Dissertação Notre Dame

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ALFREDO VOTTA JUNIOR

A MSICA TINTINABULAR
DE ARVO PRT
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Msica do
Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas para obteno
do ttulo de Mestre em Msica rea
de concentrao: Processos Criativos.

Orientadora: Prof. Dr.


Hortncia Lopes Garcia

Denise

Trabalho realizado com o auxlio da


Fundao de Amparo Pesquisa do
Estado de So Paulo, FAPESP

CAMPINAS
2009
iii

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

V941m

Votta Junior, Alfredo.


A msica tintinabular de Arvo Prt. / Alfredo Votta Junior.
Campinas, SP: [s.n.], 2009.
Orientador: Prof. Dra. Denise Hortncia Lopes Garcia.
Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Artes.
1. Tintinnabuli. 2. Minimalismo. 3. Msica medieval.
4. Msica contempornea. 5. Msica do sculo XX.
6. Neotonalismo. I. Garcia, Denise Hortncia Lopes.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.
III. Ttulo.
(em/ia)
Ttulo em ingls: Arvo Prt's tintinnabuli music.
Palavras-chave em ingls (Keywords): Tintinnabuli ; Minimalism ; Medieval
music ; Contemporary music ; 20th century music ; Neotonalism.
Titulao: Mestre em Msica.
Banca examinadora:
Prof. Dra. Denise Hortncia Lopes Garcia.
Prof. Dr. Leonardo Adriano Viegas Aldrovandi.
Prof. Dr. Jnatas Manzolli.
Prof. Dr. Jos Augusto Mannis.
Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa.
Data da Defesa: 23-09-2009
Programa de Ps-Graduao: Msica.
iv

Meus agradecimentos so uma


dedicatria. No h como agradecer
sem dedicar, j que cada nome ao qual
agradeo desempenha papel muito
importante na minha vida e neste
trabalho. Este trabalho naturalmente
lhes pertence.

A cada leitor que encontrar utilidade


nestas pginas vai dedicado este
trabalho.

A Cristo, ontem e hoje, Princpio e


Fim, Alfa e mega; a Ele o tempo e a
eternidade, a glria e o poder pelos
sculos sem fim.

vii

AGRADECIMENTOS

A Denise Garcia, por pacincia, orientao e amizade desde 1999.


A Mikhail Malt, por seu encorajamento desde 1990.
A Dantas Neves Rampin, Frederico Jos Ferreira, Bernardo Gomes de Barros, Joo
Reynaldo de Paiva Costa, Ellen Guilhen, Clara Cendon Finotti, Ceclia Regina Borges
Rocha, Roberta Maria Massagli, Guilhermina Maria Lopes de Carvalho, Valrio Fiel da
Costa, Tnia Mello Neiva, Antonio Celso Ribeiro, Ross Carey, Paulette Schwarz, Dora
Fraiman Blatyta, Eduardo Cceres, Jeff Ostrowski, Kyle Gann, Henrique Iwao, Mrio del
Nunzio, Alexandre Porres, Nayr Effenberger Guelli, Maurcio Martinazzo, Jan Szot,
Madrigal Cantabilis, Madrigal Incantus, Quarteto Quintessentia, Slvio Ferraz, Edmundo
Hora, Leonardo Aldrovandi, Alexandre Pascoal, Israel Laurindo, Guilherme Rebecchi,
Jean-Pierre Caron, Cludia Guedes, Luiz Eduardo Casteles.

queles que contriburam com minha formao musical sem saber, vivos e mortos:
compositores, especialmente Arvo Prt, autores de livros sobre msica e intrpretes.
FAPESP, por seu apoio.
UNICAMP e seu Instituto de Artes.

A todos os meus familiares vivos, especialmente meus pais Alfredo Votta e Nadia Maria
de Alcantara Lopes Votta e minha irm Ana Luiza Votta Colombo , e todos os meus
antepassados j falecidos.

A Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.

A Todos os Santos e Anjos e Santssima Virgem, que por mim incessantemente rogam.

ix

RESUMO

O compositor estoniano Arvo Prt, nascido em 1935 e radicado na Alemanha desde os anos
1980, tem sido objeto de ateno do mundo musical por sua peculiar linguagem modal
baseada na tcnica tintinnabuli, formulada e nomeada pelo prprio Prt. Esta tcnica se
baseia na ideia de utilizao exclusiva das trs notas de uma trade em ao menos uma das
vozes da textura musical. Esta tcnica tem sido utilizada por Prt desde meados dos anos
1970. Sua obra apresenta tambm numerosas afinidades com a msica medieval, arte
estudada por Prt nos anos de interrupo de seu trabalho composicional que se
prolongaram de 1968 at 1976. O canto gregoriano ocupou lugar de destaque nestes
estudos, sendo por esta razo importante para a compreenso de sua obra. So apontados
tambm, por inmeras fontes (trabalhos acadmicos, encartes de gravaes e textos crticos
jornalsticos), vnculos da obra de Prt com o minimalismo, que se manifestam sobretudo
no ideal de stasis, nos processos aditivos e nos ciclos. As tcnicas desenvolvidas por Prt,
bem como aquelas que se podem relacionar a ele, so frtil campo para a formulao de
novas ideias composicionais e mesmo para o reencontro com ideias antigas que podem
fertilizar a expresso musical atual.

Palavras-chave: tintinnabuli; minimalismo; msica medieval; msica contempornea;


msica do sculo XX; neotonalismo; nova simplicidade.

xi

ABSTRACT

Estonian composer Arvo Prt, born in 1935 and living in Germany since the 1980s, has
been the object of close attention by the musical world due to his peculiar modal language
based on his own tintinnabuli technique. This technique builds upon the exclusive use of
the three notes of a triad in at least one of the voices of a given musical texture. Prt has
been using this method since the mid-seventies. His work displays great affinity with
medieval music as well. The music of the Middle Ages was studied by Prt during his
period of compositional silence from 1968 to 1976. Since that includes especially
Gregorian chant, this genre is crucial for proper understanding of Prt's work. Numerous
sources (academic papers, recordings' booklets and press writings) have also pointed
resemblance of Prt's compositions with minimalism chiefly due to the ideal of stasis,
additive processes and cycles. Prt-developed and -related techniques are a fertile
environment for the creation of new compositional ideas and a new approach towards
ancient ideas as a means to contribute with current musical expression.

Key words: tintinnabuli; minimalism; medieval music; contemporary music; 20th century
music; neotonalism; new simplicity.

xiii

SUMRIO

INTRODUO
1 A TCNICA TINTINABULAR
1.1. Introduo
1.2. O que significa tintinnabuli?
1.3. A tcnica tintinabular
1.3.1. A voz-T
1.3.2. A voz-M
1.4. A tcnica tintinabular na obra de Arvo Prt
1.5. Conseqncias verticais
1.6. Composio da voz-M em msica instrumental
1.7. Concluso

1
9
9
10
11
11
13
15
33
34
38

2 PRT E A MSICA ANTIGA


2.1. Introduo
2.2. O diatonismo
2.3. Os modos eclesisticos
2.4. O canto gregoriano
2.5. O ritmo do canto gregoriano
2.6. A msica instrumental de Prt
2.7. Organum
2.8. A Escola de Notre Dame
2.9. Notre Dame e o ritmo em Prt
2.10. Notre Dame e as notas longas
2.11. Hoqueto
2.12. Liturgia

41
41
42
43
58
71
75
78
86
87
103
106
110

3 PRT E O MINIMALISMO
3.1. Introduo
3.2. Drone
3.3. Drones na msica de Prt
3.4. Processos aditivos
3.5. Processos aditivos na msica de Prt
3.6. Tabula Rasa
3.6.1. Silentium
3.6.2. Ludus

115
115
118
130
130
142
146
146
168

xv

4 ALM-PRT
4.1. Introduo
4.2. Exerccios
4.3. Salve Regina
4.4. Per noctes
4.5. Ao Anjo da Guarda lef
4.6. Liturgia n1
4.7. Liturgia n2
4.8. Liturgia n3
4.9. Catopsilia florella
4.10. Sonata Iesu Dulcis Memoria
4.11. Concluso
CONCLUSO

177
177
178
183
192
203
206
224
237
254
259
265
267

BIBLIOGRAFIA

271

277
ANEXOS
Anexo I. partitura completa de Salve Regina, op.25 (Alfredo Votta Jr)
277
Anexo II. partitura completa de Per Noctes, op.26. partitura para vozes e instrumentos 283
(Alfredo Votta Jr)
Anexo III. partitura completa de Per Noctes, op.26. partitura para quarteto de flautas 291
doces (Alfredo Votta Jr)
Anexo IV. partitura completa de lef, de Ao Anjo da Guarda, op.43 n1 (Alfredo
299
Votta Jr)
Anexo V traduo de Tentativas ingratas de uma definio de minimalismo (Kyle 303
Gann)

xvi

Introduo
Localizada s margens do Mar Bltico, a Estnia um dos pases de menor
populao da Europa: 1,3 milho de pessoas vivem num territrio equivalente a 18% do
Estado de So Paulo. Vizinha da Finlndia, tem com este pas aspectos tnicos e
lingsticos comuns, por sua origem fino-grica. O complicado idioma estoniano uma das
poucas lnguas europias cuja origem no indo-europia.
Governado no passado por povos diversos como dinamarqueses, alemes, suecos e
russos, este pas obteve sua independncia em 1918. Logo em 1940 foi ocupado pelos
soviticos, e em 1941 pelos nazistas. De 1944 a 1991 permaneceu novamente sob domnio
sovitico, declarando ento, a 20 de Agosto de 1991, sua independncia que perdura at
nossos dias.
neste pas que nasceu, em 11 de Setembro de 1935, na cidade de Paide, a 80
quilmetros da capital Tallinn, o compositor Arvo Prt1. Aos 7 ou 8 anos de idade Arvo
comeou a estudar msica, e no muito tempo mais tarde sua famlia adquiriu um piano de
cauda russo em que somente os registros extremos funcionavam bem. Assim, logo sua
imaginao foi estimulada criao de msica possvel dentro destas limitaes.
Desenvolveu logo gosto pelo rdio, que ouvia com muita freqncia, especialmente
as transmisses da rdio finlandesa que se podia captar em sua cidade. Seu instrumento era
o piano. Estudou tambm obo e percusso, alm de se dedicar, j, composio, em sua
adolescncia.
Em 1953 Prt tinha dezoito anos de idade e morreu o lder sovitico Josef Stlin, o
que indicou uma era de abertura (que no se concretizou to fortemente como muitos
gostariam). Nas artes, o realismo socialista continuou como diretriz oficial do governo
comunista da URSS. No ano seguinte, Prt ingressou na Escola Mdia de Msica de
Tallinn, mas poucos meses depois o curso foi interrompido por dois anos de servio militar
obrigatrio, durante o qual tocou obo e percusso numa orquestra militar. Foi um perodo
1

Pronuncia-se arvo prt.

de muito sofrimento para o compositor, que teve mesmo sua sade prejudicada, levando
anos para se recuperar.
Terminado o servio militar, Prt foi admitido, em 1957, a estudar no Conservatrio
de Tallinn, em que eram lecionadas no apenas disciplinas musicais, mas tambm Histria
do Partido Comunista e Economia Poltica. Seu professor de composio era Heino Heller
(1887-1970), destacada figura musical estoniana que estudara com Glazunov no
Conservatrio de So Petersburgo. Heller foi professor de vrios compositores estonianos
e, no obstante tendncias pessoais conservadoras, estimulava seus alunos a conhecer e
experimentar novas idias que com dificuldade chegavam Estnia vindas do Ocidente
entre elas, o dodecafonismo, que Prt estudou nos livros de Kenek e Eimert. Algumas
poucas obras de Webern, Nono e Boulez eram conhecidas no pas por meio de partituras e
fitas cassete ilegais.
Nos anos subseqentes Prt se tornou engenheiro de gravao da rdio estoniana e
compositor de msica para cinema estima-se por volta de cinqenta o nmero de filmes
para os quais comps. Atualmente, porm, o compositor no d importncia ao trabalho
realizado nessa poca.
Ao mesmo tempo, Arvo Prt desenvolvia o seu trabalho pessoal de composio.
Suas primeiras obras publicadas so as duas Sonatinas (1958-1959) e a Partita (1958) para
piano solo, de forte influncia neoclssica.
Tambm em 1959 comps a cantata Meie aed (nosso jardim), para coro infantil e
orquestra. Trata-se de uma obra com finalidades muito prticas, em linguagem
politicamente apropriada; mesmo assim, muitos no deixam de lhe perceber as boas
qualidades de escrita. Este tipo de cantata era escrito por muitos compositores da poca,
que as chamavam de cantatas do imperador (Kaiserkantaten, em alemo, keisrikantaadid,
em estoniano); eram obras compostas para servir a propsitos do governo. O musiclogo
estoniano Merike Vaitmaa explica que uma cantata do imperador era uma espcie de
indulgncia: tendo-a escrito, o compositor podia escrever em paz o que queria 2.

Vaitamaa apud Hillier (2003), p. 30.

Em 1960-1961, antes de uma nova cantata (Maailma samm), Prt escreveu


Nekrolog, para orquestra. Trata-se da primeira composio dodecafnica de um compositor
estoniano. O uso da tcnica serial lhe valeu crticas por sua aproximao com o
formalismo ocidental.
Tais crticas provinham sobretudo dos congressos de compositores soviticos, que
se reuniam periodicamente para discutir msica e definir o que era adequado e inadequado
dentro da ideologia do governo da URSS. Embora o segundo congresso de compositores
(1957) tenha aberto algumas portas que, por exemplo, aboliram a proibio da msica de
Schoenberg e Webern, o terceiro congresso (1962) condenou o dodecafonismo.
Prt continuou a escrever msica serial e introduziu tambm procedimentos de
colagem em suas obras. Nesta poca temos suas duas primeiras sinfonias (1963 e 1966);
Collage sur Bach (1964), para orquestra de cordas com obo, cravo e piano, em que Prt
pe lado a lado trades, serialismo e uma Sarabanda de Bach orquestrada em sua forma
original e depois em clusters; Diagrams (1964), para piano, obra dodecafnia de partitura
colorida; Pro et contra (1966), para violoncelo e orquestra, que enuncia em seu incio uma
triunfante trade de r maior e logo em seguida uma imensa exploso aleatria, fazendo
ouvir tambm, em seu segundo movimento e no fim do terceiro, cadncias tipicamente
barrocas fora de contexto.
Em 1968 uma obra intitulada Credo, no obstante seu ttulo religioso, aproveitou-se
de uma falha da censura para ser apresentada, o que causou grande polmica. Escrita para
orquestra, coro e piano, sua linguagem vanguardista de dodecafonismo e colagem (
longamente citado o primeiro preldio do Cravo Bem Temperado de J. S. Bach) no foi um
problema to grande quanto a explcita declarao religiosa de seu ttulo. Embora no
utilize o texto litrgico do Credo da Missa, afirma enfaticamente Credo in Iesum Christum
(creio em Jesus Cristo) e cita algumas passagens dos Evangelhos.
Credo viria a ser a ltima obra desta poca que foi a primeira fase da vida
composicional de Arvo Prt. Logo se instalou no compositor uma crise artstica e espiritual.
Ele nada escreveria at 1976 com exceo da Terceira Sinfonia e da cantata Laul
Armastatule, esta retirada de seu catlogo. A Terceira Sinfonia uma composio
transicional, por razes que havemos de entender mais adiante.
3

Paul Hillier transcreve em seu livro um trecho de uma entrevista concedida por Prt
rdio estoniana nesse mesmo ano de 1968:
No tenho certeza de que possa haver progresso na arte. Progresso
est presente na cincia. Todo mundo entende o que progresso
significa na tecnologia militar. A arte apresenta uma situao mais
complexa... muitos objetos artsticos do passado parecem mais
contemporneos do que a nossa arte atual. Como possvel
explicar isto? No que o gnio tenha conseguido ver duzentos
anos frente. Creio em que a modernidade da msica de Bach no
v desaparecer por mais duzentos anos, e talvez nunca
desaparea... a razo no simplesmente que talvez seja melhor
que msica contempornea... o segredo de sua contemporaneidade
reside na questo: quo completamente o autor-compositor
percebeu no apenas seu prprio presente, mas a totalidade da
vida, suas alegrias, preocupaes e mistrios?... como se nos
fosse dado um problema para resolver, um nmero (UM, por
exemplo), terrivelmente complexo quando dividido em fraes.
Encontrar uma soluo um longo processo e requer intensa
concentrao; mas a sabedoria est na reduo. Se agora
concebvel que diferentes fraes (pocas, vidas) estejam unidas
por uma nica soluo (UM), ento esse UM algo mais que a
soluo de uma nica frao. Ele a soluo correta para todos os
problemas, todas as fraes (pocas, vidas) e sempre foi. Ento as
fronteiras de uma nica frao o confinam demais e ele se perpetua
sempre... sempre a obra mais contempornea aquela em que h
uma soluo mais clara e mais correta (UM). A arte tem que lidar
com questes eternas, no apenas com os assuntos de hoje. Em
todo caso, se quisermos chegar essncia de uma obra musical,
no importa qual, no podemos deixar de lado o processo de
reduo. Em outras palavras, temos que jogar fora nosso lastro
eras, estilos, formas, orquestrao, harmonia, polifonia para
alcanar uma nica voz, suas entonaes. Somente a que
ficamos cara a cara [com a questo]: isto verdade ou
falsidade?3
Apesar de termos nestas declaraes algumas idias caractersticas do seu trabalho
posterior (como a importncia do nmero 1), no podemos deixar de identificar nelas um
momento de mais perguntas do que de respostas. Assim, este silncio composicional se

Vaitmaa apud Hillier (2002), p.65.

prolongou at 1976, quando Prt retornou escrita com o uso de uma nova tcnica que
desenvolveu.
Durante esse perodo o compositor se dedicou ao estudo da msica antiga,
sobretudo do canto gregoriano, por meio do qual procurou aprender a escrever uma nica
linha de msica, isto , monodias. Numerosos cadernos foram preenchidos naqueles anos.
Podemos v-los no filme de Dorian Supin 24 Preludes for a Fugue: Prt os retira do
armrio em que esto guardados; podemos ver que so numerosos; e ele se pe mesmo a
tocar ao piano e cantar uma das melodias que escreveu.
Alm do cantocho Prt estudou tambm polifonia, como a escola de Notre Dame, a
Ars Nova e Machaut, e msica posterior como os polifonistas flamengos, Palestrina e
Victoria. Copiou manualmente grande quantidade dessa msica
Na poca essa msica antiga comeava a ter mais destaque na Unio Sovitica,
sendo naquele pas at ento muito pouco conhecida. Concertos de grupos ocidentais
ajudaram no despertar desse interesse, e surgiram grupos locais como o Hortus Musicus.
Fundado em 1972 por Andres Mustonen, este grupo estoniano foi o primeiro a apresentar
publicamente as primeiras obras da nova fase de Prt, iniciada em 1976.
Sendo a Terceira Sinfonia (1971), como afirmamos, uma obra transicional, ela se
aproveita das pesquisas de msica antiga e se desenvolve numa linguagem modal, com
inflexes meldicas de canto gregoriano; marcante nela a presena da cadncia de
Landini, tpica de Machaut e outros compositores de sua poca; ritmicamente, entretanto,
de mtrica toda regular.
Em meio aos estudos de msica antiga e exerccios composicionais, Prt comps,
em 1976, uma pequena pea para piano intitulada Fr Alina (para Alina). Esta
composio utiliza pela primeira vez uma nova tcnica chamada tintinnabuli. Esta palavra
significa, em latim, pequenos sinos, e ser neste trabalho chamada tambm tcnica
tintinabular.
Esta tcnica, em sua forma bsica, se refere escrita de msica a duas vozes. Uma
das vozes circula por todos os graus de uma escala diatnica, enquanto a outra faz ouvir
somente as notas da trade principal do modo. As notas da trade a cada momento so
escolhidas por meio de uma relao especfica com a respectiva nota da melodia. Esta
5

relao pode se apresentar em vrias configuraes, e ser explicada no primeiro captulo


deste trabalho, que se ocupa precisamente da tcnica tintinabular.
Temos, portanto, que o universo harmnico de Prt agora modal, inteiramente
diatnico, em flagrante contraste com o atonalismo de sua fase encerrada em 1968 (apesar
da presena da trade em certas obras, oriunda ou no de colagens). A simplicidade textural
de suas obras passa tambm a chamar a ateno, sendo freqentemente a duas vozes,
especialmente nas primeiras composies tintinabulares ( o caso de Fr Alina); entretanto,
mesmo nas obras com mais vozes, freqente a adoo de uma escrita simples nota-contranota (Fr Alina, Missa Syllabica, When Sarah was ninety years old, An den Wassern zu
Babel saen wir und weinten). Prt conta que esta mudana estilstica causou perplexidade
entre vrios de seus colegas que tanto haviam lutado pela aceitao de seu uso de tcnicas
como o dodecafonismo.
Assim, os anos de 1976 a 1978 assistiram ao nascimento de numerosas obras com o
uso da nova tcnica. O seu catlogo conta precisamente doze composies nesses anos,
alm de uma obra ainda no tintinabular, mas prxima disso (When Sarah was ninety years
old) e Kui Bach oleks mesilasi pidanud... (se Bach tivesse sido um criador de abelhas,
conhecida tambm com o ttulo alemo Wenn Bach Bienen gezchtet htte e ingls If Bach
had been a bee-keeper), que mistura a tcnica tintinabular com cromatismos, inclusive o
motivo B-A-C-H (si bemol l d si).
Arvo Prt continua at o presente momento nesta fase composicional. Prosseguiu no
uso da tcnica tintinabular em todas as suas obras, procurando usar suas vrias
possibilidades. O uso de textos em diferentes lnguas, nas suas obras vocais, um dos
fatores que o levam a criar novas maneiras de escrever a voz meldica de suas composies
(at o momento escreveu obras em latim, eslavnico, estoniano, ingls, alemo, italiano,
francs e espanhol).
Faltaria, no ensejo desta introduo, uma breve explicao biogrfica. Mesmo nesta
nova fase, no fim dos anos 70, a msica de Prt continuou tendo problemas com as
autoridades, chegando mesmo a ser proibido de fazer algumas viagens com fins musicais,
sendo uma delas Finlndia (um curtssimo trajeto feito de balsa).
6

Sendo Nora Prt, a esposa do compositor, de origem judaica, obtiveram em 1980


vistos para deixar a URSS com destino a Israel, como muitos na poca. Uma vez fora da
URSS, alguns escolhiam outros destinos como a Europa e os Estados Unidos. Assim
aconteceu com o compositor. Em Viena foi surpreendido na chegada por um representante
da Universal Edition, que o acolheu na cidade (segundo Hillier, com a ajuda do compositor
russo Alfred Schnittke). O casal Prt e seus dois filhos adquiriram nacionalidade austraca
e, no ano seguinte, mudaram-se para Berlim, onde continuam a viver hoje.

Captulo 1
A tcnica tintinabular

1.1. Introduo
Arvo Prt chegou tcnica tintinabular por meio dos exerccios que realizou nos
anos de interregno criativo. O ano de 1976 assistiu composio da primeira pea a usar a
nova tcnica, Fr Alina (em estoniano Aliinale, em portugus Para Alina), para piano solo.
No mesmo ano havia sido escrita Modus (mais tarde rebatizada Sarah was ninety years
old), que, embora no use o novo procedimento, aproxima-se dele.
Podemos verificar, no filme de Dorian Supin, que Fr Alina se encontra nos
cadernos de exerccios de Prt, sendo um fruto natural desses estudos. No deixa de chamar
a ateno o fato de que uma nova tcnica seja anunciada com uma pea de to pequenas
propores e to grande simplicidade. Obras maiores e mais complexas viriam, sem dvida;
mas esta pequena composio ficou realmente marcada por este uso novo das sete notas da
escala diatnica que viria a caracterizar a msica de Prt a partir de ento.
A Fr Alina seguiu-se uma exploso criativa com Trivium (para rgo), Pari
Intervallo (para grupo instrumental), An den Wassern zu Babel saen wir und weinten (para
quatro vozes e rgo); em 1977 Arbos (para grupo de cmera), Cantate Domino (para coro
a quatro vozes e grupo instrumental ou rgo), Fratres (originalmente para orquestra de
cordas e percusso, com inmeras verses nos anos subseqentes), Missa Syllabica (para
coro a quatro vozes e rgo), Variationen zur Gesundung von Arinuschka (para piano solo),
Tabula Rasa (para dois violinos, orquestra de cordas e piano preparado), Cantus in
memoriam Benjamin Britten (para orquestra de cordas e sino) e Summa (para orquestra de
cordas).

1.2. O que significa tintinnabuli?


Paul Hillier informa que o nome tintinnabuli foi dado a esta tcnica depois que ela
j havia sido criada e utilizada por Prt.4 Ademais, comenta sua origem:

O significado preciso de tintinnabulum dado no Oxford Dictionary


of English Etimology como pequeno sino tilintante. A origem
onomatopica da palavra atestada por Santo Isidoro de Sevilha em
seu Etymologiarum (ca. 630 d.C.), havendo mais tarde (ca. 800) um
relato de um tintinnabulum que produzia um som jubiloso como se
houvesse sido tocado por um anjo.5

O mesmo autor esclarece que tintinnabulum se distingue de campana em que este


segundo nome designa sinos grandes, cujo nome deriva de Campania, regio italiana
prxima a Npoles notvel por seu trabalho com bronze.6
O dicionrio Houaiss mostra que na lngua portuguesa existem algumas palavras
estreitamente derivadas de tintinnabulum. Tintinbulo campainha, sineta; tintinabular
significa soar ou fazer soar (campainha, sineta etc.); tintinabulante aquilo que
tintinabula7.
Dado o uso da palavra tintinnabuli, em todas as publicaes sobre a msica de Prt
(de livros e escritos acadmicos a encartes de CDs e trabalhos jornalsticos),
independentemente da lngua; dada sua origem latina e a facilidade com que se adapta
lngua portuguesa (dando mesmo origem a palavras dicionarizadas), neste trabalho
proponho que esta tcnica seja chamada, neste idioma, de tcnica tintinabular.
4

HILLIER (2002), p.97.

HILLIER (2002), p.19.

HILLIER (2002), p.19.

HOUAISS (2001), p.2721.

10

Alternativamente pode ser usada a prpria palavra latina tintinnabuli, como recurso para
evitar repeties num texto. Outras opes secundrias so tcnica tintinabulante e
tintinabulao.
Prt continuou a se servir da tcnica tintinabular em todas as suas obras a partir de
1976. A partir de agora procuro explicar o funcionamento dessa tcnica, primeiro de
maneira terica, e em seguida com exemplos concretos trazidos da obra do compositor.

1.3. A tcnica tintinabular


A tcnica tintinabular se refere maneira pela qual as notas de uma determinada
melodia se relacionam a outra voz que faz ouvir somente as notas componentes de uma
trade. Adoto, para fins de explicao da tcnica e de anlise de obras que dela fazem uso, a
terminologia proposta por Hillier: voz da melodia principal d-se o nome de voz M, e,
voz que apenas usa a trade, voz T8.

1.3.1. A voz T
A voz M composta antes da voz T, que lhe subordinada. Aquela , na obra de
Prt, escrita segundo princpios que podem variar; em obras vocais h sempre uma relao
estreita com o texto e seu nmero de slabas (ou nmero de slabas de cada palavra); em
obras instrumentais costuma ser um princpio puramente musical ligado aos graus da
escala. Mais adiante isto ser abordado.
Os exemplos a seguir usam como voz M uma escala ascendente de l elio.
importante lembrar que a tcnica segue sendo a mesma quando se usa o modo jnio. Estes

HILLIER (2002), p.93. Originalmente Hillier pensa em M como inicial de melody, em ingls, que
funciona tambm para o portugus por ser melodia. O mesmo para T de triad (trade), que segundo o
prprio Hillier tambm pode ser T de tintinnabuli.

11

dois modos so os mais usados na obra da segunda fase de Prt, com certa predominncia
do elio.
Tem-se, ento, que a voz T faz ouvir sempre a nota da trade mais prxima da nota
ouvida na voz M. Neste primeiro exemplo a voz T mais aguda que a voz M, no que
Hillier chama primeira posio superior.
Primeira posio porque se trata da nota mais prxima; superior porque se trata
da nota acima.

Figura 1. Voz M com Voz T na primeira posio superior


Assim fica a primeira posio inferior, em que a voz T usa a nota da trade mais
prxima em direo ao grave.

Figura 2. Voz M com Voz T na primeira posio inferior

Na chamada segunda posio a voz T usa a segunda nota mais prxima: em


direo ao agudo, na posio superior; em direo ao grave, na posio inferior.

12

Figura 3. Voz M com Voz T na segunda posio superior

Figura 4. Voz M com Voz T na segunda posio inferior

Existe ainda a posio alternante, que, como diz o nome, alterna entre superior e
inferior.

Figura 5. Voz M com Voz T na posio alternante

1.3.2. A voz M
A composio da voz M se d de diversas maneiras nas composies de Arvo Prt.
Como j referido anteriormente, ela pode se dar por critrios musicais abstratos, sobretudo
nas peas instrumentais, e por critrios ligados ao texto, nas obras vocais.
Veremos ento alguns desses procedimentos, que costumam encerrar em si certo
rigor. A emblemtica pea Fr Alina, primeira a usar a nova tcnica, uma exceo: sua
voz M foi composta livremente. No a analisamos neste primeiro captulo, reservando-a
para a introduo de certas relaes importantes que faremos no segundo captulo.
13

Ao abordar a composio da voz M Hillier nos mostra quatro modos meldicos


ligados a uma mesma escala (que em nossos exemplos ser, novamente, l elio). O centro
do modo a nota l. Os modos estruturam-se, portanto, desta forma:
Modo 1 ascendente, partindo do centro;
Modo 2 descendente, partindo do centro;
Modo 3 descendente, em direo ao centro;
Modo 4 ascendente, em direo ao centro.

Figura 6. Os modos tintinabulares segundo Hillier


Hillier alude ao fato de que a palavra modo tem sido utilizada com vrios
significados, rtmicos e meldicos, e que aplic-lo neste caso no far mal!9. Sem dvida
uma terminologia adequada, e a que utilizamos neste trabalho. Para evitar equvocos,
chamaremos estes modos de modos tintinabulares; desta forma, no os confundiremos
com os modos eclesisticos nem com os modos rtmicos, que abordaremos no segundo
captulo.
A respeito desta sistematizao e criao de uma terminologia (voz-M, voz-T, modo
1, modo 2 etc.) Hillier presta um importante esclarecimento:
A necessidade de criar este pequeno vocabulrio tcnico surge no
de uma possvel complexidade da questo, mas do propsito prtico
de evitar a repetio de enfadonhas descries de procedimentos
musicais, bastante simples em si mesmos, mas para os quais
[ainda] no temos uma terminologia prpria.10

HILLIER (2002), p.95.

10

HILLIER (2002), p.96.

14

Em outras palavras, um exemplo: certamente muito mais conveniente dizermos


apenas modo 1 do que pentacorde ascendente a partir do primeiro grau.

1.4. A tcnica tintinabular na obra de Arvo Prt


A partir de agora examinaremos como esses procedimentos ocorrem concretamente
nas composies de Prt. Primeiramente tomaremos a Missa Syllabica, de 1977, revisada
em 1996.
Com exceo do Sanctus, toda a obra foi composta na escala de r elio (ou r
menor natural). Os modos tintinabulares, portanto, so os seguintes:

Figura 7. Os modos tintinabulares em r elio (da Missa Syllabica)


Examinemos o seu Kyrie. O Kyrie faz parte do Ato Penitencial da Santa Missa, e se
situa pouco depois do seu incio, tanto no rito tridentino do papa S. Pio V quanto no novo
rito romano do papa Paulo VI. Sua estrutura tripartite, com trs invocaes: Kyrie eleison,
Christe eleison, Kyrie eleison. Tradicionalmente cada invocao repetida trs vezes, e
assim tambm na pea. O texto Kyrie eleison assim musicado, partida:

Figura 8. Incio do Kyrie da Missa Syllabica

15

Nota-se portanto o uso do chamado modo tintinabular 3, descendente em direo ao


centro do modo. Por ter trs slabas, a palavra Kyrie usa apenas as ltimas trs notas; por
ter quatro slabas, eleison faz uso das ltimas quatro. O diagrama abaixo mostra o modo
3 e explicita a escolha das notas conforme as slabas.

Figura 9. Escolha das notas para o Kyrie da Missa Syllabica


Quanto voz T, tocada pelo rgo, trata-se aqui da posio alternante, sendo a
primeira nota da voz T mais grave; no segundo Kyrie eleison, a nota mais aguda; no
terceiro, a mais grave novamente. Temos, portanto, uma forma a-b-a.
Abaixo, a seo seguinte, Christe eleison, executada trs vezes da mesma maneira,
dando-nos uma forma c-c-c.

Figura 10. Incio da seo Christe eleison do Kyrie da Missa Syllabica


Na voz T continuamos com a posio alternante; na voz M agora o modo 4:

Figura 11. Escolha das notas para a seo Christe eleison do Kyrie da Missa Syllabica

16

V-se, portanto, o uso do modo 3 e do modo 4, precisamente os que partem de


outros pontos e se encaminham para a nota central do modo. Em outras palavras, uma
inverso: Kyrie eleison se dirige ao centro vindo do agudo; Christe eleison se dirige ao
centro vindo do grave.
Voltamos agora ao Kyrie eleison. Ele retoma as mesmas frases das trs primeiras
invocaes; porm, no temos o mesmo a-b-a do incio, e sim b-a-b.
O uso da posio alternante, na tcnica tintinabular, tem um interesse especial por
causar cruzamento de vozes. Na posio superior, a voz-M ser sempre mais aguda, e, na
posio inferior, ser sempre mais grave. Na posio alternante ocorre um revezamento, e
as vozes M e T se alternam como voz mais aguda. Se o ouvido capta as notas mais agudas
da textura com certo destaque, temos um resultado que no est escrito explicitamente na
partitura.
o caso deste Kyrie. Vejamos abaixo as suas linhas, agora quebradas: a voz mais
aguda de cada momento est na pauta superior; a mais grave, na inferior.

17

Figura 12. Kyrie da Missa Syllabica.


notas mais agudas e mais graves em linhas separadas
Na primeira frase (e tambm terceira), vemos que a voz superior (que ouvimos,
mas no est escrita como tal) acaba fazendo ouvir, ela tambm, somente as notas da trade.
Na segunda frase ouvimos uma idia ascendente (primeiro completa: mi-f-sol-l; depois
incompleta: mi-f) ligada ao modo 1, no usado diretamente na composio desta pea,
mas presente nesta deduo que fazemos.
O Gloria da Missa Syllabica usa sempre duas vozes (sem contar a voz-T tocada pelo
rgo), alternando entre contraltos com tenores e sopranos com baixos. Cada voz usa
sempre o mesmo modo e o mesmo princpio na construo de sua msica em relao ao
texto.

Figura 13. Incio do Gloria da Missa Syllabica

No incio Prt utiliza os contraltos com tenores. Contraltos usam o modo 1, e os


tenores o modo 2.

18

No caso dos contraltos, a ltima slaba de cada palavra sempre atribuda quinta
nota do modo (l), fazendo com que cada palavra comece numa nota diferente, conforme
seu nmero de slabas.

Figura 14. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica

Quanto aos tenores, temos o oposto: todas as palavras comeam na mesma nota (r),
a primeira do modo.

Figura 15. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica


A sobreposio de duas maneiras diferentes de musicar as palavras (primeira nota na
primeira slaba, e ltima nota na ltima slaba) aumenta o nmero de resultados possveis
da escrita contrapontstica. O exemplo a seguir esclarece este fato.

19

Figura 16. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica

Na letra A temos os dois modos sobrepostos e, a seguir, palavras do Gloria (de uma
a cinco slabas) conforme musicadas por Prt: contralto no modo 1, ltima slaba para
ltima nota; tenor no modo 2, primeira slaba para primeira nota.
A letra B mostra as possibilidades dessa sobreposio. Como o contralto pode
comear a palavra em qualquer nota, de acordo com o nmero de slabas, e o tenor comea
sempre com a primeira, a nota r do tenor pode aparecer em combinao com qualquer das
notas do modo 1 do contralto. Isto tambm facilmente observvel na letra A do mesmo
exemplo, olhando-se a primeira nota de cada palavra: temos ali todas estas cinco
combinaes. Considerando, em seguida cada nota do modo do tenor, chegamos a quinze
combinaes possveis.
Se Prt houvesse escrito as vozes partindo sempre da mesma nota, fosse a primeira
do modo, ou a quinta, o nmero de possibilidades no seria quinze, mas apenas cinco. O

exemplo a seguir considera este tipo de escrita.


Figura 17. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica
Nem mesmo necessrio acrescentarmos uma letra B, como no exemplo anterior a
este ltimo, porque todas as possibilidades j esto enumeradas tanto na sobreposio dos
modos do primeiro compasso como no final, na palavra unigenite. Aqui fiz todas as
palavras comearem pela primeira nota de cada modo. Se partisse da quinta nota, os
resultados seriam exatamente os mesmos.
20

Prt parte de notas diferentes de modo consciente. Existe ainda outro fator que
contribui para a variedade: a voz-T. O compositor escolheu a posio alternante, o que
significa que para uma mesma nota sempre h duas possibilidades, como vimos: a nota
tridica superior e a nota tridica inferior.
As duas possibilidades da posio alternante, multiplicadas pela quinze
combinaes do modo 1 e do modo 2 partindo de notas diferentes (quinta e primeira,
respectivamente), nos d um conjunto de trinta acordes. Sendo quatro repetidos (marcados
com a letra r), temos vinte e seis acordes diferentes.
O exemplo a seguir lista todos esses acordes. Primeiro aparecem os acordes
montados com uma voz-T acima da linha do soprano (superior); no segundo sistema,
aqueles obtidos com uma voz-T abaixo da linha do soprano (inferior).

Figura 18. Possibilidades de acordes tintinabulares

21

Atentemos para o fato de que, como natural da escrita tintinabular, todos os


acordes contm pelo menos uma nota da trade principal (de r menor: r-f-l). A maioria
contm mesmo duas notas tridicas. E existem tambm acordes em que todas as notas so
tridicas.
Restrinjo-me aqui s escolhas de Prt para o Gloria. Se atribusse ainda uma voz-T
ao tenor, a princpio seria multiplicado por dois este nmero de trinta acordes, resultando
sessenta; entretanto, haveria numerosos acordes repetidos. Mesmo assim, seriam estendidas
as possibilidades, e teramos neste caso acordes de quatro notas.
Naturalmente Prt no seleciona acordes entre os disponveis nesse campo. Sua
escrita contrapontstica, como j se pde compreender. O quadro de acordes que mostrei
acima serve ao propsito de compreender as possibilidades. Vejamos agora como soa o
incio do Gloria:

Figura 19. Incio do Gloria da Missa Syllabica


Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus bonae voluntatis11: eis o texto desta
primeira seo confiada aos contraltos e tenores. Na seqncia entram os sopranos e baixos.

Figura 20. Laudamus te, benedicimus te do Gloria da Missa Syllabica

11

Glria a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por ele amados. Bonae voluntatis, traduzido em
portugus como por ele amados, literalmente de boa vontade.

22

Lembremo-nos de que no Kyrie a primeira seo se encaminhava para o centro do


modo elio em sentido descendente, vindo do agudo; e a segunda em sentido ascendente,
vindo do grave. Prt utiliza a mesma idia aqui. A linha do soprano desce em direo
quinta do modo elio (l) nesta segunda seo; anteriormente, a linha do contralto ascendia
em direo mesma nota.
O mesmo tipo de inverso encontramos na linha do baixo. Esta voz realiza
movimentos ascendentes partindo do centro do modo elio (r). O tenor, na primeira seo,
movimentos descendentes a partir da mesma nota.
Assim Prt comps todo este Gloria. Falta-nos apenas ver a distribuio das vozes
para cada parte do texto:
Texto

Vozes

Gloria in excelsis Deo

Contralto e Tenor

et in terra pax hominibus bonae voluntatis.


Laudamus te. Benedicimus te.

Soprano e Baixo

Adoramus te. Glorificamus te.


Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam.

Contralto e Tenor

Domine Deus, Rex caelestis, Deus Pater omnipotens.

Soprano e Baixo

Domine Fili unigenite, Jesu Christe.

Contralto e Baixo

Dominus Deus, Agnus Dei, Filius Patris,

Soprano e Baixo

Qui tollis peccata mundi, miserere nobis.

Contralto e Tenor
23

Qui tollis peccata mundi,

Soprano e Baixo

suscipe deprecationem nostram.


Qui sedes ad dexteram Dei Patris, miserere nobis.

Contralto e Tenor

Quoniam tu solus sanctus,

Soprano e Baixo

tu solus Dominus, tu solus Altissimus, Jesu Christe.


Cum Sancto Spiritu, in gloria Dei Patris.

Contralto e Tenor

Amen.

Todas as vozes

Somente o Amen que conclui o texto escrito para as quatro vozes. Tambm aqui
aplicado o mesmo princpio usado desde o incio do Gloria, considerando que a palavra
Amen tem duas slabas. Prt segue sua regra fielmente, mesmo que o acorde final contenha
notas alheias trade principal no caso, mi e d. Ocorre tambm que a nota principal da
escala da pea, r, est ausente deste ltimo acorde.

Figura 21. Final do Gloria da Missa Syllabica

24

Sigamos agora com a abordagem do Credo, o terceiro movimento da composio.


da tradio do rito romano que suas primeiras palavras sejam ditas ou cantadas pelo
sacerdote, e a continuao fique a cargo dos fiis ou do coro. Prt faz uso de um expediente
parecido, confiando esta primeira frase aos baixos, somente: Credo in unum Deum12. A
partir da frase seguinte Prt compe a pea sempre a duas vozes, exatamente como no
Gloria; mas os pares desta vez so diferentes: a alternncia ocorre entre as vozes femininas
e as vozes masculinas.
O mesmo sistema adotado para a linha dos tenores vale para a linha dos sopranos. A
mesma relao ocorre entre a linha dos baixos e a dos contraltos. As vozes agudas sempre
partem da quinta nota da escala elia (l), na primeira slaba de cada palavra. As vozes
graves sempre chegam na primeira nota da mesma escala (r), na ltima slaba de cada
palavra.
No Gloria vimos que, embora cantassem duas vozes, o rgo executava uma voz-T
ligada voz-M mais aguda, somente. No Credo Prt d a cada uma das duas vozes a sua
respectiva voz-T, ambas executadas pelo rgo, sempre na posio alternante.
Desta vez, sim, podemos considerar um quadro de acordes a quatro vozes
semelhante ao que montamos na anlise do Gloria. So sessenta acordes, dos quais dez se
repetem: cinqenta acordes diferentes.
Eis um guia para o prximo exemplo (figura 22), que mostra os sessenta acordes:

Letra A: voz aguda com voz-T na posio superior e voz grave com voz-T tambm
na posio superior.

Letra B: voz aguda com voz-T na posio inferior e voz grave com voz-T tambm
na posio inferior.

12

Creio em um Deus, literalmente; Creio em um s Deus, na verso portuguesa do Credo NicenoConstantinopolitano.

25

Letra C: voz aguda com voz-T na posio superior e voz grave com voz-T na
posio inferior.

Letra D: voz aguda com voz-T na posio inferior e voz grave com voz-T na
posio superior.

Prxima pgina: Figura 22. Possibilidades de acordes tintinabulares

26

27

Pgina anterior: Figura 22. Possibilidades de acordes tintinabulares

Assim como no Gloria, Prt faz as quatro vozes cantarem juntas o Amen que
conclui o Credo. Mais uma vez a fidelidade ao processo de atribuio de notas s slabas
faz com que haja uma nota no tridica no acorde final (si bemol no tenor e no soprano), e
que esteja ausente a tera (f). Devido posio alternante da voz-T, a nota mais grave o
quinto grau da escala.

Figura 23. Final do Credo da Missa Syllabica

Uma peculiaridade do Credo, dentro desta Missa, o uso de bordes, notas graves
longas sustentadas em certos trechos. No aparecem nos outros movimentos. A partitura
traz uma diviso do Credo em dezoito sees (indicada nos nmeros de ensaio). As sees
indicam a mudana das vozes que cantam o texto. Considerando que Prt usa os bordes
nas sees 5, 6, 11, 12 e 17, fica perceptvel um padro: 4-2-4-2-4-2, que 4 indica quatro
compassos sem uso do pedal do rgo, e 2 indica dois compassos com uso do pedal do
rgo:
28

Sem pedal

Pedal

Sem pedal

10

11

12

13

Pedal

14

15

16

Sem pedal

17

18

Pedal

O compasso 18 o Amen, em que o pedal do rgo toca uma nota para cada slaba,
junto com o coro. Em todos os outros momentos que o pedal toca, para realizar um
bordo, seja no primeiro grau da escala, seja no quinto.
O quarto movimento da Missa o Sanctus, uma jubilosa aclamao a Deus cantada
pelo coro ou fiis em unio com os anjos e santos, como anuncia a orao que o precede,
chamada Prefcio. Na Missa Syllabica o nico movimento que no foi composto em r
elio, e sim em f jnio ou f maior, na msica tonal, relativa de r menor que se
identifica com o r elio, em sua forma natural. Alm disto, pela primeira vez na
composio, as quatro vozes cantam juntas todo um movimento. O organista toca com as
duas mos e tambm com o pedal, embora este esteja ausente de algumas passagens.
Tambm pela primeira vez na obra Prt faz todas as vozes obedecerem ao mesmo
princpio de chegar ao primeiro grau da escala (f) na ltima slaba de cada nota, seja
ascendendo (soprano e tenor, em oitavas), seja descendo (contralto e baixo, tambm em
oitavas). A mo direita do organista executa a voz-T prpria do soprano (e tenor), e a mo
esquerda a voz-T prpria do baixo (e contralto). A mo esquerda quase sempre secundada
pelos pedais, e as vozes-T, novamente, se encontram na posio alternante.
O Agnus Dei volta escala de r elio e deixa silenciosos sopranos e baixos. Apenas
cinco notas so usadas pelos contraltos e tenores: contraltos chegam quinta (l) na ltima
slaba de cada palavra, e tenores chegam ao primeiro grau (r) tambm na ltima slaba.
Com tal procedimento so possveis apenas trs combinaes: a quinta r-l, a tera mi-sol
e um unssono em f ainda, claro, sem contar possveis vozes-T.
29

Figura 24. Combinaes de notas no Agnus Dei da Missa Syllabica


Em certa semelhana com o texto do Kyrie, o texto do Agnus Dei tambm apresenta
uma estrutura em trs partes, suplicando ao Cordeiro de Deus o perdo dos pecados e, na
terceira invocao, que seja concedida paz. Prt escreve as trs partes de modo igual para as
vozes-M (contralto e tenor), diferenciando em cada uma delas a voz-T, conforme indicado a
seguir:

30

Texto13

Voz-T

Agnus Dei,

Posio alternante

qui tollis peccata mundi: miserere nobis.

em relao ao contralto

Agnus Dei,

Posio alternante em relao ao tenor

qui tollis peccata mundi: miserere nobis.


Agnus Dei,

Duas vozes-T:

qui tollis peccata mundi: dona nobis pacem.

uma para o contralto, outra para o tenor

Abaixo, um quadro completo de possibilidades de acordes segundo o mtodo


especfico usado por Arvo Prt no Agnus Dei da Missa Syllabica. Para melhor compreendlo, segue sua explicao:

Letra A: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz aguda na posio superior

Letra B: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz aguda na posio inferior

Letra C: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz grave na posio superior

Letra D: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada
voz grave na posio inferior

13

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: tende piedade de ns. Cordeiro de Deus, que tirais os
pecados do mundo: tende piedade de ns. Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: dai-nos a paz.

31

Letra E: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos e vozes-T


aplicadas a ambas as vozes, ambas na posio superior

Letra F: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos e vozes-T


aplicadas a ambas as vozes, ambas na posio inferior

Letra G: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos; voz-T na posio
superior para a voz aguda e voz-T na posio inferior para a voz grave

Letra H: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos; voz-T na posio
inferior para a voz aguda e voz-T na posio superior para a voz grave

Figura 25. Possibilidades de acordes tintinabulares no Agnus Dei da Missa Syllabica


O sexto movimento da Missa Syllabica o Ite missa est. Trata-se da despedida ao
final da missa, que, como informa Paul Hillier, no costuma fazer parte de missas
polifnicas desde o sculo XIV14. Seu texto consiste unicamente da frase Ite, missa est
(Ide, a missa terminou) seguida da resposta Deo gratias (Graas a Deus). Prt usa
todas as vozes, rgo e pedais do rgo neste movimento. As vozes se encaminham, sem
exceo, para o primeiro grau da escala (movimento ascendente no soprano e no tenor,
descendente no contralto e no baixo).

14

HILLIER (2002), p.110. O Ite missa est est sempre presente na Liturgia, mas Hillier se refere a uma pea
musical especfica para ele.

32

1.5. Conseqncias verticais


A tcnica tintinabular se nos revela uma tcnica contrapontstica, um mtodo de
escrever nota contra nota. Entretanto, como se pde perceber pela sua descrio efetuada
mais acima, ela no leva em conta a idia de consonncia e dissonncia tal como no
contraponto tradicional. So comuns os choques de segundas ou nonas, inclusive
menores; e nada mais distante da tcnica tintinabular do que resolv-las da maneira que
se fazia no contraponto antigo.
Portanto, o que ouvimos verticalmente resultado da sobreposio de vrias linhas
horizontais. Quando muitas vozes esto envolvidas na msica, muito possvel que
ouamos acordes bastante distantes do que se esperaria de uma tonalidade tradicional. Isto
nos leva concluso de que Prt no pode ser simplesmente um neotonal, j que tonalidade
implica em funes, e aqui j no as temos. possvel uma ampla variedade de acordes que
poderiam chegar at mesmo a conter todas as sete notas da escala diatnica.
Os acordes abaixo foram extrados da obra Cantus in memoriam Benjamin Britten,
para orquestra de cordas e sino. Alguns contm cinco notas, mas a maioria contm seis, das
quais trs so, naturalmente, a trade de l menor, do l elio em que a pea est escrita. Os
nmeros se referem ao compasso em que cada acorde se encontra.

Figura 26. Acordes de Cantus in memoriam Benjamin Britten

No segundo acorde do compasso 36, ali colocado entre parnteses por ser ouvido
bem de passagem, temos praticamente um cluster: d-r-mi-f.
33

Esta liberdade com o material diatnico havia sido prenunciada numa pequena
composio para coro a quatro vozes chamada Solfeggio, de 1964 (pertencente, portanto,
primeira fase da obra de Prt). Assim como grande parte das obras tintinabulares, foi escrita
com rigor quanto seqncia das notas, que sempre a da escala diatnica de d a si, de
uma maneira que poderia at mesmo ser considerada serial. No h, entretanto,
preocupao em relao a consonncia do modo entendido tradicionalmente, ouvindo-se
acordes com todo tipo de intervalo possvel dentro de uma escala diatnica. Solfeggio ser
abordada brevemente, mas de modo mais claro, no segundo captulo deste trabalho.
1.6. Composio da voz-M em msica instrumental
Em seguida examinaremos um pouco a obra An den Wassern zu Babel saen wir
und weinten (s margens das guas da Babilnia sentvamo-nos e chorvamos), verso
que principia o Salmo 136 (137). Trata-se de um salmo sobre o exlio hebraico na
Babilnia:

s margens dos rios da Babilnia, nos assentvamos chorando,


lembrando-nos de Sio
Nos salgueiros daquela terra, pendurvamos, ento, as nossas
harpas,
porque aqueles que nos tinham deportado pediam-nos um cntico
(...)
Se eu me esquecer de ti, Jerusalm, que a minha mo direita
se paralise!15

15

BBLIA, pp.768-769

34

A obra, contudo, no tem o salmo como texto. Seu primeiro ttulo havia sido In Spe,
provavelmente para ocultar sua inteno religiosa (o mesmo havia ocorrido com Sarah was
ninety years old, anteriormente chamada Modus). As vozes cantam apenas vogais, e o
texto sobre o qual a pea foi construda (embora no seja cantado) o mesmo do Kyrie
da Missa. Veremos novamente uma pea vocal por seu modo diferente de construir a voz
M, independente do texto.
Nesta obra cada linha de msica numerada, como um substituto para a numerao
de compassos nos quais ela no dividida.
Linha

Vogal

Palavra

Kyrie

Kyrie

Kyrie

eleison

eleison

eleison

A seguir temos tambm as vogais de Christe eleison e novamente Kyrie eleison.


As sees referentes a Kyrie e Christe so cantadas por uma nica voz para cada
vogal, cada uma a seu tempo. No primeiro i, por exemplo, cantam os tenores, em seguida
os sopranos, em seguida os baixos. Somente as sees da palavra eleison fazem uso da voz
T, seja no rgo, seja nas prprias vozes, e sempre na posio alternante.

35

Examinemos portanto as frases musicais encontradas nesta pea e como elas foram
construdas.

Figura 27. Incio de An den Wassern zu Babel saen wir un weinten


Este o incio da composio, cantado pelo tenor. V-se aqui o uso do modo 3, isto
, o modo descendente em direo ao centro do modo. Em cada uma das pequenas frases
principia-se com uma nota cada vez mais grave (marcada com a cruz), passando-se ento a
um movimento descendente desde a nota mais aguda (mi) at chegar na nota marcada com
cruz. Substituindo as notas por letras, teramos:
a bab cabc dabcd eabcde
Mais adiante na obra os baixos cantam as mesmas frases, mas desta vez invertidas,
isto , no chamado modo 1:

Figura 28. Linha dos baixos de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten

Eis agora outra frase encontrada na obra, calcada na idia de espelhamento:

Figura 29. Linha dos sopranos de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten
36

Os nmeros foram acrescentados com o fim de tornar mais explcito o


espelhamento. Pensar deste modo nos autorizado pelo prprio Prt, que utiliza este
sistema para explicar a jovens de uma orquestra, no documentrio de Dorian Supin, como
se desenvolve a melodia da obra Fratres16.
Frases semelhantes, um pouco mais desenvolvidas, surgem depois:

Figura 30. Frases de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten

Esta idia de espelhamento tambm clara na parte dos violoncelos no segundo


movimento, Silentium, de Tabula Rasa. Ocorre um crescimento gradual, sempre em
movimentos alternadamente ascendentes e descendentes:

Figura 31. Linha dos violoncelos no incio de Silentium,


segundo movimento de Tabula Rasa
16

24 Preludes for a Fugue filme documentrio que encabea a bibliografia neste trabalho. Encontrvel em
DVD, foi escrito e dirigido por Dorian Supin. Este vdeo mostra depoimentos e cenas de Arvo Prt.

37

O arco continua crescendo de modo que, em determinado momento, parte desta


linha tocada pelos contrabaixos, por extrapolar a extenso dos violoncelos no grave.
A inconvenincia de nos limitarmos, neste primeiro captulo, a uma simples
descrio da tcnica tintinabular sem exemplos nos leva a esboar esta anlise da Tabula
Rasa. No terceiro captulo iremos alm do esboo, desvendando em maior grau de detalhe a
composio desta obra.

1.7. Concluso
Certamente muito cedo, neste ponto, para quase qualquer tipo de concluso. Alm
disto, no s a tcnica tintinabular consideravelmente simples como nosso intento, neste
primeiro captulo do trabalho, foi o de a apresentar, somente.
Desta forma, uma verdadeira concluso se d com a compreenso desta tcnica pelo
leitor, a qual esperamos ter alcanado; e com o prosseguimento das anlises, que elucidaro
em que contexto Prt utiliza sua tcnica em suas obras. Deixamos nossa sugesto de que o
leitor experimente por si a tcnica, no papel e ao piano ou outro instrumento. Asseguramos
que esta prtica ser muito til em todos os momentos do trabalho.

38

Captulo 2
Prt e a Msica Antiga
2.1.Introduo
No ano de 1976 ocorreu o incio de uma nova fase na vida composicional de Arvo
Prt. Nos anos anteriores o compositor se entregara a estudos da msica medieval e a
exerccios de composio de monodias. Que existe na msica medieval que chamou a
ateno do compositor que estudamos? Paul Hillier comenta:
Prt diz que foi o esprito da msica antiga que lhe interessou,
muito mais do que os procedimentos tcnicos pela qual ela
realizada. O que esse esprito? E em que medida ele pode ser
separado da tcnica? Em seu tempo de estudante, as lies de
contraponto de Prt incluram msica de Palestrina, mas era um
Palestrina reduzido a exemplos de livro-texto, dissociado de
experincias vivas da msica e de seu aspecto espiritual, e tudo
aquilo lhe dizia muito pouco. Mais tarde ele retornou quela msica
(...)17
Hillier certamente tem por base a entrevista concedida por Prt a Jamie McCarthy,
na qual o prprio compositor reconhece no significar muito a simples meno a essa
influncia do esprito da msica antiga18. Mesmo assim, refora seu maior interesse nesse
aspecto um tanto intangvel do que na mecnica da polifonia. Isto procede, pois Prt
criou a sua prpria mecnica polifnica, isto , a tcnica tintinabular. Mesmo assim,
existem parentescos suficientes entre sua msica e a msica medieval para que nos
detenhamos neste assunto e o examinemos com cuidado. o que fazemos neste segundo
captulo.
2.2.O diatonismo
17

HILLIER (2002), p.78.

18

McCARTHY (1989).

40

A primeira semelhana que se percebe entre a msica de Arvo Prt e a msica


medieval o seu absoluto diatonismo. Vejamos a definio do adjetivo diatnico:
Baseado ou derivado de uma oitava de sete notas numa
configurao particular, em oposio escala cromtica e outras
formas de escala. Diz-se que uma escala de sete notas diatnica
quando a sua oitava preenchida por cinco tons e dois semitons,
sendo que os semitons fiquem to separados quanto possvel, como
na escala maior (T-T-S-T-T-T-S). A escala menor natural e os modos
eclesisticos tambm so diatnicos.
(do Grove on-line:
diatonic)
Falamos, claro, da fase tintinabular da obra de Prt, a partir de 1976. Entretanto, este
diatonismo prenunciado por uma composio de 1964 intitulada Solfeggio, para coro
misto a quatro vozes. Ela faz uso exclusivo das notas brancas, sem acidentes, da escala
diatnica. Est ausente, porm, qualquer tipo de encadeamento harmnico que faa lembrar
a msica tonal. Mesmo o seu modalismo particular. Isto se deve ao uso serial da escala: a
seqncia das notas, horizontalmente, a mesma da escala: d, r, mi, f, sol, l, si, d.
Seguem os onze primeiros compassos da obra (as duraes foram um pouco simplificadas):

Figura 32. Incio de Solfeggio


A cada compasso surgem duas notas: compasso 1, d-r; compasso 2, mi-f;
compasso 3, sol-l; compasso 4, si-d; compasso 5, r-mi; e assim por diante, at o fim: a
seqncia das notas a mesma em toda a pea, cuja durao, segundo a partitura, de
cinco a seis minutos.
Solfeggio demonstra o gosto de Prt pelo diatonismo j em sua primeira fase.
Entretanto, no se trata de uma obra de transio, pois nos anos subseqentes ainda seriam
escritas vrias composies de serialismo e colagem (Segunda Sinfonia, Pro et contra,
Collage sur B-A-C-H e Credo).
41

2.3.Os modos eclesisticos


Como a msica medieval diretamente baseada nos modos eclesisticos, citados
pelo verbete do Grove, temos que rigorosamente diatnica, mesmo quando surgem, mais
tarde, algumas alteraes cromticas.
O sistema modal eclesistico compreende oito modos. Quatro so chamados
autnticos, iniciando nas notas r, mi, f e sol. Os outros quatro so chamados plagais, e
comeam uma quarta abaixo dos respectivos autnticos.

Figura 33. Sistema modal eclesistico


A figura acima nos informa as escalas dos modos. Sabemos que a idia de escala se
refere ao tesouro19 de notas da qual faz uso uma determinada msica; e que a idia de modo
se refere aos magnetismos internos de uma dada escala. Por esta razo, vemos que, embora
suas escalas sejam nominalmente as mesmas, os modos drico (modo 1) e hipomixoldio
(modo 8) no so os mesmos, porque suas notas mais importantes so diferentes. Isto afeta

19

Utilizamos a palavra tesouro conforme o sentido da origem desta palavra, a palavra latina thesaurus:
tesouro, bens, haveres, teres, proviso de toda sorte, locam em que se acumulam os bens materiais e nomateriais, depsito de conhecimentos, de acordo com HOUAISS (1999).

42

diretamente a estrutura meldica das monodias compostas sobre eles, e de maneira to clara
que perfeitamente possvel distingui-las quanto origem modal.
As referidas notas mais importantes so a final (marcada no diagrama com a letra F)
e a dominante (marcada no diagrama com a letra D). A nota final, evidentemente, a nota
na qual terminam as melodias baseadas num determinado modo. Para entender a dominante
necessrio deixarmos totalmente de lado a noo de dominante tal como a aprendemos na
msica tonal. Dominante vem do verbo dominar, e percebemos que a nota qual se
atribui esta nomenclatura tem grande presena nas melodias de um dado modo, sendo
repetida e ornamentada de vrias maneiras.
muito clara a presena da nota dominante nas frmulas meldicas a que
chamamos tons salmdicos. Os tons salmdicos so maneiras de cantar salmos em certos
momentos especficos da Liturgia. Apresentam uma frmula de entonao (para o incio de
uma estrofe), uma frmula de terminao (para o fim de uma estrofe), frmulas de
mediao (para o fim de versos individuais) e, de modo marcante, notas repetidas para a
maior parte das slabas do texto.
Vejamos abaixo os tons salmdicos correspondentes a cada modo. Acrescenta-se a
eles um tonus peregrinus.
Prxima pgina: figura 34. Frmulas salmdicas eclesisticas
para cada modo e tonus peregrinus

43

44

Pgina anterior: figura 34. Frmulas salmdicas eclesisticas


para cada modo e tonus peregrinus
Na Liturgia estes tons salmdicos so usados na recitao dos salmos da Liturgia
das Horas (o Ofcio Divino20). Na Missa, so empregados nos versos intercalados entre as
repeties da antfona de Introito e de Comunho e tambm no Salmo Responsorial21.
Detenhamo-nos brevemente na tabela dos tons de recitao. Observe-se que cada
um deles se divide em trs partes. Cada uma aplicada a um verso, quando se tem uma
diviso do salmo em partes de trs versos. Quando a diviso em partes de dois versos, o
que mais comum, usam-se a primeira e a terceira frases.
As notas escritas em branco so chamadas tenor. O tenor utilizado para a maior
parte das slabas de um dado salmo.
A primeira frase se compe de uma entonao (as primeiras notas), seguida pelo
tenor. Depois do tenor temos mais algumas notas, uma delas marcada por um acento. Este
acento marca a ltima slaba tnica do verso. Desta forma, as primeiras notas so dadas s
primeiras slabas, as ltimas notas s ltimas slabas, e o tenor a nota usada para todas as
outras slabas, formando assim uma melodia de recitao com muitas notas repetidas o
estilo da salmodia.
A segunda frase usada para um segundo verso, e a terceira para um terceiro verso.
As notas depois do tenor da terceira frase so chamadas de terminao. Eis a seguir um
exemplo de salmodia22 no primeiro tom:
20

O Ofcio Divino a orao oficial da Igreja Catlica Romana. So sete funes dirias: Ofcio das Leituras
(a qualquer hora do dia), Laudes (incio da manh), Tera (9 horas), Sexta (12 horas), Noa (15 horas),
Vsperas (fim da tarde ou comeo da noite) e Completas (ltima orao do dia, antes do sono). Tal a
estrutura de acordo com a reforma litrgica aprovada pelo papa Paulo VI. Anteriormente existia um ofcio
chamado Matinas, substitudo depois pelo Ofcio das Leituras. Em todas estas oraes se faz uso de salmos
(trs em cada ofcio, com exceo das Completas, com um ou dois), tradicionalmente recitados com estes tons
salmdicos que abordamos.
21

O Salmo Responsorial se encontra depois da primeira leitura do rito da Missa. seguido pela segunda
leitura ou pelo Evangelho e seu respectivo Aleluia, conforme a liturgia do dia. Antes da reforma litrgica do
papa Paulo VI no se tinha o Salmo Responsorial, e sim o Gradual que continua, a propsito, sendo uma
alternativa mesmo no rito novo, e consta do Graduale Romanum, o livro de canto gregoriano para a Missa
publicado pelos monges de Solesmes. O Gradual, porm, uma melodia inteiramente composta, e no uma
frmula de recitao.

45

Figura 35. Cantilao salmdica no primeiro tom


A presena de notas repetidas confere ao canto dos salmos um carter mais
recitativo do que propriamente meldico. Algumas partes da Missa recitadas pelo sacerdote
tm, em livros de canto, melodias que seguem essa idia. Eis um exemplo23:

Figura 36. Recitao do convite penitncia antes do Kyrie na liturgia da Missa


Existem tambm frmulas meldicas precisas para o canto das leituras; h melodias
especficas para a profecia, a epstola e o Evangelho. So dadas inflexes meldicas para o
fim das frases de acordo com a pontuao: ponto final, dois pontos, ponto de interrogao.
Este exemplo se refere recitao de uma epstola24:

22

O texto um trecho do Salmo 4, usado nas Completas de Sbado. Tremei, mas sem pecar; / refleti em
vossos coraes, / quando estiverdes em vossos leitos, e calai.
23

Irmos, reconheamos nossos pecados para que sejamos capazes de celebrar dignamente estes santos
mistrios. introduo do sacerdote ao Ato Penitencial da Missa.
24

O texto diz: Leitura da Carta de So Paulo Apstolo aos Romanos

46

Figura 37. Anncio recitado de leitura bblica na liturgia da Missa


Na obra de Arvo Prt no incomum encontramos o uso de notas repetidas de
maneira semelhante dos tons de recitao salmdica. As primeiras composies do estilo
tintinabular no traziam esta caracterstica, mas peas posteriores a adotaram com
interessante resultado.
No coincidentemente vrias das obras que apresentam este aspecto so
composies corais escritas sobre textos em ingls. Este idioma apresenta um grande
nmero de palavras de uma nica slaba. Se ainda for seguido o processo de utilizar a
escala de acordo com o nmero de slabas, temos de fato muitas repeties, j que os
monosslabos so maioria.
Isto no tira das obras o seu carter de recitao salmdica, pois o resultado musical
audvel desta, como daquelas, claramente aparentado.
O primeiro exemplo a pea And one of the Pharisees..., para trs vozes a cappella
(contratenor ou contralto, tenor e baixo), escrita em 1992. O texto do Evangelho segundo
So Lucas, captulo 7, versculos de 36 a 50: Um fariseu convidou Jesus a ir comer com
ele. Jesus entrou na casa dele e ps-se mesa.(...)25
A escala utilizada por Prt nesta obra de carter oriental. Trata-se da escala menor
harmnica com o quarto grau elevado em um semitom.

Figura 38. Escala com segundas aumentadas utilizada em And one of the Phrarisees...

25

BBLIA, p. 1356.

47

A seguir vemos as trs primeiras frases da pea. Esto aqui transcritas apenas as
vozes-M de cada momento. A todo instante, nestas frases, as vozes restantes fazem ouvir
vozes-T.

Figura 39. Primeiras frases de And one of the Pharisees...


Podemos perceber a adeso fiel ao nmero de slabas das palavras na escolha das
notas. Como espervamos, predominam as palavras monossilbicas. Desta forma,
destacam-se as que possuem duas ou mais slabas porque, quando aparecem, ocorre uma
mudana na melodia. Na primeira frase isto ocorre nas palavras Pharisees e desired, esta
logo em seguida quela. Na primeira, o movimento descendente; na segunda, ascendente;
fica clara a alternncia destes movimentos como critrio para as inflexes meldicas dos
polisslabos. A nota diversa da repetida surge sempre na slaba tnica da palavra em
questo, razo pela qual os movimentos ascendentes ou descendentes continuam na palavra
seguinte em alguns casos.
O uso da slaba tnica na escolha das notas aproxima esta tcnica composicional do
pensamento da salmodia. Teremos mais tarde a oportunidade de ver que Prt se vale deste
recurso na composio de peas escritas sobre textos em outros idiomas tambm.

48

Figura 40. Escolha das notas em And one of the Phrarisees


A letra A se refere primeira frase, conduzida pelo contratenor. O centro si
(indicado no incio) e as palavras com mais de uma slaba esto em seguida. A letra B se
refere segunda frase, esta conduzida pelo tenor, centrado em sol. As palavras so into e
Pharisees, a primeira descendente e a segunda ascendente. A terceira frase (letra C)
dividida entre as trs vozes. Behold, no baixo, tem a ltima slaba como tnica, de modo
que o a seguinte levado em conta: movimento descendente. Woman, no tenor, tem
movimento ascendente. City e sinner esto na parte do contratenor, novamente alternando:
descendente e ascendente.
Este princpio utilizado consistentemente at o fim da composio. Entretanto, em
alguns momentos utiliza uma outra tcnica para obter suas frmulas de recitao. Trata-se
das palavras proferidas pelos personagens envolvidos: Simo, cujas falas so musicadas
para solo de contratenor, e Jesus, cujas falas foram confiadas ao baixo. Existe ainda uma
pergunta [W]ho is this that forgiveth sins also?26 feita pelos convivas; sendo uma pessoa
plural esta frase foi musicada para as trs vozes em seus respectivos registros agudos, as
notas mais altas utilizadas na pea. No final as palavras de Jesus [T]hy faith hath saved
thee; go in peace27 so excepcionalmente entregues s trs vozes, que cantam a nota em
mi em trs oitavas diferentes: um recurso tmbrico que poderamos considerar uma nica
grande voz.
Observemos, ento, como Prt comps sua msica para as falas do dilogo.
Lembremo-nos da escala utilizada por ele nesta obra. Isolando seu pentacorde inicial, temos
os chamados modos 1 e 3, conforme a sistematizao, por Hillier, da tcnica tintinabular.
26

Quem este que tambm perdoa pecados?

27

Tua f te salvou; vai em paz.

49

Esta seqncia de notas, usada por Prt em tantas obras, usada na estruturao de uma
frmula de recitao salmdica especfica de And one of the pharisees....

Figura 41. Modos tintinabulares 1 e 3 na escala de segundas aumentadas


A nota reiterada sol, razo pela qual foi escrita entre parnteses do exemplo acima.
As outras notas emergem nos momentos em que se tem a slaba tnica de uma palavra com
duas ou mais slabas. E sua apario ocorre na ordem no exemplo anterior.
Reproduzimos abaixo as notas do primeiro solo de contratenor (em cujo texto os
fariseus censuram Jesus por se permitir ser tocado por uma pecadora). Com asterisco foram
marcadas as notas atribudas s slabas tnicas dos no-monosslabos. A primeira l
sustenido; em movimento ascendente, chega-se ao si; aps o que s se pode descer, tendose ento l sustenido, f sustenido (o prprio sol, da recitao, omitido) e mi.

Figura 42. Solo de contratenor de And one of the Pharisees


Assim foram escritos os trs solos de contratenor. Os solos de baixo, em nmero de
cinco, tm os trs primeiros compostos na fidelidade ao mesmo princpio. O quinto, um
momento especialmente belo da composio, central neste texto sagrado, quando Jesus
diz teus pecados so perdoados: uma escala descendente, em notas longas, de grande
fora expressiva e beleza reforada pelas propriedades peculiares do modo.

Figura 43. Solo de baixo de And one of the Phrarisees


50

O quarto solo de baixo se divide em duas partes no que concerne ao mtodo


composicional. A primeira escrita de acordo com o princpio descrito anteriormente; desta
vez, porm, a nota central, repetida, deslocada ascendentemente: no comeo mi, depois
sol, e finalmente si.
A segunda, centrada em si, no usa repeties de notas maneira salmdica; ela
circula em graus conjuntos sobre seu eixo. A figura 44 mostra as notas (sem duraes) deste
trecho. No primeiro arco, uma segunda acima e abaixo do eixo em si (do e l#); no
segundo, uma tera (r# e sol); no terceiro, uma quarta (mi e f#). No quarto, h novamente
uma contrao: o intervalo de tera (r# e sol); no quinto e ltimo arco, retorna-se ao
intervalo de segunda (d e l#).

