Silêncio Ruído - Audiodrama
Silêncio Ruído - Audiodrama
Silêncio Ruído - Audiodrama
Silêncio ruído
@editoraefemera
Vários autores.
ISBN 978-65-999133-2-7
23-148753 CDD-B869.2
Índices para catálogo sistemático:
Realização:
este livro é parte do
projeto ‘Audiodrama:
dramaturgias para
podcast’.
115~ Mito
~Diego Cardoso
176~ Abate
~Daniel Veiga
208~ Girô
~Lucas Moura
MUDA ESSA
HISTÓRIA!
~Marici Salomão
9~
Oito vozes.
Oito singularidades.
Infinitas potências!
Como coordenadora de cursos e núcleos de
fomento às novas dramaturgias, tenho tido nas últi-
mas duas décadas a oportunidade sagrada de conviver
com jovens autores teatrais que estão transformando
profundamente os temas e as formas dramatúrgicas.
Quando a principal figura da peça Mata Teu Pai, de
Grace Passô, brada: “Olha pra mim! Muda essa história!
Para de achar que a gente é um destino, muda essa his-
tória”, eu vejo uma legião de dramaturgas e dramatur-
gos empunhando como arma essa palavra para efetuar
essa grande revolução. Nas páginas que se seguem, oito
vozes com suas singularidades expressam em frequên-
cia máxima suas infinitas potências, apresentando pen-
samentos e geometrias que não se repetem, como se
acostumou ver no teatro dramático tradicional. (Nada
contra o tradicional, mas não tenho a menor dúvida
sobre a importância do novo.)
Seis dessas vozes tive o prazer – e, digo também,
a honra – de conhecer diretamente no Núcleo de Dra-
maturgia do SESI-British Council e no curso de Dra-
maturgia da SP Escola de Teatro: Lucas Moura, Vana
Medeiros, Bruna Menezes, Dani Veiga (Daniel Veiga),
Fernanda Rocha e Diego Cardoso. Vozes que se somam
10~
5 A elaboração desse projeto teve início no ano de 2021. Sua execução se tornou
possível com a contemplação no edital ProAC 38 — Modalidade 13.
6 São eles e elas: Bruna Menezes, Daniel Veiga, Diego Cardoso, Fernanda Rocha,
Lucas Moura, Murilo Franco, Rudá e Vana Medeiros, integrantes da produção dra-
matúrgica, fundamentalmente, paulista.
17~
sinopse~
Um museu em que os itens em exibição são os últimos cidadãos de
países que deixaram de existir. O que estamos ouvindo aqui é um
audio tour, uma espécie de trilha em áudio de uma visita guiada a
este museu. Obrigado por se juntar a nós no dia de hoje. Ao con-
trário do que muitos dizem por aí, o mundo ainda não acabou. Não
todo ele, apenas certas partes. E aqui você pode conhecê-las. Caso
queira mudar o idioma deste tour, retorne à loja e peça para trocar
seu equipamento para qualquer uma das sete línguas disponíveis,
incluindo as recém-adicionadas latim e esperanto. Por favor, a
partir da porta de entrada, conte 453 tijolos amarelos e você estará
aqui, em nosso salão principal. Nesta seção do nosso museu, em que
você acaba de entrar, irá encontrar os três espécimes mais valiosos
de toda a nossa exposição. Aqui, à esquerda da porta de entrada,
começamos pelo primeiro, com suas botas cor de berinjela e seu guar-
da-chuva laranja: Aquele Que Não Previu O Dilúvio. Mais adiante,
completamente nua em sua sala rodeada de espelhos, está Aquela
Que Fez A Revolução. E, por último, iluminado por uma única vela,
está o Velho De Um País Sem Palavras. Boa visita a todos!
M
O FI )
U D O(S
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O M S) M
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25~
GUIA
(depois de alguns segundos)
Tá ligado?
(com a voz empostada)
SOM. UM, DOIS, TRÊS, SOM.
(para alguém)
Posso?
(depois de ouvir a resposta, ao fundo)
Bora.
Tosse.
Limpa a garganta.
Toma uma água.
Limpa a boca.
GUIA
(testando diferentes vozes)
Bem-vindo, visitante.
Bem-vinda, visitante.
Welcome, visitors.
Bienvenido, el visitante.
(decidindo pela mais Frank Sinatra das vozes até então)
Parabéns por adquirir a experiência de áudio do Museu do Fim
do(s) Mundo(s). Recentemente, nossa instituição teve o prazer
26~
Música instrumental
Música instrumental
Música instrumental
Música instrumental
Música instrumental
GUIA
Muito bem, vejo que você escolheu um ótimo artefato para co-
meçar sua visita. Um dos melhores. Dependendo da cultura de
origem do visitante, no entanto, recomendamos que esta ob-
servação não seja feita por menores de idade. O artefato em
questão está, como se pode verificar em uma rápida observa-
ção, completamente nu. Seu espaço é rodeado por espelhos,
e ele passa a maior parte do tempo assim, olhando para eles e
procurando em seu corpo novos motivos para se admirar, o que
ocasionalmente o coloca em posições um tanto quanto agressi-
vas aos olhos do visitante. Tome cuidado.
Seu país de origem não é muito fácil de se precisar, tendo em
vista que teve seu nome alterado mais de cem vezes em seus
poucos séculos de existência. Este espécime é ninguém menos
do que A Primeira Pessoa Deste País A Sugerir Que Se Fizesse
Uma Revolução. Não uma reforma, entenda. Uma revolução. Da-
quelas completas, com estátuas sendo substituídas e tudo, com
novo nome, esperanças renovadas, enfim, pacote completo.
Não que ele não gostasse das coisas como estavam, para ele a
vida não andava tão ruim assim. Mas… você sabe… pobreza, de-
sigualdade social, essas coisas. Não por ele, que não era exata-
mente pobre, claro. Pelos outros, os pobres. A revolução estava
ali, tão pertinho, quase ao alcance das mãos, alguém tinha que
fazer. O problema é que a maior parte dos conterrâneos deste
artefato não se classificaria exatamente como pobre. Pra eles,
a ideia de uma revolução para tirá-los da pobreza era quase,
pois é, ofensiva. Eles tinham batalhado muito para chegar onde
estavam. Mereciam o que tinham conquistado. Em revoluções
não é comum que se tirem coisas de um pra dar pros outros?
Não, obrigado, não estavam interessados. Dali a 20 dias, o país
inteiro implodiu. Puft. No ar. E só sobrou ele que, depois de cer-
ca de 10 minutos questionando se deveria se martirizar pelos
caminhos escolhidos, decidiu que não adiantava nada lamentar
e foi adquirido pela nossa instituição, onde decidiu ser muito fe-
liz, muito vaidoso, muito orgulhoso de seu caminho, sua luta por
uma vida melhor para sua família, seus amigos, seu país, todos
a esta altura bem mortos.
31~
VISITANTE
Oi?
Silêncio.
VISITANTE
Tudo bem por aí? Quer conversar?
GUIA
Ótimo! Um novo artefato escolhido para sua visita! Com suas
botas cor de berinjela e seu guarda-chuva laranja, ele deve es-
tar bastante ocupado retirando a água de dentro dos baldes
espalhados pelo espaço, colocados estrategicamente debaixo
de algumas goteiras artificiais desenhadas pela nossa produ-
ção. Este espécime não saberia sobreviver de outra maneira.
Contam os historiadores, seu país já abrigou um dos maiores e
mais atraentes desertos do mundo. Não um daqueles desertos
desérticos mesmo, que flertam com a morte. Um deserto funcio-
nal, turístico, cujas areias douradas recebiam visitantes de todo
o mundo montados em deslumbrantes dromedários. O único
defeito deste país era abrigar também, além do deserto, alguns
cientistas inquietos, em uma equipe liderada exatamente por
este simpático e rechonchudo homem de meia idade vestindo
galochas cor de berinjela à sua frente. Foi ele que, procurando
32~
VISITANTE
Olá?
Um balde cai.
VISITANTE
Olá?
VISITANTE
Deve ser difícil. Passar o dia inteiro assim.
VISITANTE
Quero dizer. Para os meus parâmetros. Na minha cultura seria difícil.
VISITANTE
Não quero usar o meu ponto de vista como universal, entende?
Sou mais esclarecido do que isso.
VISITANTE
Isso tudo que aconteceu com vocês me lembrou uma coisa que
aconteceu comigo, sabe?
VISITANTE
(tendo que falar mais alto para ser ouvido)
No meu país, a gente também tinha alguns problemas reais e
outros mais, digamos, decorativos. E, de repente, alguém disse
que todos os nossos problemas decorativos seriam resolvidos
se levássemos no bolso um aparelhinho pequeno que ao mes-
mo tempo servia pra gente se comunicar e aprender sobre o
mundo.
Silêncio.
VISITANTE
Foi o nosso dilúvio, eu acho.
GUIA
Mais um artefato! Nesta velocidade, calculo que sua visita com-
34~
pleta ao nosso museu vai ser uma das mais rápidas deste ano.
Você deve percorrer todos os espaços em pouco mais do que
830 horas. Contadas as paradas para o lanche!
VELHO
Com licença…
VISITANTE
Eu… o senhor está falando comigo?
35~
VELHO
Sim, meu jovem, você tem um minuto?
VISITANTE
Acho… eu não sabia que vocês podiam falar com a gente.
VELHO
Meu amigo, o seu país tem natal?
VISITANTE
Natal?
VELHO
É, natal. O seu país tem natal? Me disseram três vezes segui-
das, em três dias diferentes, que não existe mais um único país
sobre a Terra que conserve esta grande engenhosidade que é a
tradição natalina.
VISITANTE
Jura?
VELHO
Juro. Foi substituída por outra qualquer. Assimilada. Dissolvida.
Talvez tenha ficado obsoleta.
VISITANTE
Que ironia.
VELHO
Aterrador. O natal era mais do que uma tradição, era um meca-
nismo. Uma máquina.
36~
VISITANTE
É. Pode-se dizer que sim.
VELHO
Sem ele, a convivência social torna-se praticamente impossível.
VISITANTE
Mesmo?
VELHO
Mesmo. Temos o caos instaurado. Precisamos fazer alguma
coisa.
VISITANTE
Precisamos? Nós? Por quê?
VELHO
Alguém precisa fazer alguma coisa! Só não tem como ser eu.
VISITANTE
Não tem?
VELHO
Não agora.
