Leitura Jane Naujorks

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
REA: ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESPECIALIDADE: TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
LINHA DE PESQUISA: ANLISES TEXTUAIS E DISCURSIVAS

LEITURA E ENUNCIAO:
princpios para uma anlise do sentido na linguagem

Jane da Costa Naujorks

Orientador: Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores

Porto Alegre
2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL


INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
REA: ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESPECIALIDADE: TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
LINHA DE PESQUISA: ANLISES TEXTUAIS E DISCURSIVAS

LEITURA E ENUNCIAO:
princpios para uma anlise do sentido na linguagem
Jane da Costa Naujorks
Orientador: Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores

Tese de Doutorado em ESTUDOS DA


LINGUAGEM, TEORIAS DO TEXTO E DO
DISCURSO, apresentada como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Doutor pelo
Programa de Ps-Graduao em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Porto Alegre
2011

Para meus amores:


Moacir, Guilherme e Caroline,
alicerces de minha vida.
Para o Valdir,
pela dedicao, confiana e pacincia.

AGRADECIMENTOS
Ao Valdir, amigo, colega e orientador, por ter acreditado que poderamos, um dia,
desenvolver um trabalho em conjunto; no tenho palavras para agradecer a oportunidade
oferecida, a orientao e, principalmente, o convvio como colega e como orientador. Com ele
tive a oportunidade de realizar uma nova leitura sobre o conhecimento.
Ao Moacir, que tanto amo, agradeo pela extensa pacincia, pelo amor, pela
disposio em me ajudar em qualquer situao e, principalmente, pelo apoio que me conforta
e me deixa mais forte para superar os desafios.
Aos meus filhos, meus amores, Guilherme e Caroline, pelo carinho, pelo amor, e
porque souberam compreender a importncia deste trabalho para minha vida.
Aos meus pais, irmos, cunhados, cunhadas, sobrinhos que, a distncia, sempre
acompanharam essa trajetria e torceram por mim.
Aos colegas de departamento, que prontamente apoiaram meu afastamento,
incentivando-me a prosseguir nesta caminhada. Em especial colega Carmem, que participou
de todas as etapas deste processo de escrita, lendo, opinando e, principalmente, incentivando.
Ingrid, pela amizade e pela presena nesta importante etapa de minha vida.
minha querida amiga, agora colega, Magali, pela nossa eterna amizade.
banca de qualificao, professoras Cludia Toldo e Carmem Luci da Costa Silva,
que, ao leram esta tese, re-constiturem seu sentido, apontaram os caminhos para a
continuidade deste trabalho.
Ao programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, pela oportunidade de realizar esta pesquisa.
direo do Instituto de Letras, pelo apoio.
amiga Margarete que, mesmo a distncia, foi uma referncia para o
desenvolvimento desta pesquisa.

RESUMO
Esta pesquisa surge da constatao de que o tema da leitura, mesmo no sendo novo e
apresentando-se em diferentes perspectivas tericas e metodolgicas, aponta para uma nova
perspectiva, a leitura como ato de constituio de sentidos, produzido por um locutor que
instaurado, atravs desse ato, como sujeito. Assim, mais que repetir o que j temos nas
diferentes abordagens da leitura, buscamos fundamentar nossa perspectiva sobre esse tema na
Lingustica da Enunciao, especificamente nos estudos enunciativos de mile Benveniste. A
especificidade de nossa pesquisa est basicamente na resposta questo: em que termos
podemos pensar a leitura como um ato enunciativo? Com esse fim, nossa direo inicial ser
um levantamento de algumas das principais abordagens de leitura presentes na conjuntura
brasileira, sempre em busca da resposta de como as diferentes abordagens pensam a relao
entre sujeito e leitura. Na sequncia, resgatamos conceitos presentes nas reflexes
enunciativas benvenistianas, com o intuito de subsidiar a abordagem enunciativa da leitura.
Nesse resgate, pretendemos estabelecer uma relao entre as noes que envolvem os estudos
enunciativos e o tema da leitura, e, ainda, constituir uma metodologia que d conta da anlise
enunciativa da leitura. Com esse trajeto, objetivamos situar o entendimento da leitura na
perspectiva enunciativa, prevendo relacionar teoria e prtica. Trazemos, ento, para este
estudo um conceito de leitura, cuja perspectiva terica a Enunciao de mile Benveniste, e
um trabalho de anlise de corpus de trs textos de vestibular, esperando, com isso, a exemplo
de outros autores do campo, deslocar nossas descobertas para o ensino de leitura.

Palavras-chave: leitura lingustica da enunciao Emile Benveniste

RESUM
Cette recherche dcoule de la constatation que le thme de la lecture mme s'il n'est pas
nouveau et il se prsente dans diffrentes perspectives thoriques et mthodologiques offre
une nouvelle perspective, savoir, la lecture comme un acte de constitution de sens produit
par un locuteur qui est instaur, par cet acte, comme sujet. Ainsi, plutt que rpter ce que
lon trouve dj dans les diffrentes approches de la lecture, nous cherchons baser notre
perspective, sur ce thme, dans la Linguistique de l'nonciation, en particulier, dans les tudes
nonciatives d'mile Benveniste. La spcificit de notre recherche rside principalement dans
la rponse la question : dans quels termes pouvons-nous penser la lecture comme un acte
nonciatif ? cette fin, notre direction initiale sera un rprage de quelques des principales
approches de la lecture prsentes dans la conjecture brsilienne, toujours dans la recherche de
la rponse de comment les diffrentes approches pensent la relation entre le sujet et la lecture.
Ensuite, nous avons rcupr des concepts prsents dans les rflexions nonciatives de
Benveniste, afin de soutenir lapproche nonciative de la lecture. Dans cette rcupration,
nous avons l'intention d'tablir une relation entre les notions qui font partie des tudes
nonciatives et du thme de la lecture, et, encore, de constituer une mthodologie qui tient
compte de l'analyse nonciative de la lecture. Avec ce trajet, nous avons pour but de situer la
comprhension de la lecture dans la perspective nonciative, en cherchant relier la thorie et
la pratique. Nous apportons, alors, cette tude, un concept de lecture dont perspective
thorique est l'nonciation d'mile Benveniste et un travail d'analyse de corpus, en cherchant,
avec cela, linstar d'autres auteurs du champ, dplacer nos dcouvertes l'enseignement de
la lecture.

MOTS-CLS : Lecture - Linguistique de l'nonciation - mile Benveniste.

SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 9
CAPTULO 1
A leitura no Brasil: alguns parmetros .............................................................................. 17
1.1 Os aspectos culturais, sociais, pedaggicos ligados ao ensino da leitura ...................... 19
1.1.1 A leitura como ato social .............................. .................................................................27
1.2 Os aspectos lingustico-cognitivos das estratgias de leitura .......................................... 28
1.2.1 A leitura como estratgia de conhecimento ................................................................... 39
1.3 Os aspectos discursivos .................................................................................................... 41
1.3.1 A leitura depende das condies de produo ............................................................... 45
1.4 Encaminhamentos ............................................................................................................. 45
CAPTULO 2
Os conceitos da enunciao que podem subsidiar a abordagem
enunciativa da leitura ........................................................................................................... 48
2.1 Os fundamentos do campo enunciativo benvenistiano ..................................................... 50
2.1.1 A Semntica de Bral como fundamento da Enunciao de Benveniste ...................... 51
2.1.2 A Lingustica de Saussure comparece na Enunciao de Benveniste ........................... 53
2.2 A teoria enunciativa de mile Benveniste ........................................................................ 59
2.2.1 A intersubjetividade/ subjetividade na linguagem ......................................................... 62
2.2.2 A relao entre a forma e o sentido ............................................................................... 71
2.2.3 A enunciao ................................................................................................................. 80
CAPTULO 3
Enunciao e leitura ............................................................................................................. 86
3.1 A teoria enunciativa da leitura ......................................................................................... 87
3.1.1 Primeiro deslocamento: a passagem de locutor a sujeito na leitura .............................. 89
3.1.2 Segundo deslocamento: a intersubjetividade/subjetividade na leitura .......................... 91
3.1.3 Terceiro deslocamento: a relao entre a forma e o sentido na leitura .......................... 97
3.1.4 Quarto deslocamento: a enunciao e a leitura ........................................................... 102
CAPTULO 4
Metodologia da anlise enunciativa da leitura ................................................................. 108
4.1 Sobre o corpus ........................................................................................................... 109
4.2 Sobre a anlise do corpus .......................................................................................... 113
4.3 Sobre os fatos de lngua ................................................................................................. 117
CAPITULO 5
A anlise enunciativa da leitura ........................................................................................ 119
5.1 A complexidade da relao enunciativa no ato/processo de leitura .............................. 120
5.2 Aspectos gerais da relao enunciativa no ato/processo de leitura no corpus ......... 123
5.3 As marcas da enunciao no ato/processo de leitura no corpus ............................... 127
5.3.1 Anlise do texto 1 ........................................................................................................ 128
5.3.2 Anlise do texto 2 ........................................................................................................ 132
5.3.3 Anlise do texto 3 ........................................................................................................ 136
CAPTULO 6
A teoria enunciativa da leitura: uma contribuio .......................................................... 140
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 148
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 150

NDICE DE QUADROS
Quadro 1 Sntese das relaes entre pessoa e no-pessoa ................................................... 67

NDICE DE DIAGRAMAS
Diagrama 1 As relaes entre as categorias de pessoa, tempo e espao na enunciao ..... 69
Diagrama 2 A forma e o sentido nos planos semitico e semntico ................................... 79
Diagrama 3 Esquema da enunciao ................................................................................... 84
Diagrama 4 As relaes intersubjetivas do ato/processo de leitura ..................................... 97
Diagrama 5 A leitura como semantizao da lngua ......................................................... 102

NDICE DE FIGURAS
Figura 1 A prova de redao do CV/UFRGS, 2011 .......................................................... 111

INTRODUO

O brasileiro no l! O aluno no l! Ns no lemos! Muito se tem dito a respeito da


acanhada capacidade de leitura de nossa populao. Mesmo sem apresentar dados a respeito,
isso fcil deduzir no percurso que realizamos para este trabalho e nas discusses relativas
falta de hbito de leitura do povo brasileiro, inclusive entre pessoas de ensino superior, que
no mantm assiduidade de leitura.
Ora, incontestvel a importncia da leitura para a realizao pessoal e tambm para o
progresso social e econmico de um pas. Nesse caminho, o lugar ideal para a promoo do
hbito de ler nas crianas e jovens, devendo se preocupar em desenvolver estratgias para o
ensino eficaz da leitura, a escola (FILIPOUSKI, 1988, p. 108). No entanto, apesar de ser
relativamente fcil ensinar uma criana ou um adulto a reconhecer letras e palavras, o
domnio da mecnica da leitura, o treino e o desembarao no so garantia da assiduidade e
da motivao do leitor, nem mesmo da fixao de um hbito que seja verdadeiramente
decorrente da transformao do ato de ler numa experincia ao mesmo tempo agradvel e
condutora de conhecimento.
Para Ezequiel Teodoro da Silva (1988) autor cujas obras apontam para questes de
leitura quanto aos seus aspectos sociais , a escola passou a ser o principal espao responsvel
pelo ensino do registro verbal da cultura: Assim, ter acesso leitura significa ter acesso
escola e nela obter as habilidades e os conhecimentos necessrios participao no mundo da
escrita (p. 135). Porm considerando-se que a formao do leitor est essencialmente
ligada alfabetizao e escolarizao e que ler , boa parte das vezes, apenas submeter-se
aos objetivos que a escola tenta atingir atravs de seus programas e mtodos , torna-se
impossvel, nesse processo, contemplar questes essenciais discusso do tema: o que
leitura? Como ter hbitos de leitura? O que ler? Por que ler? Em que aplicar o que foi lido?
Tais questes, muitas vezes, ficam atreladas a objetivos mais amplos, os quais a escola,
infelizmente, no consegue dar conta (ibidem, p. 135).
Quanto a isso, cabe lembrar Mittmann (2003), que, em artigo sobre leitura de textos
jornalsticos em sala de aula, apresenta preocupao quanto ao que se ensina em aula de
Lngua Portuguesa. A autora expe que, em sua viso, esse ensino deve centrar-se no
desenvolvimento das aptides de leitura e escrita. Para tanto, deve-se olhar para os arranjos e
para as marcas textuais, levando o aluno a descobrir as condies de produo do discurso e

10

dos sentidos. com a leitura crtica que se pode mostrar ao aluno que no a verdade que
ele l, mas, sim, uma das possibilidades de verdade, entre tantas outras, inclusive contrrias
mesma (MITTMANN, 2003, p. 235).
Ora, isso nos leva a considerar que o texto1 precisa ser visto como um trabalho de
linguagem cuja trama apresenta tanto o processo de escrita quanto o processo de leitura. Ele
s existe na proporo em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que o
escreve e o que o l; escritor e leitor, reunidos pelo ato radicalmente solitrio da leitura,
contrapartida do igualmente solitrio ato de escritura (LAJOLO, 1988, p. 52). O texto , para
o leitor, uma experincia nova, que ser transformada medida que ele o toma como
experincia prpria. Ler significa tambm ser autor, ou melhor, coautor do texto. O leitor
deve construir sua capacidade de atribuir sentidos ao texto, sem se preocupar com uma
interpretao verdadeira desse.
A partir dessas consideraes, queremos reconhecer que o tema da leitura no novo
na reflexo lingustica brasileira, inclusive e apresenta, sem dvida, grande abrangncia,
medida que envolve diferentes perspectivas tericas e metodolgicas2. Isso, porm, no nos
impede de recolocar na ordem do dia pontos para o debate que, apesar de sobejamente
discutidos, ainda carecem de aprofundamento. Adiantamos que disso que se trata nesta tese:
trazemos para o debate o j to discutido tema da leitura. Porm, reivindicamos certa
originalidade na conduo desse debate: nossa tese versa sobre a leitura na perspectiva da
Lingustica da Enunciao, muito especialmente a partir das ideias da teoria enunciativa de
mile Benveniste.
No pensamos, porm, ignorar o que h muito j tem sido feito nos estudos brasileiros
a respeito do tema. Assim, para levarmos em considerao o largo conjunto de perspectivas
que tomaram a leitura como objeto de pesquisa e para investigar terica e metodologicamente
a temtica, necessrio que se recoloquem questes fundantes do campo a ser estudado. E,
como sabemos, no h campo em que prolifere mais desencontro terico que o do
entendimento do processo de leitura. Isso facilmente verificado no mar de erros e acertos
pelo qual navega a frgil embarcao do ensino da leitura entre ns, demonstrando que pouco
tem sido feito na prtica para incentivar um trabalho verdadeiramente produtivo com a leitura.
1

Texto, enunciado e discurso sero, neste trabalho, usados como produto da enunciao, seja da enunciao anterior,
seja da do prprio leitor.
2

Acreditamos que, mesmo distintas, essas reflexes apresentam uma unidade de perspectiva que garante a coeso do
conjunto. Sobre isso trataremos no decorrer do captulo 1.

11

H teorias de toda ordem: aquelas que tomam o texto como pretexto para ensinar o
contedo gramatical, relegando leitura o lugar da decodificao da mensagem; aquelas que
acreditam que a leitura consiste apenas na manipulao de esquemas monitorados em que o
principal objetivo verificar se o aluno l (decodifica) bem, sem, no entanto, preocupar-se
com o entendimento do que est sendo lido; ou, ainda, aquelas em que a leitura vista apenas
como um estudo dirigido, limitado superfcie textual, em que o papel do leitor o de
recuperar o sentido posto no texto pelo autor. Mas h tambm as que se inspiram nos
Parmetros

Curriculares

Nacionais3,

documentos

que

explicitam

uma

consistente

argumentao a favor de um ensino de Lngua Portuguesa que priorize o ler e o escrever4 de


maneira integrada, em que um a condio do outro.
Esses so apenas alguns exemplos que, mesmo sem visar exaustividade, servem para
ilustrar o que dissemos acima acerca do conturbado cenrio do ensino da leitura no Brasil.
A leitura, em nossa perspectiva, uma prtica efetiva que supe o envolvimento do
aluno numa posio de sujeito-leitor em um processo que altamente subjetivo, uma vez que
cada leitor imprime sua singularidade no ato de leitura. Nesse nosso entendimento, a leitura
no algo que possa ser meramente ensinado; algo que exige ser praticado, vivenciado em
uma dada situao espao-temporal, ou seja, em uma dada instncia de discurso. A leitura
constitutiva do escrever. Isso nos impede de reconhecer uma estratgia de leitura cujo
objetivo seja to somente ensinar a ler.
Assim, por acreditarmos na prtica de linguagem baseada em uma viso terica que
leve em conta o uso da linguagem e a reflexo sobre a lngua/linguagem com vistas ao
entendimento de uma prtica de ensino de lngua centrada na leitura, apresentamos, nesta tese,
uma perspectiva sobre o tema leitura ancorada na teoria enunciativa de Benveniste. Essa
ancoragem tem por justificativa a necessidade de a questo ser tratada em um contexto terico
amplo, que inclua o autor, o leitor e o texto o que coaduna com muitas outras teorias e que
os considere como partes de um todo que somente pode ser decomposto na teoria, uma vez

Parmetros Curriculares Nacionais (PCN): documento do Ministrio de Educao e Cultura, contendo diretrizes
bsicas para uma renovao curricular. A leitura proposta, neste documento, como pr-requisito e objetivo do
trabalho coletivo na escola. Esse documento diz sugerir um enfoque enunciativo-discursivo a ser desenvolvido nas
salas de aula. Com isso, acreditamos que constituem um grande avano para o ensino-aprendizagem de leitura e
produo de textos no ensino.
4

Os objetivos de Lngua Portuguesa salientam a necessidade de os cidados desenvolverem sua capacidade de


compreender textos orais e escritos, de assumir a palavra e produzir textos, em situaes de participao social. Ao
propor que se ensine aos alunos o uso das diferentes formas de linguagem verbal (oral e escrita), busca-se o
desenvolvimento da capacidade de atuao construtiva e transformadora (PCN, 1998, p. 32)

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que, na prtica, esto sempre interligados. No entanto, h uma especificidade no que


propomos, e ela se resume basicamente nisto: do ponto de vista enunciativo, o leitor , antes
de tudo, um locutor que, no ato de leitura, prope-se como sujeito, enuncia e enuncia-se; o
texto um complexo jogo de relaes entre formas e sentidos; a leitura um ato de
enunciao, de colocao da lngua em uso.
O nosso ponto de partida, est claro, situa-se na reflexo de uma abordagem
enunciativa da leitura por entendermos que, de um lado e isto inegvel , a leitura envolve
uma diversidade de aspectos sociais, cognitivos, culturais, entre outros, e, de outro lado, que
ela um ato de constituio de sentido produzido por um locutor que instaurado, atravs
desse ato, como sujeito.
Procuramos, para este trabalho, alm de responder s questes anteriormente
colocadas, verificar que aspectos da marcao do sujeito da passagem de locutor a sujeito
esto envolvidos no ato de produo da leitura. Em suma, buscamos responder: em que
termos podemos pensar a leitura como um ato enunciativo?
A fim de delimitar nossa trajetria nesta tese, tomamos como mote, principalmente
para percorrer as perspectivas investigadas no captulo 1, a questo: como formulada a
relao entre sujeito e leitura?, questo essa que coloca em relevo a problemtica da
subjetividade na linguagem, foco central das teorias enunciativas.
Nesse caminho, nosso objetivo , ao produzir uma tese sobre Enunciao e leitura,
desenvolver uma abordagem terico-metodolgica do ato/processo5 de leitura, amparada na
teoria enunciativa de mile Benveniste. Consequentemente, nossos objetivos especficos
circunscrevem o escopo da leitura vista como ato de enunciao, quais sejam: a) descrever as
marcas que identificam a leitura como um ato/processo enunciativo; e b) formular um
caminho metodolgico que permita descrever a leitura como modalidade de enunciao.
Desse modo, a reflexo a ser levada adiante diz respeito ao locutor e s formas
lingusticas de sua presena no discurso; ao interlocutor (alocutrio) e s formas lingusticas
de sua presena no discurso; instncia de discurso e s formas lingusticas de sua presena
no discurso (marcas de tempo e de espao).

Utilizamos ato/processo para referir a leitura enunciao tendo em vista que Benveniste em O aparelho formal da
enunciao, utiliza estes termos para designar a enunciao. o que se v nas seguintes passagens: enunciao o
ato mesmo de produzir um enunciado [...]; este grande processo pode ser estudado sob diversos aspectos [...].

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Isso posto, passamos, a seguir, a explicitar ao leitor o trajeto escolhido para sustentar
nossa tese de que ler enunciar.
Refletindo sobre algumas das principais abordagens da leitura produzidas no contexto
brasileiro, a fim de obtermos uma viso do campo dos estudos referentes s prticas de
leitura, descrevemos, no primeiro captulo (cf. captulo 1), os principais parmetros que
configuram esse contexto, focalizados nos diversos aspectos envolvidos no processo de
leitura.
Percebemos uma dimenso aplicada da leitura, que considera, principalmente, a leitura
no mbito social. Para os autores pesquisados (cf. 1.1), a leitura se configura eminentemente a
partir de questes culturais, sociais e pedaggicas, pois deve conduzir o leitor a uma reflexo
crtica tendo compromisso com a sua realidade.
Vemos, ainda, que tomar a leitura a partir do aspecto cognitivo (cf. 1.2) significa
reconhecer um processo delineado a partir de mecanismos, estratgias e prticas que se
direcionam para o desenvolvimento do processo de leitura. Trazemos, neste item, autores que
tm interesse pela forma como se l, pelas estratgias utilizadas na leitura e, alm disso, uma
preocupao constante com a questo da interao.
Segundo os autores que enfatizam os aspectos cognitivos, a leitura vista como um
processo ativo que envolve tanto decodificao quanto aspectos como extrao de
informaes de um texto, de reconstruo de sentido, de compreenso. A interao faz parte
do processo de leitura, uma vez que engloba a trade leitor-autor-texto. Com nfase nas
relaes socioideolgicas, a perspectiva dos estudos do campo da Anlise do Discurso
apresenta-se como uma teoria da leitura, apontando que texto e discurso caracterizam-se de
modos diferentes (cf. 1.3). O primeiro seria a materialidade lingustica do segundo. Nessa
concepo, o sujeito constitudo ideologicamente, e a leitura est na dependncia dos
lugares sociais ocupados por um sujeito que se constitui historicamente.
As trs perspectivas investigadas no primeiro captulo a que enfatiza os aspectos
culturais, sociais, pedaggicos ligados ao ensino da leitura; a que desenvolve os aspectos
cognitivos das estratgias de leitura; e a que prioriza aspectos discursivos nem esgotam as
problemticas concernentes ao campo, nem mesmo poderiam ser consideradas as nicas
possibilidades. Nossos critrios de seleo so explicitados logo no incio do captulo. Cabe,
porm, adiantar que recorremos a tais estudos pela proximidade que tm com o campo
enunciativo: todos, mesmo que de formas dspares entre si, vislumbram a lngua em uso.

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Depreendemos dessa investigao posicionamentos distintos no que diz respeito


leitura, mas que, de uma forma ou outra, conduzem a um mesmo objetivo (cf. 1.4), qual seja,
o de tomar a leitura como um problema especfico da escola. Todos os autores abordados
nesse primeiro captulo ambientam a discusso em torno da leitura no espao escolar. Nesse
caminho, podemos dizer que suas reflexes convergem para prticas consistentes no/para o
processo de leitura na escola.
Uma vez feito esse percurso, verificamos a necessidade de buscar um outro enfoque.
No captulo seguinte (cf. captulo 2), contemplamos os recortes tericos que nos conduzem ao
objetivo maior de nossa pesquisa, qual seja: apresentar a leitura como uma modalidade de
enunciao, resgatando dos estudos de mile Benveniste alguns dos principais conceitos que
permeiam sua teoria, reconhecendo uma interdependncia entre eles, para, a partir da,
compreender como a leitura, mesmo no explicitamente prevista em seus estudos, pode ser
vista como uma modalidade de enunciao.
esse o captulo que embasa teoricamente nossa tese. A partir dele que construmos
todos os demais.
Em virtude de ser considerado um dos primeiros linguistas a ressaltar o uso da lngua
pelo locutor, buscamos evidenciar a importncia dos estudos de mile Benveniste
apresentando, primeiramente (cf. 2.1), sua filiao terica. Em seguida, com uma leitura
detalhada dos textos presentes em Problemas de lingustica geral I (PLG I)6 e Problemas
de lingustica geral II (PLG II), apontamos os principais aspectos que caracterizam, em
Benveniste, um percurso enunciativo.
Desse modo, tomamos como propsito para o desenvolvimento de nossa pesquisa
alguns textos agrupados sob o ttulo O homem na Lngua, do PLG I, principalmente por suas
reflexes em torno da subjetividade na linguagem. Na continuidade, detemo-nos, ainda, nos
artigos A forma e o sentido na linguagem, Semiologia da lngua, e O aparelho formal da
Enunciao (PLG II), artigos esses que levam s noes de significao, referncia, instncia
de discurso, entre outras. Acreditamos ser possvel, com essa retomada, relacionar os
conceitos de forma a subsidiar nossa hiptese de que a leitura, como uso de linguagem, uma
modalidade de enunciao.

Os dois volumes de Problemas de lingustica geral, de mile Benveniste, sero referidos em citaes segundo o
seguinte sistema: sigla PLG, seguida da indicao do volume e da pgina.

15

A partir dessa reviso terica inicial, levantamos a hiptese de que as ideias


benvenistianas podem conduzir a uma teoria enunciativa da leitura. Tal hiptese reforada
pela anlise dos diferentes modos de tratamento dado linguagem e presena do homem na
lngua. Entendemos que, com Benveniste, possvel estabelecermos relao entre leitura e
enunciao. A percepo dessa possibilidade concorreu para que determinssemos o objetivo
geral de nossa pesquisa: apresentar a leitura como uma modalidade de enunciao.
Assim, aps a retomada de autores que tratam da leitura (cf. captulo 1) e a
apresentao da teoria de Benveniste (cf. captulo 2), damos continuidade ao nosso trabalho
demonstrando como esse percurso pode contribuir para corroborar nossas hipteses quanto
leitura como uma modalidade de enunciao (cf. captulo 3). Analisamos e avaliamos,
portanto, a questo da enunciao e sua relao com a leitura. Para esse fim, o ponto de apoio
a presena do locutor nos estudos enunciativos, presena essa ligada ao processo de leitura.
Portanto, aqui, interessa-nos esclarecer os conceitos iniciais da teoria e reconhecer sua
interdependncia, de modo a reinterpret-la a partir do fenmeno da leitura.
Com essa trajetria, acreditamos ser plausvel relacionar teoria e metodologia a fim de
direcionar a apresentao de princpios de uma teoria de leitura que leve em conta a presena
do locutor no ato/processo. No podemos negar que, com isso, esperamos, a exemplo de
outros autores do campo, deslocar nossas descobertas para o ensino de leitura.
No quarto captulo contemplamos os procedimentos metodolgicos relativos ao
corpus e a sua anlise.
Sobre esse captulo vale a pena nos determos um pouco para apresent-lo desde j ao
leitor. O corpus utilizado para dar a conhecer nossa tese de que ler enunciar constitudo
por um conjunto de trs redaes do concurso vestibular/2011 da UFRGS (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul). Sem dvida, dizer apenas isso insuficiente. Cabe-nos
justificar a escolha, mesmo que em carter introdutrio.
Os textos de vestibular tm sido objeto de estudo h muitos anos na pesquisa
lingustica brasileira. Porm, normalmente, esses estudos interessam-se mais pelo aspecto da
produo textual que pelo aspecto da leitura. Em outras palavras: redao de vestibular ,
geralmente, matria de exame junto a teorias que estudam o processo de produo do texto e
no o de leitura.
Ora, no podemos desconsiderar que nossos alunos produzem redaes de vestibular a
partir de uma proposta de redao que lhes feita. Ou seja, a redao que escrevem

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materializa a leitura que fazem da proposta de redao. No seria absurdo dizer, ento, que o
aluno que produz um texto de vestibular o faz a partir de um dilogo que estabelece com a
prpria proposta de produo do texto e a partir de uma atribuio/constituio de sentidos.
Na verdade, a situao enunciativa de produo de um texto de vestibular
suficientemente complexa para no se resumir ao que dissemos no pargrafo anterior. Mas
no podemos negar que, se percebida do ponto de vista da leitura, a redao de vestibular ,
num primeiro momento, uma explicitao da leitura que o aluno faz da proposta do vestibular.
So os termos dessa leitura que esto em exame quando, por exemplo, uma banca de
avaliao considera que um texto fugiu ao tema, ou no. A fuga ao tema da proposta na prova
de redao nada mais que uma leitura, materializada na produo de um texto, que no vai
ao encontro do que se esperava.
A proposta de redao de um vestibular uma enunciao que est na histria de
constituio da enunciao atual, a redao.
Certamente, h muito ainda a se dizer sobre isso, pois, afinal, se verdade que o aluno
l a proposta para produzir o seu texto, no menos verdade que faz isso a partir da ateno a
aspectos de forma e sentido. Enfim, o captulo 4 de nossa tese apresenta o corpus e fornece
maiores informaes metodolgicas relativas ao tratamento da redao de vestibular como
uma leitura.
No quinto captulo, procedemos s anlises. No sexto captulo, finalmente, tecemos
consideraes que evidenciam, a partir da anlise, a visada da leitura como um ato de
enunciao, tema desta tese.
Esta pesquisa, portanto, prope um novo conceito de leitura, tendo em vista a
perspectiva da Teoria da Enunciao de mile Benveniste e o corpus em estudo.
Para finalizar, no podemos deixar de lembrar nessas ltimas palavras da Introduo:
temos interesse em relacionar nossa pesquisa ao processo de ensino, pois o que se tem em
leitura, hoje, nessa perspectiva insuficiente. Trazemos, ento, a leitura como um ato de
constituio de sentido produzido por um locutor que instaurado, atravs desse ato, como
sujeito. Pretendemos apontar os aspectos de marcao do sujeito envolvidos no ato de
produo de leitura a fim de contribuir teoricamente para o ensino de leitura. Afinal, esta tese
escrita por quem passou os ltimos trinta anos ensinando.

17

CAPTULO 1
A leitura no Brasil: alguns parmetros

a vida em comum que nos cria a necessidade


de ler: ler os outros, ler a nossa disposio para os
outros, ler o texto comum que ns e os outros
escrevemos de todos para todos.
Maria Alzira Seixo

Este captulo examina algumas das principais abordagens da leitura produzidas no


contexto brasileiro. H, ao menos, um motivo para fazermos isso nesta tese: a leitura no
tema novo na reflexo lingustica, e a produo de pesquisa no campo exige de quem a faz
que entenda o estado da arte da rea.
Como se sabe, so muitos os pesquisadores da rea de leitura na lingustica, em geral,
e na lingustica brasileira, em particular, que tm desenvolvido trabalhos em diferentes
perspectivas tericas. Alguns mais preocupados com aspectos culturais, sociais, pedaggicos;
outros, com mtodos e processos para praticar a leitura7. Tambm so vrios os caminhos a
serem percorridos para falar em leitura8.
Os discursos sobre leitura so muitos: social, poltico, pedaggico, lingustico, entre
outros. H, no entanto, uma problemtica terica que poderia, de certa forma, ser considerada
um ponto de partida unificador a respeito do tema: a busca de respostas a questes como o
que leitura?; pode-se ensinar algum a ler?; como ocorre esse ensino?; basta
conhecimento prtico para que se ensine a ler?; quem esse sujeito que est na base do ato
de ler?.
7

De todo modo, talvez se possa encontrar uma convergncia de objetivo final de todos, ao menos no cenrio da
lingustica brasileira, qual seja: a maioria dos pesquisadores procura contribuir para que suas teorias cheguem
escola e possam se tornar prticas consistentes no/para o processo de leitura. Assim, no seria errado supor que a
leitura, principalmente no contexto brasileiro, tem sido apresentada como um problema especfico da escola,
onde, acredita-se, seja o lugar em que as pessoas tm, muitas vezes, a nica oportunidade de contato com o texto
escrito.
8

A construo desse caminho se dar, em nossa perspectiva, a partir da leitura do texto escrito, mesmo considerando
que a leitura no est restrita recepo e interpretao do texto verbal. Sabemos muito bem que se pode ler a
mo, uma obra de arte, a msica, enfim, sabemos que o mundo se constri a partir da leitura que se faz do que est a
nossa volta. No entanto, nosso enfoque est restrito ao tratamento lingustico do tema. Desse modo, aborda-se a
questo restringindo a discusso apenas leitura do texto escrito, que, como lembra Martins (1982), um processo de
formao global do indivduo a que no se tem acesso naturalmente.

18

Subjazem a essas perguntas questes de natureza epistemolgica, conceitual e,


mesmo, aplicada. Ou seja, muitos so os pontos a tratar para que se entenda o que realmente
ocorre quando se fala em leitura.
Para responder a todas essas questes necessrio reconhecer que o tema
multifacetado e que, para discuti-lo, impe-se traar uma direo, direo essa que, aqui,
seguida, inicialmente, a partir de vrias perspectivas lingusticas9 que tm a linguagem como
ponto de partida.
Como adiantamos na Introduo (cf. supra), nossa tese busca explicitar os termos
pelos quais se pode pensar em uma abordagem enunciativa de leitura. Em outras palavras, se
verdade que a leitura envolve aspectos sociais, cognitivos, culturais, entre outros, no
menos verdade que a leitura ato de constituio de sentido produzido por um locutor, ato
esse que o instaura como sujeito10. Logo, nada mais pertinente do que verificar que aspectos
de marcao do sujeito esto envolvidos no ato de produo da leitura. Em suma, buscamos
responder: em que termos podemos pensar a leitura como um ato enunciativo?
Para tanto, a seguir, feito um levantamento acerca de alguns dos trabalhos mais
representativos sobre o tema produzidos no Brasil. Quanto a isso, cabem ainda alguns
esclarecimentos:
a) Selecionamos estudos desenvolvidos no cerne da reflexo brasileira sobre a
linguagem. Isso se deve menos a um ufanismo que, facilmente, passaria por
excessivo no contexto de uma tese, e mais a um dos objetivos explcitos que temos
com esta tese: o de contribuir para os aspectos voltados ao ensino da leitura no
Brasil (cf. Introduo);
b) os recortes feitos no devem ser tomados nem como definitivos, nem como
exaustivos, nem como nicos. Com isso, queremos dizer que a abordagem que
fazemos adiante cumpre apenas o papel de dar a conhecer, por contraste, a nossa

S para ilustrar a complexidade da questo e a significativa variedade de trabalhos sobre o tema, podemos citar
dentre os autores que discutem o assunto: Martins (1982); Freire (1992); Kleimann (1989, 2004, 2007,); Kato
(1990, 1995, 2004); Fulgncio (1998); Orlandi (1987, 1996, 1998, 1999, 2004, 2006); Silva (1981, 1983, 1988,
1993); Leffa (1996); entre outros.
10

Estamos operando aqui com uma distino, ainda no explicitada, entre locutor e sujeito. Tal distino ficar mais
bem explicitada no captulo 3 (cf. infra), quando o quadro terico enunciativo ser apresentado. Neste momento, basta
aludirmos que, em nossa perspectiva, o locutor torna-se sujeito pelo uso individual que faz da lngua. Com isso,
queremos dizer que cada locutor se singulariza, torna-se sujeito, a cada uso em uma dada instncia de discurso. Esse
raciocnio, tomamos emprestado da afirmao de Benveniste, em Da subjetividade na linguagem, texto de 1958: A
subjetividade de que tratamos aqui a capacidade do locutor para se propor como sujeito (PLG I, p. 286).

19

perspectiva de tratamento do tema da leitura, que no se veja nisso nenhuma


pretenso de esgot-lo;
c) a todas as perspectivas investigadas, fazemos uma pergunta, a partir da qual
estruturamos a continuidade deste trabalho: como formulada a relao entre
sujeito e leitura? Explicamo-nos: nossa pesquisa ser guiada por tal
questionamento porque ele coloca em destaque a problemtica da subjetividade na
linguagem, foco central das teorias enunciativas, base desta tese (cf. captulo 2).
Da aplicao desses critrios, acreditamos, formula-se o objeto desta tese que nos conduz
adiante.

1.1 Os aspectos culturais, sociais e pedaggicos ligados ao ensino da leitura

Comecemos por Paulo Freire, cuja obra se insere no contexto amplo de formao dos
pensadores do campo da leitura no Brasil. Talvez uma das primeiras e mais influentes
reflexes j produzidas sobre leitura entre ns, o pequeno A importncia do ato de ler, em
trs artigos que se completam, publicado pela primeira vez em 1981, de especial interesse
para os nossos objetivos, em funo da noo de ato por ele mobilizada j no ttulo. Tambm
ns acreditamos que ler um ato e esperamos poder explicitar esse posicionamento mais
adiante com mais vagar (cf. captulo 3).
Por ora, passemos, pois, a falar um pouco sobre as inesgotveis leituras que A
importncia do ato de ler nos apresenta.
Freire desenvolve uma reflexo voltada ao mbito da cultura11, priorizando a
existncia social e individual dos homens. Ao trabalhar a temtica da leitura, Paulo Freire
expe sua experincia sobre alfabetizao, especificamente de adultos, apontando que a
leitura da palavra sempre precedida da leitura do mundo. Por isso, como salienta o autor, o
ensino da escrita e da leitura deve sempre partir das relaes entre o texto e o contexto, pois o
que se l antes de tudo o prprio mundo que nos rodeia, dependendo sempre da percepo
de cada um para reconhecer essa leitura como significativa.

11

Aquisio sistemtica da experincia humana (Dicionrio Paulo Freire, 2009, p. 108-109).

20

Ler um processo que envolve uma viso crtica, que no est especificamente na
decodificao da palavra escrita, mas na apreenso do sentido de um texto escrito. E, para que
isso acontea, necessrio que se ativem conhecimentos prvios que englobem no s
conhecimento de mundo, como tambm conhecimento lingustico e conhecimento textual, de
modo que se possa chegar a um sentido para o texto. Assim, a leitura s acontece
verdadeiramente quando o leitor se compromete com o texto lido, tornando-se sujeito desse
texto.
Dessas colocaes podemos inferir abordagens diferentes e complementares no
raciocnio de Paulo Freire para a leitura. Em um primeiro momento, temos a leitura de
modo geral: tudo pode ser lido a partir do momento em que apresente um sentido. Essa leitura
deve estar presente em todos os momentos da vida do homem. dessa leitura que trata Paulo
Freire ao dizer que a leitura do mundo precede a da palavra. a partir dessa leitura do
mundo que surge a leitura da palavra escrita, quando o leitor deve assumir-se frente ao texto
como sujeito curioso, sujeito do processo de conhecer, engajando-se numa experincia
criativa de compreenso. Trata-se, pois, de um ato: o ato de ler.
Vale a pena chamar a ateno para alguns aspectos que vemos implicados na noo de
ato presente em Paulo Freire. Trata-se, sem dvida, de um acontecimento com forte acento
poltico e social, mas vemos tambm a nfase na constituio de sentido realizada por um
falante em determinada situao, que tem efeito criativo. isso que encontramos na passagem
seguinte: enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetizao tem, no
alfabetizando, o seu sujeito (FREIRE, 1992, p. 13). Unem-se aqui elementos que so vitais
para a proposta de Paulo Freire.
Em complementao ao que apresentado em A importncia do ato de ler e com o
intuito de mostrar a importncia que tem a leitura na obra de Paulo Freire, selecionamos dois
verbetes presentes no Dicionrio Paulo Freire12 que so representativos para compreender a
construo terica do autor em relao temtica da leitura. O primeiro verbete, Leitura do
Mundo, diz que a leitura do mundo contextualiza, gesta e emoldura um sentido para a
palavra. Palavra que, ligada ao contexto, engravidamos de sentidos ntimos e coletivos [...]
(Dicionrio Paulo Freire, 2009, p. 240).

12

O Dicionrio foi organizado por um grupo de professores cuja inteno foi a de apreender as palavras, as expresses
e os conceitos presentes na obra de Paulo Freire.

21

J no segundo verbete, Ler/Leitura, encontramos a importncia de uma concepo


crtica de leitura que implica a percepo das relaes entre o texto e o seu contexto, sem
fazer dicotomia entre ambas as leituras. Diz o verbete: a leitura do mundo e da palavra , em
Freire, direito subjetivo, pois, dominando signos e sentidos, nos humanizamos, acessando
mediaes de poder e cidadania (ibidem, p. 243).
Depreendemos desses dois verbetes que a palavramundo termo criado por Paulo
Freire e que se refere realidade do sujeito em seu contexto de vida est relacionada ao
ensino que, segundo Freire, deve ter o enfoque em temas geradores13, presentes na realidade
do sujeito. A partir da realidade, da sua realidade, que os sujeitos se fazem livres e, desse
modo, tornam-se comprometidos com a transformao da sociedade. Os sujeitos, atravs de
suas aes e reflexes, tm a possibilidade de interferir e transformar a ordem das coisas,
dando-lhes o seu sentido. Para Freire, o homem integrado o homem sujeito, aquele que,
junto com os demais, dialoga e age (ibidem, p. 394).
No mesmo caminho de Freire em especial, tambm recorrendo ideia de ato
encontramos Martins (1982) que, abrangendo uma viso ampla de leitura, discute expresses
como fazer a leitura de um gesto, de uma situao, ler o olhar de algum com o intuito
de mostrar que a leitura no se restringe escrita e que ser leitor no significa ser apenas
decodificador da palavra escrita.
Segundo a autora, preciso entender que as coisas s tm sentido para ns no
momento em que se institui uma ligao com nossa realidade e que, para que isso acontea,
necessrio uma conjuno de fatores pessoais tais como o momento, o lugar e as
circunstncias. Com a leitura de um texto escrito no pode ser diferente.
Ler o texto escrito significa que o ato de ler deve estar ligado a uma experincia, a
nossa realidade mais prxima, pois caso isso no acontea impossvel dar-lhe sentido
porque diz pouco ou nada para ns (MARTINS, 1982, p. 10). Para Martins, importante
pensar o funcionamento do ato de ler relacionando-o prpria existncia do homem. Para
isso, discute trs nveis de leitura sensorial, emocional e racional , os quais so interrelacionados, pois isoladamente a leitura deixaria de ser dinmica.

13

A palavra tijolo, por exemplo, considerada um tema gerador para a alfabetizao de adultos trabalhadores na
constrio civil (Dicionrio Paulo Freire, 2009, p. 243). As palavras geradoras partiam do universo vocabular dos
alunos e da comunidade e serviam de base para as lies de alfabetizao.

22

Ao falar no nvel sensorial, Martins discute o modo como o indivduo l, dando


sentido ao que o rodeia, e relao que mantm com esse meio. uma leitura inconsciente
no sentido de irrefletida , que tende ao imediato, uma vez que envolve os sentidos, levando o
leitor a reconhecer o que lhe agrada, ou lhe desagrada. Essa a leitura que pode revelar o
prazer de ler, sem o compromisso de raciocinar ou de justificar esse ato. Nesse nvel, o
indivduo est livre para saciar a curiosidade, para sentir a alegria e o prazer de reconhecer
que tudo o que sente est relacionado a sua experincia de vida.
Na leitura emocional, o leitor se envolve com o texto, identifica-se com ele, libera seus
sentimentos, tendo sempre em vista suas emoes e seus sonhos como referncia. Nesse nvel,
o leitor no questiona o texto, mas o que esse lhe provoca. E o texto tanto pode provocar-lhe
emoes, alimentando fantasias, como pode tambm iludi-lo, levando-o a se afastar de uma
realidade insuportvel, fazendo com que o texto deixe de ser objeto de lazer. A leitura, nesse
caso, ser, ento, desencadeada pela histria pessoal do leitor e do seu contexto, atravs de
suas lembranas, seus desejos e suas alegrias.
A leitura racional, mesmo se tratando de um nvel reflexivo e dinmico, no deixa de
estabelecer relao com os dois primeiros nveis de leitura aqui apresentados, pois reconhece
a necessidade de um dilogo entre a experincia pessoal do leitor e uma viso da prpria
histria do texto. A leitura racional questiona a individualidade do leitor e o mundo das
relaes sociais o que o leva a expandir os horizontes de suas expectativas. nesse nvel que
o leitor se questiona, que busca explicao para sua leitura, que traz memria a sua histria,
e que, a partir de pistas, compreende o objeto em seu todo. No significa, porm, que s chega
a esse nvel o indivduo que saiba ler a palavra escrita. Todos so capazes de, a partir de
experincias pessoais, realizarem uma leitura reflexiva do que est a sua volta.
Conforme Martins impossvel no reconhecer a interao entre os trs nveis e a
relao que esses tm com a histria, a experincia e a circunstncia de vida de cada leitor no
ato de ler.
Silva (1981), tambm preocupado com aspectos sociais e pedaggicos da leitura, tem
em seu trabalho a ateno dirigida para a leitura no mbito da sociedade, da escola, da
biblioteca, pois considera que nesses espaos se inicia a formao do leitor. Sua preocupao
com tais aspectos se deve, principalmente, ao reconhecimento de um apagamento do sujeito
que l, e isso acontece porque as sociedades so fechadas e autoritrias e manipulam o sujeito
pelas regras do consumo e da massificao.

23

O exerccio da leitura tem muito a ver com a conscientizao e a elevao do homem,


pois um instrumento pedaggico cultural que o leva a se alar a um novo patamar
educacional e social. O autor acredita na importncia de criar-se uma slida tradio cientfica
na rea da leitura, ou seja, a leitura deve ser discutida a partir de uma teoria. Desse modo,
credita-se ao autor um sistemtico trabalho de valorizao da leitura o qual tem por fio
condutor a necessidade do estabelecimento de teorias especficas que dem conta do
problema14.
Colocando-se sob a ptica de base psicolgica e filosfica, Silva procura delinear
esquemas de ao para o ensino-aprendizagem de leitura (1981, p. 11), centrando-se na
importncia da natureza do ato de ler e sistematizando alguns aspectos primordiais de
valorizao da leitura. Entre esses aspectos o autor destaca as condies de ordem
sociocultural e econmica, importantes para que a leitura seja praticada.
A leitura deve ser considerada uma conquista cultural, porta de acesso para a
apropriao dos bens culturais registrados pela escrita (idem, 1983, p. 22) e, somente ao
homem, atravs da linguagem, dada essa possibilidade, que o leva a constatar a realidade, a
transform-la e a utiliz-la em benefcio prprio. Ler , pois, exercitar o pensamento agindo
de forma reflexiva e crtica, para que haja uma transformao cultural e social. difcil,
porm, reconhecer que esse processo ocorra naturalmente, que est vinculado s experincias
do homem no dia a dia, e que um olhar, um cheiro, uma pintura, um toque, uma msica,
enfim tudo que est a nossa volta est sendo lido. O leitor no reconhecido como o sujeito
que l a palavra e o mundo.
A leitura s se torna importante no momento em que o sujeito alfabetizado, que
comea a ler a palavra, ou seja, a alfabetizao, considerada prioridade no processo inicial,
no , porm, suficiente para tornar um indivduo leitor. O problema da leitura, assim como
outros problemas sociais, est atrelado a uma poltica educacional, que prev, como atividade
de leitura, um texto especfico que deve ter uma interpretao nica. Dessa forma, fica difcil
admitir que a leitura seja um ato de libertao, de conscientizao, de questionamento, com o
fim de realizar o homem integralmente.
Outro aspecto importante na valorizao da leitura considerado por Silva diz respeito
trajetria do leitor, pois no mais serve o caminho j aberto que apontava a leitura como

14

Tornar o leitor apto compreender o(s) sentido(s) do texto(s) e a ser crtico e/ou criativo frente ao objeto lido e ao
mundo a que esse se refere (ZILBERMAN; SILVA, 2004, p. 115).

24

processo de decodificao, leitura mecnica que valoriza exageradamente elementos formais.


de suma importncia ir alm, possibilitar ao leitor ser sujeito de seus prprios atos
(ibidem, p. 99). necessrio entender que o processo de leitura se encaminha para a ideia de
compreenso, de interpretao e de significao, pois leitura atribuio contnua de
significados. Em Silva encontramos que
Compreender a mensagem, compreender-se na mensagem, compreender-se pela
mensagem eis a os trs propsitos fundamentais da leitura, que em muito
ultrapassam quaisquer aspectos utilitaristas, ou meramente livrescos, da
comunicao leitor-texto. Ler em ltima instncia no s uma ponte para a tomada
de conscincia, mas tambm um modo de existir no qual o indivduo compreende e
interpreta a expresso registrada pela escrita e passa a compreender-se no mundo.
(1981, p. 45)

Nessa passagem entende-se que o indivduo, ao compreender, est tornando visvel


um significado descoberto no apenas com o texto, mas com sua experincia de leitor que, ao
desvendar o pensamento do autor, cria enfrentamento entre as vrias interpretaes possveis.
Enfim, compreender sintetizar, abrindo espao para a interpretao15. , portanto, com as
experincias do leitor, com sua liberdade de compreender a realidade, que a leitura pode ser
mais produtiva, o que significa instrumento para reflexo e para crtica, atravs da atuao do
sujeito-leitor que participa ativamente do processo medida que constri um novo texto
(ibidem, p. 27). Dito de outra forma, a leitura crtica que vai mostrar quem o leitor e que
vivncias ele apresenta, sendo que sua leitura sempre ser um novo texto (SILVA, 1983, p. 74).
O autor no deixa de abordar, ainda, a questo pedaggica da leitura, pois a considera
totalmente desvinculada de uma base terica. Os educadores, que agem mais no ensaio e erro,
no tm cincia do real significado da funo da leitura no ensino, desconhecem a natureza
social da leitura, e o texto transforma-se num fim em si mesmo. Mesmo assim, importante
reconhecer que a escola um elemento de transformao que no pode ser negligenciado,
uma vez que depois de aprender a ler, mesmo que isso signifique apenas o processo de
decodificao, o aluno no perde mais essa condio. Ento, o que falta um trabalho que
reconhea o papel do autor e do leitor nessa relao de interao, mostrando que, se o autor
constri a partir de suas experincias o texto, o leitor, tambm, transforma e/ou recria um
outro texto dando significados.

15

A interpretao no nica, pois so muitos os processos de leitura que sero ativados de acordo com os objetivos
de cada leitor.

25

Segundo Silva, so, portanto, vrios os fatores envolvidos no processo de leitura, mas,
acima de tudo, a leitura uma prtica social, e o seu ensino no pode estar desvinculado de
uma posio histrico-social, pois essa se liga natureza social do indivduo.
Ainda, nesse caminho, destacamos que, se h uma preocupao com a leitura em sua
dimenso social, h tambm uma histria para essa preocupao. Por isso trazemos, a partir
das palavras de Regina Zilberman (1989), essa histria. Achamos importante destacar que a
autora tem procurado desenvolver um trabalho de descrio a respeito da histria que envolve
a formao do leitor, assim como retrata muito a formao do leitor brasileiro. Segundo
Lajolo e Zilberman, a histria da leitura est ligada ao processo16 de nascimento do leitor, o
qual personagem da modernidade, produto da sociedade burguesa e capitalista, livre dos
traos de dependncia da aristocracia feudal e do estreitamento corporativista das ligas
medievais (1996, p.9).
Para Zilberman, desde o sculo XVIII, a sociedade tem mostrado, a partir da escrita,
uma nova realidade, principalmente pela ampliao do sistema escolar e, tambm, por
questes econmicas e polticas. Assim, temos que
[...] a sociedade europia, e ocidental, por extenso, vive sob o emblema da
revoluo duradoura, que se manifesta em diferentes nveis: no econmico,
persistem as consequncias da revoluo industrial, a que se associam profundas
modificaes tecnolgicas e cientficas; no plano poltico, a revoluo democrtica
determina o avano irrefrevel das formas de participao popular, na direo de um
sistema comunitrio apoiado na igualdade entre todos os seus membros. E, enfim,
desdobra-se uma revoluo cultural, assinalada pela expanso das oportunidades de
acesso ao saber. (ZILBERMAN, 1989, p.12)

No Brasil, a sociedade leitora se forma e se fortalece a partir de 1840, poca da


monarquia17, fortalecimento esse que estava limitado, inicialmente, aos prprios escritores18,
eles mesmos criadores e leitores das obras que ali apareciam (LAJOLO; ZILBERMAN,
1996, p.18).

16

A leitura uma das primeiras manifestaes da indstria do lazer. Processo que, de um modo ou outro, foi afetado
por fatores como individualismo da sociedade burguesa, como a viso de mundo antropocntrica estimulada pela
Renascena e difundida pela filosfica humanstica, como o processo tecnolgico, com o desenvolvimento da
imprensa, a expanso da escola e do pensamento pedaggico apoiado na alfabetizao, e como o fortalecimento de
instituies culturais, entre outros (Lajolo; Zilberman, 1996, p. 9).
17

Em nosso pas, a instalao da imprensa e das escolas est relacionada s necessidades geradas pela transferncia da
Corte portuguesa para o Brasil.
18

As primeiras obras literrias procuravam dar um lugar de destaque ao leitor com o intuito de lev-lo a dar
continuidade leitura. Assim fizeram Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis entre outros, procurando
estabelecer uma certa familiaridade entre autor e leitor (ZILBERMAN, 1989, p. 24).

26

O leitor brasileiro se emancipou, e essa emancipao esteia-se na modernizao de


nossa sociedade. Se partirmos do conceito de leitor, surgido no sculo XVIII, apontamos que
sua histria comeou com a expanso da imprensa e que se desenvolveu graas ampliao
do mercado do livro, difuso da escola, entre muitos fatores. O leitor passou a existir.
Se levarmos em conta os fatores apontados, veremos que h necessidades sociais e
pedaggicas implicadas no processo: tem-se de consumir livros e jornais, quem consome tem
de ter habilidade de leitura, o que advm do fortalecimento da escola19. Eis, ento, o
nascimento do leitor.
O fazer pedaggico da leitura se constitua em ler textos exemplares, tendo como
costume a leitura em voz alta de trechos selecionados, sequencialmente se propunha
uma produo textual que contemplasse o gnero lido. Em livros didticos da
dcada de 20 h uma sequncia caracterstica da entrada do texto em aula para a
leitura. Primeiramente ocorre a leitura (silenciosa, em voz alta), seguindo-se a
interpretao atravs de questes especficas e, por fim, a produo do texto
.(ZILBERMAN, 1989, p. 12)

Apesar de, na escola, haver uma necessidade de generalizao da habilidade de ler, de


a leitura ser uma tarefa mecnica e esttica, e de que ler, desse modo, significa ascender
socialmente, preciso reconhecer que, por desencadear um processo de democratizao do
saber e dar maior acesso aos bens culturais, a escola um elemento de transformao que no
pode ser negligenciado (ibidem, p.15). O ambiente escolar pode representar, dependendo do
modo como o processo desenvolvido, a oportunidade de transformao do aluno em leitor
ou no leitor. Assim, a leitura transformadora, o leitor, dotado de reaes, de desejos e de
vontades, deve ser seduzido e convencido, no h mais lugar para o leitor como um receptor
passivo.
Consideramos, apoiados pela autora, que ler e escrever, atualmente, no tm o mesmo
valor que tinham h cinquenta anos, pois a leitura deve ser colocada como objetivo principal
no mbito escolar, o que significa levar em conta a multiplicidade cultural com finalidade de
preparao para a cidadania.
Isso posto, cabe agora encaminhar, como forma de sntese, algumas consideraes
relativas ao que temos chamado de aspectos sociais, culturais e pedaggicos da leitura.

19

No podemos deixar de destacar que o livro didtico considerado uma das condies para o funcionamento da
escola. Como apontam Lajolo e Zilberman, se a sociedade supe que a educao dos indivduos passa pela escola,
como j ocorria entre os gregos e os latinos, ento mister produzir livros para estudantes e dispor de professores,
esses tambm formados pelos livros e usurios profissionais desse instrumento (1996, p.121).

27

1.1.1 A leitura como ato social

Como dissemos anteriormente, no temos o objetivo de esgotar o tratamento dado ao


tema no mbito do recorte que fizemos, no temos nem mesmo a pretenso de sugerir que os
autores que lembramos sejam os mais representativos. Nossa escolha to somente reflete um
prisma de abordagem da questo.
Podemos, ento, dizer que, a partir dos autores antes destacados, possvel delinear
eixos comuns que norteiam uma viso eminentemente voltada aos aspectos sociais, culturais e
pedaggicos da leitura cujo fim o espao escolar. H um ponto em comum entre os autores
estudados acima: a preocupao com a dimenso aplicada da leitura. a leitura do mundo de
Paulo Freire, so os trs nveis de Martins, so os esquemas de ao para o ensinoaprendizagem de leitura de Silva20 e, em Zilberman e em Zilberman e Lajolo, a histria
dessa problemtica, delimitando a questo a partir do social e do pedaggico.
Em todos, percebemos preocupao com a leitura na sua dimenso social. Disso
deduz-se facilmente que a pergunta que nos conduz sobre a relao entre sujeito e leitura seria
respondida, no contexto dessas teorias, como uma s palavra: social. A relao suposta de
cunho social, o espao a escola, e o propsito a formao de um homem crtico. O sujeitoleitor, cuja noo est subjacente s vises tericas estudadas, um sujeito de natureza social,
enraizado na escola e oriundo de uma realidade scio-histrica complexa. por isso que
destacamos a ideia de ato, to insistentemente reiterada pelos autores investigados. A leitura
por eles concebida , antes de tudo, um ato social no qual esto implicados sujeito e realidade
scio-histrica.
De nossa parte, nada h a ser acrescentado a tais reflexes, assim como nada a ser
contraposto. Elas so absolutamente consistentes e possibilitam verdadeiros avanos no
campo nos quais esto enraizadas. No entanto, h apenas um motivo que nos faz manter
algum distanciamento, mesmo sem oposio, das reflexes acima: o fato de elas extrapolarem
a abordagem lingustica, embora pressuponham uma reflexo sobre linguagem. Os trabalhos
at aqui referidos, sem dvida, incluem a linguagem em suas consideraes, no entanto, o
fazem de maneira distante da abordagem lingustica.

20

Para estes autores a concepo de sujeito deve, atravs da educao, estar imbricada na ideologia e, assim, levar a
vivenciar experincias que remetam compreenso do mundo.

28

Muito do que foi explicitado pelos autores at aqui contemplados dever retornar em
nosso captulo final (cf. captulo 6), uma vez que l faremos uma discusso mais ampla, que
visa a contemplar a leitura na realidade da escola. Por ora, no entanto, deixaremos em
suspenso os aspectos culturais, sociais e pedaggicos ligados ao ensino da leitura, uma vez
que, em nossa perspectiva, tal ensino decorre diretamente da problematizao em torno da
noo de lngua/linguagem.
A seguir, buscamos numa perspectiva lingustica stricto sensu elementos para saber mais
sobre a relao entre sujeito e leitura, questionamento esse que norteia nossa incurso pelas
teorias.

1.2 Os aspectos lingustico-cognitivos das estratgias de leitura

Acima, vimos reflexes que consideramos relacionadas a uma perspectiva cultural,


social e pedaggica. Porm, introduzir um novo item, que busca compreender os aspectos
cognitivos envolvidos no processo de leitura, no significa, em relao aos objetivos gerais,
que vemos uma ruptura com os autores citados anteriormente. Pelo contrrio, trata-se de uma
complementaridade: cada perspectiva olha a leitura a partir de seu ponto de vista. Ao
trazermos a vertente cognitivista21 queremos dar lugar s teorias que visam a perspectivas
mais direcionadas s estratgias envolvidas no processo de leitura.
Estamos colocando sob esse enfoque lingustico-cognitivo perspectivas que, mesmo
estando agrupadas nesse item, tratam da psicolingustica, do interacionismo, da cognio, da
metacognio e dos problemas de linguagem. No nosso intento, aqui, operar uma distino
entre esses enfoques, mas abordar uma perspectiva que d relevo, no que tange leitura, s
capacidades, aos processos, s estratgias e aos esquemas que do conta do processo de leitura.
Nessa viso de leitura, uma das mais difundidas atualmente, dada nfase aos
processos cognitivos de compreenso do texto. Segundo Teixeira,

21

Sabemos que se trata de posicionamentos distintos no que diz respeito leitura cognitivo, psicolingustico,
interacional, metacognitivo, problemas de linguagem -, mas que, de uma forma ou outra, conduzem a um mesmo
objetivo, qual seja, tratar dos mtodos e estratgias de abordagem da leitura.

29

Esta perspectiva detm-se em aspectos tais como antecipao e checagem de


contedo do texto; inferncias em diversos nveis; localizao, reduo e
generalizao de informao textual; interatividade entre leitor/texto e leitor/autor,
etc. (2005, p. 8).

A leitura, nesse contexto, prioriza a atividade intelectual do leitor, sem deixar de


reconhecer que a compreenso, no ato de ler, depende do outro, pois leitor e autor constroem
conhecimento mtuo. A leitura , ento, um ato social22 em que os sujeitos interagem de
forma a conceber um sentido (ibidem, p. 8).
Mary Kato, em No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingustica (1990), a
partir de uma tica psicolingustica marcada j no ttulo, aborda a natureza dos processos que
cercam a leitura e a escrita, considerando-as como atividades de comunicao, pois o
significado do texto somente ser construdo se houver a participao dos interlocutores
envolvidos na situao. Concebe a autora que h uma multiplicidade de estratgias que os
leitores empregam para ler, uma vez que h processos de vrias naturezas envolvidos nesse
ato, processos esses que dependem de condies tais como: a maturidade do leitor, o nvel do
texto, a finalidade da leitura, a quantidade de conhecimento prvio do leitor acerca do tema e,
ainda, as particularidades de cada leitor (ibidem, p. 60).
As questes que Kato coloca em relao leitura so: o que fazemos quando lemos?
e como aprendemos a ler? Para respond-las a autora percorre vrios modelos23 tericos de
leitura, relacionados com o desenvolvimento da prpria lingustica e que partem de unidades
menores para unidades maiores. Segue-se uma descrio da leitura como decodificao24 de
palavra, como reconhecimento de sentena, para, a partir de ento, perceber-se que
impossvel no levar em conta o texto, pois nesse que a compreenso passa a ser vista como
um ato de construo, porque envolve a experincia do leitor e todo o seu conhecimento.
J em O aprendizado da leitura (1995), outro livro da autora de grande circulao no
meio acadmico brasileiro, Kato discorre mais detalhadamente sobre os processos de leitura,
enfatizando o papel da memria. O primeiro aspecto apontado o do reconhecimento
instantneo em leitura de palavras e blocos. A leitura da palavra, tanto isolada quanto
22

O termo social, nessa perspectiva, diz respeito considerao ao outro, a interao, enquanto que o social,
visto anteriormente, tem relao com a escola, com o contexto social. Neste caso, o social diz respeito a insero
do sujeito na sociedade, a incluso social, para a qual a leitura um caminho.
23

Modelos so, para Kato, concepes formalizadas do que ocorre em termos de comportamento do leitor ou no
interior inacessvel de sua mente (KATO, 1990, p. 60).
24

Segundo Teixeira havia, at bem pouco tempo, um consenso entre os linguistas de que o texto traz um sentido nico
dado pelo autor. Nesse caso, o texto deveria ser decifrado pelo leitor, o que significa reconhecer o ato de leitura apenas
como uma atividade de decodificao do sentido que est sempre no texto (TEIXEIRA, 2005, p. 8).

30

contextualizada, segundo a autora, ocorre por reconhecimento instantneo, no caso de no ser


um leitor iniciante, pois esse, por ter vocabulrio limitado, tem uma leitura baseada nas
operaes de anlise e sntese. Essa leitura da palavra25, que no pressupe necessariamente
compreenso, tem, s vezes, o perfil de antecipao acompanhada de confirmao, j que o
conhecimento prvio de restries fonticas, ortogrficas, sintticas, semnticas, entre outras,
induz a reduzir o conjunto de itens possveis de ocorrer em determinados contextos. Assim
Kato resume a leitura da palavra:
[...] a velocidade e a preciso com que uma palavra percebida, ou lida, depende: a)
da palavra estar registrada no lxico visual pela freqncia com que o leitor j foi
exposto a ela e por ter a ela acoplado o seu sentido; b) do conhecimento de regras e
imposies fonottico ortogrficas, sintticas, semntico pragmtico,
colocacionais e estilsticas a que a palavra est sujeita e do uso adequado e
suficiente dessas restries para predizer e confirmar sua forma e contedo; e c) da
capacidade de raciocnio inferencial do leitor, que lhe permite tambm antecipar
itens ainda no vistos. (KATO, 1995, p. 39)

Em seguida, Kato trata da leitura de blocos, ou unidades de significao, resultado de


processos diferentes. Primeiramente, para analisar o bloco, seria necessrio reconhecer a
palavra por meio de regras, o que levaria ao sentido da palavra e, desse, ao significado do
bloco. Nesse caso, tem-se uma operao analtico-sinttica, a qual exigiria o trabalho da
memria temporria. Segundo, seria a compreenso por respostas instantneas do bloco por
ele poder ser extrado de um glossrio mental. Aqui, tem-se o sentido global gravado na
memria permanente. Um terceiro processo de leitura de blocos diz respeito a sintagmas
recorrentes em um texto. Nesse processo a leitura passa tanto por operao de anlise e
sntese, na primeira ocorrncia, quanto por processamento instantneo, se nas outras
ocorrncias esse sintagma e seu contedo semntico estiverem presentes no estado de
conscincia do leitor (ibidem, p.45).
Kato resume isso mostrando que h trs modos de realizar a leitura de palavras e
blocos. So eles,
a) atravs de resposta instantnea diante do estmulo devido existncia do item no
acervo de palavras e blocos do armazm da memria permanente, em sua forma e
contedo;
b) atravs da resposta instantnea ao estmulo devido existncia desse item no estado
de conscincia, ou memria em mdio prazo, do leitor, em sua forma e/ou contedo;

25

A palavra est sendo considerada, aqui, isoladamente, mesmo que a autora reconhea que, normalmente, as palavras
vm contextualizadas (KATO, 1995, p. 35).

31

c) atravs da anlise e sntese dos componentes do bloco, reconhecidos por um dos


trs processos aqui hipotetizados (ibidem, p. 47).
Na sequncia, Kato apresenta o processo de decodificao, relacionado informao
nova, ao conhecimento prvio do leitor e informao j presente no texto. Toma como
parmetro os estudos da cincia da cognio e da inteligncia artificial, os quais apresentam o
processamento da informao a partir de abordagens diferentes que servem de base para
descrever tipos diferentes de leitor.
Em uma primeira abordagem, tem-se o que os pesquisadores chamam de
processamento ascendente, ou seja, processamento linear e indutivo de informaes visuais,
lingusticas que constri o significado atravs da anlise e sntese do significado das partes
(ibidem, p. 50). Nesse caso, o leitor faz pouca leitura nas entrelinhas, lento e tem dificuldade
de sintetizar as ideias do texto, pois no consegue discernir o que principal e o que
secundrio. Em outra abordagem, descendente, no linear, o leitor, que utiliza informaes
no-visuais, faz muitas adivinhaes, mas consegue apreender as ideias gerais e principais dos
textos. Esse tipo de leitor faz mais uso de seu conhecimento prvio26 que da informao dada
pelo texto. No entanto, diz a autora, o leitor ideal aquele que faz uso dos dois procedimentos
de leitura. Esses processos tm relao direta com o novo e com o j conhecido na leitura. E,
de acordo com isso, o leitor centrar sua leitura, o que significa dizer que a leitura ser mais
ascendente se as formas ou funes forem desconhecidas ou previsveis; j o processo
descendente ser priorizado se as estruturas e conceitos forem conhecidos ou passveis de
previso.
Tal reflexo continua adiante, quando Kato aponta o percurso do leitor de analisador a
reconstrutor. Nesse caminho, retoma as hipteses ascendentes, dependentes do texto, e as
hipteses descendentes, dependentes do leitor, as quais tentam precisar o comportamento de
um leitor maduro. Acrescenta, ainda, que essas hipteses somente sero vlidas medida que
se complementam, uma vez que a leitura deve ser vista como interao entre leitor e texto.
Indo alm, coloca a importncia do reconhecimento do autor do texto, ou seja, deve existir
interao entre os trs elementos: autor, leitor, texto. Kato admite que, no modelo
descendente, h o lugar do autor, o que configuraria a leitura como um ato de comunicao, o
que no significa o autor assumir o papel de interlocutor do leitor. O leitor deve, ento,

26

Conhecimento prvio seria os esquemas, isto , pacotes de conhecimentos estruturados, acompanhados de


instrues para seu uso (KATO, 1995, p. 52).

32

recuperar as estratgias utilizadas pelo autor na construo do texto, reconstruindo os


processos de sua produo (KATO, 1995:72).
O trabalho de Kato mais complexo do que nossas observaes deixam transparecer,
alm de se estender em outras publicaes (artigos, captulos de livro etc.) no referidas aqui.
No entanto, os dois estudos que contemplamos acima os mais difundidos da autora so
suficientes para ilustrar, em linhas gerais, as grandes diretrizes de um pensamento sobre a
leitura de base psicolingustica.
O que podemos notar que tais estudos esto fortemente ancorados numa ideia de
processamento que referida organizao do conhecimento e que se d via procedimentos
ligados a aspectos de percepo, memria, reflexo, entre outros.
Lcia Fulgncio (1998), em obra cujo ttulo Como facilitar a leitura, expe sua
preocupao com os problemas de aprendizagem da leitura pelos alunos. Descreve o modo
pelo qual informaes de um texto27 so apreendidas, tomando a leitura no como
decodificao, mas como compreenso, mais especificamente, seu objetivo nesse trabalho
discutir a legibilidade de um texto, definida como interao entre o leitor e o texto ou, mais
especificamente, entre o conhecimento prvio do leitor e a informao que ele capta do texto
(FULGNCIO, p. 96).
A autora desenvolve seu trabalho apontando o percurso realizado pelo leitor para
chegar interpretao do texto atravs da explicitao de fatores tais como conhecimento
lingustico, conhecimento prvio, conhecimento de mundo, motivo e interesse na leitura que
levam o leitor a construir um sentido para o texto. Nessa trajetria, retoma pontos como
informao visual e informao no visual, enfatizando que a primeira no suficiente para
realizar a leitura com compreenso, uma vez que apenas integradas podero levar a um
sentido para o texto.
Segundo Fulgncio, o leitor precisa ter informaes dos dois tipos, pois emprega o seu
conhecimento prvio (lingustico e no lingustico), ou informao no visual, para prever
parte da informao visual contida no texto (ibidem, p. 15). Nesse caso, considera-se a
informao visual como um processamento ascendente, ou seja, a leitura parte do texto para o
leitor; ele procura no texto todas as informaes, sendo desse modo uma leitura vagarosa e

27

A autora refere-se ao texto didtico, considerado o nico material acessvel para leitura em sala de aula. Sendo assim,
a ideia melhorar sua qualidade e apresentar hipteses sobre os fatores que constituem a dificuldade de leitura desse
tipo de texto.

33

pouco fluente. A informao no-visual consiste no processo descendente, pois o leitor no


depende exclusivamente do texto; ele colabora com seu conhecimento, fazendo muitas
adivinhaes e, muitas vezes, pode no confirm-las com o que o texto apresenta. O ideal
seria o leitor combinar os dois processos de modo a fazer uma leitura fluente do texto.
J em Leffa (1996) encontramos, a partir de um trabalho descritivo sobre o processo
de leitura, a apresentao de alguns conceitos bsicos de leitura, considerados em uma
perspectiva psicolingustica, abarcando tpicos como teorias dos esquemas, metacognio,
entre outros. O autor, ao definir a leitura a partir dessa perspectiva, parte da descrio do
encontro do leitor com o texto levando em conta tanto o enfoque lingustico, psicolgico,
social, fenomenolgico etc. quanto o grau de generalidade com que se queira conceituar o
termo. O objetivo da reflexo sobre leitura centra-se no processo que se desencadeia durante o
ato de leitura, com o intuito de chegar ao produto final, que a compreenso.
Numa definio mais geral, que abarca o sentido da viso, Leffa diz que a leitura
funciona como um espelho, pois, ler , na sua essncia, olhar para uma coisa e ver outra
(1996, p. 10). Desse modo, ler um processo de representao no qual os elementos da
realidade fazem intermediao para que se chegue a outros elementos. No existe acesso
direto da leitura realidade, pois olhar para uma casa no significa ver a casa, mas as leituras
que se faro do objeto casa a partir do ponto de vista, por exemplo, do engenheiro, do
socilogo, do arquiteto, do ladro. A leitura nesse caso acontece por meio de outros elementos
da realidade. Nessa triangulao da leitura, o elemento intermedirio funciona como um
espelho; mostra um segmento do mundo que normalmente nada tem a ver com sua prpria
consistncia fsica. Ler , portanto, reconhecer o mundo atravs de espelhos.
Outras definies consideradas mais restritas de leitura, que dizem respeito ao enfoque
dado ao processo de leitura, so apresentadas pelo autor tendo em vista a direo de sentido.
Numa direo, tem-se o sentido do texto para o leitor, sendo, nesse caso, o texto mais
importante. Noutra direo, do leitor para o texto, a importncia est no leitor. No primeiro
caso ler extrair significado do texto e, no segundo, ler atribuir significado ao texto.
Na primeira direo, leitura como extrao, o texto possui um nico e verdadeiro
significado, impossibilitando o leitor de construir o seu prprio significado; o leitor transfere
o contedo do texto para ele. Nesse caso a leitura um processo ascendente, medida que o
sentido sobe do texto para o leitor, e que o significado vai se acumulando no leitor sem
possibilidade de o contedo do texto se reproduzir nele. Para Lefffa, o texto no possui um

34

contedo, mas reflete-o como um espelho. Um mesmo texto pode refletir vrios contedos,
como vrios textos podem refletir um s contedo (1996, p. 13), o que demonstra ser o
conceito de extrao de significado insuficiente para entender o processo de leitura e sua
definio.
Na segunda direo, leitura como atribuio de sentido ao texto, a direo do sentido
vai do leitor para o texto, um processo descendente. A realidade no est presente no texto,
apenas refletida por ele, pois essa leitura, que atribui significado, depende da experincia de
cada leitor, o que far com que cada um tenha, para um mesmo texto, leituras diferentes28.
Considerar esse tipo de leitura requer que se pense em um leitor que detenha, alm da
competncia lingustica29, competncia especfica da realidade histrico-social refletida pelo
texto (ibidem, p.160).
Leffa, ao descrever esse encontro do leitor com o texto, enfatiza que pensar o ato de
leitura a partir da importncia dada ao texto (extrao de significado) ou ao leitor (atribuio
de significado) no reconhecer a complexidade do processo, uma vez que preciso levar em
conta que ler interagir com o texto o que s ocorrer se houver entendimento do que se d
na relao entre o leitor e o texto. O autor compara o processo de interao a uma reao
qumica; ou seja, para que um ou outro acontea necessrio considerar no apenas os
elementos envolvidos como tambm as condies necessrias para que a reao se d. Desse
modo, para que haja a compreenso no so suficientes leitor e texto, h necessidade do
conhecimento prvio do indivduo e determinados dados da realidade. olhando para essas
condies que se reconhece os mltiplos processos envolvidos no ato de ler. Assim, deve-se
constatar que a interao o principal caminho para discutir o percurso que leva o leitor a
compreender um texto. impossvel falar de leitura sem discutir a interao que se institui
entre leitor e texto, leitor e autor ou leitor e outros leitores, considerando o que acontece entre
os envolvidos.
Pode-se, com Leffa, destacar o percurso, para compreender um texto a partir da
interao. Primeiramente, ele destaca a necessidade de o indivduo possuir uma representao

28

Dizer que cada leitor, a cada vez, faz uma nova leitura, construindo um novo significado, no significa que qualquer
leitura seja legtima ou possvel. Haver sempre um limite produo do leitor, limite este que ser especificado pela
prpria disposio dada ao texto pelo autor (ORLANDI, 1987).
29

Significa possuir competncia sinttica, semntica e textual.

35

do mundo, que se define como teoria de esquemas30, pois tanto o leitor deve possuir
conhecimento de mundo como o autor deve supor ter o leitor esse conhecimento. A base
dessa teoria est em que a compreenso acontece a partir de uma representao internalizada
de mundo que cada indivduo tem, sendo desnecessrio que o autor detalhe todos os aspectos
do texto, deixando espao para que o leitor contribua de modo a complementar as lacunas
deixadas pelo autor. O papel do leitor na compreenso , desse modo, acionar seu
conhecimento de mundo.
Outro aspecto abordado por Leffa a metacognio, habilidade do leitor de refletir em
relao a sua compreenso, mostrando a necessidade do uso de estratgias. A metacognio,
diferentemente da cognio, leva o leitor a uma postura de compreenso, ou seja, o leitor se
concentra, conscientemente, no processo que o levar ao contedo do texto. Esse processo
leva o leitor a definir objetivos para a leitura, a distinguir parte mais ou menos importantes do
texto, a avaliar, qualitativamente, seu entendimento, percebendo o momento em que deve se
concentrar mais, devido a alguma dificuldade, reconhecendo o momento de reler um trecho.
Como vimos em Leffa, o leitor, ao encontrar o texto, no deve apenas procurar o
sentido que ele pensa j ter sido determinado pelo autor; na verdade, o leitor, com seu
conhecimento e na interao com o autor e com o texto, que construir um sentido para esse
texto. Leffa apresenta alm de conceitos para o ato de ler, processos e estratgias que levam o
leitor a construir o seu significado.
Podemos dizer que, para essa perspectiva, o uso autnomo e eficaz de processos e
estratgias de leitura leva o leitor a, de maneira global, extrair o significado do texto,
reconduzir sua leitura, avanando ou retrocedendo no texto, conectar os novos conceitos com
os conhecimentos prvios o que lhe permitir incorpor-los a seu conhecimento.
Assim, desvendar e analisar os processos e as estratgias envolvidos na leitura atravs
de atividades de metacognio, como aponta Leffa, significa que os leitores devem ser
conduzidos na conscientizao dessas estratgias de modo que consigam verificar as relaes
ou as intenes estabelecidas entre autor e leitor; significa, tambm, reconhecer as variaes
lingusticas que possam constituir-se em indicadores da inteno do autor, e distinguir, na
estrutura do texto, um maior ou menor grau de dificuldade.

30

Os esquemas so estruturas abstratas, construdas pelo prprio indivduo, para representar a sua teoria do mundo. A
base da teoria dos esquemas est na aprendizagem que no vem apenas de fora, mas vem tambm de dentro, e tem
tradio na histria do pensamento ocidental, com Plato e com Chomsky (LEFFA, 1996, p. 26).

36

O conhecimento dos processos e estratgias utilizados, quando da compreenso de


texto, tanto contribui para a formao de leitores quanto remete reflexo sobre o prprio
saber, isto , atividade metacognitiva. desse modo que Angela Kleiman apresenta sua
proposta de trabalho quando da apresentao da obra Texto e leitor: aspectos cognitivos da
leitura (1989). Nesse trabalho, a autora, ao tratar da compreenso de textos escritos, aponta a
impossibilidade de se ensinar leitura uma vez que esta se constitui como um processo
cognitivo. Kleiman especifica que
A leitura tem sido chamada a atividade cognitiva por excelncia pelo fato de
envolver todos os processos mentais. A compreenso de um texto (seja ele escrito
ou falado) exige o envolvimento da ateno e a percepo, a memria e o
pensamento (1999, p. 126).

A compreenso de textos est atrelada a vrios processos cognitivos e, como tal, no


pode ser ensinada, mas desenvolvida atravs de estratgias que levem ao entendimento da
complexidade do ato de compreender e do caminho percorrido pelo leitor a fim de construir
um sentido para o texto. A autora destaca, ento, a importncia da explicitao de processos
de leitura, os quais envolvem percepo, processamento, memria, inferncia, deduo
(KLEIMAN, 2004, p. 7).
A interao, tambm tratada em Kleiman (1989), vista como uma relao distncia
entre autor e leitor via texto, um processo complexo e importante para o desenvolvimento de
um sujeito-leitor, que deve participar ativamente para que se realize a leitura. Esclarece,
porm, que a interao deve ocorrer em todos os nveis de anlise, sendo preciso considerar o
inter-relacionamento entre o processo que vai do texto ao leitor (bottom-up) e o que vai do
leitor ao texto (top-down). Nesse caso,
[...] a interao se ope aos modelos de processamento, bottom-up e top-dow, que
estipulam, essencialmente, estgios a partir de hipteses baseadas no conhecimento
lingustico e enciclopdico do leitor. Nos modelos interativos, ambos os tipos de
processamento se inter-relacionam no processo de acesso ao sentido. (KLEIMAN,
2004, p. 31)

Ao assumir uma postura interacionista, Kleiman aponta a necessidade de uma base


discursiva que envolva no s o processo cognitivo, mas tambm o processo cooperativo de
produo de um texto durante a leitura, o que significa reconhecer que h uma troca constante
entre o leitor, com seu conhecimento variado, e o texto, para que haja compreenso. O leitor
contribui medida que ativa seu conhecimento prvio, o qual abarca os nveis lingustico,
textual e de mundo. Para Gurgel (2008), o leitor, medida que l e, portanto, projeta sobre o
texto o seu conhecimento de mundo, seu conhecimento textual e linguageiro, vai tecendo com
o outro, atravs do texto, sua individualidade (2008, p. 207).

37

Esse conhecimento possibilita ao leitor construir o sentido do texto, o que o torna ativo
na construo da compreenso. Assim, o leitor no apenas um recebedor da informao uma
vez que a partir do conhecimento mtuo entre leitor e autor que se estabelece o sentido do
texto.
Porm no basta que o leitor contribua com seu conhecimento, outros caminhos
devem ser percorridos para alcanar a compreenso. Um dos caminhos so as estratgias
metacognitivas, que dizem respeito atividade consciente de reflexo e controle sobre o
prprio conhecimento, sobre o prprio fazer, sobre a prpria habilidade. Nesse caso o leitor
deve determinar objetivos especficos e finalidades para o ato de ler, a fim de que o texto
possa interessar-lhe, e, para isso, faz-se necessrio perceber que os objetivos devem ser
diferentes para cada tipo de leitura.
devido ao papel das estratgias metacognitivas na leitura que podemos afirmar
que, apesar das diferenas j discutidas, a leitura um processo s, pois diferentes
maneiras de ler (para ter uma ideia geral, para procurar detalhes) so apenas diversos
caminhos para alcanar o objetivo pretendido. (KLEIMAN, 1984, p. 35)

Ainda, necessrio reconhecer a importncia de uma leitura que no pretenda apenas


o aprendizado, mas que desenvolva o desejo, o prazer, a percepo da importncia de ler. O
leitor precisa de um incentivo para compreender o ler como uma questo tambm de prazer.
Outro caminho desvendado por Kleiman (1984, p. 45), a partir da perspectiva
cognitiva abordada, diz respeito aos componentes textuais, os quais orientam a construo do
significado. Aqui, a autora destaca elementos lingusticos, tais como categorias lexicais,
sintticas, semnticas, estruturais, que servem para materializar os diversos elementos de
significao da unidade semntica, que o texto. A leitura pode se tornar mais fcil quando o
leitor, que responsvel por construir um significado para o texto, consegue desvendar a
ligao entre esses elementos. Destacam-se, nessa perspectiva, aspectos de coeso e de
estrutura textual, sendo o primeiro um processo inferencial de natureza inconsciente
(ibidem, p. 62).
A leitura no apenas a anlise das unidades que so percebidas para, ento, chegar a
uma sntese. Tambm com a sntese, o leitor procede anlise para verificar suas hipteses
em um processo que, repetidos, tanto os dados da pgina como o conhecimento do leitor
interagem com fontes de dados necessrios compreenso (KLEIMAN, 2004, p. 17-18).
Aps essa explanao sobre estratgias do leitor para dar significado ao texto, a partir
de pistas formais, ao suscitar hipteses, ao concordar e discordar, ao assumir e repelir

38

concluses sem troca direta com autor, necessrio reconhecer que tambm o autor trabalha
para manter a ateno do leitor. o autor que tenta argumentar adequadamente, escolhendo
os elementos formais de modo a abrir caminho para que o leitor possa alcanar seu objetivo:
compreender.
Pensar, portanto, na interao entre autor e leitor via texto requer de ambos, autor e
leitor, uma espcie de acordo, pois a compreenso31 no apenas um ato cognitivo, tambm
a relao social entre dois sujeitos que atravs do texto interagem entre si.
Os textos podem ser compreendidos levando-se em considerao o carter da
interao entre autor e leitor, pois o autor se prope a fazer algo, e quando essa
inteno est materialmente presente no texto, atravs das marcas formais, o leitor
se dispe a escutar, momentaneamente, o autor, para depois aceitar, julgar, rejeitar.
(KLEIMAN, 2004, p. 19)

preciso, portanto, reconhecer que o ensino de leitura deve estar centrado em uma
postura interacionista, relao autor/leitor via texto, considerando uma fundamentao
terico/prtica que reconhea o leitor enquanto sujeito e no simplesmente como
decodificador. Ler , portanto,
Apropriar-se de um conjunto de habilidades lingusticas e psicolgicas (cognitivas e
metacognitivas) que, alm de relacionar smbolos escritos e unidades de som, ,
principalmente, um processo de construir sentidos e relaes ((inter)textualidade),
interpretaes de textos diversos, dialogicamente no sentido bakhtiniano, adentrando
no dizer do outro. (COSTA, 2002, p. 58)

Explicitadas, em linhas gerais, as grandes preocupaes do entendimento da leitura


pelo vis lingustico-cognitivo, cabe recolocar a questo feita por ocasio da anlise dos
aspectos culturais, sociais, pedaggicos ligados ao ensino da leitura agora deslocada para o
contexto de avaliao da lingustica cognitiva , que nos conduz na anlise que temos
empreendido das teorias: como a lingustica de base cognitiva formula a relao entre sujeito
e leitura? Falemos sobre isso.
A partir desses estudos, a leitura passou a ser vista como produo mediada pelo texto
em seu processo de significao e de construo do conhecimento. Trata-se de uma viso na
qual o indivduo, como ser psicolgico, desenvolve suas habilidades cognitivas; e, como ser
social, insere-se em determinadas prticas histrico-sociais de leitura.

31

A compreenso est relacionada maneira como o autor constri o texto e de como o leitor constri e reconstri o
significado. Assim, o significado representado por um autor em um texto e construdo a partir de um texto pelo
leitor. O significado est, ento, no autor e no leitor.

39

1.2.1 A leitura como estratgia de conhecimento

Como possvel notar, fomos muito mais detalhados na apresentao dos aspectos
cognitivos da leitura do que fomos com relao perspectiva anterior. E isso se deve a uma
razo: as teorias que subsidiam essas reflexes so fortemente ancoradas nos estudos
lingusticos da linguagem, o que toma uma importncia singular no contexto desta tese,
tambm comprometida com os estudos lingusticos.
Ora, no podemos ignorar que, na perspectiva acima explicitada, h considerao
leitura por um vis bastante complexo, no qual esto presentes aspectos fundamentais do
processo de leitura: conhecimentos prvios de mundo e lingusticos; estratgias de leitura;
objetivos; aspectos interacionais, nos quais esto presentes autor/texto/leitor. Nessa
perspectiva a compreenso pode ser vista como um ato de construo, porque envolve todo o
conhecimento e a experincia do leitor sem, no entanto, desconsiderar as diversas abordagens
que servem de base para descrever tipos diferentes de leitor. O leitor atribui sentido ao texto
ativando um conjunto complexo e variado de habilidades lingusticas e cognitivas. Mesmo
que o sujeito leitor seja visto como o foco do processo, importante destacar a leitura como
interao entre leitor e texto e, mais ainda, o reconhecimento de que deve existir interao
entre os trs elementos: autor, leitor, texto32.
Assim, podemos responder nossa questo como a lingustica de base cognitiva
formula a relao entre sujeito e leitura? apontando que, nessa perspectiva, o sujeito que
est presente no processo de leitura um sujeito de conhecimento (prvio, lingustico etc.).
No apenas as noes de interao, ao e de cognio, metacognio se fazem
presentes nessa perspectiva, mas tambm discutida a relao do sujeito com a linguagem.
Para os autores da lingustica cognitiva, importa ressaltar, impossvel falar de leitura sem
discutir a interao que se constitui entre leitor e texto, leitor e autor ou leitor e outros leitores,
considerando o que acontece entre os envolvidos. O sujeito traz consigo fatores como
conhecimento de mundo, conhecimento lingustico, conhecimento prvio, motivo e interesse

32

Acreditamos que se fixar apenas na leitura como ato produtor de significados ou, ainda, pesquisar graus de
apreenso da informao presentes no texto, considerar nveis e mtodos para realizar a leitura de uma forma
aproveitvel no suficiente para que se apreenda o processo de leitura como um todo. A leitura no , pois, uma
forma de codificao ou de decodificao. Ler reconhecer trs elementos fundamentais: o autor (e a escritura), o
texto (e a escrita) e o leitor (e a leitura). Elementos indissociveis, ainda que possam, por motivo terico ou
metodolgico, serem separados (CARROLL, 1989, p. 53).

40

na leitura e, na interao com autor e texto, consegue construir um significado para o texto.
enfim um sujeito33 do conhecimento, um sujeito das estratgias e, como tal, deve assumir
uma posio ativa diante do texto.
Sem dvida, se estamos em busca de uma concepo de leitura, de base lingustica
stricto sensu, que contemple a relao sujeito/leitura, podemos dizer que os estudos agora
apresentados no escopo da viso cognitiva fornecem essa concepo. No entanto, adiantamos
que no assumimos essa perspectiva.
Que motivos nos levam ao distanciamento da abordagem cognitivista da leitura?
Ora, h muitas diferenas entre uma viso cognitiva e uma viso enunciativa base
desta tese. Ns precisaremos aqui apenas uma34, fundamental para a proposta que queremos
construir: a noo de sujeito, sujeito esse que se constitui na leitura a partir de sua
singularidade.
A discusso sobre leitura que apresentamos at aqui supe, como no poderia deixar
de ser, um sujeito cognitivo, de conhecimento que, conforme Maraschin e Shffer (1994),
refere-se construo de conhecimentos sobre o meio exterior e sobre ele mesmo a partir do
que so possveis, por exemplo, a gesto, a conservao e aquisio dos conhecimentos.
Como dissemos, esse sujeito, para ler, depende de estratgias, conhecimentos prvios etc.
Tal abordagem se distancia do que queremos propor: nossa tese busca ver a leitura
como um ato de enunciao decorrente da relao eu tu ele aqui agora atravs do
texto. Na direo que tentaremos desenvolver adiante, ler enunciar, ou seja, um
ato/processo que deixa marcas de quem o produz. Como se pode ver, h diferenas
epistemolgicas fundamentais.
Passamos, a seguir, a outra possibilidade de abordagem da leitura, essa, tambm,
bastante difundida nos estudos da linguagem no Brasil: a discursiva.

33

Pensar o sujeito leitor, nessa perspectiva, aponta para a identificao do leitor com o texto, considerando que o autor,
ao produzir o texto, pensa no leitor como coprodutor, pois tem a possibilidade de criar outros textos.
34

Haveria muitas outras, por exemplo: as noes de linguagem, contexto e interao. No entanto, neste momento, nos
interessa menos fazer uma argumentao de base contrastiva e mais ilustrar nossa diferena a partir de uma
especificidade: o sujeito.

41

1.3 Os aspectos discursivos

Falar em discurso no significa apenas trocar o termo texto por discurso35. No


texto, manifestam-se diferentes discursos, que coexistem para o sujeito leitor. No texto, visto
como unidade significativa, como produto de um discurso, como o ponto de partida para o
reconhecimento da trajetria do sujeito, encontram-se as pistas que remontam materialidade
histrica posta na origem de sua produo.
A lngua afetada pelos processos sociais que, longe de deix-la impune aos seus
movimentos, acabam por modific-la: se os processos sociais modificam a lngua,
tambm a histria se v afetada pelo equvoco. A lngua possui, portanto, uma dupla
materialidade, lingustica e histrica, e no mais simples instrumento de
comunicao, entendida, na Anlise do Discurso (AD), como o lugar em que
efeitos de sentido se realizam. (DE NARDI, 2003, p. 70)

, nesse caminho, em um movimento de reproduo e transformao, que o sujeito


atualiza esta materialidade. O discurso , ento, a prtica lingustica de um sujeito em
determinadas condies de produo (sociais, polticas, histricas, etc.) (GALLO, 1992, p.
27). Para o discurso interessa, portanto, lngua em funcionamento para a produo de sentido.
Definido o discurso, reconhecemos que esse se caracteriza a partir de dois elementos:
o sujeito e as condies de produo.
O discurso no se reduz a um processo em que algum, atravs de um cdigo, fala
sobre alguma coisa para algum, que decodifica a mensagem. O discurso, antes,
pressupe funcionamento da linguagem e pe em relao sujeitos afetados pela
lngua e pela histria, em um complexo processo de constituio desses sujeitos e de
produo de sentidos. (GRANTHAM, 2009, p. 34)

Isso demonstra que o discurso linguagem em funcionamento, o que o faz se


distanciar de teorias que tratam do processo de comunicao. Para a Anlise do Discurso
interessa, no funcionamento da linguagem, a relao dos sujeitos afetados pela lngua e pela
histria. O discurso o lugar em que se observa a relao entre lngua e ideologia, e a lngua
quem produz sentidos por e para os sujeitos (GRANTHAM, 2009, p. 26).
Nessa perspectiva, o ato de ler visto como um processo discursivo no qual se
inserem os sujeitos produtores de sentido o autor e o leitor ambos scio-historicamente

35

Discurso como atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados (MAINGUENEAU, 1998, p. 43).
Falando de discurso, articulamos o enunciado em uma situao de enunciao singular; falando de textos, destacamos
o que lhe d sua unidade, que faz dele uma totalidade e no uma simples sequncia de frases (MAINGUENEAU,
1998, p. 141-142).

42

determinados e ideologicamente constitudos36 (CORACINI, 2002, p. 15). A leitura,


considerada a partir de aspectos discursivos, segundo Orlandi (2006), no deve ser tratada
apenas como mais um contedo escolar37, em que se enfatiza o seu carter tcnico imediatista,
ou unicamente a partir dos aspectos lingusticos, pedaggicos e sociais, individualizando cada
uma dessas perspectivas, tornando-as absolutas ou, ainda, tratando-a como um processo de
interao que considera apenas a relao entre leitor e texto. A leitura est na relao entre os
homens, relaes sociais, em que a interao se d no confronto entre dois leitores: um
virtual, previsto pelo autor no momento de produo do texto, e um real, o que realmente l o
texto e que j encontra esse leitor (virtual) constitudo.
[...] Em termos do que denominamos formaes imaginrias em anlise de
discurso, trata-se aqui do leitor imaginrio, aquele que o autor imagina (destina)
para seu texto e para quem ele se dirige. Tanto pode ser um seu cmplice quanto
um seu adversrio. (ORLANDI, 2006, p. 9)

Para Orlandi (2006), o ponto de partida considerar a leitura como produo, ponto
esse que surge de indagaes sobre a legibilidade de um texto38: o que faz com que um texto
seja legvel, e o que um texto legvel39? Essas questes servem para julgar qualitativamente
um texto, desconhecendo que, para falar de legibilidade, necessrio reconhecer a relao
entre autor e leitor mediados por sua histria. Assim, a linguagem no um produto, mas um
processo e, dessa maneira, no pode ser vista separada da sociedade que a realiza, pois o que
constitui o processo de significao o lugar social dos interlocutores.
A leitura, para a teoria da Anlise do Discurso, uma relao entre linguagem,
sujeitos e contexto histrico-social, e sua produo engloba autor e leitor, que se instauram
como sujeitos e que, em relao com o sentido, so elementos de um mesmo processo, o da
significao. Somente os sujeitos, inundados em um determinado contexto scio-histrico
(ideolgico), e em determinadas condies de produo, podem determinar a leitura.

36

Conceito tomado da Anlise do Discurso, de linha francesa, que se centra no social e no histrico como constitutivo
do discurso. Nessa perspectiva, o sujeito produz sentido a partir do lugar que ocupa.
37

A leitura, na perspectiva pedaggica, nunca livre, h sempre uma direo determinada para ler. Diferentemente a
leitura do leitor (de modo geral, no do aluno) que sempre livre porque no pode contorn-la, ela resiste sempre;
sempre diferente, sempre outra, pois as condies de leitura diferem de leitor para leitor. ele, o leitor, quem
produz os sentidos e no simplesmente os recebe, como se a linguagem fosse transparente (MUTTI, 2003, p.1314).
38

Na AD, o objeto terico o discurso, e o objeto emprico (analtico) o texto, definido pragmaticamente como uma
unidade complexa de significao, consideradas as condies de sua produo.
39

Grantham (2009), em estudo da leitura pelo vis da pontuao (2009, p. 36), acredita que no basta questionar sobre
a legibilidade de um texto. importante destacar, sim, que a legibilidade tanto pode estar como no estar no texto,
uma vez que esse problema deve ser pertinente para a relao que se estabelece entre o texto e quem o l.

43

preciso, portanto, considerar, para a produo de leitura, componentes tais como a


ideologia, os diferentes tipos de discurso, a distino entre leitura parafrstica e polissmica,
e, ainda, as histrias da leitura do texto e as histrias das leituras do leitor (ORLANDI, 2006,
p. 38). essa, ento, a perspectiva discursiva delineada por Orlandi a respeito da
contextualizao da leitura que se configura permeada por questes de poder, de relaes
sociais, de formaes ideolgicas, fatores esses que possibilitam reconhecer a leitura como
produto de uma multiplicidade de sentidos, os quais so determinados pela posio que
ocupam aqueles que o produzem (ibidem, p. 12).
Para a autora, dizer que toda a leitura tem sua histria significa reconhecer as
diferentes leituras que podem ser feitas de um mesmo texto em diferentes pocas, de
diferentes tipos de discursos, de diferentes classes sociais, de idade, de sexo, enfim, no existe
uma leitura nica, toda a leitura est atrelada a fatores diversos. Inclui-se a a constituio
histrica do sujeito na sua relao com a leitura. Esse sujeito aparece como sendo capaz de
produzir sua leitura, uma vez que ele traz consigo a histria de outras leituras, o que lhe
possibilita tanto a livre escolha do sentido quanto reconhecer os impedimentos impostos pelas
regras institucionais40. Isso significa que
[...] quando lemos estamos produzindo sentidos (reproduzindo-os ou transformandoos). Mais do que isso, quando estamos lendo, estamos participando do processo
(scio-histrico) de produo dos sentidos e o fazemos de um lugar e com uma
direo histrica determinada. (ORLANDI, 2004, p. 59)

importante que o leitor reconhea seu papel na produo de sentidos, assim como
entenda que na leitura o que ocorre so efeitos de sentido entre interlocutores, sentidos esses
que no pertencem nem ao autor nem ao leitor, pois se encontram na troca entre um e outro.
Referir a histria leva a entender os limites entre o que a autora explicita como leitura
parafrstica e leitura polissmica, considerando-se que permite ao leitor, no caso do primeiro
tipo de leitura, recuperar o sentido que se supe ser o do texto e, no segundo caso, criar
novos sentidos para o texto, sentido(s) sempre permeado(s) pela histria do sujeito leitor.
O sujeito-leitor aproxima-se do texto a partir de seu papel social, de sua posiosujeito, e o observa luz de seu contexto scio-histrico cultural, poltico e
econmico. Mas no apenas isso. Aborda-o igualmente ao abrigo de sua histria de
leituras e de outros discursos que ressoam desde o interdiscurso, atravessando-se em
sua leitura. (INDURSKY, 2001, p. 37)

40

Mesmo que se fale em mltiplos sentidos, h de se considerar que a linguagem regulada por fatores sociais: no se
diz o que se quer, em qualquer situao, de qualquer maneira (ORLANDI, 2006, p. 86).

44

Falar em interdiscurso reconhecer que h um j-dito, e que o sujeito, embora acredite


ser a fonte de seu discurso, apenas o suporte e o efeito dele.
Apoiando-nos ainda em Orlandi (2004), vimos que leitura podem ser atribudas
diversas acepes, entre as quais o modo como funciona discursivamente a compreenso,
diretamente ligada constituio dos processos de significao. Entende a autora que o
processo de compreenso est atrelado produo de sentido, e essa realizada pelo leitor a
partir de sua condio scio-histrica determinada, isto , a compreenso se instaura no
reconhecimento de que o sentido scio-historicamente determinado e est ligado formasujeito que, por sua vez, constitui-se pela sua relao com a formao discursiva41
(ORLANDI, 2004, p. 73).
Maria Jos Coracini, em O jogo discursivo na aula de leitura, aps discutir algumas
posturas tericas referentes leitura, apresenta a leitura como um processo discursivo,
considerando discurso como conjunto de enunciados possveis numa dada formao
discursiva42, em que os sujeitos determinam as condies de exerccio da funo enunciativa
(CORACINI, 2002, p. 17). Para a autora, o texto o produto do processo discursivo, o
sentido no est no texto, e o sentido jamais poder ser o mesmo, uma vez que deve o leitor
contribuir com sua formao, com seu contexto scio-histrico. Saber ler saber o que o
texto diz e o que ele no diz, mas o constitui significativamente. Desse modo o sentido
construdo, e o papel do sujeito determinante nessa construo. Isso interpretao.
A interpretao, para a AD, est na prpria base da constituio do sentido. No h
sentidos dados: estes so construdos por/atravs de sujeitos inscritos numa histria,
num processo simblico puramente descentrado pelo inconsciente e pela ideologia.
(RODRIGUEZ, 2003, p. 51)

Nessa perspectiva, no o texto que determina as leituras, como pretendem algumas


vises tericas, mas o sujeito (ou, ainda, as posies-sujeito) como participante de uma
determinada formao discursiva, sujeito clivado, heterogneo.

41

Formao discursiva o lugar da construo do sentido. O sentido no existe a priori, mas determinado pelas
posies ideolgicas dos envolvidos na produo do discurso. um conceito-chave para o analista do discurso, uma
vez que ele que permite reconhecer o modo de inscrio histrico pelo qual uma disperso de textos pode ser
definida como um espao de regularidade enunciativa (ORLANDI, 2004, p. 73, cf. Maingueneau, 1984).
42

Formao discursiva, conceito base da AD, ligada diretamente ideologia, o espao da constituio do sentido.
Estabelecida a partir de certas regularidades, caracteriza-se tanto pela identidade quanto pela diversidade.

45

1.3.1 A leitura depende das condies de produo

Retomando, ento, a questo que nos conduz sobre a relao entre sujeito e leitura,
podemos, com base nessa perspectiva terica, dizer que a concepo de sujeito muda muito
em relao s perspectivas anteriores. O sujeito (autor/leitor), apesar de no ser considerado
origem do seu dizer, o centro do processo, visto como (re)produtor de sentidos. O sujeito e o
discurso esto intrinsecamente ligados. O sujeito, constitudo ideologicamente, quem
determina a leitura, tendo em vista as condies de produo. O sujeito efeito de sentido,
inserido em um tempo e em um espao socialmente delimitados.
Podemos, assim, considerar que, pelo vis da Anlise do Discurso43, a leitura decorre
de uma atividade histrico-social constituda. A exemplo do que dissemos quando tratamos da
leitura em seus aspectos lingusticos e cognitivos, no nos opomos configurao terica
desenvolvida no campo da Anlise do Discurso. No entanto, ela tambm se distancia do ponto
a que queremos chegar. E isso por um motivo: a Anlise do Discurso enfatiza muito mais o
que chama de condies de produo da leitura que as operaes lingusticas implicadas pela
atitude de um sujeito no ato de ler. E esse ltimo ponto que mais nos chama a ateno.
Partimos do ponto de vista segundo o qual ler um ato de produo de sentidos no
qual a locutor marca-se como sujeito. Para ns, ler enunciar, e esse ato/processo tem
marcas: as marcas enunciativas da leitura. delas que trataremos mais adiante.

1.4 Encaminhamentos

Tecidas as consideraes anteriores, preciso reconhecer que o tema da leitura


multifacetado e necessita ser discutido a partir de vrias perspectivas. Assim,
independentemente da perspectiva seguida, importante destacar que todas se preocupam em
apresentar um modo de desenvolver e explicar o fenmeno da leitura. Dessa maneira, sem
desconsiderar a importncia dos trabalhos expostos acima, buscamos outro caminho para

43

Enfatizamos que a Anlise do Discurso se vale da lingustica como um dos eixos que a sustenta. Trata-se de estudos
discursivos que no so apenas lingusticos.

46

abordar a questo. Um caminho que se centre principalmente no sujeito e em sua relao com
a linguagem.
importante ressaltar que, com os progressos da lingustica, novas perspectivas se
abriram no que diz respeito leitura. No mais apenas pela decodificao ou pelo
entendimento dos elementos postos no texto que ir ser tomado o ato de leitura. Hoje em dia,
na lingustica brasileira, encontramos uma viso de leitura como ato de linguagem em que
autor e, principalmente, leitor cujo papel era ser passivo no processo passam a ser
considerados elementos essenciais para a produo dos sentidos para o texto.
Acreditamos, pois, que, se a leitura envolve aspectos sociais, cognitivos, culturais,
entre outros, no menos verdade que ela seja ato de constituio de sentido produzido por
um sujeito. Logo, nada mais pertinente do que verificar que aspectos de marcao do sujeito
esto envolvidos no ato de produo da leitura.
Contribuir teoricamente com a discusso, mostrar que h algo mais a acrescentar.
imprescindvel reconhecer que falta falar no sujeito, sujeito esse que se constitui na leitura a
partir da singularidade; ele l e, ao ler, constri outro texto, o seu texto.
Desse modo, buscamos contribuir teoricamente para a discusso do tema da leitura, ou
seja, somar algo ao j existente. Pensamos em mostrar que a leitura tambm uma produo
do sujeito e, como tal, pode ser explicada num referencial lingustico que se apoia no sujeito,
no caso, a enunciao.
Fazem-se, desse modo, relevantes as seguintes questes, agora, para continuarmos
nossa reflexo: que aspectos de marcao do sujeito estariam envolvidos no ato de produo
de leitura? Em que termos podemos pensar a leitura como um ato enunciativo?
A partir da discusso de como as diferentes abordagens pensam a relao entre sujeito
e leitura, de como o leitor participa ativamente do processo de leitura medida que constri
um novo texto, de como o leitor pode ser sujeito de seus prprios atos reconhecendo que ele
transforma e/ou recria um outro texto dando significados, podemos direcionar nosso trabalho
para a questo especfica do sujeito que l, tratando, especialmente, de temas como sentido,
referncia e sujeito.
Em sntese, a reflexo a ser levada ao prximo captulo diz respeito a elementos tais
como: o locutor como sujeito e como sua presena se caracteriza no discurso; o interlocutor,
sua presena e sua caracterizao no discurso, uma vez que esse produzido para ele; a
situao que considera as marcas do tempo e do espao da produo do discurso; e, ainda, a

47

referncia, pois importante saber de que trata o discurso. assim, considerando esses
elementos, que nos permitimos adotar a teoria de mile Benveniste como norte para tratar da
leitura. E justificamos nossa escolha: consideramos que a amplitude de suas reflexes nos
permite caminhar para outros estudos relacionados linguagem e no apenas para o que est
posto em sua obra.
Portanto, este trabalho, nos captulos seguintes, estar focado na apresentao de uma
teoria que considere o tratamento da relao entre enunciao e leitura, levando em conta que
para Benveniste o que interessa no a lngua no sentido de Saussure, mas a linguagem
considerada a partir do sentido e do discurso. Como podemos ver, pretendemos complementar
os estudos sobre leitura, no Brasil, apresentando uma reflexo sobre enunciao e leitura.

48

CAPTULO 2

Os conceitos da enunciao que podem subsidiar a abordagem


enunciativa da leitura

[...] na leitura ocorre uma hemorragia


permanente pela qual a estrutura paciente e
utilmente descrita pela anlise estrutural
desmoronaria, abrir-se-ia, perder-se-ia... deixando
intacto aquilo a que se deve chamar de
movimento do sujeito e da histria: a leitura seria
o lugar onde a estrutura se descontrola.
Roland Barthes

Aps a lembrana, no captulo anterior, de algumas das principais perspectivas que


discorrem sobre a leitura no Brasil, a partir de vises tericas distintas, nosso segundo
captulo dedicado s reflexes de mile Benveniste, considerado um dos primeiros
linguistas a ressaltar o uso da lngua pelo locutor. Aqui, pretendemos, ento, rastrear
conceitos que permeiam essa teoria, reconhecer uma interdependncia entre eles e, a partir
da, compreender como a leitura, mesmo no prevista nos estudos benvenistianos, pode ser
uma modalidade de enunciao44.
Na busca de um caminho metodolgico que aponte a leitura como modalidade de
enunciao, entendemos que tambm a o leitor se apropria o termo de Benveniste e
referente ao que chama de aparelho formal da lngua para enunciar. No entanto, h
especificidades dessa apropriao, quando a observamos pelo vis enunciativo. A
apropriao j de um texto.
Se, como veremos, a subjetividade de que trata Benveniste a capacidade do locutor
para se propor como sujeito (PLG I, p. 286) sendo essa passagem o resultado de uma
apropriao singular, a que permite que o locutor vire sujeito ento, o paralelo evidente
com a leitura: leitor aquele que passa de alocutrio suposto de uma enunciao a sujeito dela
por construir sentido a partir dela, apropriar-se dela, diramos melhor.
44

No podemos deixar de enfatizar que Benveniste como linguista no deixou de tratar de tantas outras reas. Apenas
como exemplo podemos citar a filosofia, a antropologia, a sociologia e a psicanlise (FLORES, 2005, p. 43).

49

Como salientam Flores e Teixeira, a leitura fenmeno enunciativo uma vez que:
A pessoa que interpreta um enunciado reconstri seu sentido a partir de indicaes
nele presentes, o que no garante, no entanto, que o que ela reconstri coincida com
as representaes do enunciador. A relao intersubjetiva que se produz na leitura
sempre indita. O sentido, longe de ser imanente, se apresenta como o resultado
de um processo de apropriao do texto pelo leitor, que imprime a sua
singularidade na experincia de leitura. (2005, p.8, grifo nosso)

No demais nos determos um pouco nessa passagem. Dela retiramos pontos


norteadores do que vir:
a) A leitura um ato de interpretao, entendida como re-constituio45 de um sentido;
b) essa re-constituio pode at partir de indicaes presentes no texto, mas no se
reduz a elas;
c) o sentido que deriva desse ato de re-constituio no coincide integralmente com as
representaes do enunciador do texto;
d) esse ato de re-constituio no-coincidente , para ns, uma apropriao do texto
pelo leitor;
e) finalmente, a leitura um ato intersubjetivo entre os locutores, entre o locutor e o
prprio texto, entre os locutores e a experincia singular do mundo.
Partindo desses itens, que apontam a leitura como ato enunciativo, propomos, neste
captulo, resgatar, nos estudos benvenistianos, conceitos que permeiam sua teoria.
Para esse trajeto, o ponto de partida so algumas reflexes sobre os estudos de
Ferdinand de Saussure e Michel Bral (cf. 2.1), reconhecendo que Benveniste tem sua filiao
nesses autores. Na sequncia (cf. 2.2), damos nfase aos principais aspectos que levem a
reconhecer o percurso enunciativo de Benveniste, a partir de textos escritos originalmente em
diferentes pocas e reagrupados em Problemas de lingustica geral I (PLG I) e Problemas
de lingustica geral II (PLG II)46 (cf. 2.2). Primeiramente analisamos na quinta parte, O

45

Parte-se do princpio de que a leitura um fazer de novo, um processo de (re)significao, ou seja, fazer de novo o
percurso da significao. Segundo Dessons (2006), pode-se tomar aqui um exemplo muito simples dessa
conceitualizao de um elemento comum a qualquer locutor francs, o do emprego do prefixo re- que se preenche, em
Benveniste, de um valor crtico. Assim, a sequncia, a linguagem re-produz a realidade, comentada desta forma: a
realidade produzida de novo por intermdio da linguagem. Glosado assim pela locuo de novo, re- de fato
portador de dois valores: iterao novamente e inveno de maneira nova.
46
Problemas de lingustica geral I e II renem artigos que abordam o estudo da lngua, relacionando-o
lingustica e a outras reas como a filosofia, a antropologia e a psicanlise. Ressaltamos que, no corpo do
trabalho, quando citarmos Benveniste, utilizaremos como referncia as datas originais dos textos acrescentando,
ainda, como referncia o ano das publicaes brasileiras de 1991 (PLG I) e 1989 (PLG II). Sempre que
necessrio, foram consultadas as edies francesas:

BENVENISTE, mile. Problmes de linguistique gnrale I. Paris: Gallimard, 1966.

50

homem na Lngua, do PLG I a subjetividade/intersubjetividade presente nos estudos


benvenistianos, em especial as reflexes feitas pelo autor em torno dos sistemas pronominal e
verbal. Continuando a trajetria da apresentao da teoria de Benveniste, detemo-nos, ainda,
nos artigos A forma e o sentido na linguagem, Semiologia da lngua e O aparelho formal
da enunciao (PLG II), artigos esses que levam s noes de significao, referncia,
instncia de discurso, entre outras. Acreditamos que, com essa retomada dos principais
conceitos que permeiam essa teoria, h possibilidade de estabelecer uma relao entre esses
conceitos de forma a comprovar que a leitura uso de linguagem e, como tal, uma
modalidade de enunciao.

2.1 Os fundamentos do campo enunciativo benvenistiano

Ao tomarmos mile Benveniste como base terica para este trabalho, no podemos
deixar de trazer para nossa reflexo fundamentos tericos de autores como Michel Bral47 e
Ferdinand de Saussure48, aos quais Benveniste tem filiao.
Em nossa opinio, seria impossvel pensar um trabalho em lingustica enunciativa sem
retomar esses dois autores, os quais revelam conceitos e descries que servem de base ao
tratamento enunciativo da linguagem. Mesmo considerando-se que a teoria da enunciao
instaura um pensamento diferenciado acerca dos estudos lingusticos, reconhecvel em
Benveniste um retorno s questes de significao propostas por Bral e viso sistmica de
lngua oriunda da leitura de Saussure, inserindo a os estudos da enunciao, da subjetividade.
assim que Benveniste desloca as famosas dicotomias saussurianas para um novo enfoque, o
do discurso, do mesmo modo que toma a subjetividade presente nas ideias de Bral para
contribuir em suas reflexes nesse novo enfoque.

____. Problmes de linguistique gnrale II. Paris: Gallimard, 1974.


47

Bral o primeiro terico a usar o termo semntica. Tomamos como referncia o seu Ensaio de semntica,
publicado pela primeira vez em 1897. Neste trabalho, adotamos a verso traduzida por Eduardo Guimares, de 2008,
dividida em trs partes: As leis intelectuais da linguagem, Como se fixou o sentido das palavras e Como se formou a
sintaxe. Essa obra apresenta uma viso inovadora em relao s questes de significao, contribuindo, assim, para a
descrio de determinados fenmenos semnticos de lngua.

48

Saussure visto neste trabalho a partir do Curso de lingustica geral (CLG), organizado por Bally e Sechehaye,
publicado em 1916, mas tambm, quando necessrio, a partir de alguns leitores contemporneos que o consideram
com relao aos manuscritos encontrados e publicados sob o ttulo de Escritos de lingustica geral. O objetivo
destacar a relao do campo da enunciao com o Curso, como marco que foi de instaurao da cincia lingustica.

51

Dito de outro modo, acreditamos que, de Saussure, Benveniste retoma a noes de


signo e de sistema, e tudo o que elas implicam na epistemologia saussuriana; e de Bral, a
noo de significao, e tudo o que ela implica na definio do que chama de o elemento
subjetivo.
Temos clareza de que tais afirmaes mereceriam ser desenvolvidas com vagar, no
entanto, nosso objetivo aqui menos comprov-las e mais tom-las como ponto de partida de
entendimento da teoria benvenistiana.

2.1.1 A Semntica de Bral como fundamento da enunciao de Benveniste

Ao percorrermos o Ensaio de semntica, percebemos em suas trs partes um conjunto


de fenmenos semnticos que contriburam para os estudos lingusticos. Essa primazia do
fator semntico pode ser comprovada nas trs partes. Na primeira, ao tratar das leis49 que
regem a vontade humana. Na segunda parte, ao mostrar como ocorre a determinao e a
mudana de sentido das palavras, enfatizando que as palavras no apresentam um nico
sentido, pois esse se constitui a partir do discurso, do papel do falante, em uma determinada
situao; e, ainda, ao apresentar que as palavras se configuram pela necessidade de o falante
interferir na sua prpria fala. Por fim, na terceira parte, comprovada, principalmente, quando
o autor destaca os princpios relativos constituio e ao funcionamento da linguagem.
Seidi (2006) aponta que j no prefcio do Ensaio de semntica podemos visualizar a
importncia da proposta inovadora de Bral, no que diz respeito lingustica e teoria do
significado. O autor se destaca ante seus contemporneos por suas propostas complexas e
abrangentes que, ainda hoje, contribuem para a descrio de determinados fenmenos
semnticos de lngua.
Na primeira parte, diz Seidi, podemos concluir que as leis explicitadas por Bral
mostram que todas as mudanas so causadas por um princpio guiado pela noo de
utilidade, qual seja, promover a intercompreenso, que no fim das contas acaba por regular
as leis fonticas (SEIDI, 2006, p. 57).
49

No so regras de como a vontade humana deve estar atrelada ao uso da linguagem, so explicitaes sobre a
questo. Para o autor so trs as leis: especialidade, repartio e irradiao. A primeira lei refere-se a noes
gramaticais; a segunda, ao contedo lexical das palavras; a terceira lei aponta para mudanas no significado atribudo
aos morfemas de uma palavra.

52

Ao continuar seu percurso pela obra de Bral, a autora destaca na segunda parte a
seguinte citao do autor:
A semntica, ao estudar o sentido, abrange o estudo da significao, podendo-se
entender que h primeiro a produo de um sentido numa situao comunicativa
concreta e, posteriormente, via estabilizao semntica, conseguida por meio da
repetio, a constituio de um novo significado. (BREAL, 2006, apud SEIDI, p.60).

A partir dessa citao, Seidi especifica que podemos entender que o significado o
contedo semntico estvel da palavra, sem considerar necessariamente sua utilizao, e o
sentido, determinado pelo uso concreto da linguagem, a referncia feita ao contedo
semntico e particular da palavra.
Porm, na terceira parte que nos deteremos para apontar os elementos de
convergncia entre Bral e Benveniste. Partimos desse captulo por encontrarmos nele o
estudo do que Bral prope chamar o lado subjetivo da linguagem, que podemos, hoje,
qualificar como o componente enunciativo, parte essencial de todas as lnguas, pois, para o
autor do Ensaio de semntica, a linguagem no possui realidade fora da atividade humana,
tendo por finalidade constitutiva compreender e ser compreendido. (BREAL, 2006. Apud
TAMBA-MECZ, p. 19-24).
O elemento subjetivo configura-se, ento, pela necessidade de o falante interferir
naquilo que est marcado, ou seja, pode ser definido como as marcas de sua interferncia,
como bem mostra Bral.
Se verdade, como se pretendeu algumas vezes, que a linguagem um drama em
que as palavras figuram como atores e em que o agenciamento gramatical reproduz
os movimentos dos personagens, necessrio pelo menos melhorar essa comparao
por uma circunstncia especial: o produtor intervm frequentemente na ao para
nela misturar suas reflexes e seu sentimento pessoal. (2008, p.157)

Para Bral (2008), o elemento subjetivo50 a parte mais antiga da linguagem,


elemento esse que pode figurar por palavras ou componente de frase, por formas gramaticais
ou pelo plano geral de nossas lnguas. Isso mostra que a subjetividade, atravs desses
subsdios, segundo o autor, est sempre presente no discurso e pode se apresentar juntamente
com as outras palavras que representam os fatos. Considera, ainda, que muitas vezes a falta de
entendimento dos elementos est em no se considerar o elemento subjetivo, o qual configura
o lugar que o homem se d a si mesmo na linguagem.

50

O conceito de elemento subjetivo de Bral apresenta-se como decisivo para as reflexes de Benveniste,
principalmente no que diz respeito intersubjetividade.

53

Em Bral, destacamos, tambm, a seguinte passagem sobre a importncia que


estabelece para as formas da lngua (no caso, as pessoas) que marcam a subjetividade:
Sobre as trs pessoas do verbo, h uma que ele (o homem) se reserva de modo
absoluto (que se convencionou chamar a primeira). Desse modo ele ope sua
individualidade ao resto do Universo. Quanto segunda pessoa, ela no nos
distancia ainda muito de ns mesmos, j que a segunda pessoa no tem outra razo
de ser que a de achar-se interpelada pela primeira. Pode-se, pois, dizer que s a
terceira representa a poro objetiva da linguagem. (Ibidem, p. 14)

Percebemos, nos dizeres de Bral, a importncia dos pronomes pessoais,


principalmente o eu, considerado pelo autor do Ensaio de semntica como a noo mais
importante entre toda a categoria.
Eduardo Guimares, no prefcio que faz publicao brasileira do Ensaio de
semntica, mostra que a citao acima vem ao encontro das reflexes presentes nos estudos
da enunciao, principalmente as que se importam com o sentido na linguagem.
Para Bral, a lngua marcada por elementos tais como advrbios, modos e tempos
verbais, pronomes pessoais, entre outros, os quais marcam a subjetividade na fala. Mesmo
que para Bral a atividade humana seja a causa principal das transformaes que ocorrem na
lngua diferentemente de Benveniste que considera estar no ato da enunciao o sentido
dado aos enunciados , no podemos deixar de considerar que Benveniste descreve a lngua
apresentando, em seus estudos, as formas que marcam a subjetividade na linguagem,
retomando o elemento subjetivo j apresentado pelo terico da semntica. Desse modo,
Benveniste e Bral tratam subjetividade como uma questo lingustica.
Reconhecemos, ento, que atravs da reflexo sobre o discurso, com destaque para o
elemento subjetivo da/na linguagem, presente nos estudos de Bral, que Benveniste apresenta
seus estudos sobre a enunciao.

2.1.2 A Lingustica de Saussure comparece na enunciao de Benveniste

Tambm por esse vis o do sentido que Benveniste retoma os estudos


saussurianos para fundamentar sua teoria enunciativa. Nesse caso, voltar a Ferdinand de

54

Saussure51 no apenas retom-lo como o precursor de uma lingustica renovada,


transformada em cincia por ter o mtodo e o objeto delimitados, mas reconhecer em seu
pensamento uma delimitao no estabelecimento de uma Lingustica da Enunciao, como
apontam Flores et al., ao apresentar hipteses que comprovam que a Lingustica da
Enunciao no s tributria do sistema saussuriano, como tambm s pode ser definida em
sua relao com ele (FLORES et al., 2008, p. 15).
No o caso, aqui, de especificar a teoria de Saussure, mas de reconhecer nessa
Lingustica uma abertura para a Enunciao tendo como norte a cincia do signo52. Para que
se possa apontar essa relao, importante destacar que Saussure parte do princpio de que a
lngua um sistema de signos, conceito esse que leva Benveniste aos estudos do sentido.
Nosso interesse, nesta seo, portanto, menos fazer uma apresentao da teoria
saussuriana e, mais, apontar alguns dos momentos em que Benveniste constri sua
argumentao por referncia a Saussure. Ao contrrio de Bral, que no uma presena
evidente na obra de Benveniste, o leitor no encontrar muitas passagens nos PLG I e II que
citem o nome de Michel Bral , o nome de Saussure uma presena constante no decorrer
dos artigos dos Problemas.
Passemos, ento, a Saussure e comecemos pelo que Milner chama, em seu O amor da
lngua, de o conceito privilegiado de Saussure: o signo53.
Benveniste trata da noo saussuriana de signo em vrios textos, mas em A
natureza do signo lingustico, texto de 193954, que Benveniste enfatiza que a teoria do signo
lingustico, presente na maioria dos estudos lingusticos, procede de Saussure, e que tudo que
diz respeito linguagem parte do princpio de que o signo lingustico arbitrrio.

51

Esse retorno, conforme j salientamos, dar-se- pelo Curso de lingustica geral, que, mesmo com suas contradies
internas, conforme Flores (2003, p. 48), pode ser considerado marco no estabelecimento do pensamento estruturalista
a partir do sculo XX.
52

Para Eduardo Guimares, Benveniste pode ser considerado um estrito saussuriano pois procura manter o sistema
fechado, mas ao mesmo tempo rompe este fechamento ao introduzir em seus estudos a significao, apresentando a
subjetividade, ou melhor, a intersubjetividade da linguagem (GUIMARES, 2002, p. 45).
53

O termo signo aparece na obra de Saussure aps a especificao do que vem a ser linguagem e, consequentemente,
aps delimitar os termos lngua e fala. O termo no introduzido sozinho, mas, desde o inicio, na expresso sistema
de signos (CLAUDINE NORMAND, 2009, p. 62).
54

Nesse artigo, Benveniste, apenas pela leitura do Cours, reprova Saussure no que se refere ao conceito de
arbitrrio. Para Bouquet (1997), esse conceito aparece, no CLG, com uma viso distorcida, devido ambiguidade
ligada ao conceito de signo. Signo empregado por Saussure de duas formas: como entidade lingustica global e como
sendo apenas sua parte fonolgica.

55

E como uma verdade evidente, no ainda explcita, mas incontestada na realidade,


que Saussure ensinou que a natureza do signo arbitrria. A frmula imps-se
imediatamente. Toda afirmao sobre a essncia da linguagem ou sobre as
modalidades do discurso comea por enunciar o carter arbitrrio do signo
lingustico. (PLG I, p. 53)

Benveniste retoma, nesse captulo, o conceito de signo apresentando-o como a unio


de um significante e de um significado, a partir das palavras de Saussure: significado o
conceito; significante, a imagem acstica (PLG I, p. 54). Isso quer dizer que no h nem um
tipo de relao com a realidade. nesse ponto que Benveniste, ao se deter no Cours, a partir
dos exemplos apresentados pelos editores, discorda do conceito de arbitrrio55, apontando que
no se pode falar em arbitrrio se no h nenhuma relao com a realidade, elemento esse no
considerado ao instituir o conceito de signo como a unio de um significado e de um
significante. H, segundo Benveniste, contradio entre a maneira como Saussure define o
signo lingustico e a natureza fundamental que lhe atribui (PLG I, p. 55).
A concepo saussuriana est ainda solidria, em certa medida, com esse sistema de
pensamento [histrico e relativista do fim do sculo XIX]. Decidir que o signo
lingustico arbitrrio porque o mesmo animal se chama boi num pas, ochs, noutro,
equivale a dizer que a noo de luto arbitrria porque tem por smbolo o preto na
Europa, o branco na China. Arbitrria, sim, mas somente sob o olhar impassvel de
Srius ou para aquele que se limita a comprovar, de fora, a ligao estabelecida entre
uma realidade objetiva e um comportamento humano e se condena, assim, a no ver
a seno contingncia (PLG I, p. 55).

Mesmo que em Benveniste haja uma discordncia em relao ao conceito de arbitrrio


em Saussure56, no podemos deixar de observar que, a partir dessa problematizao,
Benveniste aponta outro caminho para a relao significante/significado: no h a uma
arbitrariedade, mas uma necessidade. Nesse caminho, Benveniste enfatiza que o que
arbitrrio que um signo especfico se aplica a determinado elemento da realidade para no
repetir outro (ibidem, p. 56).
O conceito de arbitrrio em Saussure, segundo Bouquet (1997), basilar porque
sustenta diretamente o conceito cardinal de sua epistemologia programtica: o de valor57
55

Em notas de Tlio de Mauro, mais especificamente na nota de nmero 137, podemos reconhecer o porqu
dessa discordncia de Benveniste em relao ao conceito de arbitrrio presente em Saussure. Segundo o autor,
essa discrepncia se deve principalmente ao exemplo infeliz utilizado no Curso, o qual aponta vnculos com
um referente, exemplo este apresentado, no CLG, antes de Saussure ter introduzido as noes de significante e
significado.
56

Segundo Normand, no encontramos, na compilao dos artigos em 1966, mudana de posio de Benveniste em
relao a essa crtica (2009, p. 201).

57

A noo de valor se destaca quando explicitada a diviso entre um valor procedente do arbitrrio e um valor
procedente do fato sintagmtico, pois o arbitrrio lingustico, no sentido em que Saussure o tematiza, decorre daquilo
que ele concebe como valor lingustico (BOUQUET, 1997, p. 195). , pois, na combinao desses dois fatos que o
linguista v a essncia do fato semntico.

56

(BOUQUET, 1997, p. 228). Assim, o princpio bsico da lingustica de que a lngua forma
um sistema58, um sistema de signos, de relaes internas, de modo que cada elemento
depende do outro para ter seu sentido. O arbitrrio em Saussure, diz Bouquet, aponta tanto
para a relao entre significante e significado quanto para a relao que une entre eles os
termos do sistema de uma lngua dada (ibidem, p. 234).
A relevncia dessa discusso para os nossos propsitos est em reconhecer que existe
um eixo semntico no Curso de lingustica geral, eixo esse que est presente em Benveniste.
O que importa, ento, para entendermos essa ligao Saussure-Benveniste , segundo
Claudine Normand, saber de que semntica trata Saussure.
Como sabemos, Saussure considera que a linguagem tem um lado individual e um
lado social; no entanto, considerando a necessidade de um estudo cientfico da lingustica,
descarta a possibilidade de abordar as duas partes, mesmo reconhecendo que existe uma
lingustica da lngua e uma lingustica da fala, conforme o captulo IV da Introduo do
Curso.
Essa ateno dada noo de lngua como sistema de signos, presente nos estudos
saussurianos, leva-nos ao percurso terico de Benveniste que, ao apresentar suas reflexes
sobre a enunciao, retoma essa concepo de lngua. Em Benveniste, lngua e fala tm outro
enfoque, pois a enunciao no considera a possibilidade de estudar a lngua separadamente
da fala, assim como no considera estudar as irregularidades como definida a Lingustica
da Fala no CLG. na ideia de estrutura que se encontra uma nova forma de olhar para esses
termos, considerando-os no mais em oposio. Nessa nova forma de olhar para o par
lngua/fala, pertencem lngua os fenmenos enunciativos, mas no se encerram nela,
pertencem fala na medida em que s nela e por ela tm existncia e questionam a existncia
de ambas, j que emanam das duas (FLORES et al., 2008, p. 18).
Para Barbisan e Flores (2009, p. 17), em O aparelho formal da enunciao59,
comprova-se a interdependncia entre lngua e fala nos estudos enunciativos e, acreditam os
autores, j em Saussure h indcios de que a lngua comporta a fala e vice-versa, quando, no
CLG, ele trata das relaes sintagmticas como pertencentes ao discurso.

58

Saussure sempre usou o termo sistema, sendo o termo estrutura utilizado apenas na dcada seguinte (NORMAND,
2009, p. 12). Benveniste em artigos que trata da enunciao utiliza o termo sistema.
59

Segundo Flores (2008, p. 17), Benveniste fala em aparelho formal da enunciao como um dispositivo que as
lnguas tm que disponibilizado pela estrutura mesma da lngua para a atualizao que o sujeito faz do sistema no
uso. Portanto, essa ideia inclui a de lngua e a de fala, mas no se esgota nelas.

57

H, ainda, uma passagem em Saussure quando ele trata da questo identidades,


realidades, valores, no terceiro captulo, que serve para ilustrar essa presena do aspecto
semntico em seu Cours.
Quando, numa conferncia, ouvimos repetir diversas vezes a palavras senhores!,
temos o sentimento de que se trata, toda vez, da mesma expresso, e, no entanto, as
variaes do volume de sopro e da entonao a apresentam, nas diversas passagens,
com diferenas fnicas assaz apreciveis quanto as que servem, alis, para
distinguir palavras diferentes (cf.fr. pomme, ma, e paume, palma, goute, eu
gosto, fuir, fugir, cavar etc); ademais, esse sentimento de identidade persiste, se
bem que do ponto de vista semntico no haja tampouco identidade absoluta em um
Senhores! e outro[...].(SAUSSURE, 1991, p.125-126)

Aqui, parece j evidente em Saussure, na concepo de lngua, uma abertura para a


enunciao. Segundo Barbisan e Flores (2009, p. 12), essa passagem aponta para um fato
fundamental: falamos a mesma lngua, mas h algo nela que especfico de quem a fala,
logo, irrepetvel porque ligado ao tempo da fala. A citao j salienta aspectos os quais
dizem respeito lngua em uso, atribuindo-se, a cada vez que pronunciada, um sentido
diferente palavra senhores.
Normand (2009) destaca, ento, a teoria da lngua como sistema de valores, presente
nos estudos saussurianos, ponto de reflexo a respeito de uma abordagem do sentido. A noo
de valor aponta uma diferena formal mnima ligada a uma diferena de sentido,
indiferentemente se forem unidades lingusticas lexicais ou um fato gramatical, uma vez que
as relaes de oposio (eixo paradigmtico) e de combinao (eixo sintagmtico) esto
presentes no funcionamento lingustico. , portanto, a partir das questes valor semntico e
relaes associativas e sintagmticas que a autora enfatiza a importncia de saber de que
semntica trata Saussure.
Forma e sentido esto intimamente ligados, um no anda sem o outro, mas essa
ligao no pode ser inteiramente contingente, e, se nos aplicamos em descrever
atentamente as formas, descobrimos que o sentido que d a razo de suas
diferenas, at mesmo de suas anomalias (Ibidem, p. 202).

Para averiguar a validade dessa semntica, , pois, importante relembrar que, para
Saussure, o valor lingustico resulta da relao do significante com o significado60, e da
relao do signo com os outros signos e, ainda, que a semntica no uma lgica, pois no
pode haver duas etapas de anlise, uma da forma e outra do sentido. , assim, a partir de
60

Valor e significao no devem confundir-se. Pode, por um lado, a significao ser apenas um elemento do
valor, assim como, por outro lado, o valor ser um elemento da significao. Nesse segundo caso, a produo de
sentido infinitamente mais rica, pois rene as relaes complexas do termo lingustico com seu exterior. Devese reconhecer, ento, que o estudo do valor, mais amplo que a significao tradicional, e, sobretudo diferente,
porque imanente, no isolvel como tal (NORMAND, 1990).

58

Saussure que Benveniste implanta uma anlise das formas como portadoras de sentido
(NORMAND, 2009, p. 100).
No que diz respeito a Benveniste, entendemos, em sua relao com Saussure, a
iniciativa de tomar a lngua como objeto da lingustica, mas em outro patamar. Para
Benveniste, interessa uma lingustica da linguagem, que inclui lngua e fala. Nessa lingustica,
tem lugar especial o sentido que leva ao discurso e, desse modo, linguagem. Benveniste,
centrado na enunciao, insere o sujeito nos estudos lingusticos. Percebemos, desse modo
que, assim como segue Saussure em suas bases tericas, Benveniste constitui um novo objeto:
a enunciao61.
Benveniste at pode ser apontado por alguns como o continuador de Saussure, ou
mesmo como o autor que ultrapassa os estudos saussurianos ao propor suas reflexes. No
entanto preciso destacar que Benveniste apresenta um pensamento absolutamente singular,
mostrando que a linguagem deve ser entendida pelo vis do sentido. Seu pensamento
converge para uma importante noo, a de enunciao. Segundo Flores et al.,
A Lingustica da Enunciao conserva muito dos aspectos oriundos da Lingustica
Saussuriana, e o principal deles , sem dvida, a noo de sistema, chamada de
estrutura pelos ps-saussurianos. Todos os lingistas da enunciao subscrevem a
ideia de que a lngua comporta uma estrutura. A palavra estrutura sobejamente
utilizada na literatura da rea (2008, p. 20).62

A ttulo de sntese desta parte, diramos que Benveniste parece ser duplamente
influenciado em sua reflexo. De um lado, inspira-se nos trabalhos de Bral sobre o elemento
subjetivo. V-se de Bral, principalmente, a tese segundo a qual possvel identificar marcas
que dizem respeito subjetividade na linguagem, o elemento subjetivo nos termos de Bral.
De Saussure, v-se uma referncia mais explcita, ancorada nas noes de sistema, signo e
valor.
Retornar a esses dois autores significa, sobretudo, reconhecer neles uma abertura para
a enunciao tendo como norte a subjetividade presente em Bral e o princpio de que a
lngua um sistema de signos, como bem aponta Saussure. Desse modo, podemos dizer, com

61

Segundo Flores e Teixeira (2009, p. 78-79), a expresso o homem na lngua usada por Benveniste para
nomear a quinta parte de seus Problmes de linguistique gnrale I e II um dos pontos de encontro com a teoria
do valor desenvolvida por Ferdinand de Saussure em seu Cours de linguistique gnrale.
62

Com estas palavras vimos surgir uma primeira viso de que a Lingustica da Enunciao, a partir da noo de
sistema, ou estrutura, como dizem os ps-saussurianos, pode nos direcionar para o entendimento de que a leitura pode
ser uma modalidade de enunciao, pois, conforme Barthes (2004, p. 33), toda a leitura ocorre no interior de uma
estrutura.

59

Normand, que Benveniste o mais saussuriano dos linguistas, uma vez que permitiu
resgatar, a partir de Saussure, uma lingustica da significao (NORMAND, 2009, p. 197).
Isso posto, passamos, a seguir, teoria benvenistiana propriamente dita como forma
de reunir elementos que nos permitam falar em leitura como uma modalidade de enunciao.

2.2 A teoria enunciativa de mile Benveniste

Falar em Benveniste, mais especificamente discorrer sobre sua teoria, , para ns,
ponto de partida e ponto de chegada63 para realizar o propsito de levar adiante nossa questo
a respeito da leitura, qual seja: de a leitura ser tratada como uma modalidade de enunciao.
Nesse caminho, trazemos, neste item, reflexes de mile Benveniste considerado um dos
primeiros linguistas a ressaltar o uso da lngua pelo locutor constantes em Problemas de
lingustica geral I e II (conforme havamos anunciado na Introduo). Pretendemos rastrear
os principais conceitos da enunciao que permeiam essa teoria, reconhecendo
interdependncia entre eles, pois, como sabemos, ao longo de sua trajetria, Benveniste
escreveu artigos que, tomados no conjunto de sua obra, configuram-se como uma Teoria da
Enunciao. Com a retomada desses conceitos queremos compreender como a leitura, mesmo
no prevista64 nesses estudos, pode ser uma modalidade de enunciao.
Segue-se, ento, a apresentao do que julgamos serem os principais conceitos
presentes na obra de Benveniste, tendo em vista nossos propsitos, a fim de instituirmos uma
relao entre eles que comprove que a leitura uso de linguagem e, como tal, uma
modalidade de enunciao. Antes, porm, vale fazer uma observao. Conforme Flores
(2011b)65, a teoria de Benveniste precisa ser lida como uma complexa rede de termos,
definies e noes que esto interligados entre si atravs de relaes hierrquicas
hiperonmicas e/ou hiponmicas , paralelas, transversais, entre outras. Segundo o autor,

63

Ponto de partida porque temos na teoria enunciativa nossa trajetria terica para apontar a leitura como uma
modalidade de enunciao; ponto de chegada porque nosso intuito estabelecer um caminho terico metodolgico
que d conta do processo de leitura a partir da teoria enunciativa benvenistiana.
64

Dizer que Benveniste no tratou da leitura no nos desautoriza a investir na questo, pois, como mostram Flores et
al. (2008, p. 35), pode ser estudado na enunciao todo o mecanismo lingustico cuja realizao integra seu prprio
sentido e que se auto-referencia no uso que o sujeito faz da lngua.
65

Cf. FLORES, V. N. Notas para uma (re)leitura da teoria enunciativa de Benveniste. No prelo. 2011b.

60

grande parte dos conceitos propostos por Benveniste tm valor primitivo, na medida em que
fazem parte de outros conceitos. Ou seja:
Os termos e as noes que integram um dado conceito contm, em si, outros termos
e noes e estes, por sua vez, esto contidos em muitos outros. Na verdade, h na
teoria benvenistiana uma rede de relaes conceituais em que cada conceito
constitudo por uma rede e parte integrante dela (FLORES, 2011b, no prelo).

Ao fazermos essa observao, queremos salientar que a incurso na teoria


benvenistiana exige de quem o faz que adote um ponto de vista de leitura. Delimitamos, pois,
nossa reflexo tomando, primeiramente, a parte em que o autor trata do que chama de O
homem na lngua, presente em Problemas de lingustica geral I e II, ao apresentar sua teoria
da intersubjetividade/subjetividade66, atravs de noes que, mesmo aparentando estudos
sobre morfologia e sintaxe, inserem o sujeito nos estudos lingusticos. Nessa parte, dividida
em seis artigos, Benveniste aborda noes caras ao seu edifcio terico: a subjetividade na
linguagem, a distino pessoa e no-pessoa, a diferena referencial de cada um dos termos
da trade eu/tu/ele, entre outros.
Com a finalidade de retomar esses conceitos-chave, especificaremos trs dos artigos
presentes nessa parte do PLG I: Estrutura das relaes de pessoa no verbo (de 1946), A
natureza dos pronomes (1956) e Da subjetividade na linguagem (1958), os quais podem
nos conduzir perspectiva de uma teoria enunciativa da leitura.
Neste momento, abordar essas questes, tendo como direo essa primeira parte,
significa avaliar a importncia de explorar a presena do sujeito nos estudos lingusticos e,
posteriormente (cf. captulo 3), especificar como essa presena pode estar relacionada ao
processo de leitura. Portanto, aqui, interessa-nos esclarecer os conceitos iniciais da teoria e
reconhecer sua interdependncia de modo a reinterpret-la a partir do fenmeno da leitura.
Tambm nessa direo, retomamos, em um segundo momento, os artigos A forma e
o sentido na linguagem (1966) e A semiologia da lngua (1969), os quais consideramos
essenciais por trazerem luz questes de lngua, linguagem e uso na relao entre a forma e o
sentido.
A forma e o sentido na linguagem, segundo Aya Ono (2007), procura especificar o
mundo do discurso, oposto ao mundo de signos. Diz respeito ao entendimento que se deve ter
66

A intersubjetividade/subjetividade permeia todos os textos de Benveniste por ser um conceito fundamental


teoria. Segundo Flores (2004, p. 222), se h na obra de Benveniste o a priori de que o homem se constitui como
sujeito na linguagem e a intersubjetividade a condio da linguagem, ento nenhum tema que tenha sido objeto
de estudo do autor escaparia a isso, pois tal a priori teria valor primitivo.

61

do signo; ou seja, para o autor, preciso que o signo, como unidade semitica e constitudo de
um significante e de um significado, seja compreendido do ponto de vista da forma e do
sentido. Para Flores et al. (2008, p. 72), com forma-sentido se est no mbito do uso da
lngua, garantia de intersubjetividade, no s porque a lngua partilhada, mas tambm
porque a situao em que se est inserido a mesma: atribuio de referncia para coreferncia.
O segundo artigo, A semiologia da lngua, questiona o lugar da lngua entre os
sistemas semiticos, considerando as posies de Charles Sanders Peirce e de Ferdinand de
Saussure, e atesta que o primeiro, ao discutir essa noo, no se interessou jamais pela lngua
em funcionamento sendo o signo posto na base do universo inteiro: tudo signo. J para
Saussure a lngua que est no centro dessa problemtica, pois ela um sistema de signos dos
mais importantes, e, para Benveniste, o nico que comporta enunciao.
Esse artigo, um dos ltimos escritos por Benveniste, configura um programa de
semiologia universal que deveria se ordenar e se desenvolver sob a direo da lingustica. A
lngua vista, nesse artigo, pelo aspecto semiolgico e pelo aspecto semntico, o que
significa reconhec-la tanto como sistema de signos67 quanto pelo seu uso, isso quer dizer que
a lngua comporta signos que prevem a utilizao da lngua (FLORES et al., 2008, p. 74).
Nesse artigo, encontramos em Benveniste a substituio do termo frase pelo de enunciao,
como manifestao prpria ao mundo do discurso (ONO68, 2007, p. 54).
Com o intuito de retomar os principais conceitos enunciativos que servem de base
terica para nossa tese, delimitamos, ainda, um terceiro item (cf. 2.2.3), cujo ttulo A
enunciao. Nele, fazemos uma reflexo especfica sobre o estatuto geral da enunciao em
Benveniste, retomando todos os aspectos tratados anteriormente e apresentando a temtica da
enunciao, abordada por esse autor, principalmente, no artigo de 1970, O aparelho formal
da enunciao.
Esse texto, que compila as principais reflexes dos estudos enunciativos de Benveniste
e que define a enunciao como este colocar em funcionamento a lngua por um ato
individual de utilizao (PLG II, p. 82), pode contribuir para nossas hipteses iniciais as
quais preveem a leitura do ponto de vista enunciativo. Nele encontramos tanto a concluso de
muitos dos conceitos apresentados em artigos anteriores, quanto uma abertura para reflexes

67

O signo para Benveniste no exatamente o de Saussure, um signo que j comporta o semntico.

68

Traduo de Daniel da Silva.

62

que, ao tomar a lngua em uso, possibilitam outros desdobramentos que possam de alguma
forma ter a enunciao como base terica. Pensamos, ento, na seguinte passagem ao final do
artigo de 1970:
Seria preciso tambm distinguir a enunciao falada da enunciao escrita. Esta se
situa em dois planos: o que escreve se enuncia ao escrever e, no interior de sua
escrita, ele faz os indivduos se enunciarem. Amplas perspectivas se abrem para a
anlise das formas complexas do discurso, a partir do quadro formal esboado aqui
(PLG II, p. 90).

A passagem acima nos permite buscar a confirmao das hipteses previstas para este
trabalho e reconhecer que, sim, possvel traar um percurso uma nova perspectiva que
se abre a partir dos principais conceitos da enunciao que nos levam a um caminho tericometodolgico para o processo de leitura uma forma complexa do discurso baseado nas
concepes benvenistianas.
importante salientar que no estamos propondo uma clivagem radical entre os textos
apresentados em Problemas de lingustica geral I e II, uma vez que reconhecemos, com
Dahlet (1997), que o tema da enunciao permanente na obra benvenistiana; no entanto,
essa presena de grau e andamento diversos, no sistematizveis em uma s definio.
Assim, o desenvolvimento a seguir apresenta alguns textos de Benveniste que, julgamos,
apontam elementos que podem configurar um estudo enunciativo da leitura.
Finalmente, ainda duas observaes. Primeira: apesar de termos seguido uma ordem
cronolgica, a seleo dos textos tem em vista o detalhamento das ideias que achamos mais
importantes para os nossos propsitos. Segunda: consideramos uma visada da teoria que d
destaque a elementos que levam a estudar a linguagem como condio de existncia do
homem. Em suma, aproximamos nossa teoria enunciativa da leitura, derivada das ideias de
Benveniste, de uma viso antropolgica da linguagem (Cf. DESSONS, 2006).

2.2.1 A intersubjetividade/subjetividade na linguagem

Em O homem na lngua69

70

, Benveniste apresenta uma parte importante de sua

teoria da intersubjetividade/subjetividade na linguagem, atrelando a ela temas como a

69

O homem na lngua uma parte dos volumes I e II de Problemas de lingustica geral, a quinta parte, na qual
Benveniste desenvolve anlises de fenmenos das lnguas naturais de um ponto de vista terico, explicitando o
processo de comunicao intersubjetiva e definindo determinadas categorias lingusticas.

63

estrutura do sistema pronominal pessoal e a enunciao. nessa parte que selecionamos, dos
seis artigos a postos, trs que se complementam e que fundamentam sua reflexo a respeito
do sujeito nos estudos lingusticos e a relao desse sujeito com o tempo e com o espao.
Para o autor, a subjetividade na linguagem se desvela a partir de marcas especficas
dentre as quais ocupa posio de destaque a teorizao sobre os pronomes pessoais como
elementos indispensveis para uma reflexo a respeito da incluso do sujeito nos estudos
lingusticos71, uma vez que a expresso de pessoa sempre est presente na lngua. A teoria da
enunciao, com esses conceitos centrais, implanta um pensamento diferenciado a respeito da
linguagem (FLORES, 2001, p. 30).
Benveniste aponta, no artigo Estrutura das relaes de pessoa no verbo (1946)72, que
tratar linguisticamente das pessoas verbais reconhecer a relao opositiva que se coloca
entre elas. Aqui, o autor mostra a importncia de estabelecer diferena entre essas pessoas,
pois, gramaticalmente, esses elementos se mostram como uma categoria homognea73.
necessrio, no entanto, que se caracterizem as oposies que ocorrem entre essas pessoas e de
que forma se aliceram, pois somente assim se pode entend-las. Reconhecendo, ento, que a
categoria de pessoa, sempre, de uma forma ou de outra, marcada no verbo, Benveniste
mostra que, para apreend-la como elemento da lngua, pode-se partir das definies usadas
pelos gramticos rabes: a primeira pessoa aquela que fala, a segunda, aquela a quem nos
70

Flores e Teixeira (2009, p. 79) lembram que Benveniste, no Avant-propos do Problmes I, chama a quinta
parte de seus PLG de O homem na linguagem. Para os autores, caberia indagar a que se deve este engano de
Benveniste: Por que oscila ele entre lngua (a palavra que efetivamente aparece no sumrio) e linguagem (a
palavra que aparece no Avant-propos) para nomear a parte de seu livro que reflete sobre a
subjetividade/intersubjetividade? (Ibidem). Conforme os autores engano sugere que as noes de lngua e
linguagem mas tambm a de lnguas so de suma importncia no pensamento de Benveniste, e que todas so
relevantes para o autor. Benveniste interessa-se pela linguagem, pela lngua e pelas lnguas simultaneamente.
Como exemplo disso Flores e Teixeira citam o artigo Da subjetividade na linguagem. Dizem os autores: a
intersubjetividade/subjetividade ali estudada inclui a ordem da linguagem o ttulo j atesta isso , a ordem da
lngua j que a anlise conclui em favor de uma generalizao sistmica da oposio pessoa/no-pessoa e a
ordem das lnguas j que h anlises de inmeras lnguas (o francs, certamente, mas tambm as lnguas do
extremo oriente das quais Benveniste era profundo conhecedor). Talvez, ento, o mais adequado seja supor que
Benveniste fala em homem na lngua, mas tambm na linguagem, j que isso sobejamente mostrado nas
anlises que faz das lnguas (Ibidem).
71

Para Guimares (2002), ao distinguir os pronomes, Benveniste est realizando uma descrio da lngua, apontando
que ela tem formas que marcam o elemento subjetivo quando se fala; desse modo, o autor coloca a questo da
subjetividade, j presente em Bral, como uma questo lingustica.

72

Esse texto reflete sobre categorias que fundamentam a teoria benvenistiana da enunciao esclarecendo, do ponto de
vista lingustico, uma distino entre pessoa e no-pessoa e apresentando termos importantes na teoria, como
intersubjetividade e dilogo.
73

O problema que a forma dita de terceira pessoa comporta realmente uma indicao de enunciado sobre algum
ou alguma coisa, mas no referida a uma pessoa especfica. A diferena reside nas correlaes que se apresentam. O
ele no tido como pessoa, e o tu, como pessoa, diferencia-se do eu, pois somente eu pode instituir o tu,
nesse caso, eu a pessoa subjetiva.

64

dirigimos; porm, a terceira, diferentemente do que pregam as gramticas, no


simplesmente a pessoa de quem se fala, , sim, a pessoa que est ausente, mostrando
claramente uma disparidade entre as duas primeiras e a terceira. A, portanto, se funda uma
diferena bem significativa que comprovada por Benveniste no seguinte trecho:
Nas duas primeiras pessoas, h ao mesmo tempo uma pessoa implicada e um
discurso sobre essa pessoa. Eu designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo
um enunciado sobre o eu: dizendo eu, no posso deixar de falar de mim. Na
segunda pessoa, tu necessariamente designado por eu e no pode ser pensado
fora de uma situao proposta a partir do eu; e, ao mesmo tempo, eu enuncia algo
como predicado de tu. Da terceira pessoa, porm, um predicado bem enunciado
somente fora do eu-tu; essa forma assim excetuada da relao pela qual eu e
tu se especificam. Da, ser questionvel a legitimidade dessa forma como pessoa
(PLG I, p. 250).

Essa passagem aponta dois aspectos relevantes nos estudos enunciativos: a


pessoalidade e a subjetividade. No primeiro caso, mesmo havendo oposio entre eu, que
sempre a nica pessoa subjetiva, e tu, h uma relao interpessoal, pois eu precisa
estabelecer um contato com algum, no caso tu. No que se refere terceira pessoa, o autor
enfatiza a diferena de posio em relao s outras duas, ficando o ele sem especificar
pessoa alguma.
A terceira pessoa a no-pessoa. Essa descrio apresenta duas situaes para a
categoria de pessoa. Uma em que eu/tu se distingue de ele; outra em que eu se ope a
tu. Desse modo, a categoria de pessoa no pode ser tratada apenas do ponto de vista de
presena ou ausncia de pessoalidade, h tambm de se considerar a subjetividade, uma vez
que eu pessoa subjetiva e tu simplesmente pessoa, e que as duas juntas se opem
no-pessoa. Nessa perspectiva, a teoria lingustica da pessoa verbal deve ser vista a partir das
correlaes de pessoalidade e de subjetividade74 (FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 32).
Benveniste, nesse caso, situa as relaes entre as relaes entre os pronomes,
apontando que eu e tu so caracterizados pela marca da pessoa, enquanto ele privado
dessa marca; no entanto, preciso considerar que h tambm uma oposio entre eu e tu,
oposio essa que marcada pela subjetividade. Eu a pessoa subjetiva por natureza.

74

Essa questo tambm abordada por Dany-Robert Dufour quando questiona a relao entre trs termos, afirmando
que no se pode recompor uma estrutura de trs termos a partir de relaes binrias e, Benveniste, segundo ele, mesmo
tendo formulado o conjunto trinitrio dos pronomes pessoais, especifica a relao entre estes termos com o objetivo de
levar adiante suas reflexes. Podemos, segundo Dufour, observar que: Ele [Benveniste] cliva sua definio em dois
subconjuntos binrios: por um lado, ele analisa a dade formada pelo par eu e tu; por outro, em seguida, coloca
eu e tu juntos de um lado e ele de outro. A partir do conjunto binrio, ele obtm assim duas dades. Pode-se,
alis, notar que Benveniste no expe todas as relaes binrias geradas pela decomposio da estrutura de trs
termos, mas utiliza somente as dades que se prestam a seu propsito e deixa sombra as demais [...] (2000, p. 73).

65

J em A natureza dos pronomes (1956), o autor complementa a temtica dos


pronomes tratando de temas como indicadores de subjetividade e instncia do discurso (ID)75.
Para o autor, as formas pronominais devem ser abordadas como um problema de linguagem e,
por isso, tambm como problema de lnguas. No possvel, portanto, pensar esses elementos
de um ponto de vista unitrio, mas deve-se, sim, considerar que o que vai determinar o estudo
dessas classes o modo de linguagem do qual so os signos: ou pertencem sintaxe da lngua
ou s instncias do discurso76 (PLG I, p. 277).
Nesse artigo, Benveniste salienta que a nica realidade qual se referem os pronomes
eu e tu a realidade do discurso77. Assim, destaca que a lngua torna-se discurso,
essencialmente, a partir da categoria de pessoa, pois eu remete cada vez a um ser nico,
exclusivamente lingustico, melhor dizendo, cada eu tem a sua referncia prpria e
corresponde cada vez a um ser nico proposto como tal (PLG I, p. 278).
importante destacar que essas formas pronominais remetem apenas enunciao,
cada vez nica, em que esto presentes, diferentemente de outras formas objetivas que
remetem realidade. Eu e tu referem-se, portanto, realidade do discurso, fora disso, so
signos vazios, no tm valor. , ainda, importante lembrar que, segundo Benveniste, h duas
instncias em que o eu se apresenta: eu como referente, eu como referido, distino essa
que pode ser explicitada da seguinte forma: eu o indivduo que enuncia a presente
instncia do discurso que contm a instncia lingustica eu. Da mesma forma, ao pensarmos
no processo de alocuo, tu, simetricamente, apresenta-se como o indivduo alocutado na
presente instncia do discurso contendo a instncia lingustica tu (ibidem, p. 279).
Benveniste, ainda nesse artigo, enfatiza que os diticos so tomados como signos
vazios e, quando assumidos pelo sujeito, na instncia do discurso, tornam-se plenos. Desse
75

Para Ono (2007), esta noo tem lugar importante na teoria de Benveniste, tendo em vista que serve para especificar
a dixis. Segundo a autora, os diticos esto relacionados ID em que so produzidos. relevante destacar que esta
noo aparece, principalmente, nos textos que se baseiam na relao da linguagem com o sujeito falante, atravs da
anlise dos diticos.
76

Conforme o Dicionrio de lingustica da enunciao (DLE), instncia do discurso o ato de dizer cada vez nico
pelo qual a lngua atualizada em fala pelo locutor. Instncia do discurso e enunciao so termos que aparecem quase
sempre juntos nos textos de Benveniste e so definidos de maneira muito prxima (DLE, p.142).
77

Essa questo pode ser, tambm, lida em Dufour, quando este escreve sobre A trindade e a lngua, conforme
passagem abaixo.
Eu e tu, estes dois signos vazios, no referenciais com relao realidade,
resolvem de maneira extremamente simples um problema muito complexo, o da
comunicao intersubjetiva: eles esto disposio de todo o mundo e basta que
algum fale para que essas conchas vazias se tornem cheias. Do mesmo modo, a
concha vazia dos ndices uma espcie de autentificao e de atualizao de nossa
capacidade de simbolizao (DUFOUR, 2000, p. 74).

66

modo, destaca-se que a linguagem torna-se discurso, essencialmente, a partir da categoria de


pessoa.
Em suma, para melhor explicitar esse artigo, tomamos as palavras de Flores e Teixeira
(2005, p.33) ao dizerem que:
[...] a unicidade decorrente do uso das formas eu/tu conferida pela instncia de
discurso, e a no-unicidade de ele est ligada sua independncia com relao
enunciao. A dixis, por sua vez, passa a ser entendida, na perspectiva enunciativa,
como aqueles signos que, pertencentes ao paradigma do eu, tambm fazem
remisso instncia de discurso e s nela podem ser devidamente apreendidos.
Assim concebida a noo de pessoa, percebe-se a importncia do tema complexo na
obra de Benveniste, o da (inter)subjetividade.

No texto Da subjetividade na linguagem, publicado em 1958, Benveniste d


continuidade aos estudos dedicados pessoa a fim de explicitar a subjetividade como
propriedade fundamental da linguagem. A linguagem faz parte da existncia humana, pois
no h homem e linguagem, h sim o homem na linguagem: no atingimos nunca o homem
separado da linguagem e no o vemos nunca a inventando (PLG I, p. 285). Segundo o autor,
um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a
linguagem ensina a prpria definio do homem (ibidem, p. 285).
A subjetividade se apresenta como a capacidade de o locutor se colocar no discurso
como sujeito que diz eu. Esse sujeito, ao dizer eu, automaticamente, constitui uma pessoa a
quem se dirige, o tu. Existe, apesar da transcendncia do eu, sempre esta relao de algum
que fala para algum. Eu no emprego eu a no ser para instituir um tu, dirigir-me a algum
(ibidem, p. 286). Diz Flores (2005) que essa relao entre as pessoas que possibilita a
linguagem, pois cada locutor se apresenta como sujeito remetendo a ele mesmo como eu no
seu discurso e ao outro como tu (FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 34).
Em Flores et al. (2008, p. 52), tambm, podemos destacar que:
A noo de pessoa, tal como apresentada, implica constituio recproca: o ato por
meio do qual eu se constitui como sujeito constitui tu. Eu e tu so mutuamente
constitutivos, tu implcito ao dizer de eu. O dizer que relativo noo de
subjetividade eu/no-eu tambm relativo noo de intersubjetividade eu
no-eu.

Sobre a implicao em relao noo de pessoa, tomamos novamente as palavras de


Flores et al.:
Esta implicao pode tambm ser verificada nas caractersticas que Benveniste
atribui categoria de pessoa. A primeira a unicidade; eu e tu so sempre nicos, se
renovam a cada situao enunciativa; a segunda, reversibilidade, aponta tambm
para o fato de que a situao enunciativa sempre outra, sempre nova: se tu toma a
palavra, j no mais tu, e sim eu. O que se propunha como eu agora tu; a relao
refeita, nova, j no mais a mesma (Ibidem, p. 52).

67

H a, ento, uma condio de dilogo, uma troca, que aponta para a apropriao da
lngua por um locutor que passa a sujeito ao incluir o outro, que tem em comum a mesma
lngua. com os pronomes pessoais que se revela a subjetividade na linguagem, e com ela, ao
se instituir essa troca recproca em que eu s emprega eu dirigindo-se a um tu, a
intersubjetividade. Resumindo, podemos dizer que eu sempre a primeira pessoa, sendo
assim, o que muda a pessoa que ocupa esse lugar.
Diz Benveniste que os pronomes pessoais so, para a revelao da subjetividade na
linguagem, o primeiro ponto de apoio. Esses pronomes, mesmo estando na lngua, no
remetem a nenhum conceito. Pertencem, portanto ao mbito da enunciao.
Em termos de sntese, vale lembrar Aya Ono78 (2007, p. 45), que assim apresenta as
relaes configuradas nos textos da dcada de 1940 e 1950 que se dedicam a pensar a
intersubjetividade/subjetividade a partir do sistema pronominal:

no-pessoa

Subjetivo

Pessoa
eu

no-subjetivo

tu

ele

Quadro 1 Sntese das relaes entre pessoa e no-pessoa

Esse quadro cumpre o papel didtico de mostrar como a categoria de pessoa pensada
por Benveniste e em que termos se d sua vinculao aos pronomes.
Benveniste

aponta

ainda

que

dessa

categoria

dependem

outras

classes

(demonstrativos, advrbios, adjetivos) que participam do mesmo status. Essas outras classes
indicadores da dixis tomam o locutor como ponto de referncia, definindo-se, assim, em
relao instncia do discurso na qual so produzidos.
Alm da categoria de pessoa, a enunciao est relacionada ainda s categorias de
tempo e espao, fundamentais na instncia de discurso.
As categorias de pessoa, tempo e espao so constitutivas da lngua e sua existncia
est ligada ao uso que o locutor faz dela, uma vez que so formas que s podem ser
reconhecidas no uso do discurso que as contm, possuindo, ento, referncia prpria.
78

Traduo de Daniel da Silva

68

A subjetividade, portanto, tambm est presente na expresso da temporalidade, cuja


referncia se d em relao ao tempo presente, que, nesse caso, no tem relao com a flexo
do verbo, e, sim, com o tempo da fala, ou seja, com a instncia do discurso. No h, pois,
outro critrio nem outra expresso para indicar o tempo em que se est seno tom-lo como
o tempo em que se fala (PLG I, p. 289). O tempo do presente se marca no interior do
discurso. Entende-se, desse modo, que h palavras que tm referncia somente na instncia do
discurso. Esse momento sempre determinado pelo locutor, mesmo no se referindo sempre
aos mesmos acontecimentos.
Benveniste aponta que o tempo, dentre as formas reveladoras da experincia subjetiva,
das mais ricas e apresenta dificuldade para ser explicitado, uma vez que recobre
representaes muito diferentes. Torna-se necessrio reconhecer que h um tempo especfico
da lngua, cuja singularidade o fato de estar organicamente ligado ao exerccio da fala, o
fato de se definir e de se organizar como funo do discurso (PLG I, p. 74).
O tempo lingustico, diz Benveniste,
Tem seu centro um centro ao mesmo tempo gerador e axial no presente da
instncia da fala. Cada vez que um locutor emprega a forma gramatical do presente
(ou uma forma equivalente), ele situa o acontecimento como contemporneo da
instncia do discurso que o menciona (Ibidem, p. 74-75).

Assim, a temporalidade, que se insere no processo de comunicao sempre a partir do


tempo presente, caracteriza-se por se atualizar, um tempo que se renova sempre a cada
instncia de enunciao, um tempo que, como eixo, possibilita remontar ao passado e projetar
o futuro.
Ono79 (2007) faz referncia ao ato de fala cada vez nico e, por ser desse modo, s
pode estar relacionado ao tempo. Diz a autora que a ideia de unicidade posta por Benveniste
est diretamente ligada ao tempo, mais especificamente ao ato efetuado no tempo (ibidem,
p. 44).
Quanto ao espao, apesar de a enunciao ser considerada como a instncia do egohic-nunc, percebemos, nos estudos enunciativos de Benveniste, uma desproporo de
tratamento em relao s categorias de pessoa e tempo. No entanto, a noo de espao deve
ser vista na sua funo no discurso, pois serve de ponto de referncia ao se inserir no processo
de comunicao, organizando o espao a partir de um ponto central (aqui, l, acol) sempre
em relao ao sujeito da enunciao. Para Benveniste tratar das coordenadas espaciais serve
79

Traduo de Daniel da Silva

69

para localizar todo o objeto em qualquer campo que seja, uma vez que aquele que o organiza
est ele prprio designado como centro de referncia e ponto de referncia (PLG II, p. 70).
Para Fiorin, o espao do discurso no remete nem a posies nem a movimentos
numa dimenso determinada nem se fecha numa subjetividade solipsista, mas funciona como
fator de intersubjetividade (2008, p. 263). A noo de intersubjetividade, portanto, no est
apenas atrelada categoria de pessoa.
O tempo e o espao so determinantes na questo da referncia em uma situao
enunciativa. Os signos, que s podem ser identificados na instncia do discurso que os
contm, ao serem empregados definem as coordenadas da instncia do discurso as noes
de pessoa, tempo e espao , e essa referncia, mediante estabelecimento de correlaes,
permite deslocamentos espaciais e temporais (FLORES; BARBISAN, 2009, p. 220).
Feito este percurso, reconhecemos que, em Benveniste, as noes de pessoa, tempo e
espao no se apresentam apenas como categorias da lngua, pois tm existncia somente
quando colocadas em uso; assim, so elementos que constituem a lngua, mas que tm sua
existncia na dependncia do uso que se faz delas.
Entendemos, ento, que a enunciao configura-se em um quadro enunciativo cuja
insero dos locutores na lngua envolve apropriao e atualizao, o que significa a presena
dos sujeitos, ou melhor, a noo de pessoa e a de situao correspondendo ao espao e ao
tempo, configurando-se, desse modo, o centro de referncia relativo enunciao.
Em termos de visualizao, poderamos sintetizar as relaes entre as categorias de
pessoa, tempo e espao na enunciao a partir do seguinte diagrama:

Enunciao como
centro de referncia

Categoria de
Tempo

Categoria de
Espao

Categoria de
Pessoa

Diagrama 1 As relaes entre as categorias de Pessoa, Tempo e Espao na enunciao

70

Aqui, segundo Flores (2008), percebe-se o nascimento de uma lingustica que


evidencia o sujeito implicado e imbricado na estrutura da enunciao.
Estando, assim, a linguagem de tal forma organizada, reconhecemos, com Dufour80,
[...] que para pr a lngua em ato preciso utilizar um sistema especfico, o sistema dos
pronomes pessoais (2000, p. 69). Assim que entendemos o uso dos pronomes, como
formas lingusticas que indicam a pessoa, atrelados subjetividade, sendo, pois, a
subjetividade de que tratamos aqui a capacidade do locutor para se propor como sujeito
(PLG I, p. 286).
Na leitura, est posto o ato de passagem de locutor a sujeito. No apenas com a figura
do autor, mas tambm com a que l, que se coloca subjetivamente, sendo, ento, o campo da
leitura o da subjetividade, pois toda leitura procede de um locutor e produz um sujeito.
Ao retomarmos alguns conceitos-chave que fundamentam a teoria benvenistiana,
vemos que essas noes produzem consequncias nos estudos lingusticos. Na lingustica
passa a existir sujeito e, com ele, tambm a referncia. Desse modo, percebemos que a
dicotomia lngua/fala, presente nos estudos saussurianos, ressurge como lngua/discurso, pois,
para Benveniste, a lngua em uso que deve ser considerada, a lngua enquanto assumida
pelo homem que fala, sob a condio de intersubjetividade, nica que torna possvel a
comunicao lingustica (PLG I, p. 293).
Esses conceitos no se esgotam nos artigos descritos at aqui, pois como diz Normand
(2009, p. 161), em Benveniste, a busca dos traos da subjetividade nas formas lingusticas
est presente desde o incio e se teoriza pouco a pouco entre hesitaes e afirmaes.
Continuamos nossa leitura de Benveniste investindo na explicitao de outros dois
artigos, quais sejam, A forma e o sentido na linguagem, presente, tambm, em um captulo
que trata do homem na lngua, e Semiologia da lngua, no captulo A comunicao,
ambos contemplados no PLG II, nos quais so retomadas questes sobre o sujeito, levandonos, porm, a entender a significao.

80

Dufour, em Os mistrios da trindade, aponta que Benveniste foi um dos raros a terem empreendido uma descrio
sistemtica desse singular dispositivo intralingustico. Os homens que falam, diz ele, desde sempre tiveram, pois, que
esperar at meados do nosso sculo para tomar como objeto o dispositivo tcnico no qual cada um deve
necessariamente entrar para falar (2000, p. 70).

71

2.2.2 A relao entre a forma e o sentido

A forma e o sentido na linguagem (1966) e Semiologia da lngua (1969) so dois


textos que nos interessam, particularmente por tratarem mais especificamente da
significao81, questo esta que passa a ser o centro das reflexes benvenistianas.
Em 1966, Benveniste, primeiramente, procura particularizar essa noo e, para isso,
diz ser relevante reinterpretar a oposio forma/sentido no funcionamento da lngua82, pois
essa oposio que colocar a significao no centro dos problemas lingusticos.
Em seguida, no texto Semiologia da lngua de 1969, ao tratar da dupla significncia
da lngua, semitica e semntica, procura apresentar uma soluo para a questo da
significao, o que, no entanto, ocorrer no texto de 1970.
Tomamos os dois textos em um nico item por entendermos que esses se
complementam, uma vez que abordam a significao no sentido de que a lngua serve para
significar e para isso depende do uso; que abordam, tambm, a referncia quando das
reflexes dos nveis semitico e semntico. Encontramos nesses artigos um encaminhamento
da perspectiva semntica presente nos estudos benvenistianos, o que nos leva a compreender
que a propriedade significante da lngua est sempre associada presena de um sujeito o
qual se comunica com outros sujeitos, ou seja, ao uso da linguagem na troca intersubjetiva.
Antes, porm, de passarmos ao estudo desses trabalhos de Benveniste, vale fazer uma
observao de natureza metodolgico-conceitual, como forma de situar o leitor: no item
anterior, nos detivemos no entendimento da vocao intersubjetiva da enunciao e, por isso,
selecionamos textos do autor que mesmo que tratem de inmeros outros assuntos
enfatizam esse ponto. O motivo que nos induziu a isso que pensamos que a leitura deve ser
pensada, antes de tudo, no quadro intersubjetivo da enunciao. Ler , de um ponto de vista
geral, colocar em relao locutores em uma dada instncia de discurso.

81

Em 1964, em Os nveis da anlise lingustica, a forma vista com relao a sentido e ambos so ligados noo
de nvel de anlise. Nesse texto, Benveniste descreve duas operaes fundamentais que comandam uma outra e das
quais todas dependem: a segmentao e a substituio. H a um princpio que se apresenta do seguinte modo: o
sentido de fato a condio fundamental que todas as unidades de todos os nveis devem preencher para obter status
lingustico (DLE, p. 123).
82

No texto de 1966, Benveniste apresenta a concepo de forma de outro modo. H dois domnios de forma, um no
semitico e outro no semntico, os quais esto inter-relacionados ou com o sistema de signos, ou com a atividade do
locutor que implica construo de referncia (DLE, p. 124).

72

Neste item, nosso interesse recai sobre outras noes, em especial as de forma e
sentido. A que se deve esse interesse? Ora, parece bvio que o que chamamos de texto o
que se l, portanto , constitui-se como uma relao de forma e sentido. No parece possvel
negar isso. Qualquer teoria que aborde o texto reconhecer nele relaes de forma e sentido.
O que especificamente se coloca para ns, no entanto, saber como essa relao
forma/sentido pode ser abordada na leitura, portanto, com relao aos aspectos da
intersubjetividade antes apresentados.
O leitor j deve ter percebido que nossa interpretao de Benveniste fortemente
guiada pelos objetivos que temos. Ento, podemos j antecipar: nosso entendimento da leitura
como modalidade de enunciao o que ser muito mais bem desenvolvido no captulo
seguinte supe que a relao entre a forma e o sentido somente pode ser vista no quadro
intersubjetivo da instncia de discurso. Passemos, agora, anlise mais detalhada desses
conceitos, em Benveniste.
O artigo A forma e o sentido na linguagem decorre de uma conferncia proferida em
1966 a filsofos, cuja reflexo norteadora a forma e o sentido na linguagem. Segundo
Benveniste,

forma

sentido

so

propriedades

conjuntas,

dadas

necessria

simultaneamente, inseparveis no funcionamento da lngua (PLG I, p. 136).


Nesse colquio, Benveniste diz que no vinha sendo tarefa dos linguistas falarem no
sentido, havia aspectos mais concretos a serem tratados no que concerne linguagem, e tratar
do sentido seria percorrer um caminho que leva ao imprevisvel. No havia, assim, consenso
quanto ao estudo do sentido, porm, continua Benveniste, essas duas noes, forma e sentido,
devem, sim, ser vistas simultaneamente. Enfatiza, ainda, que a linguagem que toma para falar
da questo proposta a linguagem ordinria, o que, de uma forma ou outra, leva a estudar a
linguagem potica.
Forma e sentido so duas noes que s podem ser vistas concomitantemente, mesmo
que, em um primeiro momento, apaream em oposio. Do ponto de vista da lngua em uso,
tal oposio precisa ser entendida e esclarecida de modo que retorne sua fora e sua
necessidade.
Numa primeira aproximao, o sentido a noo implicada pelo termo mesmo da
lngua como conjunto de procedimentos de comunicao identicamente
compreendidos por um conjunto de locutores; a forma , do ponto de vista
lingustico [...], ou a matria dos elementos lingusticos quando o sentido excludo
ou o arranjo formal destes elementos no nvel lingustico (PLG II, p. 222).

73

Para tomar esse ponto, preciso entender que a linguagem significa, que serve para
viver, que a atividade significante por excelncia, e que, se assim no o fosse, no haveria
linguagem. Nessa parte, percebemos a influncia de Saussure nas reflexes de Benveniste.
de Saussure que ele parte, do signo, reafirmando que a lngua um sistema de signos, e que
a ns compete ir alm do ponto a que chegou Saussure na anlise da lngua como sistema de
signos. Os signos da lngua significam e no uso da lngua que passam a existir (ibidem, p.
223-224).
H uma proposio que precisa ser esclarecida: dizer que a lngua feita de signos
dizer antes de tudo que o signo a unidade semitica (ibidem, p.224): ela [proposio]
contm uma dupla relao que necessrio explicitar: a noo de signo enquanto unidade e a
noo de signo como dependente da ordem semitica (ibidem, p. 225). O signo lingustico,
portanto, deve ser tratado a partir da descrio das unidades semiticas as quais devem ser
vistas sob dois aspectos: formal e semntico. H para a lngua dois modos de significar:
semitico e semntico, sendo que, para Benveniste, a significao, ligada ao uso da lngua,
est atrelada dimenso semntica da lngua. O signo visto como a unidade semitica, e a
palavra a unidade semntica.
O signo, como unidade semitica, tem forma e sentido, pois o seu significante o seu
aspecto formal, e o significado da ordem do uso, pois um signo s tem sentido se na lngua
tiver existncia, se for usado. Assim, h um princpio enunciado por Benveniste segundo o
qual o critrio que se possa identificar, no interior e no uso da lngua, tudo o que do
domnio do semitico. Enfim, para Benveniste, necessrio que se entenda que os signos se
dispem sempre e somente em relao dita paradigmtica.
H para a lngua duas maneiras de ser lngua no sentido e na forma. Acabamos de
definir uma delas a lngua como semitica; necessrio justificar a segunda que
chamamos de lngua como semntica. [...] no conseguimos encontrar termos
melhores para definir as duas modalidades fundamentais da funo lingustica,
aquela de significar para a semitica, aquela de comunicar para a semntica (PLG
II, p. 229, grifo nosso).

Se at aqui Benveniste procurou descrever uma das maneiras de ser lngua, a partir de
ento ele aponta para o enfoque semntico, o qual se efetiva a partir da insero do sujeito no
semitico. a lngua sendo usada para estabelecer relaes, para colocar o homem em
contato com o homem, o homem com o mundo (PLG II, p. 229). Nesse caso, a funo
comunicar, isto , produzir referncia. E, aqui, a unidade a palavra, que agenciada
sintaticamente pelo locutor para colocar a lngua em funcionamento; , portanto, a relao
sintagmtica que se forma, pois os elementos se ligam de modo a apontar para um sentido.

74

Como ento delimitar forma e sentido no enfoque semntico? Para Benveniste,


segundo Flores et al. (2008, p. 71),
Forma e sentido so inseparveis no funcionamento da lngua. Como assim o so,
na frase articula-se a lngua e o uso da lngua, pois os constituintes da frase so os
signos formas da lngua , agora palavras que, ao mesmo tempo em que
expressam distino, porque integradas frase, expressam sentido.

Trois (2004, p. 36), a esse respeito, diz que a semitica constitui uma propriedade da
lngua e a semntica, uma propriedade do locutor. As noes de forma e sentido,
anteriormente disjuntas, aparecem definidas e englobadas sob o enfoque semntico, pois na
converso da lngua em discurso o signo perde o lugar para o sistema em uso.
No aspecto semntico temos que a forma o agenciamento sintagmtico, e o sentido
a ideia que essa forma expressa. A referncia, na anlise semntica, essencial, uma vez que,
diferentemente da anlise semitica, a situao que constitui o sentido da frase, ou seja, dos
elementos que compem a frase, pois eles nada so se considerados individualmente. Como
aponta Benveniste, se o sentido da frase a ideia que ela exprime, a referncia da frase o
estado de coisas que a provoca. Complementa, ainda, o autor que a frase , ento, cada vez
um acontecimento diferente; ela no existe seno no instante em que proferida e se apaga
nesse instante (PLG II, p. 231).
Assim, os textos a partir do artigo de 1966, como bem aponta Normand (2009, p. 164),
se contentam em retomar os resultados das anlises precedentes e de devolv-los em uma
perspectiva filosfica. uma teoria da linguagem que se expe no texto de 1969, Smiologie
de la langue.
Portanto, essas questes no se encerram a. Dando continuidade s reflexes postas
no texto de 1966, Benveniste apresenta, em 1969, o artigo Semiologia da lngua, no qual
explicita sua perspectiva semntica ao definir os nveis semitico e semntico. Aqui, ao
apresentar um programa de semiologia universal, discute sobre o lugar da lngua entre os
sistemas de signos e, para especificar essa questo, inicia detalhando como o signo visto
tanto por Pierce quanto por Saussure.
O primeiro no se detm no funcionamento da lngua, considerando que a lngua se
reduz s palavras e que essas so igualmente signos. Para Pierce83, o signo colocado na
base do universo inteiro, onde todos os signos funcionam identicamente. Nessa teoria seria
83

Peirce e Saussure partiram do estudo do signo, na mesma poca, sem que um conhecesse o estudo do outro. Os
estudos de Peirce sobre as questes sgnicas iam alm da questo da linguagem. Como filsofo, cientista e
matemtico, Peirce desenvolvia uma teoria do signo que abarcasse uma relao tridica: signo, objeto e interpretante.

75

impossvel delimitar o lugar da lngua, pois essa no admite diferena entre o signo e o
significado. No temos, aqui, um sistema de signos que necessrio para a significncia (PLG
II, p. 45).
por esse vis que Benveniste retorna a Saussure, cujas reflexes partem da lngua,
seu objeto de estudo, a qual deve ser vista como o mais importante sistema formal de signos.
Para chegar a esse objeto, Saussure aborda a lngua84, delimitando dois princpios: o da
unidade e o da classificao. Segundo Benveniste, esto a os dois conceitos que iro
introduzir a semiologia:
O pensamento de Saussure, muito afirmativo sobre a relao da lngua com os
sistemas de signos, menos claro sobre a relao da lingustica com a semiologia,
cincia dos sistemas de signos. [...]. Mas preciso aguardar que a semiologia,
cincia que estuda a vida dos signos no seio da vida social, seja constituda para que
aprendamos em que consistem os signos, quais as leis que os regem. Saussure
devolve cincia futura o papel de definir o prprio signo. Entretanto ele elabora
para a lingstica o instrumento de sua semiologia prpria, o signo lingstico.
(Ibidem, p. 49)

O que se apresenta, ento, nesse artigo, um programa de semiologia geral, em que


Benveniste, ao retomar o problema posto primeiramente por Saussure, enfatiza a necessidade
de discusso a fim de se consolidar as bases da semiologia, apontando o estatuto da lngua
em meio aos sistemas de signos (ibidem, p. 51).
Considerando que o papel do signo85 o de representar, Benveniste vai comparar a
lngua a sistemas de signos diversos, tais como a msica e a arte86, concluindo que h
diferena entre a natureza e o modo de funcionamento dos signos e que o ponto central a
noo de unidade. A lngua para Benveniste, diferentemente dos outros sistemas, um
sistema semitico87, com unidades significantes, considerada o interpretante de todos os
outros sistemas, lingusticos e no-lingusticos, pois somente ela capaz de categorizar e
interpretar qualquer sistema, inclusive ela mesma (PLG II, p. 62).
preciso, no entanto, reconhecer como e por que a lngua considerada o
interpretante de todos os outros sistemas, e, para esse entendimento, remetemo-nos a
84

Saussure separa lngua e linguagem tendo em vista a delimitao de um mtodo que aborde a questo pela unidade
que domina a multiplicidade de aspectos com que se apresenta a linguagem. a lngua o objeto das reflexes
saussurianas (PLG II, p. 47).
85

Apontamos aqui, que o signo para Benveniste no bem o de Saussure. um signo que j comporta o semntico.

86

Na msica e na arte, conforme Benveniste, no h nada de repetvel/regular/sistmico e por isso nessas reas h uma
semitica especfica (CAVALHEIRO, 2004, p. 47).
87

H aqui uma nova exigncia de mtodo: preciso que a relao colocada entre sistemas semiticos seja ela prpria
de natureza semitica. E, ainda, determinar se um sistema semitico dado pode se auto-interpretar ou se ele deve
receber sua interpretao de um outro sistema (PLG II, p. 54).

76

Benveniste quando apresenta trs tipos de relaes: de engendramento, de homologia e de


interpretncia (PLG II, p. 61-62).
O que ocorre nessas relaes que o primeiro tipo delas vale entre dois sistemas
distintos e contemporneos, mas de mesma natureza, sendo o segundo construdo a partir do
primeiro e preenche sua funo especfica; a segunda relao estabelece uma correlao
entre as partes de dois sistemas semiticos; e a terceira, , do ponto de vista da lngua, a
relao fundamental, pois somente a lngua pode tudo categorizar e interpretar, inclusive ela
mesma (PLG II, p. 61-62).
A lngua o interpretante de todos os outros sistemas, porque somente ela investida
de uma dupla significncia: o semitico e o semntico. Para o modo semitico, a teoria do
signo lingustico proposta por Saussure pode dar conta, mesmo que se considere as duas
partes do signo separadamente, na relao de significncia, o signo uma unidade. O que tem
de ser considerado a sua existncia, e esta se decide por sim ou no deciso essa atrelada
queles que usam a lngua.
Podemos ilustrar a questo a partir da seguinte passagem no texto de 1966 de
Benveniste: Chapu existe? Sim. Chamu existe? No (PLG II, p. 227).
Segundo o Dicionrio de lingustica da enunciao (DLE)88, esse exemplo serve para
uma ilustrao sobre o signo (unidade semitica) no que diz respeito ao sentido. A questo no
mais de definir o sentido, enquanto o que releva da ordem semitica. No plano do significado
o critrio : isso significa ou no? Significar ter um sentido e nada mais (DLE, p. 212).
No entanto, para o nvel semntico, h necessidade de novos conceitos e novas
definies, uma vez que no se trata mais de olhar para a lngua apenas como um sistema de
signos, mas, sim, de olhar para a lngua em uso. O que temos sobre essas noes :
Que se trata claramente de duas ordens distintas de noes e de dois universos
conceptuais, pode-se mostrar ainda pela diferena quanto ao critrio de validade89
que requerido por um e por outro. O semitico (o signo) deve ser
RECONHECIDO; o semntico (o discurso) deve ser COMPREENDIDO. A
diferena entre reconhecer e compreender envia a duas faculdades distintas do
esprito: a de perceber a identidade entre o anterior e o atual, de uma parte, e a de
perceber a significao de uma enunciao nova, de outra. (PLG II, p. 66)

88

Sempre que referirmos ao Dicionrio de lingustica da enunciao usaremos o seguinte sistema: sigla DLE seguida
de pgina.
89

Benveniste apresenta quatro critrios que caracterizam um sistema semiolgico: modo operatrio, domnio de
validade, natureza e nmero de seus signos e seu tipo de funcionamento. Especificamente, o critrio de validade
aquele em que o sistema se impe e deve ser reconhecido ou obedecido (PLG II, p. 52).

77

No semntico, diz Benveniste, a unidade a palavra; o sentido est no conjunto dos


elementos que, mesmo tendo um sentido a priori, tm sua significncia estabelecida na
sintagmatizao. Assim, a ordem semntica se identifica ao mundo da enunciao e ao
universo do discurso (Ibidem, p. 66).
Conclui Benveniste que preciso ir alm do signo para entender a estrutura e o
funcionamento da lngua. Desse modo h duas vias para irmos alm do que nos props
Saussure: pela anlise intralingustica e pela anlise translingustica, que, segundo Benveniste,
pode ser esclarecida da seguinte forma:
- na anlise intralingstica, pela abertura de uma nova dimenso de significncia, a
do discurso que denominamos semntica, de hoje em diante distinta da que est
ligada ao signo, e que ser semitica;
- na anlise translingstica dos textos, das obras, pela elaborao de uma metassemntica90 que se constituir sobre a semntica da enunciao. (Ibidem, p. 67)

Percebe-se que Benveniste retoma a semiologia como proposta por Saussure no


sentido de uma cincia geral dos sistemas de signos, porm no fica claro o que ele entende
por semiologia. Abrem-se a duas possibilidades: a semiologia saussuriana apontada
anteriormente e uma semiologia que aponta para as anlises semitica e semntica aplicadas,
por exemplo, ao domnio da lngua (NORMAND, 2009, p. 178-179).
Como diz Normand em texto que relaciona Saussure e Benveniste:
A cincia progride, o conhecimento da linguagem abre continuamente novos
caminhos, nada pode parar seu desenvolvimento: semiologia geral, semiologia de
segunda gerao, semiologia universal. Todas as cincias esto envolvidas,
convidadas a se reagruparem sob a gide de um pensamento dos signos que s lhes
impe uma coisa: no esquecer que o sentido passa sempre pelas formas
(NORMAND, 2009, p. 203).

Essa relao apontada por Normand no trata apenas da filiao de Benveniste a


Saussure. Considera a possibilidade de um discurso de fundao que contribui para propagar
as ideias saussurianas, desenvolvendo-as a partir de um novo patamar. assim que
Benveniste, a partir de Saussure, abre nova perspectiva e apresenta os estudos lingusticos
atravs de uma lingustica da significao (ibidem, p. 198).
Percebe-se nessa forma de ver a lngua, como expresso de dupla significncia, dois
modos de significar indissociveis, uma vez que a lngua atualizada em discurso por um
locutor. Desse modo, a lngua em uso reconhecida e compreendida, o que significa, no

90

Anlise translingustica de textos e de obras cuja base terica a semntica da enunciao (DLE, 2009, p. 165).

78

primeiro caso, perceber a identidade entre o anterior e o atual, de uma parte, e no segundo
caso, perceber a significao de uma enunciao nova, de outra (PLG II, p. 66).
Destacamos a seguinte passagem em Flores (2008), que esclarece as questes
anteriormente apresentadas:
As capacidades de reconhecimento e compreenso so relativas a um jogo que se
estabelece entre o geral e o especfico: a generalidade da forma que indica pertena
lngua, e a especificidade da forma no uso palavra , indicando um sentido relativo
situao enunciativa. Este jogo entre o geral e o especfico se d por
sintagmatizao-semantizao, ou seja, uma atividade com a lngua, tendo em vista
a atribuio de referncia e co-referncia (FLORES et al., 2008, p. 74).

Vislumbramos, ento, nesse trecho, que Benveniste parte para a dimenso do discurso,
apresentando questes relativas enunciao; agora, pois, no mais o estudo da lngua, mas
o do sentido e o do discurso. O que se apresenta a enunciao, cuja principal funo
atualizar o sistema de signos. Segundo Ono (2007), Benveniste ope o mundo dos signos
objeto da lingustica saussuriana ao mundo da enunciao.
Percebe-se, nos ltimos textos tericos de Benveniste, que o termo semiologia a base
de suas reflexes e configura, alm de um programa propriamente lingustico, uma teoria da
enunciao que est baseada na distino

entre semitico e semntico, distinguindo e

integrando esses dois componentes (NORMAND, 2009, p. 180).


No que diz respeito ao processo de leitura, forma e sentido, semitico e semntico se
relacionam questo da significncia da lngua associada presena de um sujeito que, na
troca enunciativa com o interlocutor, faz uso faz da lngua. Portanto a intersubjetividade,
presente no ato de leitura, nos conduz a entender esse processo como uma relao em que o
sujeito se apropria de uma forma e a atualiza constituindo sentido, o seu sentido singular. ,
portanto, instituindo essas relaes que se compreende a leitura como um ato enunciativo.
Desse modo, forma e sentido, semitico e semntico so noes que nos conduzem,
no processo de leitura, a perceber a significao de uma nova enunciao. A leitura, portanto,
no que diz respeito a essas noes tericas, est atrelada capacidade do leitor de
reconhecimento e de compreenso. O ato/processo de leitura se constitui no instante em que o
sujeito-leitor consegue estabelecer essas relaes de forma e sentido. O que est na base desse
ato/processo so, dessa maneira, a sintagmatizao e a semantizao, o que compreende uma
atividade com a lngua que atribui referncia e co-referncia.
Encaminhemo-nos agora para o item seguinte, depois de termos tomado como
referncia alguns dos principais textos benvenistianos que tratam do uso da linguagem.

79

Seguimos seu caminho, reconhecendo suas filiaes e entendendo seu retorno a Saussure
para, ento, definir a lngua enquanto sistema de enunciao.
Como bem aponta Ono (2007), so muitos os trabalhos que tomam os estudos
benvenistianos como base para suas reflexes; mesmo que o autor nunca tenha terminado91
seu trabalho, sua retomada fundamental para a histria da lingustica. No entanto, ainda que
se proclame uma teoria da enunciao em Benveniste, preciso reconhecer que essa noo
se forma no decorrer do tempo e dentro de diferentes problemticas da lingustica proposta
por esse autor, e como ela se articula com outras noes, tericas ou no (ONO, 2007, p. 19).
Tal como fizemos no item anterior, propomos abaixo um diagrama que d a ver as
relaes entre a forma e o sentido nos domnios do semitico e do semntico da lngua.

Forma/sentido

Diagrama 2 A forma e o sentido nos planos semitico e semntico

No prximo item, trataremos especificamente da enunciao tomando como base o


texto O aparelho formal da enunciao, de modo a entendermos que abrangncia tem essa
noo para nossa proposta que busca construir uma forma de estudar a leitura na enunciao.
91

No terminar o trabalho diz respeito, segundo Ono, ao texto de 1970, ltimo escrito por Benveniste, tendo em vista
que o autor adoece e deixa de publicar. Mesmo considerando que nesse texto h um certo fechamento em relao a
suas ideias, preciso reconhecer que, caso no tivesse adoecido, Benveniste poderia ter dado continuidade a suas
publicaes.

80

2.2.3 A enunciao

Acreditamos, pois, que o recorte feito at aqui aponta, na obra de Benveniste, para
uma trajetria terica que o leva progressivamente a traar os contornos de sua teoria da
enunciao. Mesmo que na maioria de seus artigos a palavra enunciao no tenha sido
utilizada, percebe-se em suas elaboraes conceituais um percurso enunciativo presente no
conjunto de textos publicados em Problemas de lingustica geral I e II. Em Benveniste no h
uma diviso de textos que apontam separadamente para temas como lingustica, significao,
sujeito, ente outros, pois, em Benveniste, segundo Dahlet (1997, p. 196), h enunciao, de
parte a parte, porm, com um grau e andamento variveis, no sistematizada em um nico
conceito, mas que sistematiza coerncias mltiplas e parciais.
Para Ono (2007, p. 19), importante observar como a temtica da enunciao se
forma a partir das diferentes problemticas apresentadas por Benveniste ao longo de sua
trajetria, pois os artigos publicados por ele tratam tanto de teorizao geral, quanto de
gramtica comparada e, at mesmo, de antropologia lingustica.
Tudo acontece como se, para Benveniste, o estudo da linguagem no pudesse se
apresentar de uma maneira sinttica. O certo que, em um determinado momento de
sua carreira, bastante cedo, alis, Benveniste teve que experimentar o mesmo
embarao que teve Saussure antes dele: de acordo com o mestre genebrino, o ponto
de vista que cria o objeto lingustico. Publicar em coletnea ter sido a nica iniciativa de
Benveniste para dar forma a uma lingustica geral. (ONO, 2007, p. 19-20)

Porm, em O aparelho formal da enunciao, escrito em 197092, podemos sintetizar


as reflexes benvenistianas a respeito da enunciao, reconhecendo com Ono que, quando o
autor analisa fatos da lngua, os pensamentos mais sutis sobre enunciao emergem. Esse
artigo considerado um dos mais importantes no apenas por se constituir o ltimo texto
escrito por Benveniste, mas, principalmente, por retomar e especificar elementos que
esclarecem questes referentes problemtica da enunciao.
Assim, comeamos por reconhecer que nesse artigo Benveniste distingue formas e
usos lingusticos, retomando o que ele denominou como dois modos de significncia. Assim,
Benveniste parte mais uma vez da descrio lingustica da forma que era feita em
sua poca, e coloca seu objetivo de estudar o emprego da lngua distinto do emprego

92

Apresenta-se como ltimo grande trabalho de Benveniste e pode ser considerado um trabalho de sntese, pois rene
todas as reflexes at ento propostas, de forma mais acabada.

81

das formas. O emprego da lngua um mecanismo relativo a toda a lngua atravs


da enunciao, da qual o discurso a manifestao. Mas o discurso no a fala de
Saussure, que Benveniste interpreta como sendo a produo do enunciado. A lngua
o instrumento de que se utiliza o locutor para se enunciar e produzir o discurso.
Pela enunciao a lngua se converte em discurso. (NORMAND, 2009, p. 16)

O que percebemos que, aparentemente, ele minimiza a distino entre semitico e


semntico, integrando-os na noo de aparelho, pois, o que surge a lngua convertida em
discurso na apropriao do sistema pelo locutor, definindo-se enunciao como este colocar
em funcionamento a lngua por um ato individual de utilizao. Esse processo, segundo
Benveniste, no muito fcil de ser apreendido, pois se trata de um mecanismo total e
constante que, de uma maneira ou outra, afeta a lngua inteira (PLG II, p. 82). Para a
compreenso da questo, ele aponta trs aspectos principais, entre outros, que podem levar a
apreenso dessa concepo de enunciao.
O primeiro aspecto, o vocal, geralmente no visto como diretamente ligado ao tema
da enunciao, no entanto, podemos salientar que o mais perceptvel deles, e desse podemos
depreender que no h igualdade de sons, ou seja, a noo de identidade no seno
aproximativa. O segundo aspecto refere-se semantizao a qual posta como converso
individual da lngua em discurso. Diz Benveniste que h uma dificuldade a ser resolvida, qual
seja, reconhecer como o sentido se forma em palavra, em que medida se pode distinguir
entre as duas noes e em que termos descrever sua interao. Aqui, nesse segundo aspecto,
o que est sendo enfatizado a teoria do signo e a anlise da significncia (ibidem, 83).
, porm, o terceiro aspecto, que ser considerado por Benveniste nesse artigo: a
enunciao no quadro formal de sua realizao. E qual esse quadro? Aqui, passa a fazer
parte desse quadro a lngua como um todo, e no apenas as formas anteriormente previstas
tais como os pronomes, verbos, advrbios, entre outros.
O aparelho formal de enunciao93 apresenta uma ampla reflexo a respeito do uso
da lngua, apontando que nesse uso que os elementos agenciados adquirem sentido. Em
Flores e Teixeira (2005), podemos melhor especificar a enunciao a partir desse quadro
formal de sua realizao:
Esse quadro terico d conta do processo de referenciao como parte da
enunciao, isto , ao mobilizar a lngua e dela se apropriar, o locutor estabelece
relao com o mundo via discurso de um sujeito, enquanto o alocutrio co-refere.
(Ibidem, p. 36)

93

Pode ser definido como uma espcie de dispositivo que as lnguas tm para que possam ser enunciadas. Este nada
mais que a marcao da subjetividade na estrutura da lngua. (FLORES; TEIXEIRA , 2005, p. 36)

82

Segundo Ono (2007), uma das definies de enunciao a semantizao da lngua, a


palavra frase substituda por enunciado, que, ao ser produzido, no movimento de converso
da lngua em discurso, apresenta o sentido de enunciao. Esse conceito, em Benveniste, est
atrelado ao conceito de enunciao como este colocar em funcionamento a lngua por um ato
individual de utilizao.
A noo de enunciao, presente nesse artigo, uma tentativa de unificar questes
desenvolvidas anteriormente e que, de uma forma ou outra, mesmo tratando de outras
temticas, levam teorizao dessa noo. preciso, pois, compreender enunciao como ato
individual de utilizao e como processo de apropriao da lngua. Como mostra Ono (2007),
a noo de enunciao, em princpio, tem relao com o eu indispensvel para que a
enunciao seja subjetiva e considerada um ato. Aqui, mesmo que parea existir uma relao
com as reflexes de Benveniste sobre o ato performativo94, deve-se estabelecer que a
enunciao o ato de produzir um enunciado, e que o ato performativo se realiza apenas por
sua nominao no enunciado (ONO95, 2007, p. 93).
A enunciao como ato individual de utilizao leva em conta que h um locutor que
se apropria de determinadas formas lingusticas para, com elas, transformar individualmente
a lngua em discurso. Eis a o que Benveniste denomina semantizao da lngua.
Tomemos as palavras de Benveniste para melhor explicitar esse ato individual:
O ato individual pelo qual se utiliza a lngua introduz em primeiro lugar o locutor
como parmetro nas condies necessrias da enunciao. Antes da enunciao, a
lngua no seno possibilidade de lngua. Depois da enunciao, a lngua
efetuada em uma instncia de discurso que emana de um locutor, forma sonora que
atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciao de retorno. (PLG II, p. 83-84)

Com essa passagem, primeiramente reconhecemos que a lngua no mais


considerada apenas como formas que tm valor umas em relao s outras. Lngua , ento,
semitico e semntico, uma vez que tomada como um todo por um locutor que coloca para
referir o mundo da presente instncia do discurso. Entendemos, desse modo, que o
funcionamento da lngua est atrelado ao locutor, que se constitui como sujeito e que,
automaticamente, coloca o outro em posio de alocutrio. A enunciao , ento, explcita
ou implicitamente uma alocuo (PLG II, p. 84).
94

O termo performativo aparece nas reflexes de Benveniste desde 1958, mas no artigo A filosofia analtica e a
linguagem que o autor apresenta o sintagma enunciado performativo como um ato nico e singular. Segundo Ono,
esse conceito no deve ser confundido com a noo de que a enunciao um ato individual de utilizao da lngua,
pois o ato performativo realizado pelo ato de enunciar a frase que contm um verbo que descreve essa atividade
(ONO, 2007, p. 86).
95

Traduo de Daniel da Silva.

83

Compreendemos, pois, que na enunciao h a presena do locutor na lngua, uma vez


que ao designar-se como eu o locutor pode apropriar-se de toda lngua, o que significa atribuir
referncia. Aqui, retornamos subjetividade, anteriormente apresentada por Benveniste, que
est relacionada presena de eu/tu: eu como o indivduo que profere a enunciao e tu,
como o alocutrio. A enunciao , ento, para o locutor, a necessidade de referir pelo
discurso, e para o outro, a possibilidade de co-referir (PLG II, p.84).
Quanto subjetividade e intersubjetividade, no estabelecimento do que
enunciao, Lichtenberg diz que
Enunciao pressupe eu que diz eu, e porque assim o faz, diz tambm tu. Com sua
manifestao, constitui tambm o aqui-agora, o contexto da enunciao. A
enunciao , pois, responsvel pela instaurao da intersubjetividade e do presente,
que serve como parmetro para todas as relaes espaciais e temporais. (2001, p.
146)

Porm, conforme havamos salientado anteriormente, para Benveniste a enunciao,


como apropriao da lngua, no fica restrita a algumas formas. So instrumentos de sua
realizao os ndices de pessoa, de ostenso, formas temporais, entidades de estatuto pleno na
lngua e indivduos lingusticos, o aparelho de funes (interrogao, intimao, assero), as
modalidades formais e, como resume Benveniste, o quadro da enunciao a lngua como um
todo.
Outro ponto, posto por Benveniste aps a explicitao de todos esses mecanismos
envolvidos no processo de enunciao, diz respeito ao dilogo, pois o que em geral
caracteriza a enunciao a acentuao da relao discursiva com o parceiro, seja esse real ou
imaginado, individual ou coletivo. Segundo o autor, pode-se ver na enunciao um quadro
figurativo, uma vez que essa coloca duas figuras igualmente necessrias, uma, origem, a
outra, o fim da enunciao (PLG II, p. 87).
No Dicionrio de lingustica da enunciao encontramos o que dilogo em
Benveniste:
Uma troca verbal entre interlocutores movida por um interesse comum ou
intersubjetivo. Assim, cada um dos interlocutores, ao propor-se alternativamente
como eu, pode manter ou alterar a trajetria do dilogo, de acordo com sua
concepo singular do objeto comum aos dois. (DLE, p. 81)

Pode-se dizer, pois, que o fundamento terico e metodolgico para a lingustica da


enunciao est na realizao intersubjetiva que se d no dilogo quando a lngua colocada
em funcionamento na enunciao.

84

Resumindo, vimos que, nesse texto, Benveniste apresenta trs aspectos relativos
enunciao: vocal, semantizao e quadro formal, sendo o ltimo no que ele se detm para
explicar a enunciao como ato de utilizao da lngua. Assim, fazem parte desse quadro o
locutor, o alocutrio, a situao de tempo e de espao e, ainda, os mecanismos lingusticos
utilizados nessa utilizao.
Aps discorrer sobre os elementos da enunciao, e defini-la como o colocar em
funcionamento a lngua por um ato individual de utilizao, Benveniste aponta que muita
coisa ainda se pode estudar no contexto da enunciao, pois a lngua deve ser tomada como
um todo. Com isso, entendemos que h, nas reflexes de Benveniste, abertura para novas
perspectivas em relao s questes que tomam lngua/linguagem como objeto de estudo.
Este captulo, portanto, caracterizou-se por apontar que em Benveniste o estudo da
enunciao desenvolve-se a partir de uma srie de noes, as quais vo se interligando de
forma a mostrar que a estrutura terica, presente nos estudos benvenistianos, constitui-se em
uma semntica que d conta da lngua como um todo.
Na nossa leitura de Benveniste, a enunciao , portanto, um ato que implica a simultaneidade do semitico/semntico, da forma/sentido e das relaes entre pessoa, tempo e espao.
Com a figura abaixo, esperamos poder dar a ver, mesmo que de forma incipiente, as
relaes que supomos entre as noes desenvolvidas neste captulo.

S
E
M
I
O
T
I
C
O

PESSOA

Forma/sentido

Forma/sentido

TEMPO

ESPAO

S
E
M
A
N
T
I
C
O

Diagrama 3 Esquema da enunciao


O ato enunciativo de que fala Benveniste uma dessas questes. esse ato um
processo no qual o locutor mobiliza a lngua, toma-a como instrumento, e a atualiza a partir
de sua singularidade, ou como diz Benveniste, a enunciao supe a converso individual da

85

lngua em discurso (PLG II, p. 83). Nesse caso, preciso considerar tanto o ato quanto as
situaes em que ele se realiza e os instrumentos dessa realizao.
Assim, na leitura nos interessa o ato, como apropriao do texto pelo locutor-leitor,
que passa, na sua relao interlocutiva com o texto/enunciado, a sujeito-leitor. Nesse ato o
sujeito se apropria de uma enunciao anterior, atualizando-a, atravs do uso de formas
especficas que situam o locutor em relao sua enunciao.
Enfim, preciso nesse ato considerar a lngua toda como o aparelho formal da
enunciao, o qual definido como dispositivo que permite ao locutor transformar a lngua
em discurso (DLG, p. 48).
Resumimos, a partir da leitura feita at aqui, que as noes apresentadas foram se
costurando de uma forma tal que nos levaram a compreender que em Benveniste h uma
teoria da enunciao. Tais noes, ao configurarem-se num quadro enunciativo, apontam para
a possibilidade de investigao de qualquer questo relativa linguagem a partir dessa teoria.
Algumas questes concludentes se fazem necessrias para que se possa, a partir da
teoria enunciativa de Benveniste, focar o tema da leitura.
necessrio entendermos como as noes que envolvem os estudos enunciativos
podem contribuir para a confirmao de nossa hiptese de que a leitura uma modalidade de
enunciao. E, ainda, que caminho metodolgico a abordagem enunciativa permite formular
para descrever a leitura como modalidade de enunciao. Essas so questes que permearo
nosso trabalho nos prximos captulos.

86

CAPTULO 3

Enunciao e leitura

No sei como aprendi a ler; recordo-me apenas


de minhas primeiras leituras e do efeito delas em
mim a partir do qual dato, sem interrupo, a
conscincia de mim mesmo.
J.-J. Rousseau

Seguir uma abordagem enunciativa para tratar a leitura, conforme indica o ttulo deste
captulo, implica tomar como norte alguns pressupostos decisivos, de certa forma j
anunciados no decorrer dos captulos anteriores, quando, primeiramente, tratamos das
principais perspectivas de leitura trabalhadas no Brasil e, ainda, quando da descrio dos
principais conceitos enunciativos presentes na obra de mile Benveniste. Faz-se necessrio,
ento, retomar as questes at aqui levantadas com o intuito de balizar a discusso a ser seguida.
No primeiro captulo desta tese, mostramos a constituio do campo da leitura a partir
de diferentes concepes que colocam em relevo o conceito de leitura e os elementos
implicados nesse processo. A verificao das diversas teorias possibilitou-nos mostrar que as
diferenas envolvidas, em cada concepo acerca da leitura, s reforam a necessidade de
uma reflexo terica que aborde o processo como uma questo de lngua, mais
especificamente de linguagem, e que, nesse caso, o que tem de ser evidenciado a
significao, pois somente ela pode explicitar o funcionamento da lngua. Nesta parte,
permitimo-nos pensar sobre o sentido e apontar a falta de uma base terica que coloque a
leitura como uma modalidade de enunciao, pois consideramos o processo de leitura como a
colocao da lngua em uso pelo locutor, o que, provavelmente, os estudos que tm como
parmetro uma leitura com nfase no processo social, pedaggico ou apenas cognitivo no
possibilitam enfatizar.
No segundo captulo, j tendo reconhecido a necessidade de um embasamento terico
que tivesse como ponto de apoio o uso da lngua e para tal a necessidade de explicitar o papel
dos sujeitos envolvidos no processo de leitura, percorremos a teoria de Benveniste, a fim de
descrever seu percurso terico, pois entendemos que nessa teoria teramos encontrado o

87

embasamento necessrio para demonstrar que a leitura um ato enunciativo e, como tal,
coloca em pauta elementos como semitico/semntico, forma/sentido e as relaes entre
pessoa, tempo e espao.
Considerando-se as leituras feitas anteriormente para o primeiro captulo e tendo em
vista o percurso terico apresentado no segundo captulo, cujos elementos do conta de uma
teoria enunciativa, compreende-se como o processo de leitura, neste estudo, pode ampliar um
entendimento do papel da linguagem na produo do sentido, diferindo, assim, do que at
ento foi apresentado.
Nesse caminho, este terceiro captulo consiste, primeiramente, em situar os
embasamentos para o entendimento da leitura na perspectiva enunciativa. Faremos isso
destacando como os conceitos de intersubjetividade e subjetividade na estrutura
pessoa/tempo/espao, a relao forma e sentido associada a semitico/semntico e o conceito
de enunciao esto implicados em uma teoria da leitura a partir dos fundamentos da teoria
benvenistiana (cf. 3.1; 3.2; 3.3). A partir disso pensamos poder explicitar o nosso
entendimento da leitura na perspectiva enunciativa.

3.1 A teoria enunciativa da leitura

A partir do que havamos salientado (item 2.2.1), podemos dizer que na leitura est
posta a questo do locutor que l e que, ao ler, torna-se sujeito, sendo, ento, o campo da
leitura o da intersubjetividade, pois toda leitura procede de um locutor que se prope como
sujeito.
Tratar da intersubjetividade e da subjetividade atreladas ao processo de leitura
significa, neste momento, avaliar a importncia da presena do locutor nos estudos
lingusticos e, com isso, especificar como essa presena pode estar relacionada ao
ato/processo de leitura. Portanto, aqui, interessa-nos esclarecer essas noes de modo a
reinterpret-las a partir do fenmeno da leitura.
Vimos na teoria enunciativa de Benveniste uma ampla reflexo a respeito da
linguagem96, principalmente no que diz respeito a uma descrio sistemtica dos pronomes.

96

Os termos linguagem e lngua, na teoria de Benveniste, no se revestem teoricamente, mesmo que em alguns
contextos de seus artigos possamos coloc-los em relao de sinonmia. Assim, o termo linguagem, em

88

Benveniste, ao desenvolver essa descrio, inseriu o sujeito nos estudos lingusticos, o que o
levou a tratar da lngua em funcionamento. Para o autor, cada enunciao um acontecimento
que no se repete, pois a intervm as categorias de pessoa, tempo e espao, condies que
revelam a intersubjetividade na linguagem. Com base, portanto, nessa viso de lngua o nosso
movimento em direo a uma leitura enunciativa, que tem por ponto de partida o locutorleitor, dar-se- a partir da intersubjetividade/subjetividade que em Benveniste central. O
autor enfatiza que a intersubjetividade permite o uso da lngua. Somente porque h
interlocuo ou seja, porque um locutor se prope como sujeito e, ao se propor como tal,
promove a existncia de um alocutrio que se pode falar no uso de lngua.
Para Barthes, Benveniste trata a enunciao como ato sempre renovado pelo locutor
que, ao tomar posse da lngua, torna-se sujeito quando fala. Barthes salienta a importncia que
Benveniste d intersubjetividade, uma vez que o sujeito s se torna sujeito na medida em
que fala (e, portanto, no h subjetividade); h s locutores; bem mais [...], h s
interlocutores (2004, p. 211-212).
Retomando o que dissemos anteriormente, entendemos que rever os conceitos de
intersubjetividade e subjetividade, assim como outros conceitos presentes na teoria
benvenistiana forma/ sentido, semitico/semntico e enunciao , seja o ponto de partida
para tornar mais clara a viso de uma abordagem da leitura na perspectiva enunciativa.
Enfim, que deslocamentos devemos operar na teoria enunciativa de Benveniste, tal
como a apresentamos no captulo anterior, para produzirmos uma perspectiva de anlise do
ato/processo de leitura? A busca de respostas a tais questes ser a nossa condutora a seguir.
Passemos aos deslocamentos que operamos porque, com eles, pensamos poder fundamentar
nossa tese de que ler enunciar.

Benveniste, pode ser compreendido como faculdade de simbolizar inerente condio humana (DLE, p. 152).
Ou seja: assim entendida, a linguagem est diretamente ligada intersubjetividade, uma vez que, como uma
faculdade de simbolizar, ela condio de existncia do homem e como tal sempre referida ao outro (DLE, p.
152). Ou ainda: A linguagem constitutiva do homem na justa medida em que a intersubjetividade lhe
inerente. Dessa forma, pode-se considerar que a vinculao entre linguagem e intersubjetividade constitui uma
espcie de a priori da teoria benvenistiana (DLE, p. 152). O termo lngua, por sua vez, remete a outras noes
tericas: o DLE a entende como um sistema que inter-relaciona valor distintivo das formas e valor referencial
relativo situao enunciativa (DLE, p. 150). Dessa forma, podemos ver que a linguagem uma condio
constitutiva do homem, que se manifesta na lngua e, consequentemente, nas lnguas. Isso evidente quando
Benveniste alterna o termo linguagem com lngua e com lnguas. Por exemplo, em A linguagem e a experincia
humana, texto de 1965, em que afirma a respeito da temporalidade: Chega-se assim a esta constatao
surpreendente primeira vista, mas profundamente de acordo com a natureza real da linguagem de que o nico
tempo inerente lngua o presente axial do discurso, e que este presente implcito. [...] Esta parece ser a
experincia fundamental do tempo, de que todas as lnguas do testemunho sua maneira (PLG II, p. 76). Nesta
tese, seguiremos essas indicaes para o uso dos termos linguagem, lngua e lnguas.

89

3.1.1 Primeiro deslocamento: a passagem de locutor a sujeito na leitura

O Dicionrio de lingustica da enunciao define locutor, na teoria benvenistiana,


como indivduo lingustico cuja existncia se marca na lngua toda vez que toma a palavra
(DLE, p. 157). A isso, acrescenta, em nota explicativa:
Locutor aquele que fala em uma dada instncia de discurso e que, ao falar, se
marca atravs de marcas especficas na lngua. Trata-se de uma noo importante na
teoria de Benveniste porque ela permite a Benveniste formular a noo de sujeito e,
por esta, a de subjetividade. (DLE, p. 157)

Como podemos ver, no DLE a noo de locutor embasa a de sujeito, isto , permite
um movimento de passagem de uma noo outra, o que ilustrado com alguns textos como,
por exemplo, A natureza dos pronomes, em que afirmado que se identificando como
pessoa nica pronunciando eu que cada um dos locutores se coloca como sujeito (PLG I,
p. 280-281). Em Da subjetividade na linguagem, encontramos tambm: A linguagem s
possvel porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no
seu discurso (PLG I, p. 286). E conclui o DLE: [...] a noo de locutor necessria para que
Benveniste possa formular a noo de sujeito, uma vez que sua teoria dedica-se bastante a
estudar a subjetividade entendida como capacidade do locutor para se propor como sujeito
(PLG I, p. 286).
No DLE encontramos que, quanto a sujeito, o termo aparece em Benveniste com
diferentes sentidos. H usos prximos a estudos da tradio gramatical ou relativos sintaxe
em seu aspecto formal, h usos relativos a indivduo que fala, e h usos cujo sentido decorre
da alternncia com outros termos, tais como: locutor, pessoa, eu e homem. Vale citar na
ntegra o que apresenta o DLE:
H, tambm, usos cuja especificidade decorre da alternncia com outros termos.
Como em Estrutura da lngua e estrutura da sociedade, de 1968, em que a
especificidade de sujeito decorre da alternncia com falante: Para cada falante o
falar emana dele e retoma a ele, cada um se determina como sujeito com respeito ao
outro ou a outros. (BEN89: 101). As nuances de sentido podem se complexificar
ainda mais em funo dos termos que co-ocorrem com sujeito. Observe-se a
passagem a seguir, presente em A natureza dos pronomes, em que Benveniste
utiliza, primeiramente, a expresso sujeito falante entre aspas e, em seguida, diz:
identificando-se como pessoa nica pronunciando eu que cada um dos locutores
se prope alternadamente como sujeito (BEN95: 280-281) [grifo nosso]. H aqui
termos que no se recobrem teoricamente: sujeito falante, pessoa, locutores e
sujeito. Por motivos bvios, o termo adquire grande relevncia terica em Da
subjetividade na linguagem, de 1958. Nesse texto, Benveniste parece deixar
entrever que o sujeito no nem homem na linguagem e pela linguagem que o
homem se constitui como sujeito. (BEN95: 286) , nem locutor A
subjetividade de que tratamos aqui a capacidade do locutor para se propor como
sujeito. (BEN95: 286). Ou ainda: A linguagem s possvel porque cada locutor

90

se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso


(BEN95: 286). E tambm: na instncia do discurso na qual eu designa o locutor
que se enuncia como sujeito (BEN95: 288). (DLE, p. 220-221)

A partir disso, podemos concluir que os termos locutor e sujeito no se recobrem


teoricamente, embora sejam, muitas vezes, apresentados em diferentes textos de Benveniste,
em relaes de sinonmia.
Do nosso ponto de vista, importante manter a distino locutor/sujeito, porque ela
atende a uma especificidade de nosso trabalho, qual seja: permite ver que h no ato/processo
de leitura uma dupla instncia conjugada, para usar uma expresso benvenistiana, a instncia
do locutor aquele que fala, em nosso caso, aquele que l e a instncia do sujeito aquele
que se marca singularmente no ato de enunciao, em nosso caso, aquele que se marca
singularmente no ato de leitura.
Desse prisma e tendo em vista os propsitos desta tese, autorizamo-nos a cunhar uma
terminologia que diga respeito especificidade das figuras enunciativas na leitura. Falaremos
em locutor-leitor e sujeito-leitor no ato/processo de leitura para colocar em relevo a passagem
de locutor a sujeito da qual nos fala Benveniste.
Para ns, h, na leitura, a passagem de um locutor-leitor a um sujeito-leitor.
Expliquemo-nos.
evidente que no desconhecemos que o leitor pode ser visto como o tu da
enunciao, um alocutrio suposto para a produo de um texto. E isso que fazem as teorias
que estudam a produo do texto e/ou enunciado.
No entanto, no demais lembrar, nossa tese no sobre o processo de produo de
um texto, mas sobre o processo de compreenso e interpretao que se faz dele, ou seja, da
leitura. Ento, na nossa proposta, o leitor no um tu, mas um eu; um produtor de sentidos.
por isso que consideramos, no incio do captulo 2, baseados em Flores e Teixeira
(2005), que a leitura um ato de interpretao, uma tentativa de reconstituio de um sentido.
Em decorrncia desse entendimento que podemos ver que o sentido que deriva desse ato de
reconstituio no coincide integralmente com as representaes daquele que produziu o
texto. A esse ato de reconstituio no-coincidente que referiremos (cf. adiante) a
apropriao do texto pelo leitor. Finalmente, a leitura um ato intersubjetivo entre os
locutores, entre o locutor-leitor e o prprio texto, considerado alocutrio, que se converte em
tu no discurso do locutor-leitor quando de sua passagem a sujeito-leitor, considerando a
experincia singular na linguagem.

91

3.1.2 Segundo deslocamento: a intersubjetividade/subjetividade na leitura

A constituio da subjetividade postula a intersubjetividade, ambas presentes na


lngua, tendo em vista a posio de Benveniste no que diz respeito ao sujeito. Para o autor
(PLG I, p. 285), no atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber
a existncia do outro. O sujeito presente nas concepes benvenistianas se configura como
uma representao lingustica97. Na enunciao h uma relao intersubjetiva na qual o
locutor se apropria da lngua, instituindo-se como sujeito, o que ocorre somente ao dizer eu,
ao mesmo tempo em que instaura um interlocutor, tu, sendo todo esse processo permeado
pelo tempo e pelo espao fundados em relao ao eu.
Esse processo caracterizado pela unicidade e pela reversibilidade, e, para um maior
esclarecimento a respeito, repetimos o que diz Flores et al.:
[...] na unicidade, eu e tu so sempre nicos, se renovam a cada situao
enunciativa; a reversibilidade, aponta tambm para o fato de que a situao
enunciativa sempre outra, sempre nova: se tu toma a palavra, j no mais tu, e
sim eu. O que se propunha como eu agora tu; a relao refeita, nova, j no a
mesma. ( 2008, p. 52)

Isso posto, cabe indagar: como as noes de intersubjetividade e subjetividade podem


servir de ancoragem para um estudo enunciativo da leitura?
Admitindo-se o que dissemos no item 3.1.1 a respeito da passagem de locutor a sujeito
no ato/processo de leitura, compreende-se que no tratamos mais simplesmente do texto ou
das figuras de autor e de leitor, mas do enunciado98 e das figuras enunciativas locutor e
interlocutor no processo interlocutivo. Se os locutores, ao apropriarem-se da lngua,
instituem-se como sujeitos, e somente assim h possibilidade de linguagem, ento a leitura
um apropriar-se do locutor-leitor para propor-se como sujeito-leitor.
O locutor-leitor, ao produzir leitura, em tempo e espao especficos, apresenta-se
como sujeito-leitor que fixa as referncias da locuo/alocuo atual.
A relao eu-tu se manifesta apenas num abrir de boca ou, para ns, num abrir e
fechar de olhos. Conforme Dufour (2000, p. 74), essa relao resolve de maneira
extremamente simples um problema muito complexo, o da comunicao intersubjetiva: eles
97

Lembramos, aqui, o texto de Normand (1996), no qual a autora salienta o fato de Benveniste no desenvolver uma
teoria do sujeito, o autor jamais usou a expresso sujeito da enunciao, mesmo que muitos tenham atribudo esta
noo ao autor.
98

Texto, a materialidade da enunciao, enunciado como discurso.

92

esto disposio de todo o mundo e basta que algum fale para que essas conchas vazias se
tornem cheias. Assim sendo, a leitura enunciativa caracteriza-se pela intersubjetividade, por
essa troca constitutiva do eu-tu.
As relaes entre as pessoas eu-tu so descritas por Benveniste como recprocas,
uma vez que eu-tu so, alternativamente, protagonistas da enunciao, ou seja, ambos tm a
mesma importncia.
Em nossa opinio, na leitura, h uma dupla instncia de reciprocidade: em um
primeiro momento, o locutor-leitor se apropria do enunciado e, com ele, coloca-se em uma
relao de dilogo. O locutor, em nossa viso, dialoga com o enunciado, o texto. No seria
absurdo, portanto, considerar que, ao menos em certo sentido, o enunciado um tu da
relao eu-tu. O enunciado, nesse processo, um tipo de interlocutor. com ele que o
locutor-leitor estabelece uma troca propondo-se como sujeito, o sujeito-leitor.
O enunciado tem existncia no exato momento em que a lngua mobilizada, ou seja,
no exato momento em que o locutor se apropria da lngua. O que equivale a dizer que, em se
tratando de leitura, esta somente existe quando o leitor aqui entendido como locutor-leitor
produz leitura, implicadas as noes de pessoa, tempo e espao.
Entendemos, assim, que o interlocutor que no caso da leitura no pode ser pari passu
relacionado a um indivduo de existncia emprica o enunciado com quem o sujeito-leitor
estabelece relao, no ato/processo de leitura. Podemos dizer, ento, que se encontram
implicados o eu e o outro. O eu como aquele que enuncia, ou melhor, que ao ler se
enuncia, e com esse ato dialoga com tu, o enunciado99.
E h mais: quando o locutor-leitor se prope como sujeito a partir de um dilogo com
o texto, instaura-se uma referncia, um certo ele. H aqui implicados, ento, eu-tu-eleaqui-agora.
Essa situao se complexifica ainda se pensarmos que o enunciado lido, o que estamos
chamando de tu da leitura, ele tambm constitudo de uma relao eu-tu-ele com suas
marcas espao-temporais.

99

Diremos aqui que o leitor e o texto so, simultaneamente, um eu e um tu. O leitor o eu, quando produz
interpretao e o tu, quando alvo do texto; quando o leitor dialoga como o texto, este tu, quando proporciona
sentidos ao leitor, o eu. A se configuram as caractersticas da unicidade e da reversibilidade entre as figuras
enunciativas presentes no ato/processo de leitura.

93

Em

resumo,

para

que

fique

bem

claro,

pensamos

que,

quanto

subjetividade/intersubjetividade, ler enunciar em duas dimenses, obviamente, impossveis


de separao emprica:
a) na dimenso em que h a passagem de locutor-leitor a sujeito-leitor: essa
passagem se d na e pela relao do eu (o locutor-leitor), que se torna sujeito
(sujeito-leitor), com o tu (o enunciado lido), produzindo um sistema de
referncias, o ele;
b) na dimenso da tentativa de re-constituio de um sentido. Aqui, no podemos
esquecer que o locutor-leitor l um outro enunciado que contm, ele mesmo, uma
relao eu-tu-ele-aqui-agora. O sentido que deriva desse ato de reconstruo diz
respeito a algo que no coincide integralmente com as representaes daquele que
produziu o texto.
c) a esse ato de re-constituio no-coincidente que chamamos de a apropriao do
texto pelo leitor.
assim que entendemos a afirmao com a qual Benveniste encerra o texto O
aparelho formal da enunciao: a enunciao escrita [...] se situa em dois planos: o que
escreve se enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os indivduos se
enunciarem (PLG II, p. 90). Essa realidade concebida por Benveniste, do ponto de vista da
escrita, constitutiva da leitura tambm. Ler fazer uma trajetria de constituio de sentido
que suponha que algum enunciou.
Em outras palavras, em uma perspectiva que considere a anlise da produo de um
enunciado, o que normalmente vemos uma tentativa de analisar as marcas da enunciao
nesse enunciado. Na lingustica enunciativa, inclusive, comum encontrarmos autores que
dizem analisar o texto (o discurso, e mesmo o enunciado) a partir das marcas da enunciao
deixadas na materialidade. Isso sintetizado em afirmaes do tipo estudam-se as marcas da
enunciao no enunciado.
No entanto, esse raciocnio no suficiente para o estudo enunciativo da leitura, e isso
por, pelo menos, algumas razes:

94

1. a anlise da enunciao, do ponto de vista da leitura, no est circunscrita


descrio de marcas de um suposto locutor que tenha produzido100 um dado texto e
tenha, nele, deixado suas marcas;
2. consequentemente, o ponto de vista do analista da enunciao que estuda a leitura
no mais o que coloca no centro o processo de produo do texto, mas o que
enfatiza a produo de leitura;
Disso decorrem algumas implicaes metodolgicas:
a) a anlise que aqui propomos olha para a relao que o locutor, aqui chamado de
locutor-leitor, tem com o enunciado lido (o tu) e com as relaes (pessoa-tempoespao) que constituem esse enunciado, em um dado aqui-agora;
b) isso que nos autoriza ter dito acima que o enunciado duplamente conjugado
o interlocutor do locutor-leitor, uma vez que entendemos a leitura como uma nova
enunciao, em um novo aqui-agora;
c) esse ponto de vista da leitura como um nova enunciao, no entanto, no ignora
que o enunciado lido, o tu do processo de leitura, contm nele mesmo sua
histria de enunciao. O tu da leitura, da cena enunciativa que nos interessa
aqui, j foi uma outra enunciao com seu eu-tu-ele-aqui-agora.
Alm do que expomos at agora, preciso ressaltar que essas relaes so irrepetveis,
uma vez que eu e tu so nicos em cada instncia espao-temporal o eu que enuncia
o tu ao qual eu se dirige so a cada vez nicos (PLG I, p. 253). Sendo, portanto, a
enunciao um processo intersubjetivo, na leitura enunciativa est presente tambm essa troca
em que o leitor-locutor, na relao com o enunciado, e atravs de seu lugar singular, produz
um sentido novo vinculado a sentidos j existentes, o que o configura como um sujeito-leitor.
Nesse caminho, definimos a leitura enunciativa tanto como apropriao de
sentidos quanto como atualizao de sentidos, pois h um enunciado que, construdo
previamente por um locutor anterior, ao ser tomado pelo locutor-leitor se atualiza a partir de
suas referncias. Na leitura surge sempre um significado novo, que resulta da relao de um
locutor e de um interlocutor. Toda enunciao eu postula um tu, mas este tu, ao se
apropriar do enunciado e se tornar eu, pode ou no manter o mesmo sentido, a mesma
referncia, pode ou no co-referir.
100

necessrio enfatizar que o ato de escrita , tambm, antes um ato de leitura.

95

Barthes salienta que incontestvel ser a leitura decodificao de letras, palavras,


sentidos, estruturas; no entanto, diz o autor:
A leitura , de direito, infinita, tirando a trava do sentido, pondo a leitura em roda
livre (o que a sua vocao estrutural), o leitor tomado por uma inverso dialtica:
finalmente, ele no decodifica, ele sobrecodifica; no decifra, produz, amontoa
linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas; ele essa
travessia. (BARTHES, 2004, p. 41, grifo nosso)

Mesmo que reconheamos na leitura um processo de decifrao, destacvel a


sobrecodificao, quando o sujeito-leitor, a partir de um enunciado presente, recria, produz
um novo sentido. o leitor que age como sujeito, o espao da leitura o da subjetividade.
Na leitura do enunciado, quem l um locutor que se apresenta como eu, o sujeitoleitor. Na produo do enunciado, quem produz tambm um locutor que se apresenta como
eu (um outro eu, um sujeito-autor), tendo como interlocutor um tu. Como podemos ver,
essas figuras no coincidem entre si. No h garantia de simetria entre produo e leitura.
Cabe, portanto, reconhecer que no ato/processo de leitura, tal como o entendemos, o
enunciado deixa de ser visto to somente como um ato de produo de um autor para ser
entendido como um ato de leitura sempre novo, uma vez que, por esse ato, o locutor se
apresenta como sujeito-leitor em uma dada instncia de discurso.
O leitor j foi o tu de uma alocuo anterior que, ao ler, passa a ser o eu de uma
nova alocuo. O locutor-leitor se faz sujeito-leitor que produz, no processo de leitura, um
novo enunciado, que ser cada vez nico, no importando o nmero de leituras feitas, pois a
intervm o tempo e o espao de cada leitura feita101.
Sendo, portanto, a leitura um ato de enunciao, de colocao da lngua em uso,
reconhecemos que, do ponto de vista enunciativo, o leitor , antes de tudo, um locutor que, ao
ler, prope-se como sujeito, sendo o enunciado um complexo jogo de relaes entre formas e
sentidos. A subjetividade se apresenta, na leitura, como a capacidade do locutor-leitor se
colocar no discurso como sujeito-leitor que diz eu.
Se salientamos que ler implica dar um significado novo ancorado no sujeito-leitor, no
seu tempo e no seu espao, preciso compreender em que bases esto ancorados os novos e
diferentes significados, considerando que sempre um eu que, tendo como referncia um tu,

101

Dufour apresenta eu como aquele que fixa as referncias da alocuo atual, e que permanece em seu lugar; tu
aquele da alocuo atual, dir eu na prxima. Ele da alocuo atual dizia eu na precedente. H uma srie de trs
alocues (2000, p. 57).

96

opera durante o processo de enunciao, ou durante o processo de produo de um


enunciado (DAVILA, 2004, p. 155).
H na leitura uma troca que aponta para a apropriao da lngua por um locutor-leitor,
o qual passa a sujeito-leitor ao incluir o outro, que tem em comum a mesma lngua.
Do que dissemos at aqui decorre uma indagao: se a relao eu-tu, no
ato/processo de leitura, protagonizada pelo locutor-leitor e pelo enunciado (o texto), qual o
lugar do autor nessa relao? O autor do texto, figura to discutida em teorias da leitura, que
funo teria numa abordagem enunciativa da leitura? Que estatuto teria o autor na
configurao terica que acabamos de esboar?
No podemos, obviamente, desconsiderar o autor nesse processo, porm seu papel,
em nossa verso terica, passa a ser parte do ausente, e est contido nas relaes de pessoa do
texto lido. Como aponta Dufour (2000, p. 91): para que dois estejam aqui presentes para
ns, o sujeito-leitor e o enunciado necessrio que um outro esteja l, ausente (o complexo
conjunto da primeira enunciao que inclui tempo-espao e pessoa).
Barthes, em um de seus tantos ensaios sobre linguagem e literatura, aponta que est
na hora de devolver ao leitor o seu lugar, desmistificando a ideia de que o autor o
proprietrio de sua produo. a linguagem que fala, no o autor. O texto no se explica a
partir do conhecimento de quem o escreveu. Tentar entender a escritura a partir desse
conhecimento significa dar ao texto um significado ltimo. A unidade do texto, portanto,
encontra-se no seu destino. Nesse caminho, diz Barthes, deve-se inverter o mito: o
nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor (BARTHES, 2004, p. 64).
Ora, o autor, numa viso enunciativa de leitura, uma figura suposta, evidentemente,
mas inacessvel no aqui-agora da instncia de discurso. suposta porque no h texto que no
proceda de algum; inacessvel porque permeado pela figura do locutor-leitor.
s perguntas O que quis dizer o autor do texto?, Qual a inteno do autor? ou
O que quer transmitir o autor do texto?, responderamos: isso inacessvel ao locutor-leitor.
Alis, a passagem de locutor a sujeito est, exatamente, na dependncia de que possa dizer
algo sobre o que leu.
Eis a nossa primeira concluso: eu (locutor-leitor), tu (enunciado lido) e ele
(referncia) configuram as relaes bsicas de subjetividade/intersubjetividade no
ato/processo de leitura no qual est contido uma relao eu-tu-ele-aqui agora.

97

Poderamos sintetizar isso com a figura abaixo, de forma a dar a conhecer como se
constitui o primeiro deslocamento terico que fazemos para o processo subjetivo/
intersubjetivo da leitura.

ELE
(referncia construda no aqui-agora)

Pessoa

EU

TU
(Locutor-leitor)

Tempo

Espao

(O enunciado, a enunciao anterior)

Diagrama 4 As relaes intersubjetivas do ato/processo de leitura

Esperamos que o diagrama acima d a compreender o seguinte:


a) que o eu l uma enunciao anterior (o tu), na qual est contida uma relao eu-tuele-aqui-agora, e com isso produz referncia;
b) que ler construir um novo sistema de referncias em um novo eu-tu-ele-aqui-agora.
A leitura , pois, um ato intersubjetivo em que o locutor-leitor interage com o tu, o
discurso lido. Nesse dilogo, o eu apropria-se do discurso lido, atualizando-o em um novo
discurso.

3.1.3 Terceiro deslocamento: a relao entre a forma e o sentido na leitura

Neste item no pretendemos retomar tudo o que foi dito a respeito da forma e do
sentido presente nos estudos de Benveniste. Lembramos que isso j est feito no item 2.2.1,
quando realizamos uma retomada global sobre a questo. Resgatamos os conceitos de forma e

98

sentido apontando que, no funcionamento da lngua, ambas as noes implicam uma questo
mais ampla, que a significao. Cabe, aqui, reter essa relao tal como foi concebida por
Benveniste, ligada de leitura, o que implica considerar que, do ponto de vista enunciativo, a
leitura acontece tambm na relao entre forma e sentido estabelecida pelo locutor.
Trazemos, ento, o conceito de que a lngua um sistema de signos, e de que o signo
apresentado no mbito da forma, a unidade da lngua, porm no a nica. Essa noo
relacionada de sentido. Forma e sentido, em Benveniste, so termos que apresentam um
novo contexto para a teoria do signo de Saussure. o signo est ligado ao modo semitico da
existncia da lngua e, nesse modo, ele tem forma e sentido (DLE, 2009, p. 212). A surge a
questo da significao, que existe somente na e pelas formas, ela que estrutura a lngua
(NORMAND, 2009, p. 174). A significao se prope no apenas a partir do semitico, mas
tambm do nvel semntico. So, portanto, dois nveis, semitico e semntico, ambos com
forma e sentido. No primeiro nvel, intralingustico, cada signo sendo distintivo, com valores
opositivos e genricos, em relao paradigmtica. O segundo, diz respeito atividade do
locutor com a lngua e se coloca em relao sintagmtica. Nesse ltimo nvel a referncia
definidora do sentido.
A leitura, no modo como a estamos abordando, leva em conta a posio de Benveniste
sobre as formas, sobre sua funo significante, na relao entre particularidades formais e
semnticas.
As reflexes, a postas, dizem respeito semantizao da lngua no processo de
sintagmao, e isso provavelmente deve de algum modo nos guiar na abordagem da leitura
pelo vis da enunciao.
A semantizao da lngua est dentre os aspectos que dizem respeito enunciao e
significa que nesse processo a lngua convertida individualmente em discurso. Compreender
esse aspecto leva-nos ao entendimento da problemtica do signo e da significao. O sentido,
portanto, deixa de estar apenas atrelado s unidades do sistema e passa a ter uma nova
perspectiva medida que se consideram as especificidades da frase, como unidade de nvel
superior. Desse modo, inaugura-se uma lingustica que, ao tratar da frase, aborda o aspecto
semntico, sem, no entanto, deixar de tratar da lingustica do sistema.
nesse sentido que entendemos a leitura enunciativa, pois a esto postas as noes de
forma e sentido no uso da lngua. Portanto, se a lngua antes de tudo significa, e isso depende
do uso, pelo arranjo formal dos elementos lingusticos que a lngua usada, olhando para a

99

maneira como essas formas produzem sentido. Benveniste desenvolve seu trabalho, portanto,
reconhecendo que os estudos lingusticos devem ir alm das formas, pois essas tm a
incumbncia de explicitar os sentidos.
O que retemos aqui dessas noes, e que importa para o entendimento de uma leitura
enunciativa, entender que no uso da lngua que o signo existe e nesse uso que deve ser
identificado, uma vez que ele s a tem existncia. Desse modo, ao reconhecer que a lngua
tem dupla significncia (semitica e semntica), apontamos que a leitura enunciativa no tem
em vista uma anlise centrada apenas no nvel semitico, mas uma anlise que revele, a partir
do uso, que o enunciado a ser lido deve ser considerado em seu todo.
A lngua, ento, estruturada pela significao, e esta existe somente na e pelas
formas (NORMAND, 2009, p. 174). Entendemos, pois, que o enunciado constitui-se de uma
forma cujo entendimento se dar a partir do sentido. Ler, portanto, significa reconhecer a
forma e compreender o sentido. A atividade de reconhecimento necessria para distinguir
um signo como pertencente ao sistema, no entanto, no o bastante; ela deve estar atrelada
atividade de compreenso, pois indispensvel que o sistema seja comum a locutor e
alocutrio, e que a situao discursiva tambm o seja. Essas duas atividades instituem a
relao entre a significao do j-conhecido e a significao atual (DLE, p. 197).
Para que a leitura efetivamente se realize, necessrio que o locutor-leitor transite
entre o nvel do reconhecimento e o nvel da compreenso. Leitura lngua em uso, e a lngua
implica a significncia dos signos e a significncia da enunciao. Compreender , por
conseguinte, o trabalho de constituio de novos sentidos a partir de cada situao de uso. O
sujeito-leitor, no ato/processo de leitura, deve reconhecer que as formas, presentes no
discurso, expressam sentidos dependentes de sua atitude como leitor e da sua situao no ato
enunciativo. Compreender, segundo o DLE, pressupe reconhecimento da lngua com
sistema de signos distintivos, os quais, em uma situao enunciativa, no caso a leitura, tem
referncia nica, relativa a eu-tu-ele-aqui-agora, indicadores das categorias de pessoa, espao
e tempo (DLE, 2009, p. 63).
Nesse caminho, retomamos os dizeres de Benveniste: h duas maneiras de ser lngua
na forma e no sentido, e a partir destas maneiras que olhamos para a leitura. A leitura ,
conforme salientamos anteriormente, a capacidade de reconhecer o geral da forma, a lngua
enfim, e o especfico, que se apresenta no uso, diz respeito situao enunciativa. Esse
processo todo se d pela sintagmatizao e pela semantizao, ou seja, a leitura acontece pelas

100

relaes que se colocam atravs da lngua e pelo momento enunciativo em que o locutor se
torna sujeito da leitura. Portanto, para que o leitor seja sujeito desse processo, deve
reconhecer que, para a leitura, h forma do enunciado e h tambm sentido que se produz
corroborado nessa forma.
Com a articulao semiticosemntico, podemos reconhecer o ato de leitura como a
lngua em uso, considerando nessa articulao que esse ato s acontece porque o leitor
reconhece as relaes diferenciais que se constituem no interior do sistema, assim como
compreende que as palavras, semantizadas pelas relaes que estabelecem no interior da
frase, so os instrumentos da expresso semntica. A leitura, portanto, decorre da forma como
as palavras se organizam e se relacionam no interior de uma determinada configurao
sinttica. Significao, na/para a leitura, no apenas o reconhecimento de pertencimento ao
sistema, mas sim, o chegar compreenso tendo primeiramente o reconhecimento como
organicamente relativo ao sistema.
A leitura, portanto, s ocorre porque o leitor, em seu ato, consegue transitar,
conjuntamente, entre as funes da lngua de significar e de comunicar sem necessidade de
reconhecer esse trnsito, pois o leitor utiliza a lngua para se enunciar e produzir discurso, no
caso, leitura.
Na leitura reconhecemos a noo de ato, que deve tambm ser levada em conta
quando se enfatiza o aspecto da lngua em funcionamento. Nesse caso, a lngua toda, sob a
perspectiva enunciativa, com destaque s noes de palavra e frase, esta como unidade do
discurso, como atualizao, concebida como a lngua em ao. O que temos que os signos
que se apresentam no enunciado surgem a como palavras que tm referncia, portanto,
submetidas enunciao.
Se at um determinado momento semitico e semntico aparecem como dicotomia,
para o tratamento da lngua em uso e, principalmente, para o da leitura, reconhecemos que
essas duas maneiras de ser lngua so apresentadas como complementares por Benveniste.
Considera-se que os signos da lngua so usados em um agenciamento que se materializa na
frase.
assim que entendemos a leitura como uma modalidade da enunciao. Ler significa
no apenas o ato de apropriao do enunciado num determinado momento e numa
determinada situao. A leitura depende da estrutura, e essa se apresenta a partir dos nveis
semitico e semntico, j fundidos ao se tratar do discurso, ou seja, da lngua em uso. Para

101

que haja leitura, o sujeito-leitor deve reconhecer que a palavra, unidade do discurso, forma e
sentido e deve ser considerada no uso da lngua em sua relao com as outras palavras; de
outro modo, seria apenas um signo. A frase, por sua vez, tem seu sentido a partir do
agenciamento das palavras. Ela no integra uma unidade de nvel superior.
Ler reconhecer todas as palavras (signos) que fazem parte do enunciado como tendo
ou no um sentido e, a partir de ento, compreender que essas palavras, em um encadeamento
no enunciado, uma vez que esto em uso, apresentam um sentido que est atrelado ao
agenciamento, s circunstncias, ao sujeito. No primeiro caso, o nvel semitico, no
segundo, o nvel semntico, porm interdependentes, pois somente ao tomarmos os dois
nveis podemos determinar o ato de leitura, ou melhor, o encaminhamento que o sujeito-leitor
dar ao texto. A leitura no se reduz ao entendimento das unidades separadamente; no
conjunto que, visto globalmente, surgir o sentido.
Retomamos a seguinte passagem em Flores et al. (2008), que muito bem esclarece as
questes anteriormente apresentadas.
As capacidades de reconhecimento e compreenso so relativas a um jogo que se
estabelece entre o geral e o especfico: a generalidade da forma que indica pertena
lngua, e a especificidade da forma no uso palavra , indicando um sentido relativo
situao enunciativa. Este jogo entre o geral e o especfico se d por
sintagmatizao-semantizao, ou seja, uma atividade com a lngua, tendo em vista
a atribuio de referncia e co-referncia (FLORES et al., 2008, p. 74).

Produzir leitura significa, ento, olhar para o sentido do texto como uma forma que
se define pela totalidade de seus usos, por sua distribuio e pelos tipos de relao de que
resultam (NORMAND, 2009, p. 155).
Ler construir um discurso, uma vez que o sujeito passa a converter essas formas da
lngua a partir da apropriao de um discurso anterior para atualizao de sentidos novos no
ato de leitura, levando a surgir sempre um novo discurso. a semantizao da lngua, diz
Benveniste, que est no centro da enunciao como converso individual da lngua em
discurso, e ela que conduz teoria do signo e anlise da significncia (PLG II, p. 83).
Conclumos, pois, que a leitura enunciativa significa atividade do leitor com a lngua,
de modo que essa atividade sempre produza sentidos novos a cada situao de uso. A leitura
significa compreenso medida que o leitor, ao reconhecer as formas integradas no
enunciado, produz sentidos relativos a sua atividade de sujeito-leitor e em relao situao
enunciativa. Desse modo, a leitura, como acontecimento singular e irrepetvel da lngua,
apresenta-se pela relao entre locutor, alocutrio, considerando sempre as instncias do

102

tempo e do lugar de uma determinada enunciao. A leitura, desse modo, produz referncia.
Ler , portanto, um ato cada vez nico de produo de sentidos, tendo como base a forma e o
sentido.
A ttulo de ilustrao didtica, assim representamos as relaes entre a forma e o
sentido na leitura:
Leitura

Semitico

Semntico

Forma/sentido
Semantizao

Diagrama 5 A leitura como semantizao da lngua


nesse conjunto que, visto globalmente, surgir o sentido. a semantizao da lngua
que est no centro da enunciao.

3.1.4 Quarto deslocamento: a enunciao e a leitura

Chegamos, finalmente, ltima etapa de elaborao dos deslocamentos tericos para


propor a nossa visada da leitura como uma modalidade de enunciao. Os estudos
enunciativos do abertura para muitas possibilidades de investigao sobre a linguagem, e
isso nos permite apresentar, ento, a leitura como um processo enunciativo. Se tratar da
enunciao no quadro formal de sua realizao considerar que toda a lngua faz parte desse
quadro, conforme aponta Benveniste no artigo de 1970, ento, a leitura como lngua em uso
deve apresentar um caminho que a conduza terica e metodologicamente enunciao.
As reflexes a respeito da linguagem alcanaram desenvolvimento notrio no ltimo
sculo, permitindo que a partir delas possamos apresentar novos conceitos relacionados s
noes de comunicao e de significao. Igualmente acontece com a leitura que tanto pode
ser considerada apenas um processo de decifrao, em que o leitor deve descobrir o sentido
posto no texto pelo autor, quanto ser considerada um processo de interao no qual leitor e

103

escritor interagem mutuamente; pode, ainda, a leitura ser vista como um ato social entre leitor
e autor os quais contribuem para construir o sentido. No entanto, todos esses conceitos ainda
no abarcam plenamente o papel da linguagem assumida por um sujeito, o que faz da leitura
uma atividade de construo numa relao produtiva de interao entre o texto e o leitor.
No item 2.1, vimos que Benveniste segue Bral e Saussure em suas bases tericas.
Porm, neste momento, importante destacar que, a partir dessas bases, Benveniste apresenta
uma lingustica da linguagem voltada para o uso e para o sujeito. O objeto no nem a
lngua nem a fala, mas a enunciao, ato de passagem da lngua ao discurso pelo qual o
sujeito semantiza a lngua (TEIXEIRA, 2005, p. 199). Nessa lingustica tem lugar o sentido
que leva ao discurso e, desse modo, linguagem; uma lingustica da enunciao, na qual
Benveniste insere o sujeito nos estudos lingusticos.
So, portanto, questes de linguagem que apontam para um eixo de interesse sobre a
leitura como modalidade de enunciao, ou seja, a leitura passa a ser definida como ato de
apropriao do sentido, pois, como aponta Teixeira, conceber a leitura como ato enunciativo
conceb-la como um ato do sujeito-leitor, mediante o qual ele institui uma relao com o
texto para produzir sentido no momento da leitura (2005, p. 200).
preciso entender que a leitura requer um tratamento contextualizado para a lngua,
que no mais pode ser vista como um sistema de elementos combinados, sem ser considerada
em seu uso. lngua e discurso que se complementam para que o sentido, que se produz a
partir da singularidade de cada leitor, estabelea-se. Portanto, importante levar em conta,
para a leitura, as relaes presentes na lngua, entre seus elementos e seus significados, pois a
leitura se caracteriza como um ato singular, ato do sujeito-leitor, cuja interpretao no pode
ser nica nem definitiva, pois depende do sentido dado por cada leitor no momento da leitura
do texto102.
Trazemos, ento, a leitura como apropriao de sentido, o qual , essencialmente,
determinado pela subjetividade, cujo fundamento est no exerccio da lngua. Falamos em
ato/processo enunciativo de leitura com base em Benveniste, que, em O aparelho, define a
enunciao simultaneamente como ato e como grande processo.
Assim sendo, tomamos a leitura a partir de dois deslocamentos anteriormente
previstos em relao s teorias de leitura descritas (conf. captulo 1), quais sejam: 1) a leitura,
agora, como ato/processo de enunciao, e 2) as figuras enunciativas de interlocutor, texto,
102

Consideramos texto como um todo de significao, como o produto do ato de enunciao

104

locutor em oposio s figuras de leitor, texto e autor. Justificamos esses deslocamentos,


baseando-nos em questes que, na dcada de 60 e 70, envolveram Benveniste no que engloba
conceitos tais como: intersubjetividade-subjetividade, forma-sentido, semitico-semntico103.
O tratamento da leitura deve, por esse vis, vislumbrar o papel do leitor, considerado
como sujeito desse processo. Como aponta Barthes, h muito nos interessamos pelo autor, por
seu texto, pela verdade que ali est, pelo sentido posto pelo autor que deve ser considerado
sempre certo, verdadeiro, mas no pensamos, nesse processo, no leitor, o que ele entende do
que est posto (BARTHES, 2004, p. 27-28).
com as palavras de Barthes que damos continuidade a esse entendimento de leitura
que considera o papel do leitor:
Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, no apenas pedir e mostrar que
podemos interpret-lo livremente; , principalmente, e muito mais radicalmente,
levar a reconhecer que no h verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas a
verdade ldica [...] ler fazer o nosso corpo trabalhar ao apelo dos signos do texto,
de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza
achamalotada das frases. (Ibidem, p. 29)

A leitura particular, e, por isso, cada um deve ater-se a sua leitura, como sujeitoleitor, que imprime sua postura ao texto. A leitura constitui-se de um campo plural de
prticas diversas e de efeitos irredutveis, pois como bem diz Barthes, no h uma anlise da
leitura e no h um Propp para a leitura (BARTHES, 2004, p. 30).
Ao considerar que a leitura no dispe de um mecanismo para ser entendida, que esse
processo sempre particular e que depende de fatores variados para que acontea,
empreendemos nosso objetivo de apontar a leitura pelo vis da enunciao.
Seguindo o percurso feito nos captulos anteriores, cabe, aqui, uma pergunta capital
para o prosseguimento das reflexes: a leitura, tal como a estamos supondo, pode encontrar na
enunciao um lugar terico que d suporte para o entendimento de seu ato/processo? Vamos,
ento, a essa empreitada, mostrando a leitura como ato de enunciao ancorada nos
fundamentos tericos benvenistianos.
Partimos, pois, do conceito de enunciao como este colocar em funcionamento a
lngua por um ato individual de utilizao (PLG II, p. 82). Falar em ato de leitura,
considerando a teoria da enunciao, implica falar em sujeito e em atualizao. reconhecer
que a leitura subjetiva, pois o locutor-leitor, a partir de sua singularidade, usa a lngua,
103

Usamos o hfen por considerarmos que so termos que se complementam, no podendo um ser concebido sem que
esteja em relao com o outro. Semitico e semntico ao mesmo tempo que se distinguem, se integram.

105

assumindo, ento, o seu papel de sujeito-leitor. Isso significa que a lngua passa a funcionar
pelo ato individual de utilizao da prpria lngua, pois eu signo que usado para atribuir
referncia quele que como eu se prope (FLORES et al., 2008, p. 51).
A leitura um ato de linguagem e se configura em uma enunciao de retorno a partir
de um enunciado anteriormente construdo; trata-se de uma segunda alocuo, em que o leitor
produz algo a respeito de uma enunciao anterior.
No ato/processo da leitura, o locutor se prope como sujeito ao assumir a lngua para
produzir seu sentido. Esse ato sempre um acontecimento nico, pois a situao sempre
nica. Esse ato fugaz e irrepetvel por isso s possvel reter algo dele a partir do enunciado
que o produto da enunciao. , portanto, pelo enunciado que podemos analisar a
enunciao considerando os elementos lingusticos disponveis, a situao do aqui e agora e,
principalmente, a presena do sujeito que enuncia.
Dizer que o sujeito-leitor usa a lngua nos leva a reconhecer que a leitura, como afirma
Normand (2009, p. 180), investida de propriedades semnticas e que ela funciona como
uma mquina de produzir sentido. Essa ento a teoria da Enunciao que tomamos como
base para entender o quadro da leitura. A lngua considerada a partir tanto do aspecto
semitico quanto do aspecto semntico, agora integrados, pois somente desse modo podemos
tratar da leitura como modalidade da enunciao.
A leitura, sob o ponto de vista enunciativo, portanto, apresenta uma estrutura por se
apresentar como um ato de utilizao do sistema da lngua, a partir de um quadro formal que
pertence lngua. A estrutura comporta sujeito que enuncia, sendo, do ponto de vista
enunciativo, sempre permeada pela subjetividade do leitor, cuja passagem a sujeito da
linguagem deixa marcas no prprio ato enunciativo da leitura. Essa estrutura parte, ainda, da
integrao semitico-semntico, o que quer dizer que as particularidades formais e
semnticas, necessrias para a produo de leitura, devem ser vistas na sua funo
significante. Portanto, a leitura parte dos nveis do comentrio e da descrio, considerando,
nesses nveis, a presena do sujeito que, ao se apropriar do texto, via lngua, produz sentido.
Ainda nas palavras de Normand (2009), encontramos o modo de explicitar como
podemos considerar um quadro formal de leitura:
A anlise do semntico (anlise desta ou daquela unidade do discurso) associa uma
anlise semitica do enunciado a um comentrio sobre a situao cada vez particular
da enunciao (tal sujeito, tal tempo, tal referente, tal interao) cujas marcas fazem
parte da descrio semntica (NORMAND, 2009, p. 182).

106

Dessas palavras de Normand temos o encaminhamento para entender esse quadro de


leitura que, no nvel semntico, considera o sujeito, o tempo, a referncia, a interao para,
ento, tomar o semitico como comprovao dessa leitura global.
Produzir sentido significa atualizar as unidades, como palavras, presentes no texto,
objeto de leitura, num determinado momento e numa determinada situao. Isso s ocorre
porque o locutor-leitor produz sentido a partir do global, corroborado pelo especfico que a
lngua.
Em suma, a anlise da leitura como ato/processo de enunciao supe uma integrao
entre o semitico e o semntico. Em outras palavras, o que Piguet (PLG II, p. 239) na
pergunta que faz a Benveniste no debate que se segue conferncia sobre A forma e o
sentido na linguagem chama de analtico e global. A anlise da leitura dever associar
ambos.
Para esclarecermos, ento, como ocorre a anlise do ato/processo de leitura a partir da
teoria enunciativa de Benveniste, temos que o texto, que tem seu sentido dado pela ideia
global, percebido semanticamente, enquanto olhar para forma do texto, uma questo
analtica, pois ocorre a partir da dissociao da totalidade em unidades semiticas.
Entendemos, pois, a leitura a partir desse ponto. O locutor-leitor l o todo e produz sentido. O
caminho para chegar ao todo a lngua, o semitico. na articulao entre semitico e
semntico que o sujeito-leitor se prope como tal.
Portanto, a anlise do ato/processo de leitura supe recuperar, ao menos em parte, esse
caminho feito pelo locutor-leitor, ou, como diz Normand, supe associar anlise semitica
um comentrio sobre a sua enunciao, o semntico. Ou, ainda, nos termos do que
preconizava Piguet: associar o analtico ao global.
Aqui, portanto, o ato de leitura vai alm de uma extrao de sentido; um processo de
produo em que se integram sujeito, tempo e espao. Na leitura, o locutor-leitor deve dar
conta da escolha feita pelo autor, do agenciamento das palavras, enfim, da organizao
sinttica, considerando que as palavras s tm sentido na relao com outras palavras. ,
portanto, a partir desses elementos que compreendemos a leitura enunciativa como um novo
caminho terico-metodolgico.
A leitura enunciativa est alicerada nos pressupostos da teoria enunciativa como
produo de sentido, sentido esse que s poder ser confirmado medida que o leitor tem
condies de reconhecer os elementos postos no enunciado que comprovam essa produo.

107

Ou seja, a leitura se constitui como processo de produo de sentido que se inicia no nvel
semntico e corroborado pelo nvel semitico, destacando-se que a leitura, do ponto de vista
enunciativo, centrada no processo, isto , no que lido no momento em que lido e no no
produto, o texto. Portanto, abordar, do ponto de vista enunciativo, o fenmeno da leitura
requer que se estabeleam os mecanismos presentes nesse fenmeno que levem produo de
sentido.
Por fim, podemos dizer que, para apontar a leitura como uma modalidade enunciativa,
importa reconhecer, primeiramente, a noo de subjetividade na linguagem ligada de leitor,
o que implica ser o leitor, do ponto de vista enunciativo, um locutor que se transforma em
sujeito na linguagem. Assim sendo, apontamos, no item 3.1, as marcas da passagem do
locutor a sujeito no ato enunciativo da leitura. Em seguida, apresentamos a relao entre a
forma e o sentido, tal como concebida por Benveniste, agora ligada noo de texto, o que
leva a considerar que o texto, do ponto de vista enunciativo, uma relao entre forma e
sentido estabelecida pelo locutor. E, agora, na concluso de uma trajetria enunciativa para a
leitura, apresentamos as noes de enunciao e instncia de discurso ligada de contexto da
leitura, o que leva a considerar que o ato de leitura remete a uma dada situao espao
temporal.
Em sntese, a reflexo aqui apresentada diz respeito a elementos tais como: o locutorleitor que assume o papel de sujeito-leitor, configurando sua presena no discurso; o
interlocutor, sua presena e sua caracterizao no discurso, uma vez que esse produzido para
ele; a situao que considera as marcas do tempo e do espao da produo de leitura; e, ainda,
o referente, pois importante saber de que trata o discurso. A leitura , ento, um processo de
(re)significao, ler (re)significar no sentido de fazer de novo o percurso da significao,
um fazer de novo.
, portanto, considerando esses elementos que nos permitimos tomar a teoria de
Benveniste como norte para tratar da leitura. E justificamos nossa escolha: consideramos que
a amplitude de suas reflexes nos permite caminhar para outros estudos relacionados
linguagem e no apenas para o que est posto em sua obra (cf. 1.3).

108

CAPTULO 4
Metodologia da anlise enunciativa da leitura

Ler bom para a sade. Todo o mundo me diz


que tenho que fazer exerccio. Que bom para a
minha sade. Mas nunca ouvi ningum dizer a
um desportista: tens que ler.
Jos Saramago

Benveniste apresenta seus estudos sobre enunciao, considerando-a como este


colocar em funcionamento a lngua por um ato individual de utilizao. A enunciao
sempre nica, irrepetvel, pois singulares so os locutores e sua situao de tempo e espao.
Da ordem do repetvel, apenas a organizao do sistema da lngua. Falar do ato significa tratar
das relaes intersubjetivas na linguagem, da converso da lngua em discurso e da
atualizao do sentido em palavras.
dentro desse quadro que pretendemos apresentar a metodologia da anlise
enunciativa da leitura. Reconhecemos que, por se tratar de questes referentes lngua e
linguagem, no podemos, em princpio, apresentar dados previamente estabelecidos. O que
nos propomos formular, com vistas especificidade do objeto do qual estamos tratando, um
mtodo de anlise que considere a leitura a partir dos pressupostos tericos benvenistianos.
O corpus deve ser tratado como fatos que so produzidos por um sujeito no momento
nico e fugaz da enunciao, e esses sero tomados para estudo segundo o ponto de vista do
pesquisador. Conforme Flores (2001, p. 59), em lingustica da enunciao o dado no
jamais dado, mas se configura num fato na medida em que produto de um ponto de vista, o
que cria o objeto a ser analisado [...].
Tratar dos fatos lingusticos seguir as palavras de Benveniste quando em texto de
1964, Os nveis de anlise lingustica, diz
Quando estudamos com esprito cientfico um objeto como a linguagem, bem
depressa se evidencia que todas as questes se propem ao mesmo tempo a
propsito de cada fato lingustico, e que se propem em primeiro lugar
relativamente ao que se deve admitir como fato, isto , aos critrios que o definem
como tal. [...] reconheceu-se que a linguagem devia ser descrita como uma estrutura
formal, mas que essa descrio exigia antes de tudo o estabelecimento de
procedimentos e de critrios adequados, e que em suma a realidade do objeto no
era separvel do mtodo prprio para defini-lo (PLG I, p. 127).

109

Entendemos, desse modo, que cabe ao pesquisador eleger os fatos de lngua a serem
analisados, e que, no nosso caso, o fato de lngua estudar a leitura do ponto de vista
enunciativo, trat-la como ato e como discurso.
Nesse caminho, este captulo compreende o estabelecimento do corpus a ser analisado,
sua constituio e o mtodo de anlise a ser utilizado. Trataremos ainda de especificar o que
vm a ser os fatos lingusticos e como abord-los na relao enunciao-leitura, tendo em
vista que estudar a linguagem do ponto de vista enunciativo tratar do produto de um
construto terico.

4.1 Sobre o corpus

O corpus que ser objeto de anlise neste estudo constitudo de um conjunto de


03(trs textos) produzidos e avaliados no Concurso Vestibular 2011 da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (CV/UFRGS, 2011). Esses textos foram escolhidos em funo dos
nveis de avaliao104 propostos pelas UFRGS, quais sejam: nvel excelente, compreende nota
de 8 a 10; nvel satisfatrio, cujas notas finais esto entre 6 e 7; nvel no-satisfatrio, com
notas finais de 1 a 5. Escolhemos um texto representativo de cada uma dessas faixas. H ainda
a possibilidade de se atribuir nota final zero105 redao, por esta ter fugido proposta. No
realizamos anlise de nenhum texto com fuga ao tema, pois este representa uma outra leitura
do candidato, leitura esta que no corresponde proposta da prova de redao.
Todos os textos foram produzidos dentro da mesma orientao temtica e dentro das
mesmas circunstncias gerais, ou seja, a produo constituiu-se como produto da leitura da
proposta apresentada pela comisso organizadora do processo de vestibular.
Sobre o processo de avaliao das redaes do vestibular, cabe lembrar que esse
compreende duas modalidades de avaliao, analtica e holstica. A primeira modalidade
divide-se em estrutura e contedo e expresso lingustica, sendo que, na primeira, so
analisados seis itens: domnio da tipologia, organizao do texto, desenvolvimento do tema e
do ponto de vista, qualidade do contedo, coeso textual e investimento autoral; na segunda

104

Estes nveis de avaliao de redao do vestibular esto especificados no Manual do Avaliador, 2011, elaborado
pela coordenao geral e pelos coordenadores de equipe.
105

Uma das possibilidades de candidato receber zero nas modalidades de avaliao por fuga ao tema, ou seja, o
candidato no desenvolver a redao de acordo com a proposta formulada.

110

parte, que contempla a expresso, quatro itens analisados: convenes ortogrficas,


semntica, pontuao e sintaxe e morfossintaxe (MANUAL DO AVALIADOR, 2011, p. 45).
A segunda modalidade de avaliao a holstica, cujos aspectos observados, para o
estabelecimento do conceito, so o tema, o modo composicional e o domnio lingustico,
todos esses critrios encontram-se especificados no Manual do Avaliador pgina 46.
Esclarecida a composio do corpus, temos tambm de especificar que a
proposta/tema considerada, no que tange ao nosso objetivo de trabalho, como o
texto/enunciado a ser lido pelo candidato, e que esta leitura se configura no texto produzido
pelo aluno, ou seja, os textos aqui selecionados so vistos como produto enunciativo de
leitura. A prova de redao do CV/UFRGS, 2011 apresentou-se da seguinte forma:

111

Figura 1 A prova de redao do CV/UFRGS, 2011

112

Pela proposta, percebemos que o candidato/leitor deve, alm de ler a proposta em si,
ler, tambm, outros dados constantes da prova de redao. A leitura da proposta indica que h
quadros de oferta de vagas e nmero de candidatos inscritos nos vestibulares de 2005 e de
2011 para os cursos de Licenciatura da UFRGS. Diz, ainda, que o leitor/candidato deve
avaliar, a partir desses quadros, o desprestgio da profisso de professor entre os jovens. Para
essa avaliao, ele deve usar, como ilustrao, uma pesquisa realizada pela Fundao Carlos
Chagas e, alm disso, os dados comparativos de 2005 e 2011 de um ou mais cursos da
UFRGS, constantes dos quadros apresentados pelos organizadores da prova.
Evidentemente, em situaes como as de produo de texto de vestibular, h uma
expectativa de leitura. No caso da proposta do CV/UFRGS, 2011, o grupo de
coordenadores106 estabeleceu, a partir da amostragem107, que a leitura da banca deveria olhar
para abordagem do tema considerando-o excelente no caso de o candidato avaliar por que a
profisso de professor se encontra desprestigiada entre os jovens e/ou avaliar as causas do
desprestgio da profisso de professor na sociedade, ilustrar sua avaliao mobilizando os
dados fornecidos na proposta e sugerir estratgias para a revalorizao da profisso de
professor na sociedade.
No entanto, caso o candidato no cumprisse o requisito de sugerir estratgias, mas
cumprisse o de avaliar e o de ilustrar, o texto seria classificado no nvel satisfatrio. Ou,
ainda, estariam no nvel satisfatrio os textos em que o candidato avalia e sugere, mas no
ilustra sua avaliao, ou os textos em que o candidato apenas avalia, no sugere nem ilustra.
Como nvel no-satisfatrio foram considerados textos em que o candidato: apenas
ilustra, isto , mobiliza os dados fornecidos na proposta, e sugere estratgias para a
revalorizao da profisso de professor na sociedade; ou apenas mobiliza os dados, para
ilustrar, fornecidos na proposta; ou, apenas sugere estratgias para a revalorizao da
profisso de professor na sociedade; ou ainda, apresenta generalizaes sobre a profisso de
professor.

106
107

Grupo do qual fizemos parte como coordenador de equipe de avaliao.

O grupo de coordenadores, a partir de redaes selecionadas aleatoriamente, realiza uma leitura a fim de
estabelecer a abordagem do tema. Com esta leitura, consegue-se ter uma viso dos ngulos de abordagem do
tema.

113

Ficou estabelecido que o zero (0) por fuga ao tema108 seria atribudo ao candidato que
abordasse assunto no relacionado com o tema proposto, isto , quando no avalia por que a
profisso de professor se encontra desprestigiada entre os jovens e no avalia as causas do
desprestgio da profisso de professor na sociedade.
Considerando todos os quesitos propostos pelos coordenadores da redao do
vestibular, entendemos que a produo do texto de vestibular, aqui visto como produto da
enunciao do candidato, parte da proposta/tema e deve demonstrar que o candidato, na
leitura dessa proposta, inseriu-se como sujeito-leitor reconhecendo o texto em sua forma e
compreendendo seu sentido.
Esse sujeito-leitor se produz na resposta dada proposta, ou seja, se produz pelo
ato/processo de leitura, qual seja, o de produzir o texto, que, nessa situao, deve levar em
conta uma instncia enunciativa em que a leitura um ato de interpretao, uma tentativa de
re-constituio de um sentido. Esse ato marca a apropriao do texto pelo leitor.
O objeto de estudo neste trabalho , portanto, o processo enunciativo que se instaura
na produo do texto de vestibular, considerando como o ato de enunciao em que um
locutor, tendo em vista seu interlocutor, se prope como sujeito desse ato.
Entendemos, pois, que a prova de redao do vestibular se constitui em enunciado
que, ao ser lido pelo candidato/leitor, tem retorno pelo texto produzido e que em outro
momento, tambm, passa a ser enunciado de leitura por outros sujeitos, no caso a banca
avaliadora. No entanto, nosso interesse, com este trabalho, olhar para a instncia enunciativa
em que o sujeito leitor, candidato, institui seu processo de leitura da prova de redao.

4.2 Sobre a anlise do corpus"

Cabe lembrar que, no terceiro captulo, nos esforamos para explicitar como
entendemos que se produz o ato enunciativo de leitura. Em outras palavras: o terceiro captulo
assume preponderantemente uma atitude de entendimento da produo da leitura. Assim, em
nossa perspectiva, a leitura um ato de enunciao porque:

108

Os demais tipos de zero so atribudos segundo critrios de pouca relevncia para o nosso estudo. Por exemplo:
nmero insuficiente de linhas.

114

1. H a passagem de locutor-leitor a sujeito-leitor: essa passagem se d na e pela


relao do eu (o locutor-leitor), que se torna sujeito (sujeito-leitor), com o tu
(o enunciado lido) produzindo um sistema de referncias, o ele;
2. O sentido na leitura diz respeito a algo que no coincide integralmente com as
possveis representaes presentes no texto daquele que o produziu. O locutorleitor l um enunciado que contm, ele mesmo, uma relao eu-tu-ele-aqui-agora.
3. a esse ato de re-constituio no-coincidente que chamamos de a apropriao
do texto pelo leitor.
No entanto, agora, no momento de anlise do corpus, no mais queremos explicar
como se produz o ato enunciativo de leitura, mas, sim, como se analisa esse ato.
Por isso, a anlise do corpus acima dever obedecer aos seguintes princpios:
1. a anlise da leitura, do ponto de vista da enunciao, vai alm do simples
reconhecimento de marcas de um suposto locutor em um dado enunciado;
2. o analista da enunciao deve olhar para a relao que o locutor, aqui chamado de
locutor-leitor, tem com o enunciado lido (o tu) e com as relaes (pessoa-tempoespao) que constituem esse enunciado, em um dado aqui-agora;
3. a anlise da leitura como uma nova enunciao supe que a relao prevista em (2)
se d em um novo eu-tu-ele-aqui-agora;
4. a leitura um ato/processo intersubjetivo/subjetivo que se d na relao entre o
locutor-leitor (eu), o enunciado (tu) constitudo que pela relao eu-tu-ele-aquiagora na produo de referncia (ele);
5. esse ato se concretiza na associao do semitico e do semntico numa dada
instncia de discurso da qual participam as categorias de pessoa, tempo e espao.
Essa associao produz relaes de forma e sentido;
6. a leitura um ato/processo enunciativo constituda pelo conjunto das relaes
presentes em 1-5 em uma dada instncia de discurso.
Isso posto, podemos agora anunciar como faremos a anlise de nosso corpus, conjunto
de trs textos de vestibular, a partir desses princpios. Para tanto, vale retomar na ntegra a
pergunta feita a Benveniste pelo filsofo J. C. Piguet por ocasio do debate que segue

115

conferncia apresentada Societs de Philosophie de langue franaise e que d origem ao


famoso A forma e o sentido na linguagem. Diz Piguet:
Parece [...] que a semitica e a semntica formam dois planos que dependem seno
de mtodos, ao menos de ideias epistemolgicas ou metodolgicas distintas. A
semntica pressuporia uma apreenso global do sentido. Por oposio, o mtodo
ou a direo do esprito requerido pela semitica seria de composio ou de
decomposio, portanto analtico e no global. Minha questo , face a isto, a
seguinte: como estes dois mtodos se renem no interior da lingustica? Como a
semitica e a semntica podem coexistir metodologicamente, se uma do tipo
analtico e a outra de tipo global, no analtico? Qual deve ser, ento, finalmente,
o mtodo fundamental que orienta a lingustica em seu conjunto? (PLG II, p. 239,
grifos nossos)

Como se pode notar, o filsofo dirige a Benveniste uma questo cuja resposta, como
ele mesmo diz, orientaria a lingustica em seu conjunto. Obviamente, no temos nem a
pretenso de respond-la, nem a de orientar a lingustica em seu conjunto. Nosso propsito
bem mais modesto. Trata-se apenas de construir uma perspectiva enunciativa de anlise do
que estamos chamando de ato/processo de leitura. Em nossa opinio, a leitura se prestaria ao
estudo sugerido por Piguet. Vejamos, ento:
a) a anlise da leitura dependeria da coexistncia metodolgica do semitico e do
semntico, ou, nas palavras de Piguet, do analtico e do global Pensamos que
contemplamos isso no conjunto dos itens acima: o analtico est previsto no item
5, e o global nos demais;
b) ainda, tais planos dependem, seno de mtodos, ao menos de ideias
epistemolgicas ou metodolgicas distintas. Isso significa que a leitura um
ato/processo complexo que no poderia ser estudado somente por um nico ponto
de vista (o global ou o analtico);
c) Assim, a anlise enunciativa da leitura depende da coexistncia metodolgica do
analtico com o global sem que um se dissolva no outro.
De certa forma, com esse encaminhamento seguimos tambm aqui as orientaes de
Normand (2009), quando, ao avaliar a presena dos termos semiologia, semitica e semntica
na obra de Benveniste, diz que a descrio do sistema semitico conserva um alcance geral
que o inscreve nos princpios de uma anlise lingustica (Normand, 2009, p. 181). Por outro
lado, no semntico, o que temos so frases particulares, trocadas por locutores nesta ou
naquela circunstncia, remetendo a este ou aquele objeto (ibidem, p. 181). Em outras
palavras, o sentido [...] depende de todos esses parmetros que atualizam em discurso os
valores lingusticos e seu sentido inerente (ibidem, p. 181).

116

Se entendemos bem a proposta de Normand, tambm ela, a exemplo de Piguet, apesar


de usar outros termos, considera que a anlise enunciativa associa dois aspectos:
a anlise do semntico (anlise desta ou daquela unidade do discurso) associa uma
anlise semitica do enunciado a um comentrio sobre a situao cada vez particular
da enunciao (tal sujeito, tal tempo, tal referente, tal interao, cujas marcas fazem
parte da descrio semitica). (Ibidem, p. 182, grifo nosso)

A vantagem que vemos na proposta de Normand com relao de Piguet diz respeito
ao fato de que a autora no trata semitico e semntico em termos de analtico e global
noes mais ligadas tradio filosfica do que lingustica , mas em termos de
generalizvel e no generalizvel. Para ela, a anlise do semitico supe a possibilidade de
generalizaes, uma vez que a descrio se detm em aspectos da lngua em seu sentido
inerente; a anlise do semntico, por sua vez, no generalizvel j que seria produto de um
ato de interpretao do analista.
Para Normand, a distino semitico/semntico, portanto, somente levaria a lembrar
da necessidade de considerar aquele que fala (o sujeito) e, por consequncia, de no pretender
dizer o todo do sentido do que ele enuncia que nenhuma anlise pode encerrar (ibidem, p.
182). O programa de anlise da linguagem que associa semitico e semntico, ento,
conduziria descrio do particular, da diversidade do que a lngua permite a servio de
sujeitos vivos e falantes na interao subjetiva [] (ibidem, p. 182).
A partir disso, a anlise que propomos do ato/processo de leitura deve, em nossa
opinio, associar semitico e semntico, generalizvel e no generalizvel, analtico e global
ou, como diria Benveniste, sobre este fundamento semitico, a lngua-discurso constri uma
semntica prpria (PLG II, p. 233). A leitura tem uma semntica prpria.
Em resumo, nossa anlise dar-se- em dois momentos, observados os princpios
norteadores acima (cf. itens 1-6):
a) em um primeiro momento (cf. 5.2), fazemos um comentrio geral sobre o ato
enunciativo instaurado pela produo do texto do aluno no contexto do vestibular.
Nesse momento, enfocaremos as relaes enunciativas instauradas no processo
em si, sem nos determos em um texto em particular;
b) em seguida (cf. 5.3), descrevemos o ato/processo de leitura de cada texto
analisado, em particular. Para isso, fazemos o levantamento nos planos
morfolgico, lexical, sinttico, entre outros dos instrumentos lingusticos atravs
dos quais o locutor constri a relao interlocutiva no texto

117

Esses dois momentos no devem ser entendidos como etapas separadas da anlise. Na
verdade, eles estaro sempre juntos. A diviso que fazemos aqui tem apenas valor
metodolgico.
Essa anlise inicial, esperamos, deve contemplar os aspectos da singularidade
envolvidos no ato/processo de leitura. De certa maneira e guardadas as especificidades, esse
momento diz respeito ao que Normand considera ser da ordem do no generalizvel, o
global de Piguet.
Antes desses dois momentos da anlise, fazemos (cf. 5.1) um comentrio geral sobre o
ato individual de produo de leitura sem nos determos em um texto particular. Nossa
inteno , preponderantemente, falar sobre o ato enunciativo instaurado pela leitura de um
texto.
Desse conjunto resulta a anlise enunciativa do ato/processo de leitura.

4.3 Sobre os fatos de lngua

O tema a ser abordado nesta tese a leitura, vista sob a perspectiva enunciativa, o que
significa, nesse caso, considerar que a linguagem em uso, est atrelada a um sujeito, e a sua
situao enunciativa. O que queremos dizer que a leitura, vista como fato de lngua, um
ato/processo de constituio de sentidos. Nesse processo preciso levar em conta a relao
singular que se estabelece entre leitor e texto.
Assim, aqui, empreender um trajeto para entender o ato de leitura como um ato
enunciativo tratar dos fatos relativos ao leitor, o qual, do ponto de vista enunciativo ,
primeiramente, um locutor que, no ato de leitura, coloca-se como sujeito; ao texto, como uma
entrelaada rede de relaes entre formas e sentido; e leitura considerada como o instante
em que a lngua colocada em uso pelo sujeito. Enfim, pensar esse ato de leitura luz da
estrutura enunciativa.
O que apresentamos neste trabalho um estudo que se constitui em uma abordagem
para um tratamento enunciativo da leitura. Percebemos, a partir de uma retomada conceitual
da teoria benvenistiana, que a leitura se constitui em um ato/processo que envolve o sujeito e
sua situao de tempo e de espao. Acreditamos na condio de intersubjetividade/subjetividade para entender esse ato/processo, do mesmo modo como entendemos que olhar para

118

a leitura nessa perspectiva significa reconhecer que o enunciado se atualiza sempre no aqui e
agora do sujeito-leitor. Entendemos, ainda, que as noes de forma e de sentido tm papel
decisivo para compreender que texto/enunciado s pode ser apreendido na sua relao
forma/sentido, uma vez que tem seu sentido dado pela ideia global, ou seja, percebido
semanticamente, enquanto a forma do texto uma questo analtica, pois ocorre a partir da
dissociao do todo em unidades semiticas.
Podemos apontar que todos esses conceitos enunciativos podem e devem ser
considerados para tratar a leitura pelo vis da enunciao, especificamente a teoria
enunciativa de Benveniste. A leitura, por esse prisma, dever sempre ser vista como um
processo de produo de sentido em que se integram sujeito, tempo e espao. Ou seja, a
leitura um processo de produo de sentido que parte do nvel semntico e se comprova no
nvel semitico, centrada no processo em si e no no produto, o texto.
Para esse trabalho, apresentamos, como forma de analisar o ato/processo de leitura,
textos produzidos por candidatos ao concurso vestibular, por entendermos que esses textos
so o produto de um ato/processo de leitura, ou seja, o sujeito se constitui como tal na leitura
a partir da singularidade, ele l e ao ler constitui outro texto, o seu texto.
A frase, segundo Benveniste, no texto sobre os nveis de anlise lingustica, a
unidade da linguagem em ao, ela um produto da enunciao. Para o autor, a unidade de
anlise em uma perspectiva enunciativa deve levar em conta a articulao entre forma e
sentido. Para ns, portanto, o texto a ser analisado essa unidade, pois por ser uma unidade
completa constitui sentido e referncia.
preciso lembrar que para Benveniste o que est em jogo no o enunciado, mas sim
a produo do enunciado, desse modo, o nosso objeto no o enunciado, mas esse ser
analisado com vistas enunciao, portanto, o objeto do analista da enunciao, em nosso
caso, deixa de ser o processo de produo do texto para enfatizar o ato/processo de leitura.

119

CAPTULO 5

A anlise enunciativa da leitura

Quando algum pergunta a um autor o que


este quis dizer, porque um dos dois burro.
Mrio Quintana

Neste captulo, temos o objetivo de analisar enunciativamente, conforme os


pressupostos tericos apresentados no captulo 3 e, ainda, seguindo a orientao metodolgica
descrita no item 4.2, os textos produzidos no CV/UFRGS/2011. Para esse fim transcrevemos
os textos, considerando-os nossa unidade de anlise, pois, segundo Benveniste, a unidade de
anlise o enunciado, visto como frase109, que em nossa perspectiva passa a ser o texto
produzido pelo vestibulando.
Aps a transcrio dos textos, procederemos anlise (cf. 4.2) a qual relatamos, aqui,
brevemente: fazemos, em um primeiro momento, um comentrio geral sobre o ato
enunciativo instaurado pela produo do texto do candidato, em situao de vestibular,
quando, ento, enfocamos as relaes enunciativas instauradas no processo em si; em seguida,
descrevemos o ato/processo de leitura de cada texto analisado, em particular. Tal diviso,
enfatizamos, apenas metodolgica. Essas duas etapas estaro sempre juntas na anlise.
Nossa anlise pretende, assim, dar conta, a partir do texto produzido pelo candidato,
do ato enunciativo instaurado por essa produo no contexto do vestibular, considerando as
circunstncias envolvidas nessa produo e como o candidato constri suas posies
enunciativas. Isso significa descrever como o candidato se coloca e que elementos esto
envolvidos em seu ato/processo de produo de texto de vestibular. Contemplam-se, portanto,
os aspectos da singularidade envolvidos no ato/processo de leitura nos planos morfolgico,
lexical, sinttico, entre outros, como instrumentos lingusticos atravs dos quais o locutor
constri a relao interlocutiva no texto, que diz respeito ao estudo do generalizvel, do
analtico.
109

A frase pertence ao discurso. por a mesmo que se pode defini-la: a frase a unidade do discurso. (PLG, I, p.
139)

120

Passemos, ento, anlise enunciativa do ato/processo de leitura nos textos


selecionados110.

5.1 A complexidade da relao enunciativa no ato/processo de leitura

Aqui pretendemos fazer um comentrio sobre o ato individual de produo de leitura,


em determinado contexto, que tem como resultado um enunciado. No nos deteremos em um
texto particular, mas sobre o ato enunciativo instaurado pela leitura, em geral, no contexto de
vestibular, conforme item 4.2.
Quando lemos um texto, lemos algo que j foi escrito antes por algum, dirigindo-se a
um interlocutor, suposto ou no. Na leitura h locuo e alocuo, ou seja, h uma produo
dirigida a algum, tambm.
Muito do que fomos dizendo no decorrer desta tese adiantou nosso posicionamento a
respeito do que significa pensar a leitura como um ato de enunciao. Nossos
posicionamentos podem ser sintetizados em alguns pontos gerais que passamos a explicitar a
seguir:
a) A leitura uma tentativa de recuperar um sentido constitutivo de um dado texto
escrito.
Vale a pena reter desse princpio, que se trata de uma tentativa de recuperao, nunca
de uma certeza. Ou seja, o locutor-leitor torna-se um sujeito-leitor na medida em que
consegue re-constituir um certo sentido que inerente ao texto lido. No entanto, nada garante
que o sentido atribudo ao texto coincida com alguma expectativa de verdade.
exemplo dessa no-coincidncia de sentidos as reiteradas vezes que vemos
escritores declararem que ignoram a resposta certa a uma questo de leitura presente em
algum exame em um vestibular, por exemplo sobre um texto que tenha sido por eles
produzido.

110

A atividade de anlise, aqui, apresentada no compreende um mtodo nico de atividade enunciativa de leitura.
Pretendemos apenas mostrar que h possibilidade de, a partir de qualquer leitura, realizar a anlise enunciativa, que
sempre ser nica e irrepetvel.

121

isso que encontramos em uma declarao de Joo Ubaldo Ribeiro, dada em resposta
ao jornalista Alberto Quartim de Moraes, no programa da TV Cultura de So Paulo, Roda
Viva, em 19 de fevereiro de 2001111, a respeito da obrigatoriedade de leitura preparatria para
exames vestibulares. Reproduzimos abaixo a transcrio feita pela prpria emissora:
Joo Ubaldo Ribeiro: No, que obrigam a ler, no. Que transformam numa tarefa odiosa.
Eu j peguei livros... para no falar em clssicos, para no falar num [Os] Lusadas, em
coisas desse tipo, para no falar em Machado de Assis que escrito em lngua antiga, e
assim por diante. Mas um livro de um autor contemporneo, o menino l aquilo to tenso,
para poder responder a perguntas abstrusas. Eu sei, porque eu, por exemplo j fui adot...
livros meus foram adotados para vestibular, e eu seria incapaz de responder s perguntas a
respeito de meus prprios livros.
[Risos]
Joo Ubaldo Ribeiro: Seria incapaz. E no sou metido a ignorantao primitivo, no. Pelo
contrrio, sou uma pessoa intelectualmente sofisticada, no sou nenhum analfabeto. Mas
no responderia s perguntas.
Cynara Menezes: As interpretaes de texto so coisas bastante subjetivas.
Joo Ubaldo Ribeiro: Mete medo nas crianas. As pessoas odeiam os livros. No meu
tempo, j se fazia isso: voc era criado para odiar os clssicos. Era criado para odiar
[enfatiza]. E muita gente ainda odeia.
[grifos nossos]

Ora, Joo Ubaldo Ribeiro testemunha exatamente o que estamos querendo dizer: a
leitura um ato de interpretao que, mesmo que parta de indicaes presentes no texto, no
pode ser reduzido a elas. O sentido que deriva desse ato no coincide integralmente com as
representaes do enunciador do texto. por isso que ler um ato de reconstituio de
sentido intimamente no-coincidente.
b) O texto lido tem sua histria enunciativa.
Para ilustrar esse princpio, partamos de mais uma declarao de um autor. Desta vez
o psicanalista Contardo Calligaris quem nos auxilia. Em entrevista ao mesmo programa, Roda
Viva da TV Cultura, exibida em 27 de abril de 2008, diz o psicanalista ao ser questionado
pela jornalista Mnica Teixeira:
Mnica Teixeira:Voc acompanha, hoje, no Roda Viva, a entrevista com o
psicanalista, psicoterapeuta e ensasta Contardo Calligaris. Contardo, agora voc fez um
romance, escreveu um romance. Sobre o que o seu romance?
Contardo Calligaris: Ah! Escrevi um romance que se chama O conto do amor.
Por vrias razes. Sempre acho que a gente escreve... que qualquer fico responde ao fato
de que tem coisas na vida com as quais a gente no sabe direito o que fazer. Perguntas que
ficam assim, em silncio, em suspenso. No caso especfico foi uma maneira de responder a
uma conversa com o meu pai no leito de morte. Uma confisso no leito de morte dele,
claro, e uma confisso que ele me fez. O primeiro captulo do romance totalmente
111

A entrevista na ntegra
joao_ubaldo_ribeiro_2001.htm.

encontra-se

em:

http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/524/entrevistados/

122

autobiogrfico at os mnimos detalhes. Confisso muito estranha, pois ele me disse que
tinha a certeza de ter, de ser a reencarnao do ajudante de um pintor da Renascena
italiana. Uma coisa muito estranha, porque meu pai no era esprita, no acreditava em
reencarnao e era completamente agnstico do ponto de vista da religio.
[grifos nossos]

O psicanalista claro: seu texto tem sua historicidade, faz parte de uma outra relao
eu-tu-ele-aqui-agora. No diagrama 4 (cf.p.97), tentamos ilustrar o princpio de que o texto
lido tem sua historicidade de leitura. Nesse diagrama, mostramos que o locutor-leitor dialoga
com um tu que , num primeiro momento, o texto, o enunciado lido. Mas, no esqueamos,
constitutiva desse tu uma srie de relaes, representadas no diagrama por um tringulo
pequeno que sintetiza o eu-tu-ele-aqui-agora do enunciado lido.
c) O ato enunciativo de ler decorre da apropriao do enunciado lido a partir da qual se
constri a referncia
As relaes explicitadas nos pontos a e b so irrepetveis. Eis um outro princpio.
Sendo eu e tu nicos em cada instncia espao-temporal, e sendo a enunciao um
processo intersubjetivo, a leitura, vista pela tica da enunciao, o ato/processo de uma
troca em que o leitor-locutor, na relao com o enunciado e atravs de seu lugar singular,
constitui um sentido novo vinculado a sentidos j existentes, para se propor como um sujeitoleitor.
Assim, a leitura decorre de uma apropriao, e consequentemente de uma
atualizao, em que o enunciado construdo previamente por um locutor anterior, ao ser
tomado pelo locutor-leitor, se atualiza a partir de suas referncias. Na leitura surge sempre um
significado novo, que resulta da relao de um locutor e de um interlocutor.
Toda a leitura uma enunciao, um se apropriar do enunciado para, a partir dele, o
eu se tornar eu e construir a referncia.
O apropriar-se de que falamos aqui o tornar prprio inerente a todo o ato que
suponha sujeito. S sujeito quem torna, mesmo que fugidiamente, algo prprio a si. isso
que to claramente afirma o aforismo de Benveniste: ego quem diz ego.
disso que fala Nlida Pion, com muito mais propriedade do que poderamos fazer,
em entrevista112 dada em seu site oficial, na ocasio de ter ganhado o prmio Jabuti em 2005
nas categorias Romance e Melhor livro do ano com o livro Vozes do deserto:

112

Para ver a entrevista completa: http://www.nelidapinon.com.br/panorama/inte/pan_entrevistas_jabuti.php.

123

Como o homem foi se organizando para poder pensar. Uma coisa que me fascina a
imaginao. Um brasileiro pode ter uma imaginao poderosa, mas, se ele no souber
trabalhar isso, ela ficar limitada a uma imaginao folclrica, a uma rvore de 60 metros
na Amaznia. preciso que essa rvore tenha um significado simblico, que o escritor se
aproprie de toda essa dimenso potica da vida, da Terra e do universo. E o que ele vai
fazer com todo esse material catico, que extraordinrio? O caos faz parte de seu
legado. Cada vez que voc faz uma opo, no s esttica, uma opo moral com a sua
imaginao.
[grifos nossos]

d) Ler passar de locutor-leitor a sujeito-leitor.


Finalmente, chegamos ao ltimo ponto: para fundament-lo recorremos, novamente,
ao prprio Benveniste. ele quem nos explica: a subjetividade de que tratamos aqui a
capacidade do locutor para se propor como sujeito (PLG I, p. 286). Cremos que, por tudo o
que dissemos antes, podemos defender, graas ao sistema de referncias que produz e que
atualiza, essa passagem de locutor-leitor a sujeito-leitor.
A leitura, baseada nos pressupostos da teoria enunciativa de Benveniste, um ato de
constituio de sentido, sentido este que s poder ser confirmado na instncia de discurso em
que ocorre. O leitor, de um lado, reconhece os elementos postos no enunciado, de outro lado,
produz sentidos novos. Ou seja, a leitura se constitui num processo de constituio de sentido,
que, como veremos em 5.2, inicia-se no plano semntico e corroborado pelo plano
semitico. Portanto, abordar, do ponto de vista enunciativo, o fenmeno da leitura requer que
se estabeleam os mecanismos, presentes nesse fenmeno, que atestam a passagem de locutor
a sujeito.

5.2 Aspectos gerais da relao enunciativa no ato/processo de leitura.

Produzir um texto em situao de vestibular envolve no apenas habilidade do


candidato na escrita, mas, principalmente, habilidade como leitor. Trata-se, na verdade, de
uma atividade de leitura e escrita, acima de tudo de leitura, pois a escrita passa a ser o produto
de sua capacidade leitora.
Espera-se muito do candidato. Ele precisa seguir as delimitaes temticas
explicitadas na proposta, o que o leva a demonstrar um significativo comprometimento de sua
leitura. Por isso, importante destacar que, na abordagem do tema, apenas o candidato, a
partir da proposta que recebe, pode agenciar as palavras que devero conduzi-lo a constituir o

124

caminho que deseja seguir dentre os encaminhamentos que o tema suscita, lembrando,
sempre, que esse texto tem um interlocutor, ou seja, a banca que o avaliar.
O texto de vestibular, ento, uma cena enunciativa que duplamente conjugada, para
lembrar Benveniste: a) o texto de vestibular o registro de uma leitura de um texto anterior,
com toda a complexidade que isso implica (tal como explicamos acima); b) o texto de
vestibular dirige-se a um interlocutor, a banca de avaliao.
Flores e Mello (2010), investigando, na perspectiva enunciativa benvenistiana, o texto
de vestibular, dizem tambm que h uma dupla cena enunciativa concomitantemente
instaurada nesse contexto: a) h a cena na qual esto em relao o locutor (eu) e a proposta do
tema do CV-UFRGS (tu): o texto produzido , em um primeiro momento, produto da
interlocuo estabelecida com a proposta (na qual esto contidos o tema do texto, o gnero
solicitado, entre outras questes). Para os autores, da relao entre eu e tu, nessa instncia,
decorre o entendimento que o aluno tem da proposta em seu conjunto; b) h uma interlocuo
entre o locutor (eu) e a banca avaliadora (tu). Para os autores, dessa interlocuo decorrem as
tentativas de xito materializadas no texto. Nessa segunda relao, vemos que o texto
instancia uma expectativa de saber sobre a lngua (uma expectativa no raras vezes
normativista).
Interpretar a proposta e buscar subsdios que deem conta do conjunto de referncias
que se identificam com o tema, significa acionar o ato/processo de leitura. Isso aponta para o
fato de que a produo de leitura e de escrita constitui um nico eixo. Compreender, portanto,
como se d esse processo de escrita, leva-nos a entender o ato/processo de leitura realizado
pelo candidato.
Em relao ao tema, de modo geral, o candidato/sujeito deve direcionar sua
enunciao, singular, cujo produto (o enunciado/texto) apresentado por um sujeito em uma
situao especfica, e, por isso, deve dar conta da proposta ao selecionar as palavras para
expressar uma ideia que sua e que aponta para sua atitude e para a situao enunciativa. Isso
significa que, nesse produto, constituem-se as referncias enunciativas instanciadas a partir
do tema da redao e do processo de apropriao das formas da lngua para constituio de
sentidos no discurso (SILVA, 2010, p. 56).
Alm da temtica, na Prova de Redao, o sujeito/candidato deve atentar em sua
leitura para a modalidade do texto a ser produzido: a dissertao. Nesse caso, deve considerar
fatores tipolgicos, a partir de suas referncias de produo e de leitura de textos,

125

apropriando-se delas para empreender um processo de escrita que d conta de sua leitura a
respeito do carter dissertativo solicitado. Dissertativo, no entanto, nesse contexto, significa
no apenas aferir a estrutura formal, mas ser capaz de garantir, argumentativamente, sua viso
do tema proposto na forma de um texto, produto de sua leitura.
Nesse caminho, h necessidade de reconhecer as condies de enunciao do texto de
vestibular. Em primeiro lugar, a circunstncia de escrita se configura como uma situao
especfica de texto produzido para um determinado fim, qual seja, ser aprovado no vestibular,
o que leva a reconhecer a presso qual esto submetidos os candidatos a uma vaga na
Universidade. Nessa situao, o candidato deve desenvolver seu texto de modo a convencer o
leitor, a banca, da sua competncia de leitura da proposta, apresentando sua produo, a fim
de ser analisada a partir dos quesitos propostos pela comisso de vestibular113. Os
vestibulandos, sujeitos-leitores envolvidos em um ato de leitura da prova de redao,
constituindo, assim, a instncia enunciativa atual114 do processo, escrevem, ento, o texto
porque esse necessrio para seu ingresso na Universidade, tem carter, portanto,
institucional; e a banca, sujeito em uma nova instncia enunciativa, l esse texto com o fim
avaliativo. Porm, mesmo considerando tratar-se de uma situao dita artificial, em um
contexto seletivo do qual o candidato participa, ou ainda, uma imposio com base nas regras
do sistema que rege o processo, reconhecemos que se instala a uma situao de interlocuo:
proposta, candidato, texto e avaliador.
preciso considerar que nessa situao o texto de vestibular , como produto da
leitura enunciativa do candidato, uma estrutura que comporta locutor e interlocutor, ou seja,
configura um quadro intersubjetivo da linguagem. Assim, a prova do vestibular aparece como
uma locuo anterior que traz para o vestibulando um sistema de referncias e o convoca, de
certa forma, pela consecutividade interlocutiva, a tambm referir-se (co-referir) (SILVA,
2004, p. 56-57).
Devemos, ento, entender a prova de redao como um processo interlocutivo, em que
possvel reconhecer vrias instncias enunciativas, considerando na primeira instncia a
prova de redao como uma alocuo anterior e a redao, produto enunciativo da leitura
realizada pelo vestibulando, como uma alocuo atual. Silva (2004) apresenta essa reflexo a
113

Expostos em planilha formulada para o CV/UFRGS 2011 que elenca o conjunto de critrios para avaliar os textos
produzidos neste concurso vestibular.
114

O texto/enunciado sempre nico, sua configurao singular uma vez que relativa a expresso de uma ideia
que tem a instncia de discurso como referncia (FLORES, et. al. 2008, p. 72).

126

partir de Dufour, ao apontar que o grupo eu-tu-ele traz, alm da simultaneidade (sincronia), a
consecutividade (diacronia), pois tal conjunto sincrnico tem, como equivalente diacrnico, a
sucesso de trs alocues (SILVA, 2004, p. 57).
Para ns, dessa forma que se configura o quadro enunciativo presente no processo de
redao do vestibular. H, sim, vrias instncias imbricadas em todo o processo, pois a
produo de redao do vestibular tanto instaura um dilogo entre eu (leitor) tu (prova de
redao) no presente da enunciao, quanto institui um dilogo com um locutor precedente, o
eu que props a prova de redao. Assim, entendemos que a alocuo atual supe sempre
uma alocuo anterior, j que o eu que fala s obteve sua posio de locutor atual por ter sido
um alocutrio (tu) na alocuo precedente. Portanto, o ato de escrita da redao supe locutor
e alocutrio, respectivamente autor (nesse caso, o candidato) e leitor (aqui, nesta instncia a
banca avaliadora), que referem e co-referem no discurso.
Para retomar o aspecto geral sobre a redao de vestibular, precisamos considerar que
se trata de uma produo especfica em que locutor e interlocutor no se encontram face a
face, mas que, para ocupar um lugar na estrutura enunciativa, devem constituir o movimento
de referncia e de co-referncia. Desse modo, o locutor deve, portanto, considerar o outro da
sua alocuo e o sistema de valores culturais em que se inscreve a redao do vestibular, para
ento fazer as escolhas lingusticas e selecionar os modos de dizer previstos para essa situao
de enunciao particular (SILVA, 2010, p. 60).
Esse , portanto, um processo individual de apropriao da lngua, e, desse modo, o
locutor-leitor, para enunciar sua posio de sujeito-leitor faz uso do aparelho formal da lngua
a fim de enunciar sua posio de locutor por meio de ndices especficos e de procedimentos
acessrios.
Situamos, pois, nossa anlise no campo dos estudos enunciativos, a fim de
verificarmos como o sujeito vestibulando apresenta sua resposta de leitura produzida a partir
da proposta para a redao. No caso da proposta de redao do CV/2011, o candidato tem
como encaminhamento a necessidade de produzir um texto dissertativo sobre o desprestgio
da profisso de professor entre os jovens, tendo por orientao que esse texto deve avaliar,
ilustrar com dados (apresentados na prova), e ter carter dissertativo, o que significa, no caso
dessa prova, justificar e defender um ponto de vista.
Assim, o ato enunciativo estabelecido pela leitura enunciativa do candidato (eu) da
proposta de redao (tu), concretiza-se na produo escrita ao desenvolver o tema de acordo

127

com o que foi proposto e ao atender a solicitao do gnero solicitado. Nesse contexto, a
leitura enunciativa se constitui tanto como apropriao, quanto como atualizao. H,
primeiramente, um enunciado que, construdo previamente por um locutor anterior, ao ser
tomado pelo locutor-leitor, se atualiza a partir de suas referncias. Nessa leitura surge sempre
um significado novo, que resulta da relao de um locutor e de um interlocutor. Toda
enunciao eu postula um tu, mas este tu ao se apropriar do enunciado e se tornar eu,
pode ou no manter o mesmo sentido, a mesma referncia, pode ou no co-referir.
Isto o que veremos a seguir: que sentido o sujeito mantm, ou no, ao se apropriar da
proposta. Para esse fim, preciso compreender o caminho singular que cada candidato
estabeleceu para desenvolver sua prova.

5.3 As marcas da enunciao no ato/processo de leitura no corpus

Tendo feito esse primeiro levantamento geral sobre o ato enunciativo instaurado pela
produo do texto do aluno no contexto de vestibular, descrevemos, neste momento, o
ato/processo de leitura de cada texto analisado, em particular, de modo a contemplar os
aspectos da singularidade envolvidos nesse ato/processo de leitura. Nesse momento,
considerando-se a enunciao como referncia, buscamos apresentar as atitudes do sujeito
que, na e pela enunciao, evidenciam-se no enunciado. Nosso intuito situar como cada
aluno leu a proposta de redao do vestibular e apontar o caminho seguido pelo leitor e os
instrumentos lingusticos com os quais o candidato constri a relao interlocutiva no texto.
Esses dois momentos, repetimos, no devem ser entendidos como etapas separadas da anlise,
eles estaro sempre juntos, pois a diviso que fazemos tem apenas valor metodolgico.

128

5.3.1 Anlise do texto 1115

A desvalorizao pela baixa remunerao


01.
02.
03.
04.
05.

A profisso de professor, apesar de sua indiscutvel importncia para o


desenvolvimento das civilizaes, desde as mais antigas, vem sofrendo uma grande
desvalorizao por culpa, sem dvida, do Estado. Este, no Brasil, no tem cumprido
seu papel de regulador, deixando a valorizao desse servio merc dos equvocos
do capitalismo.

06.
07.
08.
09.
10.
11.
12.

Em uma sociedade movida pelo dinheiro, onde prestgio quase sempre medido
em reais, evidente que, no que se deixa uma prestao de servio passar a ter uma
m remunerao, a procura por esta diminui. Isso explica a razo pela qual, segundo
uma pesquisa feita pela Fundao Carlos Chagas, 67% de 1501 jovens que foram
intrevistados, cursantes do 3 ano do Ensino Mdio, jamais pensou em ser professor. O
que no , entretanto, de gerar estranhamento, visto que a remunerao , para a
maioria das pessoas, um fator decisivo na escolha profissional.

13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.

Ento, conseqncia disso, por exemplo, o decrscimo de 47,9%, de 2005 para


2011, no nmero de candidatos para o mesmo nmero de vagas do curso de Letras da
UFRGS. Esse um fato extremamente preocupante, pois anuncia uma possvel
carncia de professores pela qual o pas pode vir a passar e, se isso acontecer, a
populao sentir que agravar-se-o drasticamente os problemas sociais decorrentes
do problemtico sistema educacional brasileiro, como a falta de profissionais
qualificados nas mais diversas reas.

20.
21.
22.
23.
24.
25.

Portanto, fica claro que necessrio que sejam tomadas medidas para incentivar a
procura por cursos de Licenciatura. O estmulo que realmente produziria resultado
seria o aumento significativo do salrio base dos professores. Essa uma medida que
deve vir do governo e com a enorme urgncia que esse assunto demanda, j que os
professores assumem no sistema educacional o papel que os produtores tm em uma
cadeia alimentar, ou seja, constituem a base.

Comecemos pelo ttulo A desvalorizao pela baixa remunerao, que se apresenta


como a tentativa de re-constituio de um sentido da proposta, levando o leitor a instaurar
uma perspectiva de leitura a partir da relao entre desvalorizao e baixa remunerao.
Nesse nvel, no podemos negar, h um encaminhamento de leitura do tema que aponta para o
deslocamento de locutor-leitor para sujeito-leitor e que, de certa forma, bem singular.
Vejamos o porqu.
O campo semntico lexical presente no ttulo pelo uso de desvalorizao gira em
torno de desprestgio presente na proposta (cf. avalie por que a profisso de professor se
encontra desprestigiada entre os jovens). H, porm, aqui, uma espcie de substituio
lexical: o locutor substitui desprestgio por desvalorizao. Essa substituio
115

Os textos foram transcritos tal qual foram escritos.

129

semanticamente determinada, na medida em que o que poderia ser considerado uma


consequncia do desprestgio passa a ser visto como o foco da leitura.
No entanto, se, por um lado, a substituio lexical operada por desvalorizao
reconfigura o campo semntico de desprestigiada o locutor prope que desprestgio
desvalorizao , por outro lado, h em desvalorizao uma retomada de valorizao (cf.
inclua tambm sugestes para a revalorizao da profisso de professor em nossa sociedade).
Nesse ltimo caso, h, digamos, uma relao que explicitamente de natureza gramatical
trata-se de uma prefixao e de natureza semntica uma espcie de antonmia
contextualizada. O leitor constitui, dessa forma, um dilogo com a proposta, apropria-se de
um sentido e o re-significa a partir de suas referncias; nesse caso o leitor age como sujeito.
Certamente o sentido que deriva desse ato de re-constituio do sentido no coincide
integralmente com as representaes daquele que produziu o texto. As referncias so outras.
Um segundo mecanismo que mostra as marcas da leitura operada pelo locutor da
proposta do CV explicitado no constante recurso a estruturas causais/explicativas. Antes de
as explicitarmos, cabe um esclarecimento: com a expresso causais/explicativas nem
estamos nos referindo ao que a Gramtica Tradicional chama de oraes causais ou oraes
explicativas, nem estamos recorrendo a critrios sintticos de determinao dessas estruturas.
Nosso critrio semntico e, semanticamente, entendemos que muitas so as formas pelas
quais a causalidade/explicao podem se manifestar.
Voltemos, pois, aos mecanismos causais/explicativos: a leitura causal/explicativa
dada j no ttulo, por meio do uso de pela. O pela um elemento que une a causa
explicao: a baixa remunerao simultaneamente a causa e a explicao da
desvalorizao.
Observe-se que esse mecanismo causal/explicativo se estende ao resto do texto e pode
ser detectado em por culpa (L. 03) e por isso explica a razo (L. 08), o que ratifica o eixo
de leitura posto no ttulo. Podemos dizer que o segundo recurso proposto nesse texto para a
leitura o mecanismo que chamamos de causa/explicao, embora, como veremos, ele no
perpasse o texto inteiro. Essa , portanto, a forma pela qual o sujeito constri sua enunciao,
por esse arranjo formal dos elementos lingusticos que o locutor usa a lngua. Ele l o
enunciado e, na sua atualizao, funda uma relao de forma e sentido, utilizando os
mecanismos lingusticos na re-constituio do sentido.

130

Outro movimento de leitura que pode ser destacado o que, na falta de melhor
designao, consideramos como sendo um plano no qual se produz uma espcie de retomada
da materialidade da proposta. Com esse mecanismo, o locutor traz para o seu texto elementos
presentes na proposta e, para isso, recorre a diferentes submecanismos. evidente, nessas
passagens, a apropriao que o sujeito faz da lngua e a atualizao que se estabelece via
sentido. O leitor se marca singularmente, desse modo, no ato de leitura.
Por exemplo: em A profisso de professor apesar de sua indiscutvel importncia
para o desenvolvimento das civilizaes (L. 01-02) considerando-se indiscutvel que o
professor fundamental para o progresso de qualquer sociedade, presente na proposta
vemos: a) o mecanismo da repetio lexical a profisso de professor por professor; b) o
mecanismo da repetio lexical com deslocamento de funo sinttica indiscutvel
(perifrico no sintagma) por indiscutvel (ncleo da predicao); c) a parfrase em
desenvolvimento das civilizaes por progresso de qualquer sociedade.
Mas h mais: no plano que diz respeito ao atendimento do imperativo da proposta
avalie, ilustre e sugira a leitura feita pelo locutor do texto 1 parece enfatizar apenas o
ilustre. a esse imperativo que atendem as exemplificaes: segundo uma pesquisa feita
pela Fundao Carlos Chagas, 67% de 1501 jovens que foram intrevistados, cursantes do 3
ano do Ensino Mdio (L.08-10); o decrscimo de 47,9%, de 2005 para 2011, no nmero de
candidatos para o mesmo nmero de vagas do curso de Letras da UFRGS (L. 13-15).
O campo do sugira parece restringir-se a necessrio que sejam tomadas medidas
(L.19). O imperativo avalie por que a profisso de professor encontra-se desprestigiada, no
contemplado plenamente, mas os dados que so retomados da proposta que so avaliados.
Por exemplo, em: O que no , entretanto, de gerar estranhamento (L. 10-11) e Esse um
fato extremamente preocupante (L. 15).
Finalmente, o locutor-leitor lana mo de uma vasta lista de modalizadores cuja
funo avaliar os termos pelos quais se pode admitir que a causa/explicao da
desvalorizao a baixa remunerao. Isso pode ser comprovado nas seguintes passagens:
sem dvida (L. 03); servio merc (L. 04); evidente (L. 07); jamais (L.10); um
fator decisivo (L. 12); extremamente preocupante (L. 15); drasticamente (L. 17);
realmente (L.20); significativo (L. 22); a enorme urgncia (L.23), entre outros.
Essa retomada da materialidade lingustica, aponta para a dupla instncia conjugada
no ato/processo de leitura, pois h o locutor que l e o sujeito que se marca singularmente no

131

ato processo de leitura. Nesse caso, o leitor estabelece um dilogo com o texto lido e, ao reconstituir o sentido ali presente, apropria-se do texto, tornando-se sujeito. Esse sujeito est
presente nos elementos postos no texto de forma a dizer algo sobre o que foi lido. , portanto
um ato de interpretao, uma tentativa de re-constituio de um sentido, nem sempre
coincidente. As formas escolhidas para essa re-constituio so atualizadas em uma nova
sintagmatizao revelando, a partir das referncias do sujeito, uma re-significao.
Ao realizar a anlise do texto 1, anlise essa que tambm um processo de leitura em
outra instncia, a do pesquisador, selecionamos as marcas que indicam o caminho singular
que o candidato instituiu para desenvolver seu texto. Nessas marcas, constituem-se as
referncias enunciativas instanciadas a partir do tema da redao e do processo de apropriao
das formas da lngua para constituio de sentidos. De todo modo, podemos dizer que o
sujeito refere e co-refere, no entanto, o caminho escolhido singular, traz novas referncias,
constri um novo texto.
Desse modo, os elementos destacados do conta do ato enunciativo instaurado pelo
leitor, contemplando a singularidade envolvida nesse ato/processo, nos planos morfolgico,
lexical, sinttico, entre outros, como instrumentos lingusticos atravs dos quais o locutor
constri a relao interlocutiva no texto, que diz respeito ao estudo do generalizvel, do
analtico. Nesse texto, especificamente, percebemos pelas marcas destacas, que o sujeito, ao
se apropriar da proposta, mantm o sentido da desvalorizao, de que h motivo para os
jovens no quererem seguir a profisso de professor, mas produz tambm um novo sentido,
ou seja, h o processo de atualizao a partir de suas referncias. O leitor apresenta que o
problema da desvalorizao est atrelado remunerao, desenvolvendo assim, um novo
caminho para sua enunciao.

132

5.3.2 Anlise do texto 2

Professor sinnimo de futuro


01.
02.
03.

Indubitavelmente, h hoje poucas profisses to importantes quanto a de


professor; ele que comea a dar rumo carreira profissional de inmeros jovens.
Estes, lamentavelmente, no pensam desta maneira e tm escolhido outros caminhos.

04.
05.
06.
07.
08.
09.
10.
11.
12.

Segundo dados de um jornal local, 67 em cada cem jovens no tm perspectiva de


tornar-se um profissional da rea docente. Podemos, assim, apontar alguns motivos
para esse atual desprestgio da carreira, como o salrio, principalmente do setor
pblico, o que acarreta muitas vezes em que um professor leciona em mais de uma
escola, levando-o a certo desgaste fsico e mental. Os telejornais tambm tm
evidenciado um novo motivo: a agresso aos professores por parte dos alunos, que
inclusive levam armas de fogo e facas para a sala de aula. Alm disso, muitos deles
pretendem, depois de formados, ficar longe da escola, e outros no fazem qualquer
tipo de curso profissionalizante.

13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.

No podemos desconsiderar o fato de as universidades estarem cada vez mais


disponibilizando novos cursos que chamam a ateno dos jovens. Consequentemente,
visvel a diminuio no interesse na procura de cursos superiores em licenciatura, a
exemplo dos cursos de Educao Fsica e Histria, nos quais vimos o nmero de
candidatos por vaga de 2005 at hoje ficar aproximadamente trs vezes menor. A
revalorizao deste profissional deve ser planejada imediatamente, comeando pelo
reconhecimento da sua importncia pelos governantes, que parece ignor-la.

20.
21.
22.

Professor sinnimo de futuro, de um pas capaz de avanar, de formar pessoas e


profissionais de qualidade. Com a devida recompensa segurana, e recebendo o
respeito que merecem, a soluo para este problema estar encaminhada.
Comecemos pelo ttulo Professor sinnimo de futuro. O que significa dizer que o

vocbulo professor pode ser intercambivel por futuro? H, nessa suposta relao
sinonmica, dois pontos que valem a pena precisar: de um lado, o locutor d a ideia da
importncia dessa profisso e de sua valorizao. Nesse caso, o de que instaura a ideia de
ser uma profisso promissora, de crescimento. De outro lado, dizer que professor sinnimo
de futuro parecer ir contra a proposta que, na verdade, fala em desvalorizao, em
desprestgio. De certa forma, ento, o locutor instaura um vis distinto da expectativa que,
inicialmente, se poderia ter da proposta. Sem dvida, esse duplo movimento do locutor
apresenta, j no ttulo, uma marca de leitura que aponta que o locutor, que se apropria de um
texto, passa a sujeito ao estabelecer uma re-constituio do sentido presente na primeira
citao posta na prova de redao.

133

Desse modo, esse ttulo, caracteriza-se por um ato de interpretao a partir do qual o
locutor faz referncia a passagens, presentes na proposta, tais como: professor fundamental
para o progresso de qualquer sociedade, ou ainda, que preciso olhar para o professor com
olhos de quem quer ver um pas melhor (cf. proposta, primeiro pargrafo). A referncia que
a se constri parte da apropriao do enunciado lido, para a atualizao do sentido posto na
prova de redao. O texto lido pelo candidato instancia essa expectativa,
H co-referencialidade entre a leitura do candidato e a prova de redao. Ao intitular
seu texto, o leitor, em seu ato/processo de leitura, toma por base o primeiro pargrafo da
proposta e se marca singularmente no ttulo, em uma tentativa de evocao de um sentido
subjacente (ser a carreira de professor algo de futuro). Essa leitura configura uma relao
intersubjetiva na medida em que aponta para a relao do locutor com o enunciado lido. Esse
leitor consegue, portanto, retomar o sentido presente no enunciado lido, reconhecer suas
formas e, ento, no seu ato de leitura, restituir um novo sentido a partir de novas formas.
H na proposta de redao um encaminhamento que parte da ideia de importncia
para a ideia de desprestgio, e esta ideia est presente no primeiro pargrafo do texto 2. O
locutor continua a justificar a importncia da profisso de professor (l. 01-03), no entanto, na
linha 3, com o trecho lamentavelmente [os jovens] no pensam desta maneira e tm
escolhido outro caminho, ele apresenta a especificidade de sua leitura do tema da redao,
qual seja, a profisso de professor se encontra desprestigiada entre os jovens.
No primeiro pargrafo do texto 2, o locutor coloca como irrefutvel o fato de ser a
profisso de professor das mais importantes, marcando sua posio atravs do modalizador
Indubitavelmente (l. 01). J com o uso de lamentavelmente (l. 03), o candidato avalia,
negativamente, o fato de os jovens no quererem seguir essa profisso que ele afirma ser das
mais importantes, apontando que os jovens tm escolhido outros caminhos (l.03), o que
assinala j para os dados apresentados na prova de redao. O locutor se move entre
indubitavelmente e lamentavelmente, instaurando simultaneamente uma ideia de certeza
e de adversidade. Percebemos aqui a passagem de locutorleitor a sujeito-leitor, uma vez que
o candidato, a partir de sua leitura singular, constitui o seu sentido para o texto, fazendo uso
de outras formas da lngua. , portanto, com sua posio enunciativa de sujeito, que o leitor
consegue dar conta da proposta, atravs de um ato sempre renovado, tendo em vista a situao
enunciativa em que se coloca.

134

No segundo pargrafo, o candidato apresenta sua leitura a partir dos dados


apresentados na prova. Ele aponta dados divulgados por Zero Hora, jornal esse que ele refere
como um jornal local (l. 04). Nesse caso, ele retoma apenas o dado que faz referncia a
quem no quer ser professor 67 em cada cem jovens no tm perspectiva de tornar-se um
profissional da rea docente (l. 04-05) , fazendo desse dado a ponte para apresentar as
causas para o fato de a profisso de professor estar desprestigiada entre os jovens. Dentre as
causas para o desprestgio esto o salrio (l. 07) e a agresso aos professores (l. 09). O
que percebemos, no final desse pargrafo, o uso equivocado de muitos deles (l. 10), que
deveria remeter a por parte dos alunos (l. 10), mas remete a jovens (l. 04), fazendo com
que haja uma quebra na sequncia das causas para o desprestgio da profisso de professor.
O locutor l, e sua leitura se evidencia em um movimento quase de repetio integral
da proposta de redao do CV-UFRGS. Isso significa que o locutor-leitor apresenta-se como
um sujeito-leitor atravs de um mecanismo de base: a repetio. Evidentemente, no nos cabe
avaliar a qualidade textual aqui, porm, fica muito claro as leituras que se constroem sobre
meros mecanismos de repetio que tendem a apresentar-se de maneira menos complexa.
Na sequncia do texto, vemos que sua leitura o leva a considerar outros dados da
proposta, como os referentes aos cursos superiores em licenciatura, conforme linhas 13-17.
Com esses dados, o locutor faz referncia diminuio dos candidatos licenciatura e, a
partir de ento, elabora uma sugesto para a revalorizao da profisso de professor em nossa
sociedade: a revalorizao deste profissional deve ser planejada imediatamente (l. 17-18);
com a devida recompensa e segurana, e recebendo o respeito que merecem, a soluo para
este problema estar encaminhada (l. 21-22).

135

No texto 2, percebemos que o candidato atende superficialmente ao imperativo da


proposta avalie, ilustre e sugira. O avalie est representado quando o candidato diz
estes (os jovens) tm escolhido outros caminhos (l. 03-04); podemos, assim, apontar alguns
motivos para esse atual desprestgio[...] (l. 05-06).
O imperativo ilustre, tambm no se encontra plenamente contemplado. Apenas
duas passagens: segundo dados de um jornal local, 67 em cada cem jovens no tm
perspectiva de tornar-se um profissional da rea docente (l. 04-05); a exemplo dos cursos de
Educao Fsica e Histria, nos quais vimos o nmero de candidatos por vaga de 2005 at
hoje ficar aproximadamente trs vezes menor (l.15-17).
O campo do sugira, assim como no texto 1, parece restringir-se a revalorizao
deste profissional deve ser planejada imediatamente, comeando pelo reconhecimento da sua
importncia pelos governantes, que parece ignor-la (l.17-18); e com a devida recompensa
e segurana, e recebendo o respeito que merecem, a soluo para este problema estar
encaminhada (l.21-22).
Nesse texto, reconhecemos a passagem de locutor-leitor, medida que h apropriao
da proposta pelo leitor e que, nesse ato, passa a sujeito-leitor estabelecendo uma resignificao para a proposta. No h, portanto, nesse novo sentido coincidncia integral, mas
como j salientamos anteriormente, a enunciao sempre um novo ato. Isso demonstrvel
pela re-constituio que o leitor faz da proposta. Ele l, mas ele atualiza o que l,
configurando sempre um novo sentido. o que ocorre aqui.
Quanto aos imperativos, a leitura feita, no contempla essas ordens. Assim, o leitor ao
tornar-se sujeito do seu ato/processo de leitura, atualiza, com base em suas referncias, a sua
leitura, o seu sentido.
Nesse texto, percebemos, com esses elementos apontados acima, a instncia discursiva
em que o locutor-leitor, na relao intersubjetiva com a proposta, marca-se singularmente,
instanciando sua posio enunciativa de sujeito. Esse sujeito mantm uma relao de dilogo
com a proposta, produzindo um sistema de referncias prprias. Ele l, portanto, um outro
enunciado, e consegue reconstituir um sentido fazendo uso de um complexo jogo de relaes
entre formas e sentidos.
Em termos de sntese, mesmo que no se tenha, aqui, a inteno de avaliar a qualidade
do texto, no podemos deixar de considerar que o texto 2 est fortemente colado proposta
do CV-UFRGS. isso que quisemos enfatizar ao lembrar acima que, no texto 2, o mecanismo

136

da repetio impe-se como marca da trajetria de leitura feita pelo locutor. Esse mecanismo
de repetio que, de certa forma, tambm presente na leitura feita pelo locutor no texto,
apresenta, nesse caso, uma propriedade especfica: se, no texto 1, a repetio uma base para
que o locutor possa constituir o seu modo de ver as relaes instauradas na proposta, pois
assim o sujeito-leitor integra as formas da proposta para produzir novos sentidos, no texto 2,
a repetio cumpre outra funo, qual seja: o mero preenchimento de palavras sem
aprofundamento qualitativo. Esse preenchimento apenas evidencia sua dificuldade em se
propor como sujeito a partir de uma maneira distinta.

5.3.3 Anlise do texto 3

Profisso desprestigiada
01.
02.
03.
04.
05.

Normalmente os pais orientam seus filhos a escolherem cursos de graduao


considerados de primeira grandeza: medicina, direito, odontologia entre outros, pelo
status desses bacharelados. Em contra- partida os cursos de licenciatura que levam
para a rea pedaggica esto desprestigiados no mercado de trabalho, pelas condies
precrias dadas a esses profissionais.

06.
07.
08.
09.
10.
11.
12.
13.
14.

Os pais sempre desejam o melhor para seus filhos e isso inclui at na hora de
escolher uma profisso. Assim, boa parte dos filhos so convencidos a se tornarem:
mdicos, advogados, jornalistas, odontologos, engenheiros, contra a sua vontade, mas
esse fato um agrado a seus pais. Desta forma j temos uma bela parcela da populao
colegial que no far uma licenciatura visando se tornar professor. Um exemplo o
vizinho dos meus pais, Sr. Henrique, 59 anos, mdico, que entregou o convite para sua
formatura em Letras. Aps o questionamento do meu pai sobre os motivos que o
levaram a fazer e concluir o curso, ele respondeu: ser professor de portugus a
realizao do sonho de minha vida, fiz medicina porque fui obrigado pelo meu pai.

15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.

Outro grande fato que leva a pouca procura pelos cursos para a rea da
Pedagogia os baixos salrios; assim no tem o Status de outras profisses que
proporcionam melhores remuneraes. As pssimas condies de trabalho como: salas
de aulas precrias, materiais didticos de baixa qualidade ou escassos e a falta de
segurana e de respeito no trabalho tambm contribui para essa pouca procura. E se
no basta-se isso, ainda temos todos os dias alguma notcia desagradvel publicada em
nossos jornais e revistas, apresentando a dura realidade vivida por parte desses

22.
23.
24.
25.
26.
27.

Com a vontade de boa parte dos pais na escolha da profisso, combinada com
os fatos ruins mencionados sobre a realidade dos professores (sendo que esse fatos
sempre tero um peso maior), temos como resultado o desinteresse na procura por esse
cursos de graduao. Isso uma pena, pois temos uma tima matria-prima para a
confeco de grandes professores, mas essa realidade afasta uma boa parcela de moas
e rapazes que desistiam dessa carreira antes de come-la.

137

Esse texto, j em seu ttulo, mostra a leitura feita da proposta. O candidato aponta que
h uma profisso desprestigiada, no caso, considerando o tema proposto, a profisso de
professor. O locutor instaura uma espcie de oposio entre cursos de primeira grandeza (l.
02) e cursos desprestigiados (l.04). O texto, em seu desenvolvimento, permeado pela
adjetivao, a fim de dar conta dessa oposio, o que pode ser considerado uma marca muito
rica da presena do sujeito leitor ao longo do texto.
Os adjetivos, portanto, configuram a subjetividade do locutor-leitor que, ao constituir
o sentido para o texto, o faz por adjetivao propondo uma relao positiva x negativa, como
por exemplo: primeira grandeza (l. 02), status (l. 03), melhor (l. 06), boa parte (l. 07),
agrado (l. 09), bela parcela (l. 09), melhores remuneraes (l. 17), todos esses
enfatizando o aspecto positivo de optar por outro curso de graduao. J os adjetivos,
negativos, desprestigiados (l. 04), precrias (l. 05), baixos salrios (l. 16), pssimas
condies (l. 17), desagradvel (l.20), dura realidade (l.21), fatos ruins (l. 23),
desinteresse (l.24), dizem respeito opo pelos cursos de licenciatura. Esses elementos
configuram a instncia enunciativa da leitura, marcando o sujeito em seu ato enunciativo de
leitura, sempre renovado, e apontando para a significao estabelecida nesse jogo de forma e
sentido. nesse arranjo formal, aqui, de adjetivos, que a lngua usada. Nesse caso, o leitor
ao fazer uso desses elementos, produz discurso.
Outra particularidade do sujeito-leitor fazer referncia a um exemplo de sua
realidade: o vizinho dos meus pais, Sr. Henrique, 59 anos, mdico, que entregou o convite
para sua formatura em Letras. Aps o questionamento do meu pai sobre os motivos que o
levaram a fazer e concluir o curso, ele respondeu: ser professor de portugus a realizao do
sonho de minha vida, fiz medicina porque fui obrigado pelo meu pai (l. 10-14). Com essa
passagem o sujeito ilustra sua avaliao sobre o desprestgio da profisso de professor,
mostrando que os pais no permitem que os filhos cursem a licenciatura.
Essa ilustrao distingue esse texto dos demais apresentados anteriormente. H, aqui,
uma apropriao do locutor no que diz respeito ao imperativo ilustre e toma como exemplo
uma referncia prpria, estabelecendo uma relao de causalidade, que aponta para uma
espcie de preconceito dos pais em relao profisso de professor. Essa relao se configura
como a causa principal para que os jovens no escolham a profisso de professor. O que
caracteriza o ato/processo de leitura em que o locutor passa a sujeito sua atualizao da
proposta, ou seja, este locutor aponta o preconceito dos pais como sua interpretao do
desprestgio que est na proposta. O que faz, portanto, o leitor nesse processo enunciativo,

138

converter as formas da lngua a partir da apropriao de um sentido anterior, para atualizar


sentidos novos no seu ato de leitura. O leitor re-significa, sempre ancorado no seu aqui e
agora, ele, como sujeito, torna algo prprio a si. Assim, o leitor, ao constituir o sentido em seu
ato/processo de leitura, no coincide integralmente com as representaes do enunciador do
texto, configurando que ler um ato de reconstituio de sentido intimamente nocoincidente.
H ainda outras justificativas para que os cursos de licenciatura que levam para a rea
pedaggica estejam desprestigiados no mercado de trabalho: so as condies precrias
dadas a esses profissionais (l. 4-5); os baixos salrios (l. 16); e, ainda, alguma notcia
desagradvel publicada em nossos jornais e revistas, apresentando a dura realidade vivida por
parte desses profissionais (l. 20-21). Assim, a leitura desse texto aponta que o locutor-leitor
apropria-se do tema, entendendo que deve avaliar o desprestgio da profisso de professor, e o
faz enumerando causas para esse desprestgio, tornando-se, desse modo, sujeito-leitor ao
desenvolver o texto avaliativo solicitado. Contemplam-se, portanto, os aspectos da
singularidade envolvidos no ato/processo de leitura nos planos morfolgico, lexical, sinttico,
uma vez que esse sujeito estabelece conexes entre as palavras de modo a expressar sua ideia
ancorada em sua atitude de sujeito e em sua situao enunciativa.
O locutor, nesse texto, lana mo de algo que poderamos chamar de um macromecanismo causal, que pode ser assim evidenciado: quando o locutor coloca em relao
condies precrias dadas a esses profissionais, que inclui baixos salrios e notcias sobre
dura realidade (espcies de subcausas) o locutor justifica uma causa maior que se encontra a
partir do pargrafo inicial cuja parfrase poderia ser os pais no desejam a profisso de
professor para seus filhos. Esse macro-mecanismo causal , sem dvida, uma marca
importante de constituio de sentidos na leitura feita pelo locutor no texto 3.
No encerramento do texto, o locutor retoma, nas linhas 22 e 23, da proposta as causas
anteriormente citadas e enfatiza, a partir dessas causas, o desinteresse na procura por esses
cursos de graduao (l. 24-25), e finaliza emitindo seu parecer a respeito dessa situao
quando diz que Isso uma pena, pois temos uma tima matria-prima para a confeco de
grandes professores (l.25-26), o que contraposto com uma adversidade: mas essa
realidade afasta uma boa parcela de moas e rapazes que desistiam dessa carreira antes de
come-la (l. 26-27). Nesse final, o locutor que se apresenta como sujeito, retoma a baixa
procura pele profisso, o que est posto na proposta, e com isso se posiciona utilizando
elementos como Isso uma pena e mas [...] .

139

No plano que diz respeito ao atendimento do imperativo da proposta avalie,


ilustre e sugira , a leitura feita pelo locutor desse texto parece enfatizar apenas o
avalie, uma vez que seu texto desenvolvido no plano lexical pelos adjetivos, que so uma
forma de avaliar (positiva e negativamente o desprestgio da profisso), e pelas relaes de
causa expostas acima. Porm o imperativo, ilustre sua avaliao com dados das pesquisas
constantes nos quadros da prova de redao ignorado pelo leitor, que demonstra ter lido a
ordem, mas que poderia ser qualquer exemplo e, no caso, ele ilustrou referindo o vizinho (l.
10-14). Outro fato ignorado pelo candidato a ordem de incluir sugestes. No h
passagem que faa referncia a essa parte do texto lido.
Desse modo, portanto, o sujeito constri sua enunciao, e por esse arranjo formal
dos elementos lingusticos que o locutor usa a lngua. Ele l o enunciado e na sua atualizao
funda uma relao de forma e sentido, utilizando os mecanismos lingusticos na reconstituio do sentido. Esse arranjo formal aponta para a dupla instncia conjugada no
ato/processo de leitura, pois h o locutor que l e o sujeito que se marca singularmente no ato
processo de leitura. Nesse caso, o leitor estabelece um dilogo com o texto lido e ao reconstituir o sentido ali presente, apropria-se do texto, tornando-se sujeito. Esse sujeito est
presente nos elementos postos no texto de forma a dizer algo sobre o que foi lido. , portanto
um ato de interpretao, uma tentativa de re-constituio de um sentido, nem sempre
coincidente. As formas escolhidas para essa re-constituio so atualizadas em uma nova
sintagmatizao revelando, a partir das referncias do sujeito, uma re-significao.
H co-referencialidade entre a leitura do candidato e a prova de redao. Ao intitular
seu texto, o leitor, em seu ato/processo de leitura, toma por base o primeiro pargrafo da
proposta e se marca singularmente no ttulo, em uma tentativa de evocao de um sentido
subjacente (ser a carreira de professor algo de futuro). Essa leitura configura uma relao
intersubjetiva na medida em que aponta para a relao do locutor com o enunciado lido. Esse
leitor consegue, portanto, retomar o sentido presente no enunciado lido, reconhecer suas
formas e, ento, no seu ato de leitura, restituir um novo sentido a partir de novas formas.

140

CAPTULO 6
A teoria enunciativa da leitura: uma contribuio
A leitura uma fonte inesgotvel de prazer,
mas por incrvel que parea a quase totalidade
no sente esta sede.
Carlos Drummond de Andrade

Este captulo uma espcie de prlogo do fim. Com ele, pretendemos retomar os
principais aspectos tratados nesta tese com a finalidade de capturar todas as questes
enfatizadas no percurso traado at aqui e, com elas, dar conta do ato/processo de leitura.
Comprovar que a teoria benvenistiana pode contribuir terica e metodologicamente
para apresentar a leitura como um processo enunciativo a nossa finalidade. Portanto, a
importncia desta retomada est atrelada ao fato de que a leitura processo fundamental da
prtica pedaggica e, como tal, deve possibilitar ao aluno uma reflexo sobre o uso da
lngua/linguagem, principalmente, no sentido de constituio de sentidos a partir deste uso.
Assim, tem sido tarefa da escola a insero dos alunos no processo de leitura. No uma
tarefa fcil, uma vez que a prtica pedaggica ainda se detm na leitura como um mero ato de
decodificao. A leitura um ato subjetivo e, na prtica, deve ser entendida como um ato que
implica o sujeito que se apropria da lngua para se relacionar com o mundo, portanto
essencial considerar a presena do sujeito nos estudos lingusticos, para que se possa
realmente ter uma atividade produtiva de leitura em sala de aula.
Tendo em vista, pois, um caminho terico metodolgico para apresentar a leitura
como atividade produtiva de uso da lngua, propusemo-nos, primeiramente, a apresentar
algumas das principais perspectivas sobre leitura presentes na literatura brasileira. Com esse
levantamento, apuramos que a leitura tem sido tratada em seu aspecto social, cognitivo e
discursivo. Todas as perspectivas abordadas apontam para uma forma especfica de tratar a
leitura, no entanto, pedagogicamente, o que se tem presenciado a fragmentao desses
aspectos, sem que se tenha clareza de como elas esto sendo aplicadas no ensino.

141

Vimos, portanto, a necessidade de expandir esse entendimento, uma vez que a leitura,
como processo complexo que , deve ser primeiramente tratada como um ato de apropriao
da lngua pelo sujeito. Nesse caminho, delimitamos nossa pesquisa para a questo do sujeito.
Assim, em todas as perspectivas estudadas (cf. captulo 1), nos perguntamos sobre a relao
entre sujeito e leitura. Na resposta a essa questo, encontramos (item 1.1) um sujeito de
natureza social, cujo ato de leitura visto como transformador. Esse sujeito um sujeito de
natureza social, enraizado na escola e oriundo de uma realidade scio-histrica complexa.
As perspectivas cognitivistas (item 1.2) tambm conseguem estabelecer uma relao
sujeito-leitura, respondendo a nossa questo sobre essa relao. Aqui, o sujeito se apresenta
em uma perspectiva social, porm, um social distinto, relacionado s relaes entre os
envolvidos no processo de leitura, a interao. o conhecimento, as estratgias que
caracterizam essa relao sujeito-leitura.
No item 1.3, resgatamos, na perspectiva discursiva, tambm a relao sujeito-leitura,
buscando uma resposta para a questo. Nessa perspectiva, o sujeito constitudo
ideologicamente, ele que determina a leitura, sendo aqui o sujeito intrinsecamente ligado ao
discurso , um (re)produtor de sentidos.
Mesmo que todos tenham por objetivo especificar o fenmeno da leitura, que
apresentem uma resposta a questo da relao sujeito e leitura, nossa questo est em
estabelecer uma relao entre sujeito e leitura tendo em vista uma viso lingustica da
linguagem. Apontamos que o ato/processo de leitura s se constitui se for levado em conta o
uso da linguagem pelo sujeito. o sentido que est em jogo nesse ato processo de leitura e
esse depende do sujeito e de suas condies de produo.
Diferentemente do que se apresenta em outras perspectivas que abordam o processo de
leitura, a teoria benvenistiana, cujo fundamento est em estudar a presena do sujeito na
linguagem, apresenta-se para ns como o envolvimento do aluno como sujeito-leitor, sendo,
portanto, a leitura, um processo altamente subjetivo.
Retomando, no segundo captulo, os principais conceitos da teoria enunciativa de
Benveniste, situamos, teoricamente, que ler significa pensar a leitura como um ato/processo
que procede de um locutor que se prope como sujeito. Nesse sentido, est posta, na leitura, a
questo da intersubjetividade. Isso significa dizer que o leitor, ao contatar um enunciado
anterior, produto de uma enunciao em outra instncia, se marca singularmente, produzindo
referncias.

142

A intersubjetividade, em nossa perspectiva, v a relao eu-tu da teoria enunciativa de


Benveniste como uma relao em que o leitor (eu) interage com o enunciado/texto (tu) em
uma instncia do eu-tu-aqui-agora.
Nessa relao, considera-se a instncia em que o leitor re-constitui o sentido para o
texto, o ato/processo de leitura ato de interpretao, entendida como re-constituio de um
sentido. Essa re-constituio no se limita s indicaes presentes no texto, , em nossa
perspectiva uma apropriao do texto. O leitor, portanto, dialoga com o texto, instaurando
uma referncia, um certo ele.
Tendo em vista a retomada da teoria benvenistiana, definimos a leitura como um ato
de enunciao que contempla, nesse ato, a colocao da lngua em uso pelo locutor-leitor,
acontecimento esse que no se repete, sempre nico, tendo relao com eu-aqui-agora do
sujeito-leitor. No ato/processo de leitura o sujeito se marca, toda vez que enuncia sua posio
de sujeito.
ainda a leitura um ato de interpretao, ou seja, de re-constituio de um sentido o
qual no coincide integralmente com as representaes daquele que produziu o texto. Aqui,
h apropriao do texto pelo locutor leitor para propor-se como sujeito-leitor.
A leitura vista, tambm, em relao forma e ao sentido, uma vez que o locutorleitor reconhece as formas e compreende o sentido, fazendo com que se estabelea uma
relao entre a significao presente no enunciado e a significao atual, enunciao
produzida pelo leitor-sujeito.
Em suma, a leitura enunciativa pode ser definida tanto como apropriao de sentido
quanto como atualizao do sentido, o que significa reconhecer que
H um enunciado que, construdo previamente por um locutor anterior, ao ser
tomado pelo locutor-leitor se atualiza a partir de suas referncias. Na leitura surge
sempre um significado novo, que resulta da relao de um locutor e de um
interlocutor. Toda enunciao eu postula um tu, mas este tu, ao se apropriar do
enunciado e se tornar eu, pode ou no manter o mesmo sentido, a mesma referncia,
pode ou no co-referir. (Cf. item 3.1.2, desta tese.)

Com o estabelecimento desses conceitos de leitura a partir dos princpios da teoria


enunciativa de Benveniste, estabelecemos, no terceiro captulo, a nossa teoria enunciativa da
leitura. Esta teoria contempla a leitura como colocao da lngua em uso pelo locutor e o
papel dos sujeitos envolvidos nesse processo, o que leva a reconhecer esse processo como um
ato enunciativo e, por isso, esteia-se em elementos como semitico/semntico, forma/sentido/
e as relaes entre pessoa, tempo e espao.

143

Com base nesses elementos, institumos alguns deslocamentos da teoria enunciativa de


Benveniste, de modo a guiar nossa proposta de uma teoria enunciativa da leitura, e, a partir
desses deslocamentos realizamos a anlise de alguns textos oriundos do vestibular da
UFRGS/2011.
Situamos como primeiro deslocamento a passagem de locutor a sujeito, que nos
permitiu mostrar que no ato/processo de leitura h uma dupla instncia conjugada: a instncia
do locutor, aquele que l e a do sujeito, aquele que se marca singularmente no ato de leitura, o
que nos levou a especificar as figuras enunciativas da leitura como locutor-leitor e sujeitoleitor.
Em nossas anlises, procuramos comprovar esse deslocamento, mostrando que em
cada texto analisado o leitor se marca no texto lido, atravs da re-significao dos sentidos,
possvel perceber o movimento de passagem do locutor que se apropria e, ao se apropriar de
um sentido, re-significa-o, passando, assim, a sujeito. Nesse deslocamento, o leitor um eu,
que mantm dilogo tu, no caso o texto lido. Esse dilogo perceptvel em todos os textos
analisados, uma vez que foi possvel situar as relaes de troca entre eu e tu. Em todos os
textos o locutor-leitor apropria-se do sentido, ou utilizando muitos dos elementos ali presentes
ou fazendo no coincidir sua re-constituio. Ou seja, apropriando-se do sentido, e refazendoo com suas prprias referncias, de modo a marcar sua leitura, a, est a presena, ento do
sujeito-leitor.
J no segundo deslocamento, intersubjetividade/subjetividade na leitura, teoricamente
abalizamos que a leitura se constitui pela intersubjetividade, por essa troca constitutiva do eutu. Aqui h apropriao do enunciado pelo locutor que dialoga com esse enunciado,
considerado nesta pesquisa o tu. Portanto, esse deslocamento pondera, neste dilogo que,
quando o locutor-leitor se prope como sujeito, instaura-se uma referncia, implicando, a, um
eu-tu-ele- aqui-agora.
Nesse caminho, as anlises comprovam que h uma relao que o locutor-leitor
estabelece com o enunciado e com as situaes que constituem esse enunciado. Disso decorre
uma nova enunciao, um novo aqui-agora. Portanto, no segundo deslocamento, previsto para
relacionar leitura e enunciao, encontramos, nos textos analisados, as figuras enunciativas
locutor e interlocutor medida em que h um apropriar-se da linguagem do locutor-leitor para
propor-se como sujeito-leitor. Esse sujeito fixa as referncias da locuo atual, fazendo uma
trajetria de constituio de sentido a partir do que j foi enunciado por algum. Aqui,

144

portanto, vimos a relao que o locutor-leitor tem com o enunciado e com os elementos que
constituem esse enunciado, em um dado aqui-agora.
Como terceiro deslocamento retomamos as reflexes benvenistianas sobre forma e
sentido e as atrelamos s noes se semitico e semntico, considerando-as em uma questo
maior, a da significao. a lngua em uso que se destaca nessa questo, pois com o arranjo
formal dos elementos lingusticos e com o sentido que da se constitui que a lngua usada.
Entendemos que na leitura enunciativa h o reconhecimento da forma e a compreenso do
sentido. Reconhecer e compreender so duas atividades que estabelecem a relao entre a
significao do j-conhecido e a situao atual. Desse modo, o leitor l um enunciado que
contem ele mesmo uma forma e um sentido, fazendo com que, na sua passagem a sujeito, esse
leitor estabelea novas formas para re-significar o texto. O leitor deve, portanto, em seu
ato/processo de leitura, reconhecer a forma, compreender o sentido e, ento, como sujeito, em
sua instncia discursiva atual, instituir, uma nova significao, singular, pois contm as suas
marcas.
No que diz respeito anlise realizada, com base nesse terceiro deslocamento, em
todos os textos produzidos, ou seja, o produto de enunciao do leitor, pudemos comprovar
que o locutor ao reconhecer as formas da lngua e compreender seu sentido, conseguiu, a
partir da apropriao de um discurso anterior, atualizar os sentidos novos em seu ato de
leitura.
E, por fim, apresentamos um quarto deslocamento que trata especificamente da leitura
como um processo enunciativo, como um ato que envolve constituio de sentido, atualizao
das unidades, enquanto palavras, presentes no enunciado. Esse ato prev re-constituir o
caminho percorrido pelo locutor-leitor associando a anlise do semitico ao semntico.
Em nossa anlise, portanto, tomamos a leitura como ato de constituio de sentido, ato
singular, propondo que esse sentido se comprova com a descrio do caminho seguido pelo
leitor e com os instrumentos lingusticos com o quais ele constri a relao interlocutiva
presente no processo de leitura. Esperamos, com a anlise, ter dado conta do locutor e das
formas lingusticas de sua presena no discurso; do interlocutor (alocutrio) e das formas
lingusticas de sua presena no discurso; da instncia de discurso e s formas lingusticas de
sua presena no discurso, para com isso confirmar que a leitura um ato/processo enunciativo
e dessa forma deve ser pensada terica e metodologicamente na relao entre sujeito e leitura.

145

Assim, metodologicamente, olhamos para o texto/enunciado, como um produto de


enunciao, sem nos determos unicamente descrio das marcas do suposto locutor que
tenha produzido o texto. Do ponto de vista da leitura, a anlise parte da produo de leitura, o
que significa olhar para a relao que o locutor-leitor tem como o enunciado lido, no nosso
caso, o tu, e com as relaes (pessoa, tempo, espao) que constituem esse enunciado em um
dado aqui-agora.
J na prtica, na anlise de nosso corpus, relacionamos alguns conceitos enunciativos,
deslocando-os para a teoria que ora propomos: teoria enunciativa da leitura: um princpio do
sentido. Nossos deslocamentos compreendem a passagem de locutor a sujeito na leitura; a
intersubjetividade/subjetividade na leitura; e a relao entre forma e sentido na leitura, e
leitura e enunciao. Ao realizar a anlise dos textos, anlise essa que tambm um processo
de leitura em outra instncia, a do pesquisador, selecionamos as marcas que indicam o
caminho singular que o candidato instituiu para desenvolver seu texto. Nessas marcas,
constituem-se as referncias enunciativas instanciadas a partir do tema da redao e do
processo de apropriao das formas da lngua para constituio de sentidos. De todo modo,
podemos dizer que o sujeito refere e co-refere, no entanto, o caminho escolhido singular,
traz novas referncias, constri um novo texto.
Dessa maneira, os elementos destacados do conta do ato enunciativo instaurado pelo
leitor contemplando a singularidade envolvida nesse ato/processo, nos planos morfolgico,
lexical, sinttico, entre outros como instrumentos lingusticos atravs dos quais o locutor
constri a relao interlocutiva no texto, que diz respeito ao estudo do generalizvel, do
analtico. Em todos os textos analisados, percebemos, pelas marcas destacas, que o sujeito, ao
se apropriar da proposta, mantm o sentido da desvalorizao, de que h motivo para os
jovens no querem seguir a profisso de professor, mas produz tambm um novo sentido, ou
seja, h o processo de atualizao a partir de suas referncias.
Assim, entendemos que possvel formular um caminho terico-metodolgico para a
leitura tendo como suporte a teoria enunciativa de Benveniste. E acreditamos que essa
formulao nos conduza a direcionar nossa pesquisa para o ensino de leitura, com todo e
qualquer texto. Cremos que esse processo carece de atividades que envolvam o sujeito-leitor,
os sentidos e a linguagem. H necessidade de se trabalhar a lngua em uso e isso s possvel
se incluirmos o sujeito nesse processo. Assim, trabalhar a leitura significa olhar para a relao
interlocutiva entre leitor e enunciado, estabelecendo entre eles as noes de significao
presentes na instncia enunciativa da leitura.

146

A viso enunciativa da leitura, aplicada ao ensino, , pois, propor ao aluno relacionar


semitico e semntico. O papel do professor fazer com que o aluno reflexivamente entre no
semntico e o traga para o semitico, ou seja, o aluno deve produzir leitura semntica
ancorada no semitico. Nessa viso, o papel do aluno deve ser o de constituir sentidos, sem a
necessidade de ficar em busca de um sentido presente no texto. ele, na sua passagem de
locutor-leitor a sujeito-leitor que re-significa o texto em seu ato/processo de leitura.
Nossa reflexo, hoje, nos permite dizer que, a partir do desenvolvimento desta
pesquisa, possvel deslocar o campo da teoria enunciativa de Benveniste para uma teoria
enunciativa da leitura que considere a lngua em uso e, dessa forma, estabelea a constituio
de um sentido com base na relao do sujeito com o enunciado. A teoria enunciativa da
leitura deve, portanto, levar em conta o locutor-leitor que passa a sujeito-leitor, marcando sua
presena no discurso que, por sua vez, produzido por ele. S h realmente leitura
enunciativa se considerarmos as figuras enunciativas de locutor-leitor, sujeito-leitor e as
situaes de tempo e de espao da produo de leitura, alm do referente, que indica do que
se trata o discurso. Assim, falar de ato/processo de leitura, significa tratar das relaes
intersubjetivas na linguagem, da converso da lngua em discurso e da atualizao do sentido
em palavras.
No entendemos uma discusso terica que no se oriente para as possibilidades de
prtica. A concluso a que chegamos quando buscamos o que existe no campo da lingustica
sobre leitura a de que se tem nesse campo consenso quanto questo cultural, social,
poltica, e, nesse sentido, a leitura deve ser posta na ordem do dia como um processo de uma
posio, ou seja, de abertura para a entrada do leitor, leitor este que deve ser reconhecido
como sujeito-leitor que se torna livre, autnomo e socivel a partir desse ato/processo de
leitura. Promover a identificao do leitor com o texto significa proporcionar a conexo entre
a sala de aula e a sociedade. O professor precisa compreender os fundamentos tericos de
uma proposta nessa linha, a fim de que implemente uma viso de leitura focada na presena
do sujeito em seu ato/processo e nas referncias que este pode estabelecer nesse processo.
As diferentes reflexes que fazem da leitura seu principal objeto de anlise tendem a
contribuir para atividade prtica, consistente e coerente de realizao da leitura. Porm, no
basta que se aplique uma ou outra teoria, deve haver, antes de tudo, o reconhecimento do
leitor como sujeito que dialoga com o texto, transformando-o em produto de conhecimento.

147

A leitura tem sido tratada apenas como mais um contedo escolar, h


desconhecimento dos fundamentos das teorias e metodologias de leitura em relao histria
de suas diferentes concretizaes sociais e pedaggicas. Por isso consideramos que o primeiro
passo para tratar a leitura o reconhecimento das diferentes concepes que ajudariam a
entender e provavelmente alterar a prtica de leitura.
necessrio que se reconhea a leitura como um ato de apropriao e de atualizao
de sentidos por um locutor-leitor, pois nesse ato que ele usa a lngua para se propor como
sujeito-leitor, atualizando em discurso seu conhecimento, sua cultura e suas relaes sociais.
O aluno, portanto, s se torna sujeito-leitor se, no dialogo com texto, conseguir produzir
referncias, sempre constituda por sua presena no discurso e pelas instncias de tempo e
lugar.
Nossa ideia, portanto, que o resultado metodolgico desta pesquisa resulte em
prtica, na sociedade e na escola, de um ato/processo de leitura que leve em conta sempre a
presena do sujeito no seu eu-aqui-agora, tendo em vista a leitura como um ato singular,
sempre nico, impossvel de se repetir. Conhecer esses fundamentos se faz necessrio para
trabalhar a leitura.

148

CONSIDERAES FINAIS

Este um trabalho de pesquisa lingustica e, como tal, teve o percurso traado pela
explicitao de um grande processo que envolve a lngua em uso: a leitura, a leitura
enunciativa que d conta do sujeito inscrito na linguagem e que no convoca a exterioridade
lingustica.
Nesse sentido, apontamos alguns parmetros sobre algumas das principais
perspectivas que abordam a questo aqui tratada e vimos necessidade de olhar para a leitura
por um novo ngulo, por considerarmos ser esse processo altamente complexo, pois envolve
mais que o texto e o leitor, envolve elementos essