado.

TÂNIA Experimenta esse aqui, coração.

VÂNIO Do quê, meu benzinho?

TÂNIA Eu quero que você adivinhe…

VÂNIO [Mastigando] É de brie?

TÂNIA Não.

VÂNIO Não é de brie?

TÂNIA Não.

VÂNIO [Mastigando] Então eu não sei…

Tempo.

TÂNIA Brincadeira! É de brie, sim, meu bem.

VÂNIO Ah, eu sabia.

Riem.
50~

TÂNIA [Rindo] Ai, para, Vânio. Cócegas, não. Para.

Tempo.

VÂNIO Vitamina de abacate, tesouro?

TÂNIA Sim, benzinho.

Tempo.

VÂNIO Essa noite você se mexeu tanto, coração…

TÂNIA É? [Pausa] Eu tive um sonho tão estranho, Vânio…

VÂNIO Me conta.

TÂNIA Não sei se eu quero falar disso. [Tempo] Tá


bom, vai. Eu tava em um porão…

Barulho de liquidificador interrompe a fala de


TÂNIA, em alto volume.
Tempo.
Cessa o liquidificador.

TÂNIA … e daí eu percebi que tinham cortado meus


dois pés. Ai, foi horrível.

VÂNIO Que terrível, coração. Terrível!

.5.

ADERVAL PRÓXIMO

Música atmosférica está em alto volume.


Música atmosférica cessa.
51~

Ouvimos somente um zumbido de mosca,


que se transforma em outra sonoridade:
sutil, contínua e aguda.
Sonoridade cessa.

Silêncio total.

ADERVAL [Volume alto] Clara…

TÂNIA [Assustando-se] Meu Deus, papai. Você quer me


matar?!

VÂNIO ri.

TÂNIA Não tem graça, Vânio.

ADERVAL Clara…

TÂNIA Tânia, papai. Meu nome é Tânia.

ADERVAL [Batendo com as mãos na cabeça] ah sim Tânia


Tânia Tânia… você tá pronta pra escola?

VÂNIO Vem tomar seu remédio, meu velho.

ADERVAL E a sua mãe? Aonde foi?

TÂNIA Mamãe já morreu, papai. Lembra?

ADERVAL [Como se não tivesse ouvido] Deve ter ido na igreja.

Som de copo sendo enchido com água em


um filtro.
52~

ADERVAL Senta no meu colo Clarinha pra eu te


contar uma história

TÂNIA Agora engole os comprimidos, papai.

Som de água sendo bebida.

TÂNIA [Um tanto infantil] Isso!

.6.

MEMÓRIA DE ADERVAL

O som d’água sendo bebida torna-se o som


de alguém se debatendo na água, sendo
afogado.

ADERVAL [Sendo um torturador, sussurrando] Seu marginal,


filho de uma puta. Você não se lembra de nada, então?
Fica tranquilo que a gente vai… refrescar sua cabeça.

.7.

ADERVAL PRÓXIMO

O som de afogamento diminui, enquanto o


som do choro de ADERVAL aumenta.
Entra novamente a música atmosférica,
criando tensão.

TÂNIA Não fala bobagem, papai.

VÂNIO Também não precisa chorar, meu velho.


53~

TÂNIA Por que você tá chorando?

ADERVAL [Choroso] alguém sumiu com o Pig…

VÂNIO Nós já vamos achar o Pig, velhinho.

ADERVAL aquieta o choro.


Música atmosférica chega ao máximo de
tensão, dando a sensação da iminência de
um perigo.
O som estridente da campainha quebra a
expectativa.

.8.

ADERVAL PRÓXIMO

Personagens à porta do apartamento.


DORALICE aguarda ao lado de fora. ADER-
VAL, TÂNIA e VÂNIO estão dentro. Os dois
últimos espiam pelo olho mágico.

TÂNIA É ela?

VÂNIO É, é ela.

Som de sirene de um quartel militar (MEMÓRIA).

ADERVAL [Confuso] Vocês ouviram isso?

VÂNIO Foi a campainha, meu velho.

TÂNIA A gente vai receber visita, papai. Por que


você não vai lá pra dentro?
54~

Novamente, campainha.

DORALICE Tânia? Vânio? São vocês?

TÂNIA [Falando mais alto] Ah, a gente perdeu a chave,


Doralice. Só um minuto.

DORALICE Sem problema.

TÂNIA [Olhando pela fechadura] Ela tá igualzinha.

VÂNIO É? Deixa eu ver.

TÂNIA Ela é uma boa pessoa, não é?

VÂNIO É, ela tem um coração muito bom.

Som de sirene de um quartel militar (MEMÓRIA).

ADERVAL É hora dos cadetes se apresentarem.

TÂNIA Mas que belas mãos ela tem.

VÂNIO Mãos de seda.

TÂNIA Vai pra lá, papai. Isso. Correndo. Vai, vai, vai.

.9.

MEMÓRIA DE ADERVAL

Som de um batalhão militar correndo.

ADERVAL [Confuso] Correndo?


55~

.10.

ADERVAL DISTANTE

Porta se abrindo bem vagarosamente.

TÂNIA [Recebendo-a em casa] Ah, Doralice, desculpa a


confusão.

VÂNIO Que bom te rever, Doralice.

DORALICE Meus parabéns, Vânio! [Entregando-lhe um


presente] Uma lembrancinha pra você.

VÂNIO Ah, não precisava.

VÂNIO e TÂNIA [Cantam] Parabéns, parabéns!


Parabéns a você!
Hoje é o seu dia!
Viva! Que dia mais feliz!

Som de cela se fechando (MEMÓRIA).

ADERVAL [Perdido] Eu quero ir pra casa.

.11.

ADERVAL DISTANTE

Entra música atmosférica novamente.

DORALICE, VÂNIO e TÂNIA estão senta-


dos um ao lado do outro no sofá da casa.
ADERVAL está vestindo sua farda. O som
56~

dessa ação é ouvido em primeiro plano. Vez


ou outra ouvimos seu balbuciar.
VÂNIO e TÂNIA respondem à convidada
prontamente.
A ideia é que haja uma tensão, que a postu-
ra deles em relação a ela seja estranha.

Silêncio.

DORALICE Talvez eu tenha chegado cedo demais.


Coisa mais chata ser pontual em festa, né. [Ri, desconfor-
tável]

TÂNIA Imagina, Doralice.


DORALICE A gente nunca se falou desde que eu
trabalhei aqui. Também, foram poucos dias, né. Eu
fiquei surpresa de vocês me convidarem.

TÂNIA Você é tão dócil, Doralice.


DORALICE Você acha? Ah, obrigada.
VÂNIO Você cuida das pessoas. Você cuidou tão
bem do nosso Marlo.

DORALICE É só o meu trabalho.


Silêncio (constrangedor para DORALICE).
DORALICE pigarreia.

DORALICE [Puxando assunto] Vocês convidaram


bastante gente pra festa?

VÂNIO Na verdade, não.

Silêncio.
57~

DORALICE [Suspirando, diante do silêncio] Ai, ai.

VÂNIO A sua mão, Doralice…

DORALICE O que é que tem? [Constrangida] Eu


reparei mesmo que você tava olhando pra ela…

TÂNIA Ah, é uma linda mão. As veias saltadas…


as manchas de sol…

DORALICE Obrigada.

TÂNIA Que cor?

DORALICE O quê?

TÂNIA O seu esmalte. É de que cor?

DORALICE Ah! Chama Mi amor.

TÂNIA O quê?

DORALICE O nome do esmalte é Mi amor.

TÂNIA Ah.

Silêncio.

DORALICE E o Marlo?

TÂNIA Ah, ele tá bem.

VÂNIO Ele tá ótimo.


58~

DORALICE Ele vai prestar vestibular?

VÂNIO Nada! Ele só pensa em jogo de tiro. Fica o


dia inteiro matando, matando, matando. [Imita som de tiros]

VÂNIO e TÂNIA riem.

DORALICE Ah, é?

VÂNIO É. O dia inteiro trucidando gente.

TÂNIA Ah, é, você sabe como eles são nessa idade.

Silêncio.

DORALICE Nossa, quando eu cuidei dele, tadinho,


ele ficou tão machucado, né? Era tão difícil trocar os
curativos dele. Ele gritava de dor.

TÂNIA Ah, você foi tão paciente com ele, Doralice.


Você aguentou o mau humor dele.

VÂNIO É, fazer o quê. Meninos são assim mesmo.


Se metem em brigas, isso é coisa da idade. Adoles-
cente é isso aí.

.12.

ADERVAL À MÉDIA DISTÂNCIA

Música atmosférica continua.

ADERVAL se aproxima. Sons de passos.


59~

Está procurando por alguém. Circula pelo


espaço.
VÂNIO e TÂNIA tratam as situações estra-
nhas com naturalidade.

ADERVAL [Delirante, em referência a alguém imaginário] Vocês


viram aquele imundo por aí?

DORALICE [Assustando-se com a aparência de ADERVAL] Meu


Deus!

TÂNIA Essa é a Doralice, papai. [Pausa] Olha! Que


bonitão que ele tá de farda!

VÂNIO Ele adora ficar de farda.

ADERVAL Ele quer me provocar, esse filho da


puta…

DORALICE Eu achei que ele tivesse falecido…


você tinha contado que ele…

TÂNIA O quê? [Pausa] Papai? Ah, não, você deve


estar se confundindo.

DORALICE [Preocupada] O senhor tá bem?

ADERVAL [Confuso] Hã?

DORALICE Eu perguntei se o senhor tá bem.

ADERVAL [Confuso, aflito] Eles… eles me trancaram lá


com as vassouras… me leva embora daqui…

VÂNIO e TÂNIA riem.


60~

VÂNIO É cada uma que ele inventa.

DORALICE [Admirada, aproximando-se para ver melhor] O que


é isso na pele dele?

VÂNIO Chega uma idade, Doralice, que é assim mesmo.

DORALICE [Perplexa] Meu Deus! Essas feridas…


elas estão necrosadas… vocês precisam levar ele no
médico urgentemente.

TÂNIA Ih, e adianta falar? Papai é muito teimoso.


[Para ADERVAL] Não gosta de médico, né, seu velhinho
teimoso?

DORALICE [Indignada] Ele tá quase… cadavérico.

TÂNIA A bunda flácida…

DORALICE Esse cheiro… [Pausa] Vocês me descul-


pem dizer, mas tudo isso não é normal.

VÂNIO Eu falo pra você tomar banho, meu velho.

ADERVAL saca sua arma de estimação — o Pig.

ADERVAL [Delirante] … eu vou dar um jeito em você


seu filho da puta…. eu vou te achar… se eu te pendu-
ro num pau de arara você entrega até a sua mãe/

DORALICE [Temerosa] Por favor, abaixa essa arma.

TÂNIA Ah, esse é o Pig, o revólver dele. Mas fica


tranquila, que tá sem bala. [Mais alto] Tá sem bala, né,
papai?
61~

DORALICE Eu acho que já vou indo.

Enfáticos.

VÂNIO Não. Fica, Doralice.


TÂNIA Tá cedo ainda, Doralice.
Música atmosférica chega ao máximo de
tensão, dando a sensação da iminência de
um perigo.
Cessa música.

Longo silêncio.

.13.
ADERVAL À MÉDIA DISTÂNCIA

MEMÓRIA/DELÍRIO DE ADERVAL

Ao longo da cena, sons de choque elétrico.

ADERVAL [Cínico] Olha quem eu achei… então você


tá aí né seu desgraçado, sangrando no meu taco de
madeira…

VÂNIO Deixe de bobagem. Não tem ninguém aí,


velhinho.

DORALICE Com quem ele tá falando?


TÂNIA Ele fala cada coisa, Doralice. Você nem acredita.
VÂNIO Ele precisa desafiar a cabecinha dele. Fazer
palavras-cruzadas, jogar xadrez, essas coisas assim,
pra, oh, ficar com a cuca boa.
62~

ADERVAL [Gritando] Sai da minha casa, seu imundo.

DORALICE [Tateando o assunto] O seu pai, na época


dos militares, ele…

TÂNIA Ele trabalhava com burocracia, papeladas,


não é, papai?

ADERVAL [Sussurrando] Pode implorar à vontade, é o


procedimento [Pausa] agora vem a parte que vocês mais
gostam… choque no saco. choque no saco e depois
palmatória no saco e depois apagar bituca no saco.

VÂNIO [Indiferente, supirando] Tem uma hora que a gente


cansa de ouvir essas coisas. É chato demais.

TÂNIA Ele fica só no passado.

ADERVAL [Delirante] Já te matei uma vez e posso te


matar de novo.

Cessa o som de choque elétrico.

Som de ADERVAL estatelando no chão.

TÂNIA Ah, cansou, papai?

.14.

ADERVAL À MÉDIA DISTÂNCIA

Som de mosca vai se intensificando ao


longo da cena — passa de uma para muitas.

DORALICE Eu realmente preciso ir.


63~

VÂNIO [Assertivo] Hoje não é meu aniversário, Doralice.

DORALICE Como assim não é seu aniversário?

TÂNIA A gente te chamou aqui pra falar sobre o


papai.

DORALICE [Um tanto aflita] Vocês querem minha


ajuda? Querem que eu cuide dele? Vocês podiam ter
me falado antes.

TÂNIA É que… como a gente vai contar isso, Vânio…

VÂNIO Doralice, a gente confia muito em você…

DORALICE Por favor, o que tá acontecendo?

TÂNIA O papai não morre, compreende?

DORALICE Eu realmente não estou entendendo.

VÂNIO A gente já tentou matar ele de diversas


formas, sabe.

TÂNIA Seria o melhor pra ele. Ele tá muito cansado.

DORALICE [Em choque] Santo Deus!

TÂNIA Pra gente também é estranho, Doralice.


Como é que alguém não morre, né?

VÂNIO A gente já não sabe mais o que fazer com


ele, essa que é a verdade.
64~

TÂNIA Nenhuma clínica aceitaria papai desse jeito


que ele tá.

VÂNIO Ele tem ficado só em casa.

ADERVAL chora.

VÂNIO O que foi, meu velho?

DORALICE Acho que ele está fazendo cocô.

TÂNIA [Lamentando-se] Na farda limpinha.

Som de moscas em alto volume.


Permanece por um tempo.

.15.

ADERVAL PRÓXIMO

No banheiro da casa.
O som de moscas diminui, enquanto surge o
som de banheira se enchendo d’água, pas-
sando uma sensação de tranquilidade.

DORALICE Vocês preferem que eu…

TÂNIA Ah, sim, você tem mais jeito.

VÂNIO Você tá acostumada.

TÂNIA Mãos à obra, Doralice.


65~

DORALICE [Próxima a ele] Dá licença, seu Aderval. Eu


vou lavar o senhor.

ADERVAL fala de maneira lacunar, desco-


nexa, um tanto aéreo, como em um delírio
provocado por febre.

ADERVAL As pessoas amarradas de ponta-cabeça


e o punho… o punho dele acorrentado/

Sons de alguém sendo lavado.

Tempo.

VÂNIO [Tranquilo] Agora afunda a cabeça dele, Doralice.

DORALICE Como assim?

ADERVAL Choque na cabeça afogamento… afoga-


mento no balde a pimentinha choque na cabeça

TÂNIA Suas mãos são tão macias, Doralice.

VÂNIO Afunda a cabeça dele, Doralice. Você vai ver


que a gente não tá mentindo.

DORALICE [Nervosa] Do que você tá falando, Vânio?

TÂNIA Você vai ver que ele não morre.

VÂNIO Quem sabe se com sua mão não é diferente…

DORALICE O quê? Vocês estão loucos?! Eu nunca


faria isso.
66~

TÂNIA Velhos como ele se afogam o tempo todo.

VÂNIO Ela tem um coração bom, Tânia.

Silêncio.

TÂNIA Você cuidaria dele pra gente, Doralice?

DORALICE Eu não posso… eu estou com outros


trabalhos…

VÂNIO Só por uns dias.

TÂNIA A gente só quer dar uma relaxada, pensar


em outras coisas.

VÂNIO Por favor, Doralice.

TÂNIA Você nunca foi de criar caso. O que você


quer da gente?

DORALICE Eu realmente/

TÂNIA [Violenta] A gente não vai aceitar não como


resposta.

Silêncio.

TÂNIA [Brincalhona] Quem cala, consente, Doralice.

VÂNIO Amanhã cedo eu passo na sua casa pra te


buscar.
67~

Cessa o som d’água abruptamente e retorna


o som de muitas moscas.
Cessa o som de moscas também de forma
abrupta.

.16.

No dia seguinte.
Música atmosférica.

ADERVAL DISTANTE

Ouvimos ADERVAL, que, em seu caminhar,


arrasta o chinelo pelo corredor rumo à cozinha.
Ouvimos o seu balbuciar, sua respiração
ofegante, seu gemido de quem anda com
dificuldade.

DORALICE [Seca] Bom dia, seu Aderval! Vem tomar


seu remédio.

DORALICE está com a arma na mão.

ADERVAL Ah, você tá com o Pig. Me dá ele.

Tempo. Tensão da música cresce.

ADERVAL [Impaciente] Me dá logo o Pig. O que você


vai fazer com ele?

Tempo. Tensão da música cresce.

ADERVAL [Entredentes] Me dá logo a porra desse


revólver.
68~

Música atmosférica é interrompida abrupta-


mente.

DORALICE [Entregando-lhe a arma com certa hesitação] Toma.

Tempo.

ADERVAL [Irônico] Ah, Doralice, você é uma pessoa


boa.

Por fim, ouvimos um aflitivo barulho: sutil,


contínuo e agudo.

__________

Murilo Franco
É formado em Artes Cênicas pela USP e cursa Letras nessa
instituição. Foi um dos escritores de “Desmascarados —
Desconstruindo o Rei da Vela” (2022), da Bendita Trupe. Seu
texto “Futuro do Pretérito” ganhou o Prêmio Nascente (2021).
Foi selecionado para a Mostra de Textos Breves, promovida
por A Digna Companhia, com “1000 grau” (2021). Com “Ve-
rona”, ganhou o 1º Edital de Dramaturgia Jovem do Projeto
Conexões (2019). Trabalha na Escola Projeto Vida dando
oficina de dramaturgia para jovens. É o dramaturgo do grupo
Teatro da Fronteira, com o qual já realizou três trabalhos.
69~
70~
70~

Peça sonora para uma atriz


e talvez outras vozes.

Tormenta
~Fernanda Rocha

sinopse~
Ela pega o ônibus que faz o caminho mais longo para
chegar em casa. Entre as ruas esburacadas da cidade e
a promessa de chuva na janela, acompanhamos os pen-
samentos cotidianos dessa mulher depois de um dia de
trabalho.
71~

TA
EN
RM
TO
72~

Ônibus vazio. Aos poucos ele vai se enchendo.

Os minutos em que escolhe não esperar o ônibus que


vai direto ao metrô se convertem em mais de uma
hora e meia de viagem. É a terceira vez que ela pega
o circular que faz o trajeto mais longo. Naquele ponto
ele ainda está vazio e ela pode se sentar em seu lugar
preferido: a cadeira em cima da roda, aquela que fica
um pouquinho mais alta. E, claro, na janela.
É que gosta de ir olhando a paisagem.
Céu roxo. Árvore. Rio. Capivara. Prédios de vidro.
Prédios de concreto. Ponte. Mato. Mato. Mato. Uma
nuvem. Agora surgiu uma nuvem.

Ruídos do ônibus misturados com ambiência de mato.

Às vezes, é preciso fazer esforço para perceber a natu-


reza. Como se a natureza não fosse natural. Como se
o ar que eu respiro não fosse a natureza. Como se meu
corpo não fosse a natureza. Eu penso nisso. Eu estou
pensando nisso neste momento, na natureza, é no que
eu estou pensando, em como, meu Deus, está caro o
73~

preço do óleo e do açúcar. Preciso comprar papel higi-


ênico. Olha quanto lixo. Essa parte da cidade é feia. É
triste. Eu moraria.

