Duas Vezes Junho

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Duas vezes junho

Martin Kohan
Traduo: Marcelo Barbo
Apresentao
Um erro de ortografia algo que no se pode aceitar, corre-se at riscos desnecessrios para
consertar essa afronta. J a tortura de um recm-nascido, para arrancar informaes de sua me,
algo aceitvel dentro dos limites da luta contra a subverso.
Duas vezes junho, primeiro livro no Brasil do escritor argentino Mrtin Kohan, est montado sobre
dilemas morais que denunciam o papel da ditadura argentina, mas sem qualquer tom panfletrio. O
futebol, que permeia todo o livro, j que a histria se passa entre duas copas do mundo, a de 78 e a
de 82, tambm serve para questionar alguns mitos nacionais desse pas. por isso, talvez, que a
seleo nacional derrotada nas duas partidas que so narradas no livro. O mais curioso que a
Argentina foi campe mundial em 78. Por que escolher a sua nica derrota? Ter isso a ver com a
famosa tristeza dos moradores de Buenos Aires? Ou ser uma necessidade de trazer tona as ms
recordaes, como os corpos desenterrados sem cabea e sem digitais que ainda surgem
inesperadamente?
O contexto histrico, de resgate das tradies e de figuras centrais da Argentina, dominou todos
os livros de Kohan at o momento. De San Martin, heri da independncia, passando pelo poeta
Estebn Echeverra, e, como no poderia deixar de ser, chegando at Eva Pern.
Desde o lanamento deste livro, Kohan reconhecido como um dos mais importantes novos
escritores da Argentina, to prdiga em grandes escritores, e que talvez seja, em toda a HispanoAmrica, o pas onde a literatura alcanou o mais alto nvel em termos de inventividade, rupturas e
revolues.
6
Ser fcil estar entre os melhores escritores da nova gerao num ambiente como esse?
Provavelmente, no. Por isso, a qualidade da obra de Martin Kohan salta ainda mais aos olhos, pois
o autor consegue misturar algo de vrios momentos e movimentos da literatura argentina. A
experimentao com a forma est presente, assim como um engajamento poltico, sem contar o
humor e a melancolia tpica dos habitantes da beira do Rio de Ia Plata.
Em Duos vezes junho, Kohan cria uma incrvel metfora -alucinada e amarga -, utilizando futebol,
ditadura e guerra. Dois junhos, o primeiro em 78, quando a Argentina, dominada por uma das
ditaduras mais brutais da histria, no s do continente como do planeta (trinta mil desaparecidos
polticos em apenas seis anos), se prepara para ser campe mundial pela primeira vez. O segundo,
em 1982, quando os militares fazem a ltima tentativa desesperada de permanecer no poder,
invadindo as Malvinas (que, alis, SO argentinas). Atravs dos olhos de um jovem recruta,
possvel ver a desumanizao que a violncia provoca. Em termos narrativos, a repetio dos
detalhes que tenta mostrar como muito fcil deixar escapar o todo, quando nos perdemos em
pequeninas partes.
:
Kohan conseguiu criar, em Duos vezes junho, uma das mais inteligentes e fortes histrias sobre a
ditadura argentina.
Marcelo Barbo
7
Em junho morreu Gardel, em junho
bombardearam a Praa de Maio.
Junho um ms trgico
para os que vivem neste pas."
Lus Gusmn
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Dez dos seis
Quatrocentos e noventa e sete
I

O caderno de anotaes estava aberto no meio da mesa. Tinha s uma frase escrita nessas
duas pginas que ficavam vista. Dizia: A partir de que idade se pode comesar a torturar uma
criana?
II
Supnhamos com razo que, envolvendo nmeros, tratava-se de uma simples questo ao
acaso. Claro que muitas vezes a Cincia se vale tambm de cifras e os nmeros servem aos
clculos mais racionais. Aqui, no entanto, tratava-se de um sorte nos nmeros a nica coisa que
conta a sorte.
III

Descobri que, ao lado do caderno de anotaes, estava a meta com a qual essa nota havia
sido escrita. Uma caneta quebrada na ponta, evidentemente porque algum descarregava seus
nervos mordendo o plstico ingrato. Peguei essa caneta, com cuidado para no tocar na parte
quebrada: talvez ainda estivesse unida. Meu pulso, por enquanto, estava bom. Era capaz de enfiar
um fio nas menores agulhas. Por isso, consegui transformar o esse em cedilha, de forma que
ningum notasse que uma correo tinha sido feita posteriormente. Ficou como se a cedilha sempre
tivesse estado ali, tal a perfeio do rabinho que eu adicionei na parte inferior da letra. Agora o esse
era um ce-cedilha, como corresponde.Poucas coisas me deixam to contrariado como os erros de
ortografia.
12
IV
O rdio disse: "Nmero de ordem". "Seiscentos e quarenta".
Eu era o seiscentos e quarenta.1
O rdio disse: "Sorteio". E disse: "Quatrocentos e noventa e sete".
Nos olhamos. Fez-se um silncio. O rdio continuava, mas com outros nmeros que j no
precisvamos escutar. Tnhamos ficado a desde as dez para sete da manh, quando ainda estava
escuro.
Meu pai disse: "Terra".
Minha me disse: "Os nmeros se confundem para mim. Parece que o seu o que tinham falado
antes. No sei bem qual era. Parece que era um nmero baixinho".
Meu pai disse que ele estava muito orgulhoso. E era verdade: tinha nos olhos um brilho como de
lgrimas que no iam sair.

V
Deixei o caderno onde estava, aberto nessas mesmas pginas, no meio da mesa. Ao lado do
caderno, deixei a caneta. No havia nada mais sobre a mesa, exceto o telefone. E no havia nessa
sala outra coisa a no ser a mesa, a mesa com o telefone, o caderno, a caneta e, alm da mesa,
duas cadeiras, uma das quais eu ocupava e, por ltimo, um cesto de lixo que estava vazio.
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Mas, de repente, sen nenhum motivo, me senti observado. Sabia que, na realidade, ningum
me observava, que a porta estava fechada e a nica janela dava, absurdamente, para um muro
nojento. Me senti observado e era somente uma impresso que eu tinha. Na parede havia um
crucifixo e parecia que Cristo olhava para mim. Debaixo do crucifixo havia um quadro de San Martin
envolvido na bandeira e parecia que San Martin olhava para mim. Cristo tinha os olhos para cima,
com certeza era o momento em que perguntava ao pai por que o havia abandonado. E, no entanto,
eu tinha a sensao de que olhava para mim. San Martin olhava para o lado, de rabo de olho,
torcendo a vista mas no a cara, como se algo inesperado o se distrado bem no momento em que a
foto era batida (ainda que no se tratasse de uma foto). Olhava para o lado, mas eu tinha a
sensao de que olhava para mim.
Tambm o telefone, de repente, me intimidou. Sei que seu irrito consiste em transladar os
sons distncia: os sons e no as imagens. Mas tinha o poder de aproximar algum que estivesse
ausente, que estivesse longe e, de certo modo, faz-lo entrar nessa perfeitamente fechada. Por isso,
ainda que se tratasse de um telefone, e ainda que esse telefone estivesse no gancho e mudo, me
dava a impresso, pelo simples fato de estar a, de que algum podia me observar. Tinha a
impresso, e pouco importa que a idia no tivesse sentido, de que algum podia ter-me visto
corrigir a frase do caderno, colocando no esse os traos que faltavam para convert-lo em um ccedilha, que era como tinha que ser.
VI

No dia seguinte compramos o jornal. Minha me no tinha parado de dizer que a transmisso dos
nmeros no rdio tinha sido confusa e que ela no estava certa qual nmero vinha depois de qual,
nem que nmero correspondia a que nmero.
14
Por isso compramos o jornal no dia seguinte. Minha me disse: "Com o jornal, vamos saber".
Apoiou uma rgua debaixo do nmero seiscentos e quarenta. Seiscentos e quarenta era eu. Com
o dedo seguiu a linha que levava coluna do sorteio. Com o dedo, e depois com a haste dos culos
(ela tirava os culos para ver de perto), e depois com um lpis negro de ponta bem afiada, seguiu a
linha que levava de uma coluna para a outra. E todas as vezes encontrou o nmero quatrocentos e
noventa e sete.
Ento meu pai disse: "Terra". E ento minha me disse: "Meu soldadinho!", chorando de emoo.
VII
Talvez eu tivesse feito algo errado e, por isso, me sentia observado. Era a impresso que me
dava o sentimento de culpa. Quando algum faz algo errado, se sente observado, no importa quo
sozinho esteja. E eu, por acaso, tinha agido mal. A nota do caderno podia ter sido escrita por Torres,
o sargento, ou, em todo caso, por Leiva, o cabo, o que era, na verdade, o meu pressentimento,
porque era menos instrudo e com menos luzes. De qualquer modo, eu no tinha nenhum direito de
corrigir um superior, fosse quem fosse, nem tampouco outro soldado, porque eu no valia mais que
esse outro soldado, mesmo quando a razo estivesse do meu lado. Eu podia conhecer bem as
regras ortogrficas e quem tinha escrito a nota podia ignor-las. De fato, em uma frase to breve,
em uma frase to simples, tinha cometido um erro considervel. Mas isso no me dava o direito de
corrigi-lo, nem eu devia, por isso, me sentir superior porque, nesse lugar, eu no era um superior,
era um subordinado.
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VIII
Lembro que meu pai disse: "Os milicos so pessoas com regras claras". A primeira dessas regras
estabelecia: "O superior sempre tem razo, ainda mais quando no a tem". Lembro que me disse
que entendesse bem isso, porque, se entendesse isso, entendia tudo.
IX
Pouco depois de cair a noite, comearam as dores. Uma mulher sempre sabe o que acontece no
seu corpo. Ela nunca tinha passado por isso, era a primeira vez; mas nem bem comearam as
primeiras as dores, as mais leves, ela entendeu que ia chegar. Soube que ia chegar essa mesma
noite, se que era noite de verdade e ela no estava equivocada nos seus clculos.
X
No servio militar, dizia sempre meu pai, as regras eram bem simples: "Bata continncia a tudo que
se move; e pinte tudo que fique parado". Sabendo disso, sabia-se tudo, e no havia como se meter
encrenca.
XI
Pensei em apagar os traos que tinha adicionado na frase escrita no caderno, para que as coisas
ficassem como estavam antes. Um esse ou um c-cedilha, no final das contas, no mudava o
sentido da frase. Mas a idia era absurda: para comear, no tinha uma borracha mo. E, alm
disso, era impossvel apagar letra, ou meia letra, sem deixar marcas na folha do caderno, Tratava-se
de uma folha de pssima qualidade, e o mais provvel era que se rompesse na tentativa de apagar.
Isso, sim, teria sido grave, porque a frase tinha que ser lida com toda a clareza, sem manchas nem
rasgos, sem nenhum borro.
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XII

Meu pai era um homem que gostava muito de contar anedotas. Muitas dessas anedotas, como
costuma ocorrer, vinham de seus j distantes quinze meses de servio militar e, logo que soubemos
com certeza que o nmero com que tinha me tocado a sorte era o quatrocentos e noventa e sete,
todas elas foram contadas novamente, uma por uma, como pela primeira vez.
Tinha uma que falava de uma formao matinal no ptio do quartel. Uns trinta soldados em roupa
de faxina e em posio de sentido. E um tenente-coronel, cujo nome meu pai se esforou inutilmente
para lembrar, passando todos em revista. Em um momento determinado, o tenente-coronel pergunta
bem alto: "Soldados! Quem que sabe escrever bem mquina?" E acrescenta: "O que souber
escrever mquina, que d um passo frente". Por um instante, ningum disse nada. Era preciso
ver o que significava exatamente escrever "bem" para o tenente-coronel. Por fim, quase no extremo
da fila, um ruivo sardento que no media mais do que um metro e meio d um passo frente e
exclama: "Eu, meu tenente-coronel!" O tenente-coronel chega perto e aos gritos o interroga: "Voc,
soldado, sabe escrever bem mquina?" O soldado exclama: "Sim, meu tenente-coronel!" "Bom",
diz o tenente-coronel, "pegue esse balde e essa escova que esto ali, e em uma hora quero ver bem
limpas todas as latrinas do regimento".
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Meu pai tirava uma moral desta histria: no servio militar, convm nunca saber nada. Me
aconselhou a aprender essa lio elementar. "No preciso fazer como os judeus", me disse, "que
sempre querem mostrar que sabem tudo".
XIII
Sem ter muita segurana de que algum fosse escut-la, avisou: "Est vindo". Disse em voz
alta, no caso de no estar totalmente s; mas tambm disse como se fosse para si mesma, nesse
ponto remoto da conscincia e do esquecimento no qual a alta e a voz baixa j no se distinguem
bem, nem se distinguem bem, tampouco, o que se diz para fora e o que se diz para dentro.
De todas as formas, a noite estava to calada nessa hora, que em algum ponto indefinvel das
portas e dos corredores, algum a escutou. De longe se ouviu uma voz que lhe respondia: "Avise
quando te doer a cada cinco minutos".
Quem lhe disse isso, devia saber que ela no tinha um relgio e que tivesse, no teria forma
de olhar. Mas cinco minutos equivaliam a trezentos segundos e ela havia aprendido a medir a
passagem dos segundos sem pressa e sem atraso. Era mais fcil medir a passagem dos segundos
que a passagem das horas e era mais fcil medir a passagem das horas que a passagem dos dias.
Comeou a calcular os minutos de cada intervalo. S os fluxos U(5 faziam perder a conta.
Apesar de tudo, soube quando chegava o momento. E, ento, voltou a avisar: "Est vindo".
XIV
O melhor, disse para mim mesmo, era deixar as coisas como . Fosse quem fosse que havia
escrito essa nota no caderno, nem sequer se daria conta de que havia sido corrigida.
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No teria nem tanta memria nem tanta capacidade de observao para se dar conta, porque essas
carncias eram justamente as que o tinham levado a cometer o erro. E se, por uma dessas coisas,
chegasse a notar o ocorrido, o mais provvel que no dissesse nada a respeito. Nem sequer um
homem como o cabo Leiva gosta de ser visto como um bruto, apesar de ser um.
XV
Meu pai me contou que havia um militar que tinha este lema: " toa, mas cedo". Me disse que
esse slogan ilustrava muito bem o modo de raciocinar dos militares. Depois, insistiu muito para que
eu no mencionasse esta anedota a ningum no servio militar, nem sequer aos companheiros.
"Voc fica caladinho", me disse, e piscou um olho.
XVI
Nesse caderno de notas s se registravam as mensagens importantes. Por isso, estava sempre
ao lado do telefone e, na mesa, no havia nenhuma outra coisa. Estava terminantemente proibido

fazer qualquer anotao que no se referisse s consultas ou avisos enviados pelas outras
unidades. Alguns dias passavam sem que se recolhesse nenhuma mensagem. A nica que tinha
sido recebida naquele dia era essa que mencionava o assunto mdico.
XVII
No tinha que acreditar no que ouvia: no era certo que uma mulher parindo fosse igual a uma
cadela parindo, nem era certo que seu filhinho tivesse nascido morto, porque ela o ouvia chorar.
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XVIII
Algumas comunicaes eram andinas, puramente operativas. Outras, sem deixar de ser
operativas, solicitavam maior reserva. A que naquele dia se encontrava no caderno de notas exigia,
evidentemente, uma discrio considervel.
Eu devia generosa confiana que me obsequiava o doutor Mesiano a possibilidade de ter
acesso a este tipo de consultas tcnicas, partes da realidade nas quais um saber abstrato
encontrava sua aplicao e sua utilidade no concreto.
XIX
Arrumaram um balde e um trapo, e lhe ordenaram que limpasse o que tinha feito. Entre
risadas, viram ela esfregar os lquidos de seu corpo. "Coloque a placenta no balde", disse um,
seguramente o que brincava com a tesoura que antes havia o pura servido para cortar o cordo.
XX
Meu pai me disse que os militares tinham, sua maneira, algum sentido de humor. Uma piada
muito freqente no servio militar consistia no seguinte: formava-se a tropa e se arengava sobre os
males que trazia a masturbao em excesso. Depois vinha a advertncia: "O que bate muita
punheta, tem a mo cheia de plos".
Nunca faltava um que, nesse momento, no podia resistir do verificar o estado da palma de sua
mo. Esse recebia todas as piadas e gargalhadas, s vezes pelo resto do ano.
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Meu pai me avisou para no olhar, nesse instante, para as minhas palmas, manter a vista adiante
e as mos junto ao corpo em posio firme; assim poderia eu tambm, logo depois, participar da
diverso.
XXI
O fedor do trapo estendido no deixava de mortific-la, mas colocado em cima do balde pelo
menos tapava os odores do corpo. Era um pouco como aqueles que, sobretudo durante as noites,
comeavam a gritar, para no ter que escutar mais gritos.
XXII
Depois da instruo, o melhor era que me destinassem a um escritrio ou que me pusessem
como motorista de algum oficial. Era o mais cmodo e o mais tranqilo. Existia, inclusive, uma
tradio segundo a qual o motorista de um oficial terminava dormindo com sua mulher e at com
alguma de suas filhas. Meu pai disse que esta regra tinha poucas excees.
XXIII
Deixei o caderno de notas bem aberto e em um lugar bem visvel, na frente do telefone e um
pouco inclinado, porque entendi que a mensagem daquele dia tinha bastante importncia.
XXIV
Pensou em um nome se fosse homem e noutro se fosse mulher, sem saber se esses nomes
permaneceriam ou seriam despojados.
Foi homem e se chamou Guillermo.
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Cento e vinte e oito


I
Nisso se abriu a porta e entrou o sargento Torres. Sem dar boa tarde perguntou se havia
alguma novidade. Disse: "Sim, meu sargento" e mostrei o caderno aberto no meio da mesa.
Enquanto tirava o casaco e pendurava nas costas da cadeira, o sargento Torres me perguntou do
que se tratava a comunicao. Respondi que no sabia, porque no fora eu que a recebera. Ento,
ele se aproximou e, ainda em p, apoiando as duas mos ao lado do caderno, leu o que estava
anotado. O sargento Torres era uma dessas pessoas que no lem silenciosamente. Era uma
dessas pessoas que, quando lem, mesmo estando sozinhas, murmuram o que esto lendo e, desta
vez, permitiu que eu o ouvisse.
Depois ficou pensativo. Deu a volta em torno da mesa e se sentou na minha frente. Depois de
um tempo, me perguntou: "O que voc acha, soldado?". "Que acho do qu, meu sargento", disse eu.
Para voc, soldado", disse o sargento, "a partir de que idade se pode comear a proceder com uma
criana?". "Desconheo, meu sargento", disse eu. "Sei que desconhece, soldado, mas eu lhe
pergunto o que acha". Deixei passar um instante e propus: "A partir do momento em que a Ptria o
requeira".
Foi uma resposta demasiado genrica; mas, no meu modo de ver, deixou conforme o
sargento Torres.
II
O doutor Mesiano tinha s um filho: seu nome era Srgio e era quatro anos mais novo do que
eu. Em outras etapas da vida, quatro anos no representam uma diferena to importante.
22
Mas ela existia entre ns: ele apenas comeava seu colgio secundrio e eu j era um soldado
argentino. Suponho que me admirava. Acreditava que, no caso de uma guerra, eu podia ser um
heri, e ele no.
III
"No entanto", refletiu o sargento Torres, "tinha que comear com crianas que j saibam falar.
Antes de saber falar, seria um esforo intil". Raciocinou que de uma criana que ainda no fala no
se pode obter nada. Por muito que se insista, no vai falar, no vai falar nem se quisesse. "Porque
ainda no sabe".
Dito isto, o sargento consultou minha opinio. Disse que estava totalmente de acordo com suas
palavras. Ento, me perguntou em que idade crianas comeam a falar. "Frases bem feitas",
explicou o sargento, "no rudos com a boca".
Fui obrigado a admitir que desconhecia essa informao, ainda que a mesma formasse parte da
vida de todos os dias, isso a que se chama "cultura geral".
IV
Nunca via a senhora do doutor Mesiano, naquele tempo. No quis indagar, de todas as coisas
que se diziam sobre ela, quais eram verdadeiras e quais no. Verses havia muitas. As mais
insistentes diziam que a pobre sofria de uma enfermidade terminal e que no podia levantar-se da
cama, onde apodrecia silenciosamente. Outros diziam que estava prostrada, mas sem agonizar; que
no podia se valer por si mesma e, para sair, precisava de uma cadeira de rodas. Diziam que ela ou seu marido - no suportava essa perspectiva e preferira no sair nunca mais.
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No faltava quem dissesse que a senhora do doutor Mesiano sofria de problemas mentais e que,
por delicadeza, evitavam seu contato com o mundo.
O doutor Mesiano nunca falava destas coisas e eu preferi no saber:
V
O doutor Padilla recomendou, sobretudo para evitar um mau momento aos interessados, que
ningum fizesse uso da detida, at que passassem uns trinta dias do parto.
Explicou que suas palavras tinham que ser tomadas como recomendao geral, mas que depois
cada um era dono da sua vida.

VI
O problema da infncia", postulou o sargento Torres, " que se trata de uma idade muito
propensa fantasia". S pude concordar com esta observao. As crianas brincam inventando
mundo irreais, que logo se mesclam com o mundo real. "Por mais que se queira obrig-las a dizer a
verdade", continuou o sargento, "no se sabe nunca se no esto inventando o que dizem, inventam
mesmo sem querer".
Tive que admitir que tambm ignorava qual era a idade precisa na qual uma criana deixa de
fabular involuntariamente.
VII
O doutor Padilla explicou que o trato retal com a detida no devia trazer conseqncias
negativas, sempre e quando se evitasse, o mximo possvel, efetuar movimentos demasiado
bruscos.
24
Nesta classe de movimentos, no entanto, radicava o maior interesse dos muitos que a
procuravam.
VIII
A nica dificuldade que tinha com o Ford Falcon que trazia o cmbio no volante. Eu estava
muito acostumado com o cmbio no cho do Fiat 128 do meu pai. Por isso, especialmente durante
as primeiras semanas, na hora de trocar a marcha, movia minha mo para baixo, tateava o vazio por
uns segundos e s ento lembrava que, no Falcon, o cmbio estava em cima. O doutor Mesiano se
aborrecia com essas minhas vacilaes, um pouco porque o carro perdia firmeza no andar e um
pouco porque meus tapas no ar eram ridculos. Com o tempo me acostumei, porque tudo na vida
questo de costume. Ento, consegui perceber que o Ford Falcon era um carro forte e duro, e que
minha funo de motorista do doutor Mesiano era um destino mais que favorvel para meus dias de
soldado.
IX
O doutor Padilla detectou um intenso assobio respiratrio e calculou a existncia de gua
acumulada nos pulmes. Por tais motivos recomendou a suspenso temporria das tcnicas
interrogativas de imerso, sempre e quando existisse a necessidade de preservar a vida da detida.
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X
O sargento Torres me explicou que o fato, bastante bvio por outra parte, de que uma criana
contasse com uma capacidade de resistncia de sensivelmente inferior de um adulto, em nada
afetava a qualidade do procedimento. Esta cincia consistia em levar cada pessoa at o limite de
sua capacidade de resistncia, fosse qual fosse essa capacidade. O trabalho podia resultar inclusive
mais simples quando se tratava de crianas, porque os tempos eram mais curtos e os resultados se
obtinham mais rapidamente.
XI
O doutor Padilla verificou o aumento da arritmia, inclusive em estado de repouso, e considerou
que, chegado a esse ponto, existia um severo compromisso cardiovascular. Em funo deste
diagnstico, desaconselhou o emprego de tcnicas interrogativas com aplicao de correntes
eltricas, ao menos durante algumas semanas. Voltou a explicar que fazia estas sugestes para o
caso de haver interesse em manter viva a detida.
XII
Assim nu que tomei conhecimento de que, pelo motivo que fosse, a senhora do doutor Mesiano
j no saa de seu quarto e no tinha contato com ningum, e logo que conheci Srgio, seu nico
filho, entendi que a regra geral dos motoristas do servio militar e as esposas ou filhas dos oficiais
tinha em meu caso uma de suas poucas expedies.