VISITANTE
Bom, o senhor parece meio preso aí. Esse vidro é blindado?
37~
VELHO
Blindadíssimo. E se fosse só isso tava bom. É que o senhor veja
bem, o natal não é a única coisa que desapareceu na minha
cultura.
VISITANTE
Obviamente.
VELHO
O natal foi apenas a cereja do bolo.
VISITANTE
Não me diga.
VELHO
Desapareceram inclusive os bolos. E os aniversários. O senhor
sabe o que é um aniversário?
VISITANTE
Não tenho a mínima ideia.
VELHO
Quod Erat Demonstrandum. Como queria demonstrar. Eu. Que-
ria. Queria, porque não quero mais, inclusive. Não teria nem
como. As demonstrações, muito, MUITO comuns na minha cul-
tura, também desapareceram. Ainda bem.
VISITANTE
Que coisa.
38~
VELHO
Pois é. Desapareceram junto com as palavras.
VISITANTE
Não é possível.
VELHO
As palavras, acredita? Sumiram todas. Desapareceram. Foram
assimiladas.
VISITANTE
Todas? Não acredito.
VELHO
Mas é. Eu sou incapaz de me comunicar. Completamente incapaz.
VISITANTE
E o que o senhor está fazendo agora mesmo? Comigo?
VELHO
Isso? Ah, uma besteira. Irrelevante.
VISITANTE
Não estão saindo palavras da boca do senhor?
VELHO
Umas poucas.
39~
VISITANTE
Elas não estão formando frases?
VELHO
As piores.
VISITANTE
Por favor, não se rebaixe.
VELHO
Não estou.
VISITANTE
Economize a modéstia.
VELHO
Nem sei o que é isso. Literalmente.
VISITANTE
Pra mim, o senhor está perfeitamente bem. No auge da idade.
VELHO
Hummmm… Preocupante.
VISITANTE
Como?
40~
VELHO
Preocupante o senhor achar isso.
(um pouco constrangido)
Talvez... o senhor sabe como é... Talvez... o senhor esteja desa-
parecendo também.
VISITANTE
Pelo amor de Deus!
VELHO
Pelo amor de quem?
VISITANTE
O senhor acha mesmo?
VELHO
Não sei. Talvez. Em que pé anda o seu país?
VISITANTE
Não está exatamente bem...
VELHO
Iiiiiiiih…
VISITANTE
Mas vai melhorar!
41~
VELHO
Iiiiiiiiiih…
VISITANTE
As reformas…
VELHO (rindo)
As reformas!
VISITANTE
Elas são necessárias!
VELHO (gargalha)
São muito necessárias! Sempre!
VISITANTE
A gente vai sair dessa!
VISITANTE
O senhor pode ficar aí, falando sozinho no seu cubículo, nesse
seu mausoléu falido. Relembrando o seu país com essa nos-
talgia desesperada. Eu estou olhando pro futuro. PRO FUTURO!
Chaves tilintam.
Uma gaveta é aberta.
Um pesado telefone fixo é tirado de dentro dela e colocado em cima
de uma mesa de madeira maciça.
Os números são discados.
VELHO
Com licença, eu gostaria de falar com alguém da manutenção?
Eu acredito que vocês vão precisar liberar um espaço pra chega-
da de um novo artefato. Sim, sim, claro. Não quero interferir no
processo de vocês. Não, não acabou ainda, parece. Claro, claro.
O óbito oficial, declaração, etc. Mas, só a título de curiosidade,
em que pé está a vitrine número 22? Já esvaziou?
GUIA
Parabéns. Você completou 0,05% da visita ao Museu do Fim
do(s) Mundo(s). Para continuar…
VISITANTE
O que é isso?
VISITANTE
Não, eu… O meu país ainda tem chance. Eu juro. Mais cinco
minutos. Só cinco minutos. Ele vai se recuperar….
43~
VISITANTE
É o movimento natural das coisas. Elas sempre melhoram, se
adaptam. A natureza, ela faz isso. É só a gente ter paciência,
lançar pensamentos positivos para o universo. Eu sei. Eu acre-
dito.
______
Vana Medeiros
Dramaturga, diretora e roteirista. Escreveu, com Djin
Sganzerla, o longa Mulher Oceano (2020), filmado entre
Rio de Janeiro e Tóquio, disponível na Amazon Prime, e
que estreou na 44a Mostra Internacional de Cinema de
SP, e ganhou o prêmio de Melhor Filme no Cine-PE 2020.
Representou o Brasil na conferência Women Playwrights
International (Chile, 2018) e no Corredor Latino-Americano
de Teatro (México, 2017), e é autora de diversas peças de
teatro, entre elas A Morte da Estrela: Lembre-se de Mim, que
estreou em 2022 no Sesc Ipiranga.
44~
45~
45~
Doralice
~Murilo Franco
sinopse~
A enfermeira Doralice chega a uma casa para a qual já
havia prestado serviços, supostamente para participar de
uma festa de aniversário. Ela então percebe que há algo
fora do normal por ali e que a família está interessada
novamente em seus serviços, mas agora de uma maneira
diferente.
E
LIC
RA
DO
47~
.1.
.2.
.3.
ADERVAL DISTANTE
.4.
ADERVAL DISTANTE
TÂNIA Não.
TÂNIA Não.
Tempo.
Riem.
50~
Tempo.
Tempo.
VÂNIO Me conta.
.5.
ADERVAL PRÓXIMO
Silêncio total.
VÂNIO ri.
ADERVAL Clara…
.6.
MEMÓRIA DE ADERVAL
.7.
ADERVAL PRÓXIMO
.8.
ADERVAL PRÓXIMO
TÂNIA É ela?
VÂNIO É, é ela.
Novamente, campainha.
TÂNIA Vai pra lá, papai. Isso. Correndo. Vai, vai, vai.
.9.
MEMÓRIA DE ADERVAL
.10.
ADERVAL DISTANTE
.11.
ADERVAL DISTANTE
Silêncio.
Silêncio.
57~
DORALICE Obrigada.
DORALICE O quê?
TÂNIA O quê?
TÂNIA Ah.
Silêncio.
DORALICE E o Marlo?
DORALICE Ah, é?
Silêncio.
.12.
Enfáticos.
Longo silêncio.
.13.
ADERVAL À MÉDIA DISTÂNCIA
MEMÓRIA/DELÍRIO DE ADERVAL
.14.
ADERVAL chora.
.15.
ADERVAL PRÓXIMO
No banheiro da casa.
O som de moscas diminui, enquanto surge o
som de banheira se enchendo d’água, pas-
sando uma sensação de tranquilidade.
Tempo.
Silêncio.
DORALICE Eu realmente/
Silêncio.
.16.
No dia seguinte.
Música atmosférica.
ADERVAL DISTANTE
Tempo.
__________
Murilo Franco
É formado em Artes Cênicas pela USP e cursa Letras nessa
instituição. Foi um dos escritores de “Desmascarados —
Desconstruindo o Rei da Vela” (2022), da Bendita Trupe. Seu
texto “Futuro do Pretérito” ganhou o Prêmio Nascente (2021).
Foi selecionado para a Mostra de Textos Breves, promovida
por A Digna Companhia, com “1000 grau” (2021). Com “Ve-
rona”, ganhou o 1º Edital de Dramaturgia Jovem do Projeto
Conexões (2019). Trabalha na Escola Projeto Vida dando
oficina de dramaturgia para jovens. É o dramaturgo do grupo
Teatro da Fronteira, com o qual já realizou três trabalhos.
69~
70~
70~
Tormenta
~Fernanda Rocha
sinopse~
Ela pega o ônibus que faz o caminho mais longo para
chegar em casa. Entre as ruas esburacadas da cidade e
a promessa de chuva na janela, acompanhamos os pen-
samentos cotidianos dessa mulher depois de um dia de
trabalho.
71~
TA
EN
RM
TO
72~
Desculpa, Deus.
Um trovão distante.
Bolhas sombrias.
Tempo.
Um respiro profundo.
Tudo treme.
Tempo.
Ônibus volta a andar.
Ufa.
Obrigada, Deus.
Aaaaaai
Silêncio.
Gotinhas.
Finalmente, silêncio.
__________
Fernanda Rocha
Roteirista e dramaturga. Escreveu “Produtos” (Teatro do
Osso), peça selecionada para temporada no espaço Mezanino
do SESI-SP, e “Amor ou um monstro”, dramaturgia vencedora
do “IX Concurso Jovens Dramaturgos do SESC”, além de vá-
rias peças curtas encenadas em diferentes projetos. É também
doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo.
87~
88~
88~
TravaS
~Rudá
sinopse~
Após saber da traição de seu companheiro, Verónica
se reúne com três amigas para refletir sobre o que vem
depois de uma grande dor, a tempo do seu show que
acontecerá ao final do dia. Quais são as travas que as
matam? E quais as travas que as salvam? Essas são
algumas das perguntas que giram em torno dos diálogos
dessas quatro travestis que se amam.
AS
AV
TR
90~
Personagens
Verónica
Nina
Marina
Dea
91~
Prólogo
(pausa)
Nina Já vai!
(A campainha dispara)
Nina A Dea quer arrastar ela pra cá, eu não sei se ela vai
conseguir, tava pensando em ir até lá... (interrompida)
(A porta bate)
(Gritando lá de baixo)
Verônica (tosse)
Marina Finalmente!
Nina Tá aqui.
(som de plástico)
Nina O quê?
Nina Transfóbico.
Nina Nada disso, se você acha que hoje não é uma boa,
então não é. Vai, vamo ver a Veró lá na sala. Mas antes...
Como é que você vai fazer com o aluguel?
(abre a porta)
Dea Alawwwka.
(todas riem)
Dea Minha filha, tanto nome por aí! A gente tem a van-
tagem de poder escolher o nome e você vai e me escolhe
Lucienny?
Dea Marina...
Dea Depressão.
Dea Eita...
(silêncio)
Nina Verónica...
Verónica Quem?