Ônibus para no farol.

Ela se imagina como o moço uniformizado de braços


cruzados na frente da loja de brinquedos, embaixo
de uma dúzia de bolas penduradas por redinhas. O
ônibus está parado no farol agora. O moço, esse moço,
o funcionário, descruza os braços e abre um sorriso.
Parece que alguém está cruzando a rua. Alguém espe-
cial para ele. Sensação de encontrar alguém especial.
Eu lembro dessa sensação e por um momento me ima-
gino vagando por entre as lojinhas, como se fosse uma
espécie de espírito capaz de absorver as sensações,
todas as sensações.

Ponto de escuta de alguém caminhando entre lojas no


fim da tarde. Abafamento. Bem ao fundo continuam os
ruídos do ônibus. Tempo para escutarmos.

Embora goste dessa coisa de “se sentir fora”, quase


todo o tempo ela está dentro.
Agora, por exemplo, estou dentro.

Ambiência do ônibus volta a prevalecer, mas como se a


escutássemos dentro de uma piscina — algo mais abafado.

Dentro de algum lugar entre o colo do útero e a entrada


da vagina:
74~

Um elevador subindo e descendo o canal vaginal,


puxado por uma cordinha. Inspira – sobe cordinha.
Expira – desce cordinha. Inspira, sobe cordinha.
Expira, desce cordinha. Contrair, relaxar. Contrair,
relaxar. Contrair, relaxar. Contrair e. Pisca pisca pisca
pisca pisca. Ufa, esse é mais difícil.
A senhora sentada ao lado do cobrador — cabelo
branco, camisão com enormes jasmins — ainda bem
que tinha lugar vago e não tive que ceder o meu. Pode
ser que também estivesse piscando, contraindo, aquela
senhora. Sempre pensa nisto: quais mulheres ao meu
redor estão treinando? No caso da velha: incontinên-
cia urinária. Pra Jasmim ali, fisioterapia. Os médicos
recomendam. Ó lá a cara da velha. Cansaço, desgaste.
Piscar a buceta é exaustivo, é exercício, gasta caloria.
Antes achava que isso faria dela uma pessoa especial.
Uma mulher especial. Uma mulher mais amada.

Ruídos secos das engrenagens do ônibus. Ela pode estar


um pouquinho mais ansiosa depois de pensar em se
sentir uma mulher mais amada.

Poste. Fios. Chaveiro. Boteco. Lojinha de roupa.


Lojinha de doce. Lojinha de botas. Despachante – a
atenção nos elementos concretos é estratégia antiga.
Funciona quando bate a agonia, a ansiedade.
Sempre funcionou.

Os sons de engrenagens do ônibus se confundem com


75~

o ranger de uma cama. A voz dela pode estar mais


sussurrante.

Hélice. Ventilador. Teto branco sujo. Gesso (ai qual o


nome disso mesmo). Sanca, é, sanca.

Ambiguidade sonora entre engrenagem de ônibus e


ranger de cama. Tempo.

Criado mudo. Não, criado mudo não. Mesinha de


apoio. Taça. Prato com gotas de ketchup...
É, pois é, vão ter que comer de novo empadinha no
jantar.

O ônibus abre a porta e entra um adulto com uma


criança fazendo uma birrinha.

De novo vou passar no bar e pegar as empadas. É o


jeito. Nunca viu criança gostar de arroz e feijão, credo,
parece que é karma só porque ela não gosta de cozi-
nhar. Vou cozinhar um feijãozinho amanhã, vai, já
coloco de molho hoje. Mas minha mãe podia ajudar,
né, poxa, um feijão? Que que custa colocar a panela
de pressão no fogo e ficar de olho um pouquinho? Vai
morrer por isso? Vai morrer porque tá doente, não
por colocar um feijão pra cozinhar pra neta.
Que horror.
Que pensamento horrível.
76~

Desculpa, Deus.

Criança no fundo do ônibus soluça.

Jesus do céu, o que vai ser dela quando a mãe morrer.


Poste. Casa feia. Casa bonita. Poste. Poste. Poste.
Árvore grande. Árvore pequena. Árvore morta.

Um trovão distante.

Preciso mandar arrumar a comporta.


Da última vez a água carregou a almofada de gatinho
do sofá. A minha preferida.

Mais pessoas entram no ônibus.

Cebola, cebolitos, salgadinho. Cheiro de partes


suadas. Ela enfia o nariz dentro da própria camiseta.
Não sou eu, não. Esse cheiro, não sou eu. Cotovelo. Ah
não, mano. Tá abafado. Eu faço um movimento sutil,
vou um pouco pro lado, mas aí é que o braço se solta,
encosta, se espalha, se esparrama. Que folga, hein.

Ela tosse. Tosse forte.

Pronto. Resolvido. Ela tem boas estratégias.


Mas o fedor continua. Parece até a marmita do Robson,
problemão na firma.
77~

Som de ar condicionado, impressora e teclados se mis-


turam com os ruídos do ônibus. Em algum momento
retorna o ruído ambíguo do ranger da cama. Vozes de
amiga e de Robson.

— Cala a boca, amiga.


— Mas a marmita do Robson tá fedendo.
— E você vai fazer o quê?
— A gente podia pedir pra ele colocar na geladeira, né.
— Vai lá.
Quando Robson me chamou de bonita pela primeira
vez, senti borboletas no estômago. É clichê, mas ele é
bem gato. Depois, percebi que todas as mulheres da
repartição se chamavam Bonita para Robson.
— Tudo tranquilo, Bonita?
— Você podia colocar esse ovo com batata doce na
geladeira, né, Robson.
— Tão passando a mão em tudo lá
— Robson
— Coloco mais nada lá não
— Tá empesteando
— Todo mundo tá comendo
— Eu coloco lá e
78~

— Relaxa, Bonita, tem que relaxar


— Para um pouquinho...
— Não quer mais...?
— hum.
— Só por fora assim
— Ai
— Que foi?
— Machucando.
— Você quer ou não quer?
— ...
— Se não quer, é só falar.
— ...
— Só falar.

Ranger de cama. Engrenagens do ônibus.


Trovões mais próximos.

Querer ela queria, mas no meio ela não quis mais e aí


o que eu iria fazer. Complicado, né. A vida é compli-
cada. Nem sempre dá pra falar as coisas que se quer,
porque nem sempre a gente sabe bem o que quer. Mas
dá pra pensar. Às vezes, dá pra pensar. Falar é mais
difícil.
79~

O ônibus passa na frente de uma escolinha.

Luísa tá falando pra caramba, aliás. Não para. Tá na


fase em que repete compulsivamente as palavras.
— mãe mãe mãe mãe mãe
— Bolacha bolacha bolacha bolacha
— água água água água água água ÁGUAAAAA
No meio de uma crise em que Luísa não parava de
repetir as palavras, ela começou a imitar a filha
— Casa casa casa casa casa
— CASA CASA CASA CASA CASA
— Boneca Boneca Boneca Boneca
— BONECA BONECA BONECA BONECA
A menina parou, mas eu não. Repeti tantas vezes a
palavra Caneca que acho que hiperventilei e tive um
barato louco. Tenso. Luísa e mamãe ficaram preocupa-
das. Eu fiquei cinco minutos deitada no chão, olhando
pra cima, sem reagir. Foi perigoso. Foi gostoso.

Chuva fina começa a cair, bate na janela do ônibus.

Precisa colocar Luísa na natação. Vai encher a sala se


mamãe esquecer de não dar aquele jeitinho na com-
porta, o jeitinho, meu Deus do céu, esse cotovelo de
novo, puta que o pariu, velho, tu é idiota, mulher?
80~

Puxa esse braço pra lá, fofa.


Ponte. Cabos de aço. Trovão. Clarão. Garrafa de plás-
tico. Florzinha murcha. Capim. Sofá. Caixotes. Um
celta 2008.

Ambiência do ônibus dentro de um rio. Algo sombrio ou


mórbido.

Um celta dentro do rio?


A almofada de gatinho deve estar aí, talvez, quem
sabe. A boneca da Luísa também, aquela que jogou
fora depois que a menina começou a mastigar o cabelo
do brinquedo. Se estiver dentro do rio – como muitas
coisas que não sabemos como, mas acabam dentro
do rio – deve estar coberta de musgos, algas e gosmas
escuras. O cabelo que não foi todo comido tornou-se
agora um emaranhado esponjoso no qual estão presos
garfinhos de festa, canudos coloridos e unhas postiças.
Sua roupinha rasgada revela que no lugar da xoxota há
essa triste parte reta de plástico. Dois buracos no lugar
dos olhos. Dois assustadores e profundos buracos no
lugar dos olhos que eram brilhantes. Do esquerdo
saem bolhinhas. E um caramujo.
Ou uma barata.

Bolhas sombrias.

Um arrepio percorre sua espinha.


81~

Novamente, ela se sente fora, mas dessa vez era uma


sensação gelada. Às vezes ela tenta se sentir morta ou
como um objeto inanimado. Às vezes é bom. Às vezes
é frio, úmido e vazio.

Sons gosmentos do rio.

A natureza não é naturalmente boa. A natureza é


sombria e estranha. Robson gosta de natureza. Isso
é uma coisa em comum entre eles, ela acha. Não que
isso signifique algo, mas ela acha que isso é algo entre
eles. Embora ela não goste e nem tenha jeito para criar
plantas, como Robson. Mas poderia começar a gostar.
Ele poderia me ensinar, quem sabe. Só que ela acha
que não sorriria ao ver Robson do outro lado da rua.
Não igual ao sorriso do moço da loja de brinquedos.

Ambiência cotidiana do ônibus volta, agora mais cheio


ainda.

Tem Sumirê nessa avenida, nem lembrava dessa loja,


é nova, será? Comprar selante porque a raiz do cabelo
já cresceu. Comprar um pouquinho mais forte, da
última vez não curtiu o resultado, só tenho medo que
alise e não é essa a ideia, tem que tomar cuidado. Não
quero alisar, só relaxar; é só um relaxamento leve, eu
gosto assim, é assim que quero usar o meu cabelo, ué,
relaxado.
Contrair, relaxar. Contrair, relaxar. Contrair, relaxar.
82~

Sutil ranger de cama.

- Relaxa, se não não vai entrar, bonita


Ela fechou com tanta força, contraiu tanto, que o pau
do Robson escorregou pra cima, escorregou pro lado,
escorregou pra baixo duas vezes e então deu aquela
murchada. Graças a Deus. Vamos dormir um pou-
quinho. Primeira vez que percebeu os resultados dos
exercícios. Ela tem boas estratégias, tenho sim. Então
descansaram e ela nem precisou falar nada. Que bom
é isso: não precisar falar. Dessa vez funcionou, nem
entrou. Pobre Robson, o filho morreu de meningite.
Se minha filha morre de meningite, eu me mato junto.
Nesse dia, Robson a chamou pelo nome. Juro que sim.
Coisa estranha. Ela fingiu que não ouviu.

Um arrocha em um celular sem fone. Ônibus lotado,


insuportável, abafamento. Tempo.

Está frio e quente ao mesmo tempo.


Chegar em casa eu não quero, mas aqui tá ficando
foda, heim.
Ela só queria conseguir desligar.
Desligar a filha, a mãe, o Robson, todas as amigas do
trabalho, a mulher do RH, seu chefe, aquele cotovelo
e aquela musiquinha que vai ficar pelos próximos três
dias dentro da minha cabeça.
Aí, então
83~

Um respiro e talvez uma melodia que lembra um jazz


relaxante.

Aí, então, ela iria tomar um sorvete. De leite ninho.


Da padaria que fica três pontos antes do ponto que ela
tem que descer. E, quem sabe ao atravessar a avenida,
quem sabe, encontraria com o atendente, ali, do outro
lado da calçada. O atendente de uniforme da loja de
brinquedos.

Tempo de melodia que lembra um jazz relaxante e


ruídos de ônibus.

Visualizar o sorvete até que trouxe uma felicidade.

Tempo.

O ônibus vai entrar na mais esburacada rua da cidade.


A cidade precisa ser recapeada — é um descaso sem
tamanho, um absurdo uma cidade como São Paulo
ter tanta rua desgraçada, cheia de cratera e em época
de chuva só piora. Enquanto arrumava Luísa para
a escola, escutei no jornal que São Paulo tinha em
média 400 pedidos para tapar buracos por dia. 400
reclamações num só dia! É buraco pra caramba.

Um respiro profundo.

Um pouco caso da prefeitura mas chegava o momento


mais aguardado.
84~

O mais desejado de toda a viagem:


A rua dos buracos.

Ônibus começa a tremer.

Os bancos em cima da roda – os meus preferidos –


são os mais sensíveis ao tremelique do veículo. São
os assentos que mais absorvem o impacto. A roda, ao
passar pelas imperfeições da rua, conduz à cadeira a
luta contra o asfalto. Aí... ela treme. A janela treme.
O piso treme. A cordinha treme. O cotovelo treme. O
motorista treme. Eu tremo. A velha treme. A cidade
treme. Tudo treme.

Tudo treme.

Ela estava quase conseguindo não pensar nem nas


coisas de fora, nem nas coisas de dentro, mas pensou
no cós da calça que está apertada. É gostoso sentir o
cós pegando ali, se dou uma leve empinada ele pres-
siona mais lá. Mas tá assim porque engordei, né, a
bunda cresceu, ótimo, só que preciso comprar uma
calça nova. Já tentou ver uns modelos online, mas fica
excitada com as propagandas de calça jeans e acaba se
distraindo. Sei lá, o jeito que as virilhas e as coxas são
fotografadas. O umbigo aparecendo e tal. Ai ai.
Ela pensa em propagandas de calça jeans.
Não, não penso no Robson.
Não, não estou pensando se minha mãe fechou a comporta.
85~

Da última vez que esteve com Robson, pensou no


banco em cima da roda.
Já visualizou também a quina da sua mesa de traba-
lho e o brinquedinho musical eletrônico e maluco da
Luísa.

Todos os sons tremem ritmados. Talvez até o brinquedi-


nho de Luísa. A chuva está muito forte.

O cotovelo poderia fazer algo útil agora, né. Sei lá,


uma roçadinha num biquinho.

Mais trovões, mais chuva e progressão crescente de


tremores.
De repente, o som do freio lento do ônibus.

Ah, mano... Ah não não não. Continua, por favor, por


favorzinho.

Tempo.
Ônibus volta a andar.

Ufa.
Obrigada, Deus.

A chuva cai torrencialmente e o ônibus treme como


se fosse desmontar, como se suas peças estivessem se
soltando. Tempo desses sons em progressão crescente. A
voz dela pode estar mais ofegante.

Comporta. Sanca. Marmita. Rio. Leite ninho. Caneca.


Calça. Chuva. Empada. Elevador. Buraco. Água. Coto-
velo. Sumirê. Tempestade. Relaxa. Trovão. Boneca. O
sorriso dele... Enchente.
86~

Aaaaaai

A chuva invade o ônibus por suas janelas. Tempo.


Aos poucos, o som da água entra numa progressão
decrescente, até ficar apenas umas gotinhas.

Silêncio.

Gotinhas.

Finalmente, silêncio.

Baixinho, ruídos do ônibus, ainda de suas engrenagens,


mecânica, buzina, freio, etc, misturados com o rio e pin-
gos lentos de chuva. Uma melodia calma pode aparecer
e desaparecer no meio da água, passageira, assim como
bolhas e, talvez, algo de natureza, tipo cigarras ou pas-
sarinhos. Tudo é calmo. Essa mistura de sons se estende
um pouco e acaba num lento fade-out. Fim.

__________

Fernanda Rocha
Roteirista e dramaturga. Escreveu “Produtos” (Teatro do
Osso), peça selecionada para temporada no espaço Mezanino
do SESI-SP, e “Amor ou um monstro”, dramaturgia vencedora
do “IX Concurso Jovens Dramaturgos do SESC”, além de vá-
rias peças curtas encenadas em diferentes projetos. É também
doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo.
87~
88~
88~

TravaS
~Rudá

sinopse~
Após saber da traição de seu companheiro, Verónica
se reúne com três amigas para refletir sobre o que vem
depois de uma grande dor, a tempo do seu show que
acontecerá ao final do dia. Quais são as travas que as
matam? E quais as travas que as salvam? Essas são
algumas das perguntas que giram em torno dos diálogos
dessas quatro travestis que se amam.
AS
AV
TR
90~

Personagens
Verónica
Nina
Marina
Dea
91~

Prólogo

(uma sequência de sons, como uma porta que se abre e


outra que se fecha, um zíper, janelas sendo destrancadas,
um saco, um carro sendo ligado, um saco sendo aberto
e o ar esvaziando, uma presilha sendo plugada, uma ge-
ladeira que fecha, uma lata de cerveja deslacrada, uma
garrafa de vinho sendo aberta, porta-malas batendo
forte. Esses sons se repetem, fora de ordem, enquanto o
volume aumenta até chegar no seu ápice e um aúdio de
whatsapp começar)
92~

(Um áudio começa a ser tocado. Ouve-se uma respiração.)

Verónica Oi… Bom dia, irmã. Eu nem sei como começar


a te contar isso, eu tô meio doida também. Eu tô sempre
doida, né? Mas é que hoje… Opa, quero dizer, ontem,
ontem eu cheguei em casa depois do ensaio do show, daí
tava rolando uma música em casa, eu não entendi nada, aí
ele tava “me esperando” como ele diz, tava lá… de cueca
com aquela cara de homem que fez alguma coisa…

(pausa)

Ele… Como eu sou idiota… Ele me traiu (abre-se uma janela).


Foda-se também, né? Não foi a primeira e não seria a
última. Eu... eu sei disso. Eu ainda não sei quem, não sei
como. Não sei. É que tem alguma coisa esquisita nisso
tudo. Eu tô sentindo uma coisa esquisita. Isso foi ontem,
depois do show, cheguei em casa e vi, saca? Ou senti, não
sei. Eu vou ficar sozinha, minha amiga (fecha-se a janela).
Porra, eu achei que dessa vez ia...

(A campainha toca e o áudio pausa)

Nina Já vai!

(A campainha dispara)

Nina Calma! Já tô indo.


93~

(Assim que a porta é destrancada, a voz)

Marina Nossa, achei já que tava morta.

Nina Mulher, a Verónica...

Marina Já tô sabendo (abre a geladeira). O porteiro toda


vez vem com essa palhaçada de me chamar no masculino,
até o dia que eu der um pau nele. (abre uma cerveja) MA-RI-
-NA! É difícil de entender? Mas ele sempre faz questão
de perguntar de novo: não entendi o nome do senhOR. É
um Filho da...

Nina A Dea quer arrastar ela pra cá, eu não sei se ela vai
conseguir, tava pensando em ir até lá... (interrompida)

Marina Eu sei, eu sei. Por isso eu vim aqui. Ela tá lá na


casa dela, toda entrevada, se remoendo e tal. Já avisei as
outras também. Não dá pra ela ficar de cama hoje, não.
(Acende um cigarro) Hoje ela vai fazer um show lá no Arou-
che, já acertei tudo.

Nina Mas ela não vai conseguir... (interrompida)

Marina Ó! Pó parar com isso, hein. Ela vai fazer o show


sim, magina. Ela não pode parar a vida dela por causa de
macho, ela tem um aluguel pra pagar. Não é fácil, mas
também ninguém disse que seria. Tá entendendo? Nin-
guém disse que ia ser fácil. A mulher é travesti, é artista,
quer namorar e quer ter folga no final de semana? Não
dá. Não dá pra ter tudo. Problema todo mundo tem, mas
94~

conta pra pagar também. Ou você vai com a cara e a cora-


gem, ou fica difícil mesmo, num é bolinho...

(A porta bate)

Marina Ei! Me espera! Nina! Ô Nina. (abre uma gaveta)


Você pegou o negócio que eu te pedi?

(Gritando lá de baixo)

Nina Vem logo! Tá na minha bolsa. Não esquece de tran-


car, hein.

(Fecha-se e tranca-se a porta)


95~

(Ouve-se um barulho de falatório enquanto a porta vai


sendo destrancada)

Nina Calma, gente. Tô abrindo. Calma!

Marina Por que vocês não disseram que já tavam aí


embaixo esperando?

Dea Porque o porteiro não tava querendo interfonar,


doida.

Marina Não me chama de doida que você sabe que eu


não gosto.

Dea Nossa, calma. É só jeito de falar.

Verônica (tosse)

(Silêncio. A porta é destrancada.)

Marina Finalmente!

Nina Verô, quer alguma coisa? Vem, senta aqui.

Marina (gritando) Quem quer cerveja?

Dea Eu vou querer, do...cinha!


96~

Marina Eu não sou docinha. Toma.

Nina Nossa, Marina! Tá difícil, hein.

Marina Que foi você também? Eu, hein!

Dea Gente! Para! (abre a cerveja)

(silêncio. Três cervejas são abertas em tempos diferentes, uma após


a outra. Silêncio.)

Dea Tá! Eu vou começar falando. Cheguei ontem lá na


casa. Cheguei depois que a Verónica me ligou. E vi as
coisas tudo espalhada. A gatinha tava na cama parecendo
que tava esperando a morte.

Nina Que horror.

Dea Daí ela me falou que viu lá toda a palhaçada, que


parece que ele admitiu tudo, não sei direito. E eu acho
que, além de tudo, era uma trava que tava com ele.

Nina Como assim, uma trava?

Marina Não sabe o que é uma trava não, Alice?

Dea (ri. parece uma tia.)

Nina Não, eu não sei. Eu sou TraveCis.

Marina e Nina Alawwwwka. (as duas batem uma palma)


97~

Marina Mas como sabe que é uma trava?

Dea Porque parece que a Vê viu (tu dum tsss).

Marina Viu quem era?

Dea Não, não. Viu que tinha um sapato de salto na sala.


Igual da Cinderela. Só que o tamanho era 42.

Verônica (abre mais uma cerveja. Silêncio.)


98~

Nina Eu vou ao banheiro.

Marina Vô com você.

(abre-se uma porta. fecha-se a mesma porta)

Nina Tá aqui.

Marina Nossa, que drama à toa.

(som de plástico)

Nina (enquanto vai abrindo um zíper e sentando na privada) É,


ela tá mesmo acabada. Nem tá falando nada. Mas, sin-
ceramente: até achei que ia tá pior, sei lá, esse jeito todo
misterioso

Marina (som de chaves. Uma fungada funda)

Nina Mas eu sempre soube que ele não prestava. Sem


noção do caralho, toda vez que abre a boca é pra fala
umas merdas. Vive passando a mão nas meninas, todo
mundo sabe. Ele vive fazendo isso.

Marina Peraí, tô recebendo uma ligação, toma.


(som de plástico. abre a porta e se assusta) O que você tá
fazendo... (interrompida)
99~

Dea Shhhh! (fecha a porta)

Marina (uma voz longe) Calma! Eu tô tentando resolver


isso com a Verô...

Nina Você tava ouvindo atrás da porta?

Dea Amiga, eu tô precisando falar com você.

Nina O quê?

Dea Eu… Eu fui demitida.

Nina Ah, pronto. Uma traída, a outra demitida.

Dea Para, é sério. Deu ruim lá na escola. Já fazia tempo


que ninguém me respeitava, daí eu fui falar com a dire-
tora e a coisa só piorou. Eu comecei falando que eu tava
ficando irritada com o jeito que falavam comigo, digo, os
outros professores, né.

Nina (som de xixi) O que eles falavam?

Dea Então, ela perguntou bem isso “o que eles tão


falando? Que jeito que eles tão falando com você?”. Eu
tentei dizer pra ela que era um jeito… um jeito…

Nina Transfóbico.

Dea Eu não disse isso, né? Eu falei que eles tavam me


chamando pelo nome morto, do falecido e umas outras
100~

coisas. Aí conforme ela ia me respondendo, eu fui me


irritando, você me conhece. Daí tentei retrucar e foi aí
que ela disse que não estava mais sendo uma boa expe-
riência. Acredita? Foi a primeira vez que eu fiz qualquer
reclamação. Ela, ainda por cima, falou que na vida eu pre-
cisava ser mais tolerante, porque era novo esse negócio
de transgênico. Você acredita que a cretina falou trans-
gênico, acredita?

Nina Ai, amiga. O pior é que eu acredito... (som de chaves,


plástico e uma respirada funda) Você quer?

Marina (som distante) Não! A gente vai chegar, sim, um


pouquinho mais tarde, mas tenta segurar as coisas por aí...

Dea Não sei se hoje é a melhor ideia… Tá, me dá aqui.

Nina Nada disso, se você acha que hoje não é uma boa,
então não é. Vai, vamo ver a Veró lá na sala. Mas antes...
Como é que você vai fazer com o aluguel?

Dea Eu vou ter que arranjar um outro lugar. Onde eu tô


é caro, porque eu tava morando do lado da escola. Eu tô
precisando de outro lugar.

Nina Calma, a gente vai resolver. Daqui a pouco a gente


volta no assunto. Mas ó: se essa diretora tá achando
que ela pode falar o que ela quiser, se ela acha que ela
pode diminuir o que você tá falando, se ela tá tentando
te fazer passar de louca, ou qualquer outra coisa, pois
saiba que ela mexeu com a travesti errada. Porque tem
101~

gente que te ama, tem gente que te protege e que cuida


de você. A gente já volta nesse assunto, a gente vai
arranjar uma casa. Mas, antes de qualquer coisa, a gente
vai achar um advogado pra cuidar disso, você não pode,
tá me ouvindo? Não pode ser demitida porque fez uma
denúncia (fecha o zíper). Tyamo.

Dea Eu também te amo. Bora lá ver a gata.


102~

(abre a porta)

(Barulho forte de tiro.)

Nina Gente, o que tá acontecendo?

Marina É só um saco de pão.

Nina Já tava achando que era tiro.

Marina Tiro? Eu gosto.

Dea Alawwwka.

Nina O que a outra tá fazendo?

Marina A Veró decidiu regar as plantas, que tavam


muito coitadas. Falou que você não tá cuidando da casa,
que tá uma energia esquisita. Sei lá.

Verónica Tem que se cuidar!

Nina Olha quem resolveu abrir a boca, hein.

Verónica Tô regando as plantinhas, só isso.

Nina E como você tá?


103~

Verónica Eu quero saber como VOCÊ tá. Sempre fica aí


querendo cuidar dos outros, e você? Nunca fala o que é
que tá acontecendo.

Nina Não, eu não… Você tá virando o jogo!

Dea Ah, para, Nina. É verdade, você nunca fala, parece


que a gente tem que ficar tirando de você pra dizer
alguma coisa.

Nina Mas é que sempre tem alguma coisa mais impor-


tante. E eu também não quero...

Verónica Ser cuidada? Porque é o que me parece. Eu até


achei bonito esse nome que você escolheu...

Marina Melhor que Lucienny.

(todas riem)

Nina Ai, gente! Eu achava bonito.

Dea Minha filha, tanto nome por aí! A gente tem a van-
tagem de poder escolher o nome e você vai e me escolhe
Lucienny?

Verónica Eu não podia deixar filha minha com nome de


Lucienny.

Marina Magina, Nina é super a sua cara.


104~

Dea Mas quem Nina a Nina? (tu dum tss)

Nina Tá bom, tá bom. Eu falo. Eu acho que tô com a


cabeça ruim, só isso.

Dea Ruim como?

Nina Sei lá, tô meio prostrada.

Marina Ihhh, prostradáhhh

Nina Tem alguma coisa que tá no meio do caminho.


Tô me sentindo pra baixo, fico horas e horas pra sair da
cama, mas parece que num vai...

Dea Isso é coisa de ir no médico...

Nina Pra falar o quê? Que tem uma trava triste?

Verônica Isso é muito sério. Não dá pra você ficar desse


jeito, porque depois piora.

Marina É, não dá pra ficar assim, não. Sacode essa


poeira! Vamo lavar uma louça!

Dea Marina...

Marina Que foi? Não é? Toda hora uma competição dos


desgraçadinhos, parece que tudo tem que ficar derru-
bada, tem que sentir demais. Eu tô cansada! Eu não quero
105~

sentir, já é um inferno todo dia você sair na rua, aí tem um


macho que passa a mão no pau, tem o trabalho que não
vem, tem alguma que apanhou na rua, todo dia uma coisa
e a gatinha quer é ficar com coisa de... de... como é que
diz, bicha?

Dea Depressão.

Marina Isso! Quer ainda ficá com coisa de depressão?


Não dá! O demônio no espelho que fica falando que
você é um monstro, o espelho fora que fica dizendo isso
também, NAAAAAAUM NAAAAAUM. Inclusive, tô can-
sada desses papinhos. Tem um show hoje pra fazer e até
agora a bonitinha ali não disse nada. EU TRABALHO, não
sou uma coitada! E tô tentando fazer aquela ali, regando
as plantas, parar com esse chorôrô e quem sabe ir traba-
lhar hoje também. Eu vou comprar um cigarro.

(Silêncio. Bate a porta)


106~

Dea Eita...

(silêncio)

Nina Deve ter tomado a perluta ontem.

Dea e Verónica Alawwwka.

Verónica Deixa ela. Deve tá com alguma coisa na


cabeça.

Nina Como você tá, Verónica?

Verónica É, eu acho que não dá mais pra ficar escapando,


né? Pois bem. Eu conto. Ontem eu cheguei em casa e
vi umas duas taças assim em cima da mesa. Ele tava de
cueca com uma música alta e uma calcinha minha na mão.
Eu achei tudo aquilo muito estranho. Não era a primeira
vez, mas eu achei estranho. É como se tivesse me dado
um estalo. Eu senti uma parada diferente ontem. Ele tava
lá em pé no meio da sala e eu ri dele. Tamanho clarão que
eu tive. Eu ri dele. Então era aquilo? Aquele homem ridí-
culo no meio da sala que me transformaria numa mulher?
Ele que era o arco-irís que eu passei embaixo? Era isso?
Eu ri, porque eu não podia acreditar no tanto que eu quis
viver essa vida. Essa vida que me transmutaria na fêmea.
Pois veja, eu lembrei de minha mãe. Exatamente como
ela, eu estava vendo uma cena patética de um homem
107~

que te trai, te mente e não quer nem se dar o trabalho


de esconder direito. Nem isso eu merecia. A Dea tá de
prova, né, Dea? Não foi a primeira vez que tudo isso acon-
teceu. Mas é que eu não queria acreditar nesse negócio.
Foi muito tempo até eu ter essa coisa que chamam de
relação, sabe?

Nina Verónica...

Verónica Não precisa sentir pena de mim, Nina. Eu não


quero isso. Estou viva. Só um pouco morta hoje. Só isso.
E eu tenho esse direito, de tá arrasada, de viver meu
luto. Parece que eu não posso... não posso viver meu
luto, entende? Só queria poder ficar um pouco assim,
mas parece que eles não deixam, parece que ninguém
deixa você ficar só arrasada, só chorar como se o mundo
fosse acabar. Não tô falando que é bom fazer sempre
isso, até porque, a Marina não sabe, mas eu vou cantar.
Ah, eu vou! Eu vou cantar como nunca, como se o mundo
estivesse acabando e o show final fosse de uma travesti.
Mas tem alguns baques na vida que merecem uns óculos
escuros e um drama na cama, sabe? Se não, como é que
vai pra frente? Como é que a gente consegue continuar?
Se a gente num vai farejando o tamanho do buraco, como
é que faz? Eu quero dar conta da minha celebração, sim,
mas pra mim eu preciso entender o tamanho dos meus
abismos também. Com calma, com tempo, com cuidado
e tudo mais que eles tiraram de nós. Eu queria paz, pelo
menos nessas pequenas mortes. Antes de subir naquele
palco. E depois… depois que me rasgar inteira nessa
noite, eu vou botar aquele macho pra fora.
108~

Dea Um brinde! Para todas as Verónicas dessa vida!

Verónica e Nina Alawwwka.

Nina Viu, mas aproveitando a deixa…Tem uma amiga


nossa que foi demitida e tá precisando de um lar.

Verónica Quem?

Dea Me demitiram lá da escola, irmã.

Verónica Como assim? E o seu aluguel?

Dea Essa que é a treta.

Verónica Pois então eu te digo que tem um quarto lá na


minha casa pra você. Que se vão os machos e que venham
as nossas.

Dea A senhora tá falando sério?

Verónica Senhora, não. E, se perguntarem, eu falo que


você é a minha irmã mais velha.

Dea Porra, Verô…

Verónica Chore agora não, deixa isso pra mais tarde.

Nina Eu falei que dava jeito, num era?


109~

(Uma batida forte no chão. A porta se abre. Alguém dá


um leve grito de susto.)

Marina Alguém me ajuda a carregar essas cervejas, por


favor?

Nina Marina, o que aconteceu com você?

Dea Marina, a tua cara tá toda...

Marina Eu sei. Lavei o rosto no bar, só isso.

Verónica Parece até que você chorou…

Marina CHEGA! CHEGA! (bate a porta) Sabe qual é o pro-


blema de vocês? É que vocês se deixam se destruir, me
ouviram? Vocês SE DEIXAM levar por qualquer coisa que
bate na cara de vocês, mas deixa eu falar uma coisa: a vida
é assim mesmo! Ou você mata ou morre. Eu não tive esse
tempo não, Verónica. É! Eu não tive esse tempo de ficar
assim, arrasada, no chão. Porque, se eu faço isso comigo,
tudo em volta vai acabar ruindo também! Me ouviu?
Não vai dar! Como é que eu vou deixar você na mão, por
exemplo? Como é que eu vou deixar você se desandar
junto comigo? Se eu não levanto, você também não tem
show. Já parou pra pensar nisso? E a minha casa e o meu
cachorro e sei lá, eu mesma! Como é que eu vou deixar
tudo ir embora depois de tudo que eu batalhei? Depois
110~

que eu fiz das tripas coração pra tentar fazer alguma


coisa nessa merda de mundo que só nos cospe a cara?
Como é que pode isso? Mas você não. Você não liga pra
isso. Você deixa que todas nós fiquemos aqui lambendo
você e daí você vem, chega e não fala nada. Como alguém
que fosse melhor que nós. Porque é você a artista, num
é? Como se a única travesti que prestasse é aquela que
faz show e tem glamour e diverte as pessoas, é só essa
travesti que serve, num é? Parabéns Verônica, A Roberta
Close do Arouche, esse título é seu. Quer saber de uma
coisa? Fui eu. Essa Cinderela do salto 42 sou eu! Tá bom?
Fui eu que dormi com ele. Ontem eu fui levar umas coisas
da produção lá no seu apê e aconteceu. Ele veio, me ofe-
receu um vinho, botou uma música, eu fui topando, fui
dançando, mas eu não queria. Eu não queria fazer isso.
Fui eu! Ele foi me levando pro quarto, eu não queria. Fui
eu! Falei pra ele que eu não queria, falei pra ele “me solta”,
daí ele me segurou e fez. Ele foi me levando pro quarto.
Fez. Pronto, era isso que você queria saber? Tá aí. Fui eu.
Fui eu. Fui eu.

(O choro de Marina ecoa, enquanto vai ouvindo um


chiado intermitente, e um “respira” bem baixinho. Uma
janela se abre. Um saco de ar. A porta é destrancada.
Uma gaveta é fechada. O choro vai diminuindo confor-
me o tempo.)
111~

(Ouve-se uma guitarra sendo plugada, uma cerveja sen-


do aberta, uma porta fechando. Aplausos e gritos)

Verónica Boa noite, boa noite. É um prazer poder estar


aqui mais uma vez, no nosso amado Arouche. Eu queria
começar o show de hoje agradecendo primeiro vocês,
por estarem aqui. Eu agradeço mesmo, porque eu mesma
acordei e quase não vim. Mas daí pensei: não é todo dia
que tanta carinha bonita vem num show de uma travesti,
num é mesmo? Se não é bonita de cara, é de coração (tu
dum tss). Essa é uma noite mais do que especial, porque
tudo isso aqui se trata de um funeral. De alguém que fui,
de alguém que quis ser, de um alguém que hoje finalmente
morreu. Mas já vou avisando também que esse velório
tão logo se tornará uma festa. A gente luta, ô se luta. Mas
a gente também festeja. Hoje eu dedico esse show pra
quem veio antes, pra quem aqui está e por quem ainda
nos tornaremos. Espero ter em vocês aqui, agora, hoje,
uma chance ao menos de tentar receber alguma coisa…
alguma coisa que faça sentido pra gente, nessa noite, só
hoje. Pra abrir os trabalhos, eu gostaria de chamar ao
palco a minha amiga, irmã e produtora: Marina! Uma
salva de palmas.

(Aplausos. Mais aplausos. Mais alto.)

Marina (ela ri e cochicha) Verónica… Cê tá doida?


Verónica Hoje eu queria que você cantasse pra gente.
Porque a Marina, ela também compõe. Eu queria que
hoje você cantasse pra gente.
112~

Marina Verô, pelo amor de Deise.

Verónica Com vocês, Marina Mathey! Compositora e


intérprete da música: “Nina”!

(A banda começa e ouve-se a respiração de Marina ao


microfone. Ela prende o ar. Então solta com a voz)

Marina
Selvagem é o vento
Já disse Nina, minha amada
e eu
e ela
ventando sem trovoada
tocando o chão
alada
quase sem acreditar em nada
passando por tantas e tantas e tantas ciladas
voamos em direção ao coração do mar
horizonte sem fim
e queimamos no sol que entra no mar sem apagar
bola de fogo eterna
que todo dia descansa dentro das águas
ventamos e lavamos as mágoas para o seu devido lugar
voamos com os pés no chão
imersas num mar de lágrimas
queimando sem fim em direção à revolta
Nina, ontem sonhei com seu choro de verdade
e hoje acordei embriagada*

(fim)
113~

* “Nina”
autoria e composição:
Marina Mathey

____________
Rudá
Atriz, dramaturga e pessoa trans. Inicia seus estudos em tea-
tro com Celso Frateschi no Teatro Ágora. Em 2015 estuda na
Escola Livre de Teatro de Santo André no Núcleo de Drama-
turgia. Passa também pelo CPTzinho no Centro de Pesquisa
Teatral dirigido por Antunes Filho. Escreveu “Translúcida”,
texto premiado pela I Mostra de Breves Textos dentro do Pro-
grama Municipal de Fomento ao Teatro d’A Digna Cia.
114~
115~
115~

Mito
~Diego Cardoso

sinopse~
Existe uma fábula antiga sobre um lugar acometido por
uma terrível infestação que só foi eliminada graças à aju-
da mágica de um forasteiro que chegou prometendo liber-
dade. Esse lugar existe e hoje não há mais sinais da infes-
tação: a praga deu lugar a uma aparente liberdade que
esconde o segredo de um futuro interditado. Quem for até
lá para conhecer a história de perto pode acabar descobrin-
do que o mito é, na verdade, uma disputa pelo imaginário
de uma nação e pela preservação da realidade.
116~

MIT
O
117~

I o mito de alguém

[pessoas respondendo na rua]


[diferentes áudios do tipo “povo fala”,
som de ambiente externo,
ruídos de rua, carros passando]

—mito é alguma coisa que é falsa.

—mito é mentira, não é?

—é uma... são histórias... sobre deuses. tipo


a mitologia grega, a mitologia romana, nór-
dica...

