A Poesia de Cecília Meireles em Solombra
A Poesia de Cecília Meireles em Solombra
A Poesia de Cecília Meireles em Solombra
Assis
2001
SUMRIO
INTRODUO...........................................................................................................04
I OS ELEMENTOS.....................................................................................................26
1.1 Terra............... .......................................................................................................27
1.2 gua.......................................................................................................................32
1.3 Ar...........................................................................................................................62
1.4 Fogo.......................................................................................................................69
II RELAES ESSENCIAIS: TEMPORALIDADE E ESPACIALIDADE.............94
2.1 Temporalidade....................................................................................................100
2.1.1 O tempo em si..................................................................................................100
2.1.2
2.2 Espacialidade.......................................................................................................131
2.2.1 Dimenses........................................................................................................131
2.2.2 Formas.............................................................................................................134
III INTELECTO........................................................................................................142
3.1 Formaes e indagaes.....................................................................................142
3.2 Comunicaes e impossibilidades .....................................................................148
CONCLUSES.........................................................................................................153
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................160
APNDICE................................................................................................................172
Resumo
Abstract
INTRODUO
do Gabinete
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Uma
vivncia
intrinsecamente
em
expanso
interior,
em
aprofundamento.
Solombra integra a obra potica ceciliana: cada um dos seus
versos enlaa-se nesta rede textual. Os mais profundos nexos e o fluxo contnuo
do mundo so tematizados no livro. Prope reflexes sobre a falta de sentido da
existncia em seu imediatismo, a que se ope a sobrevivncia, ainda que precria,
pelo canto, pela poesia. Dizer pela poesia dizer pela arte. A vida em suas
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lugar
de
fundamento
da
potica
ceciliana:
modernidade,
observaes
iniciais
sobre
poemrio
como
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substncia
poemtica, pois eles assumem o papel de centro de uma linha de fora no plano de
contedo do poemrio: um desgnio configurador das imagens e dos ritmos
constituintes da poeticidade da obra em estudo.
Que critrio adotar na seleo dos
lexemas-chave? A obra
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elementos
constituintes
da
matria
dispostos
na
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evidenciando os objetivos
e uma
I OS ELEMENTOS
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1.1 Terra
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mas nem por isso menos perceptvel e satisfatrio. Embora distante, parte de uma
vivncia.
No dcimo verso do 19 poema, Se agora me esquecer, nada que a
vista alcana, ... se eu te esquecer ficar pelo mundo, o esquecimento ganha maior
nitidez. O pronome de tratamento da segunda pessoa do singular pe em cena pela
primeira vez, no poema, um interlocutor claramente apontado. Este o mesmo ser
presente em todo o poemrio, reaparecendo, poema a poema, nas cogitaes do eu
lrico. Nas estrofes da primeira parte, as trs primeiras, se o eu poemtico fosse o
paciente, o objeto do esquecimento, sobre a sua presena no mundo sobreviveria a
impossibilidade de encontrar-se em sua plenitude. Aqui, o esquecimento daquele ser,
pelo sujeito poemtico, leva ao deslocamento em sua realidade definida em face do
seu interlocutor. Acontece a sua precipitao no torvelinho do mundo. A persona
titular do discurso poemtico percorre o caminho do abandono ao vazio existencial,
decorrente do esquecimento. Torna-se morta e prisioneira, mas de um tipo que no
recebe sepultura nem cerca-se de grades. Introjeta a morte. Vive a sua vagueza sobre
a terra.
Na sua condio de corpo duro e slido do reino mineral, a pedra
contrasta com as transformaes inerentes ao biolgico nas suas etapas de
crescimento, maturidade, velhice e morte. Representa a solidez, a dureza, o volume,
a escultura do movimento essencial (Cirlot, 1984, p.451).
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1.2 gua
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explicar, se revelar.
O terceiro verso do 24 poema, Tomo nos olhos delicadamente,
completa a segunda parte do verso intermedirio da primeira estrofe: jardim de puro
tempo/ com ramos de silncio unindo os mundos.// O processo de encadeamento
sempre utilizado. Em torno do verbo na primeira pessoa do singular do presente do
indicativo, organiza-se a primeira parte da estrofe; a primeira indicao, que se
mantm at o ltimo verso do poema, de que o eu poemtico vai exercitar a sua fala
de forma direta, invariavelmente. Do primeiro verso encadeado ao segundo, Tomo
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nos olhos delicadamente/ esta noite, resulta a imagem de uma viso meiga, terna,
sutil, cuidadosa. O objeto desta viso encontra-se no segundo verso. O motivo no a
morte, mas a reflexo sobre a vida, graas memria, que lhe restitui lembrana
cansadas lgrimas antigas, longas histrias sucessivas; no cortejo de glrias
passageiras, na finitude do homem, tema recorrente neste poemrio, retorna, prximo
ao sujeito poemtico, segundo a indicao do pronome demonstrativo que abre o
verso. O eu lrico vive o recolhimento em seu mundo de sonho e poesia. Da at o
final da estrofe, acontece um aposto.
O pronome demonstrativo com que se abre o 18 poema, Isto que
vou cantando j levado, permite um entendimento constitudo pela expresso e
pelo contedo. O pronome demonstrativo usado anaforicamente, neutralizado, isto,
(o que se segue): o que veio antes isso. Num e noutro plano o objeto da designao
o canto. Nele encontram acolhimento o passado, o presente e o futuro, as
significaes e os aspectos puramente sensoriais da msica. A palavra inicial do
poema, em sua neutralidade fixa, uma certa neutralizao semntica, transformandose, assim, numa espcie de arquilexema. O campo de abrangncia, da cano
implcita no verso, ganha em expanso. A existncia de uma forma aparentada
msica no uma mera presuno, basta uma olhada para o primeiro verso do
poema. Quem canta faz uma cano. Esta a estratgia, a forma de expresso,
adotada pelo eu do poema. O eu lrico transforma-se em agente do canto j na sua
localizao elptica, antecedendo locuo verbal. No mbito ainda do primeiro
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Do encontro e da
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que o objeto do amor o ser pleno, interpretao que se confirma no dcimo verso:
paralelamente o sujeito do amor tambm atinge a sua plenitude.
A interpretao do terceiro terceto do oitavo poema, Arco de
pedra, torre em nuvens embutida [,], retomada, aps vrios relativos-locativos. E
termina pela mesma pontuao. A estrofe existe entre esses dois limites. Outra
peculiaridade dela a inexistncia, em seu mbito, de maisculas. Esta apresentao
grfica define um campo de reflexo, parcialmente autnomo nas fronteiras do
poema. Um eu poemtico obtm sua voz e articula-se autora ao adotar o gnero
dela: homologia entre biografia e esttica. A feminilidade explcita. As vozes
provenientes do ser mulher, socialmente, num momento de manifestao de presena
e de registro de discurso encontram uma forma de expresso direta e inegvel
(Bakhtin, 1993, p.85-106).