51

Figura 44. Notas circulando ao redor de um eixo


na composio de um solo em And one of the Pharisees
Na tabela a seguir, uma descrio completa do funcionamento das vozes em And
one of the Pharisees.... A sigla pi significa posio inferior e ps posio superior. Os
nmeros 1 e 2 indicam respectivamente primeira posio e segunda posio.
Compasso Voz M

Vozes-T

Tenor (1pi)

Contratenor

Baixo (2pi)
2-3

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

4-5

Baixo

Contratenor (1ps)
Tenor (2ps)

Tenor

Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)

Contratenor

Tenor (2pi)
Baixo (1pi)

Tenor

Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)

Baixo

Contratenor (1ps)

52

Tenor (2ps)
10

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

11-12

Contratenor

Tenor (1pi)
Baixo (2pi)

13

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

14

Baixo

Contratenor (1pi)
Tenor (2ps)

15

Tenor

Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)

16

Contratenor

Tenor (2pi)
Baixo (1pi)

17-20

Contratenor solo

21

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

22-23

Baixo solo

24

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

25-26

Contratenor solo

27-34

Baixo solo

35

Tenor

Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)

53

36-37

Contratenor solo

38

Contratenor

Tenor (2pi)
Baixo (1pi)

39

Baixo solo

40

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

41

Baixo

Contratenor (2ps)
Tenor (1ps)

42-57

Baixo solo

58

Tenor

Contratenor (2ps)
Baixo (2pi)

59

Baixo solo

60

Contratenor

Tenor (2pi)
Baixo (1pi)

61

Tenor e Baixo

Contratenor (1ps em relao ao Tenor)

62

Tenor

Contratenor (1ps)
Baixo (1pi)

63-64

(oitavas
mi)

na

nota -

Cinco anos depois de And one of the Pharisees... Prt comps Tribute to Caesar
(1997) sobre o conhecido texto do Evangelho segundo So Mateus em que Jesus ordena
dai a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus28. Escrita para coro misto a quatro

28

Mt 22, 15-22

54

vozes, a composio usa a escala de l menor em suas verses harmnica, meldica e


natural diferenciando-se assim das obras tintinabulares dos primeiros anos, que preferiam
o modo elio (escala menor natural).
Esta obra tambm baseia seu desenvolvimento meldico sobre o nmero de slabas
das palavras, assim como a posio das slabas tnicas. O estilo salmdico usado
consistentemente na obra, principalmente no incio. Eis a parte dos tenores nos compassos
4-6:

Figura 45. Parte dos tenores de Tribute to Caesar


Entre outras composies que fazem uso de notas repetidas esto The woman with
the alabaster box e Triodion (ambas para coro a quatro vozes, de 1997 e 1998
respectivamente) e The beatitudes (para coro e rgo, de 1990-1).
The woman with the alabaster box (A mulher com a caixa de alabastro) pe em
msica o texto bblico Mt 26, 6-13. Trata-se de outra narrativa do episdio da mulher que
unge Jesus com perfumes. Vimos esta histria no texto de So Lucas cujo texto foi usado
em And one of the Pharisees....
Triodion, cujo ttulo significa trs odes, utiliza um texto litrgico da Igreja
Ortodoxa em ingls. Uma introduo, cujo texto o do Sinal da Cruz29, precede a Ode I,
musicado num tom salmdico similar ao usado por Prt na pea que analisamos
anteriormente. A Ode I se dirige a Jesus, a Ode II Virgem Maria e a Ode III a So
Nicolau. Finaliza a pea, tambm em tom salmdico, uma coda cujo texto o Gloria Patri,
como se o chama na liturgia romana, mas aqui em ingls30.
29

Em nome do Pai, e do Filho e do Esprito Santo. Amm em ingls: In the name of the Father, and of
the Son, and of the Holy Spirit. Amen
30

Glria ao Pai, e ao Filho e ao Esprito Santo. Como era no princpio, agora e sempre, e pelos sculos dos
sculos. Amm em ingls: Glory to the Father, and to the Son, and to the Holy Spirit, both now, and ever
and unto ages of ages. Amen

55

The beatitudes (As bem-aventuranas) pe em msica um dos textos religiosos mais


conhecidos que existem (Mt 5, 3-11)31. As bem-aventuranas fazem parte do Sermo da
Montanha. Este texto inteiramente proferido por Jesus, e em sua composio Prt atribui
todo o texto a todas as vozes, que cantam sempre juntas. As notas mais longas so dadas
slaba tnica das palavras com mais de uma slaba. s vozes-M (contraltos e baixos), em
estilo de tom salmdico, correspondem vozes-T (sopranos e tenores) sempre na posio
alternada. Embora inicie e termine em f elio, a harmonia da pea modula
permanentemente.
Cabe aqui, ainda, refletirmos um pouco a respeito do parentesco e da diferena entre
as notas repetidas dos tons salmdicos gregorianos e as notas repetidas das composies de
Arvo Prt.
Na recitao litrgica as notas repetidas tm certa fluncia no que se refere ao seu
andamento. As notas diferentes (entonao, terminao etc.) tendem a ser ligeiramente
valorizadas, tendo durao um pouco maior, sem que, contudo, isto prejudique a
compreenso da maior poro de texto musicada com as notas reiteradas, o tenor.
J nas composies de Prt estas notas repetidas so mais lentas. A atmosfera, mais
solene e hiertica. Se nos basearmos nas composies citadas aqui (And one of the
Pharisees..., The woman with the alabaster box e The beatitudes), isto faz perfeito sentido.
O texto destas composies no provm do Livro dos Salmos, e sim dos Evangelhos. Os
textos evanglicos tm, na Liturgia, um grau de solenidade maior do que qualquer outra
leitura extrada das Sagradas Escrituras; indcio disto que na Missa eles somente podem
ser lidos ou cantados por um ministro que tenha recebido o sacramento da Ordem, isto :
um dicono ou sacerdote.
certo que estas peas, como vrias outras de Prt, no obstante seus textos
religiosos, no se destinam Liturgia. Entretanto, mesmo fora do contexto litrgico clara
a diferena entre um texto dos Evangelhos e um Salmo. Os salmos so poemas endereados

31

Bem-aventurados os que tm um corao de pobre, porque deles o Reino dos cus! Bem-aventurados os
que choram, porque sero consolados! Bem-aventurados os mansos, porque possuiro a terra!(...)

56

a Deus; louvam, agradecem, lamentam, suplicam. Os Evangelhos so palavras do prprio


Jesus Cristo, Deus feito homem na Terra, e relatos de sua vida.
2.4. O canto gregoriano
Os tons salmdicos so o primeiro elemento de um gnero musical com o qual
comparamos a msica de Arvo Prt neste trabalho: o canto gregoriano. Eles so, como
vimos, frmulas meldicas de recitao. Examinaremos agora as prprias melodias
gregorianas compostas. Elas tambm mostraro alguns parentescos com certas opes do
compositor estoniano.
Ao papa So Gregrio Magno (ca.540-604, papa a partir de 590), Doutor da Igreja e
figura fundamental na Histria da Igreja Catlica, atribuda tradicionalmente a
organizao do cantocho da Igreja Romana32. Algumas provas a favor dessa tradio tm
sido apresentadas por estudiosos do assunto.33 O canto gregoriano tomou desde cedo este
nome para no mais o perder.
A voz , para Prt, o principal instrumento musical. Ao examinarmos a histria da
msica ocidental, no incomum tomar como incio o canto gregoriano e em seguida a
polifonia, colocando a voz como centro e origem, com a msica instrumental surgindo de
modo mais autnomo consideravelmente mais tarde. O estudo do contraponto
convencionou chamar vozes s linhas de que se compe a textura polifnica, e esta
tradio se manteve mesmo quando j se pensava em instrumentos. Assim tambm Hillier
(seguido por este trabalho) utiliza a denominao voz para falar de cada linha composta
segundo a tcnica tintinabular, sem que faa diferena ser executada por canto ou
instrumento.
Se Prt tomou como base o canto gregoriano para aprender a escrever uma nica
linha de msica, esta base foi vocal. Assim j nos localizamos no universo da msica
cantada, o que implica em certas caractersticas. Uma das primeiras que se apresentam a
32

HUDDLESTON in Catholic Encyclopaedia


http://www.newadvent.org/cathen/06780a.htm
33

BEWERUNG
in
Catholic
Encyclopaedia
http://www.newadvent.org/cathen/06779a.htm

57

verbete

St.

Gregory

verbete

(The

Gregorian

Great)

Chant

tessitura. O cantocho, de modo geral, no costuma exceder uma oitava, talvez uma nona.
Certas melodias mais antigas chegam a se limitar a uma sexta34.
Verificamos assim que a maioria das linhas meldicas de Prt se restringe a uma
pequena faixa de notas. Como pudemos observar no captulo dedicado tcnica
tintinabular, na Missa Syllabica cada uma das vozes-M no chega a fazer uso de todas as
sete notas da escala num mesmo movimento, at porque no existem nos textos palavras
com sete slabas.
A voz M na msica de Arvo Prt costuma se restringir a graus conjuntos. Neste
aspecto encontramos uma forte influncia do canto gregoriano, cujas progresses meldicas
so fundamentalmente calcadas em movimentos de segunda. de observar que, embora
isto tenha vindo a Prt diretamente do canto gregoriano, outros cantos litrgicos tambm se
desenvolvem dessa maneira. Os saltos costumam ser compensados, ou melhor: a faixa de
notas que, por causa de um salto, deixou de ser ouvida, costuma ser preenchida nos
instantes seguintes da melodia. Esses preenchimentos tambm ocorrem na melodia de Fr
Alina, na qual podemos ouvir diversos saltos.
Vemos aqui uma atitude fundamentalmente diferente em relao ao salto daquela
que se encontra em certos outros tipos de msica. Em diversos compositores do sculo XX
os saltos tm um aspecto tmbrico, ao colocar lado a lado notas de registros diferentes de
um instrumento (ou de instrumentos diferentes); noutros casos, os saltos so mesmo
meldicos, ainda que grandes (nona, dcima, etc.). Anton von Webern um compositor
em cuja msica se pode verificar a presena de ambas as situaes.
Prt se interessa pela idia de melodia em que predominem, como j afirmado, os
graus conjuntos. Assim, volta-se para o cantocho da Igreja Romana. Antes de
examinarmos os graus conjuntos de Prt, olharemos melodias gregorianas.

34

HOPPIN (1978), p. 66.

58

Figura 46. Antfona Hodie Christus natus est II Vsperas do Natal


Esta melodia est no modo 1, drico autntico. O d grave prximo do fim, antes de
alleluia, no suficiente para classificar este modo como plagal; seriam necessrias no
s mais notas graves, mas tambm uma outra estrutura modal, que privilegiaria outras notas
que no as enfatizadas nesta antfona. Como se pode observar na tabela dos modos
eclesisticos, o modo drico tem r como final e l como dominante, enquanto o modo
hipodrico tem o mesmo r como final, mas, como dominante, a nota f.
Os nicos intervalos presentes nesta composio so o grau conjunto e a tera
precisamente os intervalos mais utilizados no cantocho.35 Hoppin (1978) ainda observa:
em meio ao repertrio, a predominncia de movimento por grau
conjunto com ocasionais saltos de tera produz uma suavidade e
uniformidade que aumentam o efeito dos intervalos meldicos
maiores. (p.75)
Hodie Christus natus est se nos revela, se a observarmos de perto, uma elaborao
de um simples tom salmdico. Com elaborao queremos dizer, de fato, ornamentao.
Esta ornamentao foi realizada pelo compositor de maneira hbil a ponto de manter o tom
salmdico reconhecvel; entretanto, se a ouvirmos com o Magnificat cantado em seguida,
nesse mesmo modo, no existir um simples efeito de ouvir duas vezes a mesma coisa.
35

HOPPIN (1978), p.75.

59

Preservou-se a unidade e se obteve a variedade com o uso de uma s fonte meldica. Esta
fonte no apenas escalar; modal, no sentido que, alm de termos uma escala especfica,
temos tambm um comportamento, uma maneira, um caminho que as notas, de modo geral,
percorrem, a que se somam possibilidades de desvios e atalhos individuais que no afetam
a essncia do modo. A figura a seguir demonstra a relao entre este antfona (na pauta
superior) e o tom salmdico (cujas notas integrantes aparecem na pauta inferior).

Figura 47. Anlise por graus conjuntos da antfona Hodie Christus natus est
Nas notas da melodia a partir da slaba a da palavra Gloria temos uma
ornamentao da nota r num movimento escalar que usa os modos tintinabulares 1 e 3;
respectivamente um movimento ascendente at l (dominante do modo) e o retorno
descendente at a nota principal.
O canto gregoriano apresenta trs possibilidades no que se refere associao de
notas e slabas. Quando a melodia atribui uma nota para cada slaba, dizemos que

60

silbica. Quando atribui algumas notas para cada slaba, dizemos que neumtica. E se
atribui muitas notas para cada slaba, usamos o termo melismtica.
Eis abaixo a primeira estrofe de um hino cantado na orao das Completas, da
Liturgia das Horas, no Tempo Pascal. Os hinos so, de modo geral, exemplos de peas
silbicas (alguns mais elaborados chegam a ser neumticos). Neste caso, algumas poucas
slabas chegam a ser cantadas em duas notas.

Figura 48. Hino Iesu redemptor saeculi


Como se pode ver a linha superior traz a melodia gregoriana, e a inferior uma sua
anlise meldica, igual quela que fizemos anteriormente para a antfona Hodie Christus
natus est. Nela observamos a estrutura por graus conjuntos. importante ressaltar que este
diagrama no pretende reduzir a melodia a uma sua possvel essncia. Seu nico
propsito demonstrar que existe nela um pensamento de graus conjuntos que auxilia na
composio e d ao canto a suavidade que estes intervalos costumam propiciar. As notas
que a melodia tem a mais em relao ao diagrama escrito abaixo no so ornamentais e,
mesmo que o fossem, seriam sua parte integrante indissocivel. O significado e a
essncia da melodia s esto presentes na prpria melodia, que no se pode substituir por
nada.

61

Em suas composies vocais Prt demonstra preferncia pelo silbico. Todavia, no


podemos deixar de nos aproximar de uma melodia gregoriana mais floreada para observar
nela tambm seus graus conjuntos e estrutura modal.
A primeira a seguir Petite et accipietis, comunho para a Quinta-feira da Primeira
Semana da Quaresma. Seu texto36 provm de Lc 11, 9-10 e de Mt 7, 7-8; 10, 1. Seu modo
o drico autntico, e so usadas somente as cinco notas de r a l (juntando-se em alguns
momentos o d grave). Vemos claramente sua macroestrutura em duas partes, em que a
segunda uma variao da primeira, adaptada ao texto.

36

Pedi, e dar-se-vos-; buscai, e achareis. Batei e vos ser aberto. Todo aquele que pede, recebe. Quem
busca, acha.

62

Figura 49 Anlise da antfona Petite et accipietis continua na prxima pgina


63

64

continuao e final da Figura 49 Anlise da antfona Petite et accipietis


A melodia original est aqui escrita na primeira linha. A segunda linha (anlise I)
traz uma anlise da construo por graus conjuntos tal qual foi feita acima para Iesu
redemptor saeculi e Hodie Christus. Os graus conjuntos so tudo o que procuramos
demonstrar nesta primeira anlise; no propomos compreender longas seqncias de notas
como elaboraes de uma nica nota. Alm disto, reparamos tambm que, alm do grau
conjunto, somente a tera ocorre nesta composio.
A linha da anlise II intervm um pouco mais na melodia e a reescreve de modo
silbico. Foram consideradas todas as notas atribudas a cada slaba e, dentre delas, foi
escolhida somente uma de maneira a criar uma melodia nova que procedesse
completamente por graus conjuntos. Em certos casos mais de uma soluo seria possvel, o
que faz desta anlise um trabalho composicional. O critrio para escolha das notas, aqui, foi
o de aproximar o resultado com uma voz-M maneira de Arvo Prt, nos passos da Missa
Syllabica; todas as frases comeam ou terminam com a primeira nota do modo, r37. De
fato, o que obtivemos aqui, embora nos traga reminiscncias de canto gregoriano (sua
origem, afinal), j soa como outra msica. Sugere-nos uma interpretao mais compassada
e menos fluida do que a da melodia gregoriana. Leva-nos linguagem mais essencial de
Prt.
J pudemos ver que Prt confere single note (a nota nica, a simples nota)
importncia fundamental. Naturalmente no cantocho isto tambm ocorre. Porm, na
msica do compositor estoniano, a opo pelas configuraes silbicas coloca uma lente de
aumento em cada nota, fazendo com que sejamos ainda mais levados, e com fora,
contemplao da nota nica e de cada nota na audio e na apreciao das composies.
As slabas, por terem cada uma sua nota, iluminam as mesmas notas, e a sucesso
das notas ilumina as slabas, destacando deste modo o texto. O texto, por sua vez, quem
escreve a msica, como explica Prt. Ao falar sobre a tcnica tintinabular a Geoff Smith,

37

Com exceo de Petite e pulsanti.

65

ele afirma: minha idia de deixar as palavras escreverem sua prpria msica faz alguns
rirem, particularmente jornalistas musicais38.
De volta anlise de Petite et accipietis, vemos na linha III o mesmo que na anlise
II; o critrio, desta vez, diferente. Foi escrita a primeira nota de cada slaba exatamente
como est na melodia. Algumas poucas notas entre parnteses foram acrescentadas por,
mesmo no sendo a primeira de sua respectiva slaba, serem conclusivas e mais importantes
do que a primeira nota de fato.
A prxima pea de cantocho Salvum fac servum tuum, gradual da Sexta-feira da
Primeira Semana da Quaresma. Assim como a melodia precedente, seu modo o primeiro
(drico autntico) e seu texto do Salmo 85, versculos 2 e 6.

38

SMITH (1999), p.24.

66

Figura 50. Gradual Salvum fac servum tuum continua na prxima pgina
67

continuao e final da Figura 50. Gradual Salvum fac servum tuum


Esta melodia mais ornamentada que Petite et accipietis. Traz neumas mais longos
que chegam s vinte e oito notas na primeira slaba da palavra percipe. Mais slabas so
neumticas, enquanto em Petite a maioria dos neumas no passa de seis notas, com uma
nica exceo de doze. As melodias dos graduais so as mais melismticas do repertrio
gregoriano39. A tessitura da melodia em questo tambm maior: compreende todas as
notas do modo 1, alm do d grave, totalizando oito notas (consideramos si natural e si
bemol inflexes do mesmo grau do modo).

39

HOPPIN, p.127.

68

Desta vez propomos duas anlises. A primeira, tambm feita no exemplo anterior,
a dos graus conjuntos. A segunda fazemos agora pela primeira vez no trabalho.
Evidenciamos nela a estrutura por trades que encontramos nesta melodia, ausente de Petite
et accipietis. Encontramos no s numerosas trades ornamentadas como a do incio (na
slaba Sal), mas tambm trs trades explcitas, marcadas na anlise II com colchete.
Nesta anlise das trades vemos a preponderncia da trade f-l-d. Como estamos
num universo modal, mais especificamente no universo modal gregoriano, natural que isto
ocorra. A trade r-f-l, que seria um primeiro grau deste modo, ocorre uma nica vez.
Isto, porm, s seria surpreendente num pensamento tonal. F-l-d uma trade presente
em inmeras melodias gregorianas de todos os modos, por ser pertencer ao arcabouo de
frmulas meldicas deste gnero. Observemos que o tom salmdico 5 apresenta uma
entonao precisamente nestas notas.

O mesmo acontece com o movimento em

quinta r-l e com a alterao cromtica da nota si (transformada em si bemol), que no se


restringem ao modo 1.
A presena marcante de graus conjuntos e de trades nos leva tcnica tintinabular,
fundamentada sobre esses dois elementos. A trade o pilar imutvel da voz-T. Os graus
conjuntos, em Prt, sempre criam a voz-M. Em sua msica os dois elementos ocorrem
simultaneamente. So manifestaes, em diferentes nveis, de um mesmo modo, de uma
mesma escala e de uma mesma melodia.
verdade que a trade ganhou um papel de maior destaque depois da Idade Mdia,
de modo que a sua presena em Prt tem herana no apenas medieval, mas de toda a
msica ocidental desde ento. Entretanto, seu uso da trade na voz-T no se relaciona com
nenhum uso feito dela nesse perodo, por ser esttico e no-funcional.40
Em todo caso, fica muito clara a presena, nas melodias do cantocho, destes dois
elementos bsicos sobre o qual Prt construiu sua tcnica de composio. E, mesmo nas
melodias mais simples, como Hodie Christus natus est, e Petite et accipietis, das quais a
trade est ausente, o intervalo de tera aparece.
40

Naturalmente esse uso veio a ocorrer no minimalismo. Mas Prt est cronologicamente prximo desse
movimento, de maneira que se chega a pensar que seja parte dele. O terceiro captulo deste trabalho se
ocupar deste assunto.

69

Faltar-nos-ia ento a quinta, outro elemento estrutural da trade. Surge


freqentemente como movimento meldico em peas gregorianas como Salvum fac
servuum tuum (na palavra auribus). Temos aqui mais alguns exemplos41:

Figura 51. Incio de melodias gregorianas comeadas por quinta justa ascendente
2.5. O ritmo do canto gregoriano
Dos aspectos musicais do canto gregoriano, as alturas no apresentam nenhum
problema, tendo sido notadas com total clareza na pauta de quatro linhas e notas quadradas
que mesmo hoje continua sendo sua notao. O mesmo no se verifica quanto ao ritmo.
O ritmo do canto gregoriano motivo de muita controvrsia42, chegando a ser
colocado como problema talvez insolvel43. Os manuscritos medievais no trazem
nenhuma indicao rtmica; as edies modernas tampouco, embora alguns poucos sinais
tenham sido adicionados por escolas de interpretao, notadamente a dos monges
beneditinos belgas de Solesmes.
Gustave Reese em seu Music in the Middle Ages apresenta trs escolas de
interpretao rtmica do canto gregoriano: os acentualistas, a escola de Solesmes e os
mensuralistas.
Os acentualistas professam a idia de que todas as notas do cantocho tm a mesma
durao, e as notas acentuadas devem ser aquelas que caem sobre a slaba tnica de cada

41

O terceiro exemplo no traz uma quinta explcita, mas o movimento meldico a sugere. Propositalmente
escolhemos trs composies jubilosas. A primeira, Puer natus est nobis, o Intrito da Missa do Dia de
Natal (um menino nos nasceu); a segunda, Gaudeamus (alegremo-nos), Intrito para o Dia de Todos os
Santos e algumas outras celebraes; a terceira, Viri Galilaei (homens da Galilia), o Intrito da Ascenso
do Senhor. A primeira e a terceira esto no modo 7, e a segunda no modo 1.
42

REESE (1968), p.140

43

HOPPIN (1978), p.88.

70

palavra no caso de melismas44, a primeira nota do grupo recebe esse acento. O resultado
um ritmo livre que reflete fielmente a natureza oratria do cantocho45.
A escola de Solesmes a mais conhecida. As gravaes dos monges so difundidas
em todo o mundo, e no somente sua interpretao rtmica como tambm o seu som, em
geral, so a idia que se tem do que o canto gregoriano. Seu mentor foi o monge d. Andr
Mocquereau (1849-1930). Assim como os acentualistas, esta escola propugna que o ritmo
do cantocho livre (algumas notas recebem prolongamentos indicados por um ponto
direita ou um trao acima). Discordam, entretanto, quanto aos acentos: para Solesmes, eles
no necessariamente recaem sobre a slaba tnica das palavras. A unidade de tempo cada
pulso, e os pulsos sucessivos se juntam em grupos de dois ou trs.
Os mensuralistas defendem que o cantocho deve ser interpretado com notas longas
e breves, contrariando Solesmes e os acentualistas para quem as duraes so iguais. Isto
no significa que os mensuralistas concordem entre si. Alguns crem que h duas duraes
diferentes, outros dizem que so trs ou mais.
H argumentos que corroboram cada uma dessas teorias. Reese oferece uma
reflexo: possvel que os tericos modernos estejam se referindo a prticas realmente
usadas em pocas e lugares diferentes e, assim, estejam todos certos, mas com relao a
melodias de provenincias diferentes46.
O que nos interessa em primeiro lugar, aqui, entender de que modo estas questes
rtmicas se ligam msica de Arvo Prt. Prossigamos, portanto.
As peas gregorianas que utilizamos como exemplos anteriormente foram todas
retiradas de livros editados pelos monges de Solesmes47. Decidimos transcrev-las para
notao moderna, omitindo sinais de acentuao. As notas longas, entretanto, foram
mantidas, escritas aqui em branco. As notas pretas so o pulso bsico.

44

Muitas notas para a mesma slaba.

45

REESE (1968), p.141.

46

REESE (1968), p.146.

47

Liber hymnarius, Graduale Romanum, Liber Usualis

71

Podemos perceber que todas elas terminam com notas longas. E no apenas seu
final numa nota longa, mas tambm o final das frases que as compem. Esta caracterstica
encontramos tambm em Fr Alina, que examinaremos mais adiante. Todas as frases so
construdas por certo nmero de notas breves, o pulso bsico, e finalizadas com uma nota
longa.
Alm disto, o ritmo livre em notas de igual durao caracterstico de vrias das
primeiras composies tintinabulares e tambm das posteriores: Fr Alina, Cantate
Domino, a Missa Syllabica, And one of the Pharisees... etc. Somam-se a estas peas
posteriores. Em todas elas a notao utilizada semelhante que adotamos neste trabalho
para as melodias gregorianas.
Em algumas, como And one of the Pharisees..., existe uma instruo precisa: as
notas pretas tm o valor de uma semnima, e as brancas tm o valor de uma mnima
pontuada; uma proporo precisa de uma nota longa equivalente a trs breves. Temos, desta
maneira, um pensamento prximo ao da interpretao proposta pelos mensuralistas. Para
no corrermos o risco do absurdo, relacionando qualquer msica mensural com a
interpretao mensuralista do gregoriano, temos que identificar algum tipo de relao entre
And one of the Pharisees... e o cantocho precisamente o que fizemos anteriormente, ao
analisarmos os tons salmdicos e como Prt criou frmulas de recitao nesta composio.
Cantate Domino tambm segue esta idia; apresenta, por sua vez, trs duraes:
uma nota preta (equivalente a uma colcheia), uma nota preta com trao (equivalente a uma
semnima) e uma nota preta com dois traos (equivalente a uma semnima pontuada).
Tendo como texto o Salmo 95, esta pea se destaca na produo de Prt por seu incomum
andamento rpido. Embora os primeiros oito compassos possam dar a impresso de
regularidade (poderamos aplicar a frmula 3/8 do incio do fim, se no fosse o stimo
compasso), a seqncia a desmente. Transcrevemos aqui em notao convencional a parte
de soprano das duas primeiras sees da pea. Adicionamos ainda frmulas de compasso
que, naturalmente, esto ausentes do original.

72

Figura 52. Incio de Cantate Domino com frmulas de compasso acrescentadas


A composio muito clara e consistentemente construda sobre o nmero de
slabas das palavras. Vimos que em ingls abundam monosslabos; o latim, entretanto,
possui muitos polisslabos, possibilitando o uso de mais notas do modo. Prt alterna
movimentos ascendentes (partindo da primeira nota do modo) e descendentes (em direo
primeira nota do modo).
Na primeira frase os sopranos so acompanhados somente pelo rgo, que faz a
voz-T em posio alternada. Na segunda entram os contraltos, cuja linha segue o mesmo
padro dos sopranos, mas por movimento contrrio. Alm disto, a nota de partida f (e a
dos sopranos, si bemol). Neste momento o rgo passa a executar duas vozes-T, uma para
os sopranos e outra para os contraltos.
O uso de valores mais longos (a semnima e a semnima pontuada) no livre;
obedece a um princpio estrito ligado pontuao do texto. Onde temos dois pontos ou
vrgula, uma das slabas da palavra imediatamente precedente alongada: passa a valer o
dobro da nota breve, uma semnima. Onde temos ponto, todas as slabas da palavra
imediatamente precedente tm seu valor triplicado, passando a valer uma semnima
pontuada.

73

2.6. A msica instrumental de Prt


Conclumos, ento, este olhar sobre o canto gregoriano, que nos permitiu
compreender aspectos deste gnero musical que Arvo Prt estudou atentamente nos anos 70
antes de desenvolver sua tcnica tintinabular.
Nosso prximo passo examinar uma composio fundamental: Fr Alina, para
piano, de 1976. Esta a pea pioneira da tcnica tintinnabuli. Entretanto, uma sua
caracterstica rara entre as obras tintinabulares: sua voz-M foi composta livremente.
Normalmente Prt adota algum princpio matemtico simples que governa a melodia.
A partitura de Fr Alina ocupa apenas duas pginas, e sua linha meldica est
abaixo transcrita.

Figura 53. Linha meldica de Fr Alina


A voz T est escrita na primeira posio inferior, embora uma oitava abaixo.
Quanto a duraes esta melodia contm notas longas e breves. As breves so as
escritas em negro, e as longas so as escritas em branco, todas sem hastes. Note-se que a
construo meldica se processa pelo acrscimo, a cada compasso, de uma nota breve. No
segundo compasso da pea h uma nota breve e uma longa; no terceiro, duas breves e uma
longa; e assim por diante, at o oitavo compasso, com sete breves e uma longa; a partir do
nono o compositor retira notas breves, tendo-se seis; at o penltimo compasso em que se
tem uma apenas. No ltimo h duas, como se o processo fosse recomear com um novo
74

acrscimo de notas. Portanto o nmero de notas breves em cada compasso 1-2-3-4-5-6-76-5-4-3-2-1-2, com um crescimento at o centro e em seguida um decrscimo. Hillier
observa que esse crescimento em direo ao centro caracterstico da estrutura de vrias
obras de Prt48. E, como vimos na parte dedicada ao ritmo no canto gregoriano, as notas
longas no final das frases so tpicas deste gnero.
No diagrama abaixo tem-se uma anlise para Fr Alina, em que se procura
evidenciar a estrutura por graus conjuntos. Delimitam-se, portanto, regies em que se
encontra um campo todo analisvel por graus conjuntos, a saber: compassos 1-4, 5-8 e 911.

48

HILLIER, p.106.

75

Figura 54. Anlise da linha meldica de Fr Alina


Observamos tambm que a cada certo nmero de compassos a melodia volta a
repousar no centro do modo, si. Isto ocorre nos compassos 4, 9 e 15. Isto , considerando-se
cada um desses momentos como o fim de uma seo, tm-se sees progressivamente
maiores: 4, 5 e 6 compassos.
A introduo de cada grau da escala tambm cuidadosa. Apenas uma nota no
primeiro compasso, mais duas no segundo, mais duas no terceiro; e at o stimo compasso
a melodia se serve unicamente destas cinco notas, apresentando as duas restantes
precisamente no oitavo compasso, o central da obra (num total de 15).
No se inclui no diagrama o esqueleto dos ltimos quatro compassos por serem
essencialmente harpejos de si menor. interessante observar que realmente h uma
mudana aqui: a melodia desce para um registro mais grave que ainda no havia utilizado.
Ademais, este momento ocorre exatamente depois da ltima nota do compasso 11, na qual
76

a voz T, a voz tintinabular, faz uma exceo e sai da trade. Neste momento h no
manuscrito da partitura uma flor desenhada, conforme vemos no livro de Hillier49 e
tambm no filme de Dorian Supin.
Se termina com harpejos tridicos, esta melodia comea com movimentos por grau
conjunto das cinco primeiras notas da escala. Escala e harpejo so, como temos visto, os
elementos fundamentais da tcnica tintinabular.

2.7. Organum
No estudo da msica da Idade Mdia deparamo-nos, em seguida monodia
gregoriana, com o chamado organum. Trata-se da primeira manifestao de polifonia na
msica sacra ocidental embora haja muitas dificuldades na reconstituio dessa histria,
devido brevidade e ambigidade com as quais autores medievais descreveram prticas
contemporneas50. Como explica Richard Hoppin, os exemplos mais explcitos so poucos
e muito fragmentrios, deixando dvidas quanto aplicabilidade dos processos em
melodias mais longas e elaboradas. A compreenso dos acidentes tambm continua
confusa. Em todo caso, as informaes de que dispomos so suficientes para o caso que nos
interessa, que a relao entre a msica tintinabular de Arvo Prt com estas tcnicas
medievais.
O organum se refere tambm ao canto gregoriano. Vimos que este gnero
mondico; pensando agora em polifonia, teremos uma segunda voz, adicionada melodia
gregoriana, que apresenta algum tipo de diferena e esta diferena crescente na
cronologia da prtica musical. A cada nota da melodia original (chamada vox principalis)
atribuda tambm uma nica nota (numa linha chamada vox organalis).
O primeiro tipo de organum aquele em que, por cantarem juntos homens e
meninos, a melodia soa em oitavas diferentes devido s diferenas de registro das vozes.

49

HILLIER, p.89.

50

HOPPIN (1978), p.188.

77

Por no ser um unssono absoluto, classificado como um tipo de polifonia nos textos
sobre msica medieval e nos prprios textos medievais que procuram teorizar esta prtica51.

Figura 55. Organum paralelo em oitavas


No segundo tipo de organum passamos a ter um intervalo de quinta justa entre as
vozes. possvel tambm, havendo mais de duas vozes, uma combinao dos tipos de
organum, com oitavas e quintas. Embora seja uma real utilizao de polifonia, podemos
entender que uma nica melodia est sendo cantada com uma variao de timbre
proporcionada pela harmonizao em quintas.

Figura 56. Organum paralelo em quintas


Estes tipos de organum so chamados de organum paralelo, por as vozes se
moverem sempre paralelamente.
Existia tambm a prtica de organum em quartas. Entretanto, sua utilizao causava
um problema: quando a vox principalis trazia um si, a vox organalis posicionada abaixo
teria um f, produzindo no uma quarta, mas uma quarta aumentada, um trtono. Este
intervalo que chegou a ser chamado diabolus in musica (o diabo na msica) realmente
afeta a homogeneidade do estilo, e sem dvida incomodava os ouvidos medievais ainda

51

Como o Scholia enchiriadis e o Musica enchiriadis, fontes usadas por HOPPIN (1978) e que datam,
aproximadamente, do sculo IX.

78

mais do que pode incomodar ouvidos atuais, que em geral no tm o hbito de ouvir
organum paralelo.
Hoje teramos uma soluo simples, que a alterao do f, transformando-o em f
sustenido. Mas na poca este recurso no estava disponvel, e um no muito simples
sistema de tetracordes (que no abordaremos aqui) limitava as opes, definindo mesmo
opes do organum no-paralelo que surgiu depois.
Assim, este organum no-paralelo se desenvolveu. As vozes comeam em unssono
at atingirem o intervalo de quarta justa. No final da melodia, retornam ao unssono. Ns o
chamamos aqui de no-paralelo por no ser rigoroso como o anterior; tericos
medievais52, entretanto, o chamam de organum paralelo modificado. O nome de fato
adequado porque o paralelismo se conserva na estrutura geral. Ajustes ocorrem no comeo
e no fim, como referimos, para possibilitar os unssonos e transies a partir dele e em
direo a ele; podem ocorrer tambm no meio.

Figura 57. Organum paralelo modificado


Um tipo composto de organum paralelo modificado faz uso de quartas ou quintas
tambm no incio das frases.
A seguir, no sculo XI, se desenvolveu o organum livre. Com a nova tcnica, a
composio se tornou uma arte criativa; a polifonia, uma nova forma de arte musical53. A
escolha, como diz Hoppin, passou a integrar a prtica musical; a vox organalis passou a ser
52

Os mesmos tratados citados na nota anterior.

53

HOPPIN (1978), p.196.

79

livremente composta, ainda que houvesse regras; o mais importante que no se tinha mais
o limite de estrito paralelismo nem o paralelismo modificado que permitia ajustes de algum
modo tambm sujeitos a certas frmulas. Tratados escritos por volta de 1100 j iniciam
descries de processos em que a vox organalis passa a apresentar duas ou trs notas contra
uma nota da vox principalis.
At aqui temos, ento, tcnicas de composio54 em que a idia de nota-contra-nota
o elemento primordial. No que tange msica de Arvo Prt, este tambm o caso de
vrias de suas primeiras composies tintinabulares. Acima pudemos verificar que assim
Fr Alina. No primeiro captulo detivemo-nos na Missa syllabica, escrita inteiramente
nota-contra-nota. Enquadram-se tambm An den Wassern zu Babel sassen wir und weinten
(1976), Fratres e Cantate Domino, ambas de 1977. Algumas peas posteriores tambm
retornam a essa escrita, como a j analisada And one of the Pharisees... e sees de obras
que no so escritas inteiramente nota-contra-nota.
A tcnica tintinabular pode ser vista como uma tcnica de composio de organum.
Sabemos, por Hillier, que Prt chegou a ela estudando maneiras de combinar duas vozes.55
Trata-se de uma tcnica de organum precisa, em que para cada nota existe uma determinada
outra nota proposta pelo procedimento, em cada posio (primeira e segunda, inferior,
superior e alternante).
De acordo com a descrio da tcnica tintinabular do primeiro captulo deste
trabalho, fica muito clara nela a ausncia de paralelismos. Assim no temos organum
estrito, mas um organum paralelo modificado. Ainda que as vozes se movimentem na
mesma direo, os intervalos no so iguais.
Pensamos na voz-T como uma verso reduzida e menos ntida da voz-M. No caso
do organum, podemos pensar na vox organalis tambm como uma verso reduzida e menos
ntida da vox principalis. A vox organalis e a voz-T tm em comum o fato de, em certos
54

Dizemos composio de modo geral, j que o organum paralelo nada tinha de real composio, por ser
simplesmente um mesmo canto partindo de notas diferentes; o organum paralelo modificado passou a admitir
ajustes que tampouco se caracterizavam como composio; o organum livre, sim, por sua vez, pode ser
entendido j como composio.
55

HILLIER (2002), pp.74-75.

80

momentos, se manterem na mesma nota enquanto, respectivamente, a vox principalis e a


voz-M se movimentam em notas prximas. Estas ltimas precisam ampliar seu alcance
para que se tenha um movimento das outras duas.
Para fins de comparao, aplicamos a tcnica tintinnabuli melodia acima citada,
de modo a obtermos um organum tintinabular, como o chamaremos56. Considerando que a
melodia est no modo 4 (hipofrgio), sendo mi a sua finalis, utilizamos a trade mi-sol-si na
voz-T em primeira posio inferior.

Figura 58. Organum tintinabular na primeira posio inferior


Um organum como este, escrito em primeira posio, produz apenas trs intervalos
possveis: segundas, teras e quartas (as segundas e teras podem ser maiores ou menores).
Isto se relaciona precisamente ao organum paralelo modificado da Idade Mdia, que opera
a mesma seleo para seu vocabulrio intervalar. As nicas excees so o unssono e a
quinta, presentes na prtica medieval e ausentes da primeira posio tintinabular, como se
pode observar no exemplo de Rex caeli.
Como ilustrao da idia de que a vox organalis, assim como a voz-T tintinabular,
reproduz a melodia em intervalos menos exatos e de modo menos preciso, sendo uma sua
verso, elaboramos grficos que nos do uma idia dos contornos meldicos de cada uma
dessas linhas. Primeiramente, um grfico do organum paralelo modificado:

56

Naturalmente se trata de um neo-organum.