—mas mito é tragédia também. não é? nas tra-


gédias tem mito também...

—mito é uma história que explica a origem de


algo e vai gerando outras histórias…

—é alguém que já morreu.

BETE
mito é alguém que fez alguma coisa importante.

GILBERTO
claro que eu sei. eu tava aqui quando o mito
chegou, eu vi. ele nos salvou.
118~

—...e essas histórias vão sendo tão e tão


repetidas, que aquela primeira que ficou lá
atrás vai desaparecendo, até se perder e nin-
guém saber como começou.

MULHER
o que é um mito? (pausa) eu sou um mito.
119~

II o lugar do mito

NARRADOR
[conta]
há uma história sobre um lugar que du-
rante muito tempo sofreu com uma terrí-
vel praga: ratos. uma infestação de ra-
tos. ratos em todos os cantos. ratos que
lutavam com os cães, matavam os gatos,
mordiam as crianças, comiam a comida da
geladeira, caíam nas panelas, destruíam
os móveis, as roupas. as pessoas que vi-
viam lá não sabiam mais o que fazer. elas
já haviam tentado de tudo para terem paz
e nada havia funcionado.

até que, um dia, um homem apareceu nas


redondezas. ninguém sabia exatamente
quando e por onde ele havia chegado, mas
sabiam que vinha de fora. ele fazia ques-
tão de mostrar isso. ele tinha um jei-
to esquisito, roupas extravagantes, um
jeito de falar. chamava atenção por onde
passava. quando tinha a atenção de todos,
ele fez uma promessa. disse: vou acabar
com todos os ratos.
120~

eliminar os ratos. fuzilar os ratos. ex-


terminar os ratos. derrotar os ratos.
expulsar os ratos. dizimar os ratos. lim-
par os ratos e mandar para o lugar de
onde eles nunca deveriam ter saído.

as pessoas todas comemoraram. já havia


perdido as contas de quantos antes dele
tinham dito o mesmo. mas ele disse que
era diferente e todos acreditaram. até
que alguém perguntou “como?” e ele res-
pondeu mostrando sua arma: uma flauta.
nessa hora, algumas pessoas duvidaram,
uns acharam que era piada, riram dele.
mas o homem insistiu e insistiu. e as
pessoas começaram a escutá-lo. foi sufi-
ciente que a maioria acreditasse e logo
todos decidiram arriscar, uma vez que —
pensaram — já não tinham nada a perder.
combinaram o pagamento após o serviço.
tinham apenas uma exigência: começo ime-
diato.

então, o homem tocou. quando a música


começou a sair da flauta, magicamente
os ratos começaram a sair das tocas. sem
nunca parar de tocar, ele foi caminhando
para fora da cidade e os ratos, como se
hipnotizados, foram seguindo a música.
121~

dizem até que foram dançando. as pessoas


assistiam àquilo boquiabertas. finalmen-
te elas estavam livres. em pouco tempo, o
lugar voltou a ser como era antigamente,
do jeito que as pessoas queriam. naquele
dia fizeram uma enorme festa em comemo-
ração ao fim de tudo que havia de ruim
ali.

porém, durante a celebração, o flautista


voltou. as pessoas ficaram tão animadas
que quase se esqueceram que ele voltaria
para receber. perguntaram o preço e fi-
caram espantadas com a resposta do homem.
era um preço absurdo, descomunal, exor-
bitante. a indignação correu entre elas e
se revoltaram. decidiram que iriam pagar
o que achavam justo. mas o que achavam
justo era muito menos do que ele queria.
e ele ameaçou: se não fosse pago, se vin-
garia de todos. ameaçou. ameaçou. amea-
çou. e ninguém deu ouvidos.

mais tarde, naquele mesmo dia, quando to-


dos estavam na igreja fazendo suas preces
em agradecimento, sem que ninguém per-
cebesse, o flautista reapareceu no meio
da cidade. ele sacou sua flauta e tocou.
quando a música saiu, um som baixinho,
122~

quase inaudível, magicamente a crianças


da cidade começaram a deixar as casas.
de repente, todas elas estavam ao redor
do homem, encantadas com o som da flauta.
ela formaram uma enorme fila atrás dele,
que foi embora, tocando sua música, le-
vando as crianças consigo.

(tempo)

muitas pessoas já devem conhecer essa


história. eu penso muito nela. penso no
que um acontecimento como esse pode causar
num grupo de pessoas, numa comunidade. e
fico tentando imaginar o que aconteceu
depois. qual foi a reação dos habitantes
daquele lugar quando saíram da igreja
e não encontraram mais nenhuma criança?
ninguém desconfiou, ninguém tentou avi-
sar? será mesmo que ninguém pensou duas
vezes antes de confiar num estrangeiro
com uma solução mágica? será que eu pen-
saria se fosse uma delas? eu penso muito
em como deve ser viver num lugar assim,
que tem uma marca tão profunda. (tempo)
não tenho como saber. talvez, se eu fosse
até lá... se respirasse o mesmo ar, cami-
nhasse pelas mesmas ruas, conhecesse as
pessoas, fosse possível ter alguma ideia
do que aconteceu depois.
123~

[som de ambiente externo e ruídos de rua


surgem aos poucos]

NARRADOR
[conta]
foi o que eu fiz. eu acreditei que indo
até lá seria possível responder o que
aquelas pessoas fizeram pra cicatrizar
essa marca.

[o narrador caminha pela rua. sons de


passos, pessoas ao longe]

NARRADOR
[na rua]
são quase onze da manhã agora... o dia está
nublado, mas não faz frio... tem previsão de
chuva fraca, provavelmente a temperatura vai
cair... estou passando por uma rua larga, tem
carros estacionados dos dois lados, tem árvo-
res, alguns prédios de apartamentos, algumas
casas, um supermercado... é feriado aqui...
mas apesar disso e do mau tempo, tem bastan-
te gente na rua... (tempo) tem uma certa...
normalidade. tanta que chega a ser estranho.

[o som da cidade diminui até parar]


124~

NARRADOR
[conta]
eu pensei que indo até lá encontraria
sinais, indícios do que aconteceu. como
em lugares que viveram alguma fatalida-
de e fazem questão de lembrar disso. nas
fachadas, nas ruas, no rosto das pesso-
as. mas lá não era assim. o que tornava
aquela normalidade algo que parecia fora
do lugar, era estranho, afinal, não fazia
tanto tempo assim.
125~

III mito nosso

[pessoas respondendo na rua]


[diferentes áudios do tipo “povo fala”,
som de ambiente externo,
ruídos de rua, carros passando]

—antigamente, as pessoas que moravam no inte-


rior se escondiam debaixo da mesa quando dava
uma tempestade muito forte. elas não faziam
isso com o sentido de se proteger apenas,
mas de se esconder. elas acreditavam que era
preciso sumir da vista da chuva e que debai-
xo da mesa era um bom lugar para isso. minha
avó contava que a mãe da mãe dela juntava os
filhos debaixo da mesa até a chuva passar. an-
tigamente era assim, né... as pessoas acredi-
tavam nas histórias. as histórias eram leis.

—esse país é maravilhoso. aqui não tem terre-


moto, não tem furacão, não tem vulcão, não tem
nevasca, não tem tsunami. é o paraíso. aben-
çoado por deus, bonito por natureza. aqui é o
melhor lugar do mundo. por isso a gente tem
que defender nossa pátria, com unhas e dentes.
nenhuma praga há de prosperar aqui. nós somos
um povo só, forte, unido, batalhador.
126~

IV muito perto do mito

NARRADOR
[conta]
mas eu sabia que apenas observar não se-
ria suficiente. não dá pra conhecer um
lugar sem conhecer as pessoas que vivem
nele. e foi o que eu fiz. eu parti em
busca de quem pudesse responder minha
pergunta.

[NARRADOR e BETE conversam na rua]


[som de ambiente externo e os ruídos de
rua voltam a surgir aos poucos]

BETE
meu nome é Elizabete, mas todo mundo me chama
de Bete...

NARRADOR
[conta]
a Bete, que na verdade é Elizabete, foi a
primeira pessoa que eu encontrei e que topou
falar comigo.

BETE
ah, eu gosto de viver aqui. é muito bom. eu
gosto.
127~

NARRADOR
[conta]
ela me contou que é uma antiga moradora,
que viveu durante a infestação de ratos.
ou seja, a Bete era a pessoa perfeita pra
contar o que eu queria saber.

BETE
era horrível. a gente aqui não gosta nem de
lembrar. foi um tempo muito difícil. você nem
imagina.

NARRADOR
mas então... é tudo verdade? é isso que eu
quero saber.

BETE
sim, é verdade. foi tudo verdade... assim,
sendo bem sincera, os ratos sempre existiram
e as pessoas sempre viveram suas vidas apesar
disso. o que realmente assustou naquela época
foi a quantidade. a cada dia, a gente via sur-
girem mais. eu senti muito medo porque parecia
que não ia acabar nunca. mas ninguém deixou de
viver suas vidas por causa disso. talvez no
começo, mas bem no começo.

NARRADOR
Bete, será que você conseguiria descrever algo
de que você se lembra e ajude a gente a ter
uma noção de como era viver aqui nessa época?
128~

BETE
ah, como eu te disse, minha memória é muito
ruim... eu me lembro pouco. parece que a cada
dia essa memória vai ficando mais borrada,
sabe? e eu agradeço todo dia por isso, não vou
mentir.

NARRADOR
[conta]
logo eu noto que pra Bete é difícil aces-
sar algumas memórias, como se um trauma
se colocasse entre ela e esse passado.
o que é natural, eu penso. Para algumas
pessoas, lembrar é realmente uma difi-
culdade, algo que exige um esforço quase
doloroso. mas pra outras, ao contrário,
pode ser uma memória fácil, viva, quase
possível de pegar com as mãos.

[NARRADOR e GILBERTO conversam na rua]


[som de ambiente externo e os ruídos de
rua continuam]

GILBERTO
eu me chamo Gilberto, tenho 46 anos.

NARRADOR
[conta]
o Gilberto é outro morador que topou fa-
lar comigo. Ele também vive e trabalha lá
129~

há muitos anos. Ele testemunhou a infes-


tação — e diz se lembrar — de tudo que
aconteceu.

GILBERTO
é claro que eu lembro. lembro perfeitamente.
era uma praga. eu tô te falando, era uma praga.
pra você ter ideia, eu ia trabalhar sacudindo
as pernas pra derrubar os ratos que subiam
pela minha calça. pra onde a gente olhava,
aonde a gente ia, tinha rato. tinha rato até
nas escolas, junto com as criancinhas.

NARRADOR
e como era viver no meio disso tudo...

GILBERTO
como você acha? tá achando que dava pra viver
uma vida normal?

NARRADOR
E como era pras pessoas que trabalhavam, es-
tudavam...

GILBERTO
tudo era difícil, era difícil sair de casa,
estudar, trabalhar. pensa uma situação que
tudo que você vai fazer, se depara com um
130~

rato... eles andavam aos montes. eu juro pra


você que era comum sair na rua e ter uns
montinhos de ratos que chegavam nessa altura
aqui, ó.

NARRADOR
Gilberto, tem gente que diz que tem um certo
exagero no que contam/

GILBERTO
exagero?! quem te disse isso? olha, quem dis-
ser que era mentira, não é gente de bem. por
causa dos ratos, fecharam tudo. eu não me es-
queço das pessoas sem poder sair de casa, per-
dendo os empregos. sabe o que acontece quando
alguém perde as esperanças num momento em que
parece que tudo só vai piorar? a vontade de
viver vai embora. quem te disse que é exagero?
diz o nome aí, quero saber...

NARRADOR
não... não foi ninguém específico. na ver-
dade, são relatos que ouvi sobre as pessoas
terem se acostumado depois de algum tempo...

GILBERTO
bom, acho que você tá precisando rever suas
fontes, então. (tempo) sabe qual o problema,
as pessoas esquecem.... com o tempo as pessoas
131~

vão esquecendo... eu não me esqueço de todo


mundo vivendo na maior infestação que já ocor-
reu na humanidade. hoje você tá vendo aí... tá
tudo bonito de novo, tudo limpo, purificado,
graças a deus… não se vê mais ratos em lugar
nenhum. é aí que as pessoas vão acostumando e
começam a achar que sempre foi assim. eu acho
um absurdo isso. não pode esquecer. porque se
a gente esquece, eles voltam. vai descuidando
aqui, ali, e quando vê tá tudo infestado de
novo.

NARRADOR
[conta]
lembra que eu contei antes, que no dia
que os ratos foram exterminados as pes-
soas deram uma festa? pois então, desde
então elas comemoram todo ano. o dia que
eu escolhi pra ir até lá era feriado por
causa disso. quando eu abordei o Gilber-
to ele estava indo pra comemoração. ele
estava indo na mesma direção e vestindo
as mesmas cores que várias outras pessoas
vestiam, as mesmas cores. das bandeiras
e enfeites pendurados nas casas e nas
sacadas.

NARRADOR
Gilberto, o que vai acontecer aqui hoje?

GILBERTO
ah, hoje é dia da festa. dia de comemoração.
132~

NARRADOR
comemoração do que exatamente?

GILBERTO
pô, você é mal-informado, hein.
hoje é a festa pela nossa liberdade. sempre
nessa data! hoje é o dia que tudo foi limpo,
graças ao mito. foi nessa data, alguns anos
atrás, que ele chegou e botou ordem em tudo,
fez a limpeza que a gente precisava. extermi-
nou os ratos. hoje o que vai acontecer aqui é
lindo, um puta espetáculo, você vai ver. não
é isso que você veio gravar aí?

NARRADOR
é, é sim...

NARRADOR
[conta]
não era.

NARRADOR
agora que você falou em mito, eu tenho uma
coisa pra te perguntar... você sabe o que é
mito?

GILBERTO
claro que eu sei. eu tava aqui quando o mito
chegou, eu vi. ele nos salvou.
133~

NARRADOR
[conta]
mito. eu sei do que o Gilberto está
falando porque na minha conversa com a
Bete esse mesmo nome apareceu quando eu
perguntei sobre a história do flautista.

BETE
sim, também é real. a mais pura verdade. foi
praticamente um milagre. ele foi um enviado
de deus pra nós.

NARRADOR
como era o nome dele?

BETE
aqui a gente chama ele de “mito”.

NARRADOR
e você pode descrever como ele era... como foi
que ele chegou, o que ele falou...

BETE
ah, eu me lembro tão pouco... tenho certeza
que outras pessoas vão lembrar melhor do que
eu (tenta lembrar) deixa eu ver se eu lem-
bro... ah, ele foi muito bom, ele era muito
bom. ele foi um salvador.
134~

NARRADOR
[conta]
a Bete não parece muito confortável res-
pondendo minhas perguntas. mesmo assim,
nessa hora eu decido perguntar pra ela o
que eu realmente quero saber. não deve
ser algo que alguém esquece tão fácil.

NARRADOR
Bete, você não gosta muito de falar sobre esse
assunto, né?

BETE
não... pra mim é difícil.

NARRADOR
eu imagino o porquê. mas... você poderia contar?

BETE
não. desculpa. isso me faz lembrar de algo
muito pessoal. (tempo) me faz pensar nos meus
sobrinhos, sabe? dá uma saudade.

NARRADOR
quantos sobrinhos você tinha

BETE
tenho.
dois. vinicius e sofia.
135~

NARRADOR
e você não os vê desde quando o...

BETE
desde que o mito levou eles.

NARRADOR
e você ainda acha que ele é um herói?

BETE
claro. ele nos salvou.

GILBERTO
o mito não é igual a todos os outros que vie-
ram antes. eram todos pilantras que só apare-
ciam pra se aproveitar do nosso sofrimento.
mas ele não. ele é diferente... ele prometeu
e cumpriu. de cara deu pra ver que ele era um
ser humano de bem, como a gente.

NARRADOR
mas, Gilberto, e sobre as crianças?

GILBERTO
que criança?

NARRADOR
exato. não tem nenhuma criança aqui.
136~

GILBERTO
(ríspido) não tem mesmo. aqui é um lugar de
gente mais velha.

NARRADOR
e onde estão as crianças?

GILBERTO
eu tenho cara de babá?! por que você não vai
perguntar pros pais delas?

BETE
não, jamais. ele não tem culpa nenhuma. pelo
contrário. o mito consertou esse lugar, ele
devolveu nossa alegria de viver.

NARRADOR
mas, Bete, por causa dele as crianças desapa-
receram.

BETE
não! claro que não! isso é mentira! ele as
levou para um lugar melhor. se os ratos vol-
tarem um dia, nossas crianças estão a salvo
num lugar seguro graças a ele. ele fez isso
para protegê-las porque ele sim se preocupa
com os pequenos.
137~

GILBERTO
já entendi tudo.
você é um desses que gostam de vir aqui falar
merda, não é? por que você não veio durante
a infestação? é fácil vir despejar idiotice
quando está tudo limpo. alguém devia te enfiar
num esgoto pra você experimentar como é fazer
essas perguntas no meio dos ratos.

NARRADOR
eu vim saber como é viver num lugar sem crianças.

GILBERTO
eu posso te dizer como é viver num lugar sem
ratos.

NARRADOR
você realmente acha que ele melhorou as coi-
sas, Bete?

BETE
olha, moço, você me dá licença, eu não vou
responder mais nada. e é melhor você ir embora.
a gente aqui não gosta de ninguém vindo fazer
essas perguntas.

NARRADOR
é verdade o que dizem, Bete?
138~

BETE
nós estamos limpos, nossos lares estão lim-
pos. essa é a verdade.

GILBERTO
se alguém pensa diferente, espero que esteja
bem escondida. aqui não é lugar pra gente as-
sim. nem pra gente que vem questionar.

BETE
aqui nós temos liberdade, nós somos livres pra
fazer o que quisermos. grava isso. gravou?

GILBERTO
dá o fora daqui. o que você veio procurar
aqui, hein? tá acostumado a viver entre os
ratos e aí decide vir até aqui pra espalhar
sua sujeira.

NARRADOR
onde estão as crianças?

BETE
elas estão a salvo.

GILBERTO
nós não precisamos de crianças aqui.

[o sons da rua cessam]


139~

V meu mito

NARRADOR
[conta]
Já faz algum tempo que eu penso sempre
a mesma coisa. Será que é possível che-
gar tão perto de uma ficção a ponto de
ser engolido por ela? Às vezes eu tenho
a sensação de quem tá vivendo dentro de
uma ficção mesmo sem ter escolhido estar
nela. Quem escolheu foram outras pessoas,
muitas pessoas que fizeram o pacto de vi-
ver um mito, e agora, eu, mesmo não que-
rendo, me percebo dividindo espaço com
ele também. eu me pergunto se existe um
ponto de não retorno quando se vai muito
longe com uma mentira... e o que acontece
depois desse ponto. Tem dias que a sen-
sação é ainda mais forte. é como se tudo
estivesse invertido, mas as pessoas não
enxergassem. O que pra mim é verdade, pra
elas é mentira. Nesse território, quem
vive uma ficção sou eu. eu saio de casa,
eu pego o trem, eu vou a lugares, eu vejo
as pessoas, olho bem pra elas e tento
descobrir qual é o mito delas.
140~

VI dentro do mito

[pessoas respondendo na rua]


[som de multidão ao fundo]

—mito é uma pessoa que se destaca em


relação aos demais.

—mito é uma pessoa que é uma lenda...


mas ele não é uma lenda...

