Dissertação Notre Dame
Dissertação Notre Dame
Dissertação Notre Dame
A MSICA TINTINABULAR
DE ARVO PRT
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Msica do
Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas para obteno
do ttulo de Mestre em Msica rea
de concentrao: Processos Criativos.
Denise
CAMPINAS
2009
iii
V941m
Instituto de Artes.
1. Tintinnabuli. 2. Minimalismo. 3. Msica medieval.
4. Msica contempornea. 5. Msica do sculo XX.
6. Neotonalismo. I. Garcia, Denise Hortncia Lopes.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.
III. Ttulo.
(em/ia)
Ttulo em ingls: Arvo Prt's tintinnabuli music.
Palavras-chave em ingls (Keywords): Tintinnabuli ; Minimalism ; Medieval
music ; Contemporary music ; 20th century music ; Neotonalism.
Titulao: Mestre em Msica.
Banca examinadora:
Prof. Dra. Denise Hortncia Lopes Garcia.
Prof. Dr. Leonardo Adriano Viegas Aldrovandi.
Prof. Dr. Jnatas Manzolli.
Prof. Dr. Jos Augusto Mannis.
Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa.
Data da Defesa: 23-09-2009
Programa de Ps-Graduao: Msica.
iv
vii
AGRADECIMENTOS
queles que contriburam com minha formao musical sem saber, vivos e mortos:
compositores, especialmente Arvo Prt, autores de livros sobre msica e intrpretes.
FAPESP, por seu apoio.
UNICAMP e seu Instituto de Artes.
A todos os meus familiares vivos, especialmente meus pais Alfredo Votta e Nadia Maria
de Alcantara Lopes Votta e minha irm Ana Luiza Votta Colombo , e todos os meus
antepassados j falecidos.
A Todos os Santos e Anjos e Santssima Virgem, que por mim incessantemente rogam.
ix
RESUMO
O compositor estoniano Arvo Prt, nascido em 1935 e radicado na Alemanha desde os anos
1980, tem sido objeto de ateno do mundo musical por sua peculiar linguagem modal
baseada na tcnica tintinnabuli, formulada e nomeada pelo prprio Prt. Esta tcnica se
baseia na ideia de utilizao exclusiva das trs notas de uma trade em ao menos uma das
vozes da textura musical. Esta tcnica tem sido utilizada por Prt desde meados dos anos
1970. Sua obra apresenta tambm numerosas afinidades com a msica medieval, arte
estudada por Prt nos anos de interrupo de seu trabalho composicional que se
prolongaram de 1968 at 1976. O canto gregoriano ocupou lugar de destaque nestes
estudos, sendo por esta razo importante para a compreenso de sua obra. So apontados
tambm, por inmeras fontes (trabalhos acadmicos, encartes de gravaes e textos crticos
jornalsticos), vnculos da obra de Prt com o minimalismo, que se manifestam sobretudo
no ideal de stasis, nos processos aditivos e nos ciclos. As tcnicas desenvolvidas por Prt,
bem como aquelas que se podem relacionar a ele, so frtil campo para a formulao de
novas ideias composicionais e mesmo para o reencontro com ideias antigas que podem
fertilizar a expresso musical atual.
xi
ABSTRACT
Estonian composer Arvo Prt, born in 1935 and living in Germany since the 1980s, has
been the object of close attention by the musical world due to his peculiar modal language
based on his own tintinnabuli technique. This technique builds upon the exclusive use of
the three notes of a triad in at least one of the voices of a given musical texture. Prt has
been using this method since the mid-seventies. His work displays great affinity with
medieval music as well. The music of the Middle Ages was studied by Prt during his
period of compositional silence from 1968 to 1976. Since that includes especially
Gregorian chant, this genre is crucial for proper understanding of Prt's work. Numerous
sources (academic papers, recordings' booklets and press writings) have also pointed
resemblance of Prt's compositions with minimalism chiefly due to the ideal of stasis,
additive processes and cycles. Prt-developed and -related techniques are a fertile
environment for the creation of new compositional ideas and a new approach towards
ancient ideas as a means to contribute with current musical expression.
Key words: tintinnabuli; minimalism; medieval music; contemporary music; 20th century
music; neotonalism; new simplicity.
xiii
SUMRIO
INTRODUO
1 A TCNICA TINTINABULAR
1.1. Introduo
1.2. O que significa tintinnabuli?
1.3. A tcnica tintinabular
1.3.1. A voz-T
1.3.2. A voz-M
1.4. A tcnica tintinabular na obra de Arvo Prt
1.5. Conseqncias verticais
1.6. Composio da voz-M em msica instrumental
1.7. Concluso
1
9
9
10
11
11
13
15
33
34
38
41
41
42
43
58
71
75
78
86
87
103
106
110
3 PRT E O MINIMALISMO
3.1. Introduo
3.2. Drone
3.3. Drones na msica de Prt
3.4. Processos aditivos
3.5. Processos aditivos na msica de Prt
3.6. Tabula Rasa
3.6.1. Silentium
3.6.2. Ludus
115
115
118
130
130
142
146
146
168
xv
4 ALM-PRT
4.1. Introduo
4.2. Exerccios
4.3. Salve Regina
4.4. Per noctes
4.5. Ao Anjo da Guarda lef
4.6. Liturgia n1
4.7. Liturgia n2
4.8. Liturgia n3
4.9. Catopsilia florella
4.10. Sonata Iesu Dulcis Memoria
4.11. Concluso
CONCLUSO
177
177
178
183
192
203
206
224
237
254
259
265
267
BIBLIOGRAFIA
271
277
ANEXOS
Anexo I. partitura completa de Salve Regina, op.25 (Alfredo Votta Jr)
277
Anexo II. partitura completa de Per Noctes, op.26. partitura para vozes e instrumentos 283
(Alfredo Votta Jr)
Anexo III. partitura completa de Per Noctes, op.26. partitura para quarteto de flautas 291
doces (Alfredo Votta Jr)
Anexo IV. partitura completa de lef, de Ao Anjo da Guarda, op.43 n1 (Alfredo
299
Votta Jr)
Anexo V traduo de Tentativas ingratas de uma definio de minimalismo (Kyle 303
Gann)
xvi
Introduo
Localizada s margens do Mar Bltico, a Estnia um dos pases de menor
populao da Europa: 1,3 milho de pessoas vivem num territrio equivalente a 18% do
Estado de So Paulo. Vizinha da Finlndia, tem com este pas aspectos tnicos e
lingsticos comuns, por sua origem fino-grica. O complicado idioma estoniano uma das
poucas lnguas europias cuja origem no indo-europia.
Governado no passado por povos diversos como dinamarqueses, alemes, suecos e
russos, este pas obteve sua independncia em 1918. Logo em 1940 foi ocupado pelos
soviticos, e em 1941 pelos nazistas. De 1944 a 1991 permaneceu novamente sob domnio
sovitico, declarando ento, a 20 de Agosto de 1991, sua independncia que perdura at
nossos dias.
neste pas que nasceu, em 11 de Setembro de 1935, na cidade de Paide, a 80
quilmetros da capital Tallinn, o compositor Arvo Prt1. Aos 7 ou 8 anos de idade Arvo
comeou a estudar msica, e no muito tempo mais tarde sua famlia adquiriu um piano de
cauda russo em que somente os registros extremos funcionavam bem. Assim, logo sua
imaginao foi estimulada criao de msica possvel dentro destas limitaes.
Desenvolveu logo gosto pelo rdio, que ouvia com muita freqncia, especialmente
as transmisses da rdio finlandesa que se podia captar em sua cidade. Seu instrumento era
o piano. Estudou tambm obo e percusso, alm de se dedicar, j, composio, em sua
adolescncia.
Em 1953 Prt tinha dezoito anos de idade e morreu o lder sovitico Josef Stlin, o
que indicou uma era de abertura (que no se concretizou to fortemente como muitos
gostariam). Nas artes, o realismo socialista continuou como diretriz oficial do governo
comunista da URSS. No ano seguinte, Prt ingressou na Escola Mdia de Msica de
Tallinn, mas poucos meses depois o curso foi interrompido por dois anos de servio militar
obrigatrio, durante o qual tocou obo e percusso numa orquestra militar. Foi um perodo
1
de muito sofrimento para o compositor, que teve mesmo sua sade prejudicada, levando
anos para se recuperar.
Terminado o servio militar, Prt foi admitido, em 1957, a estudar no Conservatrio
de Tallinn, em que eram lecionadas no apenas disciplinas musicais, mas tambm Histria
do Partido Comunista e Economia Poltica. Seu professor de composio era Heino Heller
(1887-1970), destacada figura musical estoniana que estudara com Glazunov no
Conservatrio de So Petersburgo. Heller foi professor de vrios compositores estonianos
e, no obstante tendncias pessoais conservadoras, estimulava seus alunos a conhecer e
experimentar novas idias que com dificuldade chegavam Estnia vindas do Ocidente
entre elas, o dodecafonismo, que Prt estudou nos livros de Kenek e Eimert. Algumas
poucas obras de Webern, Nono e Boulez eram conhecidas no pas por meio de partituras e
fitas cassete ilegais.
Nos anos subseqentes Prt se tornou engenheiro de gravao da rdio estoniana e
compositor de msica para cinema estima-se por volta de cinqenta o nmero de filmes
para os quais comps. Atualmente, porm, o compositor no d importncia ao trabalho
realizado nessa poca.
Ao mesmo tempo, Arvo Prt desenvolvia o seu trabalho pessoal de composio.
Suas primeiras obras publicadas so as duas Sonatinas (1958-1959) e a Partita (1958) para
piano solo, de forte influncia neoclssica.
Tambm em 1959 comps a cantata Meie aed (nosso jardim), para coro infantil e
orquestra. Trata-se de uma obra com finalidades muito prticas, em linguagem
politicamente apropriada; mesmo assim, muitos no deixam de lhe perceber as boas
qualidades de escrita. Este tipo de cantata era escrito por muitos compositores da poca,
que as chamavam de cantatas do imperador (Kaiserkantaten, em alemo, keisrikantaadid,
em estoniano); eram obras compostas para servir a propsitos do governo. O musiclogo
estoniano Merike Vaitmaa explica que uma cantata do imperador era uma espcie de
indulgncia: tendo-a escrito, o compositor podia escrever em paz o que queria 2.
Paul Hillier transcreve em seu livro um trecho de uma entrevista concedida por Prt
rdio estoniana nesse mesmo ano de 1968:
No tenho certeza de que possa haver progresso na arte. Progresso
est presente na cincia. Todo mundo entende o que progresso
significa na tecnologia militar. A arte apresenta uma situao mais
complexa... muitos objetos artsticos do passado parecem mais
contemporneos do que a nossa arte atual. Como possvel
explicar isto? No que o gnio tenha conseguido ver duzentos
anos frente. Creio em que a modernidade da msica de Bach no
v desaparecer por mais duzentos anos, e talvez nunca
desaparea... a razo no simplesmente que talvez seja melhor
que msica contempornea... o segredo de sua contemporaneidade
reside na questo: quo completamente o autor-compositor
percebeu no apenas seu prprio presente, mas a totalidade da
vida, suas alegrias, preocupaes e mistrios?... como se nos
fosse dado um problema para resolver, um nmero (UM, por
exemplo), terrivelmente complexo quando dividido em fraes.
Encontrar uma soluo um longo processo e requer intensa
concentrao; mas a sabedoria est na reduo. Se agora
concebvel que diferentes fraes (pocas, vidas) estejam unidas
por uma nica soluo (UM), ento esse UM algo mais que a
soluo de uma nica frao. Ele a soluo correta para todos os
problemas, todas as fraes (pocas, vidas) e sempre foi. Ento as
fronteiras de uma nica frao o confinam demais e ele se perpetua
sempre... sempre a obra mais contempornea aquela em que h
uma soluo mais clara e mais correta (UM). A arte tem que lidar
com questes eternas, no apenas com os assuntos de hoje. Em
todo caso, se quisermos chegar essncia de uma obra musical,
no importa qual, no podemos deixar de lado o processo de
reduo. Em outras palavras, temos que jogar fora nosso lastro
eras, estilos, formas, orquestrao, harmonia, polifonia para
alcanar uma nica voz, suas entonaes. Somente a que
ficamos cara a cara [com a questo]: isto verdade ou
falsidade?3
Apesar de termos nestas declaraes algumas idias caractersticas do seu trabalho
posterior (como a importncia do nmero 1), no podemos deixar de identificar nelas um
momento de mais perguntas do que de respostas. Assim, este silncio composicional se
prolongou at 1976, quando Prt retornou escrita com o uso de uma nova tcnica que
desenvolveu.
Durante esse perodo o compositor se dedicou ao estudo da msica antiga,
sobretudo do canto gregoriano, por meio do qual procurou aprender a escrever uma nica
linha de msica, isto , monodias. Numerosos cadernos foram preenchidos naqueles anos.
Podemos v-los no filme de Dorian Supin 24 Preludes for a Fugue: Prt os retira do
armrio em que esto guardados; podemos ver que so numerosos; e ele se pe mesmo a
tocar ao piano e cantar uma das melodias que escreveu.
Alm do cantocho Prt estudou tambm polifonia, como a escola de Notre Dame, a
Ars Nova e Machaut, e msica posterior como os polifonistas flamengos, Palestrina e
Victoria. Copiou manualmente grande quantidade dessa msica
Na poca essa msica antiga comeava a ter mais destaque na Unio Sovitica,
sendo naquele pas at ento muito pouco conhecida. Concertos de grupos ocidentais
ajudaram no despertar desse interesse, e surgiram grupos locais como o Hortus Musicus.
Fundado em 1972 por Andres Mustonen, este grupo estoniano foi o primeiro a apresentar
publicamente as primeiras obras da nova fase de Prt, iniciada em 1976.
Sendo a Terceira Sinfonia (1971), como afirmamos, uma obra transicional, ela se
aproveita das pesquisas de msica antiga e se desenvolve numa linguagem modal, com
inflexes meldicas de canto gregoriano; marcante nela a presena da cadncia de
Landini, tpica de Machaut e outros compositores de sua poca; ritmicamente, entretanto,
de mtrica toda regular.
Em meio aos estudos de msica antiga e exerccios composicionais, Prt comps,
em 1976, uma pequena pea para piano intitulada Fr Alina (para Alina). Esta
composio utiliza pela primeira vez uma nova tcnica chamada tintinnabuli. Esta palavra
significa, em latim, pequenos sinos, e ser neste trabalho chamada tambm tcnica
tintinabular.
Esta tcnica, em sua forma bsica, se refere escrita de msica a duas vozes. Uma
das vozes circula por todos os graus de uma escala diatnica, enquanto a outra faz ouvir
somente as notas da trade principal do modo. As notas da trade a cada momento so
escolhidas por meio de uma relao especfica com a respectiva nota da melodia. Esta
5
Captulo 1
A tcnica tintinabular
1.1. Introduo
Arvo Prt chegou tcnica tintinabular por meio dos exerccios que realizou nos
anos de interregno criativo. O ano de 1976 assistiu composio da primeira pea a usar a
nova tcnica, Fr Alina (em estoniano Aliinale, em portugus Para Alina), para piano solo.
No mesmo ano havia sido escrita Modus (mais tarde rebatizada Sarah was ninety years
old), que, embora no use o novo procedimento, aproxima-se dele.
Podemos verificar, no filme de Dorian Supin, que Fr Alina se encontra nos
cadernos de exerccios de Prt, sendo um fruto natural desses estudos. No deixa de chamar
a ateno o fato de que uma nova tcnica seja anunciada com uma pea de to pequenas
propores e to grande simplicidade. Obras maiores e mais complexas viriam, sem dvida;
mas esta pequena composio ficou realmente marcada por este uso novo das sete notas da
escala diatnica que viria a caracterizar a msica de Prt a partir de ento.
A Fr Alina seguiu-se uma exploso criativa com Trivium (para rgo), Pari
Intervallo (para grupo instrumental), An den Wassern zu Babel saen wir und weinten (para
quatro vozes e rgo); em 1977 Arbos (para grupo de cmera), Cantate Domino (para coro
a quatro vozes e grupo instrumental ou rgo), Fratres (originalmente para orquestra de
cordas e percusso, com inmeras verses nos anos subseqentes), Missa Syllabica (para
coro a quatro vozes e rgo), Variationen zur Gesundung von Arinuschka (para piano solo),
Tabula Rasa (para dois violinos, orquestra de cordas e piano preparado), Cantus in
memoriam Benjamin Britten (para orquestra de cordas e sino) e Summa (para orquestra de
cordas).
10
Alternativamente pode ser usada a prpria palavra latina tintinnabuli, como recurso para
evitar repeties num texto. Outras opes secundrias so tcnica tintinabulante e
tintinabulao.
Prt continuou a se servir da tcnica tintinabular em todas as suas obras a partir de
1976. A partir de agora procuro explicar o funcionamento dessa tcnica, primeiro de
maneira terica, e em seguida com exemplos concretos trazidos da obra do compositor.
1.3.1. A voz T
A voz M composta antes da voz T, que lhe subordinada. Aquela , na obra de
Prt, escrita segundo princpios que podem variar; em obras vocais h sempre uma relao
estreita com o texto e seu nmero de slabas (ou nmero de slabas de cada palavra); em
obras instrumentais costuma ser um princpio puramente musical ligado aos graus da
escala. Mais adiante isto ser abordado.
Os exemplos a seguir usam como voz M uma escala ascendente de l elio.
importante lembrar que a tcnica segue sendo a mesma quando se usa o modo jnio. Estes
HILLIER (2002), p.93. Originalmente Hillier pensa em M como inicial de melody, em ingls, que
funciona tambm para o portugus por ser melodia. O mesmo para T de triad (trade), que segundo o
prprio Hillier tambm pode ser T de tintinnabuli.
11
dois modos so os mais usados na obra da segunda fase de Prt, com certa predominncia
do elio.
Tem-se, ento, que a voz T faz ouvir sempre a nota da trade mais prxima da nota
ouvida na voz M. Neste primeiro exemplo a voz T mais aguda que a voz M, no que
Hillier chama primeira posio superior.
Primeira posio porque se trata da nota mais prxima; superior porque se trata
da nota acima.
12
Existe ainda a posio alternante, que, como diz o nome, alterna entre superior e
inferior.
1.3.2. A voz M
A composio da voz M se d de diversas maneiras nas composies de Arvo Prt.
Como j referido anteriormente, ela pode se dar por critrios musicais abstratos, sobretudo
nas peas instrumentais, e por critrios ligados ao texto, nas obras vocais.
Veremos ento alguns desses procedimentos, que costumam encerrar em si certo
rigor. A emblemtica pea Fr Alina, primeira a usar a nova tcnica, uma exceo: sua
voz M foi composta livremente. No a analisamos neste primeiro captulo, reservando-a
para a introduo de certas relaes importantes que faremos no segundo captulo.
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10
14
15
Figura 11. Escolha das notas para a seo Christe eleison do Kyrie da Missa Syllabica
16
17
18
No caso dos contraltos, a ltima slaba de cada palavra sempre atribuda quinta
nota do modo (l), fazendo com que cada palavra comece numa nota diferente, conforme
seu nmero de slabas.
Quanto aos tenores, temos o oposto: todas as palavras comeam na mesma nota (r),
a primeira do modo.
19
Na letra A temos os dois modos sobrepostos e, a seguir, palavras do Gloria (de uma
a cinco slabas) conforme musicadas por Prt: contralto no modo 1, ltima slaba para
ltima nota; tenor no modo 2, primeira slaba para primeira nota.
A letra B mostra as possibilidades dessa sobreposio. Como o contralto pode
comear a palavra em qualquer nota, de acordo com o nmero de slabas, e o tenor comea
sempre com a primeira, a nota r do tenor pode aparecer em combinao com qualquer das
notas do modo 1 do contralto. Isto tambm facilmente observvel na letra A do mesmo
exemplo, olhando-se a primeira nota de cada palavra: temos ali todas estas cinco
combinaes. Considerando, em seguida cada nota do modo do tenor, chegamos a quinze
combinaes possveis.
Se Prt houvesse escrito as vozes partindo sempre da mesma nota, fosse a primeira
do modo, ou a quinta, o nmero de possibilidades no seria quinze, mas apenas cinco. O
Prt parte de notas diferentes de modo consciente. Existe ainda outro fator que
contribui para a variedade: a voz-T. O compositor escolheu a posio alternante, o que
significa que para uma mesma nota sempre h duas possibilidades, como vimos: a nota
tridica superior e a nota tridica inferior.
As duas possibilidades da posio alternante, multiplicadas pela quinze
combinaes do modo 1 e do modo 2 partindo de notas diferentes (quinta e primeira,
respectivamente), nos d um conjunto de trinta acordes. Sendo quatro repetidos (marcados
com a letra r), temos vinte e seis acordes diferentes.
O exemplo a seguir lista todos esses acordes. Primeiro aparecem os acordes
montados com uma voz-T acima da linha do soprano (superior); no segundo sistema,
aqueles obtidos com uma voz-T abaixo da linha do soprano (inferior).
21
11
Glria a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por ele amados. Bonae voluntatis, traduzido em
portugus como por ele amados, literalmente de boa vontade.
22
Vozes
Contralto e Tenor
Soprano e Baixo
Contralto e Tenor
Soprano e Baixo
Contralto e Baixo
Soprano e Baixo
Contralto e Tenor
23
Soprano e Baixo
Contralto e Tenor
Soprano e Baixo
Contralto e Tenor
Amen.
Todas as vozes
Somente o Amen que conclui o texto escrito para as quatro vozes. Tambm aqui
aplicado o mesmo princpio usado desde o incio do Gloria, considerando que a palavra
Amen tem duas slabas. Prt segue sua regra fielmente, mesmo que o acorde final contenha
notas alheias trade principal no caso, mi e d. Ocorre tambm que a nota principal da
escala da pea, r, est ausente deste ltimo acorde.
24
Letra A: voz aguda com voz-T na posio superior e voz grave com voz-T tambm
na posio superior.
Letra B: voz aguda com voz-T na posio inferior e voz grave com voz-T tambm
na posio inferior.
12
25
Letra C: voz aguda com voz-T na posio superior e voz grave com voz-T na
posio inferior.
Letra D: voz aguda com voz-T na posio inferior e voz grave com voz-T na
posio superior.
26
27
Assim como no Gloria, Prt faz as quatro vozes cantarem juntas o Amen que
conclui o Credo. Mais uma vez a fidelidade ao processo de atribuio de notas s slabas
faz com que haja uma nota no tridica no acorde final (si bemol no tenor e no soprano), e
que esteja ausente a tera (f). Devido posio alternante da voz-T, a nota mais grave o
quinto grau da escala.
Uma peculiaridade do Credo, dentro desta Missa, o uso de bordes, notas graves
longas sustentadas em certos trechos. No aparecem nos outros movimentos. A partitura
traz uma diviso do Credo em dezoito sees (indicada nos nmeros de ensaio). As sees
indicam a mudana das vozes que cantam o texto. Considerando que Prt usa os bordes
nas sees 5, 6, 11, 12 e 17, fica perceptvel um padro: 4-2-4-2-4-2, que 4 indica quatro
compassos sem uso do pedal do rgo, e 2 indica dois compassos com uso do pedal do
rgo:
28
Sem pedal
Pedal
Sem pedal
10
11
12
13
Pedal
14
15
16
Sem pedal
17
18
Pedal
O compasso 18 o Amen, em que o pedal do rgo toca uma nota para cada slaba,
junto com o coro. Em todos os outros momentos que o pedal toca, para realizar um
bordo, seja no primeiro grau da escala, seja no quinto.
O quarto movimento da Missa o Sanctus, uma jubilosa aclamao a Deus cantada
pelo coro ou fiis em unio com os anjos e santos, como anuncia a orao que o precede,
chamada Prefcio. Na Missa Syllabica o nico movimento que no foi composto em r
elio, e sim em f jnio ou f maior, na msica tonal, relativa de r menor que se
identifica com o r elio, em sua forma natural. Alm disto, pela primeira vez na
composio, as quatro vozes cantam juntas todo um movimento. O organista toca com as
duas mos e tambm com o pedal, embora este esteja ausente de algumas passagens.
Tambm pela primeira vez na obra Prt faz todas as vozes obedecerem ao mesmo
princpio de chegar ao primeiro grau da escala (f) na ltima slaba de cada nota, seja
ascendendo (soprano e tenor, em oitavas), seja descendo (contralto e baixo, tambm em
oitavas). A mo direita do organista executa a voz-T prpria do soprano (e tenor), e a mo
esquerda a voz-T prpria do baixo (e contralto). A mo esquerda quase sempre secundada
pelos pedais, e as vozes-T, novamente, se encontram na posio alternante.
O Agnus Dei volta escala de r elio e deixa silenciosos sopranos e baixos. Apenas
cinco notas so usadas pelos contraltos e tenores: contraltos chegam quinta (l) na ltima
slaba de cada palavra, e tenores chegam ao primeiro grau (r) tambm na ltima slaba.
Com tal procedimento so possveis apenas trs combinaes: a quinta r-l, a tera mi-sol
e um unssono em f ainda, claro, sem contar possveis vozes-T.
29
30
Texto13
Voz-T
Agnus Dei,
Posio alternante
em relao ao contralto
Agnus Dei,
Duas vozes-T:
Letra A: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz aguda na posio superior
Letra B: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz aguda na posio inferior
Letra C: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz grave na posio superior
Letra D: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz grave na posio inferior
13
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: tende piedade de ns. Cordeiro de Deus, que tirais os
pecados do mundo: tende piedade de ns. Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: dai-nos a paz.
31
Letra G: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos; voz-T na posio
superior para a voz aguda e voz-T na posio inferior para a voz grave
Letra H: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos; voz-T na posio
inferior para a voz aguda e voz-T na posio superior para a voz grave
14
HILLIER (2002), p.110. O Ite missa est est sempre presente na Liturgia, mas Hillier se refere a uma pea
musical especfica para ele.
32
No segundo acorde do compasso 36, ali colocado entre parnteses por ser ouvido
bem de passagem, temos praticamente um cluster: d-r-mi-f.
33
Esta liberdade com o material diatnico havia sido prenunciada numa pequena
composio para coro a quatro vozes chamada Solfeggio, de 1964 (pertencente, portanto,
primeira fase da obra de Prt). Assim como grande parte das obras tintinabulares, foi escrita
com rigor quanto seqncia das notas, que sempre a da escala diatnica de d a si, de
uma maneira que poderia at mesmo ser considerada serial. No h, entretanto,
preocupao em relao a consonncia do modo entendido tradicionalmente, ouvindo-se
acordes com todo tipo de intervalo possvel dentro de uma escala diatnica. Solfeggio ser
abordada brevemente, mas de modo mais claro, no segundo captulo deste trabalho.
1.6. Composio da voz-M em msica instrumental
Em seguida examinaremos um pouco a obra An den Wassern zu Babel saen wir
und weinten (s margens das guas da Babilnia sentvamo-nos e chorvamos), verso
que principia o Salmo 136 (137). Trata-se de um salmo sobre o exlio hebraico na
Babilnia:
15
BBLIA, pp.768-769
34
A obra, contudo, no tem o salmo como texto. Seu primeiro ttulo havia sido In Spe,
provavelmente para ocultar sua inteno religiosa (o mesmo havia ocorrido com Sarah was
ninety years old, anteriormente chamada Modus). As vozes cantam apenas vogais, e o
texto sobre o qual a pea foi construda (embora no seja cantado) o mesmo do Kyrie
da Missa. Veremos novamente uma pea vocal por seu modo diferente de construir a voz
M, independente do texto.
Nesta obra cada linha de msica numerada, como um substituto para a numerao
de compassos nos quais ela no dividida.
Linha
Vogal
Palavra
Kyrie
Kyrie
Kyrie
eleison
eleison
eleison
35
Examinemos portanto as frases musicais encontradas nesta pea e como elas foram
construdas.
Figura 28. Linha dos baixos de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten
Figura 29. Linha dos sopranos de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten
36
Figura 30. Frases de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten
24 Preludes for a Fugue filme documentrio que encabea a bibliografia neste trabalho. Encontrvel em
DVD, foi escrito e dirigido por Dorian Supin. Este vdeo mostra depoimentos e cenas de Arvo Prt.
37
1.7. Concluso
Certamente muito cedo, neste ponto, para quase qualquer tipo de concluso. Alm
disto, no s a tcnica tintinabular consideravelmente simples como nosso intento, neste
primeiro captulo do trabalho, foi o de a apresentar, somente.
Desta forma, uma verdadeira concluso se d com a compreenso desta tcnica pelo
leitor, a qual esperamos ter alcanado; e com o prosseguimento das anlises, que elucidaro
em que contexto Prt utiliza sua tcnica em suas obras. Deixamos nossa sugesto de que o
leitor experimente por si a tcnica, no papel e ao piano ou outro instrumento. Asseguramos
que esta prtica ser muito til em todos os momentos do trabalho.
38
Captulo 2
Prt e a Msica Antiga
2.1.Introduo
No ano de 1976 ocorreu o incio de uma nova fase na vida composicional de Arvo
Prt. Nos anos anteriores o compositor se entregara a estudos da msica medieval e a
exerccios de composio de monodias. Que existe na msica medieval que chamou a
ateno do compositor que estudamos? Paul Hillier comenta:
Prt diz que foi o esprito da msica antiga que lhe interessou,
muito mais do que os procedimentos tcnicos pela qual ela
realizada. O que esse esprito? E em que medida ele pode ser
separado da tcnica? Em seu tempo de estudante, as lies de
contraponto de Prt incluram msica de Palestrina, mas era um
Palestrina reduzido a exemplos de livro-texto, dissociado de
experincias vivas da msica e de seu aspecto espiritual, e tudo
aquilo lhe dizia muito pouco. Mais tarde ele retornou quela msica
(...)17
Hillier certamente tem por base a entrevista concedida por Prt a Jamie McCarthy,
na qual o prprio compositor reconhece no significar muito a simples meno a essa
influncia do esprito da msica antiga18. Mesmo assim, refora seu maior interesse nesse
aspecto um tanto intangvel do que na mecnica da polifonia. Isto procede, pois Prt
criou a sua prpria mecnica polifnica, isto , a tcnica tintinabular. Mesmo assim,
existem parentescos suficientes entre sua msica e a msica medieval para que nos
detenhamos neste assunto e o examinemos com cuidado. o que fazemos neste segundo
captulo.
2.2.O diatonismo
17
18
McCARTHY (1989).
40
19
Utilizamos a palavra tesouro conforme o sentido da origem desta palavra, a palavra latina thesaurus:
tesouro, bens, haveres, teres, proviso de toda sorte, locam em que se acumulam os bens materiais e nomateriais, depsito de conhecimentos, de acordo com HOUAISS (1999).
42
diretamente a estrutura meldica das monodias compostas sobre eles, e de maneira to clara
que perfeitamente possvel distingui-las quanto origem modal.
As referidas notas mais importantes so a final (marcada no diagrama com a letra F)
e a dominante (marcada no diagrama com a letra D). A nota final, evidentemente, a nota
na qual terminam as melodias baseadas num determinado modo. Para entender a dominante
necessrio deixarmos totalmente de lado a noo de dominante tal como a aprendemos na
msica tonal. Dominante vem do verbo dominar, e percebemos que a nota qual se
atribui esta nomenclatura tem grande presena nas melodias de um dado modo, sendo
repetida e ornamentada de vrias maneiras.
muito clara a presena da nota dominante nas frmulas meldicas a que
chamamos tons salmdicos. Os tons salmdicos so maneiras de cantar salmos em certos
momentos especficos da Liturgia. Apresentam uma frmula de entonao (para o incio de
uma estrofe), uma frmula de terminao (para o fim de uma estrofe), frmulas de
mediao (para o fim de versos individuais) e, de modo marcante, notas repetidas para a
maior parte das slabas do texto.