Formas arquitetnicas nos primeiros versos, ainda no oitavo poema.
Lembre-se, pequenas formas da natureza, flores e minrios, nesta estrofe, formas
geomtricas, no encerramento dos tercetos, sempre a oposio entre o eu lrico e as
formas da natureza e da cultura. Expressionismo, reorganizao simblica da
natureza de uma perspectiva subjetiva. No encadeamento entre os versos dcimo e
11, ocorre uma sonoridade de amplitude determinada pela repetio e combinao
de fonemas consonantais e voclicos, passando uma sugesto de claridade, prxima
daquela do cristal. O cristal e a rosa partilham a fragilidade. Um quebra com
facilidade e a outra vive efemeramente. Assim, a rosa e o cristal prendem-se na haste
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sobre a terra. Isto na primeira metade do verso de abertura, na segunda parte, e agora
no consigo/ recordar um sequer,
desenvolve da para o seguinte. Neste momento, agora, nenhum ser se deixa apanhar
pela recordao. Os seus rostos no trazem lembranas.
Os dois versos finais do ltimo terceto e o monstico do 14 poema,
Nuvens dos olhos meus, de altas chuvas paradas [,], organizam-se como unidade
fnica, gramatical e semntica. Tudo se vai, tudo se perde, e vs detendo,/ num
preso cu, fora da vida, as guas densas// de inalcanveis rostos amados!// Uma
exclamao engloba as trs unidades mtricas. No 11 verso, uma pausa interna
divide-o em duas partes. Na primeira delas, a indicao do ilimitado das perdas. A
existncia se resume em desejos, satisfaes e perdas: no entanto, as ltimas
predominam. A realidade em que a frustrao exerce o seu domnio colocada diante
do ser a que o protagonista do poema se dirige, reverentemente. Trata-se da aceitao
e da compreenso, numa atitude afirmativa, de inteligncia e sensibilidade,
decorrncia do acesso aos meandros de uma realidade sobre que se pensa, se reflete,
se elabora. O aprisionamento num "cu", a localizao alm da vida, da densidade
das "guas", no seu desdobramento simblico de origem, das individualidades a quem
se dedica o afeto, representadas no poema como "rostos amados", numa esfera onde
no se podem alcanar, revelam a natureza primordial, transcendente, do ser. Os
olhos nublados, os sentidos perturbados pelo torvelinho da existncia, da realidade
humana, na sua acuidade sensorial, so destitudos de recursos que tornariam possvel
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interior da realidade instaurada pelo poema. Mos, olhos, lbios, medusas da noite
distante, profunda, e "espumas breves" que remetem s medusas marinhas.
Parte superior do corpo humano, a cabea representa o princpio
ativo, a autoridade, o comando, o ordenamento e a manifestao do esprito em
oposio ao corpo que matria. Nela, ocorre a convergncia para o nico, a
perfeio, a divindade. Remete, assim, para o mais alto, o elevado (Chevalier e
Gheerbrant, 1988, p.151-52).
Da transformao do objeto de abordagem do 21 poema, H um
lbio sobre a noite: um lbio sem palavra [.], em espada, o lbio da noite uma
espada suspensa, vem o deslocamento de sua percepo para um outro campo dos
sentidos: do auditivo para o visual, num procedimento sinestsico. No oitavo verso,
uma metonmia, o ferimento irreversvel acontece no nos olhos, mas num dos seus
atributos, a alegria. Os olhos percebem a espada, no nono verso. Localizam-se entre
o espao humano, dos pedidos, das splicas, e o ambiente celestial doador do que se
pede. Lbio ou espada, silncio ou linguagem, eis o enigma. Nas relaes entre a
espada e os lbios, o jogo ertico configura-se: o erotismo decorre da aproximao
dos dois lexemas.
Os "olhos" do verso inicial do 24 poema, Tomo nos olhos
delicadamente, tm por objeto de viso a delicadeza, a sutileza, de uma noite que
mais parece uma imagem abstrata, lmpida, destituda de arestas, separada de traos
concretos do que o comum das coisas que no mundo se v. Parte do corpo humano
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onde "a palavra se interrompe", nos lbios o discurso encontra a sua possibilidade
fsica. Neles, a metonmia de linguagem se concretiza. Assim, a leitura do quinto
verso do stimo poema, Caminho pelo acaso dos meus muros [,], permite uma
aproximao de seus sentidos.
Nos limites da terceira estrofe do dcimo poema, S tu sabes usar
to difano mistrio [:], Desdm de flor... voz terrena, escuta as rosas!/ ... teu
lbio sobre a tarde apenas a inquietude/ de quem escuta, quem te espera, quem no
te ouve, dominada pelas reticncias e exclamaes, o oitavo verso, o do meio,
apresenta traos, como no anterior, que exigem leitura reflexiva e plena de
verticalizaes. Alm do erotismo, presente nas relaes entre lbio e rosa, o
poema permite a explorao da imagem do espelho sugerida, apresentada
indiretamente, em seus versos. Inicialmente, em culturas antigas, o espelho
funcionava como instrumento de observao do cu, por etimologia significa olhar
as estrelas. Ele reflete o corao e a conscincia, a sabedoria e o conhecimento, a
identidade e a diferena: a especulao um conhecimento indireto. O espelho
representa o lunar e o feminino (Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.393-95). Existe
antes a analogia gua/espelho, e a variabilidade temporal como carter do espelho
(Cirlot, 1984, p.239). Comea por travesso, mas no se trata de uma nova fala, a
continuao de "desdm de flor". Os travesses pem em evidncia a insero,
marcada pela invocao. Seguem repetidas reticncias, um tempo de espera antes da
audio da fala a seguir. O encadeamento entre os trs versos da estrofe ocorre com
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do 26 poema, Esses adeuses que caam pelos mares [,]: "No sei se tudo entendo: e
nada mais pergunto."