[som da manifestação de 7 de setembro


de 2022]
[a fala do narrador se sobrepõe. ao fun-
do ainda se ouve a manifestação]

NARRADOR
[na rua]
comemorar significa trazer à memória, lembrar
junto, lembrar com o outro. eu decidi acom-
panhar a comemoração, estar entre as pessoas,
pra ver de perto o que elas estavam escolhendo
lembrar — ou esquecer.

todas vestiam as mesmas cores, roupas seme-


lhantes, todas com o mesmo sorriso. Como
eu imaginava, o sentido de comemoração era
apenas o da festa. e parecia uma festa mesmo.
141~

música alta, bebida, comida. as pessoas dan-


çavam, tiravam fotos. elas olhavam umas para
as outras e se reconheciam… eu me dei conta
que esse era o jeito delas se sentirem parte
de alguma coisa… talvez a única coisa real
ali, ainda que originada de uma mentira.

vendo aquelas pessoas eu entendi algo impor-


tante sobre a história que eu estava tentando
contar. essa não é uma história sobre pessoas
que cometeram um erro e tiveram que conviver
com a verdade. o tempo todo elas sabiam exata-
mente o que estavam fazendo e qual era o preço
a pagar. essa é a história da construção de um
mito e da destruição do que é verdade.
142~

VII fim do mito

[NARRADOR e MULHER conversam na rua]


[som de ambiente externo e manifestação
ao fundo]

MULHER
o que é mito...

NARRADOR
isso. pode pensar se precisar. e pode respon-
der como quiser.

MULHER
eu não vou aparecer, né?

NARRADOR
não, é apenas a voz.

MULHER
tá...
esse lugar é um mito. essas pessoas, tudo
isso. tudo

NARRADOR
por quê?
143~

MULHER
você já conversou com elas? viu o que elas
estão fazendo? no que elas acreditam?
então você sabe.

NARRADOR
eu conversei com algumas pessoas e elas não
gostaram muito quando eu perguntei sobre

MULHER
como você acha que elas se sentem quando al-
guém vem aqui tentando lembrá-las do único
defeito do mito perfeito da liberdade delas?

NARRADOR
e a parte sobre as crianças... é mito também?

MULHER
não. isso é bem verdade. mas pode ser mito
também.

NARRADOR
como assim?

MULHER
aqui, todos acreditam que perder as crianças
foi um sacrifício necessário. que aconteceu
porque precisavam salvar a pátria, a liberda-
144~

de, pra salvar as próprias crianças. por isso,


desde aquele dia, não existem crianças aqui.

NARRADOR
porque as pessoas não querem?

MULHER
porque elas não podem.
é esse mito que afasta a perversidade deles.
assim tudo fica explicado, perfeito asséptico
como era antigamente, do jeito que eles ado-
ram. se houver crianças, alguém vai perguntar
porque não houve antes e isso é algo difícil
demais para essa gente lidar.

NARRADOR
então o mito também são as crianças.

MULHER
tudo que for preciso virar mito para o mito
continuar sendo mito, vira mito. a suposta
liberdade. as crianças. você. eu.

NARRADOR
você é um mito?

MULHER
eu sou mulher num lugar em que os discursos
dizem que eu sou livre, que eu tenho os mesmos
145~

direitos, que eu posso falar se quiser, que eu


posso sair se quiser, que eu posso decidir se
quiser. decidir se eu quero, se eu não quero.
mas a gente sabe que não é assim.
acho que isso é ser um mito. você não acha?

NARRADOR
e o que aconteceria se houvesse uma criança
aqui

(tempo)

MULHER (incomodada)
não sei. não existem crianças aqui.

NARRADOR
mas e se existisse, o que aconteceria?

MULHER
o que você acha?

NARRADOR
eu não falei com todo mundo, mas não consigo
imaginar que aconteceria alguma coisa boa.

MULHER
não... com certeza não. (pausa) eu preciso ir,
eu não posso me atrasar.
146~

NARRADOR
você não vai pra manifestação?

MULHER
não e eu não queria que soubessem disso. por
favor.

[o som de manifestação e ambiente exter-


no vai diminuindo, como se fosse sendo
abafado, até sumir]

NARRADOR
antes de ir embora eu ainda conversei com
uma última pessoa. o que ela me disse não me
deu uma resposta definitiva sobre aquele lu-
gar. pelo contrário, me fez entender que ali
existem muitos sentidos, e a maioria não é
bom. assim como não existem apenas pessoas que
acreditam no mito, porque não existe um só,
existem outros. algumas pessoas conseguirão
ver isso, outras não. (tempo) e o que a gente
faz? como a gente desmonta um mito? no fim das
contas, foi muito frustrante tentar contar
essa história. afinal, ela é só uma história
soterrada embaixo de tantas e tantas outras.
de perto, aquela ficção pareceu muito grande e
amedrontadora, capaz de engolir qualquer ver-
dade que se aproxima dela. mas eu ainda espero
que alguém consiga contar outra história ali
dentro.
147~

VIII eu mito

[o som da manifestação ressurge, como


se fosse ouvida à distância, de dentro
de um cômodo fechado. Ouve-se som de
buzinas, gritos e estouros de fogos de
artifício]

MULHER
(com ternura, como se tentasse acalmar uma
criança)
tá tudo bem, tá tudo bem...
esse barulho? são os ratos... eles estão lá
fora, na rua.

não precisa ter medo. é só ficar bem quieti-


nho.
eles não vão encontrar você.

lembra da história. quer que eu conte? quer?


eu conto.

então fecha os olhos.

eu vou te contar uma história

[o som de manifestação desaparece.]


148~

escuta. escuta. eu vou te contar uma história.


depois que saíram da igreja e viram a reali-
dade, as pessoas sentiram muito ódio. nenhuma
criança havia ficado, todas haviam sumido.
logo elas entenderam o que aconteceu: o homem
voltou e cobrou seu preço.

ele era mau, como pareceu que era. ele era


perverso, como pareceu que seria. ele era men-
tiroso como quando sorria. ele levou o que tí-
nhamos de mais precioso, como disseram que fa-
ria. as pessoas se lembraram de histórias que
avisavam o que aquele homem costumava fazer.
precisavam de uma resposta antes que alguém
perguntasse como aquilo havia acontecido.

então, elas concordaram: haviam sido engana-


das, vítimas de um homem mau. o problema da
resposta as fazia parecerem tolas, estúpidas,
ignorantes. não queriam parecer assim.

tentaram mais uma vez, e concordaram: o que o


homem havia feito era bom. gostaram da res-
posta. fazia sentido, pois era como faziam as
pessoas especiais, melhores e corajosas. exa-
tamente como elas eram.

as crianças foram embora porque era melhor as-


sim. quem garante que não eram elas a razão de
todo o mal? talvez os ratos gostem de crian-
149~

ças, talvez fosse o cheiro delas, o som das


suas risadas, o volume dos choros que atraíam
eles. era melhor não arriscar. crianças fa-
ziam aquelas pessoas lembrarem de um tempo que
eles querem esquecer. eles tentam, tentam e
tentam, mas não conseguem.

é assim desde que o encantador de ratos apare-


ceu. quando ele chegou, a quantidade de ratos
multiplicou. a cada nota que dele soava mais
e mais ratos apareciam. a superfície ficou co-
berta pelos ratos que viviam no esgoto. ratos
que roem com ignorância, por instinto, que
espalham doenças, que se esqueceram o rosto
que o futuro tem...

(tempo)

ainda tá gravando? (ela chega perto do microfone)


e no seu mito... eu sou o quê?

__________

Diego Cardoso
Dramaturgo, pesquisador e educador. Mestre pelo Instituto
de Artes da Unesp, onde também se graduou em Teatro em
2015. Venceu o Prêmio Funarte de Dramaturgia (Região
Sudeste) 2014 com o texto “Manual de escrita não-violenta”.
Integrou a 7ª do Núcleo de Dramaturgia do Sesi. Escreveu a
dramaturgia “Calotas Polares”, publicada pela Editora Patuá.
É criador e apresentador do podcast Audiodrama.
151~
Hoje foi amanhã
~Bruna Menezes

sinopse~
Maitê quer saber o que é sonho.
I
E FO
HOJ NHÃ
A
AM
153~

Ouvir é ver.
ditado Bantu
154~

I. Sobre o hoje

Maitê está preparando café da manhã. Ruídos de


pratos, talheres, cafeteira.

Liga a tv.

“Agora chega de Brasília, porque foi aqui em São


Paulo que o céu mudou de cor subitamente hoje e
não se falou de outra coisa na cidade. Às 15h30 da
tarde escureceu, a iluminação pública foi acesa e
os carros passaram a trafegar de faróis ligados. Se-
gundo os meteorologistas, dois fatores contribuíram
para o fenômeno: primeiro, a fumaça das queimadas
que você vê aí em imagens de satélites feitas nes-
se final de semana, fumaça vinda da Bolívia, Mato
Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia. Ao chegar
em São Paulo, ela deixou o céu avermelhado, como
nessas imagens que vemos aqui na região do aero-
porto de Congonhas. A frente fria também colaborou
para a produção de uma nuvem com dimensão de
12km, que se concentrou na região sul e oeste de
São Paulo.”

Maitê~ As notícias caem sobre a minha cabeça, ela


fica inchada de informações em um grau que parece
que eu tô sufocando. A respiração é curta, eu respiro
pela cabeça, eu nasci respirando pela cabeça. O dia
inteiro tentando deixar o ar sair pelos espaços, pelas
pausas das vozes que vêm da televisão. Eu acordo na
madrugada com o computador na cama, eu deixo
ligado pra me fazer companhia, pra escutar uma voz
em casa e poder dormir umas duas ou três horas. Eu
155~

desperto. Entro no metrô. Tá lotado de gente embur-


rada, com olhar perdido. Aquele jeito de olhar que
deixa a vista embaçada. Eu gosto de olhar assim, me
sinto confortável, é quase um balanço, um abraço, uma
pausa, eu queria pausar. Mas o tempo que eu amarro
no pulso é curto. O trabalho é ruim, eu tenho medo
de perder o emprego e não pagar as contas. Eu não
tenho compromisso com a vida, ninguém tem, esses
dias eu vi um cara zuando um amigo com depressão,
ninguém nessa merda tem compromisso com a vida.
É cada um na sua timeline. O mundo despencando
na cabeça de geral, puta que pariu. (Sons da cidade.
Metrô. Vozes) Eu não durmo direito. Eu não me sinto
no agora. O que me diz que o meu coração bate é
o relógio, eu não sei se eu suportaria escutá-lo. Eu
até escutaria uma música agora, mas não sei o que
prende a minha atenção, nada que eu ouço é o que eu
gostaria de escutar. O ritmo não agrada, as letras não
me prendem. A janela do metrô é mais interessante
quando passa pela zona leste, dá pra ver a rua, tudo
passa rápido demais, mas depois vira tudo breu de
novo e volto a olhar pra esse monte de gente amonto-
ada, triste. Não sei se essas pessoas estão tristes, talvez
eu esteja, esgotada, cansada, queria um ar fresco,
respirar de um jeito que não fosse pela cabeça.

“Os casos de intolerância religiosa cresceram nos


últimos anos no estado do Rio de Jjaneiro, as religi-
ões de matriz africana são os principais alvos de ata-
ques. Jaqueline perdeu a visão do olho direito num
ataque de facão de um desconhecido, incomodado
156~

com o samba enredo da Grande Rio, escola campeã


do carnaval carioca, que homenageou o orixá Exu.
Bastou tocar o samba enredo dentro de casa para
que o agressor, que estava do outro lado da rua em
uma bar, iniciasse a confusão.”
“Volta do Brasil ao Mapa da Fome, segundo a Organi-
zação das Nações Unidas. O percentual de brasilei-
ros que não tem certeza de quando vão fazer a próxi-
ma refeição está acima da média mundial.”

Maitê~ Hoje eu vou fazer diferente, eu vou chegar


em casa e não vou ligar a TV, não vou escutar as
notícias, e vou escutar uma música, tomar um banho,
me masturbar, sei lá, me alimentar melhor e dormir
sem o computador. Cada comportamento medíocre
que o ser humano tem, aff. Três horas de sono, e
cinco horas de instagram por dia, essa conta parece
tão estranha. A pessoa que teve a ideia de calcular o
tempo que você passa no aplicativo é muito sádica.
Sinto minha respiração cada vez mais curta, não sei se
estou com raiva, se estou ansiosa, agora todo mundo
está ansioso. Deveria tomar uns remédios, talvez seja
a pausa que eu preciso. Que preguiça de sair desse
banco e ir até a saída da estação. O caminho até o
trabalho é curto, mas a cidade dá um desconforto,
parece que tudo é feito pra cair na nossa cabeça. Onde
eu queria estar agora? É uma ótima pergunta.

Sons da cidade. Metrô. Vozes.

Pedro~ Maitê!! Hey, Maitê!


157~

Maitê~ Pedro, que legal. Bom ter companhia para o


caminho do trabalho.

Pedro~ Sim! Bom ter alguém para se conformar que


esse momento chegou, né. A hora de bater o ponto.

Maitê~ A gente podia usar um método de dedos de


silicone, já viu isso? Recentemente assisti no jornal
uma matéria que os funcionários de uma empresa
usavam dedos de silicone para burlar o ponto do
trabalho.

Pedro~ Não vi, não. Mas imagina andar com um


dedo de silicone na mochila. Que viagem. Cara você
não sabe, eu sonhei com você essa noite! Sonhei que
estávamos em uma festa.

Maitê~ Sério, como assim?

Pedro~ Sonhei que estávamos na casa de alguém,


era de algum amigo, mas não consigo saber de quem
exatamente. Eu sentia que era a casa de um amigo,
mas não conheço aquela casa. Era uma festa super
animada, e encontrava você na cozinha, e não sei
porque, você subia no fogão pra explicar alguma coisa
pra mim.

Maitê~ Eu em cima de um fogão? Eu estava


dançando?
158~

Pedro~ Estava dançando e me explicando alguma


coisa importante. Mas claro que não lembro o que
era. Coisas de sonho. Vai entender.

Maitê~ O que é sonhar? Eu não sonho faz muito


tempo, não me lembro qual foi a última vez.

Pedro~ Acordou filósofa hoje, hein, Maitê. O que é


sonho? O que é a vida? O que é a morte?

Maitê~ Ah, sei lá. Faz tanto tempo que não durmo
direito, que não sonho. Talvez fosse bom. Mas me
conta de você. Como estão as coisas? Trabalhamos
juntos, mas são poucos os momentos que a gente
consegue conversar.

Pedro~ Pois é, o trabalho, o cotidiano faz isso. Eu tô


bem, sem muitas novidades, mas estou bem comigo,
me sentindo animado com o futuro.

Maitê~ Nossa, difícil encontrar alguém assim, são


tantas notícias bizarras todos os dias.

Pedro~ Também acho, mas eu prefiro não acompa-


nhar nada de notícias. Se eu conseguir dar conta da
minha vida, já me sinto bem pra caralho. Às vezes é
melhor esquecer que isso tudo existe e cuidar de si,
sabe. Cuidar do seu caminho cardíaco. No fim, esse é
o ritmo que me interessa.
159~

Maitê~ Caramba, como você consegue ficar tão


desconectado da realidade?

Pedro~ Eu estou desconectado? Tem certeza?

BREU - sem sinais vitais


160~

II - Sobre hoje e amanhã


Maitê está preparando café da manhã. Ruídos de
pratos, talheres, cafeteira.

Liga a tv.

“A polícia do Rio de Janeiro investiga trinta possíveis


casos de mulheres que foram atendidas pelo aneste-
sista acusado de abusar sexualmente de pacientes
em trabalho de parto. A lista com os nomes das pa-
cientes já está com a polícia, os prontuários médi-
cos serão analisados para saber se houve excesso
de sedação. A paciente do vídeo que revela a atitu-
de criminosa do anestesista, soube do crime ontem.
Ela tomou coquetel anti-HIV para evitar uma possível
contaminação e só hoje voltou a amamentar.”

“Presidente, hoje tivemos mais de 300 mortes. Quan-


tas mortes o senhor acha que…

Ô, cara, quem fala de... Eu não sou coveiro, tá certo?”

Metrô. Sons da cidade.

Pedro~ Bom dia, Maitê. Estava pensando na


reunião que tivemos ontem, às vezes fico pensando
sobre o perfil dos candidatos das vagas que abrimos,
e talvez pudéssemos investir em perfis mais ousados.
O que você acha?

Maitê~ Acho legal, vamos fazer isso, sim.


161~

Pedro~ Você está com uma cara estranha? Você


está se sentindo bem?

Maitê~ Estou, sim. Dormi mal, mas estou bem.


Sonhou comigo hoje de novo?

Pedro~ Sonhei, mas não foi com você dessa vez.


Nem com festa, nem com pessoas em cima do fogão.
Sonhei com os meus pais, acredita? Foi um sonho
muito lindo, foi uma forma de estar com eles, conver-
sar com eles em sonho. Acordei muito feliz.

Maitê~ Você fala com as pessoas em sonho? Tipo,


gente que já morreu? Como você faz isso?

Pedro~ Eu só durmo, ué. Que pergunta…

Maitê~ Me fala mais disso, eu to querendo saber


mais, quem sabe assim consigo sonhar um dia desses.
Vai que você me inspira.

O celular de Pedro toca.

Pedro~ Conversamos depois, Maitê. Vou dar conti-


nuidade no plano de mudar o perfil dos candidatos.
Bom trabalho. Alô…

Maitê~ Todo mundo sonha nessa merda. Não


faço ideia qual a última vez que sonhei com alguma
coisa, tô presa na realidade. Tô doente de realidade,
162~

doente de concretude e respirando pela cabeça. Não é


possível que eu não consiga produzir algo que não seja
desconforto. Mas como? Tá tudo uma merda, notícia
ruim o dia inteiro, debate eleitoral que dá desespero,
tem candidato com chance de ganhar que dá vontade
de desistir de tudo. Que dia é amanhã? Meu coração
tá batendo? Cadê meu relógio que mede meus bati-
mentos cardíacos? Deixa eu ver…sim, tá batendo.

BREU - sem sinais vitais


163~

III - Vertigem
Pedro~ Oi, chefe. Boa tarde. Estou gravando esse
áudio pra falar da Maitê. Não sei, ela anda estranha.
Talvez seja bom ficar atento nela, percebo que é alguém
muito fechada e ela tá muito bitolada com notícias,
eleições, não para de assistir noticiários. Passa o dia
lendo coisas na internet. Pode parecer uma bobagem,
mas parece que ele só vive isso, não tem se relacio-
nado com as pessoas, disse que não dorme, que não
sonha. Fica perguntando pra todo mundo o que você
sonhou hoje. Do nada. Parece que tá desconectada de
si, vive só a cabeça. Resolvi fazer esse alerta porque é
uma colega de trabalho e é o mínimo que podemos
fazer nesse momento. Tenho tentado me aproximar
pra ver se ela se abre, mas eu também não posso ficar
com essa função pra mim.

“E agora um anúncio surpreendente. Essa semana


a atriz Cláudia Raia revelou que está grávida, aos 55
anos. Com dois filhos adultos, ela já tinha entrado na
menopausa. A Cláudia deu uma entrevista exclusiva
para a repórter Renata Ceribelli, falou sobre a feli-
cidade que teve com a notícia. Disse que se sente
preparada e cheia de vigor, e comentou as críticas
que vem recebendo na internet. Cláudia Raia nos
recebeu em seu apartamento em São Paulo, com a
alegria estampada no rosto e na roupa.”

Abaixa o volume da televisão.

Maitê~ Alô, Pedro. Bom dia. Sim, tudo certo, e você?


Como estão as coisas no escritório agora de manhã?
164~

Legal. Então, já que tudo está indo bem por aí, eu fico
mais tranquila em dizer que hoje eu não vou traba-
lhar. Não, eu estou bem, na verdade estou sentindo
um pouco de vertigem, não sei. Um mal estar que
não sei de onde vem, não sei se tenho me alimentado
mal. Sentindo meu estômago embrulhado. Mas era isso,
não vou tomar mais seu tempo. Se puder avisar o pessoal,
agradeço. Obrigado, até amanhã.