Marina
Selvagem é o vento
Já disse Nina, minha amada
e eu
e ela
ventando sem trovoada
tocando o chão
alada
quase sem acreditar em nada
passando por tantas e tantas e tantas ciladas
voamos em direção ao coração do mar
horizonte sem fim
e queimamos no sol que entra no mar sem apagar
bola de fogo eterna
que todo dia descansa dentro das águas
ventamos e lavamos as mágoas para o seu devido lugar
voamos com os pés no chão
imersas num mar de lágrimas
queimando sem fim em direção à revolta
Nina, ontem sonhei com seu choro de verdade
e hoje acordei embriagada*
(fim)
113~
* “Nina”
autoria e composição:
Marina Mathey
____________
Rudá
Atriz, dramaturga e pessoa trans. Inicia seus estudos em tea-
tro com Celso Frateschi no Teatro Ágora. Em 2015 estuda na
Escola Livre de Teatro de Santo André no Núcleo de Drama-
turgia. Passa também pelo CPTzinho no Centro de Pesquisa
Teatral dirigido por Antunes Filho. Escreveu “Translúcida”,
texto premiado pela I Mostra de Breves Textos dentro do Pro-
grama Municipal de Fomento ao Teatro d’A Digna Cia.
114~
115~
115~
Mito
~Diego Cardoso
sinopse~
Existe uma fábula antiga sobre um lugar acometido por
uma terrível infestação que só foi eliminada graças à aju-
da mágica de um forasteiro que chegou prometendo liber-
dade. Esse lugar existe e hoje não há mais sinais da infes-
tação: a praga deu lugar a uma aparente liberdade que
esconde o segredo de um futuro interditado. Quem for até
lá para conhecer a história de perto pode acabar descobrin-
do que o mito é, na verdade, uma disputa pelo imaginário
de uma nação e pela preservação da realidade.
116~
MIT
O
117~
I o mito de alguém
BETE
mito é alguém que fez alguma coisa importante.
GILBERTO
claro que eu sei. eu tava aqui quando o mito
chegou, eu vi. ele nos salvou.
118~
MULHER
o que é um mito? (pausa) eu sou um mito.
119~
II o lugar do mito
NARRADOR
[conta]
há uma história sobre um lugar que du-
rante muito tempo sofreu com uma terrí-
vel praga: ratos. uma infestação de ra-
tos. ratos em todos os cantos. ratos que
lutavam com os cães, matavam os gatos,
mordiam as crianças, comiam a comida da
geladeira, caíam nas panelas, destruíam
os móveis, as roupas. as pessoas que vi-
viam lá não sabiam mais o que fazer. elas
já haviam tentado de tudo para terem paz
e nada havia funcionado.
(tempo)
NARRADOR
[conta]
foi o que eu fiz. eu acreditei que indo
até lá seria possível responder o que
aquelas pessoas fizeram pra cicatrizar
essa marca.
NARRADOR
[na rua]
são quase onze da manhã agora... o dia está
nublado, mas não faz frio... tem previsão de
chuva fraca, provavelmente a temperatura vai
cair... estou passando por uma rua larga, tem
carros estacionados dos dois lados, tem árvo-
res, alguns prédios de apartamentos, algumas
casas, um supermercado... é feriado aqui...
mas apesar disso e do mau tempo, tem bastan-
te gente na rua... (tempo) tem uma certa...
normalidade. tanta que chega a ser estranho.
NARRADOR
[conta]
eu pensei que indo até lá encontraria
sinais, indícios do que aconteceu. como
em lugares que viveram alguma fatalida-
de e fazem questão de lembrar disso. nas
fachadas, nas ruas, no rosto das pesso-
as. mas lá não era assim. o que tornava
aquela normalidade algo que parecia fora
do lugar, era estranho, afinal, não fazia
tanto tempo assim.
125~
NARRADOR
[conta]
mas eu sabia que apenas observar não se-
ria suficiente. não dá pra conhecer um
lugar sem conhecer as pessoas que vivem
nele. e foi o que eu fiz. eu parti em
busca de quem pudesse responder minha
pergunta.
BETE
meu nome é Elizabete, mas todo mundo me chama
de Bete...
NARRADOR
[conta]
a Bete, que na verdade é Elizabete, foi a
primeira pessoa que eu encontrei e que topou
falar comigo.
BETE
ah, eu gosto de viver aqui. é muito bom. eu
gosto.
127~
NARRADOR
[conta]
ela me contou que é uma antiga moradora,
que viveu durante a infestação de ratos.
ou seja, a Bete era a pessoa perfeita pra
contar o que eu queria saber.
BETE
era horrível. a gente aqui não gosta nem de
lembrar. foi um tempo muito difícil. você nem
imagina.
NARRADOR
mas então... é tudo verdade? é isso que eu
quero saber.
BETE
sim, é verdade. foi tudo verdade... assim,
sendo bem sincera, os ratos sempre existiram
e as pessoas sempre viveram suas vidas apesar
disso. o que realmente assustou naquela época
foi a quantidade. a cada dia, a gente via sur-
girem mais. eu senti muito medo porque parecia
que não ia acabar nunca. mas ninguém deixou de
viver suas vidas por causa disso. talvez no
começo, mas bem no começo.
NARRADOR
Bete, será que você conseguiria descrever algo
de que você se lembra e ajude a gente a ter
uma noção de como era viver aqui nessa época?
128~
BETE
ah, como eu te disse, minha memória é muito
ruim... eu me lembro pouco. parece que a cada
dia essa memória vai ficando mais borrada,
sabe? e eu agradeço todo dia por isso, não vou
mentir.
NARRADOR
[conta]
logo eu noto que pra Bete é difícil aces-
sar algumas memórias, como se um trauma
se colocasse entre ela e esse passado.
o que é natural, eu penso. Para algumas
pessoas, lembrar é realmente uma difi-
culdade, algo que exige um esforço quase
doloroso. mas pra outras, ao contrário,
pode ser uma memória fácil, viva, quase
possível de pegar com as mãos.
GILBERTO
eu me chamo Gilberto, tenho 46 anos.
NARRADOR
[conta]
o Gilberto é outro morador que topou fa-
lar comigo. Ele também vive e trabalha lá
129~
GILBERTO
é claro que eu lembro. lembro perfeitamente.
era uma praga. eu tô te falando, era uma praga.
pra você ter ideia, eu ia trabalhar sacudindo
as pernas pra derrubar os ratos que subiam
pela minha calça. pra onde a gente olhava,
aonde a gente ia, tinha rato. tinha rato até
nas escolas, junto com as criancinhas.
NARRADOR
e como era viver no meio disso tudo...
GILBERTO
como você acha? tá achando que dava pra viver
uma vida normal?
NARRADOR
E como era pras pessoas que trabalhavam, es-
tudavam...
GILBERTO
tudo era difícil, era difícil sair de casa,
estudar, trabalhar. pensa uma situação que
tudo que você vai fazer, se depara com um
130~
NARRADOR
Gilberto, tem gente que diz que tem um certo
exagero no que contam/
GILBERTO
exagero?! quem te disse isso? olha, quem dis-
ser que era mentira, não é gente de bem. por
causa dos ratos, fecharam tudo. eu não me es-
queço das pessoas sem poder sair de casa, per-
dendo os empregos. sabe o que acontece quando
alguém perde as esperanças num momento em que
parece que tudo só vai piorar? a vontade de
viver vai embora. quem te disse que é exagero?
diz o nome aí, quero saber...
NARRADOR
não... não foi ninguém específico. na ver-
dade, são relatos que ouvi sobre as pessoas
terem se acostumado depois de algum tempo...
GILBERTO
bom, acho que você tá precisando rever suas
fontes, então. (tempo) sabe qual o problema,
as pessoas esquecem.... com o tempo as pessoas
131~
NARRADOR
[conta]
lembra que eu contei antes, que no dia
que os ratos foram exterminados as pes-
soas deram uma festa? pois então, desde
então elas comemoram todo ano. o dia que
eu escolhi pra ir até lá era feriado por
causa disso. quando eu abordei o Gilber-
to ele estava indo pra comemoração. ele
estava indo na mesma direção e vestindo
as mesmas cores que várias outras pessoas
vestiam, as mesmas cores. das bandeiras
e enfeites pendurados nas casas e nas
sacadas.
NARRADOR
Gilberto, o que vai acontecer aqui hoje?
GILBERTO
ah, hoje é dia da festa. dia de comemoração.
132~
NARRADOR
comemoração do que exatamente?
GILBERTO
pô, você é mal-informado, hein.
hoje é a festa pela nossa liberdade. sempre
nessa data! hoje é o dia que tudo foi limpo,
graças ao mito. foi nessa data, alguns anos
atrás, que ele chegou e botou ordem em tudo,
fez a limpeza que a gente precisava. extermi-
nou os ratos. hoje o que vai acontecer aqui é
lindo, um puta espetáculo, você vai ver. não
é isso que você veio gravar aí?
NARRADOR
é, é sim...
NARRADOR
[conta]
não era.
NARRADOR
agora que você falou em mito, eu tenho uma
coisa pra te perguntar... você sabe o que é
mito?
GILBERTO
claro que eu sei. eu tava aqui quando o mito
chegou, eu vi. ele nos salvou.
133~
NARRADOR
[conta]
mito. eu sei do que o Gilberto está
falando porque na minha conversa com a
Bete esse mesmo nome apareceu quando eu
perguntei sobre a história do flautista.
BETE
sim, também é real. a mais pura verdade. foi
praticamente um milagre. ele foi um enviado
de deus pra nós.
NARRADOR
como era o nome dele?
BETE
aqui a gente chama ele de “mito”.
NARRADOR
e você pode descrever como ele era... como foi
que ele chegou, o que ele falou...
BETE
ah, eu me lembro tão pouco... tenho certeza
que outras pessoas vão lembrar melhor do que
eu (tenta lembrar) deixa eu ver se eu lem-
bro... ah, ele foi muito bom, ele era muito
bom. ele foi um salvador.
134~
NARRADOR
[conta]
a Bete não parece muito confortável res-
pondendo minhas perguntas. mesmo assim,
nessa hora eu decido perguntar pra ela o
que eu realmente quero saber. não deve
ser algo que alguém esquece tão fácil.
NARRADOR
Bete, você não gosta muito de falar sobre esse
assunto, né?
BETE
não... pra mim é difícil.
NARRADOR
eu imagino o porquê. mas... você poderia contar?
BETE
não. desculpa. isso me faz lembrar de algo
muito pessoal. (tempo) me faz pensar nos meus
sobrinhos, sabe? dá uma saudade.
NARRADOR
quantos sobrinhos você tinha
BETE
tenho.
dois. vinicius e sofia.
135~
NARRADOR
e você não os vê desde quando o...
BETE
desde que o mito levou eles.