Mas o lbio da noite uma espada suspensa./ Ferida para sempre a
alegria dos olhos/ que a percebem parada entre a splica e o cu.// Iniciada por uma
conjuno adversativa, e, portanto, estabelecendo uma oposio ao dito
anteriormente, a terceira estrofe deste 21 poema, em que a palavra lbio aparece
quatro vezes, organiza-se no aspecto da pontuao, e melodicamente, de maneira
semelhante primeira delas. O stimo verso apropria-se de elementos do primeiro,
transformando "um lbio sobre a noite" em "o lbio da noite". Observa-se que, de um
verso para o outro, no houve apenas a mudana do artigo indefinido para definido, o
que era esperado. O lbio e a noite assumem uma proximidade muito maior. Da
aproximao dos dois ocorre a mudana em "espada", ameaadora, apocalptica,
postada como uma ameaa em suspenso: a espada de Dmocles sobre a cabea dos
humanos. O ser dotado de possibilidades reflexivas, o homem sempre de volta
questo de suas origens, da mesma forma que se interroga sobre o seu destino,
funcionando a sua conscincia somente na elaborao dos dois temas e na intuio
das ameaas a sua integridade em cada perigo da travessia, da existncia.
Ressurge, pela quarta vez a palavra lbio, completando o quadro do
seu aparecimento no poema. Nas duas aparies na primeira estrofe, ela antecedida
de artigo indefinido. Na terceira estrofe, o artigo definido precede o termo na sua
repetio, evidenciando a coeso referencial por retomada. No verso final, o artigo
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indefinido anteposto a lbio permite pensar que a palavra designa um objeto diferente
nessa nova ocorrncia. No primeiro caso uma linguagem que silncio, ausncia de
palavras, inaudvel ento. No segundo momento, a designao do ser, de Deus ou da
outridade, a audio do discurso ocorre, longinquamente. To distante que a sua
escuta em vo, deixando patente a ineficcia, a incomunicao. O tom de desalento
indisfarvel. O abandono continua.
A enunciao no poema ocorre sempre em terceira pessoa. O
sujeito poemtico permanece como os olhos que vem e as mos que pintam o
quadro. A pungncia e a desolao procedem do retrato da incomunicabilidade entre
dois mundos, o da imanncia e o da transcendncia: o que afinal obriga o ser-nomundo a assumir a contingncia.
Do ltimo verso do primeiro terceto ao ltimo do segundo no
stimo poema, Caminho pelo acaso dos meus muros [,], quatro versos formadores de
um conjunto que vai de uma estrofe a outra encadeadamente, a sua segunda parte
ganha corpo. As seis slabas iniciais constituem um eixo do trecho em destaque.
Entre os objetos do verbo ver no terceiro verso "mos" aparece com a devida
predicao. O sintagma brando aceno, no seu sentido de mansuetude e ausncia de
fora gestualmente expressa, imagem abstrata, concretiza-se na palavra mos. As
"mos" entram num processo de apresentao de lexemas indicadores de partes do
corpo. As mos, nos seus movimentos configuradores do gesto de adeus, assumem a
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leitura
anagramtica,
na
desmontagem
seguida
da
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os seus movimentos em busca de uma expresso. Slabas baixas e slabas altas, descer
e subir, agudos e graves, curva meldica, inspirar e expirar, entoao e expresso so
termos de uma equao. A melodia acolhe intimamente a individualidade e a
expressividade. A entonao o suporte fsico da atividade lgica de perguntar:
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1.3 Ar
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14 poema, Nuvens dos olhos meus, de altas chuvas paradas [,]. Ele se encontra no
texto potico em substituio ao interlocutor pressuposto. O significado da unidade
lexical vai daquele primeiro, denotativo, de guas densas, do penltimo verso,
mudadas do vaporoso para o lquido, com a mudana de estado remetendo a uma
camada de significaes que se agregam quela inicial: a metamorfose do interno
para o externo, da vida para a morte, do natural para o sobrenatural.
O poema comporta uma interpretao em dois blocos. Na primeira
parte, do primeiro ao nono verso, domina o carter interno, o lirismo dos olhos
meus, no primeiro verso, com a estrofe inicial discorrendo sobre os atributos de
nuvens. A ausncia de testemunha da passagem do tempo o assunto do quarto
verso. No quinto, tudo [...] cai, pela sombra entre os planetas, segundo o sexto
verso. O espao, no stimo verso, o tempo, no oitavo, terminam em segredos,
no nono verso. Para comear a segunda parte do poema, uma igualdade se constata
no dcimo verso: grandes nuvens um sintagma tomado por sinnimo do seu
parceiro na interrogao, olhos severos. Agora a elaborao poemtica adquire um
carter objetivo, o que era interno torna-se externo, ganha concretude e autonomia,
identificando-se a essncia do interlocutor diante do sujeito: as guas densas do 12
verso. Nele, e no monstico, aparecem fora da vida e os rostos amados,
respectivamente, recuperao insistente do sobrenatural, do transcendente.
As nuvens apresentam um carter intermedirio medida
que
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No
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criaes, se reunir consigo mesmo e com seus semelhantes: ser o mundo sem
cessar de ser ele mesmo. Nossa poesia conscincia da separao e tentativa de
reunir o que foi separado. No poema, o ser e o desejo de ser pactuam por um
instante, como o fruto e os lbios. Poesia, momentnea reconciliao: ontem,
hoje, amanh; aqui e ali; tu, eu, ele, ns. Tudo est presente: ser presena.
transcendncia geradora de
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1.4 Fogo
Mas desde que todas (as coisas) luz e noites esto denominadas,
e os (nomes aplicados) a estas e aquelas segundo seus poderes,
tudo est cheio em conjunto de luz,
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segundo segmento, entre duas pausas porque haver mais um outro, constitui-se de
uma preposio e de um substantivo. O substantivo um derivado do verbo esperar.
Por esperar, condensao, por elipse, por ser esperana. Este verbo vai permitir
tambm, pela repetio do processo de derivao, o ressurgimento do morfema
lexical bsico pela terceira vez no verso. Os lexemas repetidos indicam,
reiteradamente, um estado.
Eu fantasma que deixo os litorais humanos,/ sinto o mundo
chorar como em lngua estrangeira:/ eu sei de outra esperana: eu conheo outra
dor//. Esta a segunda estrofe do sexto poema, Para pensar em ti todas as horas
fogem [:]. A finalizao do quinto verso por dois pontos permite entender-se que esta
pontuao anuncia o desenvolvimento dos dois versos iniciais da estrofe no ltimo
deles. Este verso, convm destacar, apresenta a singularidade de dividir-se extamente
ao meio por novos dois pontos. Deste modo, a sua segunda parte um
desenvolvimento do desenvolvimento, uma explicao da explicao. As duas partes
dos versos coincidem em trs palavras e contrastam em duas. O saber da primeira
parte torna-se conhecer da segunda e a esperana transforma-se em dor. A esperana
e a dor comutam entre si. As duas localizam-se no mesmo eixo paradigmtico. No
sexto verso deste nono poema, O gosto da Beleza em meu lbio descansa, a estrutura
semntica das frases constituintes de cada uma de suas partes a mesma. A
esperana e a dor dadas pelo saber, experimentar o gosto, sabor, e pelo conhecer,
manter relaes com elas, pertencem a uma esfera distante dos litorais humanos.