“A Câmara aprovou nesta quarta o projeto que regu-


lamenta o registro, a produção e a comercialização
de pesticidas. O texto, que segue agora para o sena-
do, adota o registro temporário de novos produtos
que poderiam ser liberados pelo ministério da agri-
cultura, mesmo se outros órgãos reguladores, como
o Ibama e a Anvisa, não tiverem concluído a análise
dos eventuais riscos.”
“Ir ao supermercado já está cerca de 10% mais caro
hoje do que estava no início do ano. O preço dos ali-
mentos e bebidas já subiu 9,83% nos primeiros sete
meses de 2022, de acordo com o Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística (IBGE). O percentual é
mais do que o dobro da inflação do período medida
pelo Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA):
4,77%. A alta da comida piora as condições de vida,
principalmente, da população mais pobre. É ela
quem compromete a maior parte de seu orçamento
com alimentos e bebidas.”

BREU - sem sinais vitais


165~

IV - Mais notícias

Pedro~ Oi, Maitê, sei que já te mandei vários áudios,


liguei, mas como você não responde estou ficando
preocupado. Cinco dias sem vir trabalhar, nenhuma
notícia, o que está acontecendo? Você ainda está
passando mal? Você está conseguindo dormir?

“A morte do ‘Índio Tanaru’ ou ‘Índio do Buraco’, que


vivia sozinho e isolado há quase 30 anos em Rondô-
nia, foi noticiada por diversos veículos de imprensa
de outros países. Ele era o único habitante da Terra
Indígena Tanaru. Em nota, a Funai disse que ele era o
único sobrevivente de sua comunidade. Fim de uma
etnia.”
“— Fiz muita merda na rua. Porque eu não tinha co-
mida.
— Se eu falar pra você tudo que eu fiz na vida, oh!
— Eu não tinha comida.
— Com dezoito anos, viu.
— Não to falando com você não.
— Você pegava saco de cebola? De cenoura?
— Eu trabalhei na feira, irmão.
— Gente, isso aqui é um jogo. Pra que brigar?
— Ele tá querendo me diminuir.”

BREU - sem sinais vitais


166~

V - Tentativas
Maitê~ Não deveria ser tão difícil, já fiz outras vezes.
Eu deitava e as imagens apareciam, eu fechava os
olhos e elas estavam lá. Eu preciso me sentir relaxada
para conseguir. Respira pela cabeça e solta pela boca.
Os vídeos de cravos expremidos já não resolvem, tô
viciada nessa merda, vendo gente expremer cravo o
dia inteiro, essa porra me ralaxa. Ou melhor, relaxava.
Não vou levar o computador para cama. Eu consigo
dormir sozinha.
Não deveria ser tão difícil, já fiz outras vezes. Eu
preciso me sentir relaxada para conseguir. Respira
pela cabeça e solta pela boca. Não vou levar o com-
putador para cama. Respira pela cabeça e solta pela
boca. Respira pela cabeça e solta pela boca. Respira
pela cabeça e solta pela boca. Eu deitava e as imagens
apareciam, eu fechava os olhos e elas estavam lá.
Respira pela cabeça e solta pela boca.
Liga a tv.
“Presidente, a gente ultrapassou o número de mor-
tos da China por covid-19”.
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou
Messias, mas não faço milagre”.
“Olha, é tanta coisa pra falar, né, que você fica pen-
sando. Uma coisa, Adriane, e eu nem queria falar
diretamente pra você, mas olha os apresentadores
que compactuam essas jogadas absolutamente dis-
cutíveis e sem credibilidade com os que comandam
o programa, eles não aceitaram. A gente viu o que
aconteceu com o Brito Júnior, com o Marcos Mion.
Então pelo amor de deus, reaja. Eu não acredito que
essa fazenda...”

Desliga a televisão.
167~

VI - O retorno

Sons da cidade. Metrô. Vozes.

Pedro~ Maitê, que ótimo que você voltou. Estava


preocupado com você.

Maitê~ Acho que estava muito estressada, mas


tenho me sentido melhor, tô pronta pra retomar a
rotina. Acho que mais tarde vou até sair pra relaxar.

Pedro~ Não quero ser invasivo, mas está acon-


tecendo algo grave? Família? Por que você não deu
notícias e volta dizendo que estava estressada?

Maitê~ Eu devia ter avisado, mas depois me resolvo


com o RH. Eu só precisava de uns dias para descansar.

Pedro~ E conseguiu?

Maitê~ Na medida que o Brasil permite, sim.

Pedro~ Ainda bitolada com os noticiários?

Maitê~ Não estou bitolada, é a realidade, não dá pra


fingir que nada tá acontecendo.

Pedro~ Bom, Maitê. Se você precisar, ou melhor, se


você quiser ajuda, avise. Bom passeio pra você hoje.
168~

Maitê~ Obrigada, mas por enquanto está tudo bem.


Pedro, você tem sonhado?

Pedro~ Cara, você precisa de ajuda para ter seus


próprios sonhos.

Sons da cidade. Metrô.

Música de balada eletrônica.

Alguém~ Você tá sozinha? Quer uma bala pra


relaxar?

BREU - sem sinais vitais


169~

VII

O Despertador toca.

“9 filhos, 16 netos, 15 bisnetos, 1 tataraneto, 93 anos


e uma força de viver que faz inveja. Viúva desde fe-
vereiro, dona Maria Edelzuita de Souza viu que a vida
ainda tinha muito a oferecer e que dava tempo de
realizar o sonho que sempre alimentou. Morado-
ra de Petrolina, no Sertão de Pernambuco, a idosa
quase não dormiu da terça-feira para a quarta-fei-
ra. A ansiedade que roubou o sono de dona Delza,
como é conhecida, tem uma boa justificativa. Pela
primeira vez, ela sairia de casa em direção à escola,
para fazer o que sempre quis: estudar e ser escritora,
ela quer escrever um livro. “Vou escrever o livro da
minha história, é o que eu quero fazer. Vou estudar,
para melhorar a letra, fazer uma letrinha bonitinha e
escrever o meu livro. Se eu não morrer, vou ficar ve-
lhinha estudando. Acho a coisa mais linda do mundo
quem sabe falar bonito.”

Chorei.

Maitê~ Chorei porque um corpo carrega uma


memória e sabe que o coração pulsa na mesma
frequência das estrelas, sabe que o silêncio presente
em tudo é força vital. Esse silêncio é o que compõe o
caminho cardíaco. O ritmo é um modo de se colocar
no mundo. Um coração bate, bate, bate, bate, bate,
respira. Esse respirar é um ritmo que se sobrepõe ao
ritmo da batida cardíaca. Bate, bate, bate, bate, bate,
inspira, bate, expira, bate. Tudo ao mesmo tempo. Um
ritmo que coexiste. Um corpo que coexiste com bate,
170~

bate, bate, bate, respira, bate, expira, bate. Continua


ininterruptamente. Por anos, por uma vida, tudo isso
alinhado a bate, bate bate, inspira, bate, expira bate,
alinhado a tudo que é vivo. É no silêncio que a vida
acontece, é no silêncio que o ritmo do corpo trabalha.
Bate, bate, bate, inspira, bate, expira, bate. Você não
pega nas mãos, você não vê em cima da mesa, sim-
plesmente acontece. O corpo é um acontecimento.
Nada mais precisa acontecer. Bate, bate, bate, inspira,
bate, expira, bate. Ininterruptamente.

BREU - sem sinais vitais


171~

VIII

Maitê~ Eu me sentei na cama. Eu fiz uma força no


peito, bati no meu peito pra ver se eu sentia alguma
coisa. Foi uma forma de tentar ativar essa parte do
meu corpo, o Pedro fala o tempo todo de caminho
cardiáco. Eu tirei o relógio do pulso, aquele que mede
os batimentos. Desliguei o computador e fiz a maior
força do mundo pra respirar pelo peito, pelo dia-
fragma, eu não aguentava mais respirar pela cabeça.
O ar entrou pelo peito. Doeu demais. Era uma parte
do meu corpo que eu nunca usei. Eu achei que eu
ia morrer com aquele ar todo entrando. Eu fechei
os olhos e tentei me aproximar do meu coração, e
comecei a escutar um ruído que tinha um ritmo, era
ele. Eu comecei a escutar, lentamente, mas acho que o
ruído que eu estava ouvindo era quase de algo enfer-
rujado. Comecei a me sentir mais forte. Coloquei a
mão no peito e pude sentir. Chorei. Eu estava viva.

Uma pessoa quando dorme, o corpo permanece


deitado, enquanto a imagem vital, se desprende
e se desloca para vivenciar as experiências que
serão lembradas ao acordar.

Maitê~ Eu deitei. Respirei pelo peito.

Em sonho, a pessoa pode encontrar parentes


próximos, distantes, ou mesmo os que já morreram.
172~

Maitê~ Lembrei dos acontecimentos do dia. Me dei


conta que desejava viajar. Me dei conta que não estava
respirando pela cabeça.

Independentemente de onde se vai ou de quem


se encontra, é sempre a imagem da pessoa que
vivencia essas experiências no tempo do sonho.
Antes que a pessoa desperte, a imagem retorna
para o corpo.

Maitê~ Adormeci.

Entre pequenos espasmos e a sensação de queda,


chego ao centro da terra.
Terra viva.
Entre saltos, um deles é ainda mais alto, e mais
alto,
que me deparo entre as nuvens que se transfor-
mam em pequenas
ovelhas, escorrego

e caio em um mar.

Em um momento surge a sensação de afogamento


e sou fisgado por um pescador em alto mar.
Ao olhar para o seu rosto se revela uma cortina
onde desemboca um grande raio solar.
Entre navios voadores,
ao longe uma mulher com cabeça de peixe me acena.
Diante de mim uma escada em direção ao céu
173~

eu subo
subo
quanto mais subo
faço o movimento inverso.
Paro.

Ao lado da escada uma cadeira flutuante,


sento e seguro nas mãos um balão colorido.
Eu ainda não sei se acordei.
Não, meu sono está profundo.

Eu sinto que vou despertar. Como tentativa de que


nada disso acabe, eu estendo os braços e alcanço o
telefone, escuto uma voz que diz:
Alô?
Mas a voz não vinha do celular, ela vinha do céu.
174~

IX

Tudo o que se passa no sonho é algo que de fato


aconteceu.

fim

__________
Bruna Menezes
Dramaturga e dramaturgista. Graduada em Letras pela
Universidade Federal de São Paulo. Formada em dramatur-
gia pela SP Escola de Teatro, foi integrante da 11ª turma do
núcleo de dramaturgia do Sesi, é estudante de Letras Fran-
cês na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente em
processo criativo como dramaturgista no Teatro da Vertigem
com o espetáculo “Agropeça”.
175~
176~
176~

NOTA: ESTE É O ROTEIRO DE UMA DRA-


MATURGIA DE FICÇÃO PARA UM AUDIO-
DRAMA, PORTANTO, PENSADO PARA O
FORMATO DE ÁUDIO, APENAS.

Abate
~Daniel Veiga

sinopse~
Uma gravação em áudio K7 revela um breve fragmento
em que quatro mulheres estão diante de uma situação
crítica: o corpo do homem abatido por uma delas! É 2052
e o país vive uma teocracia neopentecostal. As ruas da
nação fervilham com os novos autos-de-fé importados
da santa inquisição, sessões de execução em massa pe-
los crimes contra o Estado. Por serem casadas, Tatiana
e Isabel fogem dos Ovelhas, novas forças milicianas, e se
refugiam no porão de Madalena, a antiga Reverenda do
regime. Ela garante ser uma desertora. No refúgio, Ta-
tiana se defende abatendo um Ovelha. A tensão aumen-
ta quando surge a misteriosa Teresa com seu ar estra-
nhamente calmo. Logo, helicópteros e cães anunciam que
elas estão cercadas.
TE
177~

A BA
178~

PERSONAGENS

Isabel
Tatiana
Madalena
Teresa
179~

INT. PORÃO DE MADALENA - NOITE (CENA ÚNICA)

O repentino PLAY de um gravador K7 começa abafado,


como é típico das gravações analógicas antigas.

Um TRECHO DE 30 SEGUNDOS DA MARCHINHA UPA! UPA! de


Dircinha Batista

A música é interrompida bruscamente, indicando que


a gravação original com a marchinha foi substituída
por outra gravação.

O SOM DA FITA RODANDO, capturando a BRISA E OS


GRILOS LÁ FORA.

As primeiras vozes invadem a gravação abafadas,


distantes, confusas.

ISABEL
(muito nervosa)
PUTA QUE PARIU! NÃO ASSIM,
TATI!NÃO DESSE JEITO, PORRA!

TATIANA
(igualmente nervosa)
E o que eu ia fazer!? Cê viu
como ele tava.

ISABEL
Era só ter gritado ajuda.

TATIANA
(indignada)
E berrar pra todo mundo a
nossa posição!?

O gravador K7 parece se movimentar em direção a


ISABEL e TATIANA e, conforme se aproxima, suas
vozes vão ficando mais claras.
180~

ISABEL
(tentando se acalmar)
Tá! Eu tô nervosa. Eu não
tô culpando você. Mas é que
agora...

TATIANA
Agora fudeu de vez! Cê acha
que eu não sei?

Um instante de breve silêncio de vozes em que se


sobressai o SOM DA FITA RODANDO NO PLAYER.

Um PROFUNDO SUSPIRO perto do gravador, certamente


da pessoa que o está segurando.

ISABEL
(abafado, para si mesma)
Caralho, caralho, caralho!

TATIANA
(para Isabel)
O que a gente faz agora?

UM PEQUENO BAQUE NO GRAVADOR K7, como se ele tivesse


sido deixado sobre algum móvel perto de nossas
personagens.

A partir de agora as vozes serão ouvidas com a


maior clareza permitida por uma gravação analógica
antiga.

ISABEL
(resoluta)
A gente precisa se livrar
dele. Não tem outro jeito.

TATIANA
Como cê acha que a gente vai
conseguir sair desse porão?
181~

Esses filhos da puta tão tudo


aí fora cercando a gente!

ISABEL
Se tivessem mesmo, isso aqui
já tinha sido invadido!

TATIANA
Vai arriscar?

ISABEL
O que eu sei é que se pe-
garem a gente perto desse
Ovelha morto, é execução na
certa. Sem dó nem piedade.

Mais um instante de pensativo silêncio.

ISABEL
(irritada, para Madalena)
E você? Vai ficar aí parada
só olhando?

TATIANA
Não precisa falar assim com
ela,Isabel.

ISABEL
Ela tá muito quieta nesse
canto, Tati.
(para Madalena)
O que você acha?

Ouvimos pela primeira vez a voz de MADALENA.

MADALENA
(vacilante)
Eu não sei. O que você quer
que eu fale?
(assume um tom calmo,
constatando)
O homem tá morto aí no chão.
182~

E quem matou foi a sua na-


morada. Ele é um policial e
isso é muito grave.

ISABEL
Ele NÃO é um policial.

TATIANA
É um Ovelha. É diferente.

MADALENA
Vocês acham que pra eles tem
diferença?

Um BARULHO LONGÍNQUO DE PORTA SE ABRINDO E DEPOIS


SE FECHANDO.

TATIANA
SÃO ELES!

MADALENA
Espera!

PASSOS no assoalho no andar de cima, bem acima do


porão.

ISABEL
(sussurrando)
Ele tá bem em cima da gente.
Parece que é só um.

Mais PASSOS indo e vindo.

TATIANA
(sussurrando)
Eles sabem que a gente tá
nesse porão.

MADALENA
(resoluta)
Não são eles.
183~

TATIANA
Como você sabe?

MADALENA
Escuta.

A pessoa no andar de cima parece estar revirando


coisas de cozinha: LATAS VIRADAS, PORTAS DE ARMÁ-
RIOS SE ABRINDO E FECHANDO, TALHERES SENDO MEXI-
DOS DENTRO DA GAVETA, POTES SENDO ABERTOS etc.

TATIANA
O que tem aí em cima?

MADALENA
A cozinha.

ISABEL
Ele tá revirando sua cozinha?

TATIANA
Por que um Ovelha faria
isso? Ele vai descobrir a
gente, vai descobrir o corpo
do amigo dele. A gente tá
fodida, Isabel!

ISABEL
Calma! Ele deve tá procuran-
do alguma coisa. Quê que ele
tá procurando, Madalena?

MADALENA
Só pode ser comida, o que
mais seria?

ISABEL
Por que um Ovelha ia tá pro-
curando comida na casa de
uma Reverenda!?
184~

MADALENA
EX-Reverenda!

TATIANA
Só se for um desgarrado.

MADALENA
Ou se não for um Ovelha.

MAIS BARULHO NA COZINHA SENDO REVIRADA.

ISABEL
(desconfiada)
Madalena, cê sabe quem tá aí
em cima?

MADALENA
Eu desconfio.

ALGUÉM TENTA ABRIR A MAÇANETA DA PORTA DO PORÃO.


O som vem lá de cima da escada, um pouco longe do
gravador.

TATIANA
Ele tá tentando entrar.

ISABEL
(para Madalena)
Faz alguma coisa! A casa é
sua.

PASSOS DE MADALENA SE AFASTANDO.

UM POUCO LONGE, ELA PEGA UMA CAIXA, ABRE, TIRA


ALGO DE DENTRO.

ISABEL
(para Madalena)
Por que cê não falou antes
que tinha isso?
185~

MADALENA
(voz se aproximando de novo)
Por que eu não vi necessidade.

Volta o som da MAÇANETA DO PORÃO SENDO FORÇADA.

MADALENA
Seja quem for, pode entrar
que eu tô preparada.

SOM DE UMA ARMA DE GRANDE PORTE SENDO ENGATILHADA.

Mais um momento tenso em que só escutamos o RESPI-


RAR OFEGANTE DAS TRÊS, A FITA RODANDO NO GRAVADOR
e, lá longe, a MAÇANETA TENTANDO SER ABERTA.

Os sons parecem crescentes, as respirações cada vez


mais tensas conforme a porta do porão é forçada.
Até que...

TERESA
(lá de cima, do lado de fora da
porta)
Reverenda?... Reverenda?...
Eu sei que você tá aí? Sou eu!

MADALENA
Merda!

SOM DA ARMA SENDO DESENGATILHADA.

TATIANA
Quem é essa? Por que ela tá
te chamando de reverenda?

MADALENA
Certos hábitos são difíceis
de perder. Eu não posso dei-
xar ela lá em cima.
186~

Som de MADALENA SUBINDO AS ESCADAS, ABRINDO A PORTA


DO PORÃO E FECHANDO RAPIDAMENTE.

ESCUTAMOS AS DUAS MULHERES NO ALTO DA ESCADA PERTO


DA PORTA COCHICHANDO. É impossível identificar o que
estão falando.

Enquanto isso, COCHICHANDO perto do gravador:

TATIANA
O quê que elas tão falando?

ISABEL
Eu não tô conseguindo ouvir.

TATIANA
A gente não pode confiar nes-
sa mulher, Isabel. Mesmo que
ela não seja mais uma Reve-
renda, ela já foi um dia e
isso diz muita coisa.

ISABEL
É ela ou os Ovelhas lá fora,
Tati. Pelo menos, aqui den-
tro somos duas contra duas.
Vai naquela caixa lá, a que
ela mexeu, e vê se tem mais
alguma arma escondida.

PASSOS DE TATIANA SE AFASTANDO.

ISABEL
Rápido. Elas tão descendo.

TATIANA
(um pouco longe)
Não tem mais nada aqui.

ISABEL
Vem pra cá, anda!
187~

PASSOS de Tatiana se aproximando de Isabel.

TATIANA
Eu tô com medo, Isabel.

ISABEL
Calma, meu amor! Eu não vou
deixar nada acontecer com a
gente. Lembra o dia do nosso
casamento?