Vejamos abaixo os tons salmdicos correspondentes a cada modo. Acrescenta-se a
eles um tonus peregrinus.
Prxima pgina: figura 34. Frmulas salmdicas eclesisticas
para cada modo e tonus peregrinus
43
44
O Ofcio Divino a orao oficial da Igreja Catlica Romana. So sete funes dirias: Ofcio das Leituras
(a qualquer hora do dia), Laudes (incio da manh), Tera (9 horas), Sexta (12 horas), Noa (15 horas),
Vsperas (fim da tarde ou comeo da noite) e Completas (ltima orao do dia, antes do sono). Tal a
estrutura de acordo com a reforma litrgica aprovada pelo papa Paulo VI. Anteriormente existia um ofcio
chamado Matinas, substitudo depois pelo Ofcio das Leituras. Em todas estas oraes se faz uso de salmos
(trs em cada ofcio, com exceo das Completas, com um ou dois), tradicionalmente recitados com estes tons
salmdicos que abordamos.
21
O Salmo Responsorial se encontra depois da primeira leitura do rito da Missa. seguido pela segunda
leitura ou pelo Evangelho e seu respectivo Aleluia, conforme a liturgia do dia. Antes da reforma litrgica do
papa Paulo VI no se tinha o Salmo Responsorial, e sim o Gradual que continua, a propsito, sendo uma
alternativa mesmo no rito novo, e consta do Graduale Romanum, o livro de canto gregoriano para a Missa
publicado pelos monges de Solesmes. O Gradual, porm, uma melodia inteiramente composta, e no uma
frmula de recitao.
45
22
O texto um trecho do Salmo 4, usado nas Completas de Sbado. Tremei, mas sem pecar; / refleti em
vossos coraes, / quando estiverdes em vossos leitos, e calai.
23
Irmos, reconheamos nossos pecados para que sejamos capazes de celebrar dignamente estes santos
mistrios. introduo do sacerdote ao Ato Penitencial da Missa.
24
46
Figura 38. Escala com segundas aumentadas utilizada em And one of the Phrarisees...
25
BBLIA, p. 1356.
47
A seguir vemos as trs primeiras frases da pea. Esto aqui transcritas apenas as
vozes-M de cada momento. A todo instante, nestas frases, as vozes restantes fazem ouvir
vozes-T.
48
27
49
Esta seqncia de notas, usada por Prt em tantas obras, usada na estruturao de uma
frmula de recitao salmdica especfica de And one of the pharisees....
51
Vozes-T
Tenor (1pi)
Contratenor
Baixo (2pi)
2-3
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
4-5
Baixo
Contratenor (1ps)
Tenor (2ps)
Tenor
Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)
Contratenor
Tenor (2pi)
Baixo (1pi)
Tenor
Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)
Baixo
Contratenor (1ps)
52
Tenor (2ps)
10
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
11-12
Contratenor
Tenor (1pi)
Baixo (2pi)
13
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
14
Baixo
Contratenor (1pi)
Tenor (2ps)
15
Tenor
Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)
16
Contratenor
Tenor (2pi)
Baixo (1pi)
17-20
Contratenor solo
21
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
22-23
Baixo solo
24
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
25-26
Contratenor solo
27-34
Baixo solo
35
Tenor
Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)
53
36-37
Contratenor solo
38
Contratenor
Tenor (2pi)
Baixo (1pi)
39
Baixo solo
40
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
41
Baixo
Contratenor (2ps)
Tenor (1ps)
42-57
Baixo solo
58
Tenor
Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)
59
Baixo solo
60
Contratenor
Tenor (2pi)
Baixo (1pi)
61
Tenor e Baixo
62
Tenor
Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)
63-64
(oitavas
mi)
na
nota -
Cinco anos depois de And one of the Pharisees... Prt comps Tribute to Caesar
(1997) sobre o conhecido texto do Evangelho segundo So Mateus em que Jesus ordena
dai a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus28. Escrita para coro misto a quatro
28
Mt 22, 15-22
54
Em nome do Pai, e do Filho e do Esprito Santo. Amm em ingls: In the name of the Father, and of
the Son, and of the Holy Spirit. Amen
30
Glria ao Pai, e ao Filho e ao Esprito Santo. Como era no princpio, agora e sempre, e pelos sculos dos
sculos. Amm em ingls: Glory to the Father, and to the Son, and to the Holy Spirit, both now, and ever
and unto ages of ages. Amen
55
31
Bem-aventurados os que tm um corao de pobre, porque deles o Reino dos cus! Bem-aventurados os
que choram, porque sero consolados! Bem-aventurados os mansos, porque possuiro a terra!(...)
56
BEWERUNG
in
Catholic
Encyclopaedia
http://www.newadvent.org/cathen/06779a.htm
57
verbete
St.
Gregory
verbete
(The
Gregorian
Great)
Chant
tessitura. O cantocho, de modo geral, no costuma exceder uma oitava, talvez uma nona.
Certas melodias mais antigas chegam a se limitar a uma sexta34.
Verificamos assim que a maioria das linhas meldicas de Prt se restringe a uma
pequena faixa de notas. Como pudemos observar no captulo dedicado tcnica
tintinabular, na Missa Syllabica cada uma das vozes-M no chega a fazer uso de todas as
sete notas da escala num mesmo movimento, at porque no existem nos textos palavras
com sete slabas.
A voz M na msica de Arvo Prt costuma se restringir a graus conjuntos. Neste
aspecto encontramos uma forte influncia do canto gregoriano, cujas progresses meldicas
so fundamentalmente calcadas em movimentos de segunda. de observar que, embora
isto tenha vindo a Prt diretamente do canto gregoriano, outros cantos litrgicos tambm se
desenvolvem dessa maneira. Os saltos costumam ser compensados, ou melhor: a faixa de
notas que, por causa de um salto, deixou de ser ouvida, costuma ser preenchida nos
instantes seguintes da melodia. Esses preenchimentos tambm ocorrem na melodia de Fr
Alina, na qual podemos ouvir diversos saltos.
Vemos aqui uma atitude fundamentalmente diferente em relao ao salto daquela
que se encontra em certos outros tipos de msica. Em diversos compositores do sculo XX
os saltos tm um aspecto tmbrico, ao colocar lado a lado notas de registros diferentes de
um instrumento (ou de instrumentos diferentes); noutros casos, os saltos so mesmo
meldicos, ainda que grandes (nona, dcima, etc.). Anton von Webern um compositor
em cuja msica se pode verificar a presena de ambas as situaes.
Prt se interessa pela idia de melodia em que predominem, como j afirmado, os
graus conjuntos. Assim, volta-se para o cantocho da Igreja Romana. Antes de
examinarmos os graus conjuntos de Prt, olharemos melodias gregorianas.
34
58
59
Preservou-se a unidade e se obteve a variedade com o uso de uma s fonte meldica. Esta
fonte no apenas escalar; modal, no sentido que, alm de termos uma escala especfica,
temos tambm um comportamento, uma maneira, um caminho que as notas, de modo geral,
percorrem, a que se somam possibilidades de desvios e atalhos individuais que no afetam
a essncia do modo. A figura a seguir demonstra a relao entre este antfona (na pauta
superior) e o tom salmdico (cujas notas integrantes aparecem na pauta inferior).
Figura 47. Anlise por graus conjuntos da antfona Hodie Christus natus est
Nas notas da melodia a partir da slaba a da palavra Gloria temos uma
ornamentao da nota r num movimento escalar que usa os modos tintinabulares 1 e 3;
respectivamente um movimento ascendente at l (dominante do modo) e o retorno
descendente at a nota principal.
O canto gregoriano apresenta trs possibilidades no que se refere associao de
notas e slabas. Quando a melodia atribui uma nota para cada slaba, dizemos que
60
silbica. Quando atribui algumas notas para cada slaba, dizemos que neumtica. E se
atribui muitas notas para cada slaba, usamos o termo melismtica.
Eis abaixo a primeira estrofe de um hino cantado na orao das Completas, da
Liturgia das Horas, no Tempo Pascal. Os hinos so, de modo geral, exemplos de peas
silbicas (alguns mais elaborados chegam a ser neumticos). Neste caso, algumas poucas
slabas chegam a ser cantadas em duas notas.
61
36
Pedi, e dar-se-vos-; buscai, e achareis. Batei e vos ser aberto. Todo aquele que pede, recebe. Quem
busca, acha.
62
64
37
65
ele afirma: minha idia de deixar as palavras escreverem sua prpria msica faz alguns
rirem, particularmente jornalistas musicais38.
De volta anlise de Petite et accipietis, vemos na linha III o mesmo que na anlise
II; o critrio, desta vez, diferente. Foi escrita a primeira nota de cada slaba exatamente
como est na melodia. Algumas poucas notas entre parnteses foram acrescentadas por,
mesmo no sendo a primeira de sua respectiva slaba, serem conclusivas e mais importantes
do que a primeira nota de fato.
A prxima pea de cantocho Salvum fac servum tuum, gradual da Sexta-feira da
Primeira Semana da Quaresma. Assim como a melodia precedente, seu modo o primeiro
(drico autntico) e seu texto do Salmo 85, versculos 2 e 6.
38
66
Figura 50. Gradual Salvum fac servum tuum continua na prxima pgina
67
39
HOPPIN, p.127.
68
Desta vez propomos duas anlises. A primeira, tambm feita no exemplo anterior,
a dos graus conjuntos. A segunda fazemos agora pela primeira vez no trabalho.
Evidenciamos nela a estrutura por trades que encontramos nesta melodia, ausente de Petite
et accipietis. Encontramos no s numerosas trades ornamentadas como a do incio (na
slaba Sal), mas tambm trs trades explcitas, marcadas na anlise II com colchete.
Nesta anlise das trades vemos a preponderncia da trade f-l-d. Como estamos
num universo modal, mais especificamente no universo modal gregoriano, natural que isto
ocorra. A trade r-f-l, que seria um primeiro grau deste modo, ocorre uma nica vez.
Isto, porm, s seria surpreendente num pensamento tonal. F-l-d uma trade presente
em inmeras melodias gregorianas de todos os modos, por ser pertencer ao arcabouo de
frmulas meldicas deste gnero. Observemos que o tom salmdico 5 apresenta uma
entonao precisamente nestas notas.
Naturalmente esse uso veio a ocorrer no minimalismo. Mas Prt est cronologicamente prximo desse
movimento, de maneira que se chega a pensar que seja parte dele. O terceiro captulo deste trabalho se
ocupar deste assunto.
69
Figura 51. Incio de melodias gregorianas comeadas por quinta justa ascendente
2.5. O ritmo do canto gregoriano
Dos aspectos musicais do canto gregoriano, as alturas no apresentam nenhum
problema, tendo sido notadas com total clareza na pauta de quatro linhas e notas quadradas
que mesmo hoje continua sendo sua notao. O mesmo no se verifica quanto ao ritmo.
O ritmo do canto gregoriano motivo de muita controvrsia42, chegando a ser
colocado como problema talvez insolvel43. Os manuscritos medievais no trazem
nenhuma indicao rtmica; as edies modernas tampouco, embora alguns poucos sinais
tenham sido adicionados por escolas de interpretao, notadamente a dos monges
beneditinos belgas de Solesmes.
Gustave Reese em seu Music in the Middle Ages apresenta trs escolas de
interpretao rtmica do canto gregoriano: os acentualistas, a escola de Solesmes e os
mensuralistas.
Os acentualistas professam a idia de que todas as notas do cantocho tm a mesma
durao, e as notas acentuadas devem ser aquelas que caem sobre a slaba tnica de cada
41
O terceiro exemplo no traz uma quinta explcita, mas o movimento meldico a sugere. Propositalmente
escolhemos trs composies jubilosas. A primeira, Puer natus est nobis, o Intrito da Missa do Dia de
Natal (um menino nos nasceu); a segunda, Gaudeamus (alegremo-nos), Intrito para o Dia de Todos os
Santos e algumas outras celebraes; a terceira, Viri Galilaei (homens da Galilia), o Intrito da Ascenso
do Senhor. A primeira e a terceira esto no modo 7, e a segunda no modo 1.
42
43
70
palavra no caso de melismas44, a primeira nota do grupo recebe esse acento. O resultado
um ritmo livre que reflete fielmente a natureza oratria do cantocho45.
A escola de Solesmes a mais conhecida. As gravaes dos monges so difundidas
em todo o mundo, e no somente sua interpretao rtmica como tambm o seu som, em
geral, so a idia que se tem do que o canto gregoriano. Seu mentor foi o monge d. Andr
Mocquereau (1849-1930). Assim como os acentualistas, esta escola propugna que o ritmo
do cantocho livre (algumas notas recebem prolongamentos indicados por um ponto
direita ou um trao acima). Discordam, entretanto, quanto aos acentos: para Solesmes, eles
no necessariamente recaem sobre a slaba tnica das palavras. A unidade de tempo cada
pulso, e os pulsos sucessivos se juntam em grupos de dois ou trs.
Os mensuralistas defendem que o cantocho deve ser interpretado com notas longas
e breves, contrariando Solesmes e os acentualistas para quem as duraes so iguais. Isto
no significa que os mensuralistas concordem entre si. Alguns crem que h duas duraes
diferentes, outros dizem que so trs ou mais.
H argumentos que corroboram cada uma dessas teorias. Reese oferece uma
reflexo: possvel que os tericos modernos estejam se referindo a prticas realmente
usadas em pocas e lugares diferentes e, assim, estejam todos certos, mas com relao a
melodias de provenincias diferentes46.
O que nos interessa em primeiro lugar, aqui, entender de que modo estas questes
rtmicas se ligam msica de Arvo Prt. Prossigamos, portanto.
As peas gregorianas que utilizamos como exemplos anteriormente foram todas
retiradas de livros editados pelos monges de Solesmes47. Decidimos transcrev-las para
notao moderna, omitindo sinais de acentuao. As notas longas, entretanto, foram
mantidas, escritas aqui em branco. As notas pretas so o pulso bsico.
44
45
46
47
71
Podemos perceber que todas elas terminam com notas longas. E no apenas seu
final numa nota longa, mas tambm o final das frases que as compem. Esta caracterstica
encontramos tambm em Fr Alina, que examinaremos mais adiante. Todas as frases so
construdas por certo nmero de notas breves, o pulso bsico, e finalizadas com uma nota
longa.
Alm disto, o ritmo livre em notas de igual durao caracterstico de vrias das
primeiras composies tintinabulares e tambm das posteriores: Fr Alina, Cantate
Domino, a Missa Syllabica, And one of the Pharisees... etc. Somam-se a estas peas
posteriores. Em todas elas a notao utilizada semelhante que adotamos neste trabalho
para as melodias gregorianas.
Em algumas, como And one of the Pharisees..., existe uma instruo precisa: as
notas pretas tm o valor de uma semnima, e as brancas tm o valor de uma mnima
pontuada; uma proporo precisa de uma nota longa equivalente a trs breves. Temos, desta
maneira, um pensamento prximo ao da interpretao proposta pelos mensuralistas. Para
no corrermos o risco do absurdo, relacionando qualquer msica mensural com a
interpretao mensuralista do gregoriano, temos que identificar algum tipo de relao entre
And one of the Pharisees... e o cantocho precisamente o que fizemos anteriormente, ao
analisarmos os tons salmdicos e como Prt criou frmulas de recitao nesta composio.
Cantate Domino tambm segue esta idia; apresenta, por sua vez, trs duraes:
uma nota preta (equivalente a uma colcheia), uma nota preta com trao (equivalente a uma
semnima) e uma nota preta com dois traos (equivalente a uma semnima pontuada).
Tendo como texto o Salmo 95, esta pea se destaca na produo de Prt por seu incomum
andamento rpido. Embora os primeiros oito compassos possam dar a impresso de
regularidade (poderamos aplicar a frmula 3/8 do incio do fim, se no fosse o stimo
compasso), a seqncia a desmente. Transcrevemos aqui em notao convencional a parte
de soprano das duas primeiras sees da pea. Adicionamos ainda frmulas de compasso
que, naturalmente, esto ausentes do original.
72
73
acrscimo de notas. Portanto o nmero de notas breves em cada compasso 1-2-3-4-5-6-76-5-4-3-2-1-2, com um crescimento at o centro e em seguida um decrscimo. Hillier
observa que esse crescimento em direo ao centro caracterstico da estrutura de vrias
obras de Prt48. E, como vimos na parte dedicada ao ritmo no canto gregoriano, as notas
longas no final das frases so tpicas deste gnero.
No diagrama abaixo tem-se uma anlise para Fr Alina, em que se procura
evidenciar a estrutura por graus conjuntos. Delimitam-se, portanto, regies em que se
encontra um campo todo analisvel por graus conjuntos, a saber: compassos 1-4, 5-8 e 911.
48
HILLIER, p.106.
75
a voz T, a voz tintinabular, faz uma exceo e sai da trade. Neste momento h no
manuscrito da partitura uma flor desenhada, conforme vemos no livro de Hillier49 e
tambm no filme de Dorian Supin.
Se termina com harpejos tridicos, esta melodia comea com movimentos por grau
conjunto das cinco primeiras notas da escala. Escala e harpejo so, como temos visto, os
elementos fundamentais da tcnica tintinabular.
2.7. Organum
No estudo da msica da Idade Mdia deparamo-nos, em seguida monodia
gregoriana, com o chamado organum. Trata-se da primeira manifestao de polifonia na
msica sacra ocidental embora haja muitas dificuldades na reconstituio dessa histria,
devido brevidade e ambigidade com as quais autores medievais descreveram prticas
contemporneas50. Como explica Richard Hoppin, os exemplos mais explcitos so poucos
e muito fragmentrios, deixando dvidas quanto aplicabilidade dos processos em
melodias mais longas e elaboradas. A compreenso dos acidentes tambm continua
confusa. Em todo caso, as informaes de que dispomos so suficientes para o caso que nos
interessa, que a relao entre a msica tintinabular de Arvo Prt com estas tcnicas
medievais.
O organum se refere tambm ao canto gregoriano. Vimos que este gnero
mondico; pensando agora em polifonia, teremos uma segunda voz, adicionada melodia
gregoriana, que apresenta algum tipo de diferena e esta diferena crescente na
cronologia da prtica musical. A cada nota da melodia original (chamada vox principalis)
atribuda tambm uma nica nota (numa linha chamada vox organalis).
O primeiro tipo de organum aquele em que, por cantarem juntos homens e
meninos, a melodia soa em oitavas diferentes devido s diferenas de registro das vozes.
49
HILLIER, p.89.
50
77
Por no ser um unssono absoluto, classificado como um tipo de polifonia nos textos
sobre msica medieval e nos prprios textos medievais que procuram teorizar esta prtica51.
51
Como o Scholia enchiriadis e o Musica enchiriadis, fontes usadas por HOPPIN (1978) e que datam,
aproximadamente, do sculo IX.
78
mais do que pode incomodar ouvidos atuais, que em geral no tm o hbito de ouvir
organum paralelo.
Hoje teramos uma soluo simples, que a alterao do f, transformando-o em f
sustenido. Mas na poca este recurso no estava disponvel, e um no muito simples
sistema de tetracordes (que no abordaremos aqui) limitava as opes, definindo mesmo
opes do organum no-paralelo que surgiu depois.
Assim, este organum no-paralelo se desenvolveu. As vozes comeam em unssono
at atingirem o intervalo de quarta justa. No final da melodia, retornam ao unssono. Ns o
chamamos aqui de no-paralelo por no ser rigoroso como o anterior; tericos
medievais52, entretanto, o chamam de organum paralelo modificado. O nome de fato
adequado porque o paralelismo se conserva na estrutura geral. Ajustes ocorrem no comeo
e no fim, como referimos, para possibilitar os unssonos e transies a partir dele e em
direo a ele; podem ocorrer tambm no meio.
53
79
livremente composta, ainda que houvesse regras; o mais importante que no se tinha mais
o limite de estrito paralelismo nem o paralelismo modificado que permitia ajustes de algum
modo tambm sujeitos a certas frmulas. Tratados escritos por volta de 1100 j iniciam
descries de processos em que a vox organalis passa a apresentar duas ou trs notas contra
uma nota da vox principalis.
At aqui temos, ento, tcnicas de composio54 em que a idia de nota-contra-nota
o elemento primordial. No que tange msica de Arvo Prt, este tambm o caso de
vrias de suas primeiras composies tintinabulares. Acima pudemos verificar que assim
Fr Alina. No primeiro captulo detivemo-nos na Missa syllabica, escrita inteiramente
nota-contra-nota. Enquadram-se tambm An den Wassern zu Babel sassen wir und weinten
(1976), Fratres e Cantate Domino, ambas de 1977. Algumas peas posteriores tambm
retornam a essa escrita, como a j analisada And one of the Pharisees... e sees de obras
que no so escritas inteiramente nota-contra-nota.
A tcnica tintinabular pode ser vista como uma tcnica de composio de organum.
Sabemos, por Hillier, que Prt chegou a ela estudando maneiras de combinar duas vozes.55
Trata-se de uma tcnica de organum precisa, em que para cada nota existe uma determinada
outra nota proposta pelo procedimento, em cada posio (primeira e segunda, inferior,
superior e alternante).
De acordo com a descrio da tcnica tintinabular do primeiro captulo deste
trabalho, fica muito clara nela a ausncia de paralelismos. Assim no temos organum
estrito, mas um organum paralelo modificado. Ainda que as vozes se movimentem na
mesma direo, os intervalos no so iguais.
Pensamos na voz-T como uma verso reduzida e menos ntida da voz-M. No caso
do organum, podemos pensar na vox organalis tambm como uma verso reduzida e menos
ntida da vox principalis. A vox organalis e a voz-T tm em comum o fato de, em certos
54
Dizemos composio de modo geral, j que o organum paralelo nada tinha de real composio, por ser
simplesmente um mesmo canto partindo de notas diferentes; o organum paralelo modificado passou a admitir
ajustes que tampouco se caracterizavam como composio; o organum livre, sim, por sua vez, pode ser
entendido j como composio.
55
80
56
81
82
Figura 61. Rex Caeli em organum tintinabular, posio alternada. A linha verde indica a
vox principalis (voz-M) e a linha vermelha a vox organalis (voz-T).
83
Falamos acima a respeito do fato de tanto a voz-T tintinabular como a vox organalis
do organum paralelo modificado serem uma verso estilizada e menos ntida da voz-M e da
vox principalis, respectivamente57. Isto nos leva a entender que a voz-T e a vox organalis,
por serem dependentes da voz-M e da vox principalis, no produzem polifonia
propriamente dita. Esta ocorre quando as partes integrantes do todo so desenvolvidas igual
e independentemente, ainda que com o respeito a regras reguladoras dos resultados
verticais.
necessrio recorrer a outro conceito, o de heterofonia. Verifiquemos o que nos diz
o Grove a seu respeito:
Termo cunhado por Plato, de significado incerto; agora usado
para descrever variaes simultneas de uma nica melodia. (...)
seu significado pode ir da referncia a mnimas discrepncias na
execuo de unssonos ou oitavas (mesmo aqueles, por exemplo,
produzidos acidentalmente pelos primeiros violinos de uma
orquestra) mais complexa escrita contrapontstica.
Modernamente o termo usado com freqncia, particularmente na
etnomusicologia, para descrever variao simultnea, acidental ou
deliberada, de algo identificado como sendo uma mesma melodia.58
Trata-se precisamente do que se passa com o organum paralelo modificado e com a
tcnica tintinabular nas posies primeira e segunda. Os grficos que mostramos acima
ajudam na compreenso desta idia.
Veremos tambm que, no caso do organum paralelo modificado, ocorre um
movimento contrrio, exatamente no seu final. O uso deste recurso cresceu com o tempo.
Recorremos, aqui, a Gustave Reese:
A evidncia do uso planejado e recorrente do movimento contrrio
na prtica (...) obviamente importante, j que indica o
desenvolvimento de um distanciamento da mera heterofonia em
direo a real polifonia.59
57
No organum paralelo estrito, claro, trata-se de mais do que uma verso, por ser uma simples transposio,
completamente fiel, da voz principal.
58
Grove heterophony
59
84
85
62
63
Os modos esto aqui relacionados com o substantivo que os designa. Usaremos tambm seus adjetivos:
trocaico (troqueu), imbico (iambo), dactlico (dctilo), espondaico (espondeu) e tribrquico (trbraco).
86
64
87
88
66
Adotamos esta designao (coagular) utilizada por Messiaen em seu tratado (MESSIAEN, 1994) para nos
referirmos soma de duraes num nico impulso.
67
Lembremo-nos de que estas interpretaes desse ritmo (semnima pontuada, semnima, colcheia) se devem
ao fato de ele no fazer parte do rol de modos rtmicos.
89
90
Trata-se, pois, de um ritmo masculino, por haver somente uma nota no acento, sem
desinncias que o sigam (as notas depois dos acentos sempre j fazem parte da anacruse
neste tema).
A busca por uma organizao rtmico-arquitetnica maior nos coloca algumas
possibilidades. A mais evidente aquela colocada, novamente, simultaneamente pelo
material musical e pela ligadura escrita na partitura. Alm das ligaduras que conectam as
anacruses aos acentos, temos tambm duas grandes ligaduras, uma para a seo ascendente
do tema, outra para a seo descendente. Ambas so de igual importncia, igualmente
acentuadas, igualmente constitudas grupos ritmicamente fortes.
Figura 68. Acento das metades do tema de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
A partitura no indica mudana de dinmica na escala descendente (continua p at a
quarta seo da obra), razo pela qual preferimos entender cada uma dessas metades como
um grupo forte por seu prprio direito. So ambas thesis, no havendo arsis; esta surge
numa anlise de um nvel arquitetnico mais detalhado, examinado no prximo exemplo. O
t indica thesis, e o a indica arsis.
Um olhar sobre as duraes de cada um desses grupos mostra que a nota de chegada
(l agudo e, depois, o l grave) se situa precisamente no grupo de durao mais curta.68
68
Para uma compreenso mais clara, o exemplo mostra as duraes com um oitavo do seu valor real. A
alternncia de semnimas e semnimas pontuadas (e colcheia) mais clara aos olhos de hoje do que a de
breves e breves pontuadas (e semibreve).
92
93
95
96
Figura 77. Incio da sexta seo de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
Se retirarmos as duas vozes-T, restam somente as notas das escalas ascendente e
descendente. Encontramos em sua apario um anfbraco, modo que j havia sido utilizado
na seo 3. Este modo, surgido de maneira subliminar, composto exclusivamente de
notas tticas69 de cada voz.
69
97
98
Figura 80. Terceiro modo rtmico medieval e troqueu em Silentium de Tabula Rasa
Estes modos rtmicos esto presentes nas composies instrumentais. Nas obras
vocais, como vimos, Prt toma o texto como ponto de partida para deduo de todos os
parmetros composicionais. Portanto, comum que os acentos, notas longas ou ambos se
encontrem nas slabas tnicas, ou em palavras de algum modo mais importantes dentro de
uma determinada frase. As tcnicas variam conforme a obra e o idioma do texto.
Uma terceira pea de Arvo Prt foi composta de acordo com os princpios de um
cnon mensurado, e desta vez se trata de uma pea vocal. A sexta das Sieben MagnificatAntiphonen70, intitulada O Knig aller Vlker [ Rei de todos os povos] traz, na linha dos
sopranos (divisi), o texto musicado num fluxo de notas longas e breves de acordo com a
slaba tnica das palavras do texto alemo. Ao mesmo tempo, as vozes masculinas cantam a
mesma msica duas vezes mais rapidamente. Cantam-na, portanto, duas vezes. Os sopranos
alternam entre mnimas e semibreves, as vozes masculinas entre semnimas e mnimas, e os
contraltos somente pontuam a obra cantando o texto em semnimas repetidas. Esto
presentes, portanto trs duraes, ainda que como uma decorrncia de uma composio
estruturada unicamente em notas longas e notas breves.
70
Significa sete antfonas do Magnificat. O Magnificat um cntico recitado ou cantado no ofcio das
Vsperas, emoldurado por um breve texto chamado antfona. A antfona varia conforme o dia litrgico.
Nesta composio, escrita em 1988, Prt se serviu do texto alemo das antfonas para o Magnificat nos sete
dias que antecedem o Natal, isto , de 17 a 23 de Dezembro (as Vsperas do dia 24 j so as Primeiras
Vsperas do Natal), escrevendo uma pea para cada uma delas. So chamadas de antfonas do O, por
comearem, todas, com vocativos dirigidos a Cristo: Sabedoria; Adonai; Rebento de Isaas; Chave
de David; Estrela da Manh; Rei de Todos os Povos; Emanuel.
99
71
Esta obra dura cerca de 70 minutos. Foi composta para quarteto vocal solista, violino, obo, violoncelo e
fagote (representando o Evangelista So Joo, que narra a histria), tenor (Pilatos), baixo (Jesus), coro (a
turba e outros personagens como o apstolo So Pedro e o sumo sacerdote) e rgo.
100
entre colchetes o nmero de semnimas equivalente a cada uma delas, para uma
comparao mais fcil das propores.
Personagem
Nota breve
Nota mdia
Nota longa
Evangelista
Semnima
Mnima
[1]
[2]
Turba e Pilatos
Mnima [2]
Semibreve pontuada
[6]
Jesus Cristo
Semibreve
Breve
[4]
[8]
72
Numerosas verses foram publicadas e gravadas nos anos subseqentes: violino e piano, violoncelo e
piano, violino com cordas e percusso, trombone com cordas e percusso, quatro violoncelos (ou mltiplos de
quatro), quarteto de cordas, octeto de sopros etc.
102
103
Outras composies de Prt fazem uso de bordes, embora no numa obra inteira
como acontece em Fratres. Na Ode III de Triodion, para coro a cappella, estando a linha
dos baixos dividida em trs, os terceiros baixos sustentam a mesma nota por 37 compassos
em 3/2, sendo 66 mnimas por minuto.
No Credo da Missa Syllabica Prt utiliza alguns pontos de bordo na parte de pedal
do rgo, de modo a conferir variedade de timbre e textura a uma pea de longo texto em
prosa e andamento moderadamente lento.
2.11. Hoqueto
Segundo Gustave Reese, existem duas interpretaes etimolgicas para a palavra
hoqueto. A primeira que se origina da palavra rabe qt, que significa ritmos. Outra
possibilidade a de que venha da palavra oket ou hoquet, por sua vez de hiccough, que
significa soluo, em ingls.73
Musicalmente se trata de uma tcnica de truncamento, em que uma voz canta
enquanto a outra permanece silenciosa74, caracterstica da polifonia do sculo XIII.
73
74
104
75
76
Dos Cent motets du XIIIe sicle [Cem motetos do sculo XIII], em trs volumes, organizados por P. Aubry e
publicados em 1908, apud HOPPIN (1978), p.345.
105
num nmero relativamente pequeno de peas e raramente formam a base para uma
composio inteira.77
Arvo Prt no utiliza o hoqueto da mesma maneira que os compositores de polifonia
do sculo XIII. Entretanto, certos trechos de suas obras, ou mesmo obras inteiras, fazem o
uso de alternncia de vozes que realizam uma nica linha, o que configura verdadeiramente
uma espcie de hoqueto. Trata-se, de certa forma, de uma tcnica de orquestrao.
Em Tribute to Caesar, as palavras de Jesus que ordenam dar a Csar o que de
Csar so entregues aos baixos, como as outras falas de Cristo. Entretanto, nesta frase
particular, alternam-se notas solistas dos baixos com notas harmonizadas pelas vozes
femininas em voz-T. Assim como ocorre no hoqueto, sopranos e contraltos no chegam a
cantar o texto, mas apenas fragmentos.
106
Prt isto no acontece, pela diferena de registro das vozes. Observemos os oito primeiros
compassos de I am the true vine. Primeiro a partitura completa:
Figura 86. Incio de I am the true vine reduzido para duas pautas
No podemos deixar de repetir a data de composio desta obra: 1996. Este uso do
instrumento coral no est presente nas primeiras obras tintinabulares, sendo uma
caracterstica nova na obra de Prt, num contexto em que a tcnica tintinabular continua
sendo usada. Eis uma prova de que, apesar do rigor e simplicidade buscados pelo
compositor, sua msica continuou a mudar e introduzir novidades.
No segundo movimento de Tabula Rasa Prt foi obrigado a utilizar um artifcio
parecido com o hoqueto para manter a seqncia da idia musical. Novamente trata-se de
107
orquestrao, aqui j sem aspas. Por serem necessrias notas que os violoncelos no
alcanam no grave, a linha passa momentaneamente para os contrabaixos.
O hoqueto, em Prt, surge portanto de uma necessidade de instrumentao. Nas
obras vocais ele at apresenta um parentesco um pouco mais prximo com o hoqueto
medieval; mas fica clara a diferena de inteno e realizao entre as tcnicas.
2.12. Liturgia
A msica medieval tambm consta de gneros profanos. Entretanto, grande parte do
seu estudo se concentra na msica escrita para a Igreja, pois nela que ocorreram certos
desenvolvimentos importantes. Alm disto, a Igreja era o centro da vida da poca, inclusive
da vida cultural.
No universo da msica religiosa catlica, tanto na Idade Mdia como depois,
existem basicamente duas divises: msica litrgica e msica religiosa. Este segundo termo
um nome genrico para a msica que no se utiliza na liturgia, isto , nas Missas ou nos
Ofcios. Ambos os tipos esto presentes na msica medieval e tambm na msica de Arvo
Prt.
Quase todas as obras de Arvo Prt compostas a partir de 1976 so de cunho
religioso. Es sang vor langen Jahren, de 1984, para contralto, violino e viola, usa um
poema no-religioso, mas, como aponta Paul Hillier, em sua fuso de amor humano e
pureza espiritual, as palavras esto longe de ser mundanas78. Trata da nica exceo aos
textos religiosos at este momento.
As obras de Prt compostas sobre textos litrgicos so todas adequadas para os
servios litrgicos de que fazem parte. Suas duas missas, a Missa Syllabica e a Berliner
Messe, apesar de seus estilos diferentes, so ambas apropriadas para uso na Missa catlica.
A Berliner Messe foi escrita pelo compositor por encomenda do 90. Deutsche
Katholikentage79, realizado em Berlim em 1990. Alm das partes ordinrias da Missa, esta
obra inclui a seqncia de Pentecostes (Veni Sancte Spiritus) e o Alleluia prprio desta data
78
79
108
litrgica. As Sieben Magnificat Antiphonen tambm so adequadas para uso nas Vsperas
da semana que antecede o Natal, desde que o Magnificat seja cantado num tom salmdico
apropriado. Existe mesmo um Magnificat de Prt, composto em 1989.
O julgamento da adequao de uma msica liturgia no necessariamente passa por
critrios tcnicos. A durao da obra importante neste caso, porque, se excessivamente
longa, interfere no significado e na compreenso da liturgia pelos presentes. Nenhuma das
composies litrgicas de Prt se excede em durao; isto muito claro na Missa Syllabica,
em que cada nota atribuda a uma slaba e a msica usa apenas o tempo necessrio para
expor o texto. Mesmo na Berliner Messe, mais expansiva, no h longas introdues
instrumentais nem outros trechos sem canto muito substanciosos. Em certos casos, o que
aumenta a durao da msica o tempo lento, o que trabalha mesmo a favor da atmosfera
de contemplao do sagrado que deve existir na msica litrgica. Veni Sancte Spiritus,
seqncia que faz parte da Missa de Pentecostes, se desenvolve numa atmosfera que
possibilita aos fiis a meditao do mistrio do Esprito Santo e os prepara para a solene
proclamao do Evangelho deste dia. O Credo da Missa Syllabica, por sua vez, cantado
num tempo quase lento, no obstante seu texto ser longo; este tempo propicia a
compreenso das palavras que expressam a f catlica e evitam a sua recitao
excessivamente rpida, sublinhando a importncia deste momento da Liturgia.
A fidelidade de Prt aos textos e, como j vimos, sua idia de permitir que os
textos escrevam a msica, o leva a no usar repeties de palavras nem de frases em suas
composies. Embora este recurso no seja proibido nem inadequado na msica admitida
liturgia catlica, chegou a ser objeto de abuso, especialmente em composies de influncia
operstica no sculo XIX, ocasionando uma violentao dos textos de modo a faz-los
adaptar-se msica desejada. No documento Tra le sollecitudini, de 1903, o papa So Pio
X diz:
Entre os vrios gneros de msica moderna, o que parece menos
adequado para acompanhar as funes do culto o estilo teatral,
que no sculo passado esteve muito em voga, particularmente na
Itlia. Por sua prpria natureza, este gnero apresenta a mxima
109
81
82
110
83
111
Captulo 3
Prt e o Minimalismo
3.1. Introduo
No captulo anterior, o segundo deste trabalho, compreendemos as relaes entre a
msica de Arvo Prt e a msica medieval. Iniciamos agora um terceiro captulo, no qual
nos dedicamos a estabelecer conexes entre a msica do compositor estoniano e a msica
minimalista. Entre as tarefas indispensveis para tal estudo est a prpria definio de
minimalismo musical.
O vnculo da obra de Arvo Prt com a msica minimalista se estabelece de maneira
diferente daquele que mantm com a msica medieval. Esta foi diretamente estudada por
Prt. O compositor chegou a interromper sua atividade criativa para tal estudo. Numerosos
cadernos foram preenchidos nesse tempo.
Prt no estudou a msica minimalista. Entretanto, na msica que passou a escrever
a partir de 1977, ele lana mo de tcnicas composicionais que o aproximam muito do
minimalismo. No poucas fontes o incluem no chamado holy minimalism (minimalismo
sacro), na companhia de compositores como o britnico sir John Tavener, o polons
Henryk Grecki e o georgiano Giya Kancheli.
compreenso dessas tcnicas composicionais que dedicamos este terceiro
captulo.
O ttulo dado a este novo captulo do trabalho simplifica, tanto quanto possvel, o
seu objeto de estudo. Assim, no poderia deixar de acontecer que ele apenas o descrevesse,
sem que nada dissesse de mais informativo.
Apresenta-se, logo de incio, a necessidade de algumas definies. Entre elas, a
prpria definio do minimalismo musical. Embora j tenhamos, neste momento, algumas
dcadas de conhecimento da msica minimalista, dos compositores que se tornaram mais
clebres e de algumas caractersticas gerais desta corrente, ainda ocorrem alguns debates.
113
84
HILLIER (2002).
114
3.2. Drone
Um dos primeiros aspectos que consideraremos no minimalismo j foi apontado no
captulo anterior com relao msica medieval. Trata-se do drone, ou bordo: notas
graves sustentadas sobre as quais se desenvolvem linhas meldicas. Notas, no plural, ou
nota, no singular; podemos pensar no singular quando nos referimos s notas muito
115
este
processo.
Virtualmente
quase
qualquer
COURTNEY - http://chandrakantha.com/articles/indian_music/drone.html
117
notadamente a LaMonte Young. Suas composies Octet for Brass (1957) e String Trio
(1958)86j confirmam este interesse. Empregam notas simples e combinaes de notas
sustentadas por perodos de tempo extraordinariamente longos87. De fato,
86
87
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Certamente a alguns a anlise das notas longas no baixo desta pea como drones
pode parecer forada. Nosso intuito, porm, o de mostrar que mesmo em pocas
anteriores ao minimalismo os compositores conheceram e utilizaram drones; desejvamos
contrastar o uso feito por eles, geralmente de origem folclrica, com o uso dos
minimalistas. Esta obra de Handel explicita a origem folclrica de seu drone no ttulo
Musette, o mesmo ocorrendo em diversas peas barrocas do mesmo ttulo. Em seu tempo,
todavia, ainda que fosse possvel utilizar as notas muito longas, era necessrio dar-lhes um
sentido no contexto da linguagem musical da poca, ligada ao sistema tonal. Assim, como
visto nos exemplos de Bach e Handel, estratgias foram empregadas no sentido de, presente
a nota do drone constantemente, dar-lhe sentido harmnico a cada momento; ou, por outro
lado, alternar frases construdas sobre drones com outras em que progresses harmnicas
fizessem ouvir um acorde a cada tempo.
125
andamento lento, incorreto dizer que cada acorde seja um drone, ainda que se mantenha
por durao de tempo razovel. necessrio que o acorde dure muito mais tempo que os
outros, como nos seis primeiros compassos da Musette do concerto grosso de Handel: dos
dezoito tempos, nada menos que treze so ocupados pelo acorde de tnica que inicia a pea.
Por outro lado, imaginemos as improvisaes de blues de LaMonte Young em que
cada acorde da progresso harmnica durava bastante tempo. Uma progresso de doze
compassos, com os seguintes acordes:
IV
IV
IV
Suponhamos que seja feita uma improvisao em que cada um desses compassos
dure um minuto (requerendo doze minutos para se completar esta que uma progresso
simples e tradicional do blues!). Seria possvel compreender cada acorde como um drone.
Entretanto, embora comecemos a improvisao com quatro minutos no acorde de tnica,
teremos em seguida dois minutos na subdominante; mais dois minutos na tnica; e
finalmente um minuto na dominante, mais um na subdominante e dois na tnica. Isto : por
mais dilatadas que sejam as duraes, elas so proporcionais. Donde conclumos que o
conceito de drone pode ser um tanto inexato e relativo, em certas circunstncias. Isto,
porm, no apaga a noo de nota ou acorde sustentado por longo tempo, seja durante uma
pea inteira, seja durante grande parte dela ou grande parte de uma frase. E de maneira
nenhuma tira o drone da posio de importante elemento da msica minimalista.
A stasis harmnica em muitos casos pode ser interpretada como drone, ainda que a
nota ou acorde sempre presente seja reiterada, e no sustentada. Steve Reich, em Six
marimbas93, utiliza um drone ao qual notas so acrescentadas at o fim da pea.
3.3. Drones na msica de Prt
93
Esta obra foi escrita em 1986, tarde para a poca de que nos ocupamos; porm, trata-se de uma
reinstrumentao de Six pianos, composta por Reich em 1973.
127
128
usado por Rzewski provm de uma das cartas de Sam Melville, detento do presdio de
Attica morto em rebelio ali ocorrida em Setembro de 197194.
Na pea o texto apresentado gradualmente. Rzewski faz ouvir a primeira frase. Em
seguida, novamente a primeira frase, seguida da segunda. Ouvimos depois as duas
primeiras frases novamente, qual acrescida a terceira; e assim por diante, at o texto se
completar. Para facilitar a localizao dos trechos novos de cada bloco, ns os marcamos
em seu incio com trs asteriscos.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. *** Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life
have passed so quickly.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
passed so quickly. *** I am in excellent physical and emotional health.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
passed so quickly. I am in excellent physical and emotional health. *** There are doubtless
subtle surprises ahead but I feel secure and ready.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
94
Attica, municipalidade do Estado de Nova York, abriga uma penitenciria de segurana mxima, onde Sam
Melville cumpria desde 1969 pena por oito atentados a bomba na cidade de Nova York. Melville agiu com
motivaes polticas, tendo explicado que seus atos alvejavam estruturas em que se realizavam negcios
disseminadores de pobreza e morte. Os alvos incluram o Whitehall Selective Service Center e o banco Chase
Manhattan.
129
passed so quickly. I am in excellent physical and emotional health. There are doubtless
subtle surprises ahead but I feel secure and ready. *** As lovers will contrast their
emotions in times of crisis, so am I dealing with my environment.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
passed so quickly. I am in excellent physical and emotional health. There are doubtless
subtle surprises ahead but I feel secure and ready. As lovers will contrast their emotions in
times of crisis, so am I dealing with my environment. *** In the indifferent brutality, the
incessant noise, the experimental chemistry of food, the ravings of lost hysterical men, I can
act with clarity and meaning.
Pela adio gradual de novas frases ao texto, repetindo a cada vez as que j haviam
sido apresentadas, temos aqui um processo aditivo. Rzewski no se limita a usar um
processo aditivo no texto; este tambm se encontra na msica.
A nica linha escrita da composio executada por baixo eltrico, que pode ser
reforado por piano ou sintetizador. Os outros instrumentos dobram notas escolhidas entre
estas segundo regras muito precisas que variam ao longo da obra. Tais instrumentos podem
ser em qualquer nmero, embora as instrues da pea digam que ela normalmente feita
com um grupo de oito a dez executantes. O texto declamado por um narrador.
Na linha do baixo eltrico encontramos um processo aditivo muito claro. Abaixo
reproduzimos os dez primeiros compassos da obra. Rzewski comea apenas com a nota sol,
acrescentando logo o si bemol; mais algum tempo, no compasso 2, acrescenta o d; cada
vez que uma nota nova acrescentada, a linha passa a utiliz-la em conjunto com as
colocadas anteriormente, e nenhuma mais. Com sinais de mais indicamos as notas novas;
com colchetes indicamos os trechos que vo da adio de uma nota nova at a ltima nota
antes da adio seguinte.
130
131
Figura 95. Frederic Rzewski: incio de Attica, segunda parte de Coming together (1971)
Dois anos antes Frederic Rzewski havia composto Les moutons de Panurge. A pea
foi escrita para qualquer nmero de msicos tocando instrumentos meldicos + qualquer
nmero de msicos tocando qualquer coisa. As instrues da partitura explicam um pouco
melhor o papel dos no-msicos: no-msicos: so convidados a fazer som, qualquer som,
de preferncia muito fortes, e se possvel recebem instrumentos percussivos ou outros.
132
Consta da partitura da obra uma linha escrita em clave de sol para os no msicos.
So 65 notas numeradas, entre semnimas e colcheias. Sua execuo regulada pela
seguinte instruo:
Leia da esquerda para a direita, tocando as notas como segue: 1, 1-2, 1-2-3, 1-2-34, etc. Quando tiver alcanado a nota 65, toque a melodia toda mais uma vez e ento
comece a subtrair notas do comeo: 2-...-65, 3-...65, 4-...-65, , 62-63-64-65, 63-64-65,
64-65, 65. Sustente a ltima nota at que todos a tenham alcanado, e ento comece uma
improvisao usando quaisquer instrumentos. Todos em unssono estrito; dobramento em
oitava permitido se houver pelo menos dois instrumentos em cada oitava.
Isto : Rzewski instrui diretamente os executantes e realizarem um processo aditivo
e, depois, um processo subtrativo. O que Rzewski solicita dos executantes por meio de
palavras, outros compositores minimalistas escrevem por extenso nas partituras de suas
composies.
Ainda assim, nosso prximo exemplo tambm no traz, ainda, processos aditivos
totalmente escritos. Antecede, porm, as peas de Rzewski. Em 1+1 (1968), o americano
Philip Glass pede que o executante bata com os dedos numa mesa microfonada e
amplificada progresses aritmticas regulares e contnuas montadas a partir das unidades
A e B, conforme mostradas no nmero 1 do prximo exemplo:
133
134
Rtmica viva. Grande parte dos exerccios de Gramani baseada em processos aditivos,
como a chamada Srie 2-1:
135
Figura 98. Philip Glass: Music in fifths, cps. 13-18. Anlise do processo aditivo.
Vemos na anlise acima que a msica se constitui de movimentos alternadamente
ascendentes (partindo de d) e descendentes (partindo de sol). Os nmeros logo abaixo
indicam os graus da escala em que a msica se move. As flechas indicam a direo do
movimento; os nmeros entre parnteses, a quantidade de notas do movimento respectivo.
