Psicologia e Espiritualidade

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Psicologia e Espiritualidade

Congresso de Psicologia - UNIFIL

Geraldo Jos de Paiva


Universidade de So Paulo

O interesse da Psicologia pela Espiritualidade tem adquirido tal expresso, que h


poucos anos a Diviso 36 da American Psychological Association discutiu se sua
denominao deveria mudar de Psicologia da Religio para Psicologia da Religio e
da Espiritualidade. Sobretudo nos Estados Unidos, de onde nos vem a maior influncia
no campo da Psicologia, o tema espiritualidade estudado em congressos, artigos,
livros e Handbooks (Paloutzian & Park, 2005). O DSM, Manual diagnostico e
estatstico das desordens mentais, desde a edio de 1994, inclui a espiritualidade entre
as condies que podem ser foco de ateno clnica. Entre ns tem havido, nos ltimos
anos, diversos eventos cientficos ligados ao assunto. Em Porto Alegre ocorreu, em
2003, na PUC, o Encontro Gacho de Espiritualidade e Qualidade de Vida, com vrias
contribuies da Psicologia (Teixeira et al., 2004). O Grupo de Trabalho Psicologia &
Religio, da Anpepp, realizou em 2004, em Campinas, um Seminrio temtico acerca
de Psicologia e Espiritualidade (Amatuzzi, 2005). No Rio de Janeiro o Centro Loyola de
F e Cultura dedicou, em 2005, uma Jornada de Psicologia e Espiritualidade (Magis,
2005). Nesses encontros discutiu-se a relao da espiritualidade com diversas reas as
do comportamento: psicoterapia, organizaes, personalidade, identidade), e outras .
(Ancona, 2005; Piedmont, 1999; Saroglou, 2003).
Nesta palestra pretendo abordar trs tpicos relacionados com a espiritualidade: alguns
aspectos semnticos do termo espiritualidade, algumas relaes entre espiritualidade e
religio, e a imbricao recproca da psicologia e da espiritualidade.
1.

Alguns aspectos semnticos do termo espiritualidade.

Os termos de uma lngua tm histria. Espiritualidade um termo abstrato, derivado


do adjetivo espiritual. Apesar da origem claramente latina, esse adjetivo no existia
no latim clssico. Foi forjado pelo latim da Igreja. A origem eclesistica da palavra
sugere imediatamente uma referncia ao Esprito Santo. Segundo estudos histricos,
esse foi o primeiro sentido da palavra espiritual (Rican, 2003; Sudbrack, 1993).
Espiritualidade a vida sob a moo do Esprito Santo. Nessa poca, espiritualidade e
cristianismo no se distinguiam, a no ser pela nfase colocada na ao do Esprito
Santo. Por muitos sculos tal foi a denotao do termo. Fala-se, assim, ainda hoje, de
vrias espiritualidades crists: a beneditina, a franciscana, a dominicana, a carmelita, a

jesuta, a luterana, a calvinista, a ortodoxa, e outras. Prova da riqueza dessas


espiritualidades, que so formas especializadas, antes de tudo, de se viver a mensagem
crist, mas tambm da busca de Deus nas vrias religies, o Dictionnaire de
Spiritualit asctique et mystique, (1932-1995. Organizado, em 45 volumes, por
Marcel Viller e colabs.). Um segundo sentido de esprito, em substituio ao
primeiro, foi o atribudo palavra pelos filsofos iluministas, no sculo XVIII: o
esprito a que se referiam com esse termo o esprito humano, isto , a razo,
caracterstica universalmente compartilhada pelos seres humanos, que os iguala a todos.
Espiritual e espiritualidade passaram a designar o racional e a vida guiada pela
razo. Um terceiro sentido, mais recente, surgiu com a psicologia humanista, por volta
de 1960, que conferiu ao termo espiritual a denotao da auto-realizao, que envolve
o empenho no aperfeioamento do potencial humano (Rican, 2003). Esse o sentido
corrente de espiritualidade nos dias de hoje, que faz abstrao da orientao religiosa, a
ponto de permitir que se fale de espiritualidade atia (Solomon, 2003). Tal sentido
predominante nos Estados Unidos, onde veio a coincidir com a gerao dos seekers,
mas encontra certa hesitao na Europa. No entanto, devido influncia da cultura
norte-americana, inclusive acadmica, a acepo do termo tem-se difundido um pouco
por toda parte, ao menos no Ocidente. Essa difuso tem trazido, algumas vezes,
solues criativas para ...problemas importados, como veremos depois. No sentido
contemporneo, espiritualidade tem sido muitas vezes definida, sobretudo nos Estados
Unidos, por oposio a religio, ou religiosidade. Por religio veio a entender-se a
instituio, a autoridade, a comunidade, os dogmas, os ritos litrgicos, a tica dos
mandamentos, com as correspondentes atitudes de obedincia, aceitao, participao
coletiva, comportamento moral e culpa. Por espiritualidade veio a entender-se o
indivduo, a criatividade, a experincia pessoal principalmente afetiva, os grupos de
livre escolha, as celebraes espontneas e a insero ecolgica, com os sentimentos de
liberdade, autenticidade, conexo. A definio por oposio desembocou na conhecida
expresso no ambiente norte-americano: no sou religioso; sou espiritual (Pargament,
1999). Essa expresso, no entanto, continua a soar estranha aos ouvidos europeus, que
ou no vem oposio entre religio e espiritualidade (Aletti, 2010), ou a constrem de
outra forma: no sou cristo; sou religioso (Stifoss-Hansen, 1999). No Brasil, no me
parece estabelecido o contraste entre espiritualidade e religio, exceto em parte dos
estratos intelectualizados, muito por conta, provavelmente, da literatura norteamericana, em especial na Psicologia. Vassilis Saroglou, diretor do Centro de
Psicologia da Religio da Universidade Catlica de Louvain-la-Neuve, observa, com
efeito, que a psicologia anglo-sax se caracteriza desde alguns anos por um real
fascnio pelos estudos empricos da importncia da espiritualidade [...] e pelo
desenvolvimento de medidas da espiritualidade (Saroglou, 2003: 1).

2.

Algumas relaes entre espiritualidade e religio.

Acompanho Saroglou na sutil anlise que realizou das divergncias e convergncias


entre espiritualidade e religio no ambiente europeu (Saroglou, 2003). Escolho o
ambiente europeu, por ser, nesse particular, mais que o ambiente norte-americano,
ancorado numa tradio consolidada e diferenciada. Em Espiritualidade moderna: um
olhar da Psicologia da Religio (Saroglou, 2003), Saroglou compara a religiosidade
clssica, isto a religio comumente entendida, e a espiritualidade contempornea.
Seis pontos resultam de sua anlise: (1) Importncia: a espiritualidade mais popular
entre os mais jovens, dos quais um quarto no inclui nela Deus e a religio; (2)
Dimenses: a espiritualidade implica autonomia da pessoa face tradio e instituio
religiosa, construo pessoal do sentido da existncia, afirmao de conexo entre todos
os seres dependente de um princpio transcendente ao indivduo e a este mundo, malestar em relao materialidade do mundo e experincia de preferncia emocional e
intelectual; (3) Busca de sentido: tanto a espiritualidade como a religiosidade clssica
diferem de abordagens filosficas e existenciais por acreditarem num sentido e numa
finalidade da vida individual e da existncia do mundo, e por postularem um princpio
de transcendncia ao mundo e ao indivduo. Mas espiritualidade e religiosidade se
diferenciam quanto autonomia frente tradio e autoridade, quanto motivao
integradora da construo do sentido, e quanto facilidade em oferecer respostas aos
grandes enigmas da humanidade; (4) Motivao: nem a religio nem a espiritualidade
esto associadas instabilidade emocional; a espiritualidade parece at independente do
papel compensador de insegurana na relao do casal, que por vezes tem sido papel da
religio; a religio, mais que a espiritualidade, parece oferecer apoio social seguro para
a sade mental e fsica; em certas prticas da espiritualidade percebem-se um passado
ou um presente problemticos na histria do apego, que roam o paranormal;
religiosidade clssica e espiritualidade manifestam-se nos momentos de crise e de
adversidade; (5) Personalidade: o perfil de personalidade dos espiritualizados parece
afastar-se um pouco do perfil do religioso clssico: a qualidade pr-social e altrusta
est presente, mas menos forte e sistemtica do que na religio clssica; o interesse pela
espiritualidade no representa o esprito consciencioso e a rigidez em relao a valores e
idias que caracterizam a religio clssica; a extroverso e a abertura para experincias
mltiplas, variadas e novas permite fcil passagem para crenas paranormais; (6)
Valores: Espiritualidade e religiosidade coincidem nos valores relativos ao cuidado e o
respeito para com o outro; tanto uma como outra conservam um fundo de antihedonismo, embora mais fraco na espiritualidade; a espiritualidade implica, mais que a
religiosidade, autonomia na construo da identidade e dos valores, a ausncia do
conformismo, e a expanso do in-group para o universalismo das identidades coletivas,
dos valores coletivos (justia social, ecologia) e da definio de quem o meu
prximo. Embora religiosidade clssica e espiritualidade possam se opor no nvel das
representaes, os processos psicolgicos implicados no comportamento religioso ou

espiritual apresentam matizes e intensidades diferentes, sobressaindo mais uma


gradao do que uma oposio de processos.

3. Imbricao da Espiritualidade na Psicologia.


Estaria a Espiritualidade imbricada na Psicologia, de modo a reconhecermos na
atividade cientfica algo de espiritual, independentemente de eventuais contedos?
Teria a psicologia, como cincia, alguma espiritualidade? Se definirmos a
espiritualidade em contraposio materialidade, entenderemos a espiritualidade como
a libertao do imediato, do concreto, do imagstico, do aqui-e-agora. Essa foi a posio
de Freud, em Moiss e o Monotesmo (Freud, 1975/1939), quando falou da
espiritualizao (Geistigkeit/Geistlichkeit/Vergeistlichung) da humanidade, ocorrida no
povo judeu graas, em grande parte, religio que, estabelecendo separao radical
entre Deus e o mundo, teria dado incio ao pensamento abstrato, intelectualizao,
cincia. Nesse sentido, a Psicologia uma atividade espiritual porque se aplica, de
modo imaterial, isto , sem as amarras do tempo e do espao, a seu objeto, o
comportamento. Essa espiritualidade da Psicologia deu origem a algumas correntes que
colocam a autorrealizao do self, e no mais uma referncia transcendente, como o
objetivo da tarefa humana. Reconhecemos aqui as posies de Fromm, Rogers, Maslow
e Rollo Mayo, proponentes da psicologia humanista. Paul Vitz (1977/1994), da
Universidade de Nova York, um acerbo crtico dessa posio, que condena como
conducente cultura do narcisismo e do individualismo, e chega a descrev-la como
self-worship, o culto secular de si mesmo. Ainda assim, penso que a psicologia
humanista, em especial a de Rogers e de Maslow (este, presidente da Sociedade Atesta
Norte-Americana!), portadora de espiritualidade. Se, com efeito, a realizao do
potencial humano, a autorrealizao, for entendida como o desabrochar na pessoa do
que de melhor existe em sua capacidade, que inclui a comunho com o outro e com o
universo, lcito reconhecer nesse empenho uma libertao do aqui-e-agora, do
imediato, do concreto material, em direo a uma totalidade maior, eventualmente
csmica. Isso corresponde ao que contemporaneamente se denomina espiritualidade.
Outra posio, ligada ao movimento de conscientizao da morte, apresentada por
Lucy Bregman, da Universidade Temple. Bregman (2001) sustenta, terica e
empiricamente, que a psicologia tem recursos prprios, no opostos aos recursos
religiosos mas independentes deles, para lidar com a preparao para a morte e com o
luto dos sobreviventes. Para ela, a psicologia tem espiritualidade, porque a morte
desvela para quem parte e para quem fica dimenses do self e do universo, que escapam
aos limites do aqui-e-agora. A espiritualidade da psicologia na morte expressa-se pela
tristeza, pelo desgosto, pelo medo, pela raiva e pelo sentimento de ultraje frente perda
pessoal e social; expressa-se tambm pela conscincia de que a morte faz parte do ciclo
da vida, e nos une com os outros seres vivos num ecossistema que opera com
harmonia, seno com finalidade e [...] benevolncia (p.327). Considero essas formas de

espiritualidade oriundas da psique humana, enquanto exigncia intrnseca de


autorrealizao, que inclui a comunho com o outro, e enquanto reage s frustraes
que atingem a autorrealizao.
E que dizer da Psicologia da Espiritualidade? Mais de uma vez defendi que existe lugar
para a Psicologia da Religio e para a Psicologia da Espiritualidade, uma vez que tanto a
religio como a espiritualidade so empenhos srios do ser humano, dignos de atento
estudo. Continuo com a convico de que o objeto religioso, de que se ocupa a
Psicologia da Religio, definido culturalmente pela linguagem, resulta de uma
palavra que denota uma provenincia transcendente, ao passo que o objeto espiritual
designa a conexo com o universo, com o divino difuso no mundo, com o sagrado,
percebidos intuitiva e afetivamente na natureza, na arte, no amor. Como se v, a
Psicologia da Espiritualidade, de certo amparada pelo que Vergote (2003) chama de
cansao, no Ocidente, da palavra Deus em sua vulgata teolgica, busca um divino
menos condensado, que encontra na Natureza e no Cosmos. Segundo o mesmo autor,
essa busca exprime o desejo de atingir uma liberdade interior e de encontrar para a
vida um sentido que liberta do racionalismo estreito e das concepes tristemente
utilitrias (2003: 98). Um expoente da defesa da espiritualidade, no associada
necessariamente com existncia de Deus, imortalidade pessoal, sanes em outra vida,
mas definida como um amor atencioso vida (Solomon, 2003: 18) o filsofo Robert
Solomon, da Universidade do Texas. No livro Espiritualidade para cticos, ttulo
acrescido na traduo brasileira com o subttulo Paixo, verdade csmica e
racionalidade no sculo XXI, Solomon analisa esse amor atencioso vida, como
desdobrando-se em trs atitudes naturais ao homem e exclusivas dele: a reverncia, a
confiana e o perdo. (Solomon, 2003). Para qualificar esse amor vida, o autor utiliza,
em ingls, o adjetivo thoughtful, atencioso, que conota um matiz diferente do adjetivo
considerate, que tambm significa atencioso. A diferena entre eles que
considerate indica ateno em evitar dissabores a outrem, ao passo que thoughtful
a ateno voltada para oferecer-lhe benefcios, prazer, aperfeioamento. Nessa acepo,
a espiritualidade, como busca de autonomia, de construo pessoal da relao com a
humanidade e o universo, de respeito singularidade do indivduo, de abertura e
experimentao do novo, de recusa da rigidez, do autoritarismo e da alienao, um
bem desejvel, condizente com o aprimoramento humano. Como tal, a espiritualidade
objeto da psicologia, e pode-se falar de psicologia da espiritualidade. As questes
clssicas da Psicologia, como aprendizagem, desenvolvimento, personalidade,
psicopatologia, vinculaes sociais, motivao, e outras, repetem-se em relao a esse
objeto especfico, a saber, a espiritualidade, e tm desafiador caminho pela frente. Uma
ltima questo dentro do tpico da imbricao recproca de Psicologia e Espiritualidade.
Qual o lugar da espiritualidade, enquanto distinta da religio, na cultura brasileira? Far
ela parte, como em outros lugares, do luxo dos abastados de hoje? (Holland Herald,
2004) Ter ela substitudo a religio nos estratos intelectualizados? Corresponder ela
influncia exercida sobre ns pelos assuntos de moda em outros pases? Como registrei

em outra parte, verifica-se na maioria das vezes em nossa cultura brasileira, rural e
urbana, a permanncia forte do referente religioso, quase sempre cristo, que permite s
pessoas o acesso esfera do imaterial, da qual no se acercam pela prtica [ou tcnica]
da meditao ou pela descoberta do eu profundo (Paiva & Fernandes, 2006). Se,
portanto, a busca pela espiritualidade se mostrar empiricamente significativa em nosso
meio, e se a psicologia julgar interessante ocupar-se com ela, necessrio firmar a faixa
propriamente psicolgica do fenmeno estudado, como exemplificado acima na
pesquisa de Saroglou (2003).
Concluindo, a Psicologia, como cincia, acolhe igualmente a religio e a espiritualidade
como objeto de seu estudo. H, naturalmente, alguma diferena de epistemologia nessa
acolhida: no caso da religio, ela se abstm da afirmao ou negao do transcendente;
no caso da espiritualidade no cabe esse cuidado, ao menos no sentido que hoje se d,
nos meios acadmicos, e na linguagem comum, a espiritualidade.

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