TATIANA
Como eu ia esquecer!?

ISABEL
A gente venceu muita coisa
pra morrer nesse porão. Eu
vou tirar a gente daqui!

PASSOS DE DUAS PESSOAS DESCENDO AS ESCADAS DO PO-


RÃO E SE APROXIMANDO DO GRAVADOR.

TERESA
(sorriso na voz)
Oizinho!
(súbita mudança: SURPRESA)
MADRECITA DE MI CORAZÓN!
Esse cara é o que eu tô pen-
sando que é? Ele tá morto!?

ISABEL
(acuada)
Quem é você?
Quem é ela, Madalena?

TERESA
Calma, anjo. Eu sou a Tere-
sa, sou amiga da Reverenda.
188~

MADALENA
(repreendendo)
Já disse pra você parar de
me chamar assim, Teresa.

TERESA
Tá! Já sei!
Mas, olha... Eu não sei qual
de vocês fez isso com esse
infeliz, mas tá de parabéns!
(palmas)
Coragem!

TATIANA
(gaguejando)
Ele já tava assim quando a
gente chegou.

TERESA
Não precisa mentir pra mim,
princesa.

ISABEL
(para Teresa)
O que cê tá fazendo aqui?
Hoje é dia de auto-da-fé.

TERESA
E daí?

ISABEL
Daí que só tem dois lugares
pra você tá hoje: enfurnada
dentro de casa ou na praça
pública com o resto dos car-
niceiros.

MADALENA
(para Teresa)
Por que você saiu de casa
hoje?
189~

TERESA
Porque acabou a comida, ué.
E vim pegar alguma coisa.
EMPRESTADA. Pra te devolver
no mês que vem. Ah, Mada-
lena! Eu imaginei que você
ia tá no centro com os-- os
outros.

ISABEL
Os carniceiros.

TATIANA
(para Madalena)
Você não disse que não é
mais reverenda? Por que você
ainda vai em auto-da-fé, Ma-
dalena?

TERESA
(sarcástica)
É que certos hábitos são di-
fíceis de mudar.

MADALENA
(repreensiva)
Teresa!

TERESA
Que foi!? É você que vive
dizendo isso, caramba.

ISABEL
Responde a gente, Madale-
na. Por que você ainda vai
em execução pública se não é
mais obrigada a participar?

AO LONGE, LÁ FORA, UM PASTOR ALEMÃO LATE.


190~

MADALENA
Shhhhh!

Silêncio sepulcral e só o som da FITA RODANDO NO


TAPE DECK COM O LATIDO AO FUNDO.

ISABEL
(sussurrando)
E sua amiga, Madalena? Ela
também não tem celular?

MADALENA
(sussurrando)
Claro que não.

TERESA
(sussurrando)
Quem ainda tem celular em
2052!? Só se eu fosse do
governo.

O LATIDO continua por mais alguns segundos, forte,


mas logo começa a se afastar até sumir.

TATIANA
Tão ouvindo?

TERESA
Claro que sim.

TATIANA
Não o cachorro. Escuta!

Mais um momento de silêncio em que as quatro mu-


lheres se concentram e logo escutam, bem baixo,
muito distante, O DÉBIL SOM DE UM HELICÓPTERO.

TATIANA
(firme)
A gente tem que sair daqui
AGORA!
191~

MADALENA
Você sabe o que eles vão fazer
com a gente?

TERESA
A gente quem!? Eu não faço
ideia de quem são vocês duas.
Aliás, se eu soubesse o que
ia encontrar caído nesse
chão, jamais tinha descido
nesse inferno de porão.

ISABEL
Você desceu porque quis!

TERESA
Eu desci porque ouvi um
barulho e queria saber se a
reverenda tava bem.

ISABEL
(sarcástica)
“Saber se a reverenda tava
bem.” Sei!

TERESA
Isso mesmo! Saber se ela
tava bem SIM. Aliás, qual é
a sua, hein!? Quem são vo-
cês que eu nunca vi por aqui
e desde que eu desci essa
escada tão me enchendo de
pergunta!? Quem fez a merda
aqui não fui eu!

MADALENA
(acalmando)
Teresa, tá tudo bem!

TERESA
A senhora me desculpa, mas a
192~

última coisa que a gente tá


aqui é bem. Quem são elas,
reverenda?

MADALENA
(firme)
EU JÁ DISSE QUE NÃO SOU MAIS
REVERENDA!

Um breve momento de silêncio constrangedor.

MADALENA
Para de me chamar assim,
Teresa. Por favor.
(respira fundo)
A Isabel e a Tatiana tavam
no campo fugindo de três
Ovelhas quando elas aparece-
ram no terreno.

TERESA
(provocativa)
E tem algum motivo pra elas
serem perseguidas?

TATIANA
Você acha que tem motivo que
justifique essa loucura!?

MADALENA
Elas são casadas.

ISABEL
E vamos continuar assim!

MADALENA
Eu não podia negar abrigo
pras duas. Você sabe muito
bem disso. Não foi isso que
eu fiz com você há dois anos?
193~

TERESA
(amena)
Sim, senhora.
Mas e esse cara?

ISABEL
Enquanto a gente corria os
três desgraçados se separaram.

TATIANA
Eles são tão seguros da
força e do poder que esse
governo fascista dá que
acharam que só um deles
daria conta de nós duas.

TERESA
Pelo jeito, o que alcançou
vocês não era forte e nem
poderoso.

TATIANA
Como nenhum deles é sozinho!

ISABEL
Desgraçado!

MADALENA
O fato é que ele conseguiu
alcançar a Tatiana e atacou
ela.

ISABEL
“Quase estuprou”, você quis
dizer.

TATIANA
Eles não se contentam em
matar. Têm que destruir a
gente antes.
194~

ISABEL
Mas a Tati é esperta. E mais
forte do que parece.

TATIANA
Eu jamais vou deixar um des-
graçado desses tocar em mim.
Eu morro lutando.

TERESA
Sinto muito que vocês tenham
passado por isso, mas eles não
vão deixar isso barato. E a
gente que não tem nada com isso
vai se foder junto.

ISABEL
A gente não queria envolver
mais ninguém nisso.

MADALENA
Agora já aconteceu.

TATIANA
Madalena, você acha que--

A FITA FAZ UM ESTRANHO BARULHO, COMO SE ESTIVESSE


EMBOLADA, TALVEZ MOFADA NESTE TRECHO. UMA DISTOR-
ÇÃO E PARTE DO TEMPO SE PERDE.

A FITA RETOMA À NORMALIDADE E O QUE SE OUVE É AS-


SUSTADOR: NÃO UM, MAS DIVERSOS PASTORES ALEMÃES
RAIVOSOS, UM HELICÓPTERO MUITO PERTO SOBREVOANDO
A CASA.

AS QUATRO MULHERES GRITAM AO MESMO TEMPO COISAS


COMO:

AS QUATRO
A gente tá morta; Alcançaram
a gente; Eles não vão pegar
195~

a gente viva; A gente tem


que dar um jeito de sair
daqui; Acabou; Nem morta

E frases do tipo. Não se distingue direito quem


fala o quê.

A FITA EMBOLA NOVAMENTE E VOLTA A TOCAR O TRECHO


CURTÍSSIMO DE OUTRA MARCHINHA: A MULATA É A TAL.

A marchinha volta a ser interrompida e voltamos ao


tenso porão:

ESTAMPIDO DE TIRO. UM GRITO DE TERESA. Ela muda o


tom completamente, perdeu o ar leve e cômico.

TERESA
(desesperada)
POR QUE VOCÊ FEZ ISSO!?

ISABEL
(agitada)
Você viu! Ela veio pra cima
da gente.

TERESA
(chamando)
Madalena! ... Madalena! Fala
comigo.

TATIANA
(apaziguadora)
Abaixa isso, Isabel. Pode
abaixar.

TERESA
(continua)
REVERENDA!

A TOSSE DE MADALENA.
196~

TERESA
Reverenda, tá tudo bem?

Madalena se esforça para se levantar.

MADALENA
(retomando o fôlego)
Eu tô bem!

TERESA
Seu braço tá sangrando.

MADALENA
Não foi nada. Um cego mira
melhor que essa filha da
puta!

TATIANA
(assustada)
ABAIXA ESSA PORRA, ISABEL!

ISABEL
(para Tatiana, ofegante)
Cê viu ela vindo pra cima da
gente.

TATIANA
Isabel!

ISABEL
(desesperando)
Você viu! DIZ QUE VOCÊ VIU!

TATIANA
Isabel!

ISABEL
Ela veio pra cima da gente.
197~

TATIANA
(irritadíssima, num grito)
PARA COM ISSO!!!

TERESA
SOLTA ESSA ARMA!

ISABEL
Pra vocês atacarem a gente!?

TERESA
Ninguém aqui atacou ninguém.

ISABEL
É você que tá dizendo.

TERESA
É isso que eles querem que
a gente faça, sua estúpida.
Você não vê!? Eles vão dar
cabo de nós quatro sem
precisar mover um músculo.

TATIANA
Ela só tá assustada!

TERESA
(irritada)
E é justo que eu morra por
isso!? Você não tem ideia
do que eu passei pra ter um
pouco de paz hoje em dia!
Ou vocês acham que só vocês
passaram por alguma coisa
ruim!? Ter que fugir da pró-
pria casa no meio da noite,
sem agasalho, sem sapato,
sem comida, sem rumo... Não
poder confiar em ninguém, nem
mesmo em quem oferecesse o
pão que podia matar a fome.
198~

Se esgueirar pela cidade


feito um fantasma, ficar à
mercê do azar! Vocês SABEM o
que é ficar à mercê do azar.
Agora sabem. Hoje aconte-
ceu com as duas. E agora que
é com vocês, vocês estão
dispostas a levar a gente
junto, talvez até nos entre-
gar pra poder se livrar!? É
isso?

TATIANA
É claro que não! A gente
jamais faria isso com quem
nos ajudou quando a gente
mais precisava.

TERESA
Você? Talvez. Mas ela...

ISABEL
Não se aproxima de mim!

TATIANA
Isabel, abaixa essa arma,
por favor.

MADALENA
Vai embora, Isabel! Bota
logo um fim nisso. Eu já te
mostrei a saída.
(SUSPENSE)
Minha parte no acordo foi
cumprida.

TATIANA
Do que ela tá falando, Isabel?

MADALENA
Você acha que vocês vieram
parar aqui por acaso,
mocinha?
199~

TATIANA
Isabel, do que essa mulher
tá falando?

ISABEL
Ela é louca, Tatiana!

MADALENA
Essa é a sua desculpa?

ISABEL
Eu não tenho nada com você.
Nunca te vi antes.

MADALENA
Fale o que quiser... Minha
parte no nosso acordo tá
cumprida. Você já sabe como
sair daqui segura com a tua
mulher. Só não tem por que
nos ferir, a mim e à Teresa.

TATIANA
(irritadíssima)
Que porra é essa!?

ISABEL
Essa mulher tá manipulando a
gente. Ela quer te colocar
contra mim.

TERESA
Por que a Madalena faria
isso?

ISABEL
Eu não sei que tipo de gente
são vocês.
200~

MADALENA
Mas eu bem desconfio que tipo
de gente você é, Isabel. O
tipo que sempre teve tudo
de mão beijada. O tipo que
conseguiu se safar por mui-
tos anos vendendo a alma pro
diabo. E você, Tatiana? Nun-
ca se perguntou como vocês
conseguiram ficar tanto tempo
juntas dentro de um governo
como esse? Isso nunca passou
pela sua cabecinha? Só agora
vocês foram perseguidas!?
Assim, de repente, do nada?

ISABEL
CALA A BOCA!

TATIANA
Como ela sabe tanto da gente?

ISABEL
Sabe o quê!? O que que ela
sabe? Ela não disse nada
concreto sobre a gente,
NADA.

TERESA
Ela disse o suficiente.

MADALENA
Vai embora e leva a tua
mulher daqui! Mas deixa a
gente em paz. Eu fiz o que
pude.

ISABEL
Você ainda é uma reverenda,
não é? Fala a verdade! Você
201~

quer enfraquecer a gente.


Quer que a gente brigue e se
separe pra ficar mais fácil
pra eles. O único acordo que
você deve ter é com os Ove-
lhas lá fora.

MADALENA
Eu não entendo por que é tão
difícil pra você admitir que
nós temos um acordo, Isabel.
O fato de vocês estarem aqui
já é uma evidência. Vocês
estão tão longe de casa e
vieram parar justamente aqui,
na casa de uma desertora que
lhes poderia dar abrigo, uma
casa com um porão, estrate-
gicamente construída no meio
do nada, com uma saída e com
uma arma.

ISABEL
(cada vez mais acuada)
A ARMA É SUA!

MADALENA
Mas olha só que ironia: ela
está nas suas mãos!

TATIANA
Isabel, fala a verdade!

ISABEL
(se desesperando)
Eu tô dizendo a verdade.
Você tem que acreditar em
mim!
202~

TATIANA
Se você conhece essa mulher,
me fala. Eu não vou ficar
brava. Que acordo é esse?

ISABEL
NÃO TEM ACORDO NENHUM, PORRA!

TATIANA
Se ela te falou onde é a
saída, vamos embora. É só
deixar elas pra trás.

ISABEL
Você acha que, se eu soubes-
se onde é a saída, a gente já
não tinha ido embora desse
lugar maldito!?

TERESA
A menos que você queira mais
alguma coisa da Madalena!
Uma coisa que só ela tenha.

ISABEL
Vocês tão juntas nisso, não
tão?

TERESA
Isso o quê? Eu já disse:
nunca vi você e sua mulher
na minha vida.

ISABEL
Você admite. Tá vendo, Ta-
tiana?

TERESA
Mas eu quase nunca vejo as
pessoas que fazem acordos
com a Madalena, então...
203~

ISABEL
(com raiva)
Eu vou matar vocês duas!

TATIANA
Você não vai matar ninguém!
Vamo embora, Isabel, por favor!

ISABEL
Elas tão mentindo! Pra con-
fundir a gente.

TATIANA
Isso não importa mais! Não
tem mais helicóptero lá
fora. Nem cachorro. É a
nossa melhor chance. Nem que
seja pela porta da frente.

MADALENA
Pra que arriscar quando a
Isabel já sabe onde fica a
saí--

ISABEL
(cortante, como se visse algo
novo)
Que porra é essa?

TATIANA
Do que cê tá falando?

ISABEL
Ali, no canto da mesa.

PASSOS APRESSADOS SE APROXIMAM DO GRAVADOR.

A VOZ DE ISABEL GANHA VOLUME, MUITO PRÓXIMA DO


GRAVADOR.
204~

ISABEL
Tá ligado.

TATIANA
(um pouco mais longe, no
volume que estava até então)
O que tá ligado?

ISABEL
Essa merda aqui. Eu tô reco-
nhecendo. Minha bisavó tinha
um desses. É um gravador
antigo.

TATIANA
Isso tem mais de setenta
anos. Não deve tá funcionando.

ISABEL
Tá sim. Tá ligado!

MADALENA
Pra minha proteção, caso nos
pegassem.

TATIANA
Pra sua proteção ou pra nos-
sa delação?

ISABEL
Eu não disse, Tatiana!?

TATIANA
Desliga essa merda.

ISABEL
Eu não sei como.

TATIANA
Joga no chão, pisa em cima,
destrói essa porra, Isabel!
205~

MADALENA
NÃO FAZ ISSO! POR FAVOR,
NÃO FAZ ISSO! É minha única
segurança, a única coisa que
garante--

TATIANA
Que te garante o quê!? Você
grava esses acordos? É isso?
Pra que você grava isso? É
pro governo? Pros OVELHAS!?

TERESA
Você devia é perguntar onde
tá a gravação do acordo com
a Isabel.

ISABEL
Não tem gravação nenhuma
porque não teve acordo ne-
nhum, sua filha da puta!

MADALENA
Eu tenho sim. Tá lá em cima.
Num lugar escondido.

ISABEL
Você é louca!

TERESA
Eu posso pegar pra você.

ARMA ENGATILHANDO.

ISABEL
NÃO! Ninguém sai daqui. Não
tem gravação nenhuma. Você
quer sair daqui pra delatar
a gente.

SOM DE VIDRO QUEBRANDO.


206~

GRITARIA, MAS SÓ ENTRE AS QUATRO MULHERES.

UM TIRO ECOA NO AR. MAIS GRITARIA.

ISABEL
(desesperada e repetidamente)
VAI EMBORA! SAI DAQUI!

OUTRO TIRO ECOA.

TATIANA GRITA.

ISABEL
(voz entorpecida)
Me desculpa, meu amor. Me
desculp--

A Fita é invadida pela música NOITE CHEIA DE ESTRE-


LAS, de Vicente Celestino

A MÚSICA É BRUSCAMENTE INTERROMPIDA PELO BOTÃO DE


STOP DO GRAVADOR K7.

FIM

__________
Daniel Veiga
Dramaturgo, ator e roteirista. Entre 2019 e 2020 foi o pri-
meiro docente homem trans no curso de Dramaturgia da
SP Escola de Teatro, mesmo curso onde se formou em 2016.
Também passou pelos Núcleos de Dramaturgia da ELT em
Santo André e do SESI em São Paulo.
207~
208~
208~

Girô
~Lucas Moura

sinopse~
Uma roda-gigante gira, quase vazia. Apenas uma cabine
está ocupada: nela estão Nani, uma mulher negra de 35
anos, e sua filha, de 15. Nani é enfermeira, trabalhou
durante os dois anos de pandemia num hospital. Mal
teve tempo de ver crescer a filha nesses dois anos. Hoje,
em seu primeiro dia de férias, ela, que não pôde se isolar,
busca refúgio no silêncio e no carinho da pequena. Nani
quer ver a cidade do alto com sua filha, mas sua cabine
é invadida por uma quantidade enorme de pessoas de
quem ela cuidou nestes dois anos, e a roda-gigante para.
209~

GIR
Ô
210~

PERSONAGENS

Nani
Uma única personagem, mas nela várias vozes de tantas ou-
tras e outros. Nani tem 35 anos, mas nesses poucos anos foi
responsável por ninar isolados e assustados e esquecidos
e feridos e tantos outros. Nani é filha de Nanã, e na lama de
seus braços recentemente pousaram dois anos de confusão.
Ela é acúmulo, carrega esse peso, ela mesma está imersa em
si. Mas Nani busca respiro.

A filha
Ela é um espectro, um eco, ela é a sombra da mãe.

*Os áudios devem transitar entre a orelha esquerda e a


direita e por vezes permanecer ao centro (ambas). A posi-
ção do áudio será mencionada antes das falas com E (es-
querda), D (direita) ou C (centro), dando a noção de uma
roda que gira (Isso poderá ser feito na automação de PAN
ou, se possível, no momento da captação).
211~

Vírgula Sonora:
Som de vento e máquina enferrujada.

Sobreposição de áudio:
Respiro fundo de Nani.

Vírgula Sonora:
Som de vento.

Sobreposição de áudio:
Tossidas de Nani

Áudio de abertura:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas
refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de
hoje, as experiências do passado. A memória não é so-
nho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevi-
vência do passado “tal como foi”, e de como se dá no in-
consciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam
nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça
a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma ima-
gem que experimentamos na infância ou no momento
acontecido, porque nós não somos os mesmos de en-
tão e porque nossa percepção alterou-se e, com ela,
nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O
simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a
identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe
a sua diferença em termos de ponto de vista.

(Trecho de “Memória e sociedade” de Ecléia Bosi)


212~

INT. CABINE DA RODA GIGANTE — NOITE

Vírgula Sonora:
Som de máquina enferrujada

Cama sonora:
Som de risada de criança, gritos,
falação, música de carrossel.