Estes nmeros, em conjunto com as flechas, mostram a progresso:
136
Ascendente
Descendente
24
24
24
234
24
234
234
2344
234
A partir desta anlise o leitor se pode propor um jogo de adivinhao: como ser o
compasso 19? Proponho que reveja, antes de prosseguir a leitura, os compassos de 13 a 18
e procure deduzir.
Eis a resposta:
[Msica em doze partes], na qual Glass trabalhou de 1971 a 1974. No existe uma partitura
comercial desta obra, e para que possamos examinar alguns trechos, utilizamos a partitura
construda por Glenn Lemieux a partir de esboos e partes manuscritas96.
No comeo da 11 parte da obra, a parte do sax soprano, em harpejos tpicos deste
compositor, acrescenta uma nova nota a cada compasso; ora no comeo da figura, ora em
seu meio, ou ento no fim. As outras partes instrumentais, embora tocando outras notas,
seguem idia semelhante:
96
Lemieux discute a obra em sua tese de doutorado em msica pela Universidade de Iowa. O trabalho
contm a partitura completa por ele construda LEMIEUX (2000).
97
Utilizamos estes parnteses para facilitar a leitura dos padres com muitas letras.
138
No por acaso que ciclos interessam a vrios compositores ps-minimalistas, como Kyle Gann, cujos
escritos fazem parte de nossa bibliografia. Interessado em Astrologia, Gann evoca ciclos planetrios na sua
obra de cmera The Planets, em dez movimentos, composta entre 1994 e 2008.
140
positivo. O prprio Prt assim explica no filme de Dorian Supin a seu respeito, 24 Preludes
for a Fugue.
Aps brevssima introduo da percusso, os primeiros violinos apresentam a
melodia pela primeira vez (letra A da prxima figura). O centro, ou eixo, a nota mi, torno
do qual surgem uma, duas e trs notas, sucessivamente (letra B da prxima figura).
Figura 102.
A: Fratres, compassos 3-5, linha dos primeiros violinos (voz-M).
B: nota mi como eixo. Em ambos os exemplos os nmeros so nossos
(segundo Prt no filme de Dorian Supin).
Depois destes trs compassos os mesmos instrumentos enunciam o mesmo ciclo
com uma pequena variao: depois da nota zero (o eixo), aparecem primeiro as notas
agudas (positivas), e depois as graves (negativas).
apresentao da melodia da pea, desta vez com eixo em d sustenido. Este processo ocorre
nove vezes. Em cada uma delas, a melodia comea uma tera abaixo: mi, d#, l, f, r, sib,
sol, mi, d#. A Figura 10 mostra o primeiro compasso das aparies 2, 3, 4 e 9.
A voz-T em Fratres foi escrita por Prt no interior das dcimas da melodia,
seguindo a segunda posio inferior.
Cantus in memoriam Benjamin Britten (1977), para orquestra de cordas e sino,
utiliza como material meldico unicamente uma escala descendente de l elio. Todas as
partes instrumentais enunciam as notas na ordem precisa apresentada na Figura 12.
99
143
3.6.Tabula Rasa
3.6.1. Silentium
O mesmo ritmo troqueu em cnon mensurado consiste na base de Silentium,
segundo movimento de Tabula Rasa (1977) para dois violinos, orquestra de cordas e piano
preparado. A prxima figura mostra, em sua letra A, a parte dos violoncelos; a letra B
mostra o ciclo das notas, que segue um processo aditivo. Parte-se do centro, r, e, sempre
por graus conjuntos, a cada vez se atinge uma nota mais distante da escala.
144
145
146
ataques
compassos de intervalo
1 e 2
nenhum
2 e 3
nenhum
3 e 4
4 e 5
147
5 e 6
6 e 7
7 e 8
8 e 9
9 e 10
10 e 11
11 e 12
10
12 e 13
10
13 e 14
12
14 e 15
12
15 e 16
14
148
precisa passar pelo r, embora no seja ainda o fim do ciclo; mesmo assim, este r
acompanhado por um ataque do piano.
Isto, contudo, no explica a ausncia do piano no compasso 144. Observemos,
portanto, na parte dos violinos solistas, os compassos que vo de 113 a 150. O ciclo, neste
ponto, j abrange uma nona em cada uma das fases (ascendente e descendente); entretanto,
a fase descendente no conclui retornando ao centro, mas continua se movendo em direo
ao grave uma extrapolao do ciclo. Desta forma, no se retornar mais para o r agudo
com que o ciclo iniciava e terminava. Ausente esta nota, ausente est a partir de ento
tambm o piano preparado com seu ataque precedido de anacruse harpejada. o silentium
do piano.
E cada uma das partes orquestrais caminha para seu prprio silentium. Assim que a
msica alcana notas graves demais para os violinos, tambm eles se calam, e a linha passa
para as violas na verdade, uma nica viola solista; o naipe no mais ser ouvido. Trata-se
dos poucos momentos em que a viola tem uma linha de voz-M na obra inteira, ainda que
em solo; so apenas cinco compassos, pois logo as notas so graves demais para a viola, e
um violoncelo solista assume a linha. Em seis compassos, cala-se tambm o violoncelo,
dando espao a um contrabaixo solista que executar os ltimos cinco compassos, muito
graves, em ppp, de Silentium. em silncio que termina a composio. Seguem-se quatro
compassos de pausa com que se conclui Tabula Rasa.
Embora os contrabaixos usados por Prt em Tabula Rasa sejam de cinco cordas e,
portanto, capazes de tocar at o d mais grave do piano, a ltima nota no r, e sim mi, o
segundo grau da escala de r elio deste movimento; deixando algo de suspenso, a pea
mais uma vez sugere a eternidade do seu ciclo.
Se Prt no interrompesse o ciclo, dirigindo-o o para o grave, a partir do compasso
138, ele poderia se perpetuar indefinidamente, at o ponto em que as notas fossem agudas
demais e graves demais para que o ouvido humano pudesse captar. Mas o ciclo continuaria,
porque, embora as extremidades agudas e graves ficassem inaudveis, continuaria havendo
uma grande faixa de notas audveis.
149
150
J vimos que a voz aguda extrapola o ciclo e se dirige para o grave. o que ocorre
tambm com a voz mdia; at o compasso 127 o ciclo respeitado; a partir do 128 ocorre o
mesmo encaminhamento para o grave, com notas j escritas para as violas, depois
violoncelos e contrabaixos, os quais atingem o r mais grave no compasso 136, encerrando
a da voz mdia.
A voz grave, entretanto, respeita o ciclo at se extinguir no compasso 117, quando
os contrabaixos alcanam o d mais grave (da quinta corda).
Nas prximas treze pginas o leitor encontra as trs linhas do cnon de Silentium,
alm dos ataques do piano preparado. Elas so as vozes-M; no inclumos as vozes-T.
Removemos as hastes das notas, j que nos interessam, neste momento, sobretudo as
alturas.
Marcamos o incio dos ciclos e tambm o ponto em que comeam as fases
ascendente e descendente, utilizando, respectivamente, os sinais n e v (por exemplo: na
parte dos violinos solistas, no compasso 1 est o incio da fase ascendente; no compasso 3,
o da fase descendente).
Prximas treze pginas: Figura 111. Linhas do cnon de Silentium
152
153
154
155
156
157
158
159
160
161
162
163
164
165
3.6.2. Ludus
Ludus comea com uma nica nota, em fortssimo, nos dois violinos solistas, cada
um num extremo da tessitura do violino; dois ls com quatro oitavas de diferena. Esta nota
preenche todo o primeiro compasso; o segundo no contm nada a no ser a indicao G.P.
- uma grande pausa, uma pausa geral em compasso 8/2.
A composio se subdivide em nove sees, das quais a nona uma Cadenza. As
outras oito comportam subdivises claras que listamos a seguir. No levamos em conta o
primeiro compasso. A primeira seo comea com o silncio em 8/2 do primeiro compasso.
Sub-seo
1
Compasso de silncio.
Primeiro solo.
Segundo solo.
Terceiro solo.
166
de notar a simetria das cinco sees internas, da segunda at a sexta. Cnones nas
extremidades emoldurando trs solos sempre executados, cada um, por um dos violinos
solistas. O mesmo violino solista que executa o primeiro solo executa o terceiro solo.
Outro elemento de simetria foi colocado pelo compositor nos cnones: o primeiro
cnone tem suas entradas na ordem agudo mdio grave; o segundo cnone a inverte:
grave mdio agudo. As oito sees apresentam esta mesma organizao.
Entretanto, Prt as fez diferentes. Primeiro, por um processo subtrativo: o compasso
de silncio, diminui a cada seo. O segundo compasso da obra um silncio em 8/2. Os
silncios subseqentes so em 7/2 (cp. 11), 6/2 (cp. 25), 5/2 (cp. 43), 4/2 (cp. 66), 3/2 (cp.
93), 2/2 (cp. 125), e 1/2 (cp. 161).
Segundo, por um processo aditivo; no surpreendentemente, semelhante ao processo
aditivo com que Prt montou o ciclo que percorre o segundo movimento de Tabula Rasa, e
que escolhemos analisar antes do primeiro que agora abordamos.
As oito sees de Ludus (excluda a Cadenza) se baseiam, cada uma, em uma
crescente quantidade de notas, desde a solitria l da primeira seo, nos compassos de 1 a
11, at as quinze notas da oitava seo nos compassos 161-191.
Quando afirmamos basear-se a primeira seo na nota l, no queremos dizer que
somente esta nota seja usada. Prt a utiliza como eixo, base; ela , de fato, a nica nota
utilizada como voz-M. Ela ser ornamentada e acompanhada por vozes-T que fazem ouvir
as trs notas da trade de l menor: l, d e mi. Todas as sub-sees (excluda a primeira,
constituda de silncio) tm nesta nota o seu eixo.
O prximo exemplo mostra como Prt mostra e ornamenta a nota l, seu tema
para a primeira seo. Em seguida, explicamos o que se passa.
167
Letra C segundo solo, no primeiro violino solista. Uma oitava abaixo do primeiro
solo, Prt novamente ornamenta seu tema. A tcnica a mesma: as notas da trades que
circundam o l temtico. Elas so uma voz-T executada pelo mesmo instrumento que
executa a voz-M, embora no simultaneamente.
Letra D terceiro solo, agora no segundo violino solista. Mesma idia de
ornamentao dos dois solos anteriores.
Letra E novamente um cnone a trs vozes; mas, como vimos, a ordem das
entradas das vozes inversa: grave, mdio, agudo.
Letra F notas longas e agudas no segundo violino solista, enunciando somente a
nota l, como uma desacelerao da idia da letra A.
A segunda seo utiliza como notas de base o mesmo l da primeira seo e suas
duas vizinhas diatnicas no grave e no agudo: sol e si. Daqui deduzimos o material de cada
seo da pea, que indicamos no exemplo seguinte:
169
170
171
100
173
Os mtodos do estoniano nas obras com texto, ainda que sempre rigorosos, no so
propriamente processos, o que os afasta do minimalismo ortodoxo.
174
Captulo 4
Alm-Prt
4.1. Introduo
A influncia recebida de um compositor tambm se faz sentir quando se absorvem
as prprias influncias que o tal compositor recebeu. Comparando isto tudo a uma famlia,
poderamos nos referir ao fato de que os avs, por serem pais dos pais, tambm so objeto
de sentimentos filiais por parte dos netos, e, por sua vez, vem nos netos uma outra espcie
de filhos seus.
De volta msica, observaremos os influenciados por Messiaen tambm se
interessarem pelos ritmos hindus, ritmos gregos e cantos de pssaros (utilizando-os ou no
em suas prprias obras, mas aprendendo algo com eles); veremos os influenciados por Cage
buscarem as leituras orientais que alimentaram este compositor americano; assim, a
influncia se revela tambm no prprio ato de ser influenciado por algo anterior.
O presente captulo o quarto deste trabalho e o ltimo antes da concluso; ao
chegar nele j passamos pela tcnica tintinabular, pela msica medieval e pela msica
minimalista. Neste momento se troca a primeira pessoa do plural pela primeira do singular,
e o autor deste trabalho passa a falar de seu trabalho de composio influenciado pela
msica de Arvo Prt e tambm influenciado pelas influncias que Arvo Prt recebeu.
Sem a inteno de repetir at o mnimo detalhe a trajetria de Prt, no tive pausa
composicional de oito anos. Meu estudo do canto gregoriano se deu de maneira gradual e,
ao menos no incio, um pouco intermitente. Quanto tcnica tintinabular, partida sentia
muito receio de acabar simplesmente emulando a sua msica. Mesmo assim, lancei-me a
alguns exerccios: o primeiro tpico analisado neste captulo.
Algumas tcnicas utilizadas nas composies abordadas aqui eu j utilizava em
composies anteriores, especialmente os processos aditivos. Neste trabalho, aparecero
como relacionadas a Prt e ao minimalismo. De fato, mesmo nas composies anteriores as
influncias so precisamente estas, pois j conhecia tanto este autor como este movimento
musical. Tcnicas que usei posteriormente, descritas aqui, procuram ir um pouco alm,
175
buscando novos meios de se escrever msica diatnica. De modo geral, sua origem, ainda
que um pouco distante em certos momentos, a mesma: a trade e a escala diatnica. E as
influncias so a msica de Arvo Prt e os gneros que descrevemos relacionados a ele: a
msica medieval e o minimalismo, como minhas influncias avs, tornadas, em muitos
momentos, minhas influncias mes.
4.2. Exerccios
Assim que tomei conhecimento da tcnica tintinabular e de seu funcionamento,
decidi escrever alguns exerccios regulados por suas regras. J de incio considerei que o
uso desta tcnica produzia, invariavelmente, msica que muito lembra a obra de Arvo Prt.
Entretanto, num momento de exerccios, isto no questo que se leve em conta. Assim
como o prprio Prt procurou aprender com o canto gregoriano, criando, provavelmente,
um nmero de melodias nesse gnero, tambm eu procurei me colocar numa posio de
discpulo de uma escola, numa atitude de imitao consciente. Tratava-se de me pr em
movimento por meio dessa imitao. Ou, se se quiser, coloquei-me a tarefa de realizar
exerccios de contraponto tintinabular, da mesma maneira que tantas geraes tm escrito
seus exerccios de contraponto conforme Fux.
Parti, no comeo, de breves textos sacros, de oraes. O primeiro de que me servi
foi Angele Dei, uma orao do Anjo da Guarda. A Figura 116 mostra as trs formas de
music-lo que escolhi.
Letra A em si elio. Na voz-M (linha superior), ltima slaba de cada palavra
sempre atribuda a nota central do modo, si; os movimentos podem ser ascendentes ou
descendentes; a cada momento decidi sua direo, no existindo uma regra que governe
este aspecto. A voz-T funciona na primeira posio inferior.
Letra B em si elio. Neste a voz-M a linha inferior. Movimenta-se por
movimento escalar ascendente do primeiro ao quinto grau, de maneira independente do
texto. A partir da palavra hodie, a escala passa do quinto grau e continua at o primeiro
uma oitava acima, permanecendo no agudo at o fim do exerccio; a direo continua
ascendente. A voz-T no segue as posies comuns da tcnica tintinabular; at a palavra
illumina ela repete sempre as mesmas cinco notas, na ordem: f#-si-si-r-r, das quais o
176
f# aparece ora numa oitava, ora na outra. Depois de illumina, esta linha foi escrita
livremente.
Letra C em r elio. Aqui a voz-M a linha inferior. Independente do texto, segue
um movimento escalar ascendente em processo aditivo: 1 1-2 1-2-3 1-2-3-4 1-2-34-5 1-2-3-4-5-6; em seguida, partindo deste ltimo, em processo subtrativo: 1-2-3-4-5-6
1-2-3-4-5 1-2-3-4 1-2-3 1-2 1. Por feliz coincidncia, o nmero de slabas do texto
corresponde exatamente a essa seqncia numrica. A voz-T foi escrita livremente,
causando em alguns momentos cruzamento de vozes.
A Figura 115 mostra um quarto exerccio, marcado com a Letra D em r elio.