81

Figura 59. Rex Caeli em organum paralelo modificado.


A linha clara indica a vox principalis e a linha escura a vox organalis.
Em seguida, temos um grfico do organum tintinabular. Como esta tcnica, a rigor,
proscreve o unssono, reparemos que as linhas nunca coincidem. A voz-T, entretanto, segue
um desenho bem prximo da voz-M, sendo uma sua verso estilizada.

82

Figura 60. Rex Caeli em organum tintinabular, primeira posio inferior.


A linha clarae indica a vox principalis (voz-M)
e a linha escura a vox organalis (voz-T).
As figuras seguintes (escrita e grfico) tambm so de um organum tintinabular
composto com a mesma melodia; desta vez, porm, na posio alternada. As alternncias
fazem com que o desenho da linha da voz-T seja mais irregular, mais rabiscado.
Entretanto, em linhas gerais, ele tambm segue, sua maneira, o desenho da voz-M,
circundando-o, por assim dizer.

Figura 61. Rex Caeli em organum tintinabular, posio alternada. A linha verde indica a
vox principalis (voz-M) e a linha vermelha a vox organalis (voz-T).
83

Falamos acima a respeito do fato de tanto a voz-T tintinabular como a vox organalis
do organum paralelo modificado serem uma verso estilizada e menos ntida da voz-M e da
vox principalis, respectivamente57. Isto nos leva a entender que a voz-T e a vox organalis,
por serem dependentes da voz-M e da vox principalis, no produzem polifonia
propriamente dita. Esta ocorre quando as partes integrantes do todo so desenvolvidas igual
e independentemente, ainda que com o respeito a regras reguladoras dos resultados
verticais.
necessrio recorrer a outro conceito, o de heterofonia. Verifiquemos o que nos diz
o Grove a seu respeito:
Termo cunhado por Plato, de significado incerto; agora usado
para descrever variaes simultneas de uma nica melodia. (...)
seu significado pode ir da referncia a mnimas discrepncias na
execuo de unssonos ou oitavas (mesmo aqueles, por exemplo,
produzidos acidentalmente pelos primeiros violinos de uma
orquestra) mais complexa escrita contrapontstica.
Modernamente o termo usado com freqncia, particularmente na
etnomusicologia, para descrever variao simultnea, acidental ou
deliberada, de algo identificado como sendo uma mesma melodia.58
Trata-se precisamente do que se passa com o organum paralelo modificado e com a
tcnica tintinabular nas posies primeira e segunda. Os grficos que mostramos acima
ajudam na compreenso desta idia.
Veremos tambm que, no caso do organum paralelo modificado, ocorre um
movimento contrrio, exatamente no seu final. O uso deste recurso cresceu com o tempo.
Recorremos, aqui, a Gustave Reese:
A evidncia do uso planejado e recorrente do movimento contrrio
na prtica (...) obviamente importante, j que indica o
desenvolvimento de um distanciamento da mera heterofonia em
direo a real polifonia.59
57

No organum paralelo estrito, claro, trata-se de mais do que uma verso, por ser uma simples transposio,
completamente fiel, da voz principal.
58

Grove heterophony

59

REESE (1968), p.260.

84

J a posio alternada da tcnica tintinabular se apresenta como um caso parte.


Sua regra no regula movimentos paralelos nem contrrios, e sim a posio da voz-T na
textura: acima ou abaixo da voz-M. As vozes se cruzam permanentemente, portanto, de
nota para nota. Mesmo assim, a dependncia da voz-T em relao voz-M faz com que
continuemos a ter, neste caso, heterofonia.
2.8. A escola de Notre Dame
Nossa abordagem da msica medieval se orienta unicamente pelo propsito de
relacion-la com a msica de Arvo Prt. Assim, como j afirmamos, no temos a inteno
de apresentar a msica medieval por si; nem mesmo a fidelidade ordem cronolgica nos
preocupa, embora ela acabe por se mostrar um modo til de organizar o estudo.
Dentro desse pensamento que nos deparamos, ento, com a chamada Escola de
Notre Dame. Trata-se de msica produzida na grande igreja de Notre Dame (Nossa
Senhora) em Paris. Dois nomes se destacam nessa poca: Lonin e Protin. Falamos dos
sculos XII e XIII; Richard Hoppin afirma haver boas razes para situar a composio
desta msica entre os anos de 1160 a 122560.
Trata-se de composies polifnicas construdas sobre melodias gregorianas. So
tambm destinadas liturgia. No ocorreu, entretanto, a supresso do cantocho mondico:
alternavam-se sees polifnicas com o canto unissonal, pelo coro, das prprias melodias.
As partituras das partes polifnicas destinavam-se unicamente aos solistas que as
executavam.
2.9. Notre Dame e o ritmo em Prt
A Escola de Notre Dame nos faz prestar ateno, neste momento, aos aspectos
rtmicos (que j abordamos em relao ao canto gregoriano), pela sua introduo de msica
mensurada:
Essencialmente, a contribuio mpar da Escola de Notre Dame
consistiu na substituio do fluxo uniforme e no mensurado da
polifonia anterior (e do cantocho) por padres recorrentes de
60

HOPPIN (1978), p. 219.

85

notas longas e breves. Os diferentes padres dessas notas so


conhecidos como modos rtmicos, e so identificados pelo que
agora chamamos de notao modal.61
A mencionada notao modal no nos preocupar aqui, assim como no nos
preocupa a notao tradicional do canto gregoriano. Interessam-nos, sim, os modos
rtmicos. Mais uma vez temos a palavra modo, agora aplicada a um elemento musical que
no a altura. J tnhamos os modos tintinabulares da voz-M e os modos eclesisticos.
Em nmero de seis, tais modos rtmicos tm sua origem nos ps mtricos da poesia
clssica62. Assim como os modos eclesisticos de alturas, possuem nomes prprios, mas
muito comum que sejam citados pelo nmero63.

Figura 62. Modos rtmicos medievais


impossvel deixar de perceber que as notas longas valem ora duas breves (nos
modos 1 e 2), ora trs breves (nos modos 3 e 4). Esta prtica surgiu por causa do uso
61

HOPPIN (1978), p. 221.

62

HOPPIN (1978), p. 221.

63

Os modos esto aqui relacionados com o substantivo que os designa. Usaremos tambm seus adjetivos:
trocaico (troqueu), imbico (iambo), dactlico (dctilo), espondaico (espondeu) e tribrquico (trbraco).

86

simultneo de diferentes modos rtmicos, levando as unidades de trs condio de base


de todos os ritmos modais64. Os ps gregos, originalmente, mantinham a proporo de
duas breves para uma longa, sem a idia de aumentar uma figura em metade do seu valor
(funo do ponto na notao moderna que usamos).
O diagrama a seguinte nos permite compreender os ps gregos em sua alternncia
de longas e breves. As longas so representadas por um trao como um hfen, e as breves
por uma meia-lua.

Figura 63. Ps rtmicos gregos


Passamos agora identificao dos modos rtmicos descritos na primeira tabela em
uma composio da Escola de Notre Dame: Sederunt, de Protin.
A voz inferior, chamada tenor, nos faz ouvir as notas de uma melodia gregoriana
muito esticadas no tempo. De fato, apenas a primeira palavra do texto recebe este
tratamento, proporcionando uma obra polifnica de longa durao. Em seguida, se d
seqncia ao canto da melodia mondica.
As outras trs vozes (totalizando quatro, tendo-se, portanto, um organum
quadruplum), so inteiramente compostas. Vejamos no incio de Sederunt o uso exclusivo
do terceiro modo rtmico (dctilo) em todas as vozes (no consideramos as respiraes dos
compassos 5 e 9):

64

HOPPIN (1978), p. 223.

87

Figura 64. Incio de Sederunt de Protin


Um pouco mais adiante (compassos 13-21) ocorre o concurso de alguns novos
modos. muito clara a presena dos modos rtmicos 1 e 5, conforme anotada abaixo:

Figura 65. Compassos 13-21 de Sederunt de Protin


Neste segundo trecho, entretanto, ocorrem algumas figuras um pouco diferentes dos
modos rtmicos em estado bruto. No stimo compasso da terceira voz a seqncia de trs
colcheias e uma semnima pontuada pode ser explicada como modo rtmico 5 (espondeu),
sendo a primeira das duas longas dividida em trs, formando um ritmo tribrquico, ou
modo rtmico 6. Essa diviso em valores menores chamada de dissoluo pelos
estudiosos da mtrica, segundo Olivier Messiaen65.
65

MESSIAEN (1994, v.1 p.81).

88

Se a primeira voz constri sua melodia inteiramente sobre o modo rtmico 1, a


segunda e a terceira o fazem sobre o modo rtmico 5; entretanto, este no usado sempre
em sua forma pura, com duas longas. J vimos que no stimo compasso a primeira foi
subdividida em um trbraco. Porm, ainda mais consistentemente, ocorre a subdiviso da
segunda nota longa em uma longa e uma breve, fazendo dela um troqueu, modo 1. Assim, a
segunda e a terceira vozes alternam seu modo rtmico 1 entre a forma pura e a forma
subdividida.
Contudo, poderamos interpretar de outra forma: esta figura de trs impulsos so
dois troqueus, em que os valores do primeiro coagularam66 numa nica nota longa,
pontuada, que soma em si o valor da longa e da breve.67
Identificamos, portanto, os modos 1, 3, 5 e 6. O quarto modo (anapesto) se
assemelha ao modo 3, se analisarmos estes modos divididos em metades: se o modo 3 um
A-B, temos no modo 4 um B-A. J o modo rtmico 2 (iambo) no est presente na
composio a no ser em dois momentos muito breves e isolados, ainda que cadenciais,
numa nica voz.
Na obra de Arvo Prt os modos rtmicos se manifestam de maneira clara, embora o
seu uso no seja caracterstico de todas as suas obras. Referimo-nos, importante dizer, a
estes modos rtmicos que acabamos de tomar emprestados Idade Mdia (e poesia grega)
para estas anlises. Prt tem sua prpria maneira de trabalhar as alternncias entre breves e
longas, o que pode variar em funo da presena ou ausncia de um texto.
Comearemos nossa anlise do ritmo em Arvo Prt por uma das primeiras
composies tintinabulares: Variationen zur Gesundung von Arinuschka, para piano solo.
Foi composta em 1977.

66

Adotamos esta designao (coagular) utilizada por Messiaen em seu tratado (MESSIAEN, 1994) para nos
referirmos soma de duraes num nico impulso.
67

Lembremo-nos de que estas interpretaes desse ritmo (semnima pontuada, semnima, colcheia) se devem
ao fato de ele no fazer parte do rol de modos rtmicos.

89

Figura 66. Incio de Variationen zur Gesundung von Arinuschka


Estes quatro compassos (com anacruse) acima so o incio da pea, o que
poderamos chamar de seu tema, embora esta indicao no aparea na partitura. Na
edio impressa aparece somente o nmero 1; o que seria a primeira variao traz o nmero
2, e assim sucessivamente at o nmero 6.
A cada compasso verificamos a presena de uma nota longa e duas breves, um ritmo
dactlico. A nota longa ascende do l no compasso 1 at o l uma oitava acima, no
compasso 8; em seguida desce de volta ao l original, no compasso 16. As notas longas so
uma voz M. A voz T, utilizada na primeira posio inferior e na primeira posio superior,
esto presentes nas notas breves: primeiro a superior, depois a inferior. Quando a escala se
torna descendente, aparece primeiro a inferior, e depois a superior. Este o tema da
composio: uma escala elia, apresentada em suas formas ascendente e descendente.
As notas de voz-T aparecem sempre antes da sua respectiva nota de voz-M. Este
detalhe, alm da linha de fraseado anotada na partitura, nos coloca um tema composto
sempre de uma anacruse de duas notas e um acento de uma nota.

Figura 67. Ritmo do incio de Variationen zur Gesundung von Arinuschka

90

Trata-se, pois, de um ritmo masculino, por haver somente uma nota no acento, sem
desinncias que o sigam (as notas depois dos acentos sempre j fazem parte da anacruse
neste tema).
A busca por uma organizao rtmico-arquitetnica maior nos coloca algumas
possibilidades. A mais evidente aquela colocada, novamente, simultaneamente pelo
material musical e pela ligadura escrita na partitura. Alm das ligaduras que conectam as
anacruses aos acentos, temos tambm duas grandes ligaduras, uma para a seo ascendente
do tema, outra para a seo descendente. Ambas so de igual importncia, igualmente
acentuadas, igualmente constitudas grupos ritmicamente fortes.

Figura 68. Acento das metades do tema de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
A partitura no indica mudana de dinmica na escala descendente (continua p at a
quarta seo da obra), razo pela qual preferimos entender cada uma dessas metades como
um grupo forte por seu prprio direito. So ambas thesis, no havendo arsis; esta surge
numa anlise de um nvel arquitetnico mais detalhado, examinado no prximo exemplo. O
t indica thesis, e o a indica arsis.

Figura 69. Thesis e arsis na escala do tema


de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
Consideramos thesis aqueles em que a nota da voz-M pertence trade l-do-mi; as
notas restantes, arsis. Na escala ascendente temos a organizao 2-2-3, finalizando com um
acento: ritmo masculino. Na escala descendente, 3-2-2, finalizando novamente com um
acento.
91

Um olhar sobre as duraes de cada um desses grupos mostra que a nota de chegada
(l agudo e, depois, o l grave) se situa precisamente no grupo de durao mais curta.68

Figura 70. Durao dos grupos rtmicos das notas tridicas


em Variationen zur Gesundung von Arinuschka
A colocao de uma nota to importante num grupo de durao to pequena, ainda
que thesis, sugere continuidade da msica. Tanto que nas sees de 1, 2, 4 e 5 o mesmo se
verifica, enquanto na ltima seo acrescentada uma pequena coda que, inclusive por seu
ritmo, no deixa dvidas quanto ao trmino da composio (a seo 3 apresenta uma
semiconcluso). Ns a veremos oportunamente.
A segunda seo das Variationen reproduz o tema exatamente como apresentado na
primeira seo. Desta vez uma nova voz introduzida na textura precisamente no segundo
tempo da nota longa do tema. Estas notas foram escritas para registros do instrumento
diferentes daquele do tema, de modo que sua cor instrumental distinta, e o ritmo dactlico
permanece claro. O diagrama a seguir apresenta a segunda seo. As notas longas da mo
esquerda esto ligadas ao tema, como se v:

68

Para uma compreenso mais clara, o exemplo mostra as duraes com um oitavo do seu valor real. A
alternncia de semnimas e semnimas pontuadas (e colcheia) mais clara aos olhos de hoje do que a de
breves e breves pontuadas (e semibreve).

92

Figura 71. Segunda seo de Variationen zur Gesundung von Arinuschka


O recurso aqui utilizado o da aumentao, isto : multiplicao das duraes. A
linha da mo esquerda quatro vezes mais lenta que a da mo direita. Ela se compe de
quatro vezes uma anacruse de duas notas precedendo um acento, ao passo em que a mo
direita o faz dezesseis vezes. O ritmo desta nova voz tambm o dctilo, o nico presente
at este momento da pea.
Globalmente existe um fluxo de semnimas, como demonstrado no prximo
diagrama. Como a mo esquerda traz em seu modo rtmico individual uma nota longa, esse
fluxo de semnimas ocasionalmente interrompido, produzindo uma mnima. Esta nota
longa, ao mesmo tempo em que representa um repouso, causa uma expectativa para o que
se segue, e a faz com que a prxima nota da voz-M seja acentuada, depois da anacruse.
Por isto torna-se possvel realizar esta anlise da segunda seo.

93

Figura 72. Anlise rtmica da segunda seo


de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
Vejamos agora a terceira seo. Mais uma vez, a mo direita toca o tema da primeira
seo sem nenhuma alterao.

Figura 73. Incio da terceira seo


de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
Vemos na mo esquerda a introduo de um anfbraco: eis o nome, na mtrica da
poesia grega, dado a esta figura composta de uma breve, uma longa e uma breve. Prt
superpe o anfbraco de maneira deslocada em relao ao dctilo da mo direita: o primeiro
impulso daquele sincrnico ao terceiro impulso deste. A mo direita comea com uma
anacruse para o dctilo, enquanto a esquerda ataca diretamente o anfbraco. As barras de
compasso no coincidentes explicitam esta organizao, e descartam, absolutamente, uma
leitura feita desta forma:
94

Figura 74. Leitura rtmica incorreta da terceira seo


de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
A forma correta a seguinte:

Figura 75. Leitura rtmica correta da terceira seo


de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
No que se refere construo da pea quanto s alturas, torna-se til observarmos o
penltimo exemplo (da rtmica incorreta). Cada grupo de trs notas da mo direita
executado tambm pela esquerda, embora permutado, na ordem 3-1-2. Entretanto, um olhar
mais amplo sobre esta seo revela sua natureza de cnon retrogradado: as notas de uma
mo seguem precisamente a forma retrogradada nas notas da outra mo (sem levar em
conta, naturalmente, a pequena coda acrescida por Prt). A idia de cnon se aplica somente
s notas: cada mo conserva seu modo rtmico.

95

Figura 76. Construo da terceira seo de


Variationen zur Gesundung von Arinuschka como cnon retrogradado
Como havamos afirmado anteriormente, esta coda uma semiconcluso. Sendo a
obra escrita em seis sees, esta a concluso da sua primeira metade. A quarta seo inicia
um novo momento da obra. Prt utiliza agora o modo jnio, igual escala maior da msica
tonal (at a terceira seo havia usado o modo elio, igual escala menor natural). O tema
exposto novamente, com somente duas diferenas: o novo modo e a indicao de
andamento Pi mosso, apropriada para a natureza mais luminosa e aberta desta segunda
parte.
A quinta seo das Variationen idntica segunda seo, mas agora tambm no
modo jnio. Alm disto, as notas breves do dctilo da mo direita esto marcadas com
staccato, e a nota longa com um trao de tenuto na segunda seo est indicado legato.
A sexta e ltima seo da composio um cnon oitava (diferentemente da
terceira seo, no retrogradado) em que ambas as vozes usam o mesmo ritmo dactlico
com defasagem de duas breves. A estas duas vozes o compositor acrescentou uma terceira,
em semibreves, cujo ataque ocorre na segunda breve do dctilo da mo direita, ou na
segunda parte da nota longa do dctilo da mo esquerda. Assim, este novo baixo, que faz
ouvir simplesmente a escala de l jnio ascendente e depois descendente, o tema da obra,
faz sua thesis em momentos de arsis das outras vozes. Tal o contraponto rtmico desta
seo.

96

Figura 77. Incio da sexta seo de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
Se retirarmos as duas vozes-T, restam somente as notas das escalas ascendente e
descendente. Encontramos em sua apario um anfbraco, modo que j havia sido utilizado
na seo 3. Este modo, surgido de maneira subliminar, composto exclusivamente de
notas tticas69 de cada voz.

Figura 78. Anfbraco subliminar na sexta seo


de Variationen zur Gesundung von Arinuschka
Esta anlise que apresentamos das Variationen zur Gesundung von Arinuschka so
um exemplo do uso de modos rtmicos na obra de Arvo Prt. O propsito , tambm,
detalhar mais uma de suas composies, neste caso a ensejo do vocabulrio rtmico.
Colocamos agora alguns exemplos sucintos de modos rtmicos em outras composies.

69

Ttico o adjetivo relacionado a thesis, como rsico o palavra arsis.

97

Figura 79. Entrada de cada parte instrumental


de Cantus in memoriam Benjamin Britten
O exemplo acima mostra o uso do troqueu em Cantus in memoriam Benjamin
Britten (1980), para orquestra de cordas e sino. Quanto mais graves os instrumentos,
maiores so as duraes de suas notas. Nos primeiros violinos, a nota longa vale duas
semnimas, e a breve uma semnima; nos contrabaixos, a nota longa vale 32 semnimas, e a
nota breve 16. Assim foi escrita a obra inteira, e o material meldico tambm o mesmo.
Trata-se, portanto, de um cnon mensurado, em que as vozes apresentam a mesma msica
em tempos diferentes. Esta tcnica nos leva de volta msica antiga, por ter sido de uso de
alguns compositores no incio da Renascena como Josquin e Ockeghem.
O segundo movimento, Silentium, da obra Tabula Rasa, tambm um cnon
mensurado com uso do ritmo trocaico. As vozes aqui entram juntas, diferentemente de
Cantus, na qual os instrumentos mais agudos entram primeiro (vide exemplo anterior). Na
parte do primeiro violino solo a nota longa do troqueu dissolvida em dois impulsos, de
maneira que podemos identific-lo ao modo rtmico medieval 3 (letra A). Basta aplicar uma
ligadura para transform-lo de volta em troqueu (letra B).

98

Figura 80. Terceiro modo rtmico medieval e troqueu em Silentium de Tabula Rasa
Estes modos rtmicos esto presentes nas composies instrumentais. Nas obras
vocais, como vimos, Prt toma o texto como ponto de partida para deduo de todos os
parmetros composicionais. Portanto, comum que os acentos, notas longas ou ambos se
encontrem nas slabas tnicas, ou em palavras de algum modo mais importantes dentro de
uma determinada frase. As tcnicas variam conforme a obra e o idioma do texto.
Uma terceira pea de Arvo Prt foi composta de acordo com os princpios de um
cnon mensurado, e desta vez se trata de uma pea vocal. A sexta das Sieben MagnificatAntiphonen70, intitulada O Knig aller Vlker [ Rei de todos os povos] traz, na linha dos
sopranos (divisi), o texto musicado num fluxo de notas longas e breves de acordo com a
slaba tnica das palavras do texto alemo. Ao mesmo tempo, as vozes masculinas cantam a
mesma msica duas vezes mais rapidamente. Cantam-na, portanto, duas vezes. Os sopranos
alternam entre mnimas e semibreves, as vozes masculinas entre semnimas e mnimas, e os
contraltos somente pontuam a obra cantando o texto em semnimas repetidas. Esto
presentes, portanto trs duraes, ainda que como uma decorrncia de uma composio
estruturada unicamente em notas longas e notas breves.

70

Significa sete antfonas do Magnificat. O Magnificat um cntico recitado ou cantado no ofcio das
Vsperas, emoldurado por um breve texto chamado antfona. A antfona varia conforme o dia litrgico.
Nesta composio, escrita em 1988, Prt se serviu do texto alemo das antfonas para o Magnificat nos sete
dias que antecedem o Natal, isto , de 17 a 23 de Dezembro (as Vsperas do dia 24 j so as Primeiras
Vsperas do Natal), escrevendo uma pea para cada uma delas. So chamadas de antfonas do O, por
comearem, todas, com vocativos dirigidos a Cristo: Sabedoria; Adonai; Rebento de Isaas; Chave
de David; Estrela da Manh; Rei de Todos os Povos; Emanuel.

99

Entre os demais movimentos das Antiphonen, os de nmero 1, 2, 4 fazem uso de


apenas duas duraes: nota longa (semibreve) e nota breve (mnima). A quinta acrescenta
um terceiro valor, a semibreve pontuada, e a terceira por duas vezes usa uma mnima
pontuada seguida de semnima (sem as quais tambm constaria somente de longas e
breves). A stima apresenta seqncias de mnimas com uma defasagem de semnima:

Figura 81. Incio de O Immanuel das Sieben Magnificat Antiphonen


Em Passio Domini Nostri Jesu Christi Secundum Joannem (Paixo de Nosso
Senhor Jesus Cristo Segundo Joo, concluda em 198271), Prt criou uma escala rtmica de
trs valores: breve, mdio e longo. A mtrica grega lida com dois valores e, mesmo na
msica medieval, a presena de trs duraes decorre de uma adaptao de dois valores
bsicos. Prt, em Passio, realmente usa trs duraes. Usa-as para estruturar ritmicamente a
msica escrita para as falas de cada personagem da histria. Um conjunto de regras governa
o uso desses valores, atribuindo s slabas uma durao breve, mdia ou longa conforme
sua tonicidade e posio na frase. A tabela abaixo informa os valores usados. Anotamos

71

Esta obra dura cerca de 70 minutos. Foi composta para quarteto vocal solista, violino, obo, violoncelo e
fagote (representando o Evangelista So Joo, que narra a histria), tenor (Pilatos), baixo (Jesus), coro (a
turba e outros personagens como o apstolo So Pedro e o sumo sacerdote) e rgo.

100

entre colchetes o nmero de semnimas equivalente a cada uma delas, para uma
comparao mais fcil das propores.

Personagem

Nota breve

Nota mdia

Nota longa

Evangelista

Semnima

Mnima

Mnima pontuada [3]

[1]

[2]

Turba e Pilatos

Mnima [2]

Mnima pontuada [3]

Semibreve pontuada
[6]

Jesus Cristo

Mnima pontuada [3]

Semibreve

Breve

[4]

[8]

O vocabulrio rtmico de Arvo Prt no se esgota com o que apresentamos at aqui.


Certos ritmos usados por este compositor sero abordados no ensejo da discusso das
conexes entre a sua obra e o minimalismo, no prximo captulo.
2.10. Notre Dame e as notas longas
Depois de termos enveredado pela linguagem rtmica de Arvo Prt, voltamos
Escola de Notre Dame, que foi nosso pretexto para a abordagem daquele assunto.
Havamos visto que uma voz chamada tenor entoa notas de durao muito longa,
pertencentes a uma pea de cantocho, enquanto as vozes superiores realizam desenhos
meldicos sobre os modos rtmicos mensurados.
Naturalmente existe, de uma nota a outra do cantocho, um encaminhamento
meldico que nos soa claro quando ouvimos uma melodia. Entretanto, este recurso de fazer
cada uma dessas notas soar com durao muito longa mitiga esta sensao de
direcionalidade, e o que passamos a ouvir um bordo, palavra que designa justamente um
baixo sustentado sobre o qual se desenvolvem linhas meldicas. O bordo caracterstico
101

de certas msicas orientais, notadamente da msica indiana, na qual o instrumento chamado


tanpura se encarrega de tocar, durante uma pea inteira, somente duas notas, que podem ser
a tnica e sua quinta ou a mesma tnica e sua quarta, dependendo do raga em que a
msica se desenvolve.
O bordo uma caracterstica plenamente no-tonal. Compreendemos aqui a
palavra tonal no sentido do sistema tonal de funes harmnicas que conhecemos no
Ocidente: tnica, dominante, subdominante, processos modulatrios especficos. O bordo
confere msica um estado de imobilidade harmnica inadmissvel do ponto de vista tonal.
Este recurso usado por Prt em diversas obras. Sua presena especialmente
marcante em Fratres, de 1977, escrita originalmente para orquestra de cordas com pequena
percusso72 (gran cassa e clave). Parte dos violoncelos e dos contrabaixos faz soar a quinta
l-mi durante a composio inteira. Nas vozes superiores, evolues meldicas se
desenham sobre um centro que desce progressivamente at o fim da obra. A percusso
pontua o espao entre o fim de cada seo e o incio de uma nova, com uma figura rtmica
constante: a mesma dos dois primeiros compassos da obra, da qual reproduzimos aqui o
incio.

72

Numerosas verses foram publicadas e gravadas nos anos subseqentes: violino e piano, violoncelo e
piano, violino com cordas e percusso, trombone com cordas e percusso, quatro violoncelos (ou mltiplos de
quatro), quarteto de cordas, octeto de sopros etc.

102

Figura 82. Incio de Fratres


Em Fratres o bordo semelhante ao usado na msica indiana, constante de duas
notas. Assim interpretamos esta textura: no baixo, a dade bsica, isto , duas notas; mais
acima, nos segundos violinos, a voz-T, constante de trs notas, um pouco alm da dade,
mas ainda uma verso estilizada a melodia; mais acima, a voz-M, a melodia que faz uso das
sete notas da escala (aqui o sete atingido gradualmente, comeando das trs notas do
terceiro compasso, passando pelas cinco do quarto compasso at chegar nas sete do quinto
compasso), colorida harmonicamente por um segundo grupo dos primeiros violinos que
executa a melodia uma dcima abaixo. Temos, portanto, um edifcio construdo com
elementos progressivamente mais ntidos da escala, principiando de suas fundaes at
chegar aos pontos mais elevados.

103

Outras composies de Prt fazem uso de bordes, embora no numa obra inteira
como acontece em Fratres. Na Ode III de Triodion, para coro a cappella, estando a linha
dos baixos dividida em trs, os terceiros baixos sustentam a mesma nota por 37 compassos
em 3/2, sendo 66 mnimas por minuto.
No Credo da Missa Syllabica Prt utiliza alguns pontos de bordo na parte de pedal
do rgo, de modo a conferir variedade de timbre e textura a uma pea de longo texto em
prosa e andamento moderadamente lento.
2.11. Hoqueto
Segundo Gustave Reese, existem duas interpretaes etimolgicas para a palavra
hoqueto. A primeira que se origina da palavra rabe qt, que significa ritmos. Outra
possibilidade a de que venha da palavra oket ou hoquet, por sua vez de hiccough, que
significa soluo, em ingls.73
Musicalmente se trata de uma tcnica de truncamento, em que uma voz canta
enquanto a outra permanece silenciosa74, caracterstica da polifonia do sculo XIII.

73

REESE (1968), p. 321.

74

HOPPIN (1978), p.344.

104

Figura 83. Exemplos de hoqueto medieval


No exemplo acima, na letra A, esto descritos padres de hoqueto75. Foi aqui
acrescentada uma terceira linha que mostra o resultado que se ouve na juno das duas
vozes. Na letra B temos o trecho de uma composio francesa do sculo XIII76. As trs
vozes superiores fazem parte da pea, e a quarta foi aqui acrescida, como a terceira linha da
letra A, para mostrar a melodia resultante das duas vozes superiores.
Richard Hoppin elenca o hoqueto entre formas e recursos composicionais
menores da msica do sculo XIII em seu livro sobre msica medieval, porque ocorrem

75

SCHNEIDER apud REESE (1968), p.321.

76

Dos Cent motets du XIIIe sicle [Cem motetos do sculo XIII], em trs volumes, organizados por P. Aubry e
publicados em 1908, apud HOPPIN (1978), p.345.

105

num nmero relativamente pequeno de peas e raramente formam a base para uma
composio inteira.77
Arvo Prt no utiliza o hoqueto da mesma maneira que os compositores de polifonia
do sculo XIII. Entretanto, certos trechos de suas obras, ou mesmo obras inteiras, fazem o
uso de alternncia de vozes que realizam uma nica linha, o que configura verdadeiramente
uma espcie de hoqueto. Trata-se, de certa forma, de uma tcnica de orquestrao.
Em Tribute to Caesar, as palavras de Jesus que ordenam dar a Csar o que de
Csar so entregues aos baixos, como as outras falas de Cristo. Entretanto, nesta frase
particular, alternam-se notas solistas dos baixos com notas harmonizadas pelas vozes
femininas em voz-T. Assim como ocorre no hoqueto, sopranos e contraltos no chegam a
cantar o texto, mas apenas fragmentos.

Exemplo 84. Hoqueto em Tribute to Caesar


Em I am the true vine [Eu sou a videira verdadeira], de 1996, nenhuma voz tem o
texto completo, ou sequer partes do texto completo. A alternncia de vozes constante, e o
coro usado como um nico instrumento.
No hoqueto medieval, como possvel ver nos exemplos dados, existe a
possibilidade de orquestrar as vozes envolvidas para uma nica voz. No hoqueto de
77

HOPPIN (1978), p.344.

106

Prt isto no acontece, pela diferena de registro das vozes. Observemos os oito primeiros
compassos de I am the true vine. Primeiro a partitura completa:

Figura 85. Incio de I am the true vine


E, no exemplo seguinte, uma reduo para duas linhas, que podemos tocar ao piano
ou outro instrumento de teclado:

Figura 86. Incio de I am the true vine reduzido para duas pautas
No podemos deixar de repetir a data de composio desta obra: 1996. Este uso do
instrumento coral no est presente nas primeiras obras tintinabulares, sendo uma
caracterstica nova na obra de Prt, num contexto em que a tcnica tintinabular continua
sendo usada. Eis uma prova de que, apesar do rigor e simplicidade buscados pelo
compositor, sua msica continuou a mudar e introduzir novidades.
No segundo movimento de Tabula Rasa Prt foi obrigado a utilizar um artifcio
parecido com o hoqueto para manter a seqncia da idia musical. Novamente trata-se de
107

orquestrao, aqui j sem aspas. Por serem necessrias notas que os violoncelos no
alcanam no grave, a linha passa momentaneamente para os contrabaixos.
O hoqueto, em Prt, surge portanto de uma necessidade de instrumentao. Nas
obras vocais ele at apresenta um parentesco um pouco mais prximo com o hoqueto
medieval; mas fica clara a diferena de inteno e realizao entre as tcnicas.
2.12. Liturgia
A msica medieval tambm consta de gneros profanos. Entretanto, grande parte do
seu estudo se concentra na msica escrita para a Igreja, pois nela que ocorreram certos
desenvolvimentos importantes. Alm disto, a Igreja era o centro da vida da poca, inclusive
da vida cultural.
No universo da msica religiosa catlica, tanto na Idade Mdia como depois,
existem basicamente duas divises: msica litrgica e msica religiosa. Este segundo termo
um nome genrico para a msica que no se utiliza na liturgia, isto , nas Missas ou nos
Ofcios. Ambos os tipos esto presentes na msica medieval e tambm na msica de Arvo
Prt.
Quase todas as obras de Arvo Prt compostas a partir de 1976 so de cunho
religioso. Es sang vor langen Jahren, de 1984, para contralto, violino e viola, usa um
poema no-religioso, mas, como aponta Paul Hillier, em sua fuso de amor humano e
pureza espiritual, as palavras esto longe de ser mundanas78. Trata da nica exceo aos
textos religiosos at este momento.
As obras de Prt compostas sobre textos litrgicos so todas adequadas para os
servios litrgicos de que fazem parte. Suas duas missas, a Missa Syllabica e a Berliner
Messe, apesar de seus estilos diferentes, so ambas apropriadas para uso na Missa catlica.
A Berliner Messe foi escrita pelo compositor por encomenda do 90. Deutsche
Katholikentage79, realizado em Berlim em 1990. Alm das partes ordinrias da Missa, esta
obra inclui a seqncia de Pentecostes (Veni Sancte Spiritus) e o Alleluia prprio desta data
78
79

HILLIER (2002), p.164.


90os dias catlicos alemes, evento catlico na Alemanha.

108

litrgica. As Sieben Magnificat Antiphonen tambm so adequadas para uso nas Vsperas
da semana que antecede o Natal, desde que o Magnificat seja cantado num tom salmdico
apropriado. Existe mesmo um Magnificat de Prt, composto em 1989.
O julgamento da adequao de uma msica liturgia no necessariamente passa por
critrios tcnicos. A durao da obra importante neste caso, porque, se excessivamente
longa, interfere no significado e na compreenso da liturgia pelos presentes. Nenhuma das
composies litrgicas de Prt se excede em durao; isto muito claro na Missa Syllabica,
em que cada nota atribuda a uma slaba e a msica usa apenas o tempo necessrio para
expor o texto. Mesmo na Berliner Messe, mais expansiva, no h longas introdues
instrumentais nem outros trechos sem canto muito substanciosos. Em certos casos, o que
aumenta a durao da msica o tempo lento, o que trabalha mesmo a favor da atmosfera
de contemplao do sagrado que deve existir na msica litrgica. Veni Sancte Spiritus,
seqncia que faz parte da Missa de Pentecostes, se desenvolve numa atmosfera que
possibilita aos fiis a meditao do mistrio do Esprito Santo e os prepara para a solene
proclamao do Evangelho deste dia. O Credo da Missa Syllabica, por sua vez, cantado
num tempo quase lento, no obstante seu texto ser longo; este tempo propicia a
compreenso das palavras que expressam a f catlica e evitam a sua recitao
excessivamente rpida, sublinhando a importncia deste momento da Liturgia.
A fidelidade de Prt aos textos e, como j vimos, sua idia de permitir que os
textos escrevam a msica, o leva a no usar repeties de palavras nem de frases em suas
composies. Embora este recurso no seja proibido nem inadequado na msica admitida
liturgia catlica, chegou a ser objeto de abuso, especialmente em composies de influncia
operstica no sculo XIX, ocasionando uma violentao dos textos de modo a faz-los
adaptar-se msica desejada. No documento Tra le sollecitudini, de 1903, o papa So Pio
X diz:
Entre os vrios gneros de msica moderna, o que parece menos
adequado para acompanhar as funes do culto o estilo teatral,
que no sculo passado esteve muito em voga, particularmente na
Itlia. Por sua prpria natureza, este gnero apresenta a mxima

109

oposio ao canto gregoriano e polifonia clssica, e, portanto, s


leis mais importantes de toda a boa msica sacra.80
Por se tratar de um documento eclesistico, e no de um texto terico sobre msica,
necessrio compreender melhor o sentido de algumas expresses que podem ser mal
compreendidas. Com polifonia clssica So Pio X se refere polifonia renascentista, e
no ao perodo clssico de Haydn, Mozart e Beethoven. O adjetivo clssico se justifica
pela posio privilegiada que tal msica (a polifonia renascentista) tem na msica litrgica
catlica. E, mais do que isso, polifonia clssica tambm pode se aplicar msica
polifnica escrita por novos compositores que sigam, de alguma maneira, a tradio
musical catlica. A msica nova admitida por todos os documentos papais sobre msica
litrgica, a comear pelo mesmo documento de So Pio X:
(...) a msica mais moderna admitida na Igreja, desde que
oferea composies de tal bondade, seriedade e gravidade, que de
modo nenhum sejam indignas das funes litrgicas.81
Nunca demais ressaltar que tais orientaes se referem msica litrgica. Sendo a
liturgia catlica cuidadosa e estritamente regulada e disposta pelo bispo de Roma, o papa,
natural que a msica, sua parte integrante (e no mero adorno) tambm o seja. Esta viso
musical partilhada por Olivier Messiaen, notrio catlico e grande explorador de recursos
musicais como ritmos gregos, hindus, cantos de pssaros, serialismos e outros. Ao escrever
sobre a msica litrgica, estas so suas palavras: no h nenhuma [msica litrgica] a no
ser uma: o cantocho82.
A Igreja no defende a exclusividade do canto gregoriano, mas o coloca em
primeiro lugar na msica litrgica. Falamos, aqui, do seu ensinamento e da sua
determinao para o culto catlico, no da prtica geral, que com enorme freqncia
desobedece frontalmente as leis litrgicas.
A msica de Arvo Prt composta sobre textos litrgicos se coaduna, de maneira
natural, s leis da liturgia catlica, ainda que o compositor seja fiel da Igreja Ortodoxa
80

So Pio X Tra le sollecitudini, 6 http://www.meloteca.com/magisterio-tls.htm

81

SO PIO X Tra le sollecitudini, 5 http://www.meloteca.com/magisterio-tls.htm

82

MESSIAEN (1994, v.IV), p.67.