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tom veio da presena de um verbo indicativo de desejo. Na terceira, Vejo a flor, vejo
no ar a mensagem das nuvens,/ e na minha memria s imortalidade/ vejo as
datas, escuto o prprio corao,
evoca a delicadeza, o
perfume, a
sempre
presente,
em
suas
cogitaes,
agora
definido
como
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Quem deseja aprender a filosofar vai para a solido. Solido tarefa e esforo
de conviver com as coisas na escuta do obscuro de seu estar-a. Um conviver
desarmado, um confrontar-se com a experincia sem os recursos de qualquer
conhecimento, um encontrar-se corpo a corpo. Feliz quem pode com esta solido.
Dela nascer um novo mundo, um respeito diferente s coisas que nos cercam.
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almejada libertao. Ela, definida pelos seus dois plos, de afastamento imposto e
doloroso e de escolha fecunda, ocasionalmente feliz, integra o conjunto das
experincias comuns do homem. Assegura a existncia autrquica do sbio.
Tradicionalmente, ele se isola em sua sabedoria. Vive a sua perfeio solitariamente.
No isolamento, forja o seu ideal de sapincia, de sublimidade. A loucura, uma
dimenso patolgica da existncia humana, mas no esgotando-se nesta dimenso,
tambm se concretiza em solido. Pela solido e pelo silncio, torna-se acessvel,
numa palavra, a libertao, como objeto do querer. A busca de uma melhor
comunicao pode implicar a exigncia da solido. Este significado faz, igualmente,
parte do termo. Neste sentido, filosoficamente mais apropriado ao termo, a solido
no isolamento, mas uma forma diferenciada de viver. Traz existncia o
imperativo de uma comunicao superior e profunda. Percorre um caminho que
abandona os enganos do dia-a-dia, o senso comum, e encontra a possibilidade de
conhecimentos com bases legtimas. A solido no dispensa os laos humanos
gratuitamente. Ela permite o reencontro com a herana dos homens do passado e
com o legado daqueles que vivem em outros lugares. No isolamento,
aprofundamento, encontro consigo, convivncia (Paz, 1982, p.309-348).
Boa parte do que foi dito sobre o primeiro segmento do verso
aplica-se ao segundo. Os elementos do plano de expresso repetem-se. O contraste
passa a existir pela substituio da palavra solido pela palavra silncio, na segunda
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Solido, solido e amor completo, acontece uma recolha, uma sntese e uma
consolidao dos sentidos postos anteriormente.
Todos os versos da primeira estrofe, saltando para o 22 poema,
Sobre um passo de luz outro passo de sombra [.], terminam em ponto final. A
segunda comea com um verso de igual pontuao. Entre o projetar e o acontecer se
estabelece uma anttese. A completa inexistncia de projetos ope-se totalidade dos
acontecimentos, negao e afirmao sem nuances. Em Movo-me em solido, pela
primeira vez, o eu poemtico assume explicitamente o seu discurso, no quinto verso,
em que o verbo usado confirma o movimento detectado desde o incio do poema. A
solido apontada, pelo sujeito poemtico, como ambiente de sua atuao interrelaciona-se a mais uma oposio: a da presena que ausncia, alheamento,
separao. O sexto verso traz consigo, implicitamente, a sua oposio particular. Ele
resulta da adio da imagem de futuro de sua primeira parte e da insero de passado
na segunda, j que a memria tem por contedo os seres e acontecimentos idos. A
leitura dessa segunda estrofe vai exibindo o eixo tensional do poema como uma
sucesso de oposies e contrastes comprometidos com uma viso dinmica e de
passagem dos entes e dos acontecimentos.
Uma transformao do estado de esperana o que vai expresso no
quinto verso do terceiro poema, H mil rostos na terra: e agora no consigo. Ela se
muda em sonho afvel. Afabilidade, doura, mansuetude caracterizam o sonho, o
elemento principal deste binmio. O tom vai da ansiedade e da dvida para uma
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Isso corresponde
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parece
de um interlocutor isolado,
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falar e os lexemas de seu campo semntico, por morrer, propicia uma chave
interpretativa do poema, revelando a imerso da realidade humana na linguagem ao
viver, tendo no morrer o seu limite. Na elaborao de uma imagem sntese do poema,
h um eixo que vai do terceiro verso ao 12, distribuindo alguns lexemas-chave em
seu percurso, "claridade", no terceiro verso, "ver" [o] "eterno" e [o] "instante" no
quinto, o "coral de pensamento" no sexto, o [dia] "lmpido" no 12; num campo
caracterizado pela visualidade.
Uma vida cantada me rodeia declara o eu poemtico logo na
abertura do 25 poema, no verso ttulo. No terceiro verso, o canto apresentado
como envolvimento e proteo. Permite a interrogao sobre o destino, no quarto
verso. No quinto verso, a pergunta fundamental: pela morte e pelo sentido do
ser. O desejo e a vida, no sexto verso, assumem um papel central no poema. No
stimo verso, trs lexemas axiais so identificados: vida, voz e canta. Alm de
sorte e silncio, da categoria dos nomes, no oitavo verso, o verbo roubar, de
apario diversificada no 20 poema, Quero roubar morte esses rostos de ncar [,],
renova a tentativa de entender a origem, a natureza e a finalidade dos seres e dos
acontecimentos. Casualidade humana obscura e incerta, o dcimo verso, voltando a
Uma vida cantada me rodeia [.], um sintagma em que se alternam, se misturam
adjetivos e substantivos, o inusual gerando um efeito esttico pelo mudana da leitura
decorrente do deslocamento do ncleo sintagmtico: humana adquire um valor
substantivo e casualidade de adjetivo em que um substantivo triplamente
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sombra aparece, no sculo XIV, ligada ao latim umbra e, entre parnteses, assinala:
talvez de sub illa umbra.
Joan Corominas data solombra do sculo XIII (1250). Segundo ele,
uma forma corrente em dialetos leoneses, judeu-espanhis, portugueses e ocitanos,
derivada da aglutinao de sol e sombra (1954, p.271-4).
Na sua segunda ocorrncia, que parece ser o sentido da obra, a
palavra solombra antecipa a problemtica e o conjunto de figuras e imagens que vir
a permear todo o poemrio. No texto potico, as vozes que pronunciam a palavra
localizam-se na Terra, lugar onde vivem os homens, e no Cu, espao transcendente,
no nomeando o ser de que falam, independentemente de sua origem, das vozes,
terrena ou celestial, ocorrncia reiterada no 26 poema, Dizei-me vosso nome [!]
Acendei vossa ausncia [1]. O mundo das sombras matiza a espiritualidade.
O lexema solombra, depois de duas aparies iniciais, no ttulo e
na epgrafe, reaparece, na metade do poemrio como sombra. Sem mos, sem
posse, pela sombra, entre os planetas, menciona o sexto verso do 14 poema, Nuvens
dos olhos meus, de altas chuvas paradas [,], na sua segunda estrofe, que apresenta
duas unidades gramaticais. Sem testemunho vo passando as horas belas, o
primeiro verso do terceto, uma das frases. Os dois versos seguintes
retratam a
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extenso das perdas que descem sobre todas as coisas. No h seno a fugacidade do
tempo, com as inevitveis perdas: vo-se os dias em tumulto, num verso; em
noites ermas, no seguinte. Tudo que pde ser vitria cai perdido, no quinto verso.
Tudo se vai, tudo se perde, resume o 11 verso, sempre no mesmo poema. Tudo que
slido desmancha no ar (Marx, 1977, p.87). Apenas o elemento terra apresenta
solidez, mas sempre avizinhando-se do ar ao transformar-se em p, fazendo barro em
contato com a gua e fundindo-se ao fogo.
A palavra sombra , no poemrio, um termo fundamental na
caracterizao da macrotextualidade do objeto de estudo. Ela solombra no ttulo do
livro. No seu modo antigo, antiquado, que saiu de uso, sombra solombra, um
substantivo feminino. A sombra acontece num espao que a interposio de um
corpo privou de luz, estabelecendo a escurido. A palavra indica a parte escura de um
desenho, o aspecto, a aparncia, de uma coisa ou de um ser. Alm de lado escuro de
algo, abrigo, proteo. Na sua extenso, ao adquirir um carter conotativo, figurado,
passa a significar proteo, mistrio, uma forma vaga, a parte subsistente de algum
que foi vivo, com a carga simblica de uma coisa impalpvel, sutil, imaterial, ou uma
pessoa que no deixa outra. Adquire ainda o sentido de vestgio, de sinal, de imagem
de um ser ou de um objeto. Nas combinaes propiciadas por alguns contextos tornase sinnimo de noite.
Antes da segunda metade do poemrio, no quarto poema da obra,
Quero uma solido, quero um silncio, o lexema sombra, nas possibilidades de sol,
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sombra. No nono verso do nono poema, O gosto da Beleza em meu lbio descansa
[:], no difcil a percepo de que em assombro encontra-se a expresso e o
contedo de sombra como elemento bsico de sua estruturao. No primeiro verso
do dcimo poema, S tu sabes usar to difano mistrio [:], a palavra mistrio ali
usada mantm estreitas relaes semnticas com noite e sombra. No oitavo verso do
11 poema, Falo de ti como se um morto apaixonado, as altas sombras, alm de
acolher a metfora geomtrica pela verticalizao trazida pelo adjetivo anteposto ao
lexema nuclear, vincula-se ao verso seguinte onde se l grandes noites acordadas,
em que a adjetivao representa um paralelismo em relao ao verso anterior,
concretizando uma metfora dimensional envolvendo o fenmeno em destaque. No
sexto verso, . . . pela sombra . . ., do 14 poema, Nuvens dos olhos meus, de altas
chuvas paradas [,], retorna sombra na condio de emblema da discrio e do
silncio.
No terceiro verso do 15 poema, As palavras esto com seus pulsos
imveis [.], e no quinto do 16, luz da noite, descobrindo a cor submersa, o
lexema sombra participa de processos de personificao pelas aes de fechar e
andar, respectivamente. Na segunda estrofe do 16 poema, a cada verso corresponde
uma frase exclamativa enquanto unidade gramatical e semntica; o quinto verso,
repita-se enfaticamente, marca o reaparecimento do lexema sombra. Eis uma voz
ah, rosa branca em negro plinto!/ Eis uma sombra a tarde a andar pelas areias./ Eis
um silncio erguido cu de asas abertas.// Os trs versos da estrofe organizam-se
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poema inteiro. No 23 poema, Entre mil dores palpitava a flor antiga [,], no 11
verso, seta de [sombra] retoma o sentido de sinal de [morte], na sua terceira
linha. Sombra, mais uma vez presente, no 11 verso do 26 poema, Dizei-me vosso
nome [!] Acendei vossa ausncia [!], o elemento central de uma constelao de
lexemas distribudos na terceira e na quarta estrofes do poema, todos da mesma
isotopia. Indicando um espao onde o rosto se configura, na sombra, no primeiro
verso do 27 poema, Esse rosto na sombra, esse olhar na memria [,], a apario
derradeira do lexema
Falo de ti, na abertura do 11 poema, Falo de ti como se um
morto apaixonado, requer a retomada da sinonmia entre falar e morrer, proveniente
do sexto poema, Para pensar em ti todas as horas fogem [:], onde se l que falar o
mesmo que morrer. No prosseguimento da leitura do 11 poema, no terceiro verso, o
que se pe na cabea, e ocupa os pensamentos, representado pelo lexema coroas.
Aquilo que indica os rumos, no quarto verso, concretizado pelo lexema mapas. A
seguir, h o estabelecimento de uma oposio entre um conjunto de elementos
significativos de luminosidades, de amplitude de horizontes, de espaos familiares, e
de obscuridades, de fechamentos, de mistrios. No oitavo verso, o claro sol, no
nono verso, vasto olhar, a forma verbal abre-se, repetidamente, no dcimo, e no
11, portas, contrastam com as altas sombras do oitavo,
grandes noites
acordadas, no nono, e fecham, no 12. A passagem da luz pelo ser acolhida pelo
lexema translcida do monstico. A interseco das duas realidades, a da sombra e
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a da luz, enfocada pelo eixo opositivo do poema tambm ganha corpo no lexemachave do ltimo verso e da unidade poemtica.
Na adoo de um simbolismo das cores, de cromatismo baseado em
metforas minerais por meio dos lexemas ncar e corais, no primeiro verso, e
safira, no terceiro, comea o 20 poema, Quero roubar morte esses rostos de
ncar [,]. Cabe aqui o retorno das conotaes de Vnus, de concha, da erotizao a
que o lexema ncar remete. Na rea das cores tambm se integra o lexema cu,
no terceiro verso, por azul, recndito, profundo.
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Deste processo de
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2.1 Temporalidade
2.1.1 O tempo em si
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desejo, no haver passado nem futuro. Ser a consagrao do instante, nos dizeres
de Otvio Paz (1982, p.225-240).