Trata-se do mesmo exerccio da letra C, ao qual acrescentei uma terceira voz, mais grave.
Como a voz-M utiliza sete notas e a voz-T trs notas, decidi usar nesta terceira voz um
nmero intermedirio: cinco. Cheguei a estas cinco notas partindo das trs notas da voz-T:
acrescentei, trade, o stimo grau da escala. A adio desta nota possibilita uma segunda
trade (f-l-d, alm de r-f-l, principal). A quinta nota que escolhi foi o si bemol, sexto
grau da escala, presente somente duas vezes neste exerccio. A composio desta linha foi
realizada livremente.
prxima pgina: Figura 115. Exerccios tintinabulares Angele Dei. Continua na pgina
seguinte
177
178
179
180
pgina anterior: Figura 116. Exerccios tintinabulares Angele Dei reduzido a uma e duas
pautas
Como visto, em alguns dos exerccios escrevi a voz-T da tcnica tintinabular sem
seguir as posies adotadas por Prt (primeira, segunda, inferior, superior, alternante) e
teorizadas por Paul Hillier. Chamo-a de posio livre, expresso que adoto daqui por diante
para designar esta maneira de escrev-la.
4.3. Salve Regina (2003)
Depois dos exerccios lancei-me composio de uma pea sobre o texto da Salve
Regina101. Foi escrita para duas vozes, que podem ser femininas ou masculinas. Nenhuma
das vozes se estende alm de uma oitava e uma tera menor.
Esta composio no utiliza a tcnica tintinabular a no ser em alguns poucos
momentos; no existe nela uma voz-T. Entretanto, dois aspectos encontrados nas
composies de Prt orientam a sua composio: o uso de escalas e de processos aditivos;
elementos que, como temos visto, freqentemente se unem. Assim ocorre tambm em Salve
Regina.
A partitura completa, constante de duas pginas, est reproduzida no Anexo I deste
trabalho. As figuras que seguem a prxima tabela demonstram como foi composta,
seguindo a sua diviso em partes:
101
Agosto de 2003.
181
Compassos
1-9
10-12
13-22
23-25
26-39
40-42
Texto
Salve Regina, mater misericordia, vita, dulcedo et spes nostra, Salve! Ad te
clamamus, exsules filii Hevae.
Instrumental ou vocal sobre a vogal ae (de Hevae)
Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle.
Eia ergo advocata nostra, illos tuos misericordes culos ad nos converte.
Instrumental ou vocal sobre a vogal e (de converte)
Et Iesum benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exsilium ostende.
O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria.
Ora pro nobis Sancta Dei Genetrix,
ut digni efficiamur promissionibus Christi.
Amen.
Instrumental ou Amen vocal.
182
183
Figura 119. Anlise do trecho instrumental ou vocal sem texto em Salve Regina
As duas linhas reunidas numa nica pauta:
184
185
186
Figura 126. Seo frgia de Salve Regina, com o ciclo II na voz inferior
As duas linhas reunidas numa nica pauta:
187
189
102
Setembro de 2003.
190
Figura 134. Palavras com diversos nmeros de slabas musicadas conforme a escala
A figura acima mostra as notas em ordem ascendente, mas na msica no
obrigatoriamente aparecem assim. Ademais, esta escala utilizada nos quatro primeiros
compassos (23-26); nos trs seguintes (27-29) ela deslocada, isto , ocorre uma
modulao; mas a idia permanece a mesma. No compasso 27 o centro sol: as palavras de
duas slabas usam as notas r e sol; os monosslabos, que pelo sistema usado nos compassos
23-26 deveriam usar o si bemol, usam o centro do modo, sol; nos compassos 28-29 o centro
da escala mi, e o sistema rigorosamente o mesmo usado no incio: monosslabos usando
a tera (sol, em per).
Est reproduzido abaixo o trecho que vai do compasso 22 ao 29. A voz inferior
canta em quintas paralelas linha da voz superior.
103
O exemplo com quatro notas terico, j que nesta seo no aparecem palavras tetrasslabas. A palavra
benedicat aparece mais adiante, mas a o processo j outro.
193
Figura 135. Escolha das notas para cada palavra nos compassos 23-29 de Per noctes
Em seguida, o trecho que vai do compasso 33 ao 36 foi escrito livremente. Os
compassos 38-40 utilizam um tetracorde, uma escala de quatro notas. Este tetracorde faz
parte do pentacorde utilizado nos compassos 23-26; deste foi excluda a tera.
Um sistema mais maneira de Arvo Prt usado para atribuir slabas s notas: uma
slaba, primeiro grau; duas slabas, primeiro e segundo graus; e assim por diante, pensando
de modo ascendente, conforme mostra a prxima figura.
Figura 136. Palavras com diversos nmeros de slabas musicadas conforme a escala
Os compassos 41 e 42 foram escritos livremente, utilizando somente as notas de
trade de f sustenido menor.
A figura 137 mostra a parte das vozes nestes compassos que vo de 33 a 42.
Figura 137. Escolha das notas para cada palavra nos compassos 38-42 de Per noctes
194
O ciclo I est presente em vrios momentos, sendo utilizado por todas as vozes. Nos
compassos 23-25 mesmo utilizada a sua inverso, pela linha instrumental superior. Vrios
outros ciclos surgem, e esto todos analisados na prxima figura. Para no confundir um
ciclo com o seguinte ou com o precedente na mesma linha, indiquei com o sinal S (segno) o
incio de cada um deles. Prximas trs pginas: figura 140.
196
197
198
199
200
As seis peas levam como ttulo o nome das seis primeiras letras do alfabeto hebraico: lef, beit, gumel,
dlet, hei e vav.
201
sempre sobre as mesmas cinco notas: sol, l, si, r e mi. O total desta escala, portanto, s
deixa de ser ouvido quando o pedal tirado no compasso 11, ao trmino desta primeira
seo. Sua construo segue um processo aditivo:
compasso
processo aditivo
(acorde)
(acorde)
AB
AB
ABC
ABC
ABCD
ABCD
ABCDEF
ABCDEA
ABCDEFG
ABCDEAB
ABCDEFGH
ABCDEABC
ABCDEFGHI
ABCDEABCD
10
ABCDEFGHIJ
ABCDEABCDE
11
ABCDEFGHIJK
ABCDEABCDEA
A segunda coluna mostra como ocorre o processo aditivo, cada letra representando
uma nota. No final a melodia conta j com onze notas, representadas aqui pelas letras de A
a K. Entretanto, ao chegar a letra F, ela repete a letra A; e quando chega a vez de G, temos
B. A seqncia ABCDE comea novamente, e isto que indico aqui na terceira coluna com
o ABCDE sublinhado, e, no final, com a letra A duplamente sublinhada, na terceira
apario da primeira nota da melodia.
No compasso 6 fiz com que a melodia recebesse duas notas novas, e no apenas
uma. Uma pequena imperfeio que apliquei arbitrariamente, como procurando dar um
sutil aspecto artesanal e ligeiramente menos rigoroso melodia.
202
24
25
AB
26
ABC
27
ABCD
28
ABCDE
29
ABCDEF
30
ABCDEFG
31
ABCDEFxG
32
ABCDEFxGH
203
extenso da durao de alguns acordes (no caso da segunda apario) e ao maior nmero
de repeties (no caso da terceira apario).
Este refro em acordes utiliza uma melodia simples em ritmo trocaico que
poderamos chamar de melodia tintinabular, devido ao fato de utilizar somente as notas
da trade de l menor. Consta de quatro compassos (12-15), que na primeira apario
ouvida trs vezes (12-15; 16-19; 20-23). Na segunda apario tambm ouvida trs vezes
(35-39; 40-44; 45-49). So cinco compassos porque o ltimo acorde tem sua durao
estendida por mais um compasso. Na terceira e ltima apario, a frase volta aos quatro
compassos, mas ouvida cinco vezes (61-64; 65-68; 69-72; 73-76; 77-80).
Finalmente, lef conclui com uma pequena e silenciosa coda sobre as notas l e mi,
primeiro e quinto graus da escala da pea.
Tcnicas usadas em lef:
-tcnica tintinabular na posio livre
-tcnica tintinabular com voz-T em trade diferente da principal da voz-M
-processo aditivo
-ciclos
4.6. Liturgia n1
Escrita j em 2007, a Liturgia n1, op. 47, para piano solo, a composio que
veremos agora. formada por quatro movimentos:
I. Alfa de Paus, So Miguel.
II. Beta de Copas, So Gabriel.
III. Gama de Espadas, So Rafael.
IV. Delta de Ouros, Santo Anjo da Guarda.
Inicialmente, escrevi em meu caderno de esboos o ciclo mostrado na prxima
figura, na letra A. So teras, ora maiores, ora menores, seguindo a escala diatnica. Cada
par de notas formando uma tera se move por grau conjunto, descendo, e depois subindo.
Este ciclo fechado: no h acrscimos de notas.
204
205
206
207
Duas pginas anteriores: Figura 143. Incio da Liturgia n1, op.47 e Figura 144. Ciclo e
temas usados no primeiro movimento da Liturgia n1
1 formar graus conjuntos: preenchendo com as notas intermedirias os graus
disjuntos existentes no ciclo
2 formar trades: completando com novas notas os intervalos que proporcionem a
construo de uma trade basicamente as teras e as quintas, mas tambm suas inverses,
as sextas e as quartas.
A ornamentao do ciclo, mostrada na letra B, utiliza apenas a idia de formar
trades. No formei trades no ciclo inteiro, pois isto tornaria o material muito
desinteressante para minhas intenes.
Compus, ento, o tema mostrado na letra C, que em seu incio ainda acrescenta, ao
ciclo da letra B, algumas novas notas para formar trades, indicadas aqui com o nmero 3.
A idia das notas que fazem formar graus conjuntos foi utilizada no tema mostrado na letra
D, nas quais essas notas foram marcadas aqui com um asterisco. Novamente aparece o
nmero 3, quando se formou uma trade, e mesmo o nmero 8, indicando aqui que se
adicionou a oitava de uma nota sem que esta oitava fizesse parte do ciclo original.
Estes dois temas so ouvidos, portanto, neste primeiro movimento da Liturgia n1.
O primeiro deles, nos compassos 24-32. O segundo, mais adiante, nos compassos 43-49.
Antes da apario do segundo tema o primeiro repetido, mas com uma
modificao substancial. Vejamos os compassos 33-42.
208
210
212
notas podem vir depois de mi bemol no modo especfico, pessoal desta melodia.
Portanto, meu novo tema seguiria esta regra.
Fiz o mesmo com todas as outras notas. Mais um exemplo: a nota sol. Ela sempre
sucedida por mi bemol, r ou si bemol, nunca por outra.
Assim obtive um modo cuja peculiaridade permitir apenas os seguintes pares de
notas em sucesso:
213
A mesma tcnica apliquei ao tema que abre o segundo movimento da Liturgia n1.
Logo de incio ele exposto trs vezes: uma em monodia, em sua forma original; na
segunda vez, ornamentado; e na terceira acompanhado de uma voz-T em posio livre.
falte o d bemol na armadura de clave; ele no faz falta, porm, j que a nota d no
aparece na melodia. De fato, esta nota aparece, sim, no acompanhamento em quintas, dando
um sabor drico ao trecho.
217
Nos trs compassos intermedirios entre os ltimos dois trechos citados, aparece
uma melodia tambm calcada nos movimentos meldicos de que falo:
voz-T, muito mais agudo do que o da voz-M, foi assim colocado como idia de
instrumentao, com a finalidade de soar diferente da voz-M e no em fuso com ela. No
quinto compasso a voz-M silencia, e a mo esquerda comea sua prpria voz-T, com outro
centro (mi bemol), colorindo a voz-T do extremo agudo:
219
220
221
222
223
225
estendendo o tema pela repetio de suas ltimas trs notas e fazendo a variao terminar
no l bemol. Este processo freqentemente emprego ao longo de todo o terceiro
movimento; aplicada tambm a idia de desdobrar a melodia em duas vozes ou
simplesmente acrescentar uma nota a pretexto de, numa variao posterior, formar uma
trade. Por esta razo, h trechos em que so abundantes as teras e graus conjuntos; por
exemplo, nos compassos 275-282.
228
Prximas trs pginas: figura 168. Compassos 202-285 do terceiro movimento da Liturgia
n2
229
230
231
232
233
Como o leitor poder observar, o trecho extrado para o tema de A pequena via
comea com duas notas repetidas, sol e f. O tema ignora as repeties, fundindo-as numa
nica apario das notas respectivas.
Aps ser exposto nos compassos de 1 a 4, o tema tem o seu eixo tridico deslocado
na sua imediata reapario nos compassos de 5 a 10. Mais abaixo entenderemos de que isto
se trata.
234
O tamanho desigual dos intervalos componentes das inverses faz com que certas
notas tenham duas equivalentes possveis numa traduo, ou que duas notas tenham
apenas uma como demonstra a letra B.
Finalmente, a letra C mostra o tema em sua posio original, e na linha inferior sua
verso com o eixo tridico deslocado: sol se torna si bemol, si bemol se torna r, e r se
torna sol. So indicados tambm os intervalos que se
modificaram devido ao
deslocamento.
235
236
237
239
o leitor a observar as armaduras de clave diferentes neste trecho que vai do compasso 83 ao
97: sol elio na mo esquerda, si elio na mo direita.
seqncia, esta parte surge novamente rearranjada, cada mo tocando cinco notas de cada
vez, dando em seguida lugar outra (68-82). No compasso 83, chegamos seo bitonal,
em que este padro mantido. Este longo trecho todo escrito em colcheias, requerendo na
execuo uma expressividade discreta que no permita que a msica se torne mecnica.
Cito a seguir, integralmente, os compassos de 42 a 82, cuja leitura o leitor pode
prosseguir no exemplo que cita os compassos 83-97, que colocamos anteriormente. O
compasso 98 nos leva de volta ao tema inicial, em sua primeira reapario. O movimento
escrito como uma espcie de rond, e outras reaparies ocorrero.
243
245
246
247
ou no por sua pertena ou no tabela, a no ser quando possusse mais notas; esta de que
falo fragmentria demais.
A idia 33 utilizada nos compassos 156-164 para figuraes em semicolcheias,
acompanhadas por uma voz-T na mo direita fazendo uso de intervalos bem mais abertos:
desta pea com todas as especificidades que um raga indiano tradicionalmente possui. Pode
ser uma oportunidade de se compreender melhor e aprofundar o uso da palavra modo. E,
longe de ser um desejo de afastar a influncia indiana, meu cuidado tem, na verdade, a
inteno contrria: a de no banalizar ou generalizar o uso de uma terminologia prpria de
uma cultura e um gnero musical tradicionais e venerveis.
Tcnicas utilizadas na Liturgia n3
-deslocamento dos eixos tridicos de uma melodia
-deslocamento de toda a escala de uma melodia
-bitonalidade como recurso modal, no apenas timbrstico como nos casos de
dobramento em intervalos que no a oitava
-modalizao de melodias para a composio de outras
-uso de um repertrio fechado de fragmentos meldicos para a composio de toda
a pea, ou da maior parte de uma pea
-tcnica tintinabular
-ciclos
4.9. Catopsilia florella
Embora transcender e afastar-se das tcnicas de Prt seja, por um lado, uma
necessidade no s de evitar a simples imitao de sua linguagem e de seu estilo, mas
tambm de encontrar novas idias que naturalmente j desejo, o retorno ao incio, talvez
uma tabula rasa, raramente se prova intil.
Voltando tcnica tintinabular em si, eu analisava a Missa syllabica quando, frente
pouca dificuldade de elencar todos os acordes possveis de uma certa configurao de
vozes-M e vozes-T, percebi a possibilidade de juntar ciclos (ou outros materiais meldicos),
aplicar-lhes suas vozes-T, e obter listas de acordes que poderiam ser utilizados de maneira
livre, como se fossem um campo harmnico. Constru, ento, esta tbua, como assim a
chamei.
Prxima pgina: Figura 183. Primeira tbua de acordes.