D
Áudio de Nani:
Lá vai a cidade… bela e calma e ardil.
Como uma criança de colo doente: silenciosa, mas
febril.

Áudio da filha:
Lá vai a cidade, lá vem, lá foi, lá volta.

Áudio de Nani:
Velha pra tanto baque, mas pra tanta morte: nova.

Áudio da filha:
Quantas voltas essa roda ainda pode dar, mãe?

Áudio de Nani:
Só tem a gente aqui, então eu pedi pra que a gente
ficasse até a hora de fechar o parque.

Áudio da filha:
Né muito tempo rodando, não? A gente vai ficar
tonta.
213~

Áudio da mãe:
(ri) É nada. Tonta eu já tava antes… estonteada.

Áudio da filha:
Pra que a gente veio aqui?

C
Áudio da mãe:
Pra eu poder desligar e te ouvir.

Áudio da filha:
Desligar o quê?

Áudio da mãe:
A cidade…
A cidade não cala. Eu sou a cidade.
Eu precisava calar a cidade no meu peito,
de algum jeito, e eu…

Áudio da filha:
A cidade não tá desligada.

Áudio da mãe:
Mas daqui de cima é possível, e se a gente imagi-
nasse que tava?

Virgula sonora:
Som de energia desligando.
Alguns barulhos da noite surgem,
como o som de grilos.

Cama sonora sai bruscamente.


214~

Áudio de Nani:
Do alto, o breu, um palco.

Áudio da filha:
O que você imagina?

Áudio de Nani:
Ah, minha menina, o que eu imagino?
Nesse palco, uma dança destrambelhada onde os
dançarinos
São os senhores e senhoras da ala em que eu
cuidava
Com seus andadores e bengalas

Áudio da filha:
Lá do hospital?

E
Áudio de Nani:
Sim.

Áudio da filha:
E sobre o que é a dança?

Áudio de Nani:
A dança é triste, mas fala de esperança
Dos amores que não viveram
Dos amores que deixaram
Das memórias que se perderam
O saldo de uma vida:
um rodopio, um giro feliz.
215~

Áudio da filha:
Tá sentindo saudade de lá, mãe?

Áudio de Nani:
Não, filha.

Áudio da filha:
Tá com cara de saudade, tá sentindo saudade de quê?

Áudio de Nani:
De não ser uma falha com você.

Áudio da filha:
Tá com cara de saudade, tá sentindo saudade de
quê?

Áudio de Nani:
De acordar sem ver gente morrer.

Áudio da filha:
Tá com cara de saudade, tá sentindo saudade de
quê?

Áudio de Nani:
Do café.

Áudio da filha:
É? A gente pode ir tomar café lá no hospital um dia,
se você quiser, sei que você tá de férias…

C
Áudio de Nani:
Não… A saudade do café espera, mesmo que a
cidade do café não pare.
216~

Virgula sonora:
Respiro fundo de Nani sopra o som
da cama sonora de volta em fade in.

Áudio da filha:
É bom ser enfermeira, mãe?

Áudio de Nani:
No meio de uma pandemia?

Áudio da filha:
É bom ser enfermeira, mãe?

Áudio de Nani:
No meio de uma guerra?

Áudio da filha:
É bom ser enfermeira, mãe?

Áudio de Nani:
Onde não respeitam velhos, nem pobres, nem
pretos, nem velhos, nem pobres pretos, nem pretos
velhos, nem velhos pobres, nem mulheres pobres
pretas velhas, na pandemia, na guerra, na fuga,
na sala de espera, na rua, na pista pro vôo do fim,
assim, como se não fosse todo momento fim e
começo, como se agora um mundo não tivesse
acabando e nascendo outro, como se o pouco
caso com quem precisa não fosse voltar pra quem
pouco fez, das seis às seis o turno, dos seis dias
férias, no sucateamento de verba, uma senhora
que nem podia ver o filho e eu sem ver a minha
pequena crescendo na beira.
217~

Áudio da filha:
Mãe, é bom ser enfermeira?

D
Áudio de Nani:
Sim. É uma profissão muito digna.

Áudio da filha:
Vou ser também.

Áudio de Nani:
Não. Imagina!

Áudio da filha:
Por que você escolheu aqui?

Áudio de Nani:
Não vai, tá? Não precisa.

Áudio da filha:
Por que aqui nesse parque?

Áudio de Nani:
Vai ser cantora, atriz, dançarina.

Áudio da filha:
Porque aqui nessa roda-gigante?

Áudio de Nani:
Não. Não precisa, vai ser atriz, dançarina, imagina!
218~

Áudio da filha:
Nesse parque que quase ninguém vem assim tão
tarde.
Nessa rua que quase ninguém passa assim tão
vazia.

Áudio de Nani:
Eu queria… Silêncio. Ficar sozinha. E espaço. E ficar
sozinha. E tempo.

Áudio da filha:
Então por que você me trouxe?

Áudio de Nani:
Porque sozinha não posso, eu tento. Mas, no en-
tanto, penso.
Penso, logo penso, logo penso, logo penso.
Nunca existo.
Morro talvez, aí: logo: não penso, aí: talvez:
acho bonito existir.

C
Áudio da filha:
Você existe, mãe. Vamos sair daqui.

Áudio de Nani:
Eu existo? Eu, Nani, pele preta, dentes claros, roupa
clara, conta cara, pés rachados, pêlos desfeitos,
medos refeitos a toda manhã, eu roupa cor de por-
celana, rachada por dentro, pele preta, olhos fun-
dos, enroscada nos ponteiros do mundo, eu existo?
219~

Áudio da filha:
Você tem 35 anos, mãe?

Áudio de Nani:
Eu sessenta, eu setenta e dois existo? Eu oitenta,
eu noventa e três existo?

Áudio da filha?
35, né?

Áudio de Nani:
E cinco… Quase seis. Você fez treze?

Áudio da filha:
Quinze.

Áudio de Nani:
Não pode ser que tenha quinze. Treze!

Áudio da filha:
Quinze e tantos medos, mãe. Quase dezesseis.

Áudio de Nani:
Quando foi que fez?

Áudio da filha:
Esqueceu o dia, Dona Nani? Fiz quinze faz

Áudio de Nani:
Não, treze.
220~

Áudio da filha:
Ah… Antes da pandemia.

Áudio de Nani:
Quê?

Áudio da filha:
Foi naquele dia que caiu o copo e o caco entrou no
meu dedo e aí uma corrente de ar veio e eu achei
que era gripe, mas a tosse foi aumentando e aí de
repente estamos em que ano? E logo sem escola
e a vida ficou mais legal, mas aí naturalmente você
tava no hospital e eu comecei a estudar pra ser
enfermeira, eu pego meu diploma sexta-feira.

Áudio de Nani:
Quê? Quantos anos você disse que tinha?

Áudio da filha:
Vinte e três.

Áudio de Nani:
O que aconteceu?

Áudio da filha:
A gente se descuidou, não tinha camisinha.

Áudio de Nani:
O que você fez?

Áudio da filha:
Nasce daqui um mês.
221~

Áudio de Nani:
O que você tá falando, menina?

E
Áudio da filha:
Imagina, mãe, seu netinho indo pra escola, começa
semana que vem.

Áudio de Nani:
Para essa roda! Parem agora! Agora!

Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo.
Vento forte.

Áudio da filha:
Mãe? Tá tudo bem?

Áudio de Nani:
Quantos anos você tem?

Áudio da filha:
Quinze. Amanhã é meu aniversário.

Áudio de Nani:
Filha… Me dá um abraço?

Áudio da filha:
Claro.

Áudio de Nani:
Eu não estava lá, não é? Eu não estive nesses dois anos.
222~

Áudio da filha:
Como assim, mãe?

Áudio de Nani:
Muita coisa poderia ter acontecido, você poderia
ter morrido, poderia ter sumido, poderia ter se apai-
xonado, poderia ter ficado grávida.

Áudio da filha:
Mas, mãe, você tava.

Áudio de Nani:
Tava?

Áudio da filha:
Eu conheci alguém… Lembra?

Áudio de Nani:
Lembro.

Áudio da filha:
E eu te apresentei, lembra?

Áudio de Nani:
Lembro.

Áudio de filha:
Mas eu não tô grávida. Ele ama sua comida, ama a
lasanha que você faz quando chega na sexta-feira
em casa.

Áudio de Nani:
Eu lembro de tudo, desses dois anos, mas eu…
tava?
223~

Áudio de filha:
Em cada gesto e palavra, em cada aprendizado e
prova, sempre carinhosa, um pouco teimosa, não
quer tirar nunca o uniforme, come com ele, toma
banho, dorme…

Áudio de Nani:
Eu… É que se eles me chamam

Áudio de filha:
Sim, eu sei, você corre.

Áudio de Nani:
Eu te comprei um presente… de aniversário.

Áudio da filha:
Comprou?

Áudio de Nani:
Sim… Tá aqui.

Áudio da filha:
Deixa eu ver!

Áudio de Nani:
Vê.

Áudio da filha:
Mãe! Eu amei, um respirador!

Áudio de Nani:
Não!
224~

Áudio da filha:
Uma maca?

Áudio de Nani:
Não!

Áudio da filha:
Mãe… Eu não esperava… É lindo.

Áudio de Nani:
Você gostou?

Áudio da filha:
Sim, eu vou usar sempre.

Áudio de Nani:
Me faz lembrar a gente.

Áudio da filha:
Eu nunca vou esquecer.

Áudio de Nani:
Vem cá…

Áudio da filha:
Eu te amo.

Áudio de Nani:
Eu sinto muita culpa.

Áudio da filha:
Eu te amo.
225~

Áudio de Nani:
Eu sinto muita

Áudio da filha:
Eu te amo.

Áudio de Nani:
Eu sinto.

Áudio de Nani e filha:


Eu te amo.

Áudio de Nani:
Filha, quando eu ficar velha

Áudio da filha:
Tem muito tempo ainda.

Áudio de Nani:
Espera. É sério. Quando eu ficar velha, me coloca
em algum lugar, me deixa ser cuidada em algum
lugar e vai viver sua vida, com seus filhos, suas
filhas.

Áudio da filha:
De jeito nenhum.

Áudio de Nani:
Mas é um favor.

Áudio da filha:
Negado. Você deu tanto cuidado, vai precisar ser
cuidada.
226~

Áudio de Nani:
No Brasil, quando você envelhece, vira brasa e
some, menina. Os olhos não te enxergam mais. Eu
vi acontecer.

Áudio da filha:
Você vai envelhecer sorrindo do meu lado.

Áudio de Nani:
Você parece tão madura… tão mais velha que a
sua idade.

Áudio da filha:
Eu aprendi a me cuidar nesse tempo, mãe.

Áudio de Nani:
Que tempo?

Áudio da filha:
Nesses… dois anos?

Virgula sonora:
Sons de hospital, aparelhos,
macas, ambulância.

Sobreposição de áudio:
U ma p ro fu são d e voze s f alam
“ B o m d i a Do na, N ani”

Áudio de Nani:
O que eles tão fazendo aqui?

Áudio da filha:
Eles quem, mãe?
227~

Áudio de Nani:
Os pacientes!

Áudio da filha:
Não tem ninguém aqui.

Áudio de Nani:
Deve ser urgente!

Áudio da filha:
Mãe, se acalma!

Áudio de Nani:
Não vai caber aqui, eles deviam estar em outra ala!
Esses pra UTI, aqueles pra pediátrica, não vai dar,
vai cair a cabine, vai quebrar a roda, vai parar a ala,
vai faltar oxigênio, vai faltar maca!

Áudio da filha:
Calma, mãe! Respira agora! Eu sei o que tá aconte-
cendo com a senhora! Isso é ansiedade! É quando
um tempo largo demais tenta passar por um tubo
fino demais que liga a cabeça ao coração, e os
dois, cabeça e coração, ficam por um tempo sem
tempo. Você precisa de ar, mãe, precisa de tempo.

Áudio de Nani:
Alguém gira essa roda!

Áudio da filha:
Calma, mãe!
228~

Áudio de Nani:
Gira! Gira rápido!

O áud i o tran si ta rap i dament e


e n t re E , C e D d u ran te a próxima
V i rg u l a S onora.

Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo.
Vento forte.
Canto de Nanã cantarolado.

C
Áudio de Nani:
Mãe? Reconhece o lugar?

Áudio da mãe:
Não, minha filha, que lugar é esse?

Áudio de Nani:
Eu pedi pro moço pra que a gente só descesse
quando a gente quiser, tá só a gente na roda.

Áudio da mãe:
Eu não venho numa roda-gigante já faz muito tempo.

Áudio de Nani:
É, a senhora não lembra, mas eu me lembro. A
senhora me trouxe aqui quando eu tinha quinze
anos?

Áudio da mãe:
Ah, foi?
229~

Áudio de Nani:
Sim, era seu primeiro dia de férias.

Áudio da mãe:
Ah, era?

Áudio de Nani:
Você tava um pouco cansada, eu diria… Depois de
dois anos de pandemia.

Áudio da mãe:
Aquele tempo foi demais pra mim, mas no fim, no
fim… no fim… O que aconteceu no fim, filha?

Áudio de Nani:
O que realmente importa, mãe, é que naquele dia
eu decidi ser enfermeira. A senhora, eu não sei se
queria, mas eu tive certeza. Eu sempre tive orgulho
da sua profissão.

Áudio da mãe:
Não sei não… E deu certo pra você?

Áudio de Nani:
Deu… Isso eu posso dizer. E se você quer saber, lá
no hospital eles me chamam de Nani, em homena-
gem à senhora.

Áudio da mãe:
Mas você não sou eu, né, minha filha? Nem eu sou
você. Quem sou?
230~

Áudio de Nani:
Você é a Dona Nani.

Áudio da mãe:
E quem é você?

Áudio de Nani:
Dona Nani.

Virgula sonora:
Sons de hospital, aparelhos,
macas, ambulância.

Sobreposição de áudio:
U ma p ro fu são d e voze s f alam
“ B o m d i a Do na, N ani”

Áudio de Nani:
Volta essa roda! Eu quero descer!

E
Áudio da filha:
Calma, mãe! Respira agora! Eu sei o que tá aconte-
cendo com a senhora! Isso é ansiedade! É quando
um tempo largo demais tenta passar por um tubo
fino demais que liga a cabeça ao coração, e os
dois, cabeça e coração, ficam por um tempo sem
tempo. Você precisa de ar, mãe, precisa de tempo.

Áudio de Nani:
Volta essa roda! Eu quero descer!
231~

O áudio transita rapidamente


entre E, C e D durante a próxima
Virgula Sonora.

Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo. Ven-
to forte.
Canto de Nanã cantarolado.

C
Áudio de Nani:
Que lugar é esse?

Áudio da avó:
Oi, minha neta.

Áudio de Nani:
Vó?

Cama sonora:
Som de passos na lama.

Áudio da avó:
Vamo caminhá um bucado?

Áudio de Nani:
Onde eu tô? Aqui é o passado?

Áudio da avó:
Eu nem sei o que é isso, minha fia. Aqui é só o que é.

Áudio de Nani:
E como eu vim parar aqui?
232~

Áudio da avó:
Ué… E eu que sei?

Áudio de Nani:
Eu tava nesse mesmo instante na

Áudio da avó:
Sabia que vão construir uma roda-gigante aqui?
É um troço que arriba a gente lá no alto.

Áudio de Nani:
Que isso no seu colo, vó?

Áudio da avó:
A criança?

Áudio de Nani:
Sim.

Áudio da avó:
É você, acabou de nascer. Linda feito só. Sabe o que
eu gosto de fazer? Sussurrar no seus ouvido que
você vai ser dôtôra. Médica, enfermeira, professôra.
Neta minha
não vai depender de homem nenhum.

Áudio de Nani:
E a senhora é o que, vó?

Áudio da avó:
Eu? Eu sou só o que eu sou. Sou sua avó, sou mãe,
sou esposa e sou viva, minha fia, na pele que eu
233~

tenho isso não é lá carqué coisa. Sou viva. E sou


sonhadora, minha neta vai sê dôtôra.

Áudio de Nani:
Não te cansa, vó? Estar viva?

Áudio da avó:
Cansa cansa, mas a outra opção é ruim demais (ri).
Mas vai chegá um dia que eu vô sê melhor que viva,
eu vô sê memória.

Áudio de Nani:
Que que é ser memória, vó?

Áudio de Nani:
É sê só as parte boa, a não sê que você seja só parte
ruim. E sê memória igual sê viva porque a gente con-
tinua mudando as coisa. Minha neta vai sê dôtora.

Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo.
Vento forte.
A frase continua em eco
“minha neta vai sê dôtôra”.

D
Áudio da filha:
Quantas voltas essa roda ainda pode dar, mãe?

Áudio de Nani:
Quantas a gente quiser, meu bem, eu tô aqui só pra
ficar com você e descansar.
234~

Áudio da filha:
Tá muito cansada desses dois anos, mãe?

Áudio de Nani:
Foi como mergulhar na lama, meu amor, mas
agora eu vou respirar…

Áudio da filha:
Mãe…

Áudio de Nani:
Oi, meu amor.

Áudio da filha:
Sabe o que eu quero ser quando crescer?

Vírgula Sonora:
Som de máquina enferrujada
vai crescendo em fade in.

Cama sonora:
Som de risada de criança, gritos,
falação, música de carrossel.

Áudio de encerramento:
Enlameados os corpos reinventados, virados, des-
conhecidos, perdidos, desnorteados. À lama que
puxa e a memória lava, à lama que mergulha e a
memória guarda, à lama que não erra, que espera
e encerra toda dor, todo amor e toda reza, ofereço
essas poucas palavras, que são o que me cabe,
235~

muitas vezes o que me resta. Sei, não há mistérios


que a lama não leva, nem bem verdades que a
lama não saiba e todo excesso se encerra e toda
falta (seja de futuro, de perspectiva ou de alma)
um dia acaba.

Virgula sonora:
S o m d e r e s p i r o f u n d o b u s c a n d o a r.

__________
Lucas Moura
Contemplado com o Prêmio Solano Trintade para Drama-
turgias Negras, Prêmio Zé Renato (2020) e Edital Drama-
turgias do Tempo do TUSP (2021). Como podcaster, foi
um dos vencedores do edital “Sound Up Brasil”, do Spotify,
que premiou 20 podcasters negros e indígenas brasileiros. É
autor do podcast “Calunguinha, o cantador de histórias”.
Sobre o projeto audiodrama

O podcast Audiodrama foi criado em 2019 por Diego


Cardoso com o intuito de ser um espaço de debate e difusão da
dramaturgia por meio do podcast. Até o final de 2021, foram pro-
duzidas duas temporadas, cujos episódios continham entrevistas
com autores e autoras contemporâneos e, no final da segunda
temporada, experimentações com gravação e sonorização de peças
curtas.
No ano de 2023, a experiência da produção do audio-
drama se desdobrou com um projeto contemplado pelo ProAC para
a criação de uma temporada de dramaturgias escritas especifica-
mente para o formato do podcast, com o objetivo de investigar as
peculiaridades e os modos de uma escrita cuja recepção é mediada
pelo áudio. Este livro é parte desse projeto.
Sobre a editora efêmera

Formada por dramaturgos brasileiros, a editora efêmera


é uma editora independente especializada na publicação de peças
teatrais. Por isso, tem como premissa manter uma busca constante
por formas e linguagens que possam tecer vínculos entre o teatro
e o livro, valorizando o texto dramatúrgico e, ao mesmo tempo,
provocando a imaginação de quem o lê.
Focada em apoiar e promover a leitura, circulação e produ-
ção de textos teatrais brasileiros contemporâneos, especialmente
de novos autores, desde sua criação em 2019, a editora efêmera
lançou duas chamadas de originais e já publicou obras de autores
e temas diversos, a maior parte sem apoio financeiro de qualquer
tipo, mesmo durante a pandemia.
São Paulo
2023

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