NARRADOR
e você ainda acha que ele é um herói?
BETE
claro. ele nos salvou.
GILBERTO
o mito não é igual a todos os outros que vie-
ram antes. eram todos pilantras que só apare-
ciam pra se aproveitar do nosso sofrimento.
mas ele não. ele é diferente... ele prometeu
e cumpriu. de cara deu pra ver que ele era um
ser humano de bem, como a gente.
NARRADOR
mas, Gilberto, e sobre as crianças?
GILBERTO
que criança?
NARRADOR
exato. não tem nenhuma criança aqui.
136~
GILBERTO
(ríspido) não tem mesmo. aqui é um lugar de
gente mais velha.
NARRADOR
e onde estão as crianças?
GILBERTO
eu tenho cara de babá?! por que você não vai
perguntar pros pais delas?
BETE
não, jamais. ele não tem culpa nenhuma. pelo
contrário. o mito consertou esse lugar, ele
devolveu nossa alegria de viver.
NARRADOR
mas, Bete, por causa dele as crianças desapa-
receram.
BETE
não! claro que não! isso é mentira! ele as
levou para um lugar melhor. se os ratos vol-
tarem um dia, nossas crianças estão a salvo
num lugar seguro graças a ele. ele fez isso
para protegê-las porque ele sim se preocupa
com os pequenos.
137~
GILBERTO
já entendi tudo.
você é um desses que gostam de vir aqui falar
merda, não é? por que você não veio durante
a infestação? é fácil vir despejar idiotice
quando está tudo limpo. alguém devia te enfiar
num esgoto pra você experimentar como é fazer
essas perguntas no meio dos ratos.
NARRADOR
eu vim saber como é viver num lugar sem crianças.
GILBERTO
eu posso te dizer como é viver num lugar sem
ratos.
NARRADOR
você realmente acha que ele melhorou as coi-
sas, Bete?
BETE
olha, moço, você me dá licença, eu não vou
responder mais nada. e é melhor você ir embora.
a gente aqui não gosta de ninguém vindo fazer
essas perguntas.
NARRADOR
é verdade o que dizem, Bete?
138~
BETE
nós estamos limpos, nossos lares estão lim-
pos. essa é a verdade.
GILBERTO
se alguém pensa diferente, espero que esteja
bem escondida. aqui não é lugar pra gente as-
sim. nem pra gente que vem questionar.
BETE
aqui nós temos liberdade, nós somos livres pra
fazer o que quisermos. grava isso. gravou?
GILBERTO
dá o fora daqui. o que você veio procurar
aqui, hein? tá acostumado a viver entre os
ratos e aí decide vir até aqui pra espalhar
sua sujeira.
NARRADOR
onde estão as crianças?
BETE
elas estão a salvo.
GILBERTO
nós não precisamos de crianças aqui.
V meu mito
NARRADOR
[conta]
Já faz algum tempo que eu penso sempre
a mesma coisa. Será que é possível che-
gar tão perto de uma ficção a ponto de
ser engolido por ela? Às vezes eu tenho
a sensação de quem tá vivendo dentro de
uma ficção mesmo sem ter escolhido estar
nela. Quem escolheu foram outras pessoas,
muitas pessoas que fizeram o pacto de vi-
ver um mito, e agora, eu, mesmo não que-
rendo, me percebo dividindo espaço com
ele também. eu me pergunto se existe um
ponto de não retorno quando se vai muito
longe com uma mentira... e o que acontece
depois desse ponto. Tem dias que a sen-
sação é ainda mais forte. é como se tudo
estivesse invertido, mas as pessoas não
enxergassem. O que pra mim é verdade, pra
elas é mentira. Nesse território, quem
vive uma ficção sou eu. eu saio de casa,
eu pego o trem, eu vou a lugares, eu vejo
as pessoas, olho bem pra elas e tento
descobrir qual é o mito delas.
140~
VI dentro do mito
NARRADOR
[na rua]
comemorar significa trazer à memória, lembrar
junto, lembrar com o outro. eu decidi acom-
panhar a comemoração, estar entre as pessoas,
pra ver de perto o que elas estavam escolhendo
lembrar — ou esquecer.
MULHER
o que é mito...
NARRADOR
isso. pode pensar se precisar. e pode respon-
der como quiser.
MULHER
eu não vou aparecer, né?
NARRADOR
não, é apenas a voz.
MULHER
tá...
esse lugar é um mito. essas pessoas, tudo
isso. tudo
NARRADOR
por quê?
143~
MULHER
você já conversou com elas? viu o que elas
estão fazendo? no que elas acreditam?
então você sabe.
NARRADOR
eu conversei com algumas pessoas e elas não
gostaram muito quando eu perguntei sobre
MULHER
como você acha que elas se sentem quando al-
guém vem aqui tentando lembrá-las do único
defeito do mito perfeito da liberdade delas?
NARRADOR
e a parte sobre as crianças... é mito também?
MULHER
não. isso é bem verdade. mas pode ser mito
também.
NARRADOR
como assim?
MULHER
aqui, todos acreditam que perder as crianças
foi um sacrifício necessário. que aconteceu
porque precisavam salvar a pátria, a liberda-
144~
NARRADOR
porque as pessoas não querem?
MULHER
porque elas não podem.
é esse mito que afasta a perversidade deles.
assim tudo fica explicado, perfeito asséptico
como era antigamente, do jeito que eles ado-
ram. se houver crianças, alguém vai perguntar
porque não houve antes e isso é algo difícil
demais para essa gente lidar.
NARRADOR
então o mito também são as crianças.
MULHER
tudo que for preciso virar mito para o mito
continuar sendo mito, vira mito. a suposta
liberdade. as crianças. você. eu.
NARRADOR
você é um mito?
MULHER
eu sou mulher num lugar em que os discursos
dizem que eu sou livre, que eu tenho os mesmos
145~
NARRADOR
e o que aconteceria se houvesse uma criança
aqui
(tempo)
MULHER (incomodada)
não sei. não existem crianças aqui.
NARRADOR
mas e se existisse, o que aconteceria?
MULHER
o que você acha?
NARRADOR
eu não falei com todo mundo, mas não consigo
imaginar que aconteceria alguma coisa boa.
MULHER
não... com certeza não. (pausa) eu preciso ir,
eu não posso me atrasar.
146~
NARRADOR
você não vai pra manifestação?
MULHER
não e eu não queria que soubessem disso. por
favor.
NARRADOR
antes de ir embora eu ainda conversei com
uma última pessoa. o que ela me disse não me
deu uma resposta definitiva sobre aquele lu-
gar. pelo contrário, me fez entender que ali
existem muitos sentidos, e a maioria não é
bom. assim como não existem apenas pessoas que
acreditam no mito, porque não existe um só,
existem outros. algumas pessoas conseguirão
ver isso, outras não. (tempo) e o que a gente
faz? como a gente desmonta um mito? no fim das
contas, foi muito frustrante tentar contar
essa história. afinal, ela é só uma história
soterrada embaixo de tantas e tantas outras.
de perto, aquela ficção pareceu muito grande e
amedrontadora, capaz de engolir qualquer ver-
dade que se aproxima dela. mas eu ainda espero
que alguém consiga contar outra história ali
dentro.
147~
VIII eu mito
MULHER
(com ternura, como se tentasse acalmar uma
criança)
tá tudo bem, tá tudo bem...
esse barulho? são os ratos... eles estão lá
fora, na rua.
(tempo)
__________
Diego Cardoso
Dramaturgo, pesquisador e educador. Mestre pelo Instituto
de Artes da Unesp, onde também se graduou em Teatro em
2015. Venceu o Prêmio Funarte de Dramaturgia (Região
Sudeste) 2014 com o texto “Manual de escrita não-violenta”.
Integrou a 7ª do Núcleo de Dramaturgia do Sesi. Escreveu a
dramaturgia “Calotas Polares”, publicada pela Editora Patuá.
É criador e apresentador do podcast Audiodrama.
151~
Hoje foi amanhã
~Bruna Menezes
sinopse~
Maitê quer saber o que é sonho.
I
E FO
HOJ NHÃ
A
AM
153~
Ouvir é ver.
ditado Bantu
154~
I. Sobre o hoje
Liga a tv.
Maitê~ Ah, sei lá. Faz tanto tempo que não durmo
direito, que não sonho. Talvez fosse bom. Mas me
conta de você. Como estão as coisas? Trabalhamos
juntos, mas são poucos os momentos que a gente
consegue conversar.
Liga a tv.
III - Vertigem
Pedro~ Oi, chefe. Boa tarde. Estou gravando esse
áudio pra falar da Maitê. Não sei, ela anda estranha.
Talvez seja bom ficar atento nela, percebo que é alguém
muito fechada e ela tá muito bitolada com notícias,
eleições, não para de assistir noticiários. Passa o dia
lendo coisas na internet. Pode parecer uma bobagem,
mas parece que ele só vive isso, não tem se relacio-
nado com as pessoas, disse que não dorme, que não
sonha. Fica perguntando pra todo mundo o que você
sonhou hoje. Do nada. Parece que tá desconectada de
si, vive só a cabeça. Resolvi fazer esse alerta porque é
uma colega de trabalho e é o mínimo que podemos
fazer nesse momento. Tenho tentado me aproximar
pra ver se ela se abre, mas eu também não posso ficar
com essa função pra mim.
Legal. Então, já que tudo está indo bem por aí, eu fico
mais tranquila em dizer que hoje eu não vou traba-
lhar. Não, eu estou bem, na verdade estou sentindo
um pouco de vertigem, não sei. Um mal estar que
não sei de onde vem, não sei se tenho me alimentado
mal. Sentindo meu estômago embrulhado. Mas era isso,
não vou tomar mais seu tempo. Se puder avisar o pessoal,
agradeço. Obrigado, até amanhã.
IV - Mais notícias
V - Tentativas
Maitê~ Não deveria ser tão difícil, já fiz outras vezes.
Eu deitava e as imagens apareciam, eu fechava os
olhos e elas estavam lá. Eu preciso me sentir relaxada
para conseguir. Respira pela cabeça e solta pela boca.
Os vídeos de cravos expremidos já não resolvem, tô
viciada nessa merda, vendo gente expremer cravo o
dia inteiro, essa porra me ralaxa. Ou melhor, relaxava.
Não vou levar o computador para cama. Eu consigo
dormir sozinha.
Não deveria ser tão difícil, já fiz outras vezes. Eu
preciso me sentir relaxada para conseguir. Respira
pela cabeça e solta pela boca. Não vou levar o com-
putador para cama. Respira pela cabeça e solta pela
boca. Respira pela cabeça e solta pela boca. Respira
pela cabeça e solta pela boca. Eu deitava e as imagens
apareciam, eu fechava os olhos e elas estavam lá.
Respira pela cabeça e solta pela boca.
Liga a tv.
“Presidente, a gente ultrapassou o número de mor-
tos da China por covid-19”.
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou
Messias, mas não faço milagre”.
“Olha, é tanta coisa pra falar, né, que você fica pen-
sando. Uma coisa, Adriane, e eu nem queria falar
diretamente pra você, mas olha os apresentadores
que compactuam essas jogadas absolutamente dis-
cutíveis e sem credibilidade com os que comandam
o programa, eles não aceitaram. A gente viu o que
aconteceu com o Brito Júnior, com o Marcos Mion.
Então pelo amor de deus, reaja. Eu não acredito que
essa fazenda...”
Desliga a televisão.
167~
VI - O retorno
Pedro~ E conseguiu?
VII
O Despertador toca.
Chorei.
VIII
Maitê~ Adormeci.
e caio em um mar.
eu subo
subo
quanto mais subo
faço o movimento inverso.
Paro.
IX
fim
__________
Bruna Menezes
Dramaturga e dramaturgista. Graduada em Letras pela
Universidade Federal de São Paulo. Formada em dramatur-
gia pela SP Escola de Teatro, foi integrante da 11ª turma do
núcleo de dramaturgia do Sesi, é estudante de Letras Fran-
cês na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente em
processo criativo como dramaturgista no Teatro da Vertigem
com o espetáculo “Agropeça”.
175~
176~
176~
Abate
~Daniel Veiga
sinopse~
Uma gravação em áudio K7 revela um breve fragmento
em que quatro mulheres estão diante de uma situação
crítica: o corpo do homem abatido por uma delas! É 2052
e o país vive uma teocracia neopentecostal. As ruas da
nação fervilham com os novos autos-de-fé importados
da santa inquisição, sessões de execução em massa pe-
los crimes contra o Estado. Por serem casadas, Tatiana
e Isabel fogem dos Ovelhas, novas forças milicianas, e se
refugiam no porão de Madalena, a antiga Reverenda do
regime. Ela garante ser uma desertora. No refúgio, Ta-
tiana se defende abatendo um Ovelha. A tensão aumen-
ta quando surge a misteriosa Teresa com seu ar estra-
nhamente calmo. Logo, helicópteros e cães anunciam que
elas estão cercadas.
TE
177~
A BA
178~
PERSONAGENS
Isabel
Tatiana
Madalena
Teresa
179~
ISABEL
(muito nervosa)
PUTA QUE PARIU! NÃO ASSIM,
TATI!NÃO DESSE JEITO, PORRA!
TATIANA
(igualmente nervosa)
E o que eu ia fazer!? Cê viu
como ele tava.
ISABEL
Era só ter gritado ajuda.
TATIANA
(indignada)
E berrar pra todo mundo a
nossa posição!?
ISABEL
(tentando se acalmar)
Tá! Eu tô nervosa. Eu não
tô culpando você. Mas é que
agora...
TATIANA
Agora fudeu de vez! Cê acha
que eu não sei?
ISABEL
(abafado, para si mesma)
Caralho, caralho, caralho!
TATIANA
(para Isabel)
O que a gente faz agora?
ISABEL
(resoluta)
A gente precisa se livrar
dele. Não tem outro jeito.
TATIANA
Como cê acha que a gente vai
conseguir sair desse porão?
181~
ISABEL
Se tivessem mesmo, isso aqui
já tinha sido invadido!
TATIANA
Vai arriscar?
ISABEL
O que eu sei é que se pe-
garem a gente perto desse
Ovelha morto, é execução na
certa. Sem dó nem piedade.
ISABEL
(irritada, para Madalena)
E você? Vai ficar aí parada
só olhando?
TATIANA
Não precisa falar assim com
ela,Isabel.
ISABEL
Ela tá muito quieta nesse
canto, Tati.
(para Madalena)
O que você acha?
MADALENA
(vacilante)
Eu não sei. O que você quer
que eu fale?
(assume um tom calmo,
constatando)
O homem tá morto aí no chão.
182~
ISABEL
Ele NÃO é um policial.
TATIANA
É um Ovelha. É diferente.
MADALENA
Vocês acham que pra eles tem
diferença?
TATIANA
SÃO ELES!
MADALENA
Espera!
ISABEL
(sussurrando)
Ele tá bem em cima da gente.
Parece que é só um.
TATIANA
(sussurrando)
Eles sabem que a gente tá
nesse porão.
MADALENA
(resoluta)
Não são eles.
183~
TATIANA
Como você sabe?
MADALENA
Escuta.
TATIANA
O que tem aí em cima?
MADALENA
A cozinha.
ISABEL
Ele tá revirando sua cozinha?
TATIANA
Por que um Ovelha faria
isso? Ele vai descobrir a
gente, vai descobrir o corpo
do amigo dele. A gente tá
fodida, Isabel!
ISABEL
Calma! Ele deve tá procuran-
do alguma coisa. Quê que ele
tá procurando, Madalena?
MADALENA
Só pode ser comida, o que
mais seria?
ISABEL
Por que um Ovelha ia tá pro-
curando comida na casa de
uma Reverenda!?
184~
MADALENA
EX-Reverenda!
TATIANA
Só se for um desgarrado.
MADALENA
Ou se não for um Ovelha.
ISABEL
(desconfiada)
Madalena, cê sabe quem tá aí
em cima?
MADALENA
Eu desconfio.
TATIANA
Ele tá tentando entrar.
ISABEL
(para Madalena)
Faz alguma coisa! A casa é
sua.
ISABEL
(para Madalena)
Por que cê não falou antes
que tinha isso?
185~
MADALENA
(voz se aproximando de novo)
Por que eu não vi necessidade.
MADALENA
Seja quem for, pode entrar
que eu tô preparada.
TERESA
(lá de cima, do lado de fora da
porta)
Reverenda?... Reverenda?...
Eu sei que você tá aí? Sou eu!
MADALENA
Merda!
TATIANA
Quem é essa? Por que ela tá
te chamando de reverenda?
MADALENA
Certos hábitos são difíceis
de perder. Eu não posso dei-
xar ela lá em cima.
186~
TATIANA
O quê que elas tão falando?
ISABEL
Eu não tô conseguindo ouvir.
TATIANA
A gente não pode confiar nes-
sa mulher, Isabel. Mesmo que
ela não seja mais uma Reve-
renda, ela já foi um dia e
isso diz muita coisa.
ISABEL
É ela ou os Ovelhas lá fora,
Tati. Pelo menos, aqui den-
tro somos duas contra duas.
Vai naquela caixa lá, a que
ela mexeu, e vê se tem mais
alguma arma escondida.
ISABEL
Rápido. Elas tão descendo.
TATIANA
(um pouco longe)
Não tem mais nada aqui.
ISABEL
Vem pra cá, anda!
187~
TATIANA
Eu tô com medo, Isabel.
ISABEL
Calma, meu amor! Eu não vou
deixar nada acontecer com a
gente. Lembra o dia do nosso
casamento?
TATIANA
Como eu ia esquecer!?
ISABEL
A gente venceu muita coisa
pra morrer nesse porão. Eu
vou tirar a gente daqui!
TERESA
(sorriso na voz)
Oizinho!
(súbita mudança: SURPRESA)
MADRECITA DE MI CORAZÓN!
Esse cara é o que eu tô pen-
sando que é? Ele tá morto!?
ISABEL
(acuada)
Quem é você?
Quem é ela, Madalena?
TERESA
Calma, anjo. Eu sou a Tere-
sa, sou amiga da Reverenda.
188~
MADALENA
(repreendendo)
Já disse pra você parar de
me chamar assim, Teresa.
TERESA
Tá! Já sei!
Mas, olha... Eu não sei qual
de vocês fez isso com esse
infeliz, mas tá de parabéns!
(palmas)
Coragem!
TATIANA
(gaguejando)
Ele já tava assim quando a
gente chegou.
TERESA
Não precisa mentir pra mim,
princesa.
ISABEL
(para Teresa)
O que cê tá fazendo aqui?
Hoje é dia de auto-da-fé.
TERESA
E daí?
ISABEL
Daí que só tem dois lugares
pra você tá hoje: enfurnada
dentro de casa ou na praça
pública com o resto dos car-
niceiros.
MADALENA
(para Teresa)
Por que você saiu de casa
hoje?
189~
TERESA
Porque acabou a comida, ué.
E vim pegar alguma coisa.
EMPRESTADA. Pra te devolver
no mês que vem. Ah, Mada-
lena! Eu imaginei que você
ia tá no centro com os-- os
outros.
ISABEL
Os carniceiros.
TATIANA
(para Madalena)
Você não disse que não é
mais reverenda? Por que você
ainda vai em auto-da-fé, Ma-
dalena?
TERESA
(sarcástica)
É que certos hábitos são di-
fíceis de mudar.
MADALENA
(repreensiva)
Teresa!
TERESA
Que foi!? É você que vive
dizendo isso, caramba.
ISABEL
Responde a gente, Madale-
na. Por que você ainda vai
em execução pública se não é
mais obrigada a participar?
MADALENA
Shhhhh!
ISABEL
(sussurrando)
E sua amiga, Madalena? Ela
também não tem celular?
MADALENA
(sussurrando)
Claro que não.
TERESA
(sussurrando)
Quem ainda tem celular em
2052!? Só se eu fosse do
governo.
TATIANA
Tão ouvindo?
TERESA
Claro que sim.
TATIANA
Não o cachorro. Escuta!
TATIANA
(firme)
A gente tem que sair daqui
AGORA!
191~
MADALENA
Você sabe o que eles vão fazer
com a gente?
TERESA
A gente quem!? Eu não faço
ideia de quem são vocês duas.
Aliás, se eu soubesse o que
ia encontrar caído nesse
chão, jamais tinha descido
nesse inferno de porão.
ISABEL
Você desceu porque quis!
TERESA
Eu desci porque ouvi um
barulho e queria saber se a
reverenda tava bem.
ISABEL
(sarcástica)
“Saber se a reverenda tava
bem.” Sei!