Embora a poesia no seja religio, nem magia, nem pensamento, para se realizar
como poema apia-se em algo alheio a si mesma. Alheio, mas sem o qual no
poderia se encarnar. O poema poesia e, alm disso, outras coisas. E esse alm
disso no algo postio ou acrescentado, mas um constituinte de seu ser. Um
poema puro seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados
particulares e suas referncias a isto ou aquilo, para significar apenas o ato de
poetizar exigncia que acarretaria seu desaparecimento, pois as palavras no
so outra coisa seno significados disto e daquilo, ou seja, de objetos relativos e
histricos. Um poema puro no poderia ser composto de palavras e seria
literalmente indizvel. Ao mesmo tempo, um poema que no lutasse contra a
natureza das palavras, obrigando-as a ir mais alm de si mesmas e de seus
significados relativos, um poema que no tentasse faz-las dizer o indizvel,
permaneceria simples manipulao verbal. O que caracteriza o poema sua
necessria dependncia da palavra tanto como sua luta por transcend-la. Essa
circunstncia permite uma indagao sobre sua natureza como algo nico e
irredutvel e, simultaneamente, consider-lo como uma expresso social
inseparvel de outras manifestaes histricas. O poema, ser de palavras, vai
mais alm das palavras e a histria no esgota o sentido do poema; mas o poema
no teria sentido nem sequer existncia sem a histria, sem a comunidade
que o alimenta e qual alimenta (Paz, 1982, 225-226).
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em estender a sua experincia vital alm dos seus limites fsicos. Transcendncia,
sempre o anseio por uma realidade mais ampla. A fugacidade temporal sustenta-se na
circularidade de imagens e temtica do poema: o ltimo verso retoma ainda com mais
clareza do que sempre o primeiro. Fica evidente a questo do tempo na poesia, seu
carter lrico, no-narrativo. Cabe observar ainda o que h de suspenso, pendente,
interrompido, irresoluto, incompleto, na realidade humana, representado pelo
sintagma suspensas fugas, do monstico, caracterizado pela aliterao do /s/ e pela
presena da fricativa /f/, em contraposio presena de duas consoantes oclusivas
em posies intermedirias.
Sem testemunha vo passando as horas belas, o quarto verso do
14 poema, Nuvens dos olhos meus, de altas chuvas paradas [,], explora a passagem
do tempo como j se dizia na estrofe anterior. A diferena est na inverso das
condies usufrudas: antes o tempo portava valores negativos, agora traz momentos
de beleza. Por outro lado, explora-se a convivncia dos dois aspectos da experincia
da sensibilidade: a dor e a alegria igualmente fundadas, sugeridas, no plano fnico,
pela co-ocorrncia de cinco fonemas consonantes oclusivas e cinco fricativas. Aqui a
saudade perdura, no obstante se traduza em amarga herana. L deixaram de existir.
Legado cruel, pungente, mas originrio da felicidade que acabou: uma no existe
sem a outra; alegria e dor andam de mos dadas pelos caminhos da sensibilidade. No
verso ceciliano, a ausncia de testemunha, recoloca, no entanto, o mesmo
desolamento.
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modelando com esse barro as mais diferentes figuras e idias. O vaso leva inscrito
pelo tempo afora as marcas do oleiro que o fabricou. O ser convive com a
presencialidade de sua origem. Mais um passo e uma homologia torna-se uma
imposio: o modelar do oleiro corresponde ao fazer potico. A lngua o barro de
que se vale o poeta; o poema, o vaso resultante de sua elaborao. No barro da
linguagem, o homem, ele tambm barro, numa dimenso bblica, mtica, tradicional,
modela a sua obra.
O retorno do vivo sofrimento humano acontece no verso inicial do
23 poema, Entre mil dores palpitava a flor antiga [,], pela metaforizao da dor em
flor antiga. No sintagma, flor antiga, no primeiro e no 11 versos, as imagens de
um ser belo, frgil e sujeito s conseqncias da passagem do tempo consolidam-se.
O lexema flor, isoladamente considerado, metfora do ser no mundo, nas
contingncias temporais, ocorre em trs versos diferentes: o primeiro, o stimo e o
11. J memria, de tantas ocorrncias no poemrio, corresponde, no monstico
agora em exame, ao adjetivo antiga, posposto em duas ocasies a flor. No terceiro
verso, entre seta de sombra e sinal de morte, comeando pelas semelhanas da
massa fnica, a igualdade explcita, embora pertencente ao passado, e com certa
durao naquele tempo, o que se representa pela forma verbal de pretrito imperfeito
do indicativo. No quarto verso, o silncio antecede ao labirinto do prximo.
Metfora do mundo, os bosques do sexto verso so o continente vegetal onde se
situa a abelha, animal do verso anterior, com o seu aroma de veludo, um
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motivo no a morte, mas a reflexo sobre a vida, graas memria, que lhe restitui
lembrana cansadas lgrimas antigas, longas histrias sucessivas. O cortejo de
glrias passageiras, a lembrana da finitude do homem, recorrente neste poemrio,
retorna, prximo; ao sujeito poemtico, segundo a indicao do pronome
demonstrativo que abre o verso. O eu lrico vive o recolhimento em seu mundo de
sonho e de poesia. Da at o final da estrofe, acontece um aposto. Confirmando a
imagem de delicadeza, a noite apresentada como jardim, um espao vegetal, vivo,
organizado pelas mos do homem, onde esta atitude encontra um escoadouro. Jardim
construdo com dois materiais: tempo e silncio. A unio dos mundos, aqueles da
poesia ceciliana, ocorre nesta perspectiva de elaborao humana: a noite o momento
de reflexo, de meditao, de sonhos, de cuidados com este jardim, de poesia. Diz o
segundo verso: jardim de puro tempo.
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da flor no presente contrasta com a pulsao no passado. Antes ela estava exposta ao
vento; agora encontra-se protegida por um cu de cristal. Imobilidade, proteo,
ausncia de palpitaes, fatores constituintes do quadro em que a flor passa a existir.
Numa estrofe em que trs exclamaes se distribuem por dois
versos, como na primeira do 26 poema, Dizei-me vosso nome (!) Acendei vossa
ausncia(!), encontra-se o terceiro verso como interrogativo. A pergunta sobre a
constituio do passado, no terceiro verso, abriga em seu bojo a afirmao da
infecundidade daquele tempo. O que se passou se perde na ignorncia de seu
contedo e na sua ineficincia.
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morte. Com o verbo ser em forma igual adotada no primeiro verso, o terceiro
apresenta a sintomatologia da morte: intensifica a pungncia da dor. No caso do
terceiro verso da estrofe inicial, sombra sobrepe-se a sol, ente pressuposto, que lhe
daria vida, ou que ajudaria o eu potico a viver. Esses lexemas ligados natureza tm
outros valores: anaggicos, transcendentais, msticos, permitindo a interpretao que
vai da literalidade aos sentidos propiciadores de elevao. No esprito do exegeta, a
compreenso da multiplicidade de oposies entre os dois termos uma exigncia.
Introduzido por uma conjuno adversativa, o ltimo terceto, ainda
do 23 poema, propicia importantes observaes. Mas o vento que passa um
passante longnquo/ flor antiga no perturba o exato rosto/ sem esperanas nem
temores nem certezas. Na condio de unidade sinttica nitidamente delineada,
recupera, do ponto de vista semntico, os pontos bsicos da organizao das estrofes
anteriores: a dor, o tempo, a morte, as transformaes e as permanncias, fios com
que as lembranas so tecidas. O vento, uma das recorrncias no poemrio, retorna:
de suspirante mudou-se em passante longnquo, sem nenhuma proximidade, no
dcimo verso. No verso intermedirio da estrofe, a flor recebe, pela segunda vez no
poema, a adjetivao que j vinha de um verso anterior: a flor antiga. Apresenta
exatido de fisionomia a que nada perturba. Esperanas, temores, certezas, no
alteram a imobilidade e a impassibilidade de suas feies, dizem o 11 e o 12 versos.
O vento inimigo, conforme o terceiro verso do 27 poema, Esse rosto na sombra,
esse olhar na memria [,], foi neutralizado por um cu de cristal.
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aparece como noite do ser no dcimo verso do segundo poema, Pelas ondas do mar,
pelas ervas e as pedras [,]: as duras leis cabem numa ou noutra vertente lexemtica
que semanticamente se interseccionam. Em vrias aparies no quinto poema, Falar
contigo [.] Andar lentamente falando, a noite ali est por sinonmia e por antonmia,
sempre configurando densamente a sua atmosfera. No sexto verso do stimo poema,
Caminho pelo acaso dos meus muros [,], alta noite assinala o retorno da
geometrizao metafrica na atribuio de verticalidade ao ncleo do sintagma
nominal. No stimo verso do nono poema, O gosto da beleza em meu lbio descansa
[:], anaforicamente repete-se com exatido o sintagma destacado no stimo poema,
comportando ele uma interpretao que se estende do seu parceiro anterior, numa
reiterao de um campo de imagens e metforas: novamente alta noite. A
verticalizao recorrente destaca a importncia do sobrenatural e do transcendente na
potica ceciliana. No nono verso do 11 poema, Falo de ti como se um morto
apaixonado, a construo de uma imagem em que a palavra noite o centro se d no
desenvolvimento de uma abordagem do espao ocupado de uma maneira inusual pela
expresso dos sintagmas com o lexema aqui destacado e pelo seu parceiro sombras
no verso anterior. No verso inicial do 16 poema, luz da noite, descobrindo a cor
submersa, a oposio entre luz e sombra salta ao primeiro plano no sintagma luz da
noite, sntese de uma tenso presente em todo o poemrio. Noite entretida com o
som dos tmulos o monstico do 18 poema, Isto que vou cantando j levado.
Nele, o lexema noite pe em relevo novamente a isotopia de que um dos
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silenciosa do ser. A noite ainda no o dia, mas o promete e prepara. O ser fala ao
homem, tendo ele de decifrar a mensagem, conhec-la no recesso profundo de si
mesmo. De sua outridade, talvez. Ela apresentada como o suporte para a vinda do
ser. A associao entre a noite e o caos originria e primordial. Dela vieram o cu e
a terra. Toda origem passa pela noite; na noite, desabrocham os sonhos. A morte
muito prxima do sono, dos sonhos, sempre as vivncias da escurido, o mundo das
sombras. A vaguidade das figuras e dos eventos define a noite. A hora das angstias e
dos enganos d origem tambm ternura, suavidade. Mitos falam de noites que se
prolongam. A noite o incio do dia, o comeo do tempo. Nela preparam-se, e depois
manifestam-se, as diferentes faces da vida. Na noite ocorre a gestao silenciosa e
oculta da natureza, do mundo, do universo, da realidade efervescente exposta aos
olhos do homem, neste reino onde a indeterminao, a inconscincia, o desejo,
vigem. Frementes originalidades aliceram o que se v no mundo em que o ser se
projeta na realidade humana.
No
conhecimento
inexprimvel,
fora
do
mbito
analtico,
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filosfica, ou
interrogao tem o seu comeo neste primeiro verso, mas vai continuar at o fim da
estrofe, alongando-se por trs linhas.
Aprender e apreender a formao da ausncia o objetivo das
imagens iniciais do 22 poema, Sobre um passo de luz, outro passo de sombra [.].
Diversas oposies sustentam a busca do objetivo assinalado. A primeira delas
encontra a sua realizao nos lexemas luz e sombra do verso de abertura. Na
segunda, contrastam no vir e ter chegado, nos limites do segundo verso. No
quarto verso, uma oposio de natureza diferente ocorre: o projetado e o
acontecido, uma recorrncia no poemrio. Em solido e alheia, no quinto
verso, e no jogo sintagmtico, memria acordada e acordada memria, do stimo
verso, o procedimento opositivo continua. A aproximao entre o homem e o mundo
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vegetal pela via da noturnidade ocorre literalmente no nono verso: a noite vegetal
que a mesma noite humana. Vegetalidade e humanidade em processo metafrico
de identificao.
A seguir uma nova oposio alicera o 22 poema.: longe, no
dcimo verso, viagem, no 11, e o instante, no 12, contrariam perto, no
dcimo, prisioneira, no 11, e teu nome, no 12. Dos traados contraditrios
identificados surgem os labirintos do monstico com sua voragem, vertiginosos. A
oposio entre luminosidade e noturnidade engendra as demais. O homem vive nos
labirintos da memria, mas o ser vai da escurido das origens (quantos lexemas
conotam isso ao longo do poemrio?) ao luminoso do seu destino idealizado. Existe
entre a sua origem e a sua utopia, em tenso permanente.
Uma imagem da noite, o seu desvendamento, o que significa no
poemrio essa palavra que vem ocorrendo desde o seu primeiro verso: eis uma
questo da mais alta pertinncia. No primeiro verso do 24 poema, Tomo nos olhos
delicadamente, essa equao recebe uma resposta: noite jardim de puro tempo.
A presena humana num jardim, impregnao da temporalidade, neste poema,
muito maior que num bosque, o mundo no poema imediatamente anterior, sempre
bom lembrar. No prolongamento das imagens de natureza vegetal, o terceiro verso
traz ramos de silncio e mundos. A exemplo do poema anterior, sempre no
quinto verso, o mundo instaurado pelo lexema bosques. No interior dos bosques,
ainda no quinto verso, correm os arroios de estrelas. Arroios participam da
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lrico arquiteto arma longos compassos/ para a curva celeste a que os homens se
negam?/ Dizei-me onde que estais, em que frgil crepsculo! A interrogao
mais uma estratgia para uma reflexo do que uma esperana da convencionalidade
de uma resposta, o que comprova no emprego da exclamao no segundo verso. A
caracterizao do arquiteto, de Deus como architectus universalis, criador do
universo, o agente de uma projeo, de uma idealizao, como o manipulador de
compassos de grandezas apropriadas organizao de espaos, curvos,
circunsfricos, do tamanho insinuado no quinto verso (a curva celeste), objeto de
uma inquirio que j o mostra com os atributos da lira, da msica, da poesia, por
extenso. Na pergunta sobre o arquiteto deste universo, uma afirmao acha-se ainda
embutida: aquela da negatividade humana. No sexto verso, iniciado por uma anfora,
repetio parcial do primeiro deles, o interlocutor poemtico interrogado sobre sua
localizao. Um trao desse espao no identificado est ali: o da fragilidade do
crepsculo, onde como se diz no poema jamais se pode ver teu rosto, separado/ de
tudo. O crepsculo uma imagem espao-temporal: o instante suspenso. O
espao e o tempo vo capotar ao mesmo tempo no outro mundo e na outra noite.
(Chevalier e Gheerbrant, 1988, p.300)
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2.2 Espacialidade
2.2.1 Dimenses
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2.2.2 Formas
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pertence ao
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mundo, a
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nas suas relaes, na seu aspecto conceitual e no seu aspecto concreto. O ser em
situao vincula-se ao tempo e ao espao. As dimenses, as direes e os sentidos
concretizam a espacialidade. A morfologia estuda os diversos ramos da forma objeto
de intuio, pesquisa e conhecimento.
III INTELECTO
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146
por um processo de repetio e inverso de palavras. Num deles com portas para
abrir e a memria acordada; no seguinte, a acordada memria! esta planta
crescente, o jogo em torno do lexema-chave se realiza. A sucesso de um artigo
definido, um substantivo e um adjetivo, na segunda parte do sexto verso, a memria
acordada, torna-se, na primeira parte do stimo, A acordada memria!, uma
exclamao, uma seqncia de palavras iguais, com a inverso das categorias
nominais, permanecendo na posio inicial apenas o termo de abertura, em minscula
ou em maiscula, se no incio da frase. O procedimento adotado resulta numa nfase
sobre a gama de significaes do lexema memria. A remisso do nono verso do 11
poema, Falo de ti como se um morto apaixonado, cabe aqui, em relao direta com
o verso [d]as grandes noites acordadas. Na continuao da estrofe, este eixo
temtico passa por um processo de expanso. Na segunda parte do stimo verso, e
nos demais da estrofe, a memria, que retentiva natural e voluntariamente
lembrana, conhecimento do passado por conservao, decorrente de vivncias, passa
a metfora vegetal, transformada em planta, de seiva onde os nutrientes circulantes
so imagens multiplicadas. O trao de aproximao entre o homem e o vegetal a
noturnidade de ambos. Uma noite igual abriga as duas ordens de seres. Como no
eneasslabo do prximo poema, neste conjunto: Plido mundo s de memria.
No eneasslabo transcrito no pargrafo anterior ocorre a sntese:
trata-se de um mundo dominado pela palidez, desbotado, sem brilho, de sombras,
147
esfumaados.
O momento de retomar a leitura da segunda estrofe do poema,
Como trabalha o tempo elaborando o quartzo [,], o 13 deles: Brandamente
suporta em delicados moldes/ enigmas onde a noite e o dia pousam como/ borboletas
sem voz, doce engano de cinza. Considerando que, ao transcrever, houve a omisso
do ponto final do agrupamento, pode-se verificar a sua unidade morfossinttica e
semntica, assegurada pela existncia de dois encadeamentos nas pausas interversais
e intra-estrficas. A palavra pensamento, antecedida de um artigo indefinido na
primeira estrofe, na qualidade de expresso de um conceito axial nas duas seguintes,
mantm-se subjacentemente. Passa por um processo de definio: de um pensamento
torna-se o pensamento. O pensamento, mansa e suavemente, de acordo com o sentido
do quarto verso, serve de apoio aos enigmas do tempo representados pela noite e
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151
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CONCLUSES
Meireles,
resumindo
as
justificativas
da
pesquisa,
descrevendo
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obsesses no uso das palavras, numa integrao dos componentes num todo,
atingindo a poeticidade.
O levantamento dos lexemas-chave a partir de suas afinidades por
semelhana ou oposio ao lexema-ttulo permite a organizao de categorias de
imagens, metforas, smbolos e temas cujas relaes constituem as estruturas dos
textos poticos agrupados no arquitexto denominado Solombra. Estas estruturas
constituem a poeticidade do livro em estudo, ou o seu carter artstico e esttico,
apresentando em seus sentidos uma viso do ser, do homem, da sociedade, da histria
e do mundo, alm de uma concepo de poesia, desde que se tenha a compreenso da
interdependncia destes conceitos.
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Poesia Completa.
Rio
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In: MEIRELES, C.
Poesia Completa.
Janeiro:
da
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Teoria da
literatura.
Traduo de Jos
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evoluo dos estilos na arte mais recente. Traduo Joo Azenha Jr. Superviso da
traduo Marion Fleischer. So Paulo: Martins Fontes, 1984. 278p.
170
171
171
1973.
APNDICE
173
Primeiro
173
174
Segundo
174
175
Terceiro
175
176
Quarto
176
177
Quinto
177
178
Sexto
178
179
Stimo
179
180
Oitavo
180
181
Nono
181
182
Dcimo
182
183
11
183
184
12
184
185
13
185
186
14
186
187
15
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199
200
28
200
RESUMO
ABSTRACT
The aim of this reading is performed in the survey of the key-lexicon from Solombra, by
Ceclia Meireles and the research methodology in the organization in affinity fields. The
correlate definition of theoritical basis considers preliminarily the questions of selection of
poetic material which is the object of the study and the disposition of the basic fields in the
abstract, temporal, spatial, material, intellectual, affective and volitive relations in the
instauration of perspectives which allow the understanding of the registered themes. The
reading searches a deep understanding of her vision of poetry-thus, of her poetics and her
conception of man, society, world, of bang, expressed by rhythm of verses and image of
poems. The thesis is framed in a general introduction, in chapters about the subject seen its
division in four elements, the essencial relations in terms of time and space and the
intellect, as formation of possibilities of indagations and comunications.