250
251
cientfico
252
de
uma
borboleta
http://www.butterfly-
253
Como todos os acordes da primeira tbua no primeiro grau contm duas notas
pertencentes trade de r menor, fica evidente aos olhos do leitor quais destes doze
acordes no pertencem tbua do primeiro grau: so aqueles que possurem apenas uma ou
nenhuma nota pertencente a tal trade. So eles o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, o
sexto e o stimo acordes. Os acordes restantes, como se pode observar, contm sempre
notas da trade de l menor, fazendo assim parte da primeira tbua no quinto grau.
Uma segunda tbua de acordes foi elaborada e utilizada na Sonata op.60 (2008).
Sumrio de tcnicas utilizadas em Catopsilia florella:
-primeira tbua de acordes montados sobre ciclos na voz-M acompanhados de suas
respectivas vozes-T; tbua no primeiro grau e tambm transposta diatonicamente, no quinto
grau
-ornamentao
-monodia
-deslocamento do eixo tridico de uma melodia
4.10. Sonata Iesu Dulcis Memoria (2008)
Convido o leitor, neste momento, a examinar o seguinte grfico:
254
Figura 187. Correspondncia entre os graus de escalas com sete, trs e duas notas
A partir de um material (escala, fragmento, melodia inteira etc.), deduz-se uma
verso menos ntida, reduzindo sete notas a apenas trs; ou ainda menos ntida, com apenas
duas.
Por outro lado, possvel tambm tomar materiais e aumentar-lhes a nitidez. Se
temos um tema, por exemplo, que utilize apenas as trs notas da trade, podemos expandi-lo
para um nmero maior de notas. E, neste caso, h mais possibilidades, pois cada uma das
trs notas tem mais de uma equivalente na escala de sete notas.
Esta expanso possibilita tambm o uso de toda a escala cromtica. Em
contrapartida, fica possvel diatonizar idias cromticas. O diagrama abaixo prope uma
correspondncia entre as doze notas da escala cromtica e as sete da diatnica, adicionando
tambm as cinco notas da escala pentatnica.
256
Figura 188. Correspondncia entre os graus de escalas de doze, sete e cinco notas
Em meu trabalho composicional at este momento ainda no utilizei relaes com a
escala cromtica. Trabalhando com o diatonismo, tenho utilizado os aumentos e
diminuies de nitidez com duas, trs, quatro, cinco e sete notas. Ao tomar notas destas
derivaes, utilizo os termos diadizar, triadizar, tetradizar e pentatonizar, referindo-me ao
nmero de notas aos quais reduzida uma melodia de sete notas.
Embora tenha utilizado as relaes como nas tabelas acima, formulei outra maneira
de efetuar estas derivaes que tenho utilizado com mais freqncia. Dada uma melodia,
leio-a a cada par de notas, considerando se neste par o movimento ascendente ou
descendente (ou ainda sem movimento, no caso de repetio). Este movimento, ento,
traduzido na nova escala, seja ela uma dade, uma trade etc.
O prximo exemplo demonstra como isto feito. Na linha superior, um tema
diatnico que utiliza todas as sete notas da escala. As notas esto marcadas aos pares. Na
linha inferior cada par traduzido por um movimento idntico (ascendente, descendente ou
sem movimento) utilizando apenas a dade f-d.
257
108
A instrumentao varivel. A partitura consta de trs linhas; sendo que a intermediria faz uso freqente
de duas notas simultneas. Sugere-se instrumento meldico para a linha superior e instrumento de teclado
para as outras duas, com a possibilidade de a linha inferior ser dobrada por instrumento grave como
violoncelo, viola da gamba ou fagote, lembrando um grupo barroco. Realizei tambm uma verso para
piano a quatro mos, e outras formaes no se descartam.
258
Figura 191. Compassos 289-303 da Sonata Iesu Dulcis Memoria: idias diadizadas
Logo outra voz adicionada, usando outro material tambm restrito a uma dade: l
e mi. No compasso 297 a linha inferior apresenta uma verso triadizada da mesma melodia
que vemos diadizada a partir do 289; porm, no se trata da tradicional trade, mas de um
grupo de trs notas contguas: r, mi e f.
Utilizei abundantemente este mtodo de derivar melodias na Sonata Iesu Dulcis
Memoria, sempre para obter verses menos ntidas. A alternncia de melodias de sete notas
(ntidas e sofisticadas) com melodias de trs ou duas (pouco ntidas e primitivas) traz
um tipo de contraste interessante composio.
A meno a esta pea neste trabalho ocorre pelo uso das verses menos ntidas de
temas diatnicos. Aproveito o ensejo para referir tambm que foi composta sobre um
259
cantus firmus, uma melodia de base, em mtodo tpico da msica renascentista. O cantus
firmus a melodia gregoriana Iesu dulcis memoria, de cujo ttulo se origina o nome Sonata
Iesu Dulcis Memoria.
A primeira seo da pea faz ouvir na linha do baixo, em semibreves, toda a
melodia gregoriana, sobre a qual a linha superior expe seu tema. Em todo o restante da
composio a melodia utilizada em alguma das vozes, com exceo de pouco e breves
trechos. Ela tambm aparece em ritmo trocaico, alm da sua roupagem em notas de valor
igual.
Finalmente, o uso da palavra sonata no ttulo se refere simplesmente ao fato de ser
uma composio instrumental, sem relao com a chamada forma sonata que se
desenvolveu a partir do perodo Pr-Clssico.
Tcnicas utilizadas em Sonata Iesu Dulcis Memoria
-tcnica tintinabular, incluindo voz-T em trade diferente da principal
-obteno de verses menos ntidas de melodias
-cnones
-inverses, retrogradaes, aumentaes, diminuies
-deslocamento do eixo tridico de uma melodia
-cantus firmus
4.11. Concluso
Outras composies que escrevi no perodo na pesquisa e tambm antes dele se
enquadram neste estudo. Sem haver a necessidade de abord-las todas, escolhi as que se
prestassem melhor descrio dos processos de composio; muitos deles foram usados em
diversas outras peas posteriores ou mesmo anteriores, em alguns casos.
Assim, deu-se uma amostra de como se pode pensar a composio de msica
diatnica, formulando idias e pensamentos que se podem aplicar tambm msica nodiatnica, seja ela qual for. Tanto assim que os processos aditivos em minha produo
apareceram primeiramente em composies no-diatnicas (quase atonais, por assim
dizer, ou com diversos centros tonais em constante mudana), e nelas, no raro, ocorrem de
260
261
Concluso
Costuma ser um momento de reflexo a concluso de um trabalho. Por acaso, o
momento final do trabalho em si, mas com freqncia apenas um momento de reflexo
entre outros pelos quais passa o seu autor e o leitor tambm. Por esta razo, comum que
concluses tenham certo aspecto inconclusivo, a no ser que o autor saiba bem disfar-lo
de modo a transmitir a sensao de que o assunto terminou e que, mesmo quando
recomear, fora do trabalho, j ser outra coisa.
Assim, escolhemos a idia de compilar em nossa concluso, de modo breve, as
constataes que realizamos ao longo de nossa pesquisa, e que o leitor as reveja resumidas
e elencadas, se ler esta concluso depois de ler o trabalho; ou que, se escolher proceder
leitura da concluso em primeiro lugar, tenha uma idia das informaes que poder colher
da introduo e dos quatro captulos que compem esta dissertao.
Na introduo apresentamos dados biogrficos do compositor Arvo Prt, mostrando
como questes prticas de sua vida se entrelaaram com a situao poltica da Estnia e da
Unio Sovitica.
No primeiro captulo nos dedicamos a explicar a tcnica tintinabular, um processo
de composio formulado por Arvo Prt na dcada de 1970 pelo qual desde 1976 orientamse suas obras.
O segundo captulo estabeleceu relaes entre a obra de Arvo Prt e elementos da
msica medieval. Listemos tais elementos:
a) o diatonismo
b) os modos eclesisticos
c) o canto gregoriano
e) o organum
262
ao que ainda no existe. No percurso veremos pequenas coisas que outros no viram, ou,
pensando mais modestamente, daremos ateno a certos elementos aos quais nossos
antecessores
no
tiveram
tempo
de
prestar
ateno.
Percorreremos
tambm,
264
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Systems
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Disponvel
em:
270
ANEXOS
272
ANEXO I
partitura completa
274
275
276
ANEXO II
partitura completa
278
279
280
281
282
283
284
ANEXO III
partitura completa
286
287
288
289
290
291
292
293
ANEXO IV
partitura completa
294
295
296
297
ANEXO V
298
Tentativas ingratas
de uma definio de minimalismo
Kyle Gann, traduzido por Alfredo Votta Jr
(excerto)
Segunda parte do ensaio Msica mnima, impacto mximo, publicado em
<http://www.newmusicbox.org/page.nmbx?id=31tp01>,
acessado em 21 de Agosto de 2009.
2001 NewMusicBox http://www.newmusicbox.org
(...)
Consideremos por um momento as idias, artifcios e tcnicas por meio dos quais a
msica minimalista se expressou:
1 Harmonia esttica
A comear pela Composition 1960 no. 7 de LaMonte Young, a tendncia
minimalista de permanecer num nico acorde, ou de se mover por um repertrio acrdico
pequeno, marcou a maior parte da msica minimalista, incluindo Piano Phase, Drumming e
o Octeto de Steve Reich. As primeiras obras para ensemble de Philip Glass tendiam a se
manter numa nica escala. Na msica minimalista a harmonia quase sempre ligada
escala diatnica, embora haja importantes excees, como a msica de Phill Niblock e o
Chromatic Canon de Tames Tenney, que aplica um processo minimalista a uma srie
dodecafnica.
300
2 Repetio
Este talvez seja o aspecto mais estereotipado da msica minimalista, a tendncia que
o pblico associa superficialmente com sua qualidade stuck-in-the-groove109. Ocorre
primeiramente nas peas para fita de Terry Riley em 1963: Mescalin Mix e The Gift. Muitas
obras minimalistas, entretanto, no usam repetio: as instalaes sine-tone completamente
estticas de LaMonte Young (a no ser no sentido acstico microscpico), as peas
permutacionais de Tom Johnson e Jon Gibson, as obras com drones de Phill Niblock.
3 Processo aditivo
As composies minimalistas tendiam a comear com um padro bsico repetido e
estend-los por meio de um de dois processos:
ou o padro era alongado pela adio de notas, compassos ou frases num padro
1, 1+2, 1+2+3, 1+2+3+4 (Music in Fifths de Philip Glass; Les Moutons de
Panurge, Attica e Coming Together, de Frederic Rzewski; mais tarde, a obra
eletrnica Shing Kee, de Carl Stone), ou pela desacelerao de padres (de
Steve Reich, Music for Mallet Instruments, Voice and Organ);
ou ento uma certa durao, sempre repetida, comearia com silncio para
adicionar notas a cada recorrncia (Drumming, de Steve Reich).
Por causa dos processos aditivos e outros tipos de processo linear detalhados abaixo,
a msica minimalista foi chamada freqentemente de msica de processo: um termo
perfeitamente vivel, um assunto interessante por si s; mas no um termo que possa ser
considerado coextensivo com minimalismo.
109
Esta expresso se refere qualidade das obras minimalistas de permanecer num mesmo ritmo ou rtmica.
Stuck preso ou grudado, e groove, tendo significado literal alheio msica, se refere a uma
constncia rtmica.
301
5 Processo permutacional
Compositores que desejavam progresses meldicas um pouco menos bvias, como
Jon Gibson em Melody IV (1975) e Call (1978), e Tom Johnson em Nine bells, s vezes se
voltavam para permutaes sistemticas de notas.
6 Pulso estvel
Certamente muitas das peas minimalistas mais famosas fiavam-se num pulso
motrico de colcheias, embora houvesse tambm muitos compositores como Young e
Niblock interessados em drones sem pulso nenhum. Ao menos, podemos dizer que era um
aspecto quase universal do minimalismo nunca usar uma grande variedade de ritmos; voc
podia ir por colcheias, ou colcheias e semnimas, ou semibreves com fermatas, mas no
existe aquela variedade rtmica mercurial que se poderia ouvir numa composio clssica
do sculo XIX. Talvez minimalismo de pulso estvel seja um critrio que poderia dividir
302
7 Instrumentao esttica
Os primeiros ensembles minimalistas, a comear por In C de Terry Riley e o
Theater of Eternal Music, continuando com os ensembles de Steve Reich e de Philip Glass,
foram todos fundados sobre o conceito de todo mundo tocando ao mesmo tempo; o
conceito minimalista de instrumentao se baseia na idia de msica como um ritual do
qual todos participam igualmente, e no no clssico paradigma europeu da paleta do pintor
em que cada instrumento adiciona sua cor quando necessrio. Ensembles minimalistas (e,
depois deles, ps-minimalistas e totalistas) quase nunca mostram o tradicional dar-e-receber
de um grupo de cmara clssico. Nesta poca da amplificao, aplicada a obras
minimalistas desde o incio, isto faz do minimalismo, a meu ver, o comeo de uma nova
tradio sinfnica capaz de dispensar aquele dinossauro economicamente ineficiente, a
orquestra.
8 Transformao linear
Esta uma generalizao de processos como a estrutura aditiva, mencionada
anteriormente. Muitos dos minimalistas cultivam fascnio pelo movimento linear de um
estado musical para o outro, como as lentas mutaes de Nilblock que partem da mxima
afinao para a mxima desafinao ou vice-versa, ou ento, no Chromatic Canon, de
James Tenney, o movimento de tonalidade para atonalidade, e a acelerao linear de seu
Spectral Canon for Conlon Nancarrow (1974), uma obra decididamente minimalista e
realmente muito importante.
9 Metamsica
303
Por um momento nos anos 70 parecia que a principal preocupao de Steve Reich
eram os detalhes acsticos no-intencionais surgidos (ou percebidos) como efeito colateral
de processos conduzidos estritamente. Incluem-se aqui melodias sutis criadas pelos
harmnicos de notas executadas, que Reich chamou de metamsica, e mesmo reforadas
por melodias instrumentais anotadas na partitura como no Octeto. Seria possvel dizer que o
fenmeno dos harmnicos acima dos lentos glissandos de drones na msica de Phill
Niblock, e mesmo os padres de harmnicos que voc pode ouvir ao caminhar por uma
instalao de LaMonte Young tambm so metamsica.
10 Afinao pura
de se notar que o minimalismo tenha comeado, na obra de LaMonte Young, Tony
Conrad e o Theater of Eternal Music, como experimento desacelerado de propores de
freqncias puras, intervalos ressonantes fora da escala de doze notas do piano; a msica de
Phill Niblock e muito da obra de Terry Riley tambm continuam nessa caracterstica.
Algum poderia argumentar que a verdadeira msica minimalista, o minimalismo radical,
acontece em afinaes puras. Mas como Glass e Reich sempre se contentaram com o
temperamento igual, seria difcil insistir na idia.
12 Estrutura audvel
Para mim, o que Drumming, In C, Attica, Composition 1960 No.7, Einstein on the
Beach, The Pavillion of Dreams (de Harold Budd) e todas as outras obras clssicas
minimalistas tinham em comum era o fato de sua estrutura estar logo na superfcie, de
modo que se pode identific-la simplesmente pela audio, muitas vezes j na primeira
audio. A mim me parece que parte da mstica inicial do minimalismo era no ter
segredos, colocar a estrutura da msica bem na cara do pblico e conseguir que esse
pblico a ouvisse.
Como um parntese, acrescento que este critrio me faz nunca ter considerado
minimalista a obra de Morton Feldman, como alguns tm feito. Feldman j usava repetio
de figuras meldicas em 1951, em Structures, para quarteto de cordas, e alguns autores
defendem que Feldman tenha sido o primeiro minimalista. Na verdade, porm, a repetio
o nico critrio listado acima (exceto, em algumas obras, a densidade consistente da
orquestrao); e mesmo assim as repeties de Feldman so raramente estritas, nunca
ocorrem como processo; seus ritmos jamais so motricos como os das obras minimalistas
305
306