TERESA
Isso mesmo! Saber se ela
tava bem SIM. Aliás, qual é
a sua, hein!? Quem são vo-
cês que eu nunca vi por aqui
e desde que eu desci essa
escada tão me enchendo de
pergunta!? Quem fez a merda
aqui não fui eu!
MADALENA
(acalmando)
Teresa, tá tudo bem!
TERESA
A senhora me desculpa, mas a
192~
MADALENA
(firme)
EU JÁ DISSE QUE NÃO SOU MAIS
REVERENDA!
MADALENA
Para de me chamar assim,
Teresa. Por favor.
(respira fundo)
A Isabel e a Tatiana tavam
no campo fugindo de três
Ovelhas quando elas aparece-
ram no terreno.
TERESA
(provocativa)
E tem algum motivo pra elas
serem perseguidas?
TATIANA
Você acha que tem motivo que
justifique essa loucura!?
MADALENA
Elas são casadas.
ISABEL
E vamos continuar assim!
MADALENA
Eu não podia negar abrigo
pras duas. Você sabe muito
bem disso. Não foi isso que
eu fiz com você há dois anos?
193~
TERESA
(amena)
Sim, senhora.
Mas e esse cara?
ISABEL
Enquanto a gente corria os
três desgraçados se separaram.
TATIANA
Eles são tão seguros da
força e do poder que esse
governo fascista dá que
acharam que só um deles
daria conta de nós duas.
TERESA
Pelo jeito, o que alcançou
vocês não era forte e nem
poderoso.
TATIANA
Como nenhum deles é sozinho!
ISABEL
Desgraçado!
MADALENA
O fato é que ele conseguiu
alcançar a Tatiana e atacou
ela.
ISABEL
“Quase estuprou”, você quis
dizer.
TATIANA
Eles não se contentam em
matar. Têm que destruir a
gente antes.
194~
ISABEL
Mas a Tati é esperta. E mais
forte do que parece.
TATIANA
Eu jamais vou deixar um des-
graçado desses tocar em mim.
Eu morro lutando.
TERESA
Sinto muito que vocês tenham
passado por isso, mas eles não
vão deixar isso barato. E a
gente que não tem nada com isso
vai se foder junto.
ISABEL
A gente não queria envolver
mais ninguém nisso.
MADALENA
Agora já aconteceu.
TATIANA
Madalena, você acha que--
AS QUATRO
A gente tá morta; Alcançaram
a gente; Eles não vão pegar
195~
TERESA
(desesperada)
POR QUE VOCÊ FEZ ISSO!?
ISABEL
(agitada)
Você viu! Ela veio pra cima
da gente.
TERESA
(chamando)
Madalena! ... Madalena! Fala
comigo.
TATIANA
(apaziguadora)
Abaixa isso, Isabel. Pode
abaixar.
TERESA
(continua)
REVERENDA!
A TOSSE DE MADALENA.
196~
TERESA
Reverenda, tá tudo bem?
MADALENA
(retomando o fôlego)
Eu tô bem!
TERESA
Seu braço tá sangrando.
MADALENA
Não foi nada. Um cego mira
melhor que essa filha da
puta!
TATIANA
(assustada)
ABAIXA ESSA PORRA, ISABEL!
ISABEL
(para Tatiana, ofegante)
Cê viu ela vindo pra cima da
gente.
TATIANA
Isabel!
ISABEL
(desesperando)
Você viu! DIZ QUE VOCÊ VIU!
TATIANA
Isabel!
ISABEL
Ela veio pra cima da gente.
197~
TATIANA
(irritadíssima, num grito)
PARA COM ISSO!!!
TERESA
SOLTA ESSA ARMA!
ISABEL
Pra vocês atacarem a gente!?
TERESA
Ninguém aqui atacou ninguém.
ISABEL
É você que tá dizendo.
TERESA
É isso que eles querem que
a gente faça, sua estúpida.
Você não vê!? Eles vão dar
cabo de nós quatro sem
precisar mover um músculo.
TATIANA
Ela só tá assustada!
TERESA
(irritada)
E é justo que eu morra por
isso!? Você não tem ideia
do que eu passei pra ter um
pouco de paz hoje em dia!
Ou vocês acham que só vocês
passaram por alguma coisa
ruim!? Ter que fugir da pró-
pria casa no meio da noite,
sem agasalho, sem sapato,
sem comida, sem rumo... Não
poder confiar em ninguém, nem
mesmo em quem oferecesse o
pão que podia matar a fome.
198~
TATIANA
É claro que não! A gente
jamais faria isso com quem
nos ajudou quando a gente
mais precisava.
TERESA
Você? Talvez. Mas ela...
ISABEL
Não se aproxima de mim!
TATIANA
Isabel, abaixa essa arma,
por favor.
MADALENA
Vai embora, Isabel! Bota
logo um fim nisso. Eu já te
mostrei a saída.
(SUSPENSE)
Minha parte no acordo foi
cumprida.
TATIANA
Do que ela tá falando, Isabel?
MADALENA
Você acha que vocês vieram
parar aqui por acaso,
mocinha?
199~
TATIANA
Isabel, do que essa mulher
tá falando?
ISABEL
Ela é louca, Tatiana!
MADALENA
Essa é a sua desculpa?
ISABEL
Eu não tenho nada com você.
Nunca te vi antes.
MADALENA
Fale o que quiser... Minha
parte no nosso acordo tá
cumprida. Você já sabe como
sair daqui segura com a tua
mulher. Só não tem por que
nos ferir, a mim e à Teresa.
TATIANA
(irritadíssima)
Que porra é essa!?
ISABEL
Essa mulher tá manipulando a
gente. Ela quer te colocar
contra mim.
TERESA
Por que a Madalena faria
isso?
ISABEL
Eu não sei que tipo de gente
são vocês.
200~
MADALENA
Mas eu bem desconfio que tipo
de gente você é, Isabel. O
tipo que sempre teve tudo
de mão beijada. O tipo que
conseguiu se safar por mui-
tos anos vendendo a alma pro
diabo. E você, Tatiana? Nun-
ca se perguntou como vocês
conseguiram ficar tanto tempo
juntas dentro de um governo
como esse? Isso nunca passou
pela sua cabecinha? Só agora
vocês foram perseguidas!?
Assim, de repente, do nada?
ISABEL
CALA A BOCA!
TATIANA
Como ela sabe tanto da gente?
ISABEL
Sabe o quê!? O que que ela
sabe? Ela não disse nada
concreto sobre a gente,
NADA.
TERESA
Ela disse o suficiente.
MADALENA
Vai embora e leva a tua
mulher daqui! Mas deixa a
gente em paz. Eu fiz o que
pude.
ISABEL
Você ainda é uma reverenda,
não é? Fala a verdade! Você
201~
MADALENA
Eu não entendo por que é tão
difícil pra você admitir que
nós temos um acordo, Isabel.
O fato de vocês estarem aqui
já é uma evidência. Vocês
estão tão longe de casa e
vieram parar justamente aqui,
na casa de uma desertora que
lhes poderia dar abrigo, uma
casa com um porão, estrate-
gicamente construída no meio
do nada, com uma saída e com
uma arma.
ISABEL
(cada vez mais acuada)
A ARMA É SUA!
MADALENA
Mas olha só que ironia: ela
está nas suas mãos!
TATIANA
Isabel, fala a verdade!
ISABEL
(se desesperando)
Eu tô dizendo a verdade.
Você tem que acreditar em
mim!
202~
TATIANA
Se você conhece essa mulher,
me fala. Eu não vou ficar
brava. Que acordo é esse?
ISABEL
NÃO TEM ACORDO NENHUM, PORRA!
TATIANA
Se ela te falou onde é a
saída, vamos embora. É só
deixar elas pra trás.
ISABEL
Você acha que, se eu soubes-
se onde é a saída, a gente já
não tinha ido embora desse
lugar maldito!?
TERESA
A menos que você queira mais
alguma coisa da Madalena!
Uma coisa que só ela tenha.
ISABEL
Vocês tão juntas nisso, não
tão?
TERESA
Isso o quê? Eu já disse:
nunca vi você e sua mulher
na minha vida.
ISABEL
Você admite. Tá vendo, Ta-
tiana?
TERESA
Mas eu quase nunca vejo as
pessoas que fazem acordos
com a Madalena, então...
203~
ISABEL
(com raiva)
Eu vou matar vocês duas!
TATIANA
Você não vai matar ninguém!
Vamo embora, Isabel, por favor!
ISABEL
Elas tão mentindo! Pra con-
fundir a gente.
TATIANA
Isso não importa mais! Não
tem mais helicóptero lá
fora. Nem cachorro. É a
nossa melhor chance. Nem que
seja pela porta da frente.
MADALENA
Pra que arriscar quando a
Isabel já sabe onde fica a
saí--
ISABEL
(cortante, como se visse algo
novo)
Que porra é essa?
TATIANA
Do que cê tá falando?
ISABEL
Ali, no canto da mesa.
ISABEL
Tá ligado.
TATIANA
(um pouco mais longe, no
volume que estava até então)
O que tá ligado?
ISABEL
Essa merda aqui. Eu tô reco-
nhecendo. Minha bisavó tinha
um desses. É um gravador
antigo.
TATIANA
Isso tem mais de setenta
anos. Não deve tá funcionando.
ISABEL
Tá sim. Tá ligado!
MADALENA
Pra minha proteção, caso nos
pegassem.
TATIANA
Pra sua proteção ou pra nos-
sa delação?
ISABEL
Eu não disse, Tatiana!?
TATIANA
Desliga essa merda.
ISABEL
Eu não sei como.
TATIANA
Joga no chão, pisa em cima,
destrói essa porra, Isabel!
205~
MADALENA
NÃO FAZ ISSO! POR FAVOR,
NÃO FAZ ISSO! É minha única
segurança, a única coisa que
garante--
TATIANA
Que te garante o quê!? Você
grava esses acordos? É isso?
Pra que você grava isso? É
pro governo? Pros OVELHAS!?
TERESA
Você devia é perguntar onde
tá a gravação do acordo com
a Isabel.
ISABEL
Não tem gravação nenhuma
porque não teve acordo ne-
nhum, sua filha da puta!
MADALENA
Eu tenho sim. Tá lá em cima.
Num lugar escondido.
ISABEL
Você é louca!
TERESA
Eu posso pegar pra você.
ARMA ENGATILHANDO.
ISABEL
NÃO! Ninguém sai daqui. Não
tem gravação nenhuma. Você
quer sair daqui pra delatar
a gente.
ISABEL
(desesperada e repetidamente)
VAI EMBORA! SAI DAQUI!
TATIANA GRITA.
ISABEL
(voz entorpecida)
Me desculpa, meu amor. Me
desculp--
FIM
__________
Daniel Veiga
Dramaturgo, ator e roteirista. Entre 2019 e 2020 foi o pri-
meiro docente homem trans no curso de Dramaturgia da
SP Escola de Teatro, mesmo curso onde se formou em 2016.
Também passou pelos Núcleos de Dramaturgia da ELT em
Santo André e do SESI em São Paulo.
207~
208~
208~
Girô
~Lucas Moura
sinopse~
Uma roda-gigante gira, quase vazia. Apenas uma cabine
está ocupada: nela estão Nani, uma mulher negra de 35
anos, e sua filha, de 15. Nani é enfermeira, trabalhou
durante os dois anos de pandemia num hospital. Mal
teve tempo de ver crescer a filha nesses dois anos. Hoje,
em seu primeiro dia de férias, ela, que não pôde se isolar,
busca refúgio no silêncio e no carinho da pequena. Nani
quer ver a cidade do alto com sua filha, mas sua cabine
é invadida por uma quantidade enorme de pessoas de
quem ela cuidou nestes dois anos, e a roda-gigante para.
209~
GIR
Ô
210~
PERSONAGENS
Nani
Uma única personagem, mas nela várias vozes de tantas ou-
tras e outros. Nani tem 35 anos, mas nesses poucos anos foi
responsável por ninar isolados e assustados e esquecidos
e feridos e tantos outros. Nani é filha de Nanã, e na lama de
seus braços recentemente pousaram dois anos de confusão.
Ela é acúmulo, carrega esse peso, ela mesma está imersa em
si. Mas Nani busca respiro.
A filha
Ela é um espectro, um eco, ela é a sombra da mãe.
Vírgula Sonora:
Som de vento e máquina enferrujada.
Sobreposição de áudio:
Respiro fundo de Nani.
Vírgula Sonora:
Som de vento.
Sobreposição de áudio:
Tossidas de Nani
Áudio de abertura:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas
refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de
hoje, as experiências do passado. A memória não é so-
nho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevi-
vência do passado “tal como foi”, e de como se dá no in-
consciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam
nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça
a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma ima-
gem que experimentamos na infância ou no momento
acontecido, porque nós não somos os mesmos de en-
tão e porque nossa percepção alterou-se e, com ela,
nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O
simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a
identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe
a sua diferença em termos de ponto de vista.
Vírgula Sonora:
Som de máquina enferrujada
Cama sonora:
Som de risada de criança, gritos,
falação, música de carrossel.
D
Áudio de Nani:
Lá vai a cidade… bela e calma e ardil.
Como uma criança de colo doente: silenciosa, mas
febril.
Áudio da filha:
Lá vai a cidade, lá vem, lá foi, lá volta.
Áudio de Nani:
Velha pra tanto baque, mas pra tanta morte: nova.
Áudio da filha:
Quantas voltas essa roda ainda pode dar, mãe?
Áudio de Nani:
Só tem a gente aqui, então eu pedi pra que a gente
ficasse até a hora de fechar o parque.
Áudio da filha:
Né muito tempo rodando, não? A gente vai ficar
tonta.
213~
Áudio da mãe:
(ri) É nada. Tonta eu já tava antes… estonteada.
Áudio da filha:
Pra que a gente veio aqui?
C
Áudio da mãe:
Pra eu poder desligar e te ouvir.
Áudio da filha:
Desligar o quê?
Áudio da mãe:
A cidade…
A cidade não cala. Eu sou a cidade.
Eu precisava calar a cidade no meu peito,
de algum jeito, e eu…
Áudio da filha:
A cidade não tá desligada.
Áudio da mãe:
Mas daqui de cima é possível, e se a gente imagi-
nasse que tava?
Virgula sonora:
Som de energia desligando.
Alguns barulhos da noite surgem,
como o som de grilos.
Áudio de Nani:
Do alto, o breu, um palco.
Áudio da filha:
O que você imagina?
Áudio de Nani:
Ah, minha menina, o que eu imagino?
Nesse palco, uma dança destrambelhada onde os
dançarinos
São os senhores e senhoras da ala em que eu
cuidava
Com seus andadores e bengalas
Áudio da filha:
Lá do hospital?
E
Áudio de Nani:
Sim.
Áudio da filha:
E sobre o que é a dança?
Áudio de Nani:
A dança é triste, mas fala de esperança
Dos amores que não viveram
Dos amores que deixaram
Das memórias que se perderam
O saldo de uma vida:
um rodopio, um giro feliz.
215~
Áudio da filha:
Tá sentindo saudade de lá, mãe?
Áudio de Nani:
Não, filha.
Áudio da filha:
Tá com cara de saudade, tá sentindo saudade de quê?
Áudio de Nani:
De não ser uma falha com você.
Áudio da filha:
Tá com cara de saudade, tá sentindo saudade de
quê?
Áudio de Nani:
De acordar sem ver gente morrer.
Áudio da filha:
Tá com cara de saudade, tá sentindo saudade de
quê?
Áudio de Nani:
Do café.
Áudio da filha:
É? A gente pode ir tomar café lá no hospital um dia,
se você quiser, sei que você tá de férias…
C
Áudio de Nani:
Não… A saudade do café espera, mesmo que a
cidade do café não pare.
216~
Virgula sonora:
Respiro fundo de Nani sopra o som
da cama sonora de volta em fade in.
Áudio da filha:
É bom ser enfermeira, mãe?
Áudio de Nani:
No meio de uma pandemia?
Áudio da filha:
É bom ser enfermeira, mãe?
Áudio de Nani:
No meio de uma guerra?
Áudio da filha:
É bom ser enfermeira, mãe?
Áudio de Nani:
Onde não respeitam velhos, nem pobres, nem
pretos, nem velhos, nem pobres pretos, nem pretos
velhos, nem velhos pobres, nem mulheres pobres
pretas velhas, na pandemia, na guerra, na fuga,
na sala de espera, na rua, na pista pro vôo do fim,
assim, como se não fosse todo momento fim e
começo, como se agora um mundo não tivesse
acabando e nascendo outro, como se o pouco
caso com quem precisa não fosse voltar pra quem
pouco fez, das seis às seis o turno, dos seis dias
férias, no sucateamento de verba, uma senhora
que nem podia ver o filho e eu sem ver a minha
pequena crescendo na beira.
217~
Áudio da filha:
Mãe, é bom ser enfermeira?
D
Áudio de Nani:
Sim. É uma profissão muito digna.
Áudio da filha:
Vou ser também.
Áudio de Nani:
Não. Imagina!
Áudio da filha:
Por que você escolheu aqui?
Áudio de Nani:
Não vai, tá? Não precisa.
Áudio da filha:
Por que aqui nesse parque?
Áudio de Nani:
Vai ser cantora, atriz, dançarina.
Áudio da filha:
Porque aqui nessa roda-gigante?
Áudio de Nani:
Não. Não precisa, vai ser atriz, dançarina, imagina!
218~
Áudio da filha:
Nesse parque que quase ninguém vem assim tão
tarde.
Nessa rua que quase ninguém passa assim tão
vazia.
Áudio de Nani:
Eu queria… Silêncio. Ficar sozinha. E espaço. E ficar
sozinha. E tempo.
Áudio da filha:
Então por que você me trouxe?
Áudio de Nani:
Porque sozinha não posso, eu tento. Mas, no en-
tanto, penso.
Penso, logo penso, logo penso, logo penso.
Nunca existo.
Morro talvez, aí: logo: não penso, aí: talvez:
acho bonito existir.
C
Áudio da filha:
Você existe, mãe. Vamos sair daqui.
Áudio de Nani:
Eu existo? Eu, Nani, pele preta, dentes claros, roupa
clara, conta cara, pés rachados, pêlos desfeitos,
medos refeitos a toda manhã, eu roupa cor de por-
celana, rachada por dentro, pele preta, olhos fun-
dos, enroscada nos ponteiros do mundo, eu existo?
219~
Áudio da filha:
Você tem 35 anos, mãe?
Áudio de Nani:
Eu sessenta, eu setenta e dois existo? Eu oitenta,
eu noventa e três existo?
Áudio da filha?
35, né?
Áudio de Nani:
E cinco… Quase seis. Você fez treze?
Áudio da filha:
Quinze.
Áudio de Nani:
Não pode ser que tenha quinze. Treze!
Áudio da filha:
Quinze e tantos medos, mãe. Quase dezesseis.
Áudio de Nani:
Quando foi que fez?
Áudio da filha:
Esqueceu o dia, Dona Nani? Fiz quinze faz
Áudio de Nani:
Não, treze.
220~
Áudio da filha:
Ah… Antes da pandemia.
Áudio de Nani:
Quê?
Áudio da filha:
Foi naquele dia que caiu o copo e o caco entrou no
meu dedo e aí uma corrente de ar veio e eu achei
que era gripe, mas a tosse foi aumentando e aí de
repente estamos em que ano? E logo sem escola
e a vida ficou mais legal, mas aí naturalmente você
tava no hospital e eu comecei a estudar pra ser
enfermeira, eu pego meu diploma sexta-feira.
Áudio de Nani:
Quê? Quantos anos você disse que tinha?
Áudio da filha:
Vinte e três.
Áudio de Nani:
O que aconteceu?
Áudio da filha:
A gente se descuidou, não tinha camisinha.
Áudio de Nani:
O que você fez?
Áudio da filha:
Nasce daqui um mês.
221~
Áudio de Nani:
O que você tá falando, menina?
E
Áudio da filha:
Imagina, mãe, seu netinho indo pra escola, começa
semana que vem.
Áudio de Nani:
Para essa roda! Parem agora! Agora!
Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo.
Vento forte.
Áudio da filha:
Mãe? Tá tudo bem?
Áudio de Nani:
Quantos anos você tem?
Áudio da filha:
Quinze. Amanhã é meu aniversário.
Áudio de Nani:
Filha… Me dá um abraço?
Áudio da filha:
Claro.
Áudio de Nani:
Eu não estava lá, não é? Eu não estive nesses dois anos.
222~
Áudio da filha:
Como assim, mãe?
Áudio de Nani:
Muita coisa poderia ter acontecido, você poderia
ter morrido, poderia ter sumido, poderia ter se apai-
xonado, poderia ter ficado grávida.
Áudio da filha:
Mas, mãe, você tava.
Áudio de Nani:
Tava?
Áudio da filha:
Eu conheci alguém… Lembra?
Áudio de Nani:
Lembro.
Áudio da filha:
E eu te apresentei, lembra?
Áudio de Nani:
Lembro.
Áudio de filha:
Mas eu não tô grávida. Ele ama sua comida, ama a
lasanha que você faz quando chega na sexta-feira
em casa.
Áudio de Nani:
Eu lembro de tudo, desses dois anos, mas eu…
tava?
223~
Áudio de filha:
Em cada gesto e palavra, em cada aprendizado e
prova, sempre carinhosa, um pouco teimosa, não
quer tirar nunca o uniforme, come com ele, toma
banho, dorme…
Áudio de Nani:
Eu… É que se eles me chamam
Áudio de filha:
Sim, eu sei, você corre.
Áudio de Nani:
Eu te comprei um presente… de aniversário.
Áudio da filha:
Comprou?
Áudio de Nani:
Sim… Tá aqui.
Áudio da filha:
Deixa eu ver!
Áudio de Nani:
Vê.
Áudio da filha:
Mãe! Eu amei, um respirador!
Áudio de Nani:
Não!
224~
Áudio da filha:
Uma maca?
Áudio de Nani:
Não!
Áudio da filha:
Mãe… Eu não esperava… É lindo.
Áudio de Nani:
Você gostou?
Áudio da filha:
Sim, eu vou usar sempre.
Áudio de Nani:
Me faz lembrar a gente.
Áudio da filha:
Eu nunca vou esquecer.
Áudio de Nani:
Vem cá…
Áudio da filha:
Eu te amo.
Áudio de Nani:
Eu sinto muita culpa.
Áudio da filha:
Eu te amo.
225~
Áudio de Nani:
Eu sinto muita
Áudio da filha:
Eu te amo.
Áudio de Nani:
Eu sinto.
Áudio de Nani:
Filha, quando eu ficar velha
Áudio da filha:
Tem muito tempo ainda.
Áudio de Nani:
Espera. É sério. Quando eu ficar velha, me coloca
em algum lugar, me deixa ser cuidada em algum
lugar e vai viver sua vida, com seus filhos, suas
filhas.
Áudio da filha:
De jeito nenhum.
Áudio de Nani:
Mas é um favor.
Áudio da filha:
Negado. Você deu tanto cuidado, vai precisar ser
cuidada.
226~
Áudio de Nani:
No Brasil, quando você envelhece, vira brasa e
some, menina. Os olhos não te enxergam mais. Eu
vi acontecer.
Áudio da filha:
Você vai envelhecer sorrindo do meu lado.
Áudio de Nani:
Você parece tão madura… tão mais velha que a
sua idade.
Áudio da filha:
Eu aprendi a me cuidar nesse tempo, mãe.
Áudio de Nani:
Que tempo?
Áudio da filha:
Nesses… dois anos?
Virgula sonora:
Sons de hospital, aparelhos,
macas, ambulância.
Sobreposição de áudio:
U ma p ro fu são d e voze s f alam
“ B o m d i a Do na, N ani”
Áudio de Nani:
O que eles tão fazendo aqui?
Áudio da filha:
Eles quem, mãe?
227~
Áudio de Nani:
Os pacientes!
Áudio da filha:
Não tem ninguém aqui.
Áudio de Nani:
Deve ser urgente!
Áudio da filha:
Mãe, se acalma!
Áudio de Nani:
Não vai caber aqui, eles deviam estar em outra ala!
Esses pra UTI, aqueles pra pediátrica, não vai dar,
vai cair a cabine, vai quebrar a roda, vai parar a ala,
vai faltar oxigênio, vai faltar maca!
Áudio da filha:
Calma, mãe! Respira agora! Eu sei o que tá aconte-
cendo com a senhora! Isso é ansiedade! É quando
um tempo largo demais tenta passar por um tubo
fino demais que liga a cabeça ao coração, e os
dois, cabeça e coração, ficam por um tempo sem
tempo. Você precisa de ar, mãe, precisa de tempo.
Áudio de Nani:
Alguém gira essa roda!
Áudio da filha:
Calma, mãe!
228~
Áudio de Nani:
Gira! Gira rápido!
Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo.
Vento forte.
Canto de Nanã cantarolado.
C
Áudio de Nani:
Mãe? Reconhece o lugar?
Áudio da mãe:
Não, minha filha, que lugar é esse?
Áudio de Nani:
Eu pedi pro moço pra que a gente só descesse
quando a gente quiser, tá só a gente na roda.
Áudio da mãe:
Eu não venho numa roda-gigante já faz muito tempo.
Áudio de Nani:
É, a senhora não lembra, mas eu me lembro. A
senhora me trouxe aqui quando eu tinha quinze
anos?
Áudio da mãe:
Ah, foi?
229~
Áudio de Nani:
Sim, era seu primeiro dia de férias.
Áudio da mãe:
Ah, era?
Áudio de Nani:
Você tava um pouco cansada, eu diria… Depois de
dois anos de pandemia.
Áudio da mãe:
Aquele tempo foi demais pra mim, mas no fim, no
fim… no fim… O que aconteceu no fim, filha?
Áudio de Nani:
O que realmente importa, mãe, é que naquele dia
eu decidi ser enfermeira. A senhora, eu não sei se
queria, mas eu tive certeza. Eu sempre tive orgulho
da sua profissão.
Áudio da mãe:
Não sei não… E deu certo pra você?
Áudio de Nani:
Deu… Isso eu posso dizer. E se você quer saber, lá
no hospital eles me chamam de Nani, em homena-
gem à senhora.
Áudio da mãe:
Mas você não sou eu, né, minha filha? Nem eu sou
você. Quem sou?
230~
Áudio de Nani:
Você é a Dona Nani.
Áudio da mãe:
E quem é você?
Áudio de Nani:
Dona Nani.
Virgula sonora:
Sons de hospital, aparelhos,
macas, ambulância.
Sobreposição de áudio:
U ma p ro fu são d e voze s f alam
“ B o m d i a Do na, N ani”
Áudio de Nani:
Volta essa roda! Eu quero descer!
E
Áudio da filha:
Calma, mãe! Respira agora! Eu sei o que tá aconte-
cendo com a senhora! Isso é ansiedade! É quando
um tempo largo demais tenta passar por um tubo
fino demais que liga a cabeça ao coração, e os
dois, cabeça e coração, ficam por um tempo sem
tempo. Você precisa de ar, mãe, precisa de tempo.
Áudio de Nani:
Volta essa roda! Eu quero descer!
231~
Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo. Ven-
to forte.
Canto de Nanã cantarolado.
C
Áudio de Nani:
Que lugar é esse?
Áudio da avó:
Oi, minha neta.
Áudio de Nani:
Vó?
Cama sonora:
Som de passos na lama.
Áudio da avó:
Vamo caminhá um bucado?
Áudio de Nani:
Onde eu tô? Aqui é o passado?
Áudio da avó:
Eu nem sei o que é isso, minha fia. Aqui é só o que é.
Áudio de Nani:
E como eu vim parar aqui?
232~
Áudio da avó:
Ué… E eu que sei?
Áudio de Nani:
Eu tava nesse mesmo instante na
Áudio da avó:
Sabia que vão construir uma roda-gigante aqui?
É um troço que arriba a gente lá no alto.
Áudio de Nani:
Que isso no seu colo, vó?
Áudio da avó:
A criança?
Áudio de Nani:
Sim.
Áudio da avó:
É você, acabou de nascer. Linda feito só. Sabe o que
eu gosto de fazer? Sussurrar no seus ouvido que
você vai ser dôtôra. Médica, enfermeira, professôra.
Neta minha
não vai depender de homem nenhum.
Áudio de Nani:
E a senhora é o que, vó?
Áudio da avó:
Eu? Eu sou só o que eu sou. Sou sua avó, sou mãe,
sou esposa e sou viva, minha fia, na pele que eu
233~
Áudio de Nani:
Não te cansa, vó? Estar viva?
Áudio da avó:
Cansa cansa, mas a outra opção é ruim demais (ri).
Mas vai chegá um dia que eu vô sê melhor que viva,
eu vô sê memória.
Áudio de Nani:
Que que é ser memória, vó?
Áudio de Nani:
É sê só as parte boa, a não sê que você seja só parte
ruim. E sê memória igual sê viva porque a gente con-
tinua mudando as coisa. Minha neta vai sê dôtora.
Virgula Sonora:
Som de tranco, ferros batendo.
Vento forte.
A frase continua em eco
“minha neta vai sê dôtôra”.
D
Áudio da filha:
Quantas voltas essa roda ainda pode dar, mãe?
Áudio de Nani:
Quantas a gente quiser, meu bem, eu tô aqui só pra
ficar com você e descansar.
234~
Áudio da filha:
Tá muito cansada desses dois anos, mãe?
Áudio de Nani:
Foi como mergulhar na lama, meu amor, mas
agora eu vou respirar…
Áudio da filha:
Mãe…
Áudio de Nani:
Oi, meu amor.
Áudio da filha:
Sabe o que eu quero ser quando crescer?
Vírgula Sonora:
Som de máquina enferrujada
vai crescendo em fade in.
Cama sonora:
Som de risada de criança, gritos,
falação, música de carrossel.
Áudio de encerramento:
Enlameados os corpos reinventados, virados, des-
conhecidos, perdidos, desnorteados. À lama que
puxa e a memória lava, à lama que mergulha e a
memória guarda, à lama que não erra, que espera
e encerra toda dor, todo amor e toda reza, ofereço
essas poucas palavras, que são o que me cabe,
235~
Virgula sonora:
S o m d e r e s p i r o f u n d o b u s c a n d o a r.
__________
Lucas Moura
Contemplado com o Prêmio Solano Trintade para Drama-
turgias Negras, Prêmio Zé Renato (2020) e Edital Drama-
turgias do Tempo do TUSP (2021). Como podcaster, foi
um dos vencedores do edital “Sound Up Brasil”, do Spotify,
que premiou 20 podcasters negros e indígenas brasileiros. É
autor do podcast “Calunguinha, o cantador de histórias”.
Sobre o projeto audiodrama