110

Russa. As diferenas de rito, entretanto, no se sobrepem a certas leis gerais do gnero, o


que torna possvel esta catolicidade da msica do estoniano.
A enorme importncia da espiritualidade na msica e na vida de Arvo Prt torna
surpreendente a discrio com que responde a uma pergunta de Jamie McCarthy:
Jamie McCarthy: Como sente que sua religio ortodoxa russa tem
influenciado sua msica?
Arvo Prt: A religio influencia tudo. No s a msica, mas tudo.83

83

McCARTHY (1989), p.132.

111

Captulo 3
Prt e o Minimalismo

3.1. Introduo
No captulo anterior, o segundo deste trabalho, compreendemos as relaes entre a
msica de Arvo Prt e a msica medieval. Iniciamos agora um terceiro captulo, no qual
nos dedicamos a estabelecer conexes entre a msica do compositor estoniano e a msica
minimalista. Entre as tarefas indispensveis para tal estudo est a prpria definio de
minimalismo musical.
O vnculo da obra de Arvo Prt com a msica minimalista se estabelece de maneira
diferente daquele que mantm com a msica medieval. Esta foi diretamente estudada por
Prt. O compositor chegou a interromper sua atividade criativa para tal estudo. Numerosos
cadernos foram preenchidos nesse tempo.
Prt no estudou a msica minimalista. Entretanto, na msica que passou a escrever
a partir de 1977, ele lana mo de tcnicas composicionais que o aproximam muito do
minimalismo. No poucas fontes o incluem no chamado holy minimalism (minimalismo
sacro), na companhia de compositores como o britnico sir John Tavener, o polons
Henryk Grecki e o georgiano Giya Kancheli.
compreenso dessas tcnicas composicionais que dedicamos este terceiro
captulo.
O ttulo dado a este novo captulo do trabalho simplifica, tanto quanto possvel, o
seu objeto de estudo. Assim, no poderia deixar de acontecer que ele apenas o descrevesse,
sem que nada dissesse de mais informativo.
Apresenta-se, logo de incio, a necessidade de algumas definies. Entre elas, a
prpria definio do minimalismo musical. Embora j tenhamos, neste momento, algumas
dcadas de conhecimento da msica minimalista, dos compositores que se tornaram mais
clebres e de algumas caractersticas gerais desta corrente, ainda ocorrem alguns debates.
113

Entretanto, no propsito deste trabalho apresentar concluses neste sentido, o que


possivelmente poderamos tolerar no caso de se estabelecer alguma relao com a obra de
Prt.
Por outro lado, a associao de Prt com o minimalismo se processa de maneira
diferente daquela que caracteriza seu contato com a msica medieval. Como vimos no
captulo anterior, o compositor foi em busca do canto gregoriano; estudou as peas deste
repertrio e exercitou a composio de monodias sob seus modelos. Mais tarde, estudou
tambm a polifonia e msica profana da Idade Mdia e tambm do Renascimento.
O vnculo de Prt com o minimalismo , sobretudo, apontado por outros msicos,
crticos, ouvintes. Esta filiao no parece preocupar muito o compositor, ao menos a julgar
por eventuais declaraes dadas em entrevistas. certo que ele conheceu, j depois de
formulada a tcnica tintinabular e iniciada a nova fase, a chamada msica minimalista cujos
principais compositores citados costumam ser Steve Reich (1936), Philip Glass (1937),
Terry Riley (1935) e LaMonte Young (1935).
Naturalmente, ele nunca pertenceu a esta cena particular, pelo simples motivo da
geografia: sendo os quatro compositores mencionados todos americanos (e muitos dos
outros minimalistas tambm), Arvo Prt, nativo da Europa Oriental vivendo na Alemanha,
habitava uma parte do mundo absolutamente outra.
H tambm razes cronolgicas; estas, porm, examinaremos mais tarde.
No se deve desprezar ainda tambm o fato de que mesmo a pequena distncia
geogrfica percorrida na imigrao de Prt (de Tallinn para Viena e para Berlin) no anula o
fato cultural de que uma fronteira mais significativa foi transposta: a fronteira do Oriente
com o Ocidente; mesmo adaptado Alemanha, Prt continua a ver como estrangeiro, e de
forma negativa, certos aspectos da cultura ocidental.84

84

HILLIER (2002).

114

Poucos havero de considerar simples coincidncia o fato de que o minimalismo


cultivou a proximidade com as culturas orientais; ou, para ser mais prudente, poderamos
dizer culturas no-ocidentais, evitando inexatides cartogrficas ou de outra ordem. Steve
Reich estudou msica africana; Philip Glass estudou, em decorrncia de seu trabalho com o
citarista Ravi Shankar, msica indiana; e a mesma ndia se tornou fonte de conhecimento
musical e filosfico de grande influncia sobre a obra de Terry Riley e de LaMonte Young.
Interessantemente, Prt estudou msica ocidental, embora esta expresso e esta
frase exprimam de modo muito impreciso o contexto deste fato. No obstante sua possvel
ancestralidade hebraica, o canto gregoriano, por si, msica essencialmente ocidental,
considerado como seu pela Igreja Catlica Apostlica Romana e prescrito por ela como a
msica mais prpria e conectada ao rito romano da f catlica. No mais, este gnero
formou inmeras geraes de msicos, servindo inclusive de ponto de partida para a
polifonia que se desenvolveu em seguida.
A msica ocidental estudada por Prt no se restringe s pocas medieval e
renascentista s quais ele se devotou nos anos 70, mas engloba tambm a sua prpria
formao musical anterior: a msica europia de concerto, os instrumentos europeus de
concerto, as formas e tcnicas dos compositores europeus. Afinal, embora pases como a
Rssia e, no caso, a Estnia, no sejam considerados ocidentais, so ainda assim
europeus, e muitos traos de sua cultura tornam isto claro. Com efeito, a Estnia muito
mais ocidental do que a ndia. O aprofundamento excessivo das mincias que levam a
usar um adjetivo ou outro podem levar a certa confuso dos seus significados.

3.2. Drone
Um dos primeiros aspectos que consideraremos no minimalismo j foi apontado no
captulo anterior com relao msica medieval. Trata-se do drone, ou bordo: notas
graves sustentadas sobre as quais se desenvolvem linhas meldicas. Notas, no plural, ou
nota, no singular; podemos pensar no singular quando nos referimos s notas muito
115

longas do organum de Notre Dame, e no plural quando pensamos em Fratres (a obra de


Arvo Prt que citamos no captulo anterior) e na msica indiana.
De fato, havamos j falado, muito de passagem, na ndia; vemos agora ocasio para
nos determos por um pouco mais de tempo sobre os drones de sua msica. Eles so uma
das caractersticas que mais chamam a ateno dos ouvidos ocidentais, por se prolongarem,
sempre nas mesmas duas notas, por toda a execuo de um raga.
Raga difcil e raramente se explica em poucas palavras, ao menos quando o leitor e
o autor do texto so ocidentais. Este conceito se situa entre o que chamamos de obra e o
que chamamos de escala, e poderia mesmo ser sintetizado na palavra modo. Os modos
eclesisticos so a base das melodias gregorianas (sejam elas compostas sobre eles, ou
sejam eles deduzidos a partir das melodias) desenvolvidas ao longo de muitos anos e, a
formulada a notao musical, escritas e preservadas no papel como peas individuais, ainda
que se prestassem a adaptaes; mas os ragas so pilares para msica improvisada.
Quando um msico indiano executa um raga, normalmente se faz acompanhar por
um percussionista e um executante de tanpura, instrumento de cordas incumbido de fazer
soar duas notas especficas do raga em execuo. Estas notas so chamadas de X e X, e na
maioria das vezes formam o intervalo que chamamos de quinta justa, ou ento o de quarta
justa.
Esta prtica contrasta fortemente com a da harmonia tradicional do Ocidente, que
procura mover-se constantemente entre pontos de apoio que desenham sua estrutura e criam
e resolvem tenses. Ademais, a harmonia ocidental se serve de acordes, chamando assim s
combinaes simultneas de trs notas (ou mais); o drone indiano compe-se de duas.
Porm, ainda que ele fizesse ouvir uma trade perfeita, o fato de permanecer imutvel por
longo perodo e no alternar com outros acordes lhe daria uma funo completamente
diferente daquela que exerce na msica tonal ocidental.
David Courtney, professor de msica indiana, explica de maneira simples o papel
desempenhado pelo drone nessa arte:
116

O drone parte essencial da msica indiana tradicional.


encontrado na msica clssica (do Norte e do Sul), na msica
folclrica e mesmo em canes de filmes. s vezes, executado
por instrumentos e instrumentistas especiais; noutros casos, por
partes especiais dos instrumentos meldicos. Mesmo muitos dos
instrumentos de percusso so afinados com o objetivo de reforar o
drone. No importa quem o execute: o drone desempenha um papel
fundamental. () [sua] funo a de dotar a msica de base
harmnica firme. A idia pode no ser intuitiva, mas tambm no
difcil de entender. Contrastar a msica indiana com a ocidental
um bom modo de ilustrar a funo do drone. A tnica, na msica
ocidental, est implcita na estrutura da escala. So incrivelmente
poucos os modos usados na msica ocidental, ento a mente
observa

inconscientemente os intervalos entra as notas (tom,

semitom...), e utiliza esta estrutura para identificar a tnica. Os


numerosos modos usados pela msica indiana praticamente
impossibilitam

este

processo.

Virtualmente

quase

qualquer

combinao de intervalos pode ser encontrada; outro processo de


identificao da tnica, portanto, deve ser usado. E o drone que
estabelece a tnica, descartando qualquer ambigidade. O ressoar
contnuo de uma ou mais notas d base harmnica execuo. Isto
no apenas clarifica a estrutura escalar, mas possibilita o
desenvolvimento de modos bem complexos.85

A personalidade harmnica do drone, imutvel e onipresente, entrelaada com sua


personalidade temporal, novamente imutvel e onipresente, interessaram aos minimalistas,
85

COURTNEY - http://chandrakantha.com/articles/indian_music/drone.html

117

notadamente a LaMonte Young. Suas composies Octet for Brass (1957) e String Trio
(1958)86j confirmam este interesse. Empregam notas simples e combinaes de notas
sustentadas por perodos de tempo extraordinariamente longos87. De fato,

As primeiras peas minimais (do fim dos anos 50 e do comeo dos


60) melhor exemplificam a idia de minimalismo como uma
esttica (...). Muitas dessas peas requerem o desenvolvimento de
novas estratgias de audio para que se as possa apreciar
integralmente. De vrios modos essas peas parecem suspender o
tempo, revelando gradualmente um processo que se desdobra
lentamente ou focando um minsculo detalhe musical. Afastam-se
fortemente da idia de exigir ao ouvinte que reconhea metas e
movimento em direo a metas (...).88
A primeira nota do Trio permanece sustentada por aproximadamente quatro minutos
e meio, fato que exemplifica com muita clareza a necessidade de novas estratgias de
audio, como afirma Johnson na citao acima. Tais estratgias raramente estaro
ausentes do ocidental interessado em ouvir msica indiana e mesmo outras msicas
orientais.

86
87
88

Respectivamente octeto para metais e trio de cordas.


JOHNSON (1994), p.745.
JOHNSON (1994), p.745.

118

Figura 87. LaMonte Young: Composition 1960 no.7


Nestas composies de La Monte Young as duraes muito longas so usadas num
contexto serial. Um pouco mais tarde ele chegou a uma espcie de extremo ao conceber
uma obra composta simplesmente de nico drone e nada mais que ele, em Composition
1960 No.7. Uma quinta justa, si-f#, deve ser sustentada longamente, segundo a partitura.
A Young o interesse pelos drones veio do contato com a msica indiana, da qual ele
se tornou estudioso e tambm intrprete vocalista, chegando a apresentar-se na prpria
ndia em recitais particulares89. Notas de longa durao j apareciam em sua obra desde
1957, em meio a uma textura pontilhista recebida como influncia de Anton von Webern,
falecido apenas doze anos antes. Young no v incompatibilidade entre o minimalismo e o
serialismo, entendendo a srie como um elemento de stasis: ainda que a tcnica serial
propugne constante variao, a srie permanece a mesma durante toda uma pea90.
Os drones introduzem na msica um componente de stasis, elemento com o qual
Young sempre sentiu afinidade devido a, entre outras coisas, sons de sua infncia como
insetos, fios de telefone e um torno mecnico91. Estes sons contnuos apresentam seu
89

WELCH (1997), p. 265.

90

WELCH (1997), p. 224.

91

WELCH (1997), p. 243.

119

interesse no apenas ao serem ouvidos em si mesmos, ocasio em que se buscam as


mnimas variaes timbrsticas ou de afinao, alm dos harmnicos presentes; mas
tambm ao servirem de base harmnica para uma linha meldica, delimitando uma espcie
de rbita dentro da qual a melodia pode ser compreendida.
At 1957 Young fora instrumentista de jazz, gnero fortemente alicerado na
improvisao; tambm esta foi uma das principais fontes que convergiram na formao de
sua personalidade artstica e seu trabalho de compositor erudito. Embora tenha abandonado
o gnero e nada levado dele para o seu trabalho posterior, o hbito de improvisar no
cessou. Ainda assim, j nessa poca se encontram matizes peculiares nas suas idias: em
improvisaes de blues, Young desacelerava fortemente as progresses harmnicas,
prolongando consideravelmente a durao de cada acorde92.
O uso pleno de drones na msica ocidental erudita vem a acontecer com o
minimalismo. Isto no significa que no houvesse sido abordado por compositores mais
antigos. No raramente tais compositores se inspiram em msica folclrica para suas peas
ou trechos com drones. Observemos um exemplo: a 138 pea do Mikrokosmos, do hngaro
Bela Bartk (1881-1945), utiliza em toda a sua extenso um drone nas notas sol-r.

92

WELCH (1997), p. 230.

120

Figura 88. Bela Bartk: incio de Gaita de foles, do 4 volume de Mikrokosmos


Mais adiante Bartk expande o drone para a oitava inferior:

Figura 89. Bela Bartk: compassos 16-18 de Gaita de foles


Posteriormente, a nota superior do drone ornamentada:

121

Figura 90. Bela Bartk: compassos 53-56 de Gaita de foles


Esta ornamentao da nota superior proporciona mais cores harmnicas
composio; a nota inferior continua soando firmemente.
Um artifcio parecido utilizado por Johann Sebastian Bach na Gavotte II da Sute
inglesa n6. Desta vez, no entanto, o drone compe-se de uma nica nota (r) na mo
esquerda. Trata-se, de fato, de uma textura a trs vozes. A mo direita executa a voz mais
aguda. A mo esquerda se divide entre o baixo (drone) e uma voz intermediria. Bach
escreve as duas vozes inferiores como se se tratasse de um instrumento de sopro solista,
sem a possibilidade de fazer soar duas notas ao mesmo tempo. Por esta razo, a nota do
drone foi deslocada para a parte fraca dos tempos, e a nota da voz intermediria ocupa a
parte forte dos tempos. assim durante praticamente a composio inteira, com
pouqussimas excees.

122

Figura 91. Johann Sebastian Bach: Gavotte II da Sute inglesa n6


O recurso usado por Bach cria maior movimento rtmico para a pea
(proporcionando um fluxo constante de colcheias, ao alternar a nota do drone com a nota da
voz intermediria; se fossem apenas empilhadas, teramos simples semnimas) e lhe permite
combinar as vozes de maneira harmonicamente conveniente, conforme sua linguagem e a
de sua poca, segundo o sistema tonal.
Poderamos reescrever esta Gavotte de maneira a explicitar ainda mais o drone (j
que ele suficientemente claro no original) obtendo uma verso ritmicamente mais esttica:

123

Figura 92. Gavotte de Bach reescrita


Outra tcnica possvel, naquele tempo, era a de utilizar um drone de fato, mas que
no permanecia seno por alguns compassos da frase, normalmente no seu incio.. Isto se
percebe bem numa composio como o terceiro movimento, Musette, do Concerto grosso
n6 de George Frederick Handel, nosso prximo exemplo.
Handel abre o movimento com um tutti de 14 compassos: a primeira parte com 6 e a
segunda com 8 compassos. Ambas as metades iniciam com a mesma frase de 4 compassos
apoiada sobre um drone na nota mi bemol na linha do baixo. O acorde o de tnica,
ornamentado no terceiro compasso como T6-4. As frases que se seguem ao drone utilizam
mudanas no baixo a cada tempo, com resoluo na tnica, como compensao da quase
imobilidade do drone e como contraste do ritmo harmnico. Vemos no acorde T6-4 uma
ornamentao do acorde de tnica, como j afirmamos; o que nos leva a uma harmonia que
dura doze tempos nos compassos 1-4 e 7-10 (treze, se contarmos o primeiro tempo dos
compassos 5 e 11). A ela se seguem harmonias que duram um tempo (cps. 5-6 e 11-14).
Depois deste primeiro tutti um solo de quatro compassos executado pelos dois
primeiros violinos solistas e violoncelo, utiliza a mesma harmonia T T6-4 T dos
primeiros compassos; intervm novamente o drone, agora reduzido a dois compassos. Logo
adiante, um drone mais longo, de seis compassos, apia-se no em mi bemol, mas em si
bemol, o quinto grau. Por toda a pea, Handel se serve da alternncia de drones e ritmo
harmnico tempo a tempo para estruturar a composio, inclusive em vrios momentos dos
quais drones esto ausentes; voltam, entretanto, a cada reexposio destas frases iniciais.
124

Certamente a alguns a anlise das notas longas no baixo desta pea como drones
pode parecer forada. Nosso intuito, porm, o de mostrar que mesmo em pocas
anteriores ao minimalismo os compositores conheceram e utilizaram drones; desejvamos
contrastar o uso feito por eles, geralmente de origem folclrica, com o uso dos
minimalistas. Esta obra de Handel explicita a origem folclrica de seu drone no ttulo
Musette, o mesmo ocorrendo em diversas peas barrocas do mesmo ttulo. Em seu tempo,
todavia, ainda que fosse possvel utilizar as notas muito longas, era necessrio dar-lhes um
sentido no contexto da linguagem musical da poca, ligada ao sistema tonal. Assim, como
visto nos exemplos de Bach e Handel, estratgias foram empregadas no sentido de, presente
a nota do drone constantemente, dar-lhe sentido harmnico a cada momento; ou, por outro
lado, alternar frases construdas sobre drones com outras em que progresses harmnicas
fizessem ouvir um acorde a cada tempo.

125

Figura 93. George Frederick Handel: Musette,


3 movimento do Concerto grosso n6, compassos 1-14

A composio de Haendel nos faz compreender o drone tambm no contexto do


ritmo harmnico. Neste tipo de situao o drone se caracteriza como um acorde longo em
meio a outros consideravelmente mais curtos. Ainda que uma pea tonal se desenvolva em
126

andamento lento, incorreto dizer que cada acorde seja um drone, ainda que se mantenha
por durao de tempo razovel. necessrio que o acorde dure muito mais tempo que os
outros, como nos seis primeiros compassos da Musette do concerto grosso de Handel: dos
dezoito tempos, nada menos que treze so ocupados pelo acorde de tnica que inicia a pea.
Por outro lado, imaginemos as improvisaes de blues de LaMonte Young em que
cada acorde da progresso harmnica durava bastante tempo. Uma progresso de doze
compassos, com os seguintes acordes:

IV

IV

IV

Suponhamos que seja feita uma improvisao em que cada um desses compassos
dure um minuto (requerendo doze minutos para se completar esta que uma progresso
simples e tradicional do blues!). Seria possvel compreender cada acorde como um drone.
Entretanto, embora comecemos a improvisao com quatro minutos no acorde de tnica,
teremos em seguida dois minutos na subdominante; mais dois minutos na tnica; e
finalmente um minuto na dominante, mais um na subdominante e dois na tnica. Isto : por
mais dilatadas que sejam as duraes, elas so proporcionais. Donde conclumos que o
conceito de drone pode ser um tanto inexato e relativo, em certas circunstncias. Isto,
porm, no apaga a noo de nota ou acorde sustentado por longo tempo, seja durante uma
pea inteira, seja durante grande parte dela ou grande parte de uma frase. E de maneira
nenhuma tira o drone da posio de importante elemento da msica minimalista.
A stasis harmnica em muitos casos pode ser interpretada como drone, ainda que a
nota ou acorde sempre presente seja reiterada, e no sustentada. Steve Reich, em Six
marimbas93, utiliza um drone ao qual notas so acrescentadas at o fim da pea.
3.3. Drones na msica de Prt

93

Esta obra foi escrita em 1986, tarde para a poca de que nos ocupamos; porm, trata-se de uma
reinstrumentao de Six pianos, composta por Reich em 1973.

127

Como j referimos, os drones ou bordes na msica de Arvo Prt foram


contemplados no captulo sobre msica medieval deste trabalho. No presente captulo
tivemos a oportunidade de v-lo na msica minimalista.
Uma breve recapitulao no seria de todo inconveniente: o uso mais explcito de
um drone por Prt ocorre em Fratres; as notas sustentadas formam uma quinta justa (lmi), exatamente como ocorre muitas vezes na msica indiana; intervalo idntico ao drone
que constitui, sozinho, a Composition 1960 no. 7 de LaMonte Young.
Vimos tambm que Prt faz uso de pontos de drone que no se estendem pela pea
inteira. Embora tenhamos observado isto mesmo numa composio de Haendel,
naturalmente em Prt o significado outro; aquele se guia pelas tenses e relaxamentos de
uma harmonia tonal; este, no. Haendel procura compensar o drone com maior
movimentao harmnica; Prt no tem necessidade deste contraste, ainda que esteja livre
para realiz-lo, se achar adequado. Bach, em sua Gavotte, disfara o drone em figuraes
rpidas de colcheias sempre fluentes; Prt deixa o drone claro e chega a faz-lo presente
numa pea inteira.
A stasis de Fratres obtida, sem dvida, por meio do drone; entretanto, outro
elemento claramente esttico o seu material meldico. Ele no foi livremente composto.
Prt o obteve por meio de um processo simples, partindo de uma nota inicial e descrevendo
uma trajetria sua volta, por assim dizer: a nota imediatamente inferior e a nota
imediatamente inferior. Adotando um processo aditivo, passa a duas notas inferiores e duas
superiores. Assim se constri a linha meldica da pea inteira; aqui que cruzamos a
fronteira de tpico, passando aos processos aditivos, um outro aspecto do minimalismo
presente nas composies de Arvo Prt.
3.4.Processos aditivos
Em 1971 o compositor americano Frederic Rzewski (nascido em 1938) escreveu a
obra Coming Together, para um nmero varivel de instrumentistas e um narrador. O texto

128

usado por Rzewski provm de uma das cartas de Sam Melville, detento do presdio de
Attica morto em rebelio ali ocorrida em Setembro de 197194.
Na pea o texto apresentado gradualmente. Rzewski faz ouvir a primeira frase. Em
seguida, novamente a primeira frase, seguida da segunda. Ouvimos depois as duas
primeiras frases novamente, qual acrescida a terceira; e assim por diante, at o texto se
completar. Para facilitar a localizao dos trechos novos de cada bloco, ns os marcamos
em seu incio com trs asteriscos.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. *** Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life
have passed so quickly.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
passed so quickly. *** I am in excellent physical and emotional health.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
passed so quickly. I am in excellent physical and emotional health. *** There are doubtless
subtle surprises ahead but I feel secure and ready.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
94

Attica, municipalidade do Estado de Nova York, abriga uma penitenciria de segurana mxima, onde Sam
Melville cumpria desde 1969 pena por oito atentados a bomba na cidade de Nova York. Melville agiu com
motivaes polticas, tendo explicado que seus atos alvejavam estruturas em que se realizavam negcios
disseminadores de pobreza e morte. Os alvos incluram o Whitehall Selective Service Center e o banco Chase
Manhattan.

129

passed so quickly. I am in excellent physical and emotional health. There are doubtless
subtle surprises ahead but I feel secure and ready. *** As lovers will contrast their
emotions in times of crisis, so am I dealing with my environment.
I think the combination of a great coming together is responsible for the speed of
passing time. Its six months now and I can tell you truthfully few periods in my life have
passed so quickly. I am in excellent physical and emotional health. There are doubtless
subtle surprises ahead but I feel secure and ready. As lovers will contrast their emotions in
times of crisis, so am I dealing with my environment. *** In the indifferent brutality, the
incessant noise, the experimental chemistry of food, the ravings of lost hysterical men, I can
act with clarity and meaning.
Pela adio gradual de novas frases ao texto, repetindo a cada vez as que j haviam
sido apresentadas, temos aqui um processo aditivo. Rzewski no se limita a usar um
processo aditivo no texto; este tambm se encontra na msica.
A nica linha escrita da composio executada por baixo eltrico, que pode ser
reforado por piano ou sintetizador. Os outros instrumentos dobram notas escolhidas entre
estas segundo regras muito precisas que variam ao longo da obra. Tais instrumentos podem
ser em qualquer nmero, embora as instrues da pea digam que ela normalmente feita
com um grupo de oito a dez executantes. O texto declamado por um narrador.
Na linha do baixo eltrico encontramos um processo aditivo muito claro. Abaixo
reproduzimos os dez primeiros compassos da obra. Rzewski comea apenas com a nota sol,
acrescentando logo o si bemol; mais algum tempo, no compasso 2, acrescenta o d; cada
vez que uma nota nova acrescentada, a linha passa a utiliz-la em conjunto com as
colocadas anteriormente, e nenhuma mais. Com sinais de mais indicamos as notas novas;
com colchetes indicamos os trechos que vo da adio de uma nota nova at a ltima nota
antes da adio seguinte.

130

Figura 94. Incio de Coming together de Frederic Rzewski (omitido o texto)


Cada nota sempre mais aguda, mas o compositor no vai alm do si bemol, uma
dcima menor acima do sol grave do exemplo anterior. No mais, ocorre a adio de uma
nova nota cada vez que o texto volta ao incio; lembremo-nos de que ele no apresentado
linearmente, mas num esquema A AB ABC ABCD...
Coming together tem uma segunda parte, intitulada Attica, em que somente uma
linha est escrita, assim como na primeira parte. Porm, escrita em clave de sol, deve ser
tocada por vrios instrumentos, tocando e descansando ad libitum. Essa linha tambm se
desenvolve por processo aditivo. Rzewski determina tambm que alguns dos instrumentos
sustentem um drone na nota si bemol ou num acorde de si bemol maior.

131

Figura 95. Frederic Rzewski: incio de Attica, segunda parte de Coming together (1971)
Dois anos antes Frederic Rzewski havia composto Les moutons de Panurge. A pea
foi escrita para qualquer nmero de msicos tocando instrumentos meldicos + qualquer
nmero de msicos tocando qualquer coisa. As instrues da partitura explicam um pouco
melhor o papel dos no-msicos: no-msicos: so convidados a fazer som, qualquer som,
de preferncia muito fortes, e se possvel recebem instrumentos percussivos ou outros.
132

Consta da partitura da obra uma linha escrita em clave de sol para os no msicos.
So 65 notas numeradas, entre semnimas e colcheias. Sua execuo regulada pela
seguinte instruo:
Leia da esquerda para a direita, tocando as notas como segue: 1, 1-2, 1-2-3, 1-2-34, etc. Quando tiver alcanado a nota 65, toque a melodia toda mais uma vez e ento
comece a subtrair notas do comeo: 2-...-65, 3-...65, 4-...-65, , 62-63-64-65, 63-64-65,
64-65, 65. Sustente a ltima nota at que todos a tenham alcanado, e ento comece uma
improvisao usando quaisquer instrumentos. Todos em unssono estrito; dobramento em
oitava permitido se houver pelo menos dois instrumentos em cada oitava.
Isto : Rzewski instrui diretamente os executantes e realizarem um processo aditivo
e, depois, um processo subtrativo. O que Rzewski solicita dos executantes por meio de
palavras, outros compositores minimalistas escrevem por extenso nas partituras de suas
composies.
Ainda assim, nosso prximo exemplo tambm no traz, ainda, processos aditivos
totalmente escritos. Antecede, porm, as peas de Rzewski. Em 1+1 (1968), o americano
Philip Glass pede que o executante bata com os dedos numa mesa microfonada e
amplificada progresses aritmticas regulares e contnuas montadas a partir das unidades
A e B, conforme mostradas no nmero 1 do prximo exemplo:

133

Figura 96. Material para execuo de 1+1, de Philip Glass.


As indicaes A e B e de nmero de repeties so nossas.
Na prpria partitura o compositor fornece trs exemplos de combinaes simples.
A figura acima, em seus itens 2 e 3, mostra duas dessas combinaes. No nmero 2,
enquanto a unidade A permanece imutvel e nica, a figura B sofre processo aditivo at ser
executada trs vezes, sofrendo em seguida processo subtrativo at voltar a ser uma s.
No nmero 3, os processos so simultneos. A figura A repetida sempre uma vez
mais, partindo de uma vez e chegando a cinco vezes. A figura B sofre processo inverso:
comea em cinco vezes e diminui at uma vez.
Como observa Michael Nyman em seu livro Experimental music Cage and
beyond, 1+1 contm a essncia da msica de Glass95.
Poucos deixaro de notar a semelhana entre a idia de 1+1 com os exerccios
rtmicos idealizados por Jos Eduardo Gramani e publicados em seus livros Rtmica e
95

NYMAN (2004), p.148.

134

Rtmica viva. Grande parte dos exerccios de Gramani baseada em processos aditivos,
como a chamada Srie 2-1:

Figura 97. Exerccio rtmico de Jos Eduardo Gramani


O exerccio utiliza apenas colcheias e semicolcheias. Ambas as figuras passam por
um processo aditivo: primeiro, as semicolcheias, cuja quantidade est indicada pelos
nmeros acima das notas; depois, as colcheias, cuja quantidade est indicada abaixo das
notas. Estes nmeros so acrscimo do autor deste trabalho; quase dispensveis, tamanha a
clareza do processo aditivo.
De volta ao minimalismo, abordemos agora composies com alturas definidas. Os
processos tambm so claros; portanto, a profuso de nmeros da figura 6 no deve
intimidar o leitor, pois simplesmente explica um processo aditivo facilmente perceptvel.
Vejamos, de Glass, a Music in fifths [Msica em quintas] (1969).

135

Figura 98. Philip Glass: Music in fifths, cps. 13-18. Anlise do processo aditivo.
Vemos na anlise acima que a msica se constitui de movimentos alternadamente
ascendentes (partindo de d) e descendentes (partindo de sol). Os nmeros logo abaixo
indicam os graus da escala em que a msica se move. As flechas indicam a direo do
movimento; os nmeros entre parnteses, a quantidade de notas do movimento respectivo.
Estes nmeros, em conjunto com as flechas, mostram a progresso:

136

Ascendente

Descendente

24

24

24

234

24

234

234

2344

234

A partir desta anlise o leitor se pode propor um jogo de adivinhao: como ser o
compasso 19? Proponho que reveja, antes de prosseguir a leitura, os compassos de 13 a 18
e procure deduzir.
Eis a resposta:

Figura 99 Philip Glass: Music in fifths, cp.19. Anlise do processo aditivo.


Music in fifths das primeiras composies no conhecido estilo minimalista de
Philip Glass. O compositor se tornou conhecido tambm por executar as prprias
composies com seu ensemble (conjunto), do qual tomam parte sintetizadores, flautas,
saxofones e voz. Para esta combinao foi mais tarde composta Music in twelve parts
137

[Msica em doze partes], na qual Glass trabalhou de 1971 a 1974. No existe uma partitura
comercial desta obra, e para que possamos examinar alguns trechos, utilizamos a partitura
construda por Glenn Lemieux a partir de esboos e partes manuscritas96.
No comeo da 11 parte da obra, a parte do sax soprano, em harpejos tpicos deste
compositor, acrescenta uma nova nota a cada compasso; ora no comeo da figura, ora em
seu meio, ou ento no fim. As outras partes instrumentais, embora tocando outras notas,
seguem idia semelhante:

Figura 100. Philip Glass: comeo da parte XI de Music in twelve parts,


parte do saxofone soprano
Certamente um processo aditivo no se limita a adicionar notas, mas tambm
adiciona grupos de notas. Podem ser grupos de notas novas, diferentes das que j se tinham
at ento; no entanto, comum que se repita um grupo de notas j presente na primeira
enunciao da idia musical, formando um padro como ABCDE (AB)ABCDE. o que
encontraremos no prximo exemplo. Uma nova adio ainda transforma (AB)ABCDE em
(AB)(ABCD)ABCDE97.
A compreenso, no papel, da tcnica utilizada no incio da quarta parte da Music in
twelve parts requer que dividamos cada compasso em uma parte a e uma parte b. A linhas
tracejadas que utilizamos consta da partitura de Lemieux; o mesmo o caso da barras
duplas. Temos agora uma figura a e uma figura b. Em sua primeira apario, ns as
chamamos de a1 e b1. Se em algum momento, mais adiante, aparecem idnticas a esta
primeira apario, utilizamos os mesmos cdigos: a1 e b1 e isto de fato acontecer.

96

Lemieux discute a obra em sua tese de doutorado em msica pela Universidade de Iowa. O trabalho
contm a partitura completa por ele construda LEMIEUX (2000).
97

Utilizamos estes parnteses para facilitar a leitura dos padres com muitas letras.

138

Figura 101. Philip Glass: comeo da parte IV


de Music in twelve parts, parte da mo direita do teclado I
No primeiro compasso, Glass escreve a1 e b1. No segundo, o compositor repete as
duas primeiras notas, criando uma variao a que chamamos a2. No ocorre variao em
b1.
No terceiro compasso, a2 permanece sem variao, mas b1 se transforma agora em
b2 pelo mesmo processo que transformou a1 em a2.
No quarto compasso, a idia a tem sua terceira variao, a3, mas b se mantm como
b2. S se transformar em b3 no compasso seguinte, em que a3 no muda.
Neste ponto, Glass aplica um processo subtrativo: faz as figuras retornarem a seu
estado original. No quinto compasso, as figuras eram a3 e b3; no sexto sero a2 e b3; no
stimo, a1 e b2; e no oitavo ambas aparecem como no incio: a1 e b1.
O trecho citado da parte IV demonstra como Glass tambm adiciona grupos de
notas, e no apenas notas isoladas. Ao transformar a1 e b1 em a2 e b2, o compositor
adiciona suas notas. Ao transformar a2 e b2 em a3 e b3, segue um padro (AB)ABCDE
(AB)(ABCD)ABCDE
3.5. Processos aditivos na msica de Prt
139

No primeiro captulo deste trabalho, dedicado tcnica tintinabular, chegamos a ver


um pouco do uso por Prt de processos aditivos. Entretanto, naquele momento, no
utilizamos esta nomenclatura; tampouco o vinculamos msica minimalista. Chegamos
agora ao momento de irmos um pouco alm neste campo.
Prt, em suas composies vocais, recorre ao texto para estruturar a msica, mais
precisamente para compor suas vozes-M. Quando escreve msica instrumental, ele
freqentemente utiliza processos aditivos. Estes processos costumam iniciar numa nica
nota, e por meio de um sistema simples, adotado para a pea, adicionam uma segunda nota,
depois uma terceira e assim por diante.
A idia pode ser resumida na frmula A AB ABC ABCD..., da qual podemos
deduzir algumas variantes: A BA CBA DCBA..., ou A AxA AxyA AxyzA...
Fr Alina, analisada no segundo captulo, utiliza um processo aditivo aplicado ao
nmero de notas, embora no s prprias notas, ou melhor, s suas alturas. Vimos que cada
pequena frase, terminada sempre com uma nota longa, contm uma nota breve a mais que a
anterior, formando uma estrutura 1-2-3-4-5-6-7-6-5-4-3-2-1-2. Um processo aditivo nos
levando a sete notas breves (alm da longa), quando passa a ocorrer um processo subtrativo
que nos leva de volta a uma nota; e ainda um esboo de nova adio, na ltima frase, com
duas notas.
Prt chega at uma frase de oito notas, a partir da qual cada compasso traz uma nota
a menos, at o ponto em que elas so apenas duas, no penltimo compasso. No ltimo, a
presena de trs notas evoca o recomeo do ciclo aditivo, sugerindo a eternidade desta
alternncia de acrscimo e decrscimo, maneira das rbitas dos planetas, das fases da Lua
e da sucesso das estaes98.
J em Fratres (1977), para orquestra de cordas, claves e gran cassa coberta, Prt
utiliza um processo mais rigoroso. A melodia parte sempre de um centro, marcado na
Figura 8 com o nmero zero, e se expande para o grave e para o agudo, uma nota a mais a
cada vez. Marcamos as notas no grave com nmeros negativos, e as no agudo com nmero
98

No por acaso que ciclos interessam a vrios compositores ps-minimalistas, como Kyle Gann, cujos
escritos fazem parte de nossa bibliografia. Interessado em Astrologia, Gann evoca ciclos planetrios na sua
obra de cmera The Planets, em dez movimentos, composta entre 1994 e 2008.

140

positivo. O prprio Prt assim explica no filme de Dorian Supin a seu respeito, 24 Preludes
for a Fugue.
Aps brevssima introduo da percusso, os primeiros violinos apresentam a
melodia pela primeira vez (letra A da prxima figura). O centro, ou eixo, a nota mi, torno
do qual surgem uma, duas e trs notas, sucessivamente (letra B da prxima figura).

Figura 102.
A: Fratres, compassos 3-5, linha dos primeiros violinos (voz-M).
B: nota mi como eixo. Em ambos os exemplos os nmeros so nossos
(segundo Prt no filme de Dorian Supin).
Depois destes trs compassos os mesmos instrumentos enunciam o mesmo ciclo
com uma pequena variao: depois da nota zero (o eixo), aparecem primeiro as notas
agudas (positivas), e depois as graves (negativas).

Figura 103. Segunda parte da melodia de Fratres.


Concluda a apresentao da melodia de seis compassos, intervm a percusso com
sua breve figura de dois compassos, igual da introduo. Em seguida, a segunda
141

apresentao da melodia da pea, desta vez com eixo em d sustenido. Este processo ocorre
nove vezes. Em cada uma delas, a melodia comea uma tera abaixo: mi, d#, l, f, r, sib,
sol, mi, d#. A Figura 10 mostra o primeiro compasso das aparies 2, 3, 4 e 9.

Figura 104. Incio da melodia em cada uma de suas aparies.


As variaes 5, 6, 7 e 8 foram omitidas por serem facilmente deduzveis:
cada uma comea uma tera abaixo da anterior.
O processo aditivo em Fratres produz uma melodia crescentemente ampla. A viso
do grfico seguinte, referente a seus trs primeiros compassos, clara.

Figura 105. Contorno meldico de Fratres.


142

A voz-T em Fratres foi escrita por Prt no interior das dcimas da melodia,
seguindo a segunda posio inferior.
Cantus in memoriam Benjamin Britten (1977), para orquestra de cordas e sino,
utiliza como material meldico unicamente uma escala descendente de l elio. Todas as
partes instrumentais enunciam as notas na ordem precisa apresentada na Figura 12.

Figura 106. Material meldico de Cantus in memoriam Benjamin Britten


Este material apresenta um processo claramente aditivo: 1, 1-2, 1-2-3... Escolhidas
estas notas, Prt lhes atribui uma alternncia rtmica de longa e breve (o troqueu da mtrica
grega). Em cada linha esta longa e esta breve possuem diferentes valores: nos primeiros
violinos, mnima e semnima; nos segundos violinos, semibreve e mnima; dando-nos assim
um cnon mensurado que foi objeto de nossas consideraes no segundo captulo. O sino,
que toca unicamente a nota l, pontua a composio em momentos separados por intervalos
de tempo variveis. A dinmica do incio ppp, crescendo gradualmente at fff no fim.
Com durao aproximada de sete minutos, trata-se uma das composies mais notveis e
conhecidas de Arvo Prt.
Arbos (1977) utiliza um processo muito semelhante ao de Cantus in memoriam
Benjamin Britten; a escala descendente o seu material bsico, e mais uma vez se trata de
um cnon mensurado.99

99

HILLIER (2002), p.101.

143

3.6.Tabula Rasa
3.6.1. Silentium
O mesmo ritmo troqueu em cnon mensurado consiste na base de Silentium,
segundo movimento de Tabula Rasa (1977) para dois violinos, orquestra de cordas e piano
preparado. A prxima figura mostra, em sua letra A, a parte dos violoncelos; a letra B
mostra o ciclo das notas, que segue um processo aditivo. Parte-se do centro, r, e, sempre
por graus conjuntos, a cada vez se atinge uma nota mais distante da escala.

Figura 107. A: parte dos violoncelos de Tabula Rasa, cps.1-6;


B: material meldico da mesma obra.
Em cada apario do ciclo, ele aparece ampliado; o ponto de partida e de chegada,
no entanto, o mesmo (a nota r). Na figura anterior, dividimos cada apario em duas
partes, por meio de uma ligadura: chamamos a cada uma dessas partes fases; uma fase
ascendente e uma fase descendente.
A fase ascendente utiliza as notas acima do r, realizando, naturalmente, um
movimento ascendente; a fase descendente utiliza as notas abaixo do r, realizando uma
movimento descendente. As ltimas notas de cada fase contraria o seu nome: a fase
ascendente termina com um movimento descendente, j que precisamos voltar ao r; a fase
descendente termina com um movimento ascendente, pelo mesmo motivo.

144

Os primeiros violinos executam o mesmo ciclo, a mesma linha dos violoncelos, em


velocidade duas vezes menor. O primeiro violino solista toca quatro vezes mais lentamente.
Todas as vozes-M possuem suas respectivas vozes-T.

145

Figura 108. Dois primeiros compassos de Silentium.


A: violas e violoncelos;
B: primeiros violinos e segundos violinos;
C: primeiro violino solista e segundo violino solista.
Na letra A da Figura anterior, as violas so a voz-T, na primeira posio superior,
para a voz-M dos violoncelos. Na letra B, os segundos violinos seguem a segunda posio
inferior em relao aos primeiros violinos. Na letra C, as duas primeiras notas do primeiro
violino solista do ensejo alternncia entre as primeiras posies no segundo violino
solista, e a terceira nota acompanhada pelas segundas posies.
Os contrabaixos e piano preparado executam um ataque (precedido de anacruse
harpejada pelo piano) em momentos separados por intervalos de tempo cada vez mais
longos. Cada par de ataques tem igual durao, mas o par seguinte dura dois compassos a
mais. Vejamos a figura abaixo:

146

Figura 109. Parte do piano preparado de Tabula Rasa, cps. 1-25


A fim de facilitar a contagem, consideremos apenas os compassos sem notas.

ataques

compassos de intervalo

1 e 2

nenhum

2 e 3

nenhum

3 e 4

4 e 5

147

5 e 6

6 e 7

7 e 8

8 e 9

9 e 10

10 e 11

11 e 12

10

12 e 13

10

13 e 14

12

14 e 15

12

15 e 16

14

O dcimo-sexto ataque ocorre no compasso 129. Se houvesse um dcimo-stimo,


seria localizado no compasso 144. Silentium termina no compasso 168; por que, ento, Prt
no escreveu um dcimo-stimo ataque do piano preparado com os contrabaixos?
A resposta est no vnculo do piano preparado com o ciclo dos violinos solistas. Ao
examinarmos o ciclo destes violinos, descobrimos que, a cada ampliao, eles demoram
dois compassos a mais para retornar ao centro, a nota r, depois de fazer o desenho
ascendente e tambm o descendente. O piano, no entanto, no espera o violino fazer os dois
desenhos. Depois da figura ascendente, o violino retorna para a descendente; para isto,

148

precisa passar pelo r, embora no seja ainda o fim do ciclo; mesmo assim, este r
acompanhado por um ataque do piano.
Isto, contudo, no explica a ausncia do piano no compasso 144. Observemos,
portanto, na parte dos violinos solistas, os compassos que vo de 113 a 150. O ciclo, neste
ponto, j abrange uma nona em cada uma das fases (ascendente e descendente); entretanto,
a fase descendente no conclui retornando ao centro, mas continua se movendo em direo
ao grave uma extrapolao do ciclo. Desta forma, no se retornar mais para o r agudo
com que o ciclo iniciava e terminava. Ausente esta nota, ausente est a partir de ento
tambm o piano preparado com seu ataque precedido de anacruse harpejada. o silentium
do piano.
E cada uma das partes orquestrais caminha para seu prprio silentium. Assim que a
msica alcana notas graves demais para os violinos, tambm eles se calam, e a linha passa
para as violas na verdade, uma nica viola solista; o naipe no mais ser ouvido. Trata-se
dos poucos momentos em que a viola tem uma linha de voz-M na obra inteira, ainda que
em solo; so apenas cinco compassos, pois logo as notas so graves demais para a viola, e
um violoncelo solista assume a linha. Em seis compassos, cala-se tambm o violoncelo,
dando espao a um contrabaixo solista que executar os ltimos cinco compassos, muito
graves, em ppp, de Silentium. em silncio que termina a composio. Seguem-se quatro
compassos de pausa com que se conclui Tabula Rasa.
Embora os contrabaixos usados por Prt em Tabula Rasa sejam de cinco cordas e,
portanto, capazes de tocar at o d mais grave do piano, a ltima nota no r, e sim mi, o
segundo grau da escala de r elio deste movimento; deixando algo de suspenso, a pea
mais uma vez sugere a eternidade do seu ciclo.
Se Prt no interrompesse o ciclo, dirigindo-o o para o grave, a partir do compasso
138, ele poderia se perpetuar indefinidamente, at o ponto em que as notas fossem agudas
demais e graves demais para que o ouvido humano pudesse captar. Mas o ciclo continuaria,
porque, embora as extremidades agudas e graves ficassem inaudveis, continuaria havendo
uma grande faixa de notas audveis.

149

150

continuao e final da Figura 110. Ciclo em Silentium


Compositores minimalistas freqentemente levam o ciclo at um ponto em que a
msica para, mais do que termina. Prt tambm para o seu ciclo, mas no a msica; o
compositor manipula sutilmente o ciclo impulsionando-o numa direo em que de fato
terminar. Se no terminasse a obra no mi grave do contrabaixo, continuaria descendo para
o grave at no mais podermos ouvir. Porm, desta vez, todas as notas seriam inaudveis.
Como dissemos, Prt extrapola o ciclo, desvencilhando-se dele mas continuando a
msica. Lembremo-nos, agora, de que Silentium um cnon mensurado; portanto, seria
possvel encontramos esta extrapolao no momento em que as outras partes silenciam.
Sendo este cnon escrito a trs vozes, chamemos a linha dos violinos solistas de voz
aguda (mesmo quando descem aos instrumentos mais graves); a linha dos primeiros
violinos de voz mdia; e a linha dos violoncelos de voz grave.
151

J vimos que a voz aguda extrapola o ciclo e se dirige para o grave. o que ocorre
tambm com a voz mdia; at o compasso 127 o ciclo respeitado; a partir do 128 ocorre o
mesmo encaminhamento para o grave, com notas j escritas para as violas, depois
violoncelos e contrabaixos, os quais atingem o r mais grave no compasso 136, encerrando
a da voz mdia.
A voz grave, entretanto, respeita o ciclo at se extinguir no compasso 117, quando
os contrabaixos alcanam o d mais grave (da quinta corda).
Nas prximas treze pginas o leitor encontra as trs linhas do cnon de Silentium,
alm dos ataques do piano preparado. Elas so as vozes-M; no inclumos as vozes-T.
Removemos as hastes das notas, j que nos interessam, neste momento, sobretudo as
alturas.
Marcamos o incio dos ciclos e tambm o ponto em que comeam as fases
ascendente e descendente, utilizando, respectivamente, os sinais n e v (por exemplo: na
parte dos violinos solistas, no compasso 1 est o incio da fase ascendente; no compasso 3,
o da fase descendente).
Prximas treze pginas: Figura 111. Linhas do cnon de Silentium

152

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158

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165

Treze pginas anteriores: Figura 111. Linhas do cnon de Silentium

3.6.2. Ludus
Ludus comea com uma nica nota, em fortssimo, nos dois violinos solistas, cada
um num extremo da tessitura do violino; dois ls com quatro oitavas de diferena. Esta nota
preenche todo o primeiro compasso; o segundo no contm nada a no ser a indicao G.P.
- uma grande pausa, uma pausa geral em compasso 8/2.
A composio se subdivide em nove sees, das quais a nona uma Cadenza. As
outras oito comportam subdivises claras que listamos a seguir. No levamos em conta o
primeiro compasso. A primeira seo comea com o silncio em 8/2 do primeiro compasso.

Sub-seo
1

Compasso de silncio.

Um cnon a trs vozes na orquestra de cordas,


cada uma acompanhada por uma voz-T.

Primeiro solo.

Segundo solo.

Terceiro solo.

Um cnon a trs vozes na orquestra de cordas,


cada uma acompanhada por uma voz-T.

Frase de notas agudas num dos violinos solistas.

166

de notar a simetria das cinco sees internas, da segunda at a sexta. Cnones nas
extremidades emoldurando trs solos sempre executados, cada um, por um dos violinos
solistas. O mesmo violino solista que executa o primeiro solo executa o terceiro solo.
Outro elemento de simetria foi colocado pelo compositor nos cnones: o primeiro
cnone tem suas entradas na ordem agudo mdio grave; o segundo cnone a inverte:
grave mdio agudo. As oito sees apresentam esta mesma organizao.
Entretanto, Prt as fez diferentes. Primeiro, por um processo subtrativo: o compasso
de silncio, diminui a cada seo. O segundo compasso da obra um silncio em 8/2. Os
silncios subseqentes so em 7/2 (cp. 11), 6/2 (cp. 25), 5/2 (cp. 43), 4/2 (cp. 66), 3/2 (cp.
93), 2/2 (cp. 125), e 1/2 (cp. 161).
Segundo, por um processo aditivo; no surpreendentemente, semelhante ao processo
aditivo com que Prt montou o ciclo que percorre o segundo movimento de Tabula Rasa, e
que escolhemos analisar antes do primeiro que agora abordamos.
As oito sees de Ludus (excluda a Cadenza) se baseiam, cada uma, em uma
crescente quantidade de notas, desde a solitria l da primeira seo, nos compassos de 1 a
11, at as quinze notas da oitava seo nos compassos 161-191.
Quando afirmamos basear-se a primeira seo na nota l, no queremos dizer que
somente esta nota seja usada. Prt a utiliza como eixo, base; ela , de fato, a nica nota
utilizada como voz-M. Ela ser ornamentada e acompanhada por vozes-T que fazem ouvir
as trs notas da trade de l menor: l, d e mi. Todas as sub-sees (excluda a primeira,
constituda de silncio) tm nesta nota o seu eixo.
O prximo exemplo mostra como Prt mostra e ornamenta a nota l, seu tema
para a primeira seo. Em seguida, explicamos o que se passa.

167

Figura 112. Diferente ornamentaes da nota l


Letra A esta simples repetio da nota l se submete a tratamento cannico. No
terceiro tempo entra a segunda voz, repetindo a figura uma oitava abaixo. No compasso
seguinte, entram os violoncelos, executando o mesmo uma oitava abaixo da segunda voz.
As vozes-T se alternam em primeira posio superior e primeira posio inferior.
Letra B primeiro solo, confiado ao segundo violino solista. Prt ornamenta seu
tema, a nota l, mostrada acima com flechas, com as notas tridicas que a circundam.
Como a nota l tambm faz parte da trade, ouvimos durante todo o solo apenas notas da
trade.
168

Letra C segundo solo, no primeiro violino solista. Uma oitava abaixo do primeiro
solo, Prt novamente ornamenta seu tema. A tcnica a mesma: as notas da trades que
circundam o l temtico. Elas so uma voz-T executada pelo mesmo instrumento que
executa a voz-M, embora no simultaneamente.
Letra D terceiro solo, agora no segundo violino solista. Mesma idia de
ornamentao dos dois solos anteriores.
Letra E novamente um cnone a trs vozes; mas, como vimos, a ordem das
entradas das vozes inversa: grave, mdio, agudo.
Letra F notas longas e agudas no segundo violino solista, enunciando somente a
nota l, como uma desacelerao da idia da letra A.

A segunda seo utiliza como notas de base o mesmo l da primeira seo e suas
duas vizinhas diatnicas no grave e no agudo: sol e si. Daqui deduzimos o material de cada
seo da pea, que indicamos no exemplo seguinte:

169

Figura 113. mbito escalar de cada seo de Ludus

O aumento do nmero de notas-base faz com que aumente tambm o nmero de


compassos a cada nova seo. Isto tambm ocorre, como vimos, no segundo movimento de
Tabula Rasa, j que cada apario do ciclo acrescenta novas notas. Em Ludus, cada nova
seo acrescenta um novo compasso por cada uma de suas sub-sees (exceto a de
silncio), perfazendo assim seis novos compassos.

170

A prxima figura mostra o que ocorre na segunda seo. Compreendamos cada


item:
Letra A assim como na primeira seo, o material do cnone. Naquela seo,
tinha apenas um compasso; agora tem dois. Linha aguda entra primeiro, seguida pela mdia
e ento pela grave. A distncia entre as entradas continua sendo de dois tempos, como na
primeira seo.
Letra B primeiro solo: Prt agora ornamenta as trs notas, tambm aqui indicadas
com flechas. Os tempos fortes, tomados sozinhos, nos do o material da letra a.
Letra C segundo solo: mesma idia da letra B, agora em tercinas, como tambm a
letra B da primeira seo. Os tempos fortes nos do uma inverso do tema da letra A: ll-sol-l-si-l-l. a nica das sub-sees em que a figura invertida.
Letra D terceiro solo: mesma idia dos outros dois solos, mas em semicolcheias,
mais rpido, como ocorre na primeira seo.
Letra E notas longas e agudas no primeiro violino solista. As alturas so uma
inverso da idia da letra A, e as duraes foram desaceleradas.

171

Figura 114. Ornamentaes da nota l.


Ao fim da oitava seo, em meio a grande movimento de semicolcheias, tem incio
uma Cadenza executada por todos os instrumentistas. O piano executa trmolos; os violinos
solistas, rpidos harpejos; e a orquestra de cordas faz ouvir uma escala descendente de l
elio (l menor natural) escrita de modo semelhante da escala ascendente utilizada por
Prt em Solfeggio. Naquela pequena composio coral, Prt utilizava uma escala jnia
como srie, espalhando notas contguas pelas oitavas, como vimos no segundo captulo.
Assim procedeu tambm na composio da parte das cordas em Ludus.
Em meio Cadenza, ao calar-se o piano preparado, os violinos solistas passam a
harpejar rapidamente e a orquestra toca pulsos repetidos regulares. A harmonia sobrepe a
172

trade de l menor a um acorde de d diminuto (d, mib, f#, l). Se o cromatismo


incomum nas obras desta poca de Prt, a sobreposio destes dois acordes ainda mais
rara. A sobreposio permanece por alguns instantes, aps os quais prevalece a trade,
afirmada com muita assertividade por todas as cordas, incluindo os solistas, que tocam toda
a Cadenza em fortssimo.
3.7. Concluso
A partir de fins da dcada de 70 e incio da dcada de 80 os nomes mais conhecidos
do minimalismo (Philip Glass, Steve Reich e Terry Riley) perderam o interesse em
estruturas claras e bvias, no dizer de Kyle Gann; ainda segundo Gann, Reich e Glass
comearam a trabalhar mais com melodia e moveram a estrutura para o plano de fundo.
Estas citaes podem ser encontradas no texto de Gann intitulado Tentativas ingratas de
uma definio de minimalismo, do qual traduzimos quase a totalidade; esta traduo
consiste no Anexo V desta dissertao100. Esta nova fase j constitui num psminimalismo, ao qual a obra de Prt pertence, sim cronologicamente, mas, mais do que
isto, pertence tambm estilisticamente por no se orientar exclusivamente por processos
nem por estruturas totalmente audveis.
Os ritmos motricos dos minimalistas tambm no se encontram em Prt e, mesmo
quando algo parecido usado por ele (Ludus de Tabula Rasa, talvez), ocorrem diversos
momentos de respirao na estrutura, o que em geral no acontece na msica de Reich e
Glass.
Alm disto, nas obra minimalista destes ltimos comum que a msica pare, mais
do que termine, j que o processo de que se compe a msica interrompido num
momento em que poderia continuar, a permanecer a lgica pelo qual orientado. Prt,
mesmo quando utiliza processos, direciona-os a um ponto em que eles realmente
terminaro (no significando necessariamente este trmino uma concluso assertiva).

100

O original pode ser lido na internet: <http://www.newmusicbox.org/page.nmbx?id=31tp01> - este texto


a segunda parte de um ensaio mais longo intitutulado Minimal music, maximum impact (msica mnima,
impacto mximo).

173

Os mtodos do estoniano nas obras com texto, ainda que sempre rigorosos, no so
propriamente processos, o que os afasta do minimalismo ortodoxo.

174

Captulo 4
Alm-Prt
4.1. Introduo
A influncia recebida de um compositor tambm se faz sentir quando se absorvem
as prprias influncias que o tal compositor recebeu. Comparando isto tudo a uma famlia,
poderamos nos referir ao fato de que os avs, por serem pais dos pais, tambm so objeto
de sentimentos filiais por parte dos netos, e, por sua vez, vem nos netos uma outra espcie
de filhos seus.
De volta msica, observaremos os influenciados por Messiaen tambm se
interessarem pelos ritmos hindus, ritmos gregos e cantos de pssaros (utilizando-os ou no
em suas prprias obras, mas aprendendo algo com eles); veremos os influenciados por Cage
buscarem as leituras orientais que alimentaram este compositor americano; assim, a
influncia se revela tambm no prprio ato de ser influenciado por algo anterior.
O presente captulo o quarto deste trabalho e o ltimo antes da concluso; ao
chegar nele j passamos pela tcnica tintinabular, pela msica medieval e pela msica
minimalista. Neste momento se troca a primeira pessoa do plural pela primeira do singular,
e o autor deste trabalho passa a falar de seu trabalho de composio influenciado pela
msica de Arvo Prt e tambm influenciado pelas influncias que Arvo Prt recebeu.
Sem a inteno de repetir at o mnimo detalhe a trajetria de Prt, no tive pausa
composicional de oito anos. Meu estudo do canto gregoriano se deu de maneira gradual e,
ao menos no incio, um pouco intermitente. Quanto tcnica tintinabular, partida sentia
muito receio de acabar simplesmente emulando a sua msica. Mesmo assim, lancei-me a
alguns exerccios: o primeiro tpico analisado neste captulo.
Algumas tcnicas utilizadas nas composies abordadas aqui eu j utilizava em
composies anteriores, especialmente os processos aditivos. Neste trabalho, aparecero
como relacionadas a Prt e ao minimalismo. De fato, mesmo nas composies anteriores as
influncias so precisamente estas, pois j conhecia tanto este autor como este movimento
musical. Tcnicas que usei posteriormente, descritas aqui, procuram ir um pouco alm,
175

buscando novos meios de se escrever msica diatnica. De modo geral, sua origem, ainda
que um pouco distante em certos momentos, a mesma: a trade e a escala diatnica. E as
influncias so a msica de Arvo Prt e os gneros que descrevemos relacionados a ele: a
msica medieval e o minimalismo, como minhas influncias avs, tornadas, em muitos
momentos, minhas influncias mes.
4.2. Exerccios
Assim que tomei conhecimento da tcnica tintinabular e de seu funcionamento,
decidi escrever alguns exerccios regulados por suas regras. J de incio considerei que o
uso desta tcnica produzia, invariavelmente, msica que muito lembra a obra de Arvo Prt.
Entretanto, num momento de exerccios, isto no questo que se leve em conta. Assim
como o prprio Prt procurou aprender com o canto gregoriano, criando, provavelmente,
um nmero de melodias nesse gnero, tambm eu procurei me colocar numa posio de
discpulo de uma escola, numa atitude de imitao consciente. Tratava-se de me pr em
movimento por meio dessa imitao. Ou, se se quiser, coloquei-me a tarefa de realizar
exerccios de contraponto tintinabular, da mesma maneira que tantas geraes tm escrito
seus exerccios de contraponto conforme Fux.
Parti, no comeo, de breves textos sacros, de oraes. O primeiro de que me servi
foi Angele Dei, uma orao do Anjo da Guarda. A Figura 116 mostra as trs formas de
music-lo que escolhi.
Letra A em si elio. Na voz-M (linha superior), ltima slaba de cada palavra
sempre atribuda a nota central do modo, si; os movimentos podem ser ascendentes ou
descendentes; a cada momento decidi sua direo, no existindo uma regra que governe
este aspecto. A voz-T funciona na primeira posio inferior.
Letra B em si elio. Neste a voz-M a linha inferior. Movimenta-se por
movimento escalar ascendente do primeiro ao quinto grau, de maneira independente do
texto. A partir da palavra hodie, a escala passa do quinto grau e continua at o primeiro
uma oitava acima, permanecendo no agudo at o fim do exerccio; a direo continua
ascendente. A voz-T no segue as posies comuns da tcnica tintinabular; at a palavra
illumina ela repete sempre as mesmas cinco notas, na ordem: f#-si-si-r-r, das quais o
176

f# aparece ora numa oitava, ora na outra. Depois de illumina, esta linha foi escrita
livremente.
Letra C em r elio. Aqui a voz-M a linha inferior. Independente do texto, segue
um movimento escalar ascendente em processo aditivo: 1 1-2 1-2-3 1-2-3-4 1-2-34-5 1-2-3-4-5-6; em seguida, partindo deste ltimo, em processo subtrativo: 1-2-3-4-5-6
1-2-3-4-5 1-2-3-4 1-2-3 1-2 1. Por feliz coincidncia, o nmero de slabas do texto
corresponde exatamente a essa seqncia numrica. A voz-T foi escrita livremente,
causando em alguns momentos cruzamento de vozes.
A Figura 115 mostra um quarto exerccio, marcado com a Letra D em r elio.
Trata-se do mesmo exerccio da letra C, ao qual acrescentei uma terceira voz, mais grave.
Como a voz-M utiliza sete notas e a voz-T trs notas, decidi usar nesta terceira voz um
nmero intermedirio: cinco. Cheguei a estas cinco notas partindo das trs notas da voz-T:
acrescentei, trade, o stimo grau da escala. A adio desta nota possibilita uma segunda
trade (f-l-d, alm de r-f-l, principal). A quinta nota que escolhi foi o si bemol, sexto
grau da escala, presente somente duas vezes neste exerccio. A composio desta linha foi
realizada livremente.
prxima pgina: Figura 115. Exerccios tintinabulares Angele Dei. Continua na pgina
seguinte

177

178

continuao e final da Figura 115. Exerccio tintinabular Angele Dei


A Figura 116 mostra, para facilidade do leitor, os quatro exerccios mostrados acima
em nmero reduzido de pautas.

179

180

pgina anterior: Figura 116. Exerccios tintinabulares Angele Dei reduzido a uma e duas
pautas
Como visto, em alguns dos exerccios escrevi a voz-T da tcnica tintinabular sem
seguir as posies adotadas por Prt (primeira, segunda, inferior, superior, alternante) e
teorizadas por Paul Hillier. Chamo-a de posio livre, expresso que adoto daqui por diante
para designar esta maneira de escrev-la.
4.3. Salve Regina (2003)
Depois dos exerccios lancei-me composio de uma pea sobre o texto da Salve
Regina101. Foi escrita para duas vozes, que podem ser femininas ou masculinas. Nenhuma
das vozes se estende alm de uma oitava e uma tera menor.
Esta composio no utiliza a tcnica tintinabular a no ser em alguns poucos
momentos; no existe nela uma voz-T. Entretanto, dois aspectos encontrados nas
composies de Prt orientam a sua composio: o uso de escalas e de processos aditivos;
elementos que, como temos visto, freqentemente se unem. Assim ocorre tambm em Salve
Regina.
A partitura completa, constante de duas pginas, est reproduzida no Anexo I deste
trabalho. As figuras que seguem a prxima tabela demonstram como foi composta,
seguindo a sua diviso em partes:

101

Agosto de 2003.

181

Compassos
1-9
10-12
13-22
23-25
26-39

40-42

Texto
Salve Regina, mater misericordia, vita, dulcedo et spes nostra, Salve! Ad te
clamamus, exsules filii Hevae.
Instrumental ou vocal sobre a vogal ae (de Hevae)
Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle.
Eia ergo advocata nostra, illos tuos misericordes culos ad nos converte.
Instrumental ou vocal sobre a vogal e (de converte)
Et Iesum benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exsilium ostende.
O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria.
Ora pro nobis Sancta Dei Genetrix,
ut digni efficiamur promissionibus Christi.
Amen.
Instrumental ou Amen vocal.

As partes em que se encontra a indicao instrumental podem ser executadas por


um instrumento que, nas sees com texto, dobre as vozes. Se no houver instrumento,
esses trechos so cantados sobre a ltima vogal da palavra precedente, como indica a tabela
acima.
A prxima figura mostra como foi composta a primeira parte da Salve Regina.
Compondo a duas vozes, escrevi a primeira delas seguindo um processo aditivo 1 2-1 32-1 4-3-2-1..., escolhendo livremente as notas. Daqui em diante, chamarei a esta
seqncia de ciclo I. A segunda voz se organiza sempre por movimentos escalares amplos,
cobrindo toda a oitava ou quase toda a oitava.

182

Figura 117. Anlise de Salve Regina, primeira parte


Esta escrita produziu cruzamento das linhas. Ao experimentar o resultado, pude
ouvir a melodia produzida pela sucesso das notas mais agudas (num momento, eram da
primeira linha; noutro, da segunda). Alterei, ento, a distribuio das vozes. Tomei as notas
agudas de cada combinao de duas notas e atribu primeira voz da pea. As mais graves
atribu segunda e assim que elas aparecem na partitura. Este procedimento foi adotado
sistematicamente na composio inteira.
A figura seguinte mostra as duas linhas reunidas numa s:

183

Figura 118. Material da figura 117 reduzido a uma linha


A figura 119, a seguir, mostra a composio do primeiro trecho instrumental (ou
vocal melismtico, cantado sobre a vogal ae). A linha inferior, no primeiro compasso,
utiliza o ciclo I do incio da pea (ver figura 117); aqui, porm, o si natural, indicando
assim o modo drico. A linha superior uma inverso imperfeita da inferior: os intervalos
no so os mesmos, mas a direo dos movimentos invertida. Nos dois compassos
seguintes a linha superior ornamenta a primeira frase; a inferior a acompanha de modo
livre, um pouco reminiscente da sua frase no primeiro compasso.

Figura 119. Anlise do trecho instrumental ou vocal sem texto em Salve Regina
As duas linhas reunidas numa nica pauta:

Figura 120. Material da figura 119 reduzido a uma linha


No incio da terceira seo da pea a linha superior foi escrita em movimentos
escalares, sempre descendentes, em direo ao quinto grau do modo (l). A linha inferior se
utiliza do ciclo I, mas com os intervalos contrados. Os nmeros colocados com asterisco na
figura seguinte indicam duas notas que, a cada apario desta melodia, sobem em um grau:
l-sol, depois sib-l, depois d-sib.

184

Figura 121. Anlise da terceira seo de Salve Regina


Ambas as linhas reunidas numa nica pauta:

Figura 122. Material da figura 121 reduzido a uma linha


Continuando na terceira seo, o primeiro compasso usa movimentos escalares em
ambas as linhas. No segundo compasso, a linha superior continua usando movimentos
escalares; a linha inferior utiliza o material meldico do ciclo I, aqui ligeiramente
modificado como mostrarei depois. No terceiro compasso, movimentos escalares na linha
superior, embora o seu mbito estreito (uma quarta justa) possa fazer com que sejam
interpretados como uma ornamentao da nota l; a linha inferior aqui foi escrita
livremente; a seta na prxima figura indica trs notas que copiei da linha superior para
comear a inferior. As notas seguintes no copiam a linha superior (no se trata de um
cnone, a no ser por estas trs notas), mas a sua direo sim.

185

Figura 123. Anlise da terceira seo de Salve Regina


No segundo compasso da figura acima o ciclo I foi um pouco alterado. Suas trs
primeiras notas usam o mesmo intervalo da forma original (quinta justa), mas comeando
em outro grau da escala. Abaixo, o primeiro exemplo da Figura 124 mostra o ciclo I
modificado, e o segundo mostra o ciclo I original. As seis ltimas notas so rigorosamente
as mesmas.

Figura 124. Ciclo I de Salve Regina modificado e o ciclo original


Ambas as linhas que analisamos agora, reunidas numa nica pauta:

186

Figura 125. Material da figura 123 reduzido a uma linha


Em seguida aparece novamente o trecho instrumental (ou vocalizado, agora em
e), sem alteraes.
Terminado esse trecho, o texto volta e a msica muda para o modo frgio. O centro
continua a ser r. A linha superior em movimentos escalares; a linha inferior enuncia um
novo ciclo, que chamarei ciclo II. As notas marcadas com asterisco ornamentam o ciclo.

Figura 126. Seo frgia de Salve Regina, com o ciclo II na voz inferior
As duas linhas reunidas numa nica pauta:

Figura 127. Material da figura 126 reduzido a uma linha


Na seqncia, o trecho o clemens continua na mesma idia de uma escala na linha
superior e o ciclo II na linha inferior.

187

Figura 128. Anlise de o clemens de Salve Regina


As duas linhas reunidas numa nica pauta:

Figura 129. Material da figura 128 reduzido a uma linha


Em ora pro nobis, o modo novamente elio. Este o nico trecho da pea em
que utilizei a tcnica tintinabular, atribuindo linha superior o papel de voz-T, na posio
livre. Em dois momentos surge uma nota fora da trade (marcados por um asterisco entre
parnteses). A linha inferior usa o ciclo I, aqui variado por repetir alguns grupos de notas.
mesmo utilizada a inverso do ciclo I, como indica a Figura X:

Figura 130. Anlise de ora pro nobis de Salve Regina


As duas linhas reunidas numa nica pauta:
188

Figura 131. Material da figura 130 reduzido a uma linha


Tcnicas utilizadas em Salve Regina:
-alternncia de modos com o mesmo centro: r elio, r drico, r frgio, todos
modos de tera menor.
-tcnica tintinabular com a voz-T na posio livre
-ciclos; com ornamentao e inverso
-escalas como ornamentao e como base de ciclos

189

4.4. Per noctes (2003)


Cerca de um ms mais tarde102, escrevi uma pea para vozes e instrumentos sobre o
texto latino do Salmo 133. Este Salmo utilizado no Ofcio das Completas do Sbado
(depois das Primeiras Vsperas do Domingo). Com duas partes vocais e duas linhas
instrumentais, sua instrumentao aberta. Tendo-o chamado Psalmus CXXXIII, escolhi
depois o ttulo Per noctes ( noite), palavras que constam de seu texto.
A princpio estas linhas instrumentais haviam sido pensadas para vibrafone e
glockenspiel. Logo depois, porm, decidi que a instrumentao no seria fixa. Mesmo as
partes vocais podem ser executadas por instrumentos. Porm, como as partes instrumentais
fazem em alguns momentos soar duas notas ao mesmo tempo, realizei algumas pequenas
mudanas na instrumentao para quarteto de flautas doces que realizei em 2008. Isto inclui
a ampliao formal da pea, j que em alguns trechos a parte de vibrafone tocava a duas
vozes. Resolvi este problema fazendo repetir a seo, e em cada uma das repeties
fazendo ouvir uma voz diferente. Por esta razo, a partitura para flautas doces tem 75
compassos, enquanto a partitura anterior tinha apenas 51. Alm disto, foi necessrio
transpor a pea um tom acima para acomod-la tessitura das flautas doces.
O anexo II deste trabalho reproduz a partitura como foi escrita primeiramente: duas
linhas instrumentais e duas linhas vocais.
O texto apresentado duas vezes na composio. Ao music-lo, na primeira
apresentao, escolhi processos aditivos numricos que no se relacionam a ele. Uma nota
repetida trs vezes, em seguida outra repetida quatro vezes, depois cinco e assim por
diante. A figura 132 mostra como isto se processa nos compassos de 1 a 9:

102

Setembro de 2003.