Tomei esse fato com sumo agrado, porque muito prontamente tomei afeto pelo doutor Mesiano, e
envolver-me em situaes equvocas teria me provocado grande contrariedade.
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XIII
Era uma imagem em preto e branco. S se algum prestasse ateno no rosto perceberia que o
da foto era um menino que provavelmente no passaria dos dez anos de idade. E s se prestasse
ateno na boca se adivinharia o medo. O resto da imagem no correspondia a essa cara: o
capacete, as botas, o fuzil que no pesava, o porte altivo do soldado alemo.
Era uma foto que o sargento Torres guardava entre seus papis. Passou-a para mim, por cima do
telefone calado e do caderno aberto, e pediu que a observasse com cuidado.
"O que lhe sugere?", me perguntou por fim. "Meu sargento", lhe disse, "entendo que se trata de
uma foto tomada durante a Segunda Guerra Mundial". "Exatamente, soldado", aprovou o sargento
Torres. "E nos ensina que as crianas tambm participam das guerras".
XIV
O doutor Padilla sugeriu que os golpes que se aplicassem na detida, preferencialmente no
fossem dirigidos zona abdominal. A cercania temporal do parto aumentava em grande medida as
probabilidades de que se produzissem hemorragias difceis de controlar.
Se fosse necessrio interrogar o quanto antes a prisioneira, o doutor Padilla se inclinava ao
emprego de mtodos de presso psicolgica.
27
XV
Muitas vezes, aconteciam situaes aborrecedoras. Tinha ocorrido, por exemplo, que um tenente
se inteirava dos encontros de um soldado com sua senhora. Mais cedo ou mais tarde, esse soldado
era trasladado a algum destino hostil; quase sempre uma base muito no sul, onde faz muito frio. Mas
tambm acontecera muitas vezes que um soldado, por lealdade ou por falta de vontade, havia
resistido aos avanos da esposa de algum oficial. Esse soldado tambm recebia logo a ordem de
traslado a um quartel perdido no meio do nada.
Por sorte, minha situao era outra. Eu sentia um grande orgulho pela maneira que o doutor
Mesiano confiava em mim, e em como os outros j sabiam que, o que diziam para ele, tambm
podiam dizer para mim.
Cento e dezoito
I
Bastaram dois minutos para esse mdico apalp-la, como quem toca um objeto inerte, e para
soltar com indolncia suas recomendaes. Fez tudo isso sem pedir que a desamarrassem e, de
certo modo, sem considerar que estava a.
Enquanto isso, ela se ps a contar os segundos que passavam. No chegou a cento e vinte.
II
Tal como supus, o cabo Leiva era quem havia anotado a comunicao que aparecia no caderno.
Eu conversava com o sargento Torres sobre histrias de guerra, quando o cabo voltou. Trazia um
sanduche de milanesa envolto em papel e uma garrafa de um litro de Coca-Cola.
At ento, o sargento Torres no havia mostrado nenhum sinal de desgosto. Mas assim que viu
aparecer o cabo Leiva, o repreendeu. "O que isto?", disse, sacudindo o caderno de notas ainda
aberto. "O que isto?". O cabo explicou que tinha ido buscar alguma coisa para o jantar, porque
mais tarde, com a partida, no iria encontrar nada. "E isto, que merda ?", insistiu o sargento Torres.
O cabo o escutava sem soltar o pacote nem a garrafa. Por um momento, pensei que a garrafa ia cair
no cho e que sobraria para mim juntar todos os cacos de vidro. "Uma comunicao recebida no dia
de hoje, meu sargento", respondeu sem firmeza o cabo Leiva. O sargento Torres bateu sobre a
mesa e por pouco no fechou o caderno onde a comunicao podia ser lida. Era conveniente, e
ningum o ignorava, evitar deixar o sargento Torres bravo.
29

Agora rugia as palavras. "Cabo Leiva!", bramiu, Esta no a maneira de registrar uma
comunicao!". O melhor era no dizer nada, e o cabo Leiva por sorte tinha isso muito presente.
Ficou calado, o pacote engordurado em uma mo, a garrafa na outra, acatando as censuras do
sargento. Disse o sargento que as coisas tinham que ser feitas com a maior responsabilidade, que
nos dias que corriam, os erros custavam muito caro; disse que o inimigo estava esperando qualquer
distrao nossa para golpear e que, em tempos de guerra, era
Imprescindvel afrontar cada fato com absoluta seriedade.
Sim, meu sargento; sim, meu sargento", repetia o cabo Leiva. Eu pensei com alvio, e por acaso
com egosmo, que o detalhe da correo do erro de ortografia no ia ser detectado.
III
Obrigou-se a no acreditar que nesse lugar podia haver algum que cuidasse dela: nem o
mdico que passou a v-la porque sangrava demais, nem nenhum dos outros. Tampouco essa de
voz mais suave que aparecia pelas manhs, que s vezes at lhe acariciava a cabea, esse que lhe
falava de seu pequenino e da lista de nomes, esse que lhe dizia que na vida tudo dar e receber;
Tampouco esse, esse menos que os outros.
IV
O sargento silabou: A-par-tir-de-que-ida-de-se-pode-co-me-ar-a-tor-tu-rar-uma-cria-an-a.
Depois
fechou
o
caderno
com
um
tapa.
O
que

isso?,
exclamou.
"Uma
charada?"
No, meu sargento", dizia o cabo.
30
"Uma prova de engenho?"
"No, meu sargento."
"Uma pergunta filosfica?"
"No, meu sargento."
"Ou voc est se preparando o exame de ingresso na Faculdade de Medicina?"
"No, meu sargento."
S nesse momento o sargento se acalmou. Disse ao cabo Leiva que de agora em diante nunca
deixasse de registrar as comunicaes da forma devida: esclarecendo quem recebia a comunicao,
quem a dirigia e para quem era dirigida; e se a mensagem tivesse certa urgncia, como parecia ser
o caso dessa, era sua obrigao destacar isso com o simples trmite de escrever embaixo a palavra
"urgente", de preferncia em letras de forma e, se possvel, sublinhando-a duas ou trs vezes, at
quatro se for necessrio.
V
O da voz suave vinha a cada tanto lhe dizer, como se fosse uma lio ou como se fosse um
conselho, que na vida tudo questo de intercmbio: que o que d algo, recebe algo e o que no d
nada, perde tudo.
VI
A rotina exige, a princpio, algum esforo, mas no fim das contas, quando nos acostumamos,
acaba sendo vantajosa. Eu soube adaptar-me logo, em minhas funes de motorista, ao rigor dos
horrios e da disciplina. Entendi, e esse foi meu mrito, que se as coisas funcionavam era porque
eram feitas seguindo um mtodo.
31
O doutor Mesiano certa vez me disse: duas foras se chocaram na formao da Argentina: uma,
catica, irregular, desordenada, a dos selvagens; outra, sistemtica, regular, planificada, a do
exrcito. O doutor Mesiano sempre me aconselhava a aprofundar meus conhecimentos da histria
Argentina e tirar minhas prprias concluses.
VII

Sem deixar de admitir que havia cometido um erro, e sem deixar de se comprometer a no
repet-lo, o cabo Leiva ensaiou uma explicao. Disse que, na realidade, ele no quisera transmitir a
mensagem a um terceiro, j que nesse caso saberia ser mais explcito. No lhe escapava que
aquele que encontrasse como ele a havia deixado, provavelmente ficaria sem entender do que se
tratava concretamente. Mas a verdade que ele no tinha se ausentado de seu posto mais do que
um instante. Tinha ido at a cantina para assegurar-se de ter algo para comer e algo de beber
durante a noite. verdade que as conjecturas sobre a prxima partida o atrasaram em
conversaes que no tinha previsto. Mas sua inteno tinha sido a de um pronto regresso. Por isso,
a anotao registrada no caderno, mais que uma comunicao dirigida a alguma outra pessoa, era
uma espcie de lembrete que ele tinha escrito para si mesmo, com a pressa do caso. Queria ter
certeza de poder transmitir a consulta recebida nos termos exatos que tinha recolhido. Para isso,
usou caderno de notas. O resto da informao, sem dvida necessria para a resoluo prtica do
problema, a retinha em sua memria sem precisar de nenhuma anotao. Pensou que a nota seria
lida . Pensou que no podia haver nenhum mal-entendido.
32
"Voc precisa pensar menos, cabo", determinou o sargento Torres.
"Sim, meu sargento", admitiu o cabo Leiva.
VIII
A primeira coisa, pela manh, era colocar o carro em condies. Com um pano de pia, era
necessrio secar as gotas de orvalho da noite e depois passar uma flanela que desse brilho chapa
azul. Nas madrugadas de junho, como era o caso, o carro amanhecia coberto de geada. O melhor
era jogar gua bem quente para desfazer o gelo; depois passar o pano e depois a flanela. No
importava quo reluzente pudesse estar o carro. Era necessrio cumprir essa rotina. Somente os
dias de chuva justificavam a suspenso.
O asseio interior tambm era muito importante. Com freqncia precisvamos andar sobre a terra
seca, assim era bom tirar, todas as manhs, os tapetinhos de borracha e dar umas sacudidas para
tirar o p. Debaixo do meu assento guardvamos sempre um frasco de desodorante Crandall em
aerossol: meu dever era jogar uma boa quantidade no carro a cada manh.
Apesar desses cuidados cotidianos, o carro era levado ao lava-rpido uma vez por semana, todas
as segundas. Um dia apareceu uma mancha no tapete do banco de trs e foi preciso lav-lo
urgentemente nessa mesma noite. Terminei perto das dez, mas, por outro lado, fiquei com a manh
de segunda livre.
IX
O sargento se interessou pelo contedo das discusses da cantina. Perguntou ao cabo se por
acaso algum andava duvidando que a vitria seria, mais uma vez, dos argentinos.
33
O cabo logo esclareceu que no, que ningum duvidava da vitria argentina; mas que, a respeito
das maneiras de obter essa vitria existiam pareceres distintos. O sargento quis saber se ainda
persistiam as eternas lamentaes pelas ausncias de Jota Jota Lpez ou Vicente Perna. O cabo
respondeu que aquelas desavenas j tinham sido superadas completamente e que tanto Jorge
Olgun como Osvaldo Ardiles incitavam uma adeso unnime de todos os argentinos bem-nascidos.
X
s seis e meia em ponto eu tinha que passar para buscar o doutor Mesiano na porta de sua casa.
Para isso, me levantava s cinco (em junho, cinco significa a noite mais plena). Meia hora precisava
para meu prprio asseio, meia hora para o asseio do carro e outra meia hora para fazer o trajeto
entre minha casa e a casa do doutor Mesiano. Ele me esperava j pronto na porta, fumando seu
tabaco negro. Saudava levantando uma mo, quando me via chegar. Eu lhe respondia do carro com
uma piscada do farol alto. Esse intercmbio de sinais j era suficiente para ns e era toda nossa
saudao. Por isso, quando o doutor subia no carro, j nem nos falvamos bom-dia e passvamos
diretamente a conversar sobre os assuntos do dia.

XI
Depois, o sargento voltou a mostrar o caderno de notas e pediu que se explicasse. O cabo disse
que a ligao telefnica havia ocorrido entre as quatro e meia e as cinco da tarde. Procedia de
Malvinas, do Centro Malvinas, ou seja, de Quilmes.
34
Quem ligava era o doutor Padilla. Ele pessoalmente. "Preciso fazer uma consulta tcnica", disse.
O cabo Leiva lhe pediu que aguardasse um momentinho. Pegou a caneta e abriu o caderno em uma
folha em branco. Queria anotar para no ser involuntariamente infiel aos termos da consulta. O
doutor Padilla ditou e o cabo Leiva escreveu. "Peo-lhes que me dem uma resposta o mais rpido
possvel", continuou o doutor Padilla, "porque o tempo urge".
Quer dizer que, deixando a mensagem para que um terceiro a visse, o cabo Leiva teria
acrescentado a palavra "urgente" e a teria sublinhado pelo menos uma vez. O doutor Padilla tinha
dito que no dava um centavo pela vida da me e que os da lista de espera comeariam a
pressionar assim que soubessem que o nen havia nascido e que, pelo que se podia ver, ia ter os
olhinhos claros.
XII
Alguns dias eram muito tranqilos, sem grande coisa para fazer. Eu os passava no escritrio, com
o sargento Torres ou com ( o cabo Leiva, ou conversando com o doutor Mesiano na cantina.
Outros dias, no entanto, eram bastante corridos e eu no saa do carro. Eram dias nos quais o
doutor Mesiano tinha ( percorrer diferentes unidades. Ento, amos a Quilmes, amos i Lans, amos
a Banfield, amos a La Plata. Todo o dia de c ] l, onde precisassem do doutor Mesiano. s vezes,
terminava tardssimo.
Nesse caso era o mesmo: s seis e meia em ponto da manh eu passava para buscar o doutor
Mesiano pela porta de sua casa. Que o dia fosse leve ou pesado no importava. Tampouco
importava a que hora tnhamos terminado o trabalho na noite anterior.
35
O importante era levar um ritmo metdico, porque na vida, segundo dizia o doutor Mesiano, tudo
questo de mtodo.
XIII
No era o que lhe acariciava a cabea. Era um dos que tinham pisado com o salto da bota nos
seus ps descalos. Depois se inclinou para ela para falar em voz baixa. No precisou v-lo para
saber que se aproximava. Ouvi-o dizer: "Isto no um jardim de infncia. Ouviu tambm: "Aqui os
pivetes no duram muito". Depois se calou, para ver se ela falava.
Quando se foi, pisando duro, ela quis mexer os dedos dos ps, no conseguiu.
XIV
O sargento Torres tinha raciocinado mal. Suas reflexes sobre a infncia, o que as crianas
falam e no falam, estavam equivocadas. Eu sabia e ele sabia que eu sabia. Mas se esmerou em
fazer com que as coisas seguissem seu curso, sem que nada nos recordasse toda aquela filosofia
ensaiada por erro. Esta classe de prudncia, ainda que possa parecer um detalhe menor, era
decisiva para que no se deteriorasse o princpio de autoridade.
Sem perder nenhuma gota de sua energia habitual, o sargento Torres determinou: "Temos que
consultar o capito Mesiano".
Sim, meu sargento, dissemos o cabo Leiva e eu, quase em unssono.
36
Mil novecentos e setenta e oito
I

Nesse dia, no entanto, as coisas iam sair do normal. A apreciada regularidade, que nos permitia
ser como engrenagens de uma mquina que nunca falha, ia se interromper justamente nesse dia.
Para dar pronta resposta inquietude do doutor Padilla, que no centro de Quilmes a esperava com
urgncia, o sargento Torres me ordenou que localizasse imediatamente o doutor Mesiano. Era
necessrio que viesse o quanto antes ao escritrio de comunicaes e entrasse em contato com o
doutor Padilla.
Mas o doutor Mesiano no estava em parte alguma.
II
A formao da Argentina: Fillol; Olgun, Galvn, Passarella, Tarantini; Ardiles, Gallego, Kempes;
Bertoni, Valncia, Ortiz.
III
Percorri os diferentes setores da unidade. Primeiro, aqueles onde o doutor Mesiano podia chegar
a se encontrar segundo as atividades ou as preferncias que eu conhecia. No estava em nenhum
desses lugares. Depois, j mais inquieto e sem raciocinar muito, passei a busc-lo por todos os
lados, inclusive por alguns lugares inverossmeis, onde dificilmente o doutor Mesiano poderia estar.
Acontece com frequncia que as buscas infrutferas nos deixem um pouco cegos, e acabamos
procurando, por exemplo, um lpis dentro da carteira, coisa impossvel, ou se as chaves do carro
esto na agenda, coisa improvvel.
37
Eu estava chegando a essa espcie de obnubilao prpria das buscas vs, por no encontrar o
doutor Mesiano.
IV
A formao da Argentina (com especial ateno aos nomes de seus integrantes): Fillol, Ubaldo
Matildo; Olgun, Jorge Mrio; Galvn; Luis Adolfo; Passarella, Daniel Alberto; Tarantini, Alberto
Anules, Osvaldo Csar; Gallego, Amrico Rubn; Kempes, Mario Alberto; Bertoni, Ricardo Daniel;
Valncia, Jos Daniel; Ortiz, Oscar Alberto.
V
Em um primeiro momento, no quis perguntar a ningum pelo doutor Mesiano. De alguma
maneira, pressentia que ele havia incorrido em uma falta, que o fato de que no se pudesse localizlo rapidamente, j implicava uma forma de incorreo de sua parte. Cada integrante do servio
estava obrigado, independente de sua funo ou hierarquia, a reportar-se sem demora, se sua
presena fosse necessria. Era um dos requisitos fundamentais para que o sistema funcionasse.
Senti que se perguntasse aqui ou acol pelo doutor Mesiano, o colocaria em evidncia.
Estranhamente, me encontrava acobertado o doutor Mesiano, por leve ou inocente que fosse esse
acobertamento.
VI
A formao da Argentina (com especial ateno s posies de seus integrantess): Fillol, goleiro;
Olgun, zagueiro direito; Galvn, zaqueiro central; Passarella, zagueiro central; Tarantini, zagueiro
esquerdo; Ardiles, meio-campista; Gallego, meio-campista; Kempes, meio-campista e atacante;
Bertoni, ponta-direita; Valncia, centro-avante; Ortiz, ponta-esquerda.
38
VII
Claro que, por mais discreto que eu quisesse ser, mais de uma pessoa me viu passar preocupado
de um lado para o outro. Era fcil deduzir que eu estava procurando algum. E era fcil deduzir que
esse algum era o doutor Mesiano, a quem eu tinha como referente e como chefe imediato, era fcil
deduzir que se tratava dele e no podia tratar-se de outro.
Por isso andei plos diferentes setores da unidade, os mais habituais e os menos usados para
mini, sem perguntar a ningum se havia visto o doutor Mesiano ou se, por acaso, sabia onde podia

encontr-lo, e, mesmo assim, mais de um cruzou comigo e me disse, sem esperar que eu
perguntasse, que no o havia visto durante o dia todo, ou que o tinham visto mas h trs ou quatro
horas, ou que acreditavam ter ouvido ele dizer a algum que tinha que ir ou que j havia ido embora.
Eu no esquecia que, enquanto isso, o sargento Torres me esperava.
VIII
A formao da Argentina (com especial ateno procedncia de seus integrantes): Fillol, River
Plate; Olgun, San Lorenzo de Almagro; Galvn, Talleres de Crdoba; Passarella, River Platc;
Tarantini, passe livre; Ardiles, Huracn; Gallego, NewelPs Old Boys de Rosrio; Kempes, Valncia
de Espanha; BertonL Independiente de Avellaneda; Valncia, Talleres de Crdoba} Ortiz, River Plate.
39
IX
Lugo era outro soldado lotado na unidade. Era uma espcie de assistente do coronel Maidana;
no seu motorista, porque no sabia dirigir, mas seu colaborador. Como a maior parte dos soldados,
para no dizer quase todos, tinha uma posio bastante mais relegada que a minha: no tinha
acesso aos lugares nem s pessoas nem aos dados como eu, porque ningum merecia a confiana
que o doutor Mesiano me dispensava.
Mas, vez, ele pde se permitir um ar de superioridade comigo, que fui obrigado a suportar de m
vontade. Entendeu que eu andava desconcertado atrs do doutor Mesiano. Admiti que tnhamos
recebido uma consulta tcnica que ele deveria responder brevemente. Ento, Lugo pde me contar,
porque eu no sabia mas ele sim, que o coronel Maidana havia conseguido para o doutor Mesiano
duas entradas de favor para a partida dessa noite. "Arquibancada Belgrano alta", precisou, setor B.
Essas entradas vinham diretamente de um presente do contra-almirante Lacoste. Como as entradas
eram muito ambicionadas, foi preciso para retir-las em seguida plos escritrios da rua Viamonte.
De maneira que, no carro do prprio coronel Maidana, dirigido por outro soldado, de nome
Ledesma, o doutor Mesiano tinha abandonado a unidade h aproximadamente duas horas e no era
necessrio esclarecer que no pensava em voltar neste dia.
X
A formao da Argentina (com especial ateno numerao de seus integrantes): Fillol, cinco,
Olgun, quinze; Galvn, sete; Passarella, dezenove; Tarantini, vinte; Ardiles, dois; Galledo, seis;
Kempes, dez; Bertoni, quatro; Valncia; vinte e um; Ortiz,
dezesseis.
40
XI
Tudo que sentimental sempre me pareceu desprezvel. Principalmente durante o ano em que fui
soldado: um ano transcorrido entre as armas e os homens. Mas mentiria se dissesse que no me
afetara saber que o doutor Mesiano tinha ido sem mim. No parava de repetir para mim mesmo que
o coronel Maidana o tinha arrancado da unidade para que pudesse garantir as entradas para a
partida. Ainda assim, no entanto, me mortificava que no tivesse pedido que eu o levasse,
conversando talvez sobre a partida da noite, no Falcon reluzente que esperava por ele e no por
mim.
XII
A formao da Argentina (com especial ateno s datas de nascimento de seus integrantes):
Fillol, 21 de julho de 1950; Olgun, 17 de maio de 1952; Galvn, 24 de fevereiro de 1948; Passarella,
25 de maio de 1953; Tarantini, 3 de dezembro de 1955; Ardiles, 3 de agosto de 1952; Gallego, 25 de
abril de 1955; Kempes, 15 de julho de 1954; Bertoni, 14 de maro de 1955; Valncia, 3 de outubro
de 1955; Ortiz, 8 de abril de 1953.
41
XIII
Consegui me conscientizar, nesse momento, de quanto sentiam cimes de mim o sargento Torres
e o cabo Leiva, e seguramente muitos outros que julgavam que um simples soldado como eu tinha

ido longe demais. Toleravam com desgosto, sem deixar de pensar que no era o que correspondia
ou o que convinha, somente porque eu contava com o respaldo do doutor Mesiano. O doutor
Mesiano tinha muito peso na unidade. Mas tambm em relao a ele, e eu pude ver naquele dia,
sentiam algum cime o sargento Torres e o cabo Leiva,
Quando regressei para dizer-lhes que no tinha conseguido encontr-lo em nenhuma parte, os
dois mostraram, ao mesmo tempo, preocupao, por ver que a consulta do doutor Padilla no seria
respondida com rapidez, e regozijo, por surpreender o Mesiano em falta.
Olhe, soldado, disse-me o sargento, "aqui no estamos brincando. Aos mortos no h maneira
de faz-los falar. Necessitamos agora mesmo da resposta para o doutor Padilla". Deu a entender
que se esse dado chegasse demasiadamente tarde, eu estaria em apuros e supunha-se que o
doutor Mesiano tambm.
O cabo Leiva, enquanto isso, assentia e, debaixo de seus bigodes, me pareceu que sorria.
XIV
A formao da Argentina (com especial ateno estatura de seus integrantes): Fillol, um metro e
oitenta e um; Olgun, um metro e setenta e cinco; Galvn, um metro e setenta e dois; Passarella, um
metro e setenta e quatro; Tarantini, um metro e oitenta e dois, Ardiles, um metro e setenta; Gallego,
um metro e setenta; Kempes, um metro e oitenta e dois; Bertoni, um metro e setenta e seis;
Valncia, um metro e setenta e nove; Ortiz, um metro e setenta.
42
XV
No momento em que sentiu a aspereza do cano apoiado em sua nuca, encontrou algum modo de
se resignar com a morte. Disseram que iam finalmente fuzil-la porque tinham se cansado de
esperar que colaborasse. Essa explicao quase final supunha, de alguma maneira, uma ltima
oportunidade, uma ltima interrogao. Mas ela continuou calada. Das muitas coisas que lhe
advertiram, no acreditou em nenhuma e isso a ajudou a no pronunciar nenhum dos nomes. De dia
ou de noite, j no sabia, vinham busc-la. Quase no restava corpo onde pudessem mat-la.
Como lhe falaram de fuzilamento, pensou em um peloto e pensou num lugar aberto. Liniers,
Camila O'Gorman, Jos Len Surez, todas essas cenas da histria argentina passaram
confusamente pela sua cabea. Mas aqui empregavam fuzilar como tiro de misericrdia. Arrastaramna at um lugar to fechado e to estreito como sua prpria cela. No tiveram que encapuz-la,
porque j estava assim desde o princpio. No havia um peloto, mas s um verdugo. Bastava uma
pessoa para matar uma pessoa. Bastava s um revlver, colocado no meio da nuca daquele que
tinha de morrer. Sentiu o cheiro de plvora, e sentiu o cheiro da plvora j queimada, mesmo que
no tivessem disparado ainda. Escutou que o gatilho foi puxado. Na nuca sentiu a presso do dedo
sobre o gatilho, j disparando.
Esperou que soasse um estampido, mas o que soou foi um mero golpe de metal contra metal. Em
um instante de pura irrealidade, pensou que assim soava um disparo se era ouvido quando j se
est morto. Depois entendeu que no, que no tinham disparado. Houve insultos e houve risos,
festejando simulacro. Depois de ter-se resignado de que ia morrer, teria que se resignar agora de
que a vida continuaria.
43
Sentiu-se outra vez demasiadamente fraca. Essa fraqueza indubitavelmente estava nos planos,
porque voltaram a interrog-la nesse momento preciso. Quis pedir pelo filho, mas se conteve.
Exigiam-lhe os nomes, os nomes, os nomes. Nas tmporas, as prprias batidas do corao a
machucavam. Para no escutar, para no dizer nada, comeou a contar quantas dessas batidas
cabiam no transcurso de um minuto.
XVI
A formao da Argentina (com especial ateno ao peso de seus integrantes): Fillol, setenta e oito
quilos; Olgun, sessenta e nove quilos; Galvn, setenta quilos; Passarella, setenta e um quilos;
Tarantini, setenta e trs quilos; Ardiles, sessenta e dois quilos; Gallego, setenta e dois quilos;
Kempes, setenta e seis quilos; Bertoni, setenta e oito quilos; Valncia, setenta e sete quilos; Ortiz,
setenta quilos.

44
Oitenta mil
I
Localizar o doutor Mesiano e fazer com que respondesse inquietude do doutor Padilla se
converteu para mim numa questo de orgulho pessoal. Senti que no devia permitir que uma
informao se perdesse por culpa nossa (qualquer falta do doutor Mesiano, se que ela existia, eu a
vivia como prpria).
Pedi permisso ao sargento Torres para retirar-me da unidade. Levava comigo o Falcon: me
propunha a encontrar o doutor Mesiano e conseguir que desse a tempo sua valiosa opinio
profissional. Disse "a tempo" sem saber totalmente o que significava exatamente uma expresso
assim, nessas circunstncias.
"Faa o seu dever, soldado", disse o sargento, mas no levantou a vista de uns papis que
revisava.
Era inverno: anoitecia quando sa.
II
O trnsito nas ruas tinha se enredado at tornar-se insolve. Travava-se em todas as esquinas e,
por momentos, ficava-se completamente detido. No tinha como andar mais rpido: a fila de carros
atolados continuava at onde chegava a vista. Nos outros dias de partida havia acontecido o
mesmo: todas as pessoas saam de seu trabalho na mesma hora, para chegar suas casas e assistir
o encontro pela televiso; esse apuro abarrotava as ruas de carros, e ento as viagens pela cidade,
justo quando precisvamos que fossem mais rpidas, demoravam dobro do tempo normal, se no
fosse mais. Hoje a histria se repetia, apesar de ser sbado.
45
Para acalmar minha ansiedade, liguei o rdio do carro. Faziam conjecturas duras sobre a partida:
mostravam cautela, mas no duvidavam da vitria argentina. Olhei meu relgio e entendi que no
poderia chegar a tempo at a casa do doutor Mesiano. Tinha tomado essa direo sem estar seguro
de como deveria proceder. Eu nunca descia nem tocava a campainha nessa casa, porque o costume
era que o doutor me esperasse j pronto na porta. E o doutor nunca tinha se atrasado. Talvez a esta
hora no estivesse em sua casa, talvez tivesse ido diretamente ao estdio e eu cometia uma grave
imprudncia indo incomodar sua esposa, fosse o que fosse que a mantinha apartada do mundo.
No sem alvio mudei de rota: deixei o caminho que levava casa do doutor Mesiano e virei para
a avenida Libertador, que era o caminho que levava at o estdio com menos demora.
III
Graas s reformas indicadas e depois supervisionadas pelo ENTE Autrquico, a capacidade do
estdio alcanava agora quase oitenta mil espectadores. Para mim, era difcil calcular o que
representava essa quantidade de pessoas aglomeradas nas ruas de um bairro. Mas no deixava de
compreender que, frente a essa cifra desmentida, as probabilidades de encontrar o doutor Mesiano
no acesso ao estdio eram to poucas que mesmo a imagem de uma agulha no palheiro era
insuficiente.
Essa perspectiva certamente me desanimou, mas de imediato considerei que contava com o
dado preciso do setor em que devia procurar e, portanto, minha busca se iniciava com uma poro
de espectadores bastante menor que os oitenta mil do total. Bastaria percorrer os acessos da rua
Udaondo, podendo descartar os da Alcorta e os Lugones.
46
No final das contas, admiti, no tinha alternativa. Pior teria sido ir para minha casa e, pior ainda,
permanecer na unidade, suportando as cobranas do sargento Torres, s quais se somariam as do
cabo Leiva, porque nessa classe de mortificaes era raro que um deixasse de seguir o outro.
IV
Meu plano consistia em rondar a entrada das cadeiras Belgrano, que no eram tantas, sabendo
que o doutor Mesiano, mais cedo ou mais tarde tinha que passar por a. Confiava que ia v-lo ou
que ele me veria. Ele nem sequer ia perder a partida: podia me dar a resposta e eu me encarregaria

de faz-la chegar ao doutor Padilla no Centro Malvinas da cidade de Quilmes.


Mas as complicaes do trnsito nas ruas foram aumentando medida que me aproximava da
zona do estdio. No rdio passavam agora a formao da Argentina e a analisavam em seus
pormenores. Me entretive escutando essa informao, mas por momentos avanava a um
exasperante passo de homem. E nem sequer isso, porque os que iam a p ver a partida passavam
ao lado do carro e o deixavam para trs. Muitos me cumprimentavam, ao ver que eu era um
soldado, agitando suas bandeiras argentinas. Eu lhes respondia levantando os polegares.
Deixei o Falcon a umas quantas quadras e seguia o caminho a p, ao ver que desse modo
poderia avanar mais rpido. Mas ainda assim, entre uma coisa e outra, terminei chegando muito
tarde ao estdio. Era quase a hora da partida quando me encontrei na frente das portas das
cadeiras Belgrano. O doutor Mesiano, previdente como era, seguramente tinha entrado h um bom
tempo.
Ento resolvi esperar e procur-lo na sada.
47
V
As luzes brancas do estdio iluminavam com seu reflexo os muros do Tiro Federal. Nesse lugar,
durante a instruo, eu tinha feito minhas prticas de tiro e tinha recebido duas lies definitivas: a
primeira, que a pontaria depende menos de uma boa vista que de um bom pulso, que com boa vista
e mau pulso o nico que se consegue ver por quanto se errou; a segunda, que no devia duvidar
em disparar, que o que duvidava em matar, era morto.
Nessa noite, por razes bvias, no se praticava no Tiro Federal e havia como uma ausncia dos
estampidos de fogo atrs dos muros que no deixavam que nada fosse visto.
VI
Durante duas horas, enquanto durasse a partida, sabamos que nada ia acontecer. Se a Argentina
ganhasse, at podia ser que a noite inteira passasse sem novidade. Era melhor no imaginar o que
podia acontecer se perdesse. Mas isso nunca tinha ocorrido e no tinha porque acontecer.
VII
Notei logo que a cidade tinha ficado vazia. Repentinamente vazia: nem um s carro, nem um s
nibus, nem uma s pessoa caminhando, ningum em nenhum lugar. Soube assim que a partida
tinha comeado.
VIII
No silncio da noite, tinha que esperar que explodisse um grito de gol.
48
Um gol da Argentina, como tinha acontecido nas outras noites, e talvez no haveria mais gritos, ao
menos at o dia seguinte.
IX
Ao redor do estdio calado, s circulavam os policiais. Uns quantos a cavalo e uns quantos de
moto. Tambm passavam os patrulheiros. Os patrulheiros mantinham os demais a par de como ia
tudo e alentavam os mais temerosos para que tivessem f.
X
O choro de uma criatura pode at tapar as vozes de um rdio, por mais que essas vozes
exclamem e se alvorocem. Por sorte chorou e o trouxeram, s para que no estorvasse.
XI
Se algum olhava com ateno as fendas das persianas das casas, via em todas elas o brilho dos
televisores ligados. S assim se percebia que a cidade no tinha sido desalojada, que no era um
desses episdios das guerras em que todos os povoadores de um lugar o abandonam e vo
embora, sem deixar nele coisa alguma que possa servir ao inimigo que invade.

XII
Essa gua turva e fria, qual injustamente chamavam caldo, trazia normalmente alguns poucos
macarres, e s vezes um pedao de batata to leve que flutuava.
49
Naquela noite, no entanto, eram trs os pedaos de batata e tinha tambm um pouco de algo que
talvez fosse abbora, e os macarres que vinham no podiam ser contados sem esmero.
Tinham feito isso contra a Hungria e depois o tinham feito contra a Frana: seguramente no
queriam que a mar de sorte acabasse.
XIII
Senti, de repente, a fome e o frio. Levantou um vento cortante que comeou a arrastar as tiras de
papel que estavam pela rua, ainda que sem fazer rudo com elas. Procurei a diagonal para
Libertador e entrar em alguma pizzaria que tivesse ficado aberto espera da sada das pessoas
quando a partida terminasse.
Antes de chegar na praa que havia no meio da avenida, na diagonal, vi passar um cachorro.
pouco o que conheo de raas de ces, reconheo somente as mais bvias, as que qualquer um
reconheceria. Deste cachorro posso dizer que se parecia muito com o pastor alemo, que no era
um pastor alemo mas que se assemelhava muito. Me chamou a ateno o modo como andava.
Brincava evidentemente com algum objeto, o empurrava e depois o perseguia, tentava mas no
conseguia apert-lo entre os dentes. Era a maneira como os gatos costumam brincar, no os
cachorros; e no entanto, este cachorro estava to entretido com esse assunto que no primeiro
momento nem sequer me viu.
Me aproximei, mas no muito. Os cachorros me provocam desconfiana. Fiquei, apesar de tudo,
a uma distncia suficientemente pequena para ver, sob um golpe de luz, o brilho dourado desse
objeto que o cachorro levava e trazia.
50
Era um objeto muito pequeno, mas aproximando-me mais, mais do que costumo me aproximar de
cachorros soltos, cheguei a notar que se tratava de uma moeda. Uma moeda, disse para mim
mesmo, ou uma tampinha de refrigerante; mas como era dourada, pensei em uma moeda.
Tinha ficado to perto, que o cachorro percebeu minha presena. Olhou para mim sem expresso.
Estava a ponto de me afastar quando o cachorro tomou a iniciativa e se afastou antes de mim. Ento
fui pegar a moeda para ficar com ela: encontrar! dinheiro perdido sinal de boa sorte e tambm,
ao mesmo tempo, o primeiro efeito dessa boa sorte. Mas quando me agachei
para peg-la, vi que no se tratava de uma moeda, mas de um anel. Um anel dourado com uma
letra "R" talhada no verso. E na borda interior, em uma letra to pequena que quase no consegui!
ler sob a pobre luz da rua, dizia: Raul e Susana, e um ano: 1973.
Se esse anel era, como parecia ser, de ouro, valia muito mais do que a moeda que me pareceu
ver a princpio. No entanto, moeda, eu a teria metido no bolso e a teria levado comigo. E o anel, no
sei por qu, joguei no tanque de areia da praa e depois o enterrei com o p, primeiro o enterrei e
depois revolvi tudo com minhas botas de soldado, at estar bem seguro de que no poderia voltar a
encontrar esse anel, nem sequer no caso impossvel de que quisesse encontr-lo.
51
Vinte e cinco milhes
Achei uma pizzaria aberta antes de chegar rua Congresso. Como era de se prever, estava
vazia, ou quase vazia, na realidade, porque ao menos uma das mesas do local estava ocupada. Um
s homem, de idade difusa, passava o tempo em frente a um sifo de gua com gs e uma poro
de mussarela. Sobre a mesa estava seu rdio porttil, como correspondia. Para no fazer barulho ou
para ganhar concentrao, aquele homem tinha um fone de ouvido enfiado na orelha esquerda. Ao
passar ao lado de sua mesa, perguntei como estava a partida. "Zero a zero", me disse, sem
acrescentar nada mais.
Na parede havia duas estufas acesas, que no conseguiam nr do lugar. A chama azul produzia
um zumbido muito no entanto, dava para ouvir.

II
Perante um contrrio que agride por meio de contra-ataques, o conveniente no apresentar
uma defesa em linha, j que a mesma pode ser facilmente ultrapassada, mas montar uma ordem
defensiva escalonada.
III
A mulher que atendia era to pequena que quase no era possvel v-la atrs do balco. No se
aproximou, no entanto, nem saiu de onde estava, para me perguntar o que poderia me oferecer.
Tampouco precisou levantar a voz para que eu a escutasse.
52
Pedi uma Coca-Cola e duas pores de mussarela. "Gelada ou natural?", consultou, entendia-se
que falava da Coca-Cola. "Natural", eu disse.
Ela mesma se ocupou de esquentar as duas pores de pizza e de traz-las at minha mesa
junto com a garrafa de Coca-Cola. O problema de pedir pores soltas que nesses casos
costume esquentar uma pizza j cozinhada sabe Deus desde quando. Mas a fome que eu tinha
ajudou a que tudo parecesse estar bem.
At que a partida terminasse, a mulher no esperava que ningum mais entrasse na pizzaria. Em
seus clculos, era evidente, nem sequer estvamos ns, o homem do rdio e eu. Mas em um
momento determinado, quando eu j estava terminando, entrou um policial. Passou entre as mesas
sem cumprimentar e se aproximou do balco para beber rapidamente, de p mesmo, um copo de
vinho e comer umas empanadas. Pediu mulher que passasse um pano por cima do balco, para
poder colocar seu bon com mais segurana. De repente perguntou: "Diga, senhora, e a partida?".
Eu tampouco poderia ter imaginado que no havia um rdio ligado neste lugar. Sempre atrs do
balco, a mulher disse: " cabala, e nada mais, agente, para que os nossos ganhem hoje. Contra os
italianos, na Alemanha, eu escutei a transmisso aqui mesmo e a gente perderia a partida se no
fosse pelo gol do Houseman".
O policial tomou o gole final, sem dizer se a explicao era boa ou m. Deu uma volta e apontou
para o homem do rdio. "Ei", disse, "como vai a coisa?". O outro repetiu sem nfase: "Zero a zero".
Ento, o policial pegou um guardanapo de papel de um copo que estava sobre o balco, passou por
seus bigodes, voltou u colocar o bon, o enfiou com um puxo, e saiu para a rua, na noite e no frio,
sem se despedir e sem pagar.
53
IV
Quando o contrrio apresenta uma defesa fechada, convm no ensaiar ataques areos frontais,
porque so fceis de neutralizar e terminam por desmoralizar o lado atacante.
V
Estava a ponto de ir embora, com a inteno de encontrar um lugar onde pudesse escutar a
partida, quando o homem da outra mesa se levantou e foi ao banheiro. Deixou sobre a mesa o rdio
e
O fone; Os banheiros estavam bem no fundo, alcanados por um corredor que tinha ao lado do
balco. Ento, senti um impulso difcil de explicar. Me levantei e me aproximei da outra mesa. Eu
No era tmido, mas tampouco confiado, e o que estava fazendo me pareceu um pouco imprprio.
Talvez tenha sido vencido pela ansiedade de escutar um pouco da partida, talvez tenha ficado
confiante ao saber que ningum estava me vendo. Peguei o fone do homem, limpei-o esfregando no
meu pulver e coloquei-o no ouvido. No conheo nada, nada em absoluto de msica clssica,
assim que no posso dizer se o que aquele homem escutava em uma s orelha era Mozart,
Beethoven ou o que era.
Com um sobressalto deixei o fone em seu lugar e voltei minha mesa. Logo o homem saiu do
banheiro. Ocupou seu lugar e voltou a colocar o fone. Pareceu que me olhava e resolvi ir embora.
Pedi a conta, mas mulher se negou a cobrar e descartou meus argumentos. Agradeci e dirigi-me
porta. Ao passar, perguntei quele homem se tinha alguma novidade.
Nenhuma, me disse, cobrindo com uma mo o ouvido que ficava livre.

54
VI
Com freqncia, os contrrios ensaiam movimentos enganosos no campo. Assim, por exemplo,
ocupam posies ofensivas pelo flanco direito, quando sua verdadeira inteno atacar pelo flanco
esquerdo. Nesse caso, o grupo defensor pode igualmente aparentar o fortalecimento defensivo de
um setor e o descuido defensivo do outro, mas na realidade est pronto para cobrir as posies
presumivelmente debilitadas e rechaar o ataque na zona em que se sabe que vai se produzir.
Desta maneira, se neutraliza uma manobra enganadora, no com uma manobra verdadeira, mas
com outra manobra enganadora.
VII
Numa esquina escura, vi passar uma menina que chorava. Eu vi seu rosto de relance, porque
passou correndo. Me pareceu que corria no limite de suas foras, mas nem sequer isso bastava e
jogava os braos para a frente, jogava todo o seu corpo para a frente. Ela no me viu, porque nada
via. Os olhos estavam perdidos, tambm olhando para frente.
Cruzou comigo inesperadamente, no meio da rua vazia, quando eu caminhava para o lugar onde
tinha deixado o carro. Vi a outra vez um pouco adiante, em outra clareira de luz; depois a vi tropear
e cair no cho, vi quase ricochetear no cho para voltar a se levantar e voltar a correr, como se cair
no fizesse parte das coisas que podiam acontecer.
Reapareceu outras duas vezes nos clares de luz da rua, sempre correndo, cada vez mais
distante. Eu fiquei parado, sem deixar de olhar. No se via mais ningum em nenhum outro lugar No
final da rua, a menina desapareceu, em uma passagem abandonada que levava estao de trem.
Eu calculo que tinha, como muito, quinze anos.
55
VIII
Quando se persegue um contrrio, no conveniente colocar-se bem atrs dele. Seu prprio corpo
se converte assim em um obstculo que dificulta a viso e nos impede de alcan-lo. O mais
adequado, se temos fora suficiente, ultrapass-lo pelo lado, adiantar um trecho, ganhar alguns
metros e depois ento girar para oferecer um ponto de choque a partir de uma posio frontal.
IX
Na altura da rua Campos Salles havia, e ainda h, dois descampados. Tinham levantado umas
paredes de cimento ao redor para que, de fora, no se notasse o mato e os escombros. Sobre essas
paredes, depois se colocaram cartazes de propaganda. Agora no sobrava nenhum que estivesse
inteiro e pudesse ser bem lido, porque parece que as pessoas que passavam para o estdio iam
arrancando e os deixavam em farrapos. Ficavam penduradas as grandes tiras de papel, como se
fossem os muros que estivessem se desmembrando.
No tinha lixo nos descampados, porque os cartazes que proibiam terminantemente jog-lo eram
desses que no se podem arrancar. Apesar de no ter lixo, tinha ratos. Agora que as ruas estavas
vazias, era possvel ouvi-los ali dentro. No silncio da cidade sem pessoas, era possvel ouvi-los
mover o mato, e soavam como os passos de uma pessoa que perambulava sem nenhum lugar
aonde ir. Prestando um pouco mais de ateno, era possvel perceber os gritos dos ratos. Pareciamse muito com os gemidos de uma pessoa que quer e no pode conter um soluo. Eram muitos os
ratos, ou eles se moviam muito; ou, por acaso, tendo ratos, tinham tambm gatos que os
perseguiam. Ao passar na altura dos descampados, senti, alm disso, o rudo de um golpe do lado
de dentro da parede.
56
Seguramente um dos gatos, no momento de dar o salto para cair sobre um rato, tinha movido um
pedao de escombro e o tinha feito se chocar contra a parede e, por isso, do lado de fora eu
passava nesse momento exato e escutei o golpe, esse golpe que tinha feito pensar em uma pessoa
que dava uma pancada em uma parede, porque por estranho ou intil que parea, s vezes uma
pessoa se desespera e ao se desesperar d uma pancada na parede, e esse golpe soa igual quele
golpe do escombro sobre o muro do descampado, quando o gato saltou para caar o rato e o tirou
de seu lugar e o fez cair.

X
Quando o contrrio forte nos ataques por via area e supera em altura as posies defensivas,
os pontos de lanamento devem ser obstrudos, para neutralizar dessa maneira os tiros por
elevao, antes mesmo de serem produzidos.
XI
Outra das vantagens do Ford Falcon, sobre os demais modelos e marcas, que no era
necessrio ligar o motor, nem tampouco colocar a chave no contato, para que o rdio funcionasse.
Como minha inteno no era ainda circular, mas escutar o que restava da partida e matar o tempo,
entrei no carro estacionado o sintonizei na rdio Rivadavia.
O frio da noite de junho teria justificado o uso do ar quente, mas com o motor desligado o ar no
chegava a esquentar, e eu no quis gastar gasolina inutilmente ou dar voltas pelas ruas da regio
sem necessidade, s para no passar um pouco de frio. Afinal, eu estava vestindo um pulver e,
alm do pulver, uma jaqueta robusta que no teria esquecido nas noites de guarda, noites inteiras
passadas nas intempries, durante o perodo de treinamento.
57
De qualquer forma, os vidros do carro fechado no demoraram e embaar. Resisti a passar um
dedo e escrever qualquer coisa sobre o vapor, que um hbito de infncia que nunca se perde
totalmente, e tambm esfregar com uma flanela o lado de dentro do pra-brisas para limpar a viso.
Atravs do vidro embaado, a rua era, mais ainda, uma mistura de sombras indiscernveis. Olhando
assim, de repente tinha-se a impresso de que uma sombra se movia, que passava com sigilo de
um lugar a outro; coisa impossvel, porque nessa rua, como nas outras, no havia ningum e tudo
estava quieto, e a aparncia de algum movimento se devia, sem dvida, minha sugesto, alentada
pela indefinio do vidro se esmerilhava com o choque do calor de dentro e o frio de fora.
XII
A marcao pessoal constitui, com certeza, um sistema defensivo de maior eficcia. Mas
tambm
supe
um reconhecimento de fato da periculosidade dos contrrios, o que afeta
negativamente a disposio anmica do grupo defensor. A marcao zonal, por outro lado, ainda que
oferea maiores brechas defensivas, baseia-se sobretudo no controle espacial do prprio terreno. A
defesa se afirma, assim, em um setor do campo que est sob seu domnio e que o contrrio tem,
ainda, que conquistar.
XIII
Sa do carro quando ainda faltavam uns dez minutos. Caminhei sem apuro e olhando para cima.
Olhava para cima porque seria uma espcie de clamor do cu o que faria saber que finalmente
tnhamos empatado.
58
XIV
Quando se enfrentam duas foras de poderio semelhante, so os artilheiros que desequilibram.
Ao existir uma que desnivele e vena, em caso de grande paridade, ser aquela cujo artilheiro se
encontre mais atento ou mais inspirado, ou melhor considerada pelasorte.
59
Zero um
I
Nas filas desiguais se desconcentrou a multido calada. Era uma longa procisso de cabisbaixos,
que no mostravam o choro porque o que muito homem no cede a esse gesto, mas que
tampouco falavam nem levantavam a vista. Ouvia-se somente o andar rasgado sobre o pavimento
ou sobre as lajotas das veredas, porque ningum tampouco levantava os ps, e ao arrast-los se
arrastavam os papis amassados, a sujeira geral dos dias de partida, os pedaos de qualquer coisa.
No havia semblante em que faltasse o pesar. No desfile contnuo dos rostos sem sossego, viase a tristeza multiplicar-se por mil. Eu ia vendo, tambm calado, como passavam incessamente os
desconsolados: tanta gente, tantos milhares e ningum tinha palavra alguma para dizer.

II
Eu no era mais que um soldado, um soldado conscrito, e ao cabo de um ano nem isso mais.
Mas conseguia, com tudo isso, perceber, me fixava nisso e reparei, que os que chegavam um pouco
mais longe e ganhavam um nome, mais cedo ou mais tarde geravam inveja e mal-estar. Isso
acontecia muitas vezes com o doutor Mesiano. Seus colegas eram os primeiros a olh-lo de lado,
por mais que persistissem na cordialidade de tratamento entre os pares. Por serem doutores e
oficiais, tinham
o por ele e cuidavam das formalidades. Mas o doutor Mesiano sabia mais e decidia mais que muitos
deles, e mais de um estaria esperando que algo acontecesse e ele casse em desgraa.
60
III
Iam mudos em sua desolao os milhares e milhares que passavam voltando. Iam pior que
mudos: iam murmurantes. Muitos tremiam de forma quase invisvel nas bocas, que no chegavam a
se abrir. Pareciam rezar, mas no rezavam, porque j tinham rezado antes de sair e no tinha
servido de nada. No rezavam porque eram todos, agora, uns incrdulos: no podiam, acreditar no
que havia ocorrido, ainda que, com seus prprios olhos acabavam de v-lo e ento sentiam que j
no acreditar em nada mais. Nas bocas, no entanto, permaneciam inteis agora, as formas da reza
passada e as repetiam como autmatos, sem um fim e sem um sentido definidos.
Tampouco o doutor Padilla, por ser duplamente um colega, teria de destratar o doutor Mesiano.
Usaria com ele, como faziam todos, as frmulas de respeito e o gesto amvel. Quando no s
encontravam, lhe mandava um abrao, e se o encontrava, dava pessoalmente. Evitaria perguntar
por sua senhora esposa, que nisso consistia, se do doutor Mesiano se tratava, a considerao
cordial. Tudo isto era assim, e assim seria. Mas se, por uma dessas coisas, chegava a acontecer
que algo se complicava no centro de Quilmes, e se tal complicao tivesse sua gravidade, o doutor
Padilla no deixaria de evidenciar a responsabilidade que o doutor Mesiano poderia caber; um
pouco para proteger-se e aliviar sua responsabilidade, e outro pouco para descarregar o rancor que
tivesse acumulado.
61
V
No eram eles os portadores da notcia porque, alguns mais, alguns menos, a notcia j era
conhecida de todos. O que no tinha visto as imagens pela televiso do que havia acontecido, j
teria se interado, como eu, pelas transmisses de rdio. Eles eram os digo, tinham visto tudo com
seus prprios olhos, eles eram as testemunhas diretas. Ao v-los sair abrumados, abatidos do
estdio, pensei que estranhamente tinham, ao mesmo tempo, a aparncia dos inocentes e a
aparncia dos que no so inocentes.
No podiam explicar, s pelo fato de estar a, como era que tinha passado o que ningum podia
supor que fosse passar. Em suas casas nessa mesma noite, ou em seus lugares de trabalho durante
os dias seguintes, lhes pediriam alguma explicao; mas eles no h teriam. Muito menos teriam
uma palavra de consolo para dar: agora caminhavam murchos pelo frio, em centenas, em milhares,
e no conseguiam animar uns aos outros,
S eram portadores da pena que sentiam: com ela nas costas nina cidade que, com a mesma
pena, os esperava.
VI
O doutor Mesiano sempre me dizia que para a histria era intil pensa-la a partir de meras
suposies: o que importava era o que efetivamente tinha passado e no o que poderia ter passado
ou o que deveria ter passado. Por essa razo, se negava a considerar, por exemplo, como teriam
sido as coisas se as invases inglesas tivessem sido rechaadas, ou se San Martin no tivesse
cedido a glria a Bolvar em Guayaquil, ou se Urquiza no tivesse vencido a Rosas em Caseros, ou
se Mitre no tivesse vencido a Urquiza em Pavn.

62
E, no entanto, contra tais convices, o doutor Mesiano agora dizia que, se no gol esta noite,
tivesse estado Gatti e no Fillol, o remate decisivo no teria chegado ao destino, porque Gatti jogava
devidamente adiantado e no debaixo dos trs paus, como Fillol.
VII
Era uma espcie de infinita marcha fnebre, um desses fenmenos excepcionais de tristeza geral;
s que esta marcha no tinha um ponto de chegada para onde se dirigir: se estendia por todas as
partes, se dispersava por todas as partes. Se aos que saam do estdio, depois de assistir ao que
tinha acontecido tivessem sido deixados livres para agir de acordo com sua prpria vontade, teriam
visto que no tinham vontade: teriam visto que perambulavam sem destino, dando voltas como se
d voltas a um problema que no tem soluo.
Mas aqui o aborrecimento se derramava como uma ordem porque para isso estavam as cercas
intransponveis e as motos de luzes brilhantes e os cavalos quietos mas intranqilos
assinalando os lugares por onde se podia passar e por onde no s podia passar. E assim, os que
viviam no oeste chegavam ao ponto do nibus quarenta e dois, os que viviam em Pacheco
chegavam ao do quinze, os que viviam em Boca chegavam ao do vinte e nove.
VIII
Sempre tive certeza que profisso devia ir unido, uma coisa com a outra, o orgulho profissional,
e que o orgulho profissional por sua vez, unido ao zelo profissional. Isso eu pensava e isso penso,
mesmo que no tenha ainda uma profisso (vou t-la estudo medicina), porque me parece evidente
que o orgulho profissional ajuda a que os deveres se cumpram com maior eficcia.
63
Claro que, quando no se atua exclusivamente a ttulo pessoal, digamos por exemplo em um
consultrio privado em que os pacientes particulares acodem, mas quando se forma parte de um
sistema conjunto, temos que entender que em uma mquina cada engrenagem funciona em relao
a outras engrenagens, e que nessa mquina , como em qualquer motor, h peas mais importantes
e peas menos importantes.
IX
O doutor Mesiano, muito dado a anlises de tticas e estratgias no afirmava de todo a idia de
que a erradicao, sem consulta mas impostergvel, da favela do Baixo Belgrano, pudesse ter
afetado o rendimento de Ren Houseman. Tampouco se decidia, de todas as formas, a abandonar
sua teoria da adaptao geogrfica, uma teoria segundo a qual um indivduo teria de alcanar um
rendimento maior se jogasse em seu lugar de origem; principalmente em se tratando da Alemanha,
por exemplo, onde tudo muito diferente. Em dvida, se inclinou a pensar que Houseman tinha
entrado muito tarde esta noite, e que no tinha tido tempo para desenvolver suas aptides com
plenitude.
X
Para que a desconcentrao fosse to rpida como ordenada, contava-se ademais com uma
srie de nibus escolares, nos quais oportunamente se tinham pendurado cartazes bem visveis,
anunciando Retiro, "Liniers" ou "Constitucin".
64
Os que por costume gritavam estes mesmo destinos, esta noite estavam calados, tomados pela
mesma dor que todos tnhamos. Esses nibus alaranjados, que apenas umas horas depois estariam
levando dezenas de crianas desoladas para as escolas da cidade, se enchiam agora com dezenas
de adultos igualmente desolados. Seus gestos austeros e ausentes, dispostos nesses nibus,
adquiriam um ar muito prprio da infncia.
XI
Habitualmente, os ltimos a depor o entusiasmo ou ai esperana, inclusive no meio dos maiores
infortnios, eram os vendedores de bandeiras argentinas. No h porque supor que se tratasse de

uma alegria fingida ou interessada, porque o que carrega uma bandeira argentina no alto no pode
estar fingindo ou calculando lucros. Nesta noite, no entanto, tudo tinha ficado dolorido para todos
que, na presena de tamanho aborrecimento tambm os vendedores de bandeiras argentinas se
calavam ficavam olhando de cabea baixa.
XII
Minha memria muito precisa, sobretudo quando se trata do nomes. Mas, ainda assim, o doutor
Mesiano me espantava com sua capacidade para recitar listas inteiras de personagens da histria,
especialmente da histria argentina, que tinham tido uma atuao destacada na poltica ou na
guerra, se que cabia fazer tal distino, sendo ainda muito jovens. Desse modo, demonstrava que
eram muitos os casos dos que, antes ainda de chegar a cumprir os vinte anos de idade, tinham
conseguido sobressair e render valiosos servios ao pas. " preciso contar com jovens, dizia
sempre o doutor Mesiano, e esta noite em particular, depois de repassar suas lista de exemplos
devidamente memorizados, conclua Foi um erro grave deixar de lado esse menino Maradona
65
De Bravo e de Bottaniz no dizia nada, nem sequer os mencionava, mas por outro lado insistia em
sido um grave erro ter preconceitos contra os mais jovens e, em conseqncia, afastar o menino
Maradona. E dizia assim: o menino Maradona", como se no ato de pronunciar um nome se
pudesse dar uma palmada de afeto.
XIII
O que a medicina, finalmente? Eu estudo medicina. A medicina uma cincia do corpo humano.
um saber sistematizado acerca do corpo humano que, s vezes, se aplica sobre a sobre o nvel
mdio do que se considera a normalidade, e outras vezes se aplica sobre seus limites, sobre os
nveis a que um corpo pode ser levado.
H um fato indiscutvel: se o doutor Padilla contasse com o conhecimento suficiente para
estabelecer com certeza um limite determinado, se sua competncia profissional tivesse permitido
indicar taxativamente uma pauta, fosse esta de dois meses, de seis meses ou de dois anos, ento
nem sequer teria sido necessrio recorrer ao doutor Mesiano. Mas tiveram que consultar o doutor
Mesiano, e com urgncia; e, por isso, agora, com tanta insistncia eu o procurava. Necessitavam
dele. E isso os obrigava a ter uma considerao diferente por ele. Era uma dessas pessoas que
sabia resolver problemas mdicos, em tempos que sobravam os problemas mdicos.
66
XIV
Os que diziam, e eu os ouvi, que todas as caras eram iguais nessa multido, os que diziam que
nessa multido uma cara era o mesmo que outra, julgavam distncia, sem se aproximar o
suficiente. Eu os tinha visto chegar, iludidos, e cada qual era feliz sua maneira. Agora era o
sofrimento que os igualava. Eram semelhantes na dor e na preocupao; desolados se pareciam
todos. Ao regressar pesarosos, se uniam em uma mesma forma de amargura. Mas essa amargura
ia alm deles, porque idntica, se apoderava de todos; ia alm deles, alm do bairro do Ba
Belgrano, alm da cidade e estava em todas as partes.
As caras se pareciam na peregrinao escura e desconcertada. Minha prpria cara ficava com
certeza igual. Apesar de tudo, quando j comeava a perder as esperanas, no setor indicado
consegui distinguir, quase por milagre, a cara severa do doutor Mesiano.
67
Duzentos e dois
I
Por estranho que parea, no se surpreendeu de me ver. Reagiu com aa naturalidade prpria de
quem tinha marcado um encontro, como se tivesse estado esperando o encontro. Vinha junto com
seu filho Srgio: tinha o brao sobre seu ombro, talvez para conforta-lo. Eu o conhecia, a essa
altura dos fatos, o suficiente para perceber que estava desfigurado. Sa para encontr-lo em uma
vereda da rua Udaondo, uns metros depois de Figueroa Alcorte. No fundo, se via a grande esfera
plstica envolta pelos braos de ferro. Me lembrei de que, no momento de instala-la, algum cabo

tinha se soltado de surpresa e a grande esfera inflada tinha voado com o vento em direo ao rio.
Tiveram que derruba-la a tiros. Para no manchar a imagem organizativa do pas, a informao do
episdio foi moderada. E depois foi preciso fabricar rapidamente uma nova esfera plstica, que era a
parte fundamental do smbolo. Agora, apesar da noite que avanava e da declinao das luzes do
estdio, essa esfera conservava um brilho estranho, uma espcie de luz leve no meio da opacidade
do cu.
II
As comodidades do quarto standard, que era o mais acessvel, incluam: a cama, com certeza;
decorao de espelhos e luzes combinadas; novo circuito fechado de televiso; ar condicionado;
trs canais de msica funcional; banheiro comum. Inclua o caf da manh: caf com leite e
medialunas, com suco de laranja opcional.
68
III
"Doutor", disse, "tive que vir busc-lo".
Sem me dar conta, tinha colocado uma mo em seu brao.
"Sim", ele me disse, "estou vendo".
IV
O doutor tinha ido de txi ao estdio. Tinha pegado no centro da cidade. Para poder chegar cedo,
mais que por preguia ou prepotncia, tinha se valido de sua credencial para ultrapassar as
barreiras colocadas pela polcia com o objetivo de organizar o acesso aos arredores. Agora, na
sada, o trnsito era livre, mas no era to fcil encontrar um txi: os poucos que passavam pela
avenida Libertador iam ocupados. No deixava de ser um golpe de sorte, ao menos neste sentido, o
fato de eu aparecer de improviso, com o Ford Falcon estacionado a apenas algumas quadras dali,
Mas o doutor Mesiano no pareceu apreciar esta circunstncia levou tudo com naturalidade ou
indiferena.
"Doutor", insisti, "trata-se de um caso de certa urgncia". No quis dizer de vida ou morte, porque
era uma frase feita, vazia sentido, uma estupidez. "Se no", acrescentei, "no teria atrevido a
importun-lo".
"Imagino", respondeu o doutor Mesiano. "Imagino".
69
VI
As comodidades do quarto especial incluam: a cama, claro; decorao de espelhos e luzes
combinadas; novo circuito fechado de televiso; ar condicionado; trs canais de msica funcional;
novo banheiro com ducha escocesa. Inclua um caf da manh especial: caf com leite, mistoquente e sucos de frutas.
VII
Puoco a pouco, as ruas voltavam a ficar vazias. Eu mostrei onde tinha deixado o carro. Me
ofereci a ir busc-lo sozinho e que eles esperassem para evitar o desgosto da caminhada, se que
caminhar ia causar desgosto numa noite como essa. Mas o doutor Mesiano tinha outros planos.
Falou para avanarmos uns passos pela rua Udaondo. Os rastros do grande encontro iam se
perdendo. Na mesma proporo reapareciam, antes invisveis, outras partes da cidade. Um
quarteiro mais escuro, no qual eu nunca tinha reparado das outras vezes que o tinha cruzado,
reunia ou confrontava, a cem metros de distncia, uma igreja e uma boate. Podamos pensar que,
nesse quarteiro, a cidade alentava o despudor ou a ironia. A igreja, claro, estava fechada; mas na
vereda se encontrava o padre, varrendo papis e passos, cigarros mal apagados e pedaos de
vidro, de maneira que a entrada ficasse reluzente para a missa da manh seguinte. Talvez os
pensamentos do padre estivessem fixos no sermo dessa missa, e o exerccio mecnico de levar e
trazer a vassoura o ajudava a escolher as palavras que empregaria. Algum podia imaginar que,
dada a situao, lembraria aos fiis do seu dever de nunca perder as esperanas, e juntaria os

punhos apertados diante de seus olhos tambm apertados para proclamar sua beno unidade de
todos os argentinos.
A boate, por outro lado, abria justamente nessa hora e conseguia seu modesto esplendor de
sbado noite, uma vez que o pblico imprprio terminava de se afastar.
70
Do lado de fora, mostrava uma tnue luminosidade violcea, e dentro se espessava com a fumaa e
o calor artificial.
VIII
"Doutor", disse, ficando a seu lado mas sem conseguir que parasse para me escutar. "Doutor",
disse, "esta tarde chegou uma consulta para o senhor e pediam uma resposta rpida". O doutor
Mesiano disse: "O problema de nosso pas a ignorncia". Sugeri sem nfase: "Para um mdico
no existem horrios". Concordou: "Disso no h dvida". E depois negou: "Mas, antes, preciso
salvar essa noite de merda".
O doutor Mesiano decidiu que os trs tomariam usque e decidiu que esse usque seria
importado. Esclareceu que era preciso salvar a noite e no se preocupar com gastos. Permitiu, isso
sim, que cada um decidisse se colocaria gelo ou no no usque. Ele preferiu colocar gelo. Eu preferi
no colocar. Tive n impresso de que Srgio no tinha preferncias ou ao menos as desconhecia.
Pediu seu usque sem gelo, provavelmente para imitar ou, em todo caso, para se diferenciar do pai.
X
"Doutor", disse, "trata-se de uma dessas situaes que podem se modificar de um momento para
o outro". Encolheu os ombros e disse: "Assim so todas as coisas na vida". Eu disse: " preciso
tomar uma deciso mdica e precisam da sua assessoria".
71
Ele disse: O problema de nosso pas a ignorncia. Eu disse: "No serei quem lhe explicar o que
o dever, porque o senhor que me ensinou isso". Ele disse: " verdade, no ser o senhor que
me explicar". Eu disse: "Mas quero esclarecer que eu no estaria aqui se no pensasse que o caso
tem seus mritos". Assentiu, mas disse: Antes preciso salvar esta noite de merda".
XI
As comodidades do quarto superespecial incluam: flamejante cama giratria; decorao de
espelhos mveis e luzes combinadas; novo o circuito fechado de televiso; ar condicionado; trs
canais de msicas funcional; novo banheiro com ducha escocesa e banheira de mrmore, com jatos
de gua e banhos de espuma. Inclua o caf da manh especial (caf com leite, misto-quente, sucos
de frutas) e, ao chegar, uma garrafa de champanhe, gelada como corresponde, para brindar.
XII
O doutor Mesiano meteu um dedo no copo e, girando-o lentamente, mexeu o gelo. Esse gesto lhe
recordou uma anedota de seus tempos de estudante. Estavam em uma classe, na faculdade; um
professor de sobrenome Berti fazia uma exposio perante uma espcie de auditrio circular, com
uma lousa velha nas suas costas e, na frente, o corpo de um morto estendido de boca para baixo,
sobre uma mesa. O professor Berti avisou os estudantes: Um bom mdico precisa ter duas
qualidades fundamentais: poder de resoluo e poder de observao. Dito isto exclamou:
Resoluo e introduziu um dedo no morto bem no buraco do cu. Com o dedo ainda dentro, levantou
a vista e contemplou a classe. Depois, extraiu o dedo, levantou-o e, depois de levanta-lo, enfiou-na
boca e o chupou com inesperado prazer.
72
Os estudantes se esforaram para no franzir a cara nem gemer de asco. Um corpo era uma coisa
igual s outras coisas. Terminada a breve operao, o professor Berti escolheu um dos estudantes
das primeiras fileiras: "Frenkel! Venha para a frente!". Frenkel desceu os degraus do auditrio
vacilando e se aproximou do estrado. O professor Berti ordenou: "Agora faa o mesmo que eu".
Houve um murmrio na classe e o professor pediu silncio Frenkel olhou para seus companheiros,
esperando uma ajuda impossvel ou tentado a abandonar tudo. Por fim se decidiu: aproximou-se do

corpo que estava sobre a mesa, arregaou as mangas e, alterado, meteu o dedo no eu do morto.
Por um instante, se deteve e pareceu pensar que deixar o dedo metido ai dentro no era a pior
alternativa, levando em conta o que vinha depois. Mas, na realidade, j no tinha escapatria e s
restava terminar o que tinha comeado com tanta dignidade quanto lhe restasse. Ento, tirou o
dedo do eu do morto, no quis olh-lo o, para no se arrepender, meteu-o logo na boca e deu uma
dessas chupadas profundas que s se do nos charutos puros. Quando concluiu, se sentiu
estranhamente satisfeito e na aula flutuava um raro ar no qual se misturavam a repulsa e a
admirao.
"Muito bem", disse o professor Berti. "O aluno Frenkel demonstrou um grande poder de
resoluo". Frenkel inclinou a cabea com modstia aparente. "Mas lhe faltou", acrescentou o
professor Berti, "poder de observao". E concluiu: "Eu metido este dedo. Mas chupei este outro".
73
XIII
"Doutor", eu disse, "de bom grado eu teria esperado at amanh, se no tivessem insistido que o
caso era urgente". O doutor Mesiano disse: "Hoje em dia, todos os casos tm urgncia". Eu disse:
"Me advertiram que, se eu no me apurasse, poderia ocorrer em desenlace. Me disse: "Eu no te
censurei, assim que pode ficar tranquilo. A nica coisa que exijo que cale a boca de uma vez por
todas". "Sim, doutor", eu disse. E ele disse: "Eu sei o que tenho que fazer.
XIV
Os quartos exclusivos tinham, cada um, uma decorao especial. Eram trs no total. A primeira
reproduzia um estdio de cinema: tinha focos como num set, cmeras de filmar e uma cadeira de
diretor. A segunda representava uma cena de caa, com muita vegetao artificial, peles de tigre e
de leopardo penduraras aqui e ali, e uma escopeta com mira telescpica (a escopeta era a falsa,
mas a mira no). A terceira era um ginsio: por todas as partes havia pesos e aparelhos de
ginstica. Alm disso, tinha uma bicicleta fixa e, ao lado, uma bolsa de areia, dessas que os
boxeadores usam para treinar.
XV
J venho". disse o doutor Mesiano. Levantou-se e foi at o balco. No balco vi-o pedir o telefone
e fazer uma ligao. Baixaram o volume da msica enquanto durou sua conversa, o que mostra o
respeito e a estima que tinham por ele nesse lugar.
Na mesa se fez silncio. Por no saber mant-lo, perguntei ao filho do doutor Mesiano: "Foi difcil
a partida? Ficamos longe do empate?. No sei", me disse ele, "no gosto de futebol e no entendo
nada
74
XVI
Entrava-se por uma rua e se saa pela do lado oposto. Contavam com um porto novo de
abertura eltrica. A nica entrada que tinha era para carros, porque no se esperava que
aparecessem clientes que no tivessem carro.
Os meninos do bairro tinham adquirido o mau costume de se esconder nas imediaes para
espiar os casais que chegavam ou saiam. O gerente do estabelecimento, chamado Oscar, se
encarregou de afast-los para sempre: saiu uma noite e fez que vissem que tinha um revlver na
cintura da cala e meninos do bairro no voltaram a aparecer.
XVII
O doutor Mesiano voltou mesa e com um gesto cmplice nosi mostrou: "A esto as garotas".
Tratava-se de trs mulheres idade mediana, nenhuma das quais eu teria chamado de garota. Nos
viram olh-las e sorriram. Uma s das trs me pareceu que no era de todo feia e no foi a que me
tocou a sorte.
Antes, foi necessrio convid-las para tomar uns drinks. As trs pediram Cointreau: elas
gostavam, notamos, de pronunciar esta palavra.
XVIII

O doutor Mesiano disse: "O problema de nosso ignorncia. Mas no a ignorncia dos ignorantes:
essa es clculos e funcional. O problema do nosso pas a ignorncia dos que estudaram e
supe-se que tinham que saber".
75
XIX
Fiquei com um quarto dos considerados standar. Mas, francamente, eu no tinha do que me
queixar, e aquela histria de cavalo dado uma verdade que eu nunca esqueo. O nmero do
quarto era duzentos e dois. Era um nmero capicua: isso me pareceu um sinal de bom augrio e, de
certo modo, foi.
76
Cinco
I
Ele no tem o aspecto de um marido, nem ela o de uma| esposa; mas ele o marido e ela a
esposa, e to-somente amigo de visita parece um amigo de visita. Pode ser que esse amigo de
visita tenha chegado cedo ou que o marido esteja atrasado; em todo caso, no isso o que importa.
preciso esperar e faz muito calor. Trata-se de uma dessas vezes quais, inclusive o mais distante
de repente termina estando muito perto. Devem sentir uma espcie de impulso, tampouco parece
ser um impulso o que os toma; a esposa e o amigo do marido, marido que ainda no chegou,
procedem excessiva soltura mas no chegam a ficar descontrolados, todo caso se entregam a uma
estranha fatalidade: que acontea que tem que acontecer. Com essa resignao, ou com o
automatismo de costume, ela est de repente sentada em cima dele. O amigo do marido quer
mostrar surpresa, no para esposa do amigo, mas em geral, porque o que se espera dele que a
situao o surpreenda. Mas o tdio ou a indolncia mais em seu semblante que a surpresa que diz
ter.
Tambm a chegada do marido, ainda que no seja uma chegada imprevista, se supe que os
surpreenda, e tanto mais se supe que o marido fique surpreso com o quadro em que encontra o
living de sua prpria casa.
-- Vejo que esto se divertindo - diz.
A traio dupla, mas a raiva no dura. De um modo argentino, o marido resolve que a culpa
da mulher.
-- Essa cadela vai ter o que merece - diz.
Sem perder certo ar ausente, acrescenta-se o marido i selando de tal forma uma amizade.
77
II
A que ficou comigo tinha na boca um tique muito notrio e, mesmo depois de um certo tempo,
no pude deixar de olhar sempre para essa parte na qual o lbio repetia uma toro sem motivo.
Depois, ela comeou a rir a cada momento, exagerando o riso tanto quanto os motivos dos quais
dizia rir; ao menos, com a viso das risadas, o tique desaparecia.
Como voc se chama?", eu disse. No tenho certeza de que, em um encontro casual em uma
rua da cidade, eu tivesse sido to informal, mas aqui no havia outra possibilidade. "Me chamo
Sheila, me disse. "No", lhe disse, "eu pergunto como voc se chama de verdade". "Me chamo
Sheila, de verdade", disse. "Eu pergunto seu nome autntico", insisti. "Me chamo Sheila", disse ela,
e no tenho nome autntico".
III
- a putona no vai esquecer a lio que lhe demos diz o marido.
Atrs, a mulher esfrega a mo, dolorida.
- Se alguma vez quiser esquecer - diz o amigo - o corpo vai se lembrar.
IV
No fluxo contnuo das ruas e das casas, ficava difcil pensar que se tratavam de cidades
diferentes. Avellaneda, Banfield, Quilmes, Lanas, Remdios de Escalada: passava-se de uma a
outra com quem se move dentro de uma mesma cidade, sem fronteiras ou separaes apreciveis.

Pareciam bairros de uma cidade, e no cidades em si.


78
Mas aquele que a pertence sabe, sabe que uma avenida determinada separa lugares bem
diferentes e que ter nascido da avenida para c no o mesmo que ter nascido da avenida para l,
ou que ter nascido da via para c no o mesmo que ter nascido da via para l.
O doutor Mesiano no era dessa regio, mas sabia. No precisava viver ou ter vivido em
nenhum desses lugares par evitar a simplificao de achar que todos eram um mesmo subrbio,
uma mesma periferia indeterminada. Suas razes eram sobretudo, de ordem administrativa: no lhe
importava distinguir cidades nem lhe importava distinguir bairros dentro de uma cidade; precisava,
isso sim, distinguir jurisdies, porque cada jurisdio definia uma competncia e, cada
competncia, responsabilidade.
Assim, as jurisdies colocavam ordem nos acontecimento! no havia fato algum que pudesse
ficar fora dessa ordem e dele obtinha seu significado.
V
Tudo nesse lugar era puro artificio, mas no o corpo acessvel da mulher nua. No o corpo nu
que se estendia para ficar disposio. Um corpo nu que se entregava sem reservas nem
reticncias. E, no entanto, desse corpo nu, dessa mulher nua, no era possvel obter uma verdade.
Podia-se fazer o que se quisesse com o corpo resignado, exceto arrancar-lhe algo que, s claras,
mostrasse que era uma expresso de autenticidade e no um ardil ou um fingimento.
VI
Com um simples olhar, era possvel apreciar uma mera sucesso de paisagens sempre iguais, mas
no fundo no assim.
7
Cada poro de subrbio tinha seus campos e seus descampados, seus prprios centros, seus
prprios buracos e seu lugar no mapa. No se tratava exatamente de um mapa como o que algum
podia dobrar e guardar no porta-luvas de um carro, mas de um mapa que algum como o doutor
Mesiano, que era bom de organizao, tinha sempre em sua cabea.
VII
Para sugerir que me distinguia com um tratamento especial, disse que eu poderia pedir o que
quisesse. Deu a entender que era um direito a que nem todos tinham acesso, porque explicou: "Por
ser voc. Ento, eu lhe disse que pedia s uma coisa: que no fingisse. Ela riu, me olhou de cima
abaixo e disse: "Com voc, no teria motivo. Eu queria acreditar e no conseguia.
VIII
Na minha ignorncia, s conseguia saber que Quilmes, alm de uma localidade no sul, era um
time de futebol de camiseta branca e preta, e uma cerveja que a maioria das pessoas gostava mais
do que a cerveja Bieckert. O doutor Mesiano, por outro lado, alm dessas coisas, sabia a histria.
Os quilmes eram uns ndios do norte do pas que tinham sido levados, a fora e a p, at esta regio
que era desabitada. O clima aqui reinante era muito desfavorvel para eles: o frio mido de seus
invernos era coisa que desconheciam. Tal mortificao se somou aos padecimentos do translado,
que tinham destrudo. Foi assim que pereceram, todos sem exceo. os ndios quilmes. Mas a
cidade agora levava o nome deles, para que no se perdesse de todo sua memria, e esse nome
passou da cidade para a cerveja e da cerveja para o time de futebol, de maneira que ningum podia
ter deixado de ouvir falar deles pelo menos uma vez na sua vida.
80
IX
Quisera eu entender que tudo ento era falso, que no havia nada que deixasse de ser. Mas
tampouco pareciam ser assim as coisas. Em todo caso, havia uma parte de verdade e uma parte de
falsidade no que acontecia, ainda que no fosse uma pequena parte de verdade e uma grande parte
de falsidade; e eu no conseguia estabelecer quais eram essas partes, quando comeava uma coisa

e quando acabava a outra. No importava quo ao meu alcance estivesse o corpo dessa mulher
imprecisa: sua verdade, se que tinha alguma, me escapava.
X
"As partes e o todo", dizia sempre o doutor Mesiano. O mapa separava e distinguia regies
diferentes, colocando nomes e bordas infalveis, mas tambm unia essas diferentes regies e as
colocava relacionadas. Da a importncia dos que, como o doutor Mesiano, tinham permisso para
se mover de um lado ao outro, e porque podiam se deslocar e fazer traslados.
O doutor Mesiano opinava que os traslados 2 constituam um aspecto fundamental no
funcionamento do sistema e essa era a lio que extraa da histria dos ndios quilmes, uma histria
que agora repassava porque era para Quilmes, justamente, que tnhamos que ir.
XI
um caminho que sobe e desce em suaves ondulaes, mas que, neste trecho pelo menos, no
apresenta nenhuma curva. Em suas bordas crescem arvoredos desiguais; desigual tambm a
81
sombra que oferecem e, pelo que se v, nenhum lugarejo a julgou bastante para erigir uma casa
margem da estrada. Ningum vives nesta regio e, em princpio, ningum transita por ela. At que,
em um momento determinado, ao longe, aparece uma silhueta. Temos que esperar um pouco para
entender a razo da velocidade em que que anda: lenta para um automvel, rpida para algum a
p. Trata-se de uma garota que vem de bicicleta. A julgar pela roupa que veste, seus anos no so
muitos, e somente uma certa falta de vontade que se adivinha em seu olhar desmente essa
impresso. Sem dvida, as descidas do terreno lhe concedem a oportunidade de acelerar sem
esforo, mas, em compensao, as subidas, que no so poucas, exigem muito e a deixam
esgotada. Por isso, ela est resmungando, acalorada. Sua maior dificuldade, no entanto, ainda est
por acontecer. Talvez um pedao de vidro, talvez uma pedra com ponta, talvez um prego que de
alguma maneira veio parar a, espeta em sua roda traseira. A garota pra desce da bicicleta. Maldiz
sem excessos seu azar e se pergunta em voz alta se algum aparecer para ajud-la neste caminho
to solitrio.
No termina a frase e se escuta ao longe o motor de um caminho . Est enganada ou teve
um golpe de sorte? verdade, foi um golpe de sorte: um caminho se aproxima. Ela faz sinais
inconfundveis e o caminho se detm ao lado da estrada. um caminho do exrcito e transporta
quatro soldados (cinco, se contarmos o que dirige e o que dirige deve ser contado). Com toda a
inocncia, quer dizer, com toda a inocncia de que capaz, a garota informa soluando o problema
que teve. Os cinco soldados olham para ela e depois olham entre si. Dizem que com muito prazer
vo ajuda-la a arrumar sua bicicleta. Vemos que eles tambm so jovens e esto bastante suados.
O problema, do ponto de vista deles, no muito grave.
82
De boa vontade vo lev-la at um posto que no est h mais de dez minutos e ali ser muito
simples consertar o furo.
- Claro que antes - diz um - podemos ficar aqui e nos divertir um pouco.
S a garota no entende, ou ao menos isso que parece, a evidente malcia que contm a
frase. De alguma maneira entendemos, sem precisar que ningum deixe explcito, que esses
soldados to jovens quo vigorosos no vem uma mulher h algum tempo. Por sua vez, espera-se
que acreditemos, por mais que algo de seu aspecto no fundo o desminta, que a garota da bicicleta
em sua curta vida ainda no tenha conhecido nenhum homem.
A um lado do caminho, passando por uma fileira de rvores retorcidas pelo vento, h uma
clareira. At essa clareira chega os seis personagens desta histria.
- Um piquenique na campina? Claro que divertido! a garota, ao que parece, no sabe o que
espera por ela. Em sua expresso h algo que resiste candidez, inclusive quando se mostra
inocente e enganada. Os soldados a rodeiam e a observam com lascvia. Ela adota o mesmo gesto
compungido que vimos no momento em que descobriu que a roda de sua bicicleta furado.

- Posso caminhar sozinha at o posto - diz. - Deixem-me ir.


XII
As estaes de trem so como marcos que representam cada lugar, cada cidade e, por sua vez,
so o foco irradiante, o ponto de origem, o inicio de cada cidade.
83
Mas, a partir do trem, no se sabe onde comeam ou terminam essas linhas de irradiao. E os
esquemas do doutor Mesiano no admitiam imprecises: os limites de cada rea, que eram, por sua
vez, os limites de cada
tinham que ser sumamente exatos, porque da autoridade e da responsabilidade podia-se dizer o
mesmo que outras vezes se costuma dizer da liberdade: que a de cada um termina onde comea a
do outro.
Talvez por isso mesmo no usvamos o trem: amos e vnhamos, pela rua Mitre ou por Pavn,
com nosso Ford Falcon; se havia carga podia-se usar as Pick-ups F100 que, numa propaganda,
tinham-se mostrado capazes de suportar a queda de um avio, ou eventualmente uns caminhes
formidveis da Mercedes Benz, que eu jamais tive ocasio de dirigir.
XIII
Me disse que nunca ningum a tinha feito gozar assim. Voc est mentindo pra mim", disse a ela.
Me jurou que estava dizendo a verdade, a pura verdade, jurou pela sade de sua me que o que
dizia era a verdade, a pura verdade. "Est mentindo pra mim, disse ela.
XIV
Dois soldados a seguram pelas mos e outros dois pelos ps. Ela luta um pouco, mas logo se
resigna por no ter como escapar. preciso ver com que facilidade a roupa se solta: uns poucos
tapas e ela j est nua. De certo modo, entendemos que esse corpo to prximo no teria de resistir
de verdade, se bem que a garota ainda est pedindo aos soldados que a deixem ir.
84
A cena acontece ao ar livre e o sol cai diretamente sobre os corpos nus. Do fundo, ouvem-se os
rudos do campo. A estrada ficou bastante longe desta cena, ou, pelo menos, no, nenhum sinal dela
chega at o local. Esto completamente sozinhos isolados, nesta poro do mundo agreste, os
soldados e a mulher
O procedimento , sem dvida, o mais bvio, mas tambm mais eficaz: enquanto quatro se
ocupam de segurar a garota pelas extremidades, o que sobra se atira sobre ela. Depois se produz
uma ligeira variao ou nem to ligeira: so trs os que a contm, confiantes de que dispor de uma
mo livre ou um p livre de nada lhe servir e so dois os que gozam ao mesmo tempo nela.
A cada tanto voltamos a ver, to em detalhe como vemos tudo, a cara da garota. Talvez ainda
esteja se queixando ou talvez no. H algo nela de inexpressivo que nos impede de saber com
certeza se em todo este assunto ela continua padecendo, ou se existe algo do sentimento inverso.
Com certeza no o que mais importa na histria.
XV
Ela tinha dito que eu, por ser eu, podia lhe pedir o que quisesse. Ento, eu pedi que fingisse. No
princpio, no entendeu. Amarrei-a cama com duas meias e duas fronhas. Amarrei-a de verdade:
no conseguia se mover. Pedi que fingisse que queria fugir. Pedi que fingisse o desgosto e o horror;
pedi que tentasse se libertar das ataduras de verdade, porque eu sabia que no iria conseguir se
soltar mesmo se quisesse.
Deu certo: quis e no conseguiu.
Gemia: "Voc me faz mal" e eu tive, devo confessar, minha melhor noite: a noite da cifra mtica.
Uma marca que nunca, at ento, tinha conseguido e no acho que vou voltar a conseguir.
85
XVI

um mistrio como, se rasgaram sua roupa, a garota agora aparece vestida outra vez como
estava ao princpio. Colocam-na na parte de trs do caminho. Viaja ali, supe-se que para o posto,
junto com sua bicicleta avariada.
- A roda vo consertar - reflete a garota -, mas estes tios me deixaram to furada que no vai ter
quem me conserte.
XVII
Enquanto gemeu, no pareceu nem persuasiva nem convincente, mas comecei inclusive a
acreditar quando no, meio de estranhos tremores, exclamava: "Est me matando, meu soldadinho,
est me matando, no v, meu soldadinho, que est me matando?
XVIII
Em nosso pas, dizia sempre o doutor Mesiano, "ganhou o partido unitrio, colocando Buenos
Aires como centro de tudo, e no importa que chamemos de repblica federal". Por isso, agora,
caminhando para o sul, dizia: "Quilmes Quilmes, mas em cima de Quilmes est La Plata e, em
cima de La Plata, est Buenos
Aires.
86
S/N
I
Na beira do cu comeavam a notar, confundidos ainda com a escurido do resto, os primeiros
indcios de que ia clarear. Pelo espelho retrovisor, com o ritmo dos intervalos das luzes da avenida,
vi outra vez o tique na boca da mulher que tinha ficado comigo: me pareceu que estava pior que
antes.
II
Pelo lado se entrava na garagem. Tive que esperar que abrissem um porto azul bastante
pesado. O porto corria por um trilho. Pensei que ia ranger, mas no rangeu.
III
Torcendo um pouco, sempre pelo espelho retrovisor, consegui ver o filho do doutor Mesiano, que
tambm viajava atrs. Olhava pela janela. No olhava nenhuma coisa em particular, mas olhava
bastante fixo. Tocava o vidro com os ns de uma mo apertada. Ia mordendo os lbios.
IV
O acesso principal ficava depois de uma curva, pela rua Allison Bell. Bell era, se no me engano,
o inventor do telefone. Pensei que Allison teria sido a sua mulher ou, em todo caso, sua filha.
Lembro-me que pensei: detrs de todo grande homem, h uma grande mulher. Mas, provavelmente,
no eram estas as razes que justificavam o nome da rua.
87
A porta do acesso principal, pela rua Allison Bell, no tinha nmero.
V
Jamais podemos esquecer de cuidar bem da linguagem", disse o doutor Mesiano. "E nesta
ocasio, o doutor Padilla no soube cuidar da linguagem na forma devida".
VI
Paramos na esquina da rua Republiquetas. O doutor Mesiano me pediu uma moeda para o
telefone pblico. Procurei nos bolsos, dei-lhe duas e ele desceu para fazer uma ligao. Esperamos
no carro sem que ningum falasse nada. Eu sentia os golpes suaves dos ns contra o vidro, era o
filho do doutor Mesiano. Na esquina tinha uma sorveteria que no abriria at setembro ou outubro.
Fazia muito frio nesta poca do ano e muito mais a esta hora da madrugada.
Era estranho ver aparecerem as pernas do doutor Mesiano, a cala escura e os sapatos
combinando, por debaixo dos exageros da cabine alaranjada.

VII
No primeiro andar havia uma cozinha e sobre a mesa da cozinha tinha um pacote aberto de
medialunas. claro que no nos convidaram; ainda que pressinta que, de todas formas, teramos
recusado.
88
VIII
Disse o doutor Mesiano: "Minha pobre irm procurou, procurou e procurou, precisa ver como
procurou e no teve jeito. No h especialista que no consultou, nem mtodo que no tentou e no
teve jeito".
amos sozinhos agora no carro, saindo de Buenos Aires. O doutor Mesiano disse: "E estas filhas
das putas bucetudas, por outro lado, que nem casadas so, tm crias como coelhos".
IX
E se, de repente, casse sobre a trincheira, em plena noite, um disparo de morteiro? Durante a noite,
tudo acontece de repente. E se o disparo ferisse um companheiro na trincheira? Assim so as coisas
arbitrrias: juntos dois soldados, um ao lado do outro; um fica ileso e o outro ferido. E se o disparo
pega em cheio nas perna por exemplo, e arranca pela raiz as partes que vo do joelho ao p? Assim
frgil o corpo humano: onde havia perna e p, ou a mo com seus dedos, onde havia um msculo,
um cotovelo, um ombro, de repente no h mais nada. E se, justo nesse momento a ordem era
recuar? Uma ordem jamais pode ser desacatada mas tampouco pode ser pensada, nem se duvida.
E se justo nesse momento a ordem era recuar e faltavam as pernas ao companheiro? Deix-lo na
trincheira entreg-lo nas mos do inimigo. E se o inimigo conhecia a forma de interrogar um
prisioneiro? Arrast-lo na retirada colocar em perigo a companhia em seu conjunto. E se, por andar
em passo lento, o grupo ficasse sob a linha de fogo? No se trata de uma fuga, trata-se de um recuo
estratgico, mas os recuos estratgicos tambm devem ser efetuados com a maior rapidez e bem
ordenados.
89
E se o companheiro de trincheira fosse, alm disso, um amigo muito querido? O longo tempo e a
inquietude promovem tais afetos. E se o pulso tremesse no momento exato de dar um tiro na nuca
do amigo muito querido? preciso ter sempre, como os cirurgies, o pulso bem firme.
No existe guerra sem crueldades ", dizia sempre o doutor Mesiano.
X
Uma das mulheres expressou, com a nfase do caso, que o filho do doutor Mesiano tinha sido
um verdadeiro tigre. Disse assim: Um verdadeiro tigre". Houve mais alguma efuso, alguma outra
exclamao . Mas o filho do doutor Mesiano olhava fixamente para fora, golpeando sem fora o vidro
com os ns e mordia os lbios como se fosse se machucar.
XI
No horizonte dos edifcios de Quilmes, inclusive do centro de Quilmes, este edifcio, sem ser alto
nem muito menos, podia chegar se destacar. No era alto nem tampouco era vistoso: apenas
contava com cinco andares e seu aspecto exterior ficava feio com a inspida impessoalidade que
prpria das dependncias estatais. Mas ainda assim, na paisagem modesta dos chalezinhos e dos
monoblocos, este edifcio podia chegar a chamar a ateno. No era isso, no entanto, o que ocorria.
XII
H dias que um homem no vai se esquecer em toda a sua vida, disse o doutor Mesiano.
90
Seu filho olhava e olhava todo o tempo para fora, como se s pudesse, com o olhar, golpear o vidro
da janela, como estava fazendo com a ponta dos dedos da mo.

XIII
Em outro tempo podia se considerar que um tanque era praticamente invulnervel. Mas depois
deixou de s-lo: se se acertava no alvo de forma adequada e no momento exato, um determinado
projtil podia chegar a virar um tanque, incendi-lo fazer um rombo, inutiliz-lo para sempre. Claro
que era esse progresso tecnolgico que tinha levado busca de novos mtodos defensivos. O mais
simples, mas tambm o mais prtico, consistia em tomar algum prisioneiro que pertencesse fora
inimiga, e amarr-lo de ps e mos na parte mais exposta do tanque, isto , em sua parte frontal. A
idia era que os agressores do tanque se sentissem inibidos de fazer fogo, j que, se bem existia
uma possibilidade eventual de ocasionar danos ao tanque, a morte do prisioneiro, nas mos de seus
prprios camaradas, por outro lado, era um fato indubitvel.
" preciso pensar que um prisioneiro j um morto", dizia doutor Mesiano, e dessa maneira se
evitava sucumbir extorso psicolgica que exerce o que se vale de um escudo humano. preciso
pensar que j est morto desde o momento em que caiu em poder do inimigo", dizia o doutor
Mesiano. Essa disposio era mais efetiva, tanto com os prisioneiros que se tomavam como os
prisioneiros que tomavam os outros. Assim pensar o que amarra um homem na parte dianteira de
um tanque para cruzar a linha de fogo.
91
E assim tem que pensar o que est apontando para esse objetivo, e sobre ele percebe um
homem que grita espantado sem poder se mover nem se proteger nem escapar: inclusive quando
consiga detectar o pnico em seus olhos, inclusive quando acredite reconhecer esse rosto distante e
lembrar sua maneira de fumar em uma noite de insnia no quartel, precisa apertar os dentes e
disparar, com a mesma indiferena com que se dispara em um cadver.
XIV
No mezanino estavam os escritrios. O trabalho de escritrio sempre o mais tedioso, o mais
mecnico, o mais repetitivo, o mais impessoal. At o som da datilografia dos que escrevem
mquina parece diferente. Sobre as mesas se empilham as planilhas de pontas dobradas e raro
que nas estantes deixem de se dobrar as grandes pastas de arquivo de cor indefinvel. Sempre h
algum que, para matizar, liga um pequeno rdio porttil e sintoniza alguma transmisso de tango,
mas essa rdio sempre tem interferncias e se mistura, convertida em rudo, com o rudo das
mquinas de escrever. As furadeiras de papel se usam para segurar coisas em cima das mesas;
nenhum cuidado suficiente para evitar que de alguma maneira escapem os pequenos crculos de
papel cortado de seu interior e acabem por se disseminar em cada canto e em cada junta.
Assim so aproximadamente, todos os escritrios, e assim eram, os escritrios neste lugar.
XV
As guerrilheiras ficam prenhas de propsito", disse o doutor Mesiano, porque pensam que, se
esto prenhas, no vamos mexer com elas". Baixou a janela e cuspiu com energia sobre o cho de
pedra: no tinha esse costume, mas as pessoas nem sempre atuam de acordo com seus costumes.
92
Estava chateado. Pareciam mais dignas as pobres putas do Vietn, que se infectavam de
propsito para depois contagiar os soldados inimigos. Nisso, ao menos, se apreciava alguma forma
de entrega, um sacrifcio, at mesmo, se se quiser, uma imolao. "Estas cretinas, por outro lado",
dizia o doutor Mesiano, "engravidam por pura covardia e nos obrigam a combater em condies
terrveis".
XVI
As trs mulheres se despediram com gestos excessivos e exclamados pedidos de reencontro.
Deixamos as trs na mesma boate da noite anterior. A notria efuso de seus adeuses ressaltou, por
contraste, a retrada secura do filho do doutor Mesiano: o deixamos pouco depois na porta de sua
casa e foi embora sem dizer adeus; sem se despedir ou quase sem se despedir, se que se tratou
de uma despedida o gesto esmaecido que fez levantando um pouco a mo, acho que na minha
direo.

XVII
Passando os escritrios, mas sempre no mezanino, estava tambm o depsito. No depsito
havia, entre outras coisas, dois televisores, um grande e um pequeno, cada um com sua antena (o
pequeno tinha um celofane amarelo grudado sobre a tela, para dar a sensao de cor s imagens);
um aparelho de rdio e fita-cassete (rdio AM/FM e ondas curtas); um aparelho de barba Philishave;
dois toca-discos estereofnicos; uma pilha de calas de homem e uma pilha de calas de mulher (a
maior parte, em uma e outra pilha, eram calas jeans); alguns tnis, no sei se todos com seu par
correspondente; algumas botas de couro ou de camura; um ventilador Yelmo (com motor); uma
lanterna a pilha e duas intensidades de luz.
93
Havia tambm uma srie de caixas papelo. Em uma caixa havia relgios; em outra havia um monte
de anis e pulseiras, correntinhas e medalhas; em outra da isqueiros e lapiseiras; em outra havia
culos (quase todos, ainda que no todos, culos de sol). Contra uma parede se sustentavam dois
pneus: um mais novo, aparentemente sem uso, e o outro j quase liso e sem desenhos,
desaconselhvel sobretudo em dias de chuva.
XVIII
As sifilticas voluntrias ao menos ofereciam suas vidas: cumpriam, a seu modo, o juramento
sagrado de dar a vida pela ptria. Ningum ignorava, e muito menos as putas, que depois de passar
pestes e cancros aos inimigos, elas mesmas teriam a mesma morte, o borrifo de cal e a fossa
comum. Mas faziam isso e morriam com a conscincia em paz pelo dever cumprido.
"Estas bucetudas, por outro lado", dizia o doutor Mesiano, ficam prenhas por qualquer babaca,
porque uma vez prenhas se sentem fortes, invulnerveis. Prenhas ou mes, acreditam ser o soldado
perfeito, fingem que ningum as pode tocar".
Claro que a arte da guerra consiste justamente nisso: em detectar a maior fora com que conta
o inimigo, para convert-la em sua maior debilidade.
94
XIX
No primeiro andar havia outra cozinha, um pouco mais ampla, um banheiro, uma sala de
refeies, um ptio, umas salas de trabalho. Nos ltimos andares estavam esses longos corredores
escuros, cada um com um guarda; de cada lado havia umas oito ou dez portas de metal, portas
cinzas e opacas, duplamente fechadas com chave e ferrolho, que, a no ser por uma nfima abertura
entalhada que servia para ver sem ser visto, teriam conseguido se parecer ao muro que as
conectava.
No terceiro andar havia tambm um ptio, quase idntico ao que tnhamos visto no primeiro.
Nesse ptio, que no dava em lugar nenhum, fumava impaciente o doutor Padilla.
XX
Que puta no sabe que seu corpo no realmente seu? Assim raciocinava o doutor Mesiano. Uma
puta entende que seu prprio corpo no lhe pertence ou, pelo menos, no lhe pertence de todo. O
doente terminal consegue, ainda que por um caminho diferente, chegar a essa mesma certeza. H
algo em seu corpo que j no tem nada a ver com ele. Por isso, estas pessoas se entregam to
docilmente, aos clientes em um caso e aos mdicos no outro: porque do seu corpo sem dar-se a si
mesmos. Assim raciocinava o doutor Mesiano e sustentava que, ao chegar a esse estado, as
pessoas adquiriam, paradoxalmente, um poder muito particular. De alguma maneira conseguiam
uma prodigiosa afinidade com o que acontece numa guerra. Porque em uma guerra os corpos
tampouco so de algum: so pura entrega, so puro dar-se a uma bandeira e a uma causa. Assim
raciocinava o doutor Mesiano: quando na guerra se age sobre um corpo, est se agindo sobre algo
que j no pertence a ningum. Da seu interesse pelas putas do Vietn, que tinham chegado a ser,
ao mesmo tempo, e maravilhosamente, prostitutas, doentes terminais, instrumentos de guerra.
95

Dois trezentos
I
Em uma das salas do primeiro andar, havia uma balana. No era uma das modernas, as que
marcam o peso com uma agulha em um visor. Tinha uma pea de metal que tinha de deslizar em
uma barra e que indicava o nmero correspondente quando a barra ficava em suspenso. claro que
o que essa balana perdia em modernidade, ganhava em preciso.
II
"Estava lhe esperando, doutor Mesiano, com bastante ansiedade, porque tenho aqui uma
garota beira da morte."
"De que beira est falando, doutor? Por favor, lhe peo: fale diretamente."
"Simples e direto, doutor: est detonada. E, na minha opinio, no resiste a nenhuma outra
pergunta. Inclusive, se no agirmos com rapidez, podemos perd-la."
"Que a percamos, est dizendo?"
"Que a percamos como fonte de informao, claro. A isso me refiro."
III
Para se pesar em uma destas balanas, preciso parar erguido, com os ps juntos, ficar
quieto e deixar que o mdico corra o peso pela barra at encontrar o ponto exato, que quando a
barra no toca a sustentao, nem em cima, nem embaixo.
96
IV
"Todos os mtodos falharam com essa garota. V-se que est muito preparada. Mas temos o
pequenino."
"O nen, sim. uma possibilidade."
"No me leve a mal, doutor Mesiano, mas francamente a sua demora esteve a ponto de
colocar em risco este recurso."
"Explique-se melhor, doutor. O que quer dizer."
"Com todo respeito, doutor Mesiano, no me leve a mal, mas estamos procurando o senhor
desde a
tarde de ontem... A garota agentou por milagre."
"Em primeiro lugar, doutor, eu no acredito em milagres. E, em segundo lugar, se me permite
dizer, mais grave que minha demora a sua ignorncia."
"Doutor Mesiano: no discutamos isto diante do soldado."
"O soldado, doutor, como o senhor bem diz, tem a minha inteira confiana."
Doutor Mesiano, peo-lhe: no discutamos isso diante do soldado.
V
Se se quer estabelecer o peso exato de uma pessoa, preciso mover o peso com grande
suavidade, sobretudo na parte final da medio. um movimento quase delicado dos dedos do
mdico, que deve ter, tambm para isso, um pulso calmo e firme.
VI
"Mais grave que minha demora sua ignorncia, doutor."
"A nossa uma profisso na qual nunca se deixa de aprender."
"Falo de ignorncia, doutor, no de aperfeioamento."
97
Ser melhor que o soldado se retire e conversemos sozinhos, o senhor e eu."
Sua ignorncia, doutor Padilla. De onde o senhor tirou a idia de que o que conta nisto a
idade? Que pensava? No amadurecimento afetivo? No desenvolvimento psicomotor? Aqui o que
conta a massa corporal, doutor. Veja como imprecisa a sua pergunta.
No discutamos isso diante do soldado, doutor, ainda que o senhor confie nele."

o peso que importa e no a idade. At um estudante de medicina saberia isso."


VII
A balana tem um limite mximo de capacidade: so cento e cinqenta quilos. Acima desse
limite, ela no s no marca, como pode chegar a destruir seu mecanismo.
VIII
Eu estou perfeitamente disposto a admitir meus erros, doutor Mesiano. Mas preferiria manter
uma conversa privada."
O seu , fundamentalmente, um erro conceitual. Ao pensar na idade, pensou no grau de
crescimento de uma pessoa. E no a idade da pessoa que conta, mas sua massa corporal, o peso
de seu corpo, para saber se se trata de um corpo resistente ou no."
Entendo meu erro, doutor Mesiano, e me desculpo; no se irrite comigo.
O que me irrita a inpcia."
Se o soldado se retira, vamos poder resolver esse assunto com maior tranqilidade."
98
IX
A balana tem tambm um limite mnimo de capacidade abaixo de cinco quilos, no pesa.
claro que aqui no h perigo algum de rupturas ou decomposies. Trata-se meramente de uma
questo de sensibilidade.
Acontece um pouco como esses sons que so demasiado leves ou que esto em uma
freqncia muito baixa: um cachorro pode perceb-los e um homem, no.
X
Ele ainda est retido aqui, justamente para resolver este assunto. O senhor pode v-lo
quando quiser.
"O senhor o viu." "Claro que eu o vi."
Fale como mdico. Qual a sua opinio?
"Eu acho que ele pequeninho
"Fale como um mdico, Padilla. O senhor o segurou, suponho
"Sim, segurei."
"E que peso calcula?"
Para mim, no chega aos trs quilos "
E que peso exato, que peso exato; doutor.; calcula que tenha? Fale como um mdico."
"Antes, que saia o soldado."
"Que peso exato o senhor calcula?"
"Eu diria: dois quilos e meio. Ou talvez menos."
"Seja preciso, doutor. No d voltas com as cifras. Fale como um mdico."
"Eu diria, deixe-me ver. Eu, diria: dois e trezentos
Nada mais? Que pena: muito pequeno.
99
"Claro, como o senhor diz. Mas eu no continuo esta conversa se o soldado no sair daqui."
XI
As balanas de maior capacidade de medida cumprem funes comerciais. So as que se
empregam para controlar os caminhes de carga. Podem ser encontradas nos portos, por exemplo,
ou ao lado de algumas estradas. Pesam em toneladas, no em quilogramas, o que serve para dar
uma idia do porte do que pesam.
XII
"A me seguramente no esteve recebendo uma alimentao muito adequada no ltimo
tempo, nem tampouco o pequeno."
"Dadas as circunstncias."
"Dadas as circunstncias, claro. Mas, s vezes, as crianas nascem mais robustas."
"s vezes, sim, nascem crianas mais robustas."
"No foi o caso."

"No foi o caso, no."


" uma pena."
"Pena tambm que no tenhamos tempo para esperar que a criana cresa."
Assim a coisa, doutor. O tempo algo que no temos como controlar.
XIII
As balanas que podem registrar os pesos mais leves e os matizes menores so as dos
joalheiros. So balanas to sensveis que um grama de mais ou um grama de menos representa
uma diferenas aprecivel.
100
Da mesma forma que no caso das balanas que registram grandes pesos, estas outras respondem
tambm a determinados requerimentos comerciais.
XIV
"Com a garota no vamos conseguir pressionar com dois tapas bem dados. Isso, doutor, eu
posso assegurar."
"Era necessrio pensar em uma interveno um pouco mais significativa."
"Eu diria que sim."
"Mas, enfim, doutor Padilla. Qualquer outra interveno demanda certa massa muscular, certa
tonicidade, certa constituio ssea, certa capacidade pulmonar, enfim, o que o senhor j sabe. E,
ao que parece, no contamos com isso."
"Eu sugiro que o soldado se retire e o senhor passe a efetuar seu prprio exame da questo."
"Como o senhor quiser, doutor. Como o senhor quiser. Mas, desde j, adianto que com dois
quilos e trezentos no temos nem para comear a conversa."
XV
que as balanas surgem originalmente com fins comerciais. Sobretudo quando as
transaes se faziam sobre a base do peso do ouro. Da vem a frase que diz: "Vale seu peso em
ouro". Aquelas balanas eram as que tinham dois pratinhos: em um se colocava uma quantidade de
ouro cujo peso se conhecia de antemo e no outro a mercadoria cujo peso se queria conhecer. Esse
tipo de balana a que aparece na imagem que simboliza a justia, porque o equilbrio a base de
seu funcionamento.
101
XVI
"E aqui vocs tm balana, doutor?"
"Temos uma, sim, doutor Mesiano, temos uma no primeiro andar, mas duvido que nos sirva,
porque no uma balana peditrica."
"Ah, que pena. Bom, no importa, damos um jeito. No h nada melhor, nestes casos, que
um bom olho clnico."
"Os aparelhos ajudam, sem dvida, mas nada substitui a mo do mdico, nem seus anos de
experincia."
" como o senhor diz."
XVII
S posteriormente a seu uso comercial que as balanas comearam a ser utilizadas com
propsitos mdicos. A partir de ento seu emprego no parou de ser difundido. Tanto que, hoje em
dia, as pessoas esto em condies de controlar pessoalmente seu prprio peso, j que em
qualquer farmcia que no seja muito precria, sempre h uma balana; talvez no muito perfeita
como instrumento de medio, mas suficiente para se ter uma idia mais ou menos aproximada do
prprio peso. O controle mdico, no entanto, continua sendo algo de que no se pode prescindir.
XVIII

"Que o soldado espere um pouco no corredor, enquanto o senhor e eu encontramos uma


soluo para o problema."
"O senhor se refere ao meu assistente. Est bem, se isso o deixa mais tranquilo. Ele estar
melhor no corredor do que aqui, com o frio que est fazendo."
102
Quarenta e oito
I
"Que aconteceu, cara? Te expulsaram?"
O guarda de azul vigiava o andar. Era evidente que estava entediado porque, no fundo, no
tinha muita coisa para fazer nessa manh. Estava sentado em um banquinho de madeira, olhando o
corredor reto para o qual davam todas as portas. Tinha que garantir que no acontecesse nada, e
no acontecia nada.
"No me expulsaram, no. Pediram que eu esperasse aqui."
O cara concordou. Coou um pouco a orelha ou atrs da orelha. Me perguntou se faltava
muito para terminar a colimva. Disse que faltava pouco mais da metade. Me perguntou se me
tratavam bem. Disse que sim. Me perguntou se eu sabia que a palavra colimva vinha de trs
palavras: corre, limpa, varre. Mesmo no tendo o costume de mentir, disse que no sabia. "Bom",
me disse, "agora sabe". Eu no disse nada e ele disse: "Todos os dias se aprende algo".
II
No extremo do corredor havia uma janela estreita e alta. Era cruzada por duas grades. O vidro
dessa janela estava quebrado. Pelo buraco, o vento entrava como uma corrente, e era mais ingrato
ainda e mais hostil que o ar gelado que flutuava no ptio, na intemprie.
III
Um resto de algo incomodava o guarda de azul na boca, entre os dentes. Disso se ocupava
com seus dedos muito grandes, muito toscos.
103
"Eu no sei que merda", murmurou. Chamaram-no de baixo. No disseram seu nome, disseram um
apelido e ele levantou a cabea de imediato. Respondeu levantando a voz. "Que foi?". O lugar tinha
uma acstica estranha, que tornava desnecessrio gritar, mas ele gritou. "Desce aqui um minuto",
responderam.
O guarda de azul se ergueu. "Cuide destes merdas", me disse. Depois riu, para que eu entendesse
que estava brincando. "No saia daqui." O teto era baixo, as paredes se apertavam e isso fazia com
que ele parecesse ainda mais corpulento. Foi sem pressa, levando o banquinho de madeira.
IV
Eu no tinha me dado conta de que o piso era de cimento: era enrugado e raspava, e estava
to frio que era como se estivesse sentado em cima de uma barra de gelo.
V
Entediado, andei pelo corredor at o extremo. Olhei pela parte quebrada do vidro da janela.
Queria saber o que se podia ver da. Olhei: no se via nada. Uma parede, rachada e com veios de
musgo. Na parte de baixo, duas mos de pintura branca conseguiam tampar umas velhas palavras
escritas em azul.
VI
Eu no tinha me dado conta de que ficava um espao entre o piso de cimento e a parte
inferior de cada porta. No tinha prestado ateno nisso e no tinha me dado conta.
104
VII
A noite em claro me trazia uma frouxido: bastante ardor nos olhos e um cansao que, sendo
geral, tendia a concentrar-se nos joelhos. Precisei sentar-me para descansar um pouco, porque

doam minhas pernas. E, ao sentar-me, precisei apoiar as costas, porque as costas tambm
comeavam a doer. Sentei-me sem ver onde me sentava e me apoiei sem ver onde me apoiava.
VIII
Conserva o frio no inverno e o calor no vero: tal a depreciada qualidade do cimento. Por
isso os lugares que tm paredes ou pisos com cimento vista no podem evitar a impresso que d
o precrio e o inspito.
IX
Nos cemitrios, ningum se sente sozinho, ainda que esteja. E aqui me passava o contrrio:
no meio do silncio e com a luz da manh recente, me sentia sozinho. No estava sozinho, mas me
sentia sozinho, acreditava estar sozinho e me deixei ficar um pouco sozinho. Por isso me
sobressaltei quando esses dedos se esticaram, por baixo, para me tocar.
X
O doutor Mesiano estava no outro andar, em um dos andares inferiores, conversando com o
doutor Padilla sobre assuntos mdicos. Acontece com freqncia que os especialistas se
entusiasmem com os temas de sua profisso, mas, ainda assim, me disse que no iriam demorar
muito mais tempo.
105
XI
Falava com voz muito baixa. No podia falar mais alto ou no queria, para no chamar a
ateno. Mas eu a escutava perfeitamente, como quando nos falam no ouvido, que escutamos com
nitidez ainda que apenas nos sussurrem cada palavra.
Era uma voz de mulher. Me disse: "Voc no um deles. Voc tem que me ajudar".
XII
O doutor Mesiano estaria ocupado agora, inspecionando essa balana que o doutor Padilla
tinha mencionado. Estaria vendo que no servia para esta ocasio, tal como tinha suposto.
XIII
No quis me mover, para no saber se com a ponta desses dedos me agarrava a roupa.
Me dizia: "No se deixe sujar, que voc no um deles". E me dizia: "Voc sabe onde
estamos, no? Voc vem de fora. Voc sabe onde estamos, no?"
Eu pensei que se me jogasse para frente talvez sentisse um puxo no pulver. E fiquei quieto.
Ela, enquanto isso, me dizia: "Eu te dou o nmero de um advogado e voc avisa onde
estamos. Nada mais. D o aviso e desligue. Nada mais. No vai acontecer nada com voc".
Um pulver de l se estica, cada fibra do tecido feito com l elstica e se estica, mas
chegado um ponto j no se estica mais, e ento se sente o puxo. Eu no quis sentir o puxo e
fiquei quieto.
Ela, atravs da porta, sem me ver, me dizia: "Voc no um deles".
106
XIV
Tambm o doutor Mesiano tinha passado a noite em claro: tambm ele estaria agora se
sentindo cansado e irritado, com um peso turvo na cabea e os joelhos fracos. Tambm ele teria a
mesma vontade de terminar com tudo o mais rpido possvel para poder sair da, para ir dormir de
uma vez e esquecer tudo.
XV
Sem esperar que eu dissesse nada, ela comeou a contar as coisas que estavam
acontecendo. Sempre com essa voz rouca que, sem se esforar, chegava com toda a clareza. A voz
rouca foi dizendo cada coisa que tinham feito com ela. Em um momento no quis escutar mais e
disse: "Cale a boca. Cale a boca". Mas no me mexi. No me mexi porque, se me mexesse, talvez
sentisse o puxo no pulver que ela agarrava. E no queria. Tampouco queria escut-la mais, mas
ela continuava falando. Eu no me mexi e ela continuou falando.

XVI
Por que demorava tanto o doutor Mesiano? Bastariam uns poucos minutos, no mximo, com sua
experincia e seu pulso, para pesar e decidir, para avaliar e descartar. Um par de minutos eram mais
do que suficientes, seguramente, para resolver e dar seu veredicto. E, no entanto, demorava,
passava o tempo e no vinha, no vinha mais.
107
XVII
A voz atravessava a porta como se a porta no existisse. Deste lado da porta estava eu. A voz
atravessava a porta para me contar as coisas que aconteciam. Eu lhe disse: "Cale a boca, filha da
puta, cale-se de uma vez". Mas ela continuou, com pressa e, apesar disso, detendo-se em detalhes.
Eu no deixei de dizer: "Estou falando para que se cale, filha da puta, cale-se de uma vez", porque
comeou com detalhes e os detalhes me enchiam. Mas continuou e continuou sem poupar os
detalhes. Eu escutava deste lado da porta, com a cabea apoiada no lugar onde ela estaria
apoiando a boca. "Feche a boca", disse eu, mas ela queria que eu escutasse cada coisa, que eu
soubesse de cada coisa e depois queria que avisasse. "Vou quebrar essa sua boca com um soco,
filha da puta", eu disse. Ela me dava os dados e pedia que eu dissesse para onde a tinham trazido.
"Para a buceta da sua me", lhe disse e ela voltou a pedir que eu avisasse o advogado, voltou a
pedir que os salvasse, voltou a dizer: "Voc no um deles".
Eu lhe disse: "E voc que merda acha que sabe de mim, filha da puta?"
XVIII
Sem ser um catlico extremamente praticante, o doutor Mesiano costumava assistir missa. Podia
faltar algum domingo ou outro, sem sentir que fosse perder o cu por isso; mas eram mais os dias
que ia, do que os que faltava. Se este domingo, pensei, se propunha a ir, no devia se demorar
muito mais: saindo, no mais tardar, em dez minutos, e pisando bastante no acelerador, podia chegar
na missa das onze.
108
XIX
"Em uns meses te largam", me disse. "Em uns meses voc est fora e volta a ser o de
sempre". Nenhum outro falou, se que havia algum outro perto, nenhum outro fez nenhum psiu,
nenhum assobiou e ela continuou dizendo: "No vai acontecer nada com voc". Queria que eu
avisasse em que lugar a mantinham. "Nada mais que isso, no necessrio que diga quem voc".
Eu lhe pedi que se calasse. Disse que estava farto de escut-la. Me pediu que salvasse o filho, que
ligasse de um telefone pblico para dizer onde os mantinham e que depois desligasse. "Voc est
morta, filha da puta", lhe dizia eu, e ela me dizia que avisasse sobre o filho. "Cale a boca de uma
vez", disse eu, "no fale mais, filha da puta, no v que j est morta". E ela pedia pelo filho e plos
companheiros.
XX
Deviam j estar se despedindo e, por um prurido de cordialidade, a despedida se alongava.
Tinham esgrimido algumas asperezas e agora estariam querendo atenu-las. Mas o doutor Mesiano
no teria seguramente outro propsito que o de dar por terminado o quanto antes o encontro, para
voltarmos de uma vez Capital.
XXI
Me deu o nmero de telefone de um advogado, me pediu que no o esquecesse. Lembro-me
ainda dos primeiros nmeros: quarenta e oito. Lembro-me porque nesse momento pensei nos
nmeros da loteria.
109
Me deu os nomes e o nmero, e disse: "Passe os dados e desligue". Me pediu que pensasse nas
coisas que estavam acontecendo. Ela me havia contado as coisas que estavam acontecendo. Com
luxo de detalhes: cada coisa que tinham feito com ela, que tinham dito, o que tinha escutado, o que

tinha sabido. Eu, a princpio, senti os dedos por debaixo da porta, ou me pareceu senti-los pelo
menos, e depois no quis saber se estava me agarrando ou no.
No lhe perguntei nem lhe pedi que falasse, mas ela falou, como se a porta no existisse. Eu
pedi que se calasse, exigi que se calasse, mas no se calou. Me pediu que a ajudasse. Eu lhe disse:
"No ajudo os extremistas".
XXII
Por fim escutei as vozes do doutor Mesiano e do doutor Padilla. Acabavam de sair,
seguramente, da sala ou do consultrio onde tinham conversado. Estariam se despedindo. O doutor
Mesiano estaria vindo me buscar para que fssemos da. Eu pensei que, quando o visse, ia poder
parar e me afastar da porta, ia poder arrumar o pulver esticado e ia poder lhe perguntar, com uma
voz firme, para onde iramos agora.
XXIII
"Eu no sei onde estamos", me disse, "mas voc sabe". Me perguntou que data era: que ms,
que dia. Me pediu que ajudasse o filho e os companheiros. Me disse: "Voc no um deles". Me
disse que eu podia ajud-los sem correr nenhum perigo. Me disse: "No v o que est
acontecendo". Me repetiu os nomes e o nmero que comeava com quarenta e oito. Me disse que
se o advogado soubesse, podia tentar fazer algo. Me disse que essa noite eu ia sonhar com as
coisas que ela tinha me contado.
110
"Isso o que voc pensa", lhe disse. "Isso o que voc pensa".
Por alguma razo que desconheo, eu tambm estava falando em voz baixa
111
Trezentos e noventa e oito
I
J se escutavam, sim, as vozes do doutor Mesiano e do doutor Padilla; mas no soavam
cordiais, nem se despediam com amabilidade. Discutiam e a discusso era forte. Saram da sala ou
do consultrio onde tinham conversado, onde tinham comeado a discutir, e agora no podiam
terminar totalmente com essa
discusso , nem se quisessem. Cruzavam-se as ltimas frases, frases soltas. Escutei que o doutor
Padilla dizia: "Primeiro est a lista", e escutei que o doutor Mesiano dizia: "Primeiro est minha
irm."
Brigavam no andar de baixo. O guarda de azul voltou a aparecer no andar em que eu me
encontrava. Trazia o mesmo banquinho de madeira de antes e um palito de dentes na boca.
"Mexa a bunda, rapaz", me disse, "que j esto puxando o carro.
II
Os que conhecem psicologia tm um termo para definir isso: a impresso que s vezes se
sente de que o que se est vivendo j se viveu antes. Eu tinha essa impresso naquela manh.
Mas que, de verdade, estava passando pelos mesmos lugares, umas horas depois.
III
"Para sua casa, doutor Mesiano?", perguntei.
No", me disse. "Ainda no".
112
IV

Os que conhecem cinema tambm tm uma expresso para esses momentos em que se
volta atrs na histria e se repassam algumas imagens do que ocorreu antes. A diferena que, no
geral, essas imagens aparecem em cmera lenta; e agora, por outro lado, passavam para mim um
pouco mais rpido que da primeira vez.
V
Em todo o trajeto, o doutor Mesiano pronunciou s uma frase. Essa frase era: "Vamos ver quem
pode mais". No disse outra coisa, mas repetiu a frase vrias vezes. E nem sequer quis ligar o rdio
do carro para escutar um pouco de msica.
VI
amos a mais de cem. Primeiro por Libertador e depois por Figueroa Alcorta. Chegamos at o final
da avenida, at o paredo do final. Quer dizer que passamos outra vez pelo estdio vazio, alheio ao
que havia acontecido na noite anterior. Viramos esquerda na rua Udaondo. Passamos outra vez
pelo Tiro Federal: apesar de ser domingo de manh, soavam disparos. Passamos outra vez pela
boate, que agora estava fechada e passamos pela igreja, bem quando os fiis saam da missa. O
doutor Mesiano se benzeu e eu tambm me benzi.
113
VII
"Para onde, doutor?", consultei.
Chegvamos rotatria na qual, exatamente dois anos depois, porque esse era o dia, colocariam
um monumento em homenagem fundao da cidade. Mas a cifra ainda no era redonda. No
lugar havia uma pracinha e, na pracinha, nada.
direita, me disse o doutor Mesiano. direita e em frente,
VIII
Passamos outra vez pelo lugar onde a noite tinha se tornado curta. Tambm esse lugar, com a luz
plena do dia, parecia agora muito alheio ao que tnhamos vivido. O domingo pela manh era o
momento mais tranqilo de toda a semana, depois do movimento da noite anterior, que era, ao
contrrio, de toda a semana o mais intenso.
IX
Ao chegar na porta da Escola 3 3, aconteceu algo anormal. O doutor Mesiano desceu do carro
e me obrigou a descer tambm, Deu a volta e se sentou no meu lugar. Era estranho v-lo no volante.
"Eu dirijo", me disse. "Entro sozinho." Estvamos parados diante do cartaz que proibia parar. "D
uma volta, caminhe um pouco", me disse o doutor. O sentinela j o tinha reconhecido. "E volte aqui
em uma hora".
Cruzou o porto em primeira e depois ps segunda; em minha opinio, um pouco rpido
demais.
114
X
verdade que algum sempre volta ao lugar do crime, ainda que seja dito em sentido figurado.
Nesse bairro no havia nenhum lugar para ir: um carapinho pobre com mais p que pasto, uma
boate parecida com a nossa e tambm fechada a esta hora, as vias do trem sem barreira, com
pedaos de coisas quebradas entre os matos na beirada. Andei um pouco por aqui e por ali,
enfastiado e sonolento. Terminei rondando esse lugar, por sua vez chamativo e discreto onde, como
disse, passamos uma noite que se fez curta.
O encarregado tinha sado para varrer a entrada de carros. H pouco, um apressado que
vinha em um Ford Fairlane tinha calculado mal o ngulo difcil da entrada e, por culpa da largura do
carro, que era muita para essas manobras, bateu com o farol na ponta de uma parede. Agora que o
trabalho tinha reduzido um pouco, o encarregado saa para varrer os cacos de vidro que faziam
barulho, ainda que sem fazer dano, quando outro carro passava.

XI
Passou o trem e eu senti. Durante a noite no tinha passado nenhum. Ou talvez tinha
passado algum, sem que eu me desse conta. A gente se mete nesse tipo de lugar e perde de vista
tudo aquilo que existe ao redor. Por isso, seus quartos no tm janela e, se as tm, nunca se abrem.
XII
O encarregado me viu e se lembrou de mim. Essa noite tinha visto a cara de dezenas, mesmo
sendo a discrio a grande virtude de seu ofcio, e por discrio aparentava nunca olhar e nunca ver.
De mim, se lembrou. O uniforme, sem dvida, ajudou sua memria.
"Ainda por aqui?", me disse. "No", lhe disse, "fui e voltei".
115
Comeamos a conversar. Eu disse: "O senhor aqui deve ver cada coisa. Ele disse: "V-se
algumas e ouve-se outras". Me contou uma piada. A histria tinha acontecido h mais ou menos um
ano, num dia da semana, no meio da tarde. Um homem que no tinha menos de sessenta anos
tinha entrado com uma garota
Que no passava dos dezesseis ou dezessete. O encarregado e algumas empregadas j tinha
aprendido a exercer a neutralidade: sua profisso o impedia de julgar ou sentir inveja. Mas este
casal,
ocasional
sem
dvida,
lhe chamou a ateno.
Transcorre, aproximadamente, uma meia hora. De repente, se escutam uns gritos
desesperados. a garota. Sai nua do quarto, corre pelo corredor, bate nas portas e pede ajuda. O
encarregado e algumas empregadas acodem com rapidez. Logo chegam, tambm, os dois rapazes
que cuidam dos carros no estacionamento. s vezes o homem quer e seu corpo no quer. Outras
vezes o homem quer e seu corpo no pode. A garota no pra de chorar, mas enquanto constatam
que seu acompanhante tinha ficado fatalmente seco na metade do assunto, ela vai colocando a
roupa e, entre soluos, puxa o carro. Os rapazes do um tempo para espia-la sem espalhafato.
Sempre h algum que diz: "Pelo menos morreu contente". E outro mais entendido acrescenta:
Como o sargento Cabral".4
O encarregado decide que no vale a pena molestar a polcia por to pouca coisa. Consulta por
telefone um dos donos do estabelecimento e anota suas instrues. Entre vrios, vestem o defunto.
Por sorte tinha ficado com as meias e isso significa menos trabalho. Quando terminam, levantam-no
e carregam at o carro. Sentam-no e acomodam as mos no volante. Empurram o carro, sem ligar o
motor.
116
A rua descida e os ajuda a dar o empurro final. O carro fica cruzado na metade da rua u condutor,
morto de um infarto enquanto dirigia, sozinho, direo a Libertador. S ento ligam para algum
parente, depoll de procurar o nmero na agenda que carregava o morto e do a m notcia.
"A chave", me disse o encarregado, "foi no dar tempo para que o corpo se esfriasse". Se
esfriasse demais, ficava duro. "Desta forma, por outro lado, foi como vestir um bbado, algum que
est dormindo e no desperta de jeito nenhum". O encarregado s apoiou na vassoura e passou
uma mo pelo cabelo com brilhantina. " o mesmo que vestir um cara que fica flcido e no quer
colaborar".
XIII
Com a conversa, o tempo foi passando mais rpido e assim chegou a hora que o doutor
Mesiano tinha me indicado. Voltei caminhando pela avenida Libertador, pela rua em frente grade o
s guaritas. Era a rua por onde batia o sol.
XIV
"Para sua casa, doutor Mesiano?", perguntei outra vez.
"No", me disse. "Ainda no".
XV

Qualquer um que tenha passado uma noite acordado, e difcil que algum no tenha
passado pelo menos uma alguma vez em sua vida, sabe o que acontece com o corpo: o corpo
declina, enfraquece, incha; at que, de repente, passado certo limite que alguns chamam de limite
do sono, recupera seu vigor e se restabelece, sem ter precisado de descanso algum.
117
De onde vem, ento, essa vitalidade renovada? As pessoas parecem tirar, como diz a frase, foras
de lugar nenhum. O corpo no como uma bateria, que se descarrega progressivamente at ficar
inutilizada. A resistncia do corpo humano tem outros mistrios.
O doutor Mesiano me ensinou que, em geral, os doentes terminais, que agonizam sem
esperana, experimentam de repente uma recuperao surpreendente: eles ficam outra vez
animados e entusiastas, alimentam algumas esperanas nos amigos e parentes que esto sofrendo
e, apesar disso, muito repentinamente, num instante apenas, morrem.
XVI
Encha o tanque, eu disse ao rapaz que trabalhava no posto. Tnhamos apenas um quarto e
tnhamos que voltar a Quilmes. O rapaz assobiava uma cano impreciosa enquanto corriam os
nmeros que indicavam litros e pesos. Se ofereceu para limpar o pra-brisas. Eu disse que no
precisava. Eu podia tolerar um pouco de terra diante da vista, mas no as marcas de um pano sujo e
mal passado. Na segunda ou na tera, mais tardar , de todas as formas eu precisaria levar o carro
para o lava-rpido.
XVII
Depois de ter sentido o peso das plpebras durante toda a manh, me encontrava outra vez
inteiro e bem-disposto. Quase como se tivesse dormido minhas oito horas de rigor durante essa
noite.
Tambm se via o doutor Mesiano agora com um semblante melhor e mais animado para conversar.
Enquanto repetamos a viagem para o sul, falou com entusiasmo de seus anos de estudante e
opinou que na atualidade estvamos vivendo crise de valores.
118
XVIII
A cor e o brilho de todas as coisas mudavam ao longo das horas do dia, com a variao da
luz do cu; a exceo regra era o riacho que mostrava o limite da Capital, que no mostrava nunca
uma cor ou um brilho determinados.
XIX
Desta vez no usamos o porto azul que havia depois da curva.
Paramos na frente da porta que dava para Allison Bell. O doutor Mesiano mandou que eu
ficasse no carro, que o esperasse a fora, "No demoro", disse.
Abriram a porta para ele quando o viram se aproximando.
XX
Depois de ter enchido o tanque e depois de ter chegado ao destino, a agulha marcava trs
quartos. Quer dizer que um quarto de tanque se usava para viajar da Capital a Quilmes, incluindo
nisto a travessia da Capital de ponta a ponta, porque tnhamos , sado do extremo norte e tivemos
que atravess-la at o extremo sul. Calculei que indo e vindo duas vezes da Capital a Quilmes e de
Quilmes Capital, como tnhamos feito hoje, se consumia uru pouco menos de um tanque cheio de
combustvel.
Tudo isto eu pensava s pela vontade de passar o tempo, porque o gasto de gasolina corria
por conta do oramento operativo da Brigada; no me afetava nem tampouco o doutor Mesiano,
porque estvamos cumprindo com nossas obrigaes.
110

XXI
Como previsto: no demorou. Tinham-se passado, como muito, dez minutos. Quando o vi
aparecer pela mesma porta, que voltava a se abrir e fechar.
J no era cedo, nem fazia tanto frio.
Quer ajuda, doutor?", lhe disse, vendo-o voltar carregado.
No precisa, me disse, "eu o acomodo aqui atrs".
Escutei-o abrir e fechar uma das portas traseiras, vi que dava a volta para sentar-se outra vez
do seu lado.
Agora, me disse, nem pense em brecar de repente.
XXII
Via-se um cu quase branco agora, mais ntidas estavam as bordas dos barcos destrudos, a
outra ponte mais clara, mais claro com o sol do meio-dia. Mas a gua suja, sempre quieta e
espessa, via-se igual.
As coisas que afundam a", disse o doutor Mesiano apontando no se encontram nunca
mais".
XXIII
Mantive a mo direita da rua, a velocidade to constante quanto moderada, tomando cuidado
em manter a distncia em relao aos carros adiante. Assim, no houve nenhum motivo para cs e
a viagem transcorreu sem sobressaltos.
XXIV
Dormi por fim bastante depois do meio-dia
120.
XXI
Sonhei com a puta do tique nervoso na boca. Sonhei que estava outra vez com ela e que ela
me dizia: Quantas vezes voc capaz de gozar sem tirar?. No sei, dizia eu, nunca tentei.
Tentemos, me dizia ela. E eu metia, metia e metia, sem tirar gozava duas, trs, quatro vezes
seguidas, metia, metia e chegava at sete, e ela todo o tempo me dizia: "Me mata, meu soldadinho
me mata". E eu metia.

XXV
O doutor Mesiano me autorizou a tirar a segunda de folga.
"Sua nica obrigao lavar o carro", disse.
Agradeci e nos despedimos at tera.
Despediu-se com esse afeto que ele sabia demonstrar sem deixar de colocar distncias: o afeto dos
homens, que nunca deve ser dito.
121
Trinta e seis ( eplogo)
Um dois
Agora sim, jogou Maradona, e ningum o chama mais de garoto. Jogou bastante mal. No
conseguiu se sobrepor marcao indefectvel de um zagueiro com o sobrenome, semrazo
nenhuma, de Gentile. Os italianos voltaram a ganhar da gente, outra vez por um gol de diferena.
II
Leio o jornal como de costume, comeando pelas pginas esportivas. Primeiro, as manchetes
da capa, onde raramente falta uma notcia de futebol, e depois as pginas sobre esportes. No
mundo do esporte sempre acontece algo. O mesmo ocorre com as pginas policiais, que no
padecem jamais de falta de acontecimentos, como se d em outras esferas. Por isso meus hbitos
de leitura consistem em comear pelas notcias de esporte, e depois passar para as notcias
policiais.
Hoje o jornal traz a informao de um achado macabro: um cara compra uma casa de campo
em Berisso e decide colocar uma piscina no fundo. inverno e vai sair mais barato fazer agora a
instalao. Dois pees da empresa se ocupam de cavar o necessrio para colocar a piscina e um
sistema de desaguamento. Um deles sente, de repente, que sua p se trava e toca algo que lhe
parece brando e duro ao mesmo tempo. Investiga e descobre que h um corpo enterrado. Avisa
imediatamente o outro peo e o peo avisa o supervisor e o supervisor avisa o cara que tinha
comprado a casa de campo e o cara que tinha comprado a casa de campo avisa a delegacia de
polcia.
124
o corpo de um homem jovem: uns vinte anos, at onde se pode calcular. O toque macabro do
episdio est no fato do que corpo no tem a cabea. A cabea foi seccionada e se supe que se
encontra enterrada em alguma outra parte, no necessariamente perto deste lugar. Alm disso, os
dedos do cadver foram queimados com algum cido custico. Dadas as circunstncias, a polcia
considera que ser sumamente difcil estabelecer uma identificao irrefutvel do falecido.
III
Volto s pginas de esportes. Noto que, com a escassa exceo de apenas dois integrantes,
a formao da Argentina se conservou idntica da vez anterior, como se os anos no tivessem
passado
IV
O jornal que eu leio tem uma manchete sbria. Os sensacionalistas, por outro lado, devem
falar de degola e talvez se permitam um duvidoso jogo de palavras sobre um jovem que perdeu a
cabea.
As outras notcias do dia se referem a duas tentativas de roubo: uma teve xito, mas a polcia
informou que os ladres esto cercados e que sua priso iminente; a outra foi frustrada pelas
foras da ordem, e o saldo de trs delinqentes mortos e um agente ferido levemente, que j est
se recuperando no Hospital Churruca.
125
V

Os jogadores argentinos declaram que no se do por vencidos e que no se daro por


vencidos at que os fatos se tornem irreversveis. Anunciam que a partida contra o Brasil, que
definitiva, ser uma disputa de vida ou morte.
VI
Acerca do caso do bando de arrombadores, que venho seguindo, hoje no apareceu
nenhuma novidade nas crnicas policiais. De todas as formas, como j foi capturado um dos
integrantes do bando, se assegura que iminente a queda de seus cmplices.
VII
No tenho costume de ler a pgina de piadas, que a ltima do jornal. No acho graa e isso
me deixa entediado.
VIII
As fotos escuras e cinzas mostram uma fileira de cabisbaixos. A imagem se torna
irremediavelmente sombria, apesar do claro da luz meridional da Catalunha.
IX
Depois folheio superficialmente o resto do dirio. Passo as pginas dando uma olhada nas
manchetes e nas fotografias, at encontrar algo que me chama a ateno. Ento, me detenho e leio
com um pouco mais de cuidado.
126
X
s vezes, no sempre, leio os horscopos. Leio horscopos e no somente o que corresponde ao
meu signo. claro que no acredito em astros nem em pressgios. Mas gosto de ver o imprevisvel
que pode chegar a ser a vida das pessoas.
XI
Hoje me chama a ateno um quadro que aparece em uma pgina mpar. Est bem em cima
de um aviso de medicamentos para emagrecer. Na realidade, esse aviso que chama a minha
ateno. E depois de ver o aviso, vejo o quadro com a notcia.
A notcia diz que o Ministrio do Interior publicou uma nova lista, irrefutavelmente checada e
confirmada, de cados em combate. Reviso a lista de maneira quase automtica, no para verificar
nada em particular, no como se fosse um professor que controla presentes e ausentes na aula de
um colgio, mas com um reflexo automtico que me faz deslizar a vista pela coluna dos nomes e
dos sobrenomes.
Naturalmente, nenhum desses nomes e sobrenomes significa algo para mim. At que, mais
ou menos na metade da lista, encontro o nome de Srgio Mesiano.

127
Cento e trinta e trs
I
De muitos, tinha-se a informao imediata. Se os outros (nunca um s) com certeza o tinham
visto cair, o dado era certo. O mesmo acontecia se depois, quando o fogo tinha se acalmado, os
mais serenos se ocupavam de revisar os bolsos e encontravam a identificao correspondente.
Desses j se sabia. E assim, pouco a pouco, com tanta prolixidade como se podia, iam se
confeccionando as listas.
II
Ainda estou estranho, porque da leitura de um jornal, por muito que possa chegar a nos afetar
ou perturbar com as coisas que passam no mundo, no se espera que nos envolva de maneira
pessoal. Quando uma notcia parece estar, de certo modo, dirigida a ns, a ns em especial, algo se
desacomoda na ordem das coisas.
III
Outras listas foram sendo completadas com as notificaes dos ingleses. Essas listas eram
encabeadas com a letra P, de prisioneiros . As outras levavam trs letras, ou uma sigla, CEC, que
significava cados em combate. s vezes era necessrio efetuar alguns ajustes. Algum aparecia,
por exemplo, em uma lista CEC. Mas depois chegava um informe de Londres e era necessrio riscar
e passar esse algum para a lista P. Isso quando se tratava de boas notcias: algum acreditou ver
o que, na realidade, no viu, ou a identificao de um foi parar, por alguma razo, no bolso do outro
e a confuso se esclarecia para o bem.
128
Outras vezes, no entanto, colocava-se algum em uma lista P.E depois uma brigada de
rastreamento o encontrava congelado em um poo inverossmil e esquecido, e era necessrio
pass-lo para uma lista CEC, riscando previamente seu nome da lista P.
IV
Me pergunto se o doutor Mesiano continuar vivendo onde vivia h quatro anos. bastante
tempo, quando se pensa. um tempo suficiente, digamos, para que algum se mude para outro
bairro ou v viver no interior do pas, ou envive e volte a se casar para comear uma nova vida.
claro que tambm possvel, e no menos razovel, que tudo tenha ficado exatamente igual
porque, em ltima instncia, para que as coisas permaneam no mudem, tambm indispensvel
que passe o tempo.
V
Muitos no aparecem em nenhuma das duas listas: nem nas listas encabeadas com a letra
P, nem nas listas encabeadas com a sigla CEC. Tampouco voltaram para casa, chorosos ou
aliviados, nervosos ou taciturnos, para estar outra vez com suas famlia. Simplesmente no se sabe
onde esto. Os seres queridos se permitem esta iluso: que possam estar perdidos em algum monte
distante, sem encontrar o caminho de regresso, sem saber o que que aconteceu, talvez muito
aturdidos para pensar em algo ou para dar um aviso. A passagem dos dias, no entanto, e o avano
dos rastreamentos exaustivos tornam cada vez mais inconsistentes as especulaes desse tipo.
129
VI

No perco nada, digo a mim mesmo, se vou e tento. No pior dos casos,
toco a campainha da casa e me encontro com outra pessoa. Ainda que, na
verdade, esse no seria o pior dos casos. Inclusive eu poderia perguntar a essas
pessoas se conhecem o endereo dos velhos donos. O pior dos casos seria outro:
que esse continue sendo o endereo do doutor Mesiano, mas que ele no queira
me receber. verdade que nunca entrei nessa casa, nem bati na porta. E
verdade que o doutor Mesiano est vivendo uma contigncia muito particular.
Ao mesmo tempo, no posso pensar que v acontecer outra coisa que ser
recebido pelo doutor Mesiano com um abrao firme e vigoroso, um abrao como o
que me deu a ltima vez que nos vimos, quando eu dava baixa e passei pela
unidade para retirar meus pertences.
VII
Tenta-se por todos os meios evitar qualquer erro na confeco das listas,
porque se sabe que cada impreciso vai levar a uma circunstncia ingrata. No
entanto, humanamente impossvel conseguir uma perfeio organizativa tal que
no chegue a ocorrer nunca a eventualidade de um equvoco. S Deus
Infalvel
130
IX
Um problema que se apresenta em certas ocasies que algum d um nome
que no o seu. Pede-se sua identificao: seu nome e o corpo a que pertence.
E, por alguma razo difcil de escrutinar, porque a mente humana muitas vezes
difcil de escrutinar, d um nome que no o seu.
Se o nome entregue fosse um invento momentneo, um nome qualquer, a
complicao seria somente relativa. A verdadeira dificuldade est em que, por
algum motivo, tendem a dar o nome de um companheiro que viram morrer e que
j consta nas listas CEC.
Confuses como esta provocam sensveis demora na confeco das listas e
promovem desacertos e retificaes impensveis.
X
O doutor Mesiano saber entender o motivo da minha visita eu saberei
entender se ele no quiser me receber. Mas estou convencido de que este ltimo
no vai acontecer. Entre as virtudes que ele aprecia est principalmente a
lealdade. E no nada mais que lealdade o que hoje me impulsiona a v-lo.
XI
O mais aconselhvel, para o que consegue controlar sua ansiedade,
entender que a situao em muitos casos ainda confusa e que convm esperar
as comunicaes oficiais. Por esta via s se entregam informaes inteiramente
checadas e ratificadas. So as listas anunciadas pelo Ministrio do Interior. Em
uma destas listas, certamente, hoje vi o nome de Srgio Mesiano.
132

Mil noceventos e oitenta e dois


I
A porta se abre s um pouco. meia altura vejo a corrente de segurana, que no
foi solta. Pelo vo consigo distinguir a cara retrada de uma garota que me
pergunta quem estou procurando. Digo que o doutor Mesiano, se que ele ainda
vive aqui. Me diz que sim, que vive aqui, mas que agora no est. Me pergunta da
parte de quem, e lhe digo meu nome. Me diz: "Espere um momentinho".
Fecha a porta. Me sento, sem ter outra coisa pra fazer, na frente da casa.
Convocar as recordaes to intil como afugent-las. Passa um momento. De
repente, ouo um psiu. a garota que me chama, abrindo um pouco a porta. Me
diz que doutor Mesiano se encontra em uma reunio familiar. Mas que ela ligou
para ele e avisou que eu estava aqui. E que o doutor Mesiano pediu que me desse
o endereo para que eu fosse v-lo.
Dito isto, a garota passa a mo pela fresta da porta, sem soltar a corrente
de segurana e me passa um papelzinho com endereo anotado. um papel
desses que tem uma tira adesiva no verso, de cores nunca discretas. A letra da
garota evidencia a esmerada laboriosidade dos que aprenderam a escrever depois
de velhos. Mas escreveu o endereo, que inclui ags e zs, sem cometer nenhum
erro de ortografia.
II
Ainda podem ser vistas muitas bandeiras argentinas penduradas nas
janelas e nas varandas das casas. Algumas so to grandes que passam de uma
varanda para a outra: os vizinhos devem ter feito um acordo.
133
As partidas na Espanha e a conflagrao no sul deram um duplo impulso na
necessidade das
Pessoas se expressarem assim. E tambm, por tradio, o aniversrio da morte
do criador da bandeira, que Manuel Belgrano. Mas j se passaram dez dias
desde o aniversrio dessa morte e muitas bandeiras ainda esto hasteadas.
Algumas pessoas aproveittam e as deixam em seu lugar at o Nove de Julho, que
o dia da independncia argentina. Haver outros que no querem tira-las e
outros que simplesmente se esqueceram.
III
Para ir a Vicente Lpez, pode-se tomar a avenida Cabildo, que depois se
converte na avenida Maip, ou pela avenida Libertador que, ao passar para a
provncia no muda seu nome e continua se chamando avenida Libertador. Tudo
depende de se o lugar a que se vai est mais perto do alto ou do baixo. A casa do
cunhado do doutor Mesiano est mais perto do baixo. Por isso, escolho ir por
Libertador. A viagem me desperta muitas lembranas boas, de quando o doutor
precisava da minha ajuda e eu a dava solicitadamente.
IV

Um grupo de vizinhos se junta na rua. Tiveram um contratempo indesejado: uma


bandeira argentina de modestas dimenses, que tremulava na varanda de um
edifcio do quarteiro, se soltou pelo vento e voou. Certamente no estava muito
bem presa ou as cordas tinham se afrouxado com o passar dos dias, e ningum
se preocupou em refora-la.
134
O certo que voou. Mais de uma pessoa a viu passar pelo ar: muito leve para cair
a pique, mas no to leve para continuar flutuando indefinidamente. Por fim,
perdeu altura e terminou por se enredar nos galhos de uma rvore. Agora, tentam
desenganch-la e baixa-la, mas no conseguem. Est enroscada nos galhos mais
altos. Trazem alguns paus bem compridos que encontram em suas casas, mas
no alcanam. No mximo a roam, mas no conseguem empurr-la. Um rapaz
do bairro se oferece para trepar. Talvez no chegue at o galho onde est a
bandeira, porque muito fino e o mais provvel que se parta. Mas pode trepar
um ponto intermedirio. Se ali lhe passam um pau longo, um desses que
sustentam um espanador e que se usa para limpar os tetos das casas antigas,
poder empurr-la e solt-la. O menino tem, quando muito, dez anos, mas est
muito decidido. sua me que, mais decidida ainda, o probe de trepar. Diz que o
nico que falta que caia e quebre um osso e tenham que sair correndo para o
hospital. O menino acha exagerado o argumento da me. Discutem e, enquanto
discutem, voa uma pedra. Depois outra e depois outra. outro menino que atira
as pedras, um pouco maior do que o que queria trepar na rvore. Atira pedras
para cima confia em sua pontaria, diz que vai acertar em cheio na bandeira e ela
vai cair. A me o repreende. Vejo que se trata da mesma mulher que antes brigou
com o menino que queria trepar na rvore: so irmos. O menino diz: "Duas
pedrinhas e eu derrubo ela". A me o agarra por um brao: "No se atiram pedras
na bandeira". O menino diz que no tem outra maneira de resgata-la, que se no
fazem como ele diz, no vo poder tir-la da. "No importa", diz a me. "No se
atiram pedras na bandeira".
135
V
Toco a campainha.
O doutor sabe que venho v-lo. A menina que limpa a sua casa lhe avisou.
Saiu para me receber. No passou tanto tempo para se pensar em grandes
mudanas: no est mais velho, nem mais grisalho, nem mais acabado, nem mais
calvo. E, no entanto, de certo modo, me surpreendo por encontr-lo to igual, um
forte abrao. Um abrao firme, desses que duram.
Sem me soltar, o o doutor me diz: "No se deve chorar. Para os heris no
se chora".
136
Seis
I
O cunhado do doutor Mesiano, que se chama Alberto, se ocupa do
churrasco. Enquanto organiza na grelha os coraes e as costelas, explica qual

sua tcnica para conseguir um fogo homogneo, sem usar muito carvo. O
cunhado o doutor Mesiano limpa as mos com um pano mido. Fuma Parisiennes
Numa borda do muro torto, pende um cigarro aceso. Pouco a pouco, vai se
convertendo em cinza e essa cinza tem a mesma cor da que se junta por baixo da
carne.
II
A grama do jardim fica amarela, por culpa do inverno. A geada da
madrugada a endurece e a resseca. "Enquanto no morrer e ficar a terra vista,
no tem problema", opina o doutor Mesiano. Diz que, se morre, preciso plantar
novamente. Se somente fica seca, por outro lado, preciso esperar at a
primavera e, sem precisar de mais nada, ela vai voltar a estar em condies.
III
A irm do doutor Mesiano, que se chama ngela, se ocupa do vermute.
cuidadosa, quase delicada: corta com primor as rodelas de limo, faz um corte
nelas, coloca-as nos copos de Cinzano. Traz uma bandeja com pratinhos de
queijo, presunto em cubos, amendoim, azeitonas. "Que sorte que no faz frio", me
diz ao se aproximar. "Sim", lhe digo, "que sorte que tem sol".
137
IV
Perto da parede, cresce uma seringueira. Suas folhas so grandes e
grossas; algumas caram e se amontoam perto do p. A rvore se estende at
passar, com seus galhos maiores, o limite da parede. O vizinho no se queixa?",
pergunta o doutor Mesiano. Sim, responde o cunhado."s vezes se queixa".
V
A irm do doutor Mesiano prepara um prato separado. Pe um pouco de
cada coisa, at ench-lo. Me olha e diz em voz baixa: " para minha cunhada.
Encolhe os ombros. A esposa do doutor Mesiano, que se chama Lidia, ficou dentro
da casa. No importa que o ar do meio-dia esteja quente, quase morno, como se
fosse primavera. Ela no quis sair no jardim ou no quiseram que sasse. A irm
do doutor Mesiano vai levar algo para ela comer. Melhor isto que a carne, me diz
voz baixa, "que preciso cortar em pedacinhos para ela".
VI
Na parede de trs do jardim, h espao suficiente para colocar uma piscina.
"Uma piscina pequena, apenas para que o menino possa brincar , sugere o
doutor Mesiano. Diz seu cunhado que, se por isso, podem uma piscina de lona e
pronto. "Uma piscina descente, insiste o doutor Mesiano, "no deve ser muito
cara.
O cunhado do doutor Mesiano se dedica ao negcio de importao. Tem
que viajar muito e passa um bom tempo fora de sua casa, mas vai indo muito
bem.
138

VII
A irm do doutor Mesiano volta trazendo um pouco de gelo. "Se algum
quiser", diz, e deixa a forma de vidro sobre a mesa. Ao lado, deixa a pina de
metal.
O doutor Mesiano calcula que, o mais tardar, em quinze minutos vai estar
pronto o churrasco. ngela, sua irm, se aproxima e me diz em voz baixa: No
vero, temos sol durante toda a tarde". Mostra um lado e acrescenta: "Eu tomo sol
nua, nessa parte que voc pode ver a".
VIII
O principal do terreno o declive. a terra tem, nestes casos, uma
capacidade de absoro limada. Se chove com alguma constncia, terminam por
formar poas; a menos que a gua corra graas ao declive do terreno, depois
entre em alguma canaleta e por fim escorra em um ralo de boas dimenses.
importante manter limpo esse ralo quando as folhas que possam cair e tamp-lo.
IX
"O que o menino est fazendo?", pergunta Alberto. Alberto o nome do
cunhado do doutor Mesiano, Sua mulher, que se chama ngela, responde: "Que
pode fazer? Est vendo televiso". "Chama ele", diz o marido. Mas ela, que j est
sentada na cadeira e tem um copo na mo, no quer voltar a se levantar para
entrar na casa. Do jardim, e sem se mover, levanta a voz. "Antonio!", chama.
Espera um pouco e chama novamente, desta vez quase com um grito: "Antnio!"
139
Um menino de cabelo castanho, que se chama Guillermo, aparece e pergunta o
que est acontecendo. Acontece que vamos comer agora", diz a irm do doutor
Mesiano. Desliga essa televiso de uma vez e venha para c". O menino diz:
Mas a tia est l". A mulher insiste: "Desliga essa televiso de uma vez e venha
para c".
O doutor Mesiano comenta que, segundo algumas estatsticas, a mdia de
horas que uma criana passa por dia na frente do televisor subiu de quatro para
seis horas dirias. "Tudo por culpa da televiso colorida", sugiro eu. "Exatamente",
diz o doutor Mesiano. Assim anda o mundo".
140
Quatro
Quando perguntam ao menino, a quem chamam Antonio, quantos anos
tem, ele dobra com fora o polegar para dentro e mostra com orgulho, com a mo
no alto, os outros quatro dedos estendidos.
O doutor Mesiano acrescenta: "Recm-cumpridos",
II
Acho que no exagero se digo que, segundo minha impresso, para o
doutor Mesiano, reconfortante saber que estudo medicina. No direi que o
emociona, para no ser injusto com seu semblante sempre sbrio, mas claro
que o reconforta. uma maneira de confirmar que aquele, sentimento de

afinidade que existia em outro tempo continua existindo e que, portanto, no era
ilusrio nem meramente circunstancial.
III
Tampouco este menino tem pacincia para ficar quieto na mesa, para
comer at terminar tudo ou para esperar sentado at que terminem os demais.
Nisso igual a todas as outras crianas de sua idade. Fica cansado dos mais
velhos e logo quer ir brincar. No deixam e ento fica bravo.
IV
Alguns velhos mdicos, que so quase celebridades, foram professores do
doutor Mesiano h muito tempo e agora so meus professores.
141
Naturalmente, as comparaes e anedotas no demoram a luminar a conversa.
Por um momento, pode parecer que falamos , o doutor Mesiano e eu, com a
cumplicidade festiva do que so companheiros e, no sendo, como somos, ele
um profissional de tragetria e eu apenas um estudante que ignora muito mais do
que sabe. O ar familiar do encontro e a satisfao de voltar a nos ver depois de
vrios anos explicam sem dvida o tom de camaradagem, excessivo para mim.
V
Antonio, dizem para ele, "fica quieto". "Antnio", dizem para ele. O menino tem
que se ajoelhar na cadeira para ficar na altura da mesa. Se fica sentado, quase
no se consegue v-lo. De repente, d um salto (os ps, obviamente, no chegam
ao cho) e desce da cadeira. O cunhado do doutor Mesiano d uma bronca e
pergunta para onde ele vai. O menino diz que no tem mais fome e que quer ir
brincar. O cunhado do doutor Mesiano, de m vontade, acaba permitindo. Sua
mulher diz para ele no transpirar. O menino sai correndo. "Voc escutou sua
me", diz o cunhado do doutor Mesiano, apontando para sua esposa. Sua esposa
ngela. ngela olha para mim e pisca um olho.
VI
O velho Ford Falcon ainda continuava andando. "Esse carro de ferro",
digo eu. Sim", diz o doutor Mesiano, nunca quebra, nunca pra. Nenhum dos
novos aguenta o mesmo que o Falcon. Mas o doutor Mesiano diz que ningum
voltou a dirigi-lo como eu dirigia. Lembramo-nos dos primeiros tempos, quando
me custava encontrar, na primeira tentativa, a marcha. Apesar da situao
imperante, nos permitimos algumas risadas.
142
VII
O menino brinca com uma bola azul e branca. Ele a levanta com as duas
mos e depois a joga no cho. Volta a levanta-la e volta a jog-la uma e outra vez,
sem se cansar. O cunhado do doutor Mesiano quer que o menino jogue com os
ps, no com as mos. "Com os ps, Antonio. Com as mos jogam as meninas
VIII

Tomamos um caf e comea a esfriar. Peo permisso para ir ao banheiro


um minuto. H um banheiro no trreo: bem atrs de uma escada, esquerda das
poltronas. assim que entro na casa. Ao entrar, me encontro com a esposa do
doutor Mesiano. Ela no me v. Est sentada em uma cadeira de rodas, os braos
pendurados, uma mo apertando um leno. Olha para uma televiso desligada,
como se estivesse ligada. Balana-se para frente e para trs, como se estivesse
rezando. Est dizendo algo ou cantando em voz muito baixa, muito baixa. Mas
no possvel entender o que diz. Por um momento, sinto medo de que possa se
virar e olhar para mim. Tenho medo do que possa ser o seu olhar. Mas no se vira,
nem olha para mim. Continua balanando e continua com o devaneio de sua
cano incompreensvel.
143
IX
H veneno para formigas na borda de um canteiro. um p amarelo, de
aparncia inocente. Quando a bola rebate e roda e vai parar nessa regio, a irm
do doutor Mesiano intervm para que o menino no se aproxime. Levanta a bola e
v se ela no tocou o p amarelo do canteiro. Depois de comprovar que no h
nenhum p, devolve a bola ao menino e fala para ele chutar como chutava
Kempes contra os holandeses: forte e para o gol.
X
O doutor Mesiano diz que, para ele, j est tudo perdido. Seu cunhado diz
que, de todas as formas, convm no se adiantar aos fatos: preciso esperar e
ver o que acontece. "Pode ser", diz o doutor Mesiano. Mas acrescenta que, em
sua opinio, j no h nada a fazer e conveniente ir se acostumando idia de
que tudo est perdido.
144
Seiscentos e trinta
I
Na rdio usam a palavra milagre. Os analistas coincidem em julgar o Brasil como
o candidato por excelncia para ganhar o campeonato. Consideram, portanto, que
as chances de que a Argentina possa derrot-lo na prxima partida so muito
poucas para no dizer nulas.
II
So quase quatro da tarde quando anuncio que vou embora.
O sol do inverno declina e j no hora de estar ao ar livre. Eles
seguramente deixaro o jardim logo e passaro a uma situao de maior
intimidade, de que sinto que no participar.
Insistem em que fique, o que me reconforta. Digo-lhes que tenho que ir:
que s seis um amigo me espera em um bar do centro e que antes tenho que
passar em casa. Dizem que esperam voltar a me ver logo, em circunstncias
menos ingratas que estas de hoje.
III

Na rdio fazem uma retrospectiva e lembram que a terceira vez


consecutiva que no conseguimos vencer a Itlia: primeiro empate na Alemanha,
depois derrota na Argentina, agora derrota na Espanha. No se explica porque a
Argentina, tendo melhores homens e melhor jogo, no consiga ganhar.
145
IV
"Antonio, chamam o menino. Dizem que se aproxime para dizer tchau para mim.
evidente que o menino no quer se aproximar nem quer me dizer tchau. Continua
brincando com sua bola azul e branca, e faz de conta que no escuta nada do que
est seno dito. "Antonio", chamam, "Antonio". O menino no quer vir. Continua
brincando com sua bola azul e branca: levanta e joga e volta a levantar, como se
no estivessem chamando por ele.
V
Na rdio falam os analistas. Opinam que o importante , inclusive perdendo, ser
fiel a uma histria e a uma tradio de jogo. Que o estilo argentino o que
importa, muito mais do que as derrotas contingentes.
VI
O doutor Mesiano me agradece por ter vindo v-lo. Diz que a dor passageira e
que o orgulho perdura, e que minha visita o ajudou a encontrar essa verdade.
Pede que no deixemos passar outra vez tempo sem nos reunir. Prometo-lhe que
vou visit-lo de novo logo. Dou um abrao nele. Digo-lhe que tambm
reconfortante para mim v-lo, porque na vida so poucas as oportunidades que
temos de nos encontrar com algum que sabe o que quer e sabe aonde vai.
O doutor Mesiano me diz que agora se avizinham tempos difceis. Digo que
conte comigo para tudo. Nos damos outro abrao. Sinto esse abrao ainda nos
ombros, quando vou embora.
146
VII
Na rdio comentam que a Itlia tem um jogo mesquinho e opaco, com o
qual no poder chegar muito longe no campeonato. Ns, argentinos, temos que
saber que merecamos outra sorte e que s uma confabulao inopinada de fatos
adversos pde nos surpreender com esta nova frustrao.
a irm do doutor Mesiano quem me acompanha at a porta. Me conta
que o marido viaja muito. E me conta que, apesar de o menino parecer ainda um
pouco rebelde, vai melhorando sua conduta dia a dia desde que comeou a
passar as tardes no Jardim de Infncia.
Na porta de sua casa me diz: "Volte quando quiser".
IX
Subo no carro e ligo o rdio. No sei por que est em uma estao de msica
clssica. Mudo o dial e procuro Rivadavio. Suponho que estaro se ocupando de
tudo que aconteceu ontem e no me equivoco. Agora fala um jornalista que est
na Espanha. Diz que na atmosfera da concentrao argentina possvel notar

preocupao, mas no desesperana. Diz que ningum quer se resignar com a


derrota e que essa a tessitura geral. A mensagem que tem que dar, distncia,
aos argentinos, que agora devemos estar mais unidos que nunca.
X
No verdade que eu tenho um encontro com um amigo num bar do centro. Volto
para minha casa e fico sozinho, sem sair.
147
Fico pensando e recordando; nem sequer sinto vontade de ligar a televiso.
noite, como algo leve: umas sobras do jantar de ontem, que somente
tenho que esquentar. Depois me deito.
O sono demora a chegar. Quando, por fim, durmo, sonho com aquela puta
do tique nervoso na boca. claro que j no me lembro de como era sua cara:
sonho com uma mulher de rosto difuso, uma mulher indefinida; mas no sonho eu
sei que se trata dela e nesse rosto difuso existe o tique. Passaram-se quatro anos
no sonho exatamente como na realidade. Apesar disso, ela se lembra de mim.
Lembra-se bem e me diz isso. Fica nua em uma cama ilimitada e, sem esperar
que eu v para cima dela, ofega e exclama: Me mata, soldadinho, me mata".
Ultimamente no consigo me lembrar dos meus sonhos. Quando acordo, tudo se
apaga. Mas consegui me lembrar deste sonho. s vezes, inclusive, o repasso
mesmo acordado. E s vezes pressinto que vou voltar a sonha-lo, que chega a
noite e me espera, como se se tratasse de uma mulher real com quem vou me
encontrar de tempos em tempos.
Notas
1. Enquanto existiu o servio militar obrigatrio na Argentina, realizava-se um sorteio para
determinar quem seria dispensado e quem deveria cumprir o servio militar na Fora Area, na
Marinha ou no Exrcito. De acordo com os ltimos trs nmeros do documento de identidade
(nmero de ordem), definia-se o destino de cada cidado.
2. Os militares, durante a ditadura de 76-82 usavam a palavra translados para designar os
prisioneiros que, na verdade, seria mortos
3. O autor se refere ESMA (Escola Mecnica das Foras Armadas), um dos principais centros
de deteno e tortura durante a ditadura de 76-82.
4. Sargento Cabral: heri argentino do Exrcito de San Martin que morreu em combate
pronunciando estas ltimas palavras: Morro contente.

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