190

Figura 132. Incio da parte vocal de Per noctes


A voz superior segue 2-3-4-5-6-(8). Os parnteses indicam que o 8 est fora da
ordem, tendo sido pulado o nmero 7. A voz inferior segue 2-3-4-5-6-(6), e aqui os
parnteses indicam que o 6 foi repetido, quando o certo teria sido tocar (ou cantar) uma
nota sete vezes.
Este processo usado em toda a primeira exposio do texto, que termina no
compasso 17. De fato, o nmero 7 que ficou faltando na voz inferior realizado por ela no
compasso 11. A Figura 132 mostra a presena desses processos sempre aditivos. Utilizei
mesmo um ciclo na voz inferior dos compassos 16-17, em que o nmero 2 se alterna com
outro sempre maior a cada apario: 2-3-2-4-2-5.
Na anlise dos compassos 11 e 12 contei, como sendo um mesmo grupo, seqncias
de notas diferentes. No caso das notas sobre a palavra sanctuarium, na linha superior, o
nmero 5 se encaixa em relao ao nmero de notas que o processo aditivo pede para este
momento. Na voz inferior, as sete notas podem ser consideradas uma ornamentao do si
natural, que j havia sido ouvido sete vezes e volta nas ltimas duas destas novas sete.
No compasso 14, a voz superior foi escrita livremente e no se enquadra nos
processos que estou descrevendo.
191

Figura 133. Processos aditivos na parte vocal de Per noctes


Uma nova seo comea, na composio, no compasso 22. Em andamento mais
rpido, o texto apresentado novamente, e outro mtodo de music-lo foi utilizado.
maneira de Prt, vinculei a escolha das notas ao nmero de slabas de cada palavra.
Vimos neste trabalho que Prt utiliza movimentos escalares e os relaciona ao
nmero de slabas de uma palavra, em algumas de suas peas. O sistema que usei
assemelha-se aos de Prt, mas no chega a ser usado por ele. Encontra-se explicado pela
Figura 134: de uma escala de cinco notas (primeiro pentacorde de f sustenido elio),
extraio tantas notas quantas forem necessrias para cada possvel nmero de slabas,
buscando que os grupos sejam simtricos. Assim, ao escolher duas notas, tomo as extremas:
192

a primeira e a quinta. Ao escolher trs, as extremas e a central: primeira, terceira e quinta.


Ao escolher quatro, deixo de fora a central e tomo as restantes103. Finalmente, todas as
cinco notas para palavras de cinco slabas.

Figura 134. Palavras com diversos nmeros de slabas musicadas conforme a escala
A figura acima mostra as notas em ordem ascendente, mas na msica no
obrigatoriamente aparecem assim. Ademais, esta escala utilizada nos quatro primeiros
compassos (23-26); nos trs seguintes (27-29) ela deslocada, isto , ocorre uma
modulao; mas a idia permanece a mesma. No compasso 27 o centro sol: as palavras de
duas slabas usam as notas r e sol; os monosslabos, que pelo sistema usado nos compassos
23-26 deveriam usar o si bemol, usam o centro do modo, sol; nos compassos 28-29 o centro
da escala mi, e o sistema rigorosamente o mesmo usado no incio: monosslabos usando
a tera (sol, em per).
Est reproduzido abaixo o trecho que vai do compasso 22 ao 29. A voz inferior
canta em quintas paralelas linha da voz superior.

103

O exemplo com quatro notas terico, j que nesta seo no aparecem palavras tetrasslabas. A palavra
benedicat aparece mais adiante, mas a o processo j outro.

193

Figura 135. Escolha das notas para cada palavra nos compassos 23-29 de Per noctes
Em seguida, o trecho que vai do compasso 33 ao 36 foi escrito livremente. Os
compassos 38-40 utilizam um tetracorde, uma escala de quatro notas. Este tetracorde faz
parte do pentacorde utilizado nos compassos 23-26; deste foi excluda a tera.
Um sistema mais maneira de Arvo Prt usado para atribuir slabas s notas: uma
slaba, primeiro grau; duas slabas, primeiro e segundo graus; e assim por diante, pensando
de modo ascendente, conforme mostra a prxima figura.

Figura 136. Palavras com diversos nmeros de slabas musicadas conforme a escala
Os compassos 41 e 42 foram escritos livremente, utilizando somente as notas de
trade de f sustenido menor.
A figura 137 mostra a parte das vozes nestes compassos que vo de 33 a 42.

Figura 137. Escolha das notas para cada palavra nos compassos 38-42 de Per noctes
194

As linhas instrumentais de Per noctes utilizam procedimentos j descritos at aqui.


J no compasso 7, em sua primeira entrada, a linha superior usa a seqncia 1-2-3-4 para as
repeties de notas, enquanto a linha inferior usa 4-3-2-1.
Embora o nmero 4 na linha superior no tenha sido realizado na forma de quatro
execues da mesma nota, levo em conta, no momento da composio, o fato de sua ltima
nota ser igual ao do ciclo anterior, de trs notas, considerando-a assim uma realizao do
nmero 4.

Figura 138. Processos aditivos na parte instrumental de Per noctes


Nos compassos 16-17, pela primeira vez na pea, fiz uso da tcnica tintinabular. A
voz-M , aqui, um fluxo de colcheias composto livremente. A voz-T, na linha instrumental
inferior, centra-se na trade de sol menor. A posio livre.

Figura 139. Tcnica tintinabular nos compassos 16-17 de Per noctes


Nos compassos 22-45, isto , na segunda exposio do texto, constru as linhas
instrumentais por meio de ciclos, o primeiro dos quais enunciado pela segunda linha
instrumental no compasso 22, que chamarei de ciclo I.
Como a linha instrumental inferior foi originalmente escrita a duas vozes, a prxima
figura mostra esta seo da pea em trs pautas, de maneira a facilitar a visualizao da
anlise de cada uma das trs linhas compostas independentemente.
195

O ciclo I est presente em vrios momentos, sendo utilizado por todas as vozes. Nos
compassos 23-25 mesmo utilizada a sua inverso, pela linha instrumental superior. Vrios
outros ciclos surgem, e esto todos analisados na prxima figura. Para no confundir um
ciclo com o seguinte ou com o precedente na mesma linha, indiquei com o sinal S (segno) o
incio de cada um deles. Prximas trs pginas: figura 140.

196

197

198

199

ltimas trs pginas: figura 142.


Nos ltimos seis compassos da composio, terminada a segunda apresentao do
texto, a linha instrumental inferior executa, um semitom acima, a parte das vozes nos
compassos 1-9. Uma interrupo, no compasso 49, ocorre para o primeiro Amen, nas vozes
e na linha instrumental superior. Um segundo Amen conclui a pea, no compasso 51.

Figura 141. Final de Per noctes


A figura seguinte apresenta um panorama harmnico de Per noctes. Os nmeros se
referem aos compassos. Nos casos em que todas as notas de uma escala (ou quase todas)
esto indicadas, trata-se do modo utilizado naquele trecho como os compassos 16-17, 1819 etc. Quando poucas notas so indicadas, como nos compassos 1-6, 11-15, 20 etc., ou
todas as notas soam como acorde ou elas so o conjunto de todas as alturas utilizadas,
mesmo que no simultaneamente, no trecho dado.

200

Figura 142. Panorama harmnico de Per noctes


Tcnicas utilizadas em Per noctes:
-notas repetidas, maneira das recitaes salmdicas, como em Prt
-processos aditivos
-ciclos
-tcnica tintinabular com a voz-T em posio livre
4.5. Ao Anjo da Guarda
No Anexo IV deste trabalho est reproduzida a partitura de lef, a primeira das seis
peas que compem a srie Ao Anjo da Guarda, op.43, composta em 2004 e 2005, para
piano solo104. Nesta composio se alternam dois elementos: uma monodia e um refro em
acordes.
A monodia, sendo naturalmente uma nica melodia desacompanhada, traz um
detalhe adicional que o uso do pedal direito do piano durante toda a sua extenso. Embora
o carter mondico permanea claro, nenhuma das notas abandonada, continuando a soar
at que no se as possa mais ouvir. Ainda assim, note-se que a melodia se desenvolve
104

As seis peas levam como ttulo o nome das seis primeiras letras do alfabeto hebraico: lef, beit, gumel,
dlet, hei e vav.

201

sempre sobre as mesmas cinco notas: sol, l, si, r e mi. O total desta escala, portanto, s
deixa de ser ouvido quando o pedal tirado no compasso 11, ao trmino desta primeira
seo. Sua construo segue um processo aditivo:

compasso

processo aditivo

ciclo do processo aditivo

(acorde)

(acorde)

AB

AB

ABC

ABC

ABCD

ABCD

ABCDEF

ABCDEA

ABCDEFG

ABCDEAB

ABCDEFGH

ABCDEABC

ABCDEFGHI

ABCDEABCD

10

ABCDEFGHIJ

ABCDEABCDE

11

ABCDEFGHIJK

ABCDEABCDEA

A segunda coluna mostra como ocorre o processo aditivo, cada letra representando
uma nota. No final a melodia conta j com onze notas, representadas aqui pelas letras de A
a K. Entretanto, ao chegar a letra F, ela repete a letra A; e quando chega a vez de G, temos
B. A seqncia ABCDE comea novamente, e isto que indico aqui na terceira coluna com
o ABCDE sublinhado, e, no final, com a letra A duplamente sublinhada, na terceira
apario da primeira nota da melodia.
No compasso 6 fiz com que a melodia recebesse duas notas novas, e no apenas
uma. Uma pequena imperfeio que apliquei arbitrariamente, como procurando dar um
sutil aspecto artesanal e ligeiramente menos rigoroso melodia.

202

Outra melodia construda aditivamente comea no compasso 24 e vai at o


compasso 34. A escolha das notas segue um padro de grupos de trs notas contguas: l-sid (1-2-3), f-mi-r (3-2-1) e f-sol-l (3-2-1). Quando ao processo aditivo, semelhante ao
da primeira melodia, com o uso de uma nota adicionada no meio, e no no fim da melodia.
Esta nota est indicada na tabela abaixo por um x minsculo para facilitar a leitura.
Os compassos 33 e 34 repetem frases da primeira melodia, e por essa razo no
aparecem nesta tabela.

24

25

AB

26

ABC

27

ABCD

28

ABCDE

29

ABCDEF

30

ABCDEFG

31

ABCDEFxG

32

ABCDEFxGH

Nos compassos que vo de 50 a 60 a primeira melodia (cps. 1-11) repetida, mas


agora no mais como monodia. A mo esquerda prov um acompanhamento tintinabular na
trade de r menor. Aqui se trata da idia de utilizar uma voz-T numa trade que no a do
primeiro grau do modo (a melodia est em l menor natural, ou l elio). A posio da vozT livre.
So, portanto, trs as sees que vimos: as melodias dos compassos 1-11, 24-34 e
50-60. O refro em acordes se faz presente nos compassos 12-23, 35-49 e 61-80. Embora as
sees utilizem a mesma melodia na voz superior, variam no nmero de compassos devido

203

extenso da durao de alguns acordes (no caso da segunda apario) e ao maior nmero
de repeties (no caso da terceira apario).
Este refro em acordes utiliza uma melodia simples em ritmo trocaico que
poderamos chamar de melodia tintinabular, devido ao fato de utilizar somente as notas
da trade de l menor. Consta de quatro compassos (12-15), que na primeira apario
ouvida trs vezes (12-15; 16-19; 20-23). Na segunda apario tambm ouvida trs vezes
(35-39; 40-44; 45-49). So cinco compassos porque o ltimo acorde tem sua durao
estendida por mais um compasso. Na terceira e ltima apario, a frase volta aos quatro
compassos, mas ouvida cinco vezes (61-64; 65-68; 69-72; 73-76; 77-80).
Finalmente, lef conclui com uma pequena e silenciosa coda sobre as notas l e mi,
primeiro e quinto graus da escala da pea.
Tcnicas usadas em lef:
-tcnica tintinabular na posio livre
-tcnica tintinabular com voz-T em trade diferente da principal da voz-M
-processo aditivo
-ciclos
4.6. Liturgia n1
Escrita j em 2007, a Liturgia n1, op. 47, para piano solo, a composio que
veremos agora. formada por quatro movimentos:
I. Alfa de Paus, So Miguel.
II. Beta de Copas, So Gabriel.
III. Gama de Espadas, So Rafael.
IV. Delta de Ouros, Santo Anjo da Guarda.
Inicialmente, escrevi em meu caderno de esboos o ciclo mostrado na prxima
figura, na letra A. So teras, ora maiores, ora menores, seguindo a escala diatnica. Cada
par de notas formando uma tera se move por grau conjunto, descendo, e depois subindo.
Este ciclo fechado: no h acrscimos de notas.

204

Este ciclo exposto na msica, literalmente, logo de incio, nos compassos de 1 a 5


e novamente nos compassos de 12 a 16. Cada uma destas exposies finalizada com a
reiterao de uma quinta d-sol, afirmando enfaticamente d elio.
No compasso 24 exposta uma melodia composta a partir do ciclo. Para escrev-la,
ornamentei o ciclo utilizando duas idias:
1 formar graus conjuntos
2 formar trades
Graus conjuntos e trades so a base da tcnica tintinabular. E estas duas idias
foram realizadas da seguinte maneira: (o texto continua depois dos exemplos)

205

206

207

Duas pginas anteriores: Figura 143. Incio da Liturgia n1, op.47 e Figura 144. Ciclo e
temas usados no primeiro movimento da Liturgia n1
1 formar graus conjuntos: preenchendo com as notas intermedirias os graus
disjuntos existentes no ciclo
2 formar trades: completando com novas notas os intervalos que proporcionem a
construo de uma trade basicamente as teras e as quintas, mas tambm suas inverses,
as sextas e as quartas.
A ornamentao do ciclo, mostrada na letra B, utiliza apenas a idia de formar
trades. No formei trades no ciclo inteiro, pois isto tornaria o material muito
desinteressante para minhas intenes.
Compus, ento, o tema mostrado na letra C, que em seu incio ainda acrescenta, ao
ciclo da letra B, algumas novas notas para formar trades, indicadas aqui com o nmero 3.
A idia das notas que fazem formar graus conjuntos foi utilizada no tema mostrado na letra
D, nas quais essas notas foram marcadas aqui com um asterisco. Novamente aparece o
nmero 3, quando se formou uma trade, e mesmo o nmero 8, indicando aqui que se
adicionou a oitava de uma nota sem que esta oitava fizesse parte do ciclo original.
Estes dois temas so ouvidos, portanto, neste primeiro movimento da Liturgia n1.
O primeiro deles, nos compassos 24-32. O segundo, mais adiante, nos compassos 43-49.
Antes da apario do segundo tema o primeiro repetido, mas com uma
modificao substancial. Vejamos os compassos 33-42.

208

Figura 145. Compassos 33-42 do primeiro movimento da Liturgia n1


Depois de dois compassos em sua altura original, o tema recomea transposto. A
primeira nota do terceiro compasso d, que, sem a transposio, seria a nota deste
momento. Mas ela se torna a nova nota inicial do tema, agora uma tera maior mais grave.
No compasso 39 acrescentei uma nota (eram seis no tema original) para fazer o
harpejo chegar nota original do tema, sem transposio, no compasso 40. Os compassos
40 e 41 so idnticos aos da forma original do tema exceto que no fim do 41 h uma
pequena extenso que faz o tema finalizar uma segunda maior abaixo, em r bemol.
No compasso 43 o segundo tema introduzido. Porm, no exatamente como na
letra D do penltimo exemplo, mas uma quinta justa acima, comeando em si bemol. Este
si bemol forma, com o r bemol do compasso anterior, uma relao de tera colocada neste
momento consciente e propositadamente, devido sua cor peculiar.
Esta exposio do segundo tema toma os compassos de 43 a 49. Ele
imediatamente reexposto, na altura mostrada pelo penltimo exemplo, em mi bemol, nos
compassos que vo de 50 a 56.
Tem ento incio uma seo em que se amplia na tessitura do piano a idia do
harpejo de teras do primeiro tema (compasso 39, veja o ltimo exemplo). So os
compassos de 57 a 68, que cito aqui integralmente.
209

Figura 146. Compassos 57-68 do primeiro movimento da Liturgia n1

210

Logo em seguida ouve-se novamente o primeiro tema, com um processo de


recomeo e transposio como em sua segunda apario; a transposio, porm, ocorre
num ponto diferente; no se retorna altura original e uma extenso faz o tema finalizar em
mi maior, um semitom acima do original.

Figura 147. Compassos 69-75 do primeiro movimento da Liturgia n1


Este trmino do tema em mi maior soa luminoso, especialmente devido ao retorno
do ciclo, no compasso seguinte, comeando pela nota mi bemol, num campo diatnico de
d elio ou mi bemol maior, isto , um semitom mais grave, sugerindo uma diminuio da
luz.
O ciclo, com algumas poucas notas adicionadas verticalmente (como uma
harmonizao), d lugar a um final em que se afirma firmemente sol frgio, que nunca
havia sido ouvido na composio. As notas de sol frgio so as mesmas do d elio do
ciclo, mas a enftica polarizao da quinta sol-r no deixa dvidas quanto ao status de sol
como primeiro grau do modo agora utilizado, vindo como novidade para encerrar o
primeiro movimento.
Tcnicas utilizadas em Alfa de Paus, So Miguel da Liturgia n1:
-ciclos
-ornamentao de ciclos
211

-uso dos ciclos para a composio de melodias


-cnon mensurado (cps.65-68)
-transposio parcial de uma melodia, incluindo o seu reincio a partir de uma nota
pertencente a um outro ponto seu
-monodia, ainda que instrumentada, ao piano, para as duas mos, em diferena de
duas oitavas; mas tambm monodia pura.
4.6.1. 2, 3 e 4 movimentos da Liturgia n1
No terceiro movimento da Liturgia n1 servi-me da idia de utilizar uma melodia
como fonte de um modo meldico para a composio de outra melodia. Na poca, minha
ateno era chamada para o fato de que nos ragas da msica indiana a escala no
considerada da mesma maneira que pensamos no Ocidente, isto : todas as notas em
direo ascendente, e ento as mesmas notas em direo descendente. A verso
descendente, com freqncia, diferente da ascendente, e pode incluir notas que aquela no
possui, e vice-versa. comum tambm que haja repeties de notas; por exemplo, uma
escala ascendente do tipo d r mib sol f sol sib d105. A escala tambm,
muitas vezes, informa as seqncias de notas possveis, e pode acontecer que duas notas
especficas, embora faam parte da escala, nunca possam suceder uma outra.
Isto ocorre, sem dvida, no sistema modal do canto gregoriano tambm, embora a
bibliografia comente menos este aspecto no canto gregoriano do que a bibliografia da
msica indiana.
Desejei tomar, portanto, uma melodia, e dentro do seu modo propriamente dito (no
apenas o tesouro de notas, mas tambm os magnetismos internos, as sucesses possveis)
escrever outras melodias. Tomei, portanto, o primeiro tema do primeiro movimento da
Liturgia n1, j citado anteriormente, e anotei suas sucesses possveis de notas, sempre
duas a duas.
Por exemplo: comeando com a nota mi bemol, tomei todas as suas aparies e
anotei a nota seguinte, verificando que s havia duas: si bemol e sol. Somente estas duas
105

O exemplo hipottico. O sol antes e depois do f o mesmo.

212

notas podem vir depois de mi bemol no modo especfico, pessoal desta melodia.
Portanto, meu novo tema seguiria esta regra.
Fiz o mesmo com todas as outras notas. Mais um exemplo: a nota sol. Ela sempre
sucedida por mi bemol, r ou si bemol, nunca por outra.
Assim obtive um modo cuja peculiaridade permitir apenas os seguintes pares de
notas em sucesso:

Figura 148. Pares de notas obtidos do primeiro tema


do primeiro movimento da Liturgia n1
Com base nestas possibilidades de movimentos meldicos, compus a melodia final
do quarto e ltimo movimento da Liturgia n1, como o leitor pode ver nos compassos que
vo de 80 a 91.

213

Figura 149. Final do ltimo


214movimento da Liturgia n1

A mesma tcnica apliquei ao tema que abre o segundo movimento da Liturgia n1.
Logo de incio ele exposto trs vezes: uma em monodia, em sua forma original; na
segunda vez, ornamentado; e na terceira acompanhado de uma voz-T em posio livre.

Figura 150. Incio do segundo movimento da Liturgia n1


Deduzi seus movimentos meldicos:

Figura 151. Pares de notas obtidos do incio do segundo movimento da Liturgia n1


E, a partir deles, escrevi alguns temas ouvidos nos movimentos seguintes. Utilizei
os movimentos meldicos acima na altura em que os citei, mas tambm transpostos, como
mostrarei agora.
Primeiramente, no terceiro movimento, um tema de trs compassos, ouvido trs
vezes, nos compassos 24-32. A melodia est em mi bemol elio (menor natural), embora
215

falte o d bemol na armadura de clave; ele no faz falta, porm, j que a nota d no
aparece na melodia. De fato, esta nota aparece, sim, no acompanhamento em quintas, dando
um sabor drico ao trecho.

Figura 152. Compassos 24-32 do terceiro movimento da Liturgia n1


Neste mesmo terceiro movimento, agora em si bemol elio, surge este tema nos
compassos 58-63:

Figura 153. Compassos 58-63 do terceiro movimento da Liturgia n1


No quarto movimento, o tema dos compassos 34-47 tambm segue os movimentos
meldicos de que tratamos:
216

Figura 154. Compassos 34-47 do ltimo movimento da Liturgia n1


Uma variao desse tema, tornando-o mais simples e, de modo geral, aumentando
os valores das notas, sobreposta ao ciclo em teras do primeiro movimento:

Figura 155. Compassos 51-60 do ltimo movimento da Liturgia n1

217

Nos trs compassos intermedirios entre os ltimos dois trechos citados, aparece
uma melodia tambm calcada nos movimentos meldicos de que falo:

Figura 156. Compassos 48-50 do ltimo movimento da Liturgia n1


Em meus esboos, ao me referir a esta tcnica eu usei a palavra modalizao,
pensando no fato de que a partir de uma melodia eu deduzo os movimentos meldicos
possveis, obtendo um modo, de fato. Considero o termo apropriado, embora eu no
necessariamente proponha que a tcnica seja assim denominada por outros. Ainda que eu a
utilize, existe uma objeo que eu mesmo coloco em relao a seu uso: ao falar da
modalizao de uma melodia, seria possvel imaginar que a tal melodia seja objeto da
ao de modalizar, isto : que a melodia passa por alguma transformao denominada
modalizao. Como demonstrei, no o que ocorre: a melodia no objeto, e sim fonte: ela
proporciona um nmero limitado de movimentos meldicos possveis que sero a base de
novas melodias.
A tcnica tintinabular tambm utilizada na Liturgia n1, em dois momentos, ambos
na posio livre. O primeiro no terceiro compasso do segundo movimento, j citado
acima. O segundo, no mesmo movimento, est nos compassos de 16 a 22. O registro da
218

voz-T, muito mais agudo do que o da voz-M, foi assim colocado como idia de
instrumentao, com a finalidade de soar diferente da voz-M e no em fuso com ela. No
quinto compasso a voz-M silencia, e a mo esquerda comea sua prpria voz-T, com outro
centro (mi bemol), colorindo a voz-T do extremo agudo:

Figura 157. Compassos 16-22 do primeiro movimento da Liturgia n1


O segundo movimento da Liturgia n1 traz tem a peculiaridade de usar algo que
poderia ser chamado de bitonalidade; poderia, porque no se trata de outra coisa seno
uma variao da idia de executar uma melodia em oitavas. Nestes momentos bitonais
ambas as linhas executam a mesma melodia, embora em diferentes transposies.
Novamente, se trata de um efeito timbrstico de instrumentao.
Utilizei, para tanto, armaduras de clave distintas para a mo direita e a mo
esquerda. O primeiro momento ocorre j a partir do quarto compasso do segundo
movimento: mi bemol maior e mi maior se fundem numa tonalidade (ou modo) que no
nenhuma das duas separadamente.

219

Figura 158. Bitonalidade no segundo movimento da Liturgia n1


Os trs momentos bitonais da obra inteira ocorrem neste segundo movimento,
sendo relativamente breves.
Tcnicas utilizadas em toda a Liturgia n1, incluindo as j mencionadas com relao
ao seu primeiro movimento:
-ciclos
-ornamentao de ciclos
-uso dos ciclos para a composio de melodias
-modalizao de melodias para a composio de outras
-cnon mensurado
-transposio parcial de uma melodia, incluindo o seu reincio a partir de uma nota
pertencente a um outro ponto seu.
-monodia, ainda que instrumentada, ao piano, para as duas mos, em diferena de
duas oitavas; mas tambm monodia pura.
-bitonalidade como tcnica de instrumentao, para efeito timbrstico. Este
ponto se relaciona ao anterior, da monodia.
-tcnica tintinabular, inclusive com a voz-T muito distante, na tessitura, da voz-M,
como efeito de instrumentao, com o propsito de separ-las e no de fundi-las.
4.7. Liturgia n2
A Liturgia n2, op. 50, composta para piano solo em 2008, compe-se de trs
movimentos106:
I. Per Signum Crucis
106

Em portugus, respectivamente: pelo Sinal da Cruz, far-vos-ei pescadores de homens e Sagrada


Famlia.

220

II. Faciam vos piscatores hominum


III. Ad Sanctam Familiam
Recorri novamente aos ciclos como fonte de figuras meldicas na composio desta
pea. Desta vez sobrepus trs ciclos simples, como mostra a prxima figura.
Na linha superior, um ciclo de quartas justas em grupos de trs, sendo a primeira
nota de cada grupo um grau conjunto acima da primeira nota do grupo anterior.
Na linha intermediria, a mesma idia da linha superior, porm em pares de notas.
Na linha inferior, uma simples escala ascendente.

Figura 159. Trs ciclos sobrepostos para a Liturgia n2


Composto este quadro, entrelacei os ciclos numa nica linha, lendo primeiro a linha
inferior, depois a intermediria, e finalmente a superior, e seguindo a leitura da esquerda
para a direita. Eis a linha obtida:

Figura 160. Ciclo da Liturgia n2, formado pelo


entrelaamento dos trs ciclos da figura 162
Este novo ciclo, construdo pelo entrelaamento de trs ciclos, foi a base da melodia
que abre a composio. Algumas ornamentaes foram acrescidas, e foram sempre
realizadas com o mtodo de formar trades ou graus conjuntos:

221

Figura 161. Incio da Liturgia n2


Um pouco adiante, nos compassos 7-13, surge uma nova figura, de ritmo trocaico,
baseada tambm nas primeiras notas do ciclo. Ela se torna um ostinato na mo esquerda,
enquanto a direita a estende.

222

Figura 162. Compassos 7-13 do primeiro movimento da Liturgia n2


Este tema, variado, harmonizado de maneira tintinabular prximo do fim da pea,
nos compassos 39 e 42. Os compassos de 39 a 51 (fim do primeiro movimento) vo
reproduzidos aqui, na prxima pgina. A figura de quatro notas dos compassos 40-41 e 4344 encontram sua origem no primeiro tema do movimento, no compasso 2, j citado.
Nos compassos que vo de 45 a 48 este tema de ritmo trocaico acompanhado pela
sua prpria inverso, na mo esquerda.

223

Figura 163. Fim do primeiro


224movimento da Liturgia n2

Para o segundo movimento da Liturgia n2 realizei a modalizao no de um tema


escrito por mim, mas de uma melodia gregoriana, de cujo texto foram retiradas as palavras
do ttulo. O movimento intitulado Faciam vos piscatores hominum, isto : far-vos-ei
pescadores de homens, conforme o Evangelho de So Mateus. A melodia gregoriana se
encontra no modo 8, e o Graduale Romanum a prescreve para a comunho dos anos
litrgicos A e B no Terceiro Domingo do Tempo Comum.
Como mostrei anteriormente, a modalizao elenca os pares de notas de uma
melodia, mostrando por quais outras notas as notas so sucedidas. Nesta pea procedi da
mesma maneira, mas tambm anotei os trios de notas, e no apenas os pares. Eles tambm
foram a base da composio de temas do segundo movimento.
O exemplo a seguir lista todos os pares de notas e todos os trios de notas da melodia
Venite post me, faciam vos piscatores hominum.

225

Figura 164. Movimentos meldicos de duas e de trs notas obtidos


da antfona Venite post me, faciam vos piscatores hominum
226

Tambm o terceiro movimento da Liturgia n2, intitulado Ad Sanctam Familiam (


Sagrada Famlia) foi escrito com base na modalizao de uma melodia gregoriana; desta
vez, do hino Dulce fit nobis, prescrito para a Festa da Sagrada Famlia. Foram novamente
usados os mtodos por pares e por trios de notas.
Ad Sanctam Familiam, o movimento mais longo da Liturgia n2, foi composto
como uma espcie de tema e variaes, em que um tema ou grupo de temas exposto e
seguido por variaes que o adornam. Entretanto, as variaes no se apresentam
comeando pela mais simples e fazendo ouvir trechos cada vez mais ornamentados.
Embora a composio realmente se tenha dado desta forma, coloquei uma variao mais
florida no incio, e as subseqentes vo perdendo seus enfeites at se chegar a figuras mais
bsicas. De fato, chega-se ao tema, nos compassos 53-55:

Figura 165. Tema do terceiro movimento da Liturgia n2


Os compassos anteriores, portanto, so sua primeira variao (cps.45-52):

Figura 166. Primeira variao do tema do terceiro movimento da Liturgia n2


O mtodo utilizado na composio desta primeira variao o de preencher os
graus disjuntos, formando assim movimentos escalares. Usei tambm um processo aditivo,
227

estendendo o tema pela repetio de suas ltimas trs notas e fazendo a variao terminar
no l bemol. Este processo freqentemente emprego ao longo de todo o terceiro
movimento; aplicada tambm a idia de desdobrar a melodia em duas vozes ou
simplesmente acrescentar uma nota a pretexto de, numa variao posterior, formar uma
trade. Por esta razo, h trechos em que so abundantes as teras e graus conjuntos; por
exemplo, nos compassos 275-282.

Figura 167. Teras e graus conjuntos nos compassos 275-282


do terceiro movimento da Liturgia n2
As variaes foram escritas, inclusive, com a incrustrao de novas figuras que
passam a fazer parte da msica e se sujeitam a desenvolvimentos nas variaes seguintes.
Assim que o pequeno tema de trs compassos (53-55), citado anteriormente, se torna no
final uma seo de dimenses bem maiores, em que figuras surgidas no meio da pea se
desenvolvem e se ornamentam, expandindo-se consideravelmente. Para ilustrar, reproduzo
a seguir os compassos 202-285: so as duas variaes antes da ltima, situando-se
respectivamente nos compassos 202-224 e 225-285. A diferena no nmero de compassos
destas variaes (23 e 61) reflete a maior extenso que as figuras da mo esquerda, ausentes
do tema original, adquirem na segunda variao em relao primeira. Evidentemente,
ocorre tambm o desenvolvimento das prprias idias remanescentes do tema.

228

Prximas trs pginas: figura 168. Compassos 202-285 do terceiro movimento da Liturgia
n2

229

230

231

Esta figura e duas pginas anteriores: figura 168.


Compassos 202-285 do terceiro movimento da Liturgia n2
Tcnicas utilizadas na Liturgia n2
-ciclos
-ornamentao de ciclos
-construo de ciclos pelo entrelaamento de ciclos
-uso dos ciclos para a composio de melodias

232

-modalizao de melodias para a composio de outras: a cada duas notas e a cada


trs notas
-transposio parcial de uma melodia, incluindo o seu reincio a partir de uma nota
pertencente a um outro ponto seu.
-monodia, ainda que instrumentada, ao piano, para as duas mos, em diferena de
duas oitavas; mas tambm monodia pura.
-tcnica tintinabular
4.8. Liturgia n3
Trato agora da Liturgia n3, op. 54, escrita como as duas anteriores para piano solo e
constante de trs movimentos:
I. Misteriosos desejos do infinito
II. poca de flores brancas
III. A pequena via
O terceiro movimento, A pequena via, foi o primeiro a ser escrito. Para sua
composio, idealizei um ciclo formado por dois ciclos de escalas descendentes, em
alternncia de uma e duas notas. A prxima figura mostra este ciclo. Cada uma das duas
escalas descendentes est indicada numa cor diferente: uma em notas brancas, a outra em
notas pretas. O trecho marcado a pequena via (as ltimas doze notas) indica as notas
sobre as quais foi composto o tema exposto logo no incio do movimento.

Figura 169. Ciclo da Liturgia n3

233

Como o leitor poder observar, o trecho extrado para o tema de A pequena via
comea com duas notas repetidas, sol e f. O tema ignora as repeties, fundindo-as numa
nica apario das notas respectivas.
Aps ser exposto nos compassos de 1 a 4, o tema tem o seu eixo tridico deslocado
na sua imediata reapario nos compassos de 5 a 10. Mais abaixo entenderemos de que isto
se trata.

Figura 170. Incio do terceiro movimento da Liturgia n3


A prxima figura ajudar a esclarecer de que se trata o deslocamento do eixo
tridico.
Na letra A, aparecem a trade com suas duas inverses. Na posio fundamental, a
trade de compe de duas teras; nas inverses, uma tera e uma quarta. Assim, estabeleci
uma relao entre cada nota da trade com as outras; pensando nas inverses como
tradues da posio fundamental da trade, quis tambm traduzir melodias,
deslocando as notas da trade para a prxima nota da trade, ajustando tambm as restantes.

234

O tamanho desigual dos intervalos componentes das inverses faz com que certas
notas tenham duas equivalentes possveis numa traduo, ou que duas notas tenham
apenas uma como demonstra a letra B.
Finalmente, a letra C mostra o tema em sua posio original, e na linha inferior sua
verso com o eixo tridico deslocado: sol se torna si bemol, si bemol se torna r, e r se
torna sol. So indicados tambm os intervalos que se

modificaram devido ao

deslocamento.

Figura 171. Deslocamento dos eixos tridicos


Esta maneira de variar melodias, mantendo seu perfil, foi adotada por mim em
vrias outras peas subseqentes.
De volta a A pequena via, havamos interrompido nossos comentrios 15.

235

Nos compassos seguintes o tema estendido e ornamentado (16-21) e harmonizado


de maneira tintinabular (23-26):

Figura 172. Compassos 16-30 do terceiro movimento da Liturgia n3


A ornamentao do tema se baseia numa adio feita ao ciclo de duas escalas
descendentes mostrado anteriormente. Ali tnhamos escalas que se alternavam,
apresentando uma e duas notas. Obtive um novo ciclo, naturalmente relacionado,
adicionando uma escala que apresenta trs notas, comeando uma oitava acima da escala
que apresenta duas notas (que, por sua vez, j comeava uma oitava acima da escala que
apresenta uma nota). As novas notas aparecem quadradas na figura seguinte.

236

Figura 173. Ciclo da Liturgia n3 expandido


Partes deste ciclo so usadas em todo o terceiro movimento. De resto, A pequena via
faz uso tambm da tcnica tintinabular em alguns momentos, como nos compassos 23-26,
j citados, e tambm no trecho dos compassos 161-181.
To tintinabular este trecho que os compassos 161-170 utilizam no apenas uma,
mas duas vozes-T, cada uma concentrada em um par de notas de trade de sol menor: a mais
aguda na dade sol-r, e a mais grave na dade si bemol-r. Alm disto, todo o trecho se
constri acima de um drone na nota sol. Mesmo os compassos 171-172 e 177-178 so uma
ornamentao desse drone.

237

Figura 174. Compassos 161-181 do terceiro movimento da Liturgia n3


Por ter A primeira via sido escrito antes dos dois movimentos precedentes, estes
utilizam alguns materiais tomados de emprstimo ao ltimo movimento, o que inclui o
ciclo que deu origem ao tema inicial e o prprio tema inicial. Entretanto, no me deterei
neste aspecto, procurando dar destaque s tcnicas que se relacionem s de Prt, ou ento
ao minimalismo. Ainda que tcnicas idnticas s de Prt nem sempre sejam utilizadas,
238

numerosos trechos revelam parentesco com seus procedimentos, por exemplo, no


pensamento dos movimentos escalares e das trades como base para a criao dos temas e
figuras, ou mesmo no uso dos movimentos escalares e trades como temas ou materiais em
si mesmos.
Assim, o tema inicial do primeiro movimento da Liturgia n1, Misteriosos desejos
do infinito, no se baseia em nenhum ciclo. Contri-se simplesmente pela idia de
movimentos escalares, ora ascendentes, ora descendentes. Uma particularidade rtmica o
identifica: as escalas descendentes so mais lentas. Um drone est quase sempre presente.
Ocorrem tambm duas transposies em meio ao tema, semelhantes s utilizadas no
segundo movimento da Liturgia n1, mas sol elio sempre retorna. As modulaes so para
tonalidades em relao de tera maior em relao principal: si e mi bemol. Si apresenta
uma cor drica (note-se a sexta maior, sol sustenido, nos compassos 11 e 15), enquanto mi
bemol, sendo certamente a tera menor (sol bemol), no chega a revelar sua sexta,
permanecendo pentatnica (compassos 9 e 13).

239

Figura 175. Incio do primeiro movimento da Liturgia n3


Si, tanto drico como elio, e mi bemol, tambm nos dois modos, aparecem em
outras partes deste primeiro movimento. Um trecho bitonal combina sol elio e si elio.
Entretanto, embora sejam utilizadas ao mesmo tempo, no se superpem, alternando-se;
cada uma faz ouvir cinco notas, aps o que d lugar outra, sustentando sua ltima nota.
Procurei assim utilizar com suavidade a variedade de cor, sem faz-las chocar-se. Convido
240

o leitor a observar as armaduras de clave diferentes neste trecho que vai do compasso 83 ao
97: sol elio na mo esquerda, si elio na mo direita.

Figura 176. Bitonalidade no primeiro movimento da Liturgia n3


As notas deste trecho bitonal chegam a este ponto depois de vrias transformaes.
So derivadas do tema principal do terceiro movimento, A pequena via, que j citei. Tomei
este tema e lhe transformei a escala, conservando o diatonismo, de maneira a ampliar sua
tessitura; em sua forma original, ela de uma oitava; estendi-a at uma oitava e uma quinta
justa. De fato, utilizei trs escalas diferentes, obtendo trs verses diferentes do tema.
O perfil da melodia se conserva em todas as suas verses, mantendo ascendentes os
movimentos ascendentes e descendentes os movimentos descendentes. Os intervalos, sim,
mudam, e nem sempre da mesma forma. Na primeira verso modificada, indicada pela letra
B, a segunda maior sol-f continua sendo uma segunda, embora menor, si bemol-l;
entretanto, a segunda menor mi bemol-r se torna uma quarta justa, sol-r. Mesmo com
grandes alteraes, o perfil se conserva, como dissemos, e tambm se mantm
reconhecvel.
241

Este procedimento se assemelha ao da mudana de eixo tridico, indo alm: no s


a as notas da trade trocam de lugar, carregando consigo as vizinhas, mas todas as notas da
escala recebem uma posio nova, pela alterao da escala inteira.

Figura 177. Tema do terceiro movimento (A pequena via) da Liturgia n3


e suas verses em escalas modificadas
O leitor observar que na coluna da direita, em que aparecem as verses do tema
com diferentes realizaes do mesmo perfil, marcamos grupos de notas: quatro, trs e trs;
as figuras descendentes da melodia. Em nmero de nove (no contamos a letra A, do tema
original), foram utilizadas em Misteriosos desejos do infinito, embora no em seqncia:
utilizei-as como um pequeno repertrio de figuras que alternei livremente na composio
do trecho que vai dos compassos 27 at 97, o que inclui a parte bitonal (83-97). Na seo
27-82, usa-se apenas sol elio. A mo esquerda circula pelas figuras meldicas do exemplo
anterior (mostradas na coluna da esquerda), enquanto a direita faz ouvir um novo tema (4250) Este tema foi extrado do segundo movimento, que, embora ainda estivesse inacabado,
j o continha quando eu estava compondo o primeiro. A seguir, tudo isto repetido, embora
a cada compasso uma mo silencie para a outra tocar, sempre alternadamente (52-67). Na
242

seqncia, esta parte surge novamente rearranjada, cada mo tocando cinco notas de cada
vez, dando em seguida lugar outra (68-82). No compasso 83, chegamos seo bitonal,
em que este padro mantido. Este longo trecho todo escrito em colcheias, requerendo na
execuo uma expressividade discreta que no permita que a msica se torne mecnica.
Cito a seguir, integralmente, os compassos de 42 a 82, cuja leitura o leitor pode
prosseguir no exemplo que cita os compassos 83-97, que colocamos anteriormente. O
compasso 98 nos leva de volta ao tema inicial, em sua primeira reapario. O movimento
escrito como uma espcie de rond, e outras reaparies ocorrero.

243

Figura 178. Compassos 42-82 do244


primeiro movimento da Liturgia n3

Como vimos, um pequeno grupo de nove figuras me forneceu um repertrio


meldico para a composio de uma parte de Misteriosos desejos do infinito. Para o
segundo movimento da Liturgia n3, chamado poca de flores brancas, idealizei um outro
repertrio de pequenas idias meldicas, desta vez bem mais numeroso, com quarenta
figuras. Algumas foram extradas do primeiro e terceiro movimentos da obra, e outras
foram compostas.
Ao escrever estas breves idias, parti do ciclo inteiro da Liturgia n3, o que inclui as
trs escalas descendentes. Cada uma de suas notas se tornou a primeira nota de um pequeno
material meldico; portanto, se o leitor observar as primeiras notas de cada idia,
encontrar o ciclo.
As idias esto relacionadas integralmente na prxima figura. Entre elas,
encontram-se:
-ornamentaes de uma nica nota (por exemplo: 19, 20, 33, 36, 39)
-idias tintinabulares, ou, melhor dizendo, tridicas (por exemplo: 23, 26, 29, 32)
-escalas (por exemplo: 18, 37)
-outros tipos, que podem incluir variaes dos tipos anteriores ou mistura de tipos.
Esta classificao no precisa ser rigorosa, e o leitor poder fazer suas prprias
avaliaes.
As figuras no so usadas na pea todas com a mesma funo, nem com a mesma
freqncia. Algumas se tornam figuras de acompanhamento, outras de modo mais temtico
ou meldico; utilizei tambm esta tabela de idias transposta um tom inteiro abaixo. As
idias tambm se sujeitam a ornamentaes, no aparecendo sempre necessariamente da
mesma forma.

245

Figura 179. Tbua de idias meldicas para o segundo movimento da Liturgia n3


O movimento inicia calmamente, de maneira improvisatria, sobre a idia 1:

246

Figura 180. Incio do segundo movimento da Liturgia n3


A textura se adensa gradualmente, e figuras rtmicas mais rpidas comeam a
aparecer. A partir do compasso 93 surge uma melodia com notas pontuadas baseada nas
idias 21 e 20 (compassos 93 e 94, com repeties subseqentes). A mo direita acompanha
com a tcnica tintinabular (com exceo da nota l, nos compassos 93-94, mas depois ela
desaparece).

247

Figura 181. Compassos 93-107 do segundo movimento da Liturgia n3


Os compassos 95 e 107 apresentam uma figura de quinta justa em tercinas, cuja
origem poderia ser atribuda a qualquer da idias da tabela que comeassem com quinta
justa ascendente (1, 13, 26, 27, 30, 32, 40), o que seria um exagero. De fato, utilizei esta
figura, sim, pelo seu intervalo, mas tambm pelo seu ritmo e timbre, como ligao entre a
melodia anterior, das notas pontuadas, e os momentos que esto por vir, em que ocorre
tambm uma modulao. No pensei em termos de uma determinada figura ser temtica
248

ou no por sua pertena ou no tabela, a no ser quando possusse mais notas; esta de que
falo fragmentria demais.
A idia 33 utilizada nos compassos 156-164 para figuraes em semicolcheias,
acompanhadas por uma voz-T na mo direita fazendo uso de intervalos bem mais abertos:

Figura 182. Compassos 156-164 do segundo movimento da Liturgia n3


Com os exemplos dados aqui se pode ter uma idia geral de como so utilizadas
essas pequenas frases na composio; uma descrio completa seria cansativa ou mesmo
tediosa para o leitor, ainda que muito paciente. Mesmo assim, no considero inteiramente
despropositadas algumas observaes: este conjunto de quarenta fragmentos meldicos foi
imaginado pormim como um procedimento anlogo quele dos sistemas modais que, alm
de definir quais notas fazem parte de sua escala, estabelecem tambm os magnetismos entre
essas notas, os caminhos possveis. Embora poca de flores brancas no se restrinja
somente a figuras encontradas na tabela, estas so muito mais numerosas e importantes na
composio da pea. Assim, a tabela uma espcie de descrio do modo individual
desta composio que, em grande parte utilizando as notas da escala de sol elio, tem a
especificidade de possuir estes quarenta movimentos caractersticos como sua essncia.
Quando me refiro aos sistemas modais, penso especialmente nos ragas indianos, j
mencionados neste trabalho. Se algum desejar dizer que montei meu prprio raga nesta
composio, no me oporei; entretanto, tenho ressalvas em relao a este nome, ainda que
utilizado de maneira comparativa, porque no tive a inteno de criar o modo pessoal
249

desta pea com todas as especificidades que um raga indiano tradicionalmente possui. Pode
ser uma oportunidade de se compreender melhor e aprofundar o uso da palavra modo. E,
longe de ser um desejo de afastar a influncia indiana, meu cuidado tem, na verdade, a
inteno contrria: a de no banalizar ou generalizar o uso de uma terminologia prpria de
uma cultura e um gnero musical tradicionais e venerveis.
Tcnicas utilizadas na Liturgia n3
-deslocamento dos eixos tridicos de uma melodia
-deslocamento de toda a escala de uma melodia
-bitonalidade como recurso modal, no apenas timbrstico como nos casos de
dobramento em intervalos que no a oitava
-modalizao de melodias para a composio de outras
-uso de um repertrio fechado de fragmentos meldicos para a composio de toda
a pea, ou da maior parte de uma pea
-tcnica tintinabular
-ciclos
4.9. Catopsilia florella
Embora transcender e afastar-se das tcnicas de Prt seja, por um lado, uma
necessidade no s de evitar a simples imitao de sua linguagem e de seu estilo, mas
tambm de encontrar novas idias que naturalmente j desejo, o retorno ao incio, talvez
uma tabula rasa, raramente se prova intil.
Voltando tcnica tintinabular em si, eu analisava a Missa syllabica quando, frente
pouca dificuldade de elencar todos os acordes possveis de uma certa configurao de
vozes-M e vozes-T, percebi a possibilidade de juntar ciclos (ou outros materiais meldicos),
aplicar-lhes suas vozes-T, e obter listas de acordes que poderiam ser utilizados de maneira
livre, como se fossem um campo harmnico. Constru, ento, esta tbua, como assim a
chamei.
Prxima pgina: Figura 183. Primeira tbua de acordes.

250

251

Chamei-a de primeira tbua, mantendo esta denominao para qualquer


composio em que venha a us-la, chamando possveis tbuas posteriores de segunda
tbua, terceira tbua e assim por diante. So sessenta acordes, embora alguns deles se
repitam.
Acordes da primeira tbua foram utilizados na composio para piano solo
intitulada Catopsilia florella, op.51 (2008)107. Logo no incio, um tema harmonizado com
acordes da tbua:

Figura 184. Incio de Catopsilia florella


Com a finalidade de facilitar o trabalho do leitor, localizamos cada um dos quinze
acordes na tbua:
Compasso 1
1 acorde linha C, acorde 7
2 acorde linha A, acorde 3
3 acorde linha A, acorde 5
Compasso 2
1 acorde linha C, acorde 9
2 acorde linha B, acorde 9
107

Catopsilia florella o nome


guide.co.uk/species/whites/t3.htm

cientfico

252

de

uma

borboleta

http://www.butterfly-

3 acorde linha A, acorde 6


Compasso 3
Acorde nico linha C, acorde 12
Compasso 4
1 acorde linha B, acorde 8
2 acorde linha B, acorde 2
3 acorde linha B, acorde 13
Compasso 5
1 acorde linha A, acorde 4
2 acorde linha B, acorde 12
3 acorde linha B, acorde 3
Compassos 6-7
Acorde nico linha B, acorde 11
Escolhi os acordes livre e intuitivamente. O fato de no terem sido utilizados
acordes da linha D meramente acidental, embora tenham sido usados acordes que esto
presentes na linha D j em sua segunda apario na tbua.
Em alguns momentos foram utilizadas transposies diatnicas da tbua, isto : no
se alterou nenhum nota da escala, mas os graus foram transpostos. Assim, um acorde que na
tbua original fosse r-f-l, ao ser transposto um grau acima se torna mi-sol-si bemol. O
trecho a seguir mescla acordes da tbua original (que chamo de tbua no primeiro grau)
com acordes de transposies da tbua (que chamo de tbua no quinto grau, tbua no
segundo grau etc.). O trecho seguinte (compassos 119-124) traz alguns de tais acordes:

Figura 185. Compassos 119-124 de Catopsilia florella

253

Como todos os acordes da primeira tbua no primeiro grau contm duas notas
pertencentes trade de r menor, fica evidente aos olhos do leitor quais destes doze
acordes no pertencem tbua do primeiro grau: so aqueles que possurem apenas uma ou
nenhuma nota pertencente a tal trade. So eles o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, o
sexto e o stimo acordes. Os acordes restantes, como se pode observar, contm sempre
notas da trade de l menor, fazendo assim parte da primeira tbua no quinto grau.
Uma segunda tbua de acordes foi elaborada e utilizada na Sonata op.60 (2008).
Sumrio de tcnicas utilizadas em Catopsilia florella:
-primeira tbua de acordes montados sobre ciclos na voz-M acompanhados de suas
respectivas vozes-T; tbua no primeiro grau e tambm transposta diatonicamente, no quinto
grau
-ornamentao
-monodia
-deslocamento do eixo tridico de uma melodia
4.10. Sonata Iesu Dulcis Memoria (2008)
Convido o leitor, neste momento, a examinar o seguinte grfico:

254

Figura 186. Linhas de diferentes nitidezes


Como possivelmente o leitor se recordar, utilizei grficos deste tipo neste trabalho
ao explicar a tcnica tintinabular, como meio de ilustrar a relao entre as duas vozes. Volto
agora a esta idia, apresentando este grfico que mostra, em sua linha superior, uma escala
de sete notas representadas por sete degraus, terminando no oitavo degrau (a oitava). A
linha intermediria percorre o mesmo espao da linha superior, porm utiliza apenas trs
degraus (o quarto degrau representa tambm a oitava). Finalmente, a linha inferior,
percorrendo a mesma distncia das outras duas, utiliza apenas dois degraus, com um
terceiro que representa a oitava.
A linha intermediria se identifica com a voz-T da tcnica tintinabular de Arvo Prt.
Ao examin-la em conjunto com a linha superior, vemos que para cada um de seus degraus,
a linha superior possui mais que um degrau, identificando-se com a voz-M. Ao escrever
uma voz-T para uma voz-M, estamos reproduzindo esta mesma voz-M, com menor nitidez,
255

no entanto. Tive j a oportunidade de me referir a este conceito de nitidez no segundo


captulo.
A linha inferior, indo alm da voz-T, reduz-se a apenas duas notas, sendo uma
verso ainda menos ntida da linha superior, e obviamente menos ntida que a linha
intermediria tambm.
O diagrama a seguir traduz em notas a idia do grfico de linhas. Utiliza-se nele a
escala de d maior (jnio):

Figura 187. Correspondncia entre os graus de escalas com sete, trs e duas notas
A partir de um material (escala, fragmento, melodia inteira etc.), deduz-se uma
verso menos ntida, reduzindo sete notas a apenas trs; ou ainda menos ntida, com apenas
duas.
Por outro lado, possvel tambm tomar materiais e aumentar-lhes a nitidez. Se
temos um tema, por exemplo, que utilize apenas as trs notas da trade, podemos expandi-lo
para um nmero maior de notas. E, neste caso, h mais possibilidades, pois cada uma das
trs notas tem mais de uma equivalente na escala de sete notas.
Esta expanso possibilita tambm o uso de toda a escala cromtica. Em
contrapartida, fica possvel diatonizar idias cromticas. O diagrama abaixo prope uma
correspondncia entre as doze notas da escala cromtica e as sete da diatnica, adicionando
tambm as cinco notas da escala pentatnica.

256

Figura 188. Correspondncia entre os graus de escalas de doze, sete e cinco notas
Em meu trabalho composicional at este momento ainda no utilizei relaes com a
escala cromtica. Trabalhando com o diatonismo, tenho utilizado os aumentos e
diminuies de nitidez com duas, trs, quatro, cinco e sete notas. Ao tomar notas destas
derivaes, utilizo os termos diadizar, triadizar, tetradizar e pentatonizar, referindo-me ao
nmero de notas aos quais reduzida uma melodia de sete notas.
Embora tenha utilizado as relaes como nas tabelas acima, formulei outra maneira
de efetuar estas derivaes que tenho utilizado com mais freqncia. Dada uma melodia,
leio-a a cada par de notas, considerando se neste par o movimento ascendente ou
descendente (ou ainda sem movimento, no caso de repetio). Este movimento, ento,
traduzido na nova escala, seja ela uma dade, uma trade etc.
O prximo exemplo demonstra como isto feito. Na linha superior, um tema
diatnico que utiliza todas as sete notas da escala. As notas esto marcadas aos pares. Na
linha inferior cada par traduzido por um movimento idntico (ascendente, descendente ou
sem movimento) utilizando apenas a dade f-d.

257

Figura 189. Tema diadizado a cada par de notas


A seguir, reproduzo os compassos 29-35 da Sonata Iesu Dulcis Memoria, op. 57
(2008)108 da qual as notas do exemplo acima foram retiradas. Eis a primeira apario do
tema que usa todas as notas da escala, na linha superior:

Figura 190. Compassos 29-35 da Sonata Iesu Dulcis Memoria


A partir do compasso 289 este tema aparece diadizado, restrito s notas f e d, na
linha intermediria da partitura:

108

A instrumentao varivel. A partitura consta de trs linhas; sendo que a intermediria faz uso freqente
de duas notas simultneas. Sugere-se instrumento meldico para a linha superior e instrumento de teclado
para as outras duas, com a possibilidade de a linha inferior ser dobrada por instrumento grave como
violoncelo, viola da gamba ou fagote, lembrando um grupo barroco. Realizei tambm uma verso para
piano a quatro mos, e outras formaes no se descartam.

258

Figura 191. Compassos 289-303 da Sonata Iesu Dulcis Memoria: idias diadizadas
Logo outra voz adicionada, usando outro material tambm restrito a uma dade: l
e mi. No compasso 297 a linha inferior apresenta uma verso triadizada da mesma melodia
que vemos diadizada a partir do 289; porm, no se trata da tradicional trade, mas de um
grupo de trs notas contguas: r, mi e f.
Utilizei abundantemente este mtodo de derivar melodias na Sonata Iesu Dulcis
Memoria, sempre para obter verses menos ntidas. A alternncia de melodias de sete notas
(ntidas e sofisticadas) com melodias de trs ou duas (pouco ntidas e primitivas) traz
um tipo de contraste interessante composio.
A meno a esta pea neste trabalho ocorre pelo uso das verses menos ntidas de
temas diatnicos. Aproveito o ensejo para referir tambm que foi composta sobre um
259

cantus firmus, uma melodia de base, em mtodo tpico da msica renascentista. O cantus
firmus a melodia gregoriana Iesu dulcis memoria, de cujo ttulo se origina o nome Sonata
Iesu Dulcis Memoria.
A primeira seo da pea faz ouvir na linha do baixo, em semibreves, toda a
melodia gregoriana, sobre a qual a linha superior expe seu tema. Em todo o restante da
composio a melodia utilizada em alguma das vozes, com exceo de pouco e breves
trechos. Ela tambm aparece em ritmo trocaico, alm da sua roupagem em notas de valor
igual.
Finalmente, o uso da palavra sonata no ttulo se refere simplesmente ao fato de ser
uma composio instrumental, sem relao com a chamada forma sonata que se
desenvolveu a partir do perodo Pr-Clssico.
Tcnicas utilizadas em Sonata Iesu Dulcis Memoria
-tcnica tintinabular, incluindo voz-T em trade diferente da principal
-obteno de verses menos ntidas de melodias
-cnones
-inverses, retrogradaes, aumentaes, diminuies
-deslocamento do eixo tridico de uma melodia
-cantus firmus
4.11. Concluso
Outras composies que escrevi no perodo na pesquisa e tambm antes dele se
enquadram neste estudo. Sem haver a necessidade de abord-las todas, escolhi as que se
prestassem melhor descrio dos processos de composio; muitos deles foram usados em
diversas outras peas posteriores ou mesmo anteriores, em alguns casos.
Assim, deu-se uma amostra de como se pode pensar a composio de msica
diatnica, formulando idias e pensamentos que se podem aplicar tambm msica nodiatnica, seja ela qual for. Tanto assim que os processos aditivos em minha produo
apareceram primeiramente em composies no-diatnicas (quase atonais, por assim
dizer, ou com diversos centros tonais em constante mudana), e nelas, no raro, ocorrem de
260

maneira completamente perceptvel ao ouvinte, de maneira que se pode contar o crescente


nmero de repeties ou identificar a nota sendo acrescentada a cada momento.
O enriquecimento mtuo de mundos harmnicos, embora no tenha sido discutido
neste captulo, nunca deixou de estar entre meus propsitos, ainda que viesse a optar
perpetuamente pelo diatonismo. Mesmo dentro deste, a identificao de dades, trades etc.
constitui em uma identificao de mundos harmnicos especficos. Os diversos modos que
se podem construir com as sete notas tambm so mundos harmnicos especficos. E a
multiplicao das notas, e a jornada longa ou breve, prxima ou distante, de seu
desbravamento, a tarefa para um multiplicado nmero de pessoas.

261

Concluso
Costuma ser um momento de reflexo a concluso de um trabalho. Por acaso, o
momento final do trabalho em si, mas com freqncia apenas um momento de reflexo
entre outros pelos quais passa o seu autor e o leitor tambm. Por esta razo, comum que
concluses tenham certo aspecto inconclusivo, a no ser que o autor saiba bem disfar-lo
de modo a transmitir a sensao de que o assunto terminou e que, mesmo quando
recomear, fora do trabalho, j ser outra coisa.
Assim, escolhemos a idia de compilar em nossa concluso, de modo breve, as
constataes que realizamos ao longo de nossa pesquisa, e que o leitor as reveja resumidas
e elencadas, se ler esta concluso depois de ler o trabalho; ou que, se escolher proceder
leitura da concluso em primeiro lugar, tenha uma idia das informaes que poder colher
da introduo e dos quatro captulos que compem esta dissertao.
Na introduo apresentamos dados biogrficos do compositor Arvo Prt, mostrando
como questes prticas de sua vida se entrelaaram com a situao poltica da Estnia e da
Unio Sovitica.
No primeiro captulo nos dedicamos a explicar a tcnica tintinabular, um processo
de composio formulado por Arvo Prt na dcada de 1970 pelo qual desde 1976 orientamse suas obras.
O segundo captulo estabeleceu relaes entre a obra de Arvo Prt e elementos da
msica medieval. Listemos tais elementos:
a) o diatonismo
b) os modos eclesisticos
c) o canto gregoriano
e) o organum
262

f) a Escola de Notre Dame


g) o hoqueto
Ao longo do captulo dividimos alguns destes itens. Analisamos em maior ou menor
extenso vrias obras de Prt com o objetivo de demonstrar como elas se relacionam a estes
elementos.
O terceiro captulo fez o mesmo que o segundo, mas desta vez no com a msica
medieval, mas com a msica minimalista. Citando obras minimalistas de LaMonte Young,
Frederic Rzewski e Philip Glass clarificamos o parentesco da obra de Prt com o
minimalismo.
O quarto captulo foi dedicado a nossa obra e o uso, nela, de tcnicas ligadas
experincia de Prt. No nos limitamos influncia nica do estoniano, mas tambm
influncia exercida pelas suas prprias influncias sobre nosso trabalho de composio.
Mostramos nossos mtodos e escolhas em diversas peas, procurando que cada uma tivesse
algo ainda no apresentado no trabalho. Por esta razo, no citamos no quarto captulo
todas as composies que escrevemos no perodo da pesquisa (ou mesmo fora dele, quando
fosse uma obra em que conexes com Prt pudessem ser demonstradas).
O estudo da msica do passado forneceu a Arvo Prt o alimento necessrio para a
construo de sua prpria linguagem composicional. Esta busca em fontes do passado tem
sido uma constante na Histria da Msica e nas artes em geral. Este passado varia
conforme a poca e mesmo conforme o compositor: Johann Sebastian Bach estudou muitas
obras que em seu tempo tinham poucas dcadas de idade; Prt estudou a msica medieval
que o precede em muitos sculos;
Desta forma, embora Prt tenha realmente partido do zero fazendo tabula rasa,
necessitou de uma linguagem musical anterior na qual se apoiar para realizar
adequadamente seu recomeo. No recriaremos a roda nem redescobriremos o fogo, mas
nos colocaremos a disciplina do aprendizado do desenho da roda e da ao fsica que
produz o fogo; pois, se no aprendermos o que existe, com grande dificuldade se chegar
263

ao que ainda no existe. No percurso veremos pequenas coisas que outros no viram, ou,
pensando mais modestamente, daremos ateno a certos elementos aos quais nossos
antecessores

no

tiveram

tempo

de

prestar

ateno.

Percorreremos

tambm,

simultaneamente, caminhos que os de ontem no chegaram a juntar, por quaisquer razes.


Estas so lies que Prt nos ensina, ainda que com suas maneiras de quem reluta
muito em ensinar e deseja apenas escrever e fazer ouvir msica. No pretendemos, com
este tipo de comentrio, romantiz-lo; trata-se de impresses genunas que, pensamos, o
leitor tambm poder colher da leitura de entrevistas com o compositor e da viso de sua
figura no documentrio 24 Preludes for a Fugue.
A idia de no romantizar o compositor e sua msica esteve presente em toda a
realizao do trabalho; naturalmente, no como idia primeira, mas como um propsito que
permitia uma conduo mais sbria do estudo inteiro. O contato com a bibliografia a
respeito de Prt nos coloca frente a alguns textos que, com propsito mais potico, acabam
por repetir muito certas idias que nem sempre esclarecem muito o seu trabalho (de
maneira nenhuma uma exclusividade de Prt). Mesmo que admirador de abordagens
poticas, o autor deste trabalho desejava uma abordagem tcnica dos processos de
composio, desde o incio de sua pesquisa, pois informaes desta natureza com certa
freqncia permanecem em desvantagem quantitativa no que se refere obra de Prt.
Portanto, esteja o leitor certo de que a possvel aridez de certas passagens deste
trabalho (ou, conforme seu julgamento, do trabalho inteiro) se constitui em caminho
necessrio, reproduzindo mesmo o ato de compor msica que, por sua vez, tambm se
revela repleto de momentos ridos. No por rido o caminho que rido ser o destino.

264

BIBLIOGRAFIA

24 Preludes for a Fugue. Produo de Reet Sokmann. Escrito e dirigido por Dorian
Supin. 1999. 1 DVD. (178 min).
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270

ANEXOS

272

ANEXO I

Alfredo Votta Jr: Salve Regina, op.25 (2003)

para duas vozes

partitura completa

274

275

276

ANEXO II

Alfredo Votta Jr: Per noctes, op.26 (2003)

verso para vozes e instrumentos

partitura completa

278

279

280

281

282

283

284

ANEXO III

Alfredo Votta Jr: Per noctes, op.26 (2003)

verso para quarteto de flautas doces

partitura completa

286

287

288

289

290

291

292

293

ANEXO IV

Alfredo Votta Jr: lef (de Ao Anjo da Guarda), op.43 n1 (2004)

para piano solo

partitura completa

294

295

296

297

ANEXO V

Kyle Gann: Tentativas ingratas de uma definio de minimalismo (excerto)

segunda parte do ensaio Msica mnima, impacto mximo

traduo de Alfredo Votta Jr

298

Tentativas ingratas
de uma definio de minimalismo
Kyle Gann, traduzido por Alfredo Votta Jr
(excerto)
Segunda parte do ensaio Msica mnima, impacto mximo, publicado em
<http://www.newmusicbox.org/page.nmbx?id=31tp01>,
acessado em 21 de Agosto de 2009.
2001 NewMusicBox http://www.newmusicbox.org
(...)
Consideremos por um momento as idias, artifcios e tcnicas por meio dos quais a
msica minimalista se expressou:

1 Harmonia esttica
A comear pela Composition 1960 no. 7 de LaMonte Young, a tendncia
minimalista de permanecer num nico acorde, ou de se mover por um repertrio acrdico
pequeno, marcou a maior parte da msica minimalista, incluindo Piano Phase, Drumming e
o Octeto de Steve Reich. As primeiras obras para ensemble de Philip Glass tendiam a se
manter numa nica escala. Na msica minimalista a harmonia quase sempre ligada
escala diatnica, embora haja importantes excees, como a msica de Phill Niblock e o
Chromatic Canon de Tames Tenney, que aplica um processo minimalista a uma srie
dodecafnica.

300

2 Repetio
Este talvez seja o aspecto mais estereotipado da msica minimalista, a tendncia que
o pblico associa superficialmente com sua qualidade stuck-in-the-groove109. Ocorre
primeiramente nas peas para fita de Terry Riley em 1963: Mescalin Mix e The Gift. Muitas
obras minimalistas, entretanto, no usam repetio: as instalaes sine-tone completamente
estticas de LaMonte Young (a no ser no sentido acstico microscpico), as peas
permutacionais de Tom Johnson e Jon Gibson, as obras com drones de Phill Niblock.

3 Processo aditivo
As composies minimalistas tendiam a comear com um padro bsico repetido e
estend-los por meio de um de dois processos:
ou o padro era alongado pela adio de notas, compassos ou frases num padro
1, 1+2, 1+2+3, 1+2+3+4 (Music in Fifths de Philip Glass; Les Moutons de
Panurge, Attica e Coming Together, de Frederic Rzewski; mais tarde, a obra
eletrnica Shing Kee, de Carl Stone), ou pela desacelerao de padres (de
Steve Reich, Music for Mallet Instruments, Voice and Organ);
ou ento uma certa durao, sempre repetida, comearia com silncio para
adicionar notas a cada recorrncia (Drumming, de Steve Reich).
Por causa dos processos aditivos e outros tipos de processo linear detalhados abaixo,
a msica minimalista foi chamada freqentemente de msica de processo: um termo
perfeitamente vivel, um assunto interessante por si s; mas no um termo que possa ser
considerado coextensivo com minimalismo.

109

Esta expresso se refere qualidade das obras minimalistas de permanecer num mesmo ritmo ou rtmica.
Stuck preso ou grudado, e groove, tendo significado literal alheio msica, se refere a uma
constncia rtmica.

301

4 Troca de fase (phase-shifting)


Esta tcnica, consistindo em tocar simultaneamente duas frases idnticas em
andamentos ligeiramente diferentes de modo a obter uma defasagem entre elas, foi muito
caracterstica das peas de Steve Reich dos anos 60 e do comeo dos anos 70: Piano Phase,
Come out, It's gonna rain e Drumming.
H precedentes para esta tcnica no livro de Henry Cowell New musical resources e
nos experimentos com andamentos de Conlon Nancarrow.
Embora no to largamente empregadas nas obras minimalistas em si, esta tcnica
sobreviveu como importante arqutipo na msica ps-minimalista (por exemplo, nos Time
curve preludes de William Ducksworth, em Dream in white on white, de John Luther
Adams, e em Time does not exist, de Kyle Gann).

5 Processo permutacional
Compositores que desejavam progresses meldicas um pouco menos bvias, como
Jon Gibson em Melody IV (1975) e Call (1978), e Tom Johnson em Nine bells, s vezes se
voltavam para permutaes sistemticas de notas.

6 Pulso estvel
Certamente muitas das peas minimalistas mais famosas fiavam-se num pulso
motrico de colcheias, embora houvesse tambm muitos compositores como Young e
Niblock interessados em drones sem pulso nenhum. Ao menos, podemos dizer que era um
aspecto quase universal do minimalismo nunca usar uma grande variedade de ritmos; voc
podia ir por colcheias, ou colcheias e semnimas, ou semibreves com fermatas, mas no
existe aquela variedade rtmica mercurial que se poderia ouvir numa composio clssica
do sculo XIX. Talvez minimalismo de pulso estvel seja um critrio que poderia dividir
302

o repertrio minimalista em dois caminhos mutuamente excludentes: msica baseada em


pulso versus msica baseada em drone.

7 Instrumentao esttica
Os primeiros ensembles minimalistas, a comear por In C de Terry Riley e o
Theater of Eternal Music, continuando com os ensembles de Steve Reich e de Philip Glass,
foram todos fundados sobre o conceito de todo mundo tocando ao mesmo tempo; o
conceito minimalista de instrumentao se baseia na idia de msica como um ritual do
qual todos participam igualmente, e no no clssico paradigma europeu da paleta do pintor
em que cada instrumento adiciona sua cor quando necessrio. Ensembles minimalistas (e,
depois deles, ps-minimalistas e totalistas) quase nunca mostram o tradicional dar-e-receber
de um grupo de cmara clssico. Nesta poca da amplificao, aplicada a obras
minimalistas desde o incio, isto faz do minimalismo, a meu ver, o comeo de uma nova
tradio sinfnica capaz de dispensar aquele dinossauro economicamente ineficiente, a
orquestra.

8 Transformao linear
Esta uma generalizao de processos como a estrutura aditiva, mencionada
anteriormente. Muitos dos minimalistas cultivam fascnio pelo movimento linear de um
estado musical para o outro, como as lentas mutaes de Nilblock que partem da mxima
afinao para a mxima desafinao ou vice-versa, ou ento, no Chromatic Canon, de
James Tenney, o movimento de tonalidade para atonalidade, e a acelerao linear de seu
Spectral Canon for Conlon Nancarrow (1974), uma obra decididamente minimalista e
realmente muito importante.

9 Metamsica
303

Por um momento nos anos 70 parecia que a principal preocupao de Steve Reich
eram os detalhes acsticos no-intencionais surgidos (ou percebidos) como efeito colateral
de processos conduzidos estritamente. Incluem-se aqui melodias sutis criadas pelos
harmnicos de notas executadas, que Reich chamou de metamsica, e mesmo reforadas
por melodias instrumentais anotadas na partitura como no Octeto. Seria possvel dizer que o
fenmeno dos harmnicos acima dos lentos glissandos de drones na msica de Phill
Niblock, e mesmo os padres de harmnicos que voc pode ouvir ao caminhar por uma
instalao de LaMonte Young tambm so metamsica.

10 Afinao pura
de se notar que o minimalismo tenha comeado, na obra de LaMonte Young, Tony
Conrad e o Theater of Eternal Music, como experimento desacelerado de propores de
freqncias puras, intervalos ressonantes fora da escala de doze notas do piano; a msica de
Phill Niblock e muito da obra de Terry Riley tambm continuam nessa caracterstica.
Algum poderia argumentar que a verdadeira msica minimalista, o minimalismo radical,
acontece em afinaes puras. Mas como Glass e Reich sempre se contentaram com o
temperamento igual, seria difcil insistir na idia.

11 Influncia de culturas no-ocidentais


Est longe de ser um componente universal ou necessrio do minimalismo, mas os
compositores que comearam no caminho do minimalismo no tinham precedentes
europeus nos quais encontrar exemplos de repetio ou harmonia esttica, e se voltaram
para o Oriente. significativo que Young, Riley e Glass tenham sido inspirados pela
msica clssica indiana, e que Reich tenha estudado percusso africana. E o minimalismo
levou diretamente a uma absoro muito maior de estticas e tcnicas no-ocidentais pelos
compositores mais jovens da gerao seguinte. De certo modo, o minimalismo criou uma
ponte pela qual compositores americanos podiam se juntar ao resto do mundo no-europeu.
304

Esta no uma lista completa de tcnicas e caractersticas da msica minimalista,


mas uma espcie de elenco de traos de personalidade. Nenhuma pea minimalista usa
todos eles, mas eu dificilmente chamaria uma obra de minimalista se ela no usasse ao
menos alguns (se algum identificar uma obra assim, entre em contato comigo e adicionarei
suas traos de personalidade lista).
Contudo, olhando agora para a margem oposta do minimalismo, descobrimos que
muitos destes traos se encontram em msica influenciada pelo minimalismo, que cresceu a
partir da prtica minimalista mas se distanciou tanto do que chamamos de minimalismo que
o nome no mais se justifica. Por exemplo, muitas obras que eu consideraria psminimalistas se caracterizam por pulsos estveis, harmonia esttica e estruturas aditivas.
Por esta razo, coloco um trao delimitador para minha prpria definio de minimalismo:

12 Estrutura audvel
Para mim, o que Drumming, In C, Attica, Composition 1960 No.7, Einstein on the
Beach, The Pavillion of Dreams (de Harold Budd) e todas as outras obras clssicas
minimalistas tinham em comum era o fato de sua estrutura estar logo na superfcie, de
modo que se pode identific-la simplesmente pela audio, muitas vezes j na primeira
audio. A mim me parece que parte da mstica inicial do minimalismo era no ter
segredos, colocar a estrutura da msica bem na cara do pblico e conseguir que esse
pblico a ouvisse.
Como um parntese, acrescento que este critrio me faz nunca ter considerado
minimalista a obra de Morton Feldman, como alguns tm feito. Feldman j usava repetio
de figuras meldicas em 1951, em Structures, para quarteto de cordas, e alguns autores
defendem que Feldman tenha sido o primeiro minimalista. Na verdade, porm, a repetio
o nico critrio listado acima (exceto, em algumas obras, a densidade consistente da
orquestrao); e mesmo assim as repeties de Feldman so raramente estritas, nunca
ocorrem como processo; seus ritmos jamais so motricos como os das obras minimalistas
305

clssicas. Os mtodos e metas de Feldman so hiperintuitivos e sempre direcionados


sonoridade; sempre os compreendi como quase diametralmente opostos ao minimalismo, e
inclu-lo no movimento minimalista me parece uma espcie de anacronismo.
No sei quantas pessoas fariam questo da estrutura audvel como ingrediente
essencial do minimalismo. Mas, considerando-a como tal, vemos que se delimitam muito
convenientemente fronteiras para o perodo minimalista, estendendo-se de 1960 com a
Composition 1960 No.7 de LaMonte Young at por volta de 1980. De fato, as primeiras
obras ps-minimalistas surgiram nessa poca: os Time Curve Preludes de Duckworth
(1978-1979), Breathing song from a turning sky de Janice Giteck (1980), The Dream King
de Daniel Lentz (1983), McKinley (1983) de Peter Gena, Fog Tropes de Ingram Marshall
(1979-1982). Notvel que por volta de 1980 Riley, Reich e Glass todos perderam o
interesse em estruturas claras e bvias; em obras como Desert Music (de Reich) e
Koyaanisqatsi (de Glass) eles comearam a trabalhar mais com melodia e moveram a
estrutura para o pano de fundo.
(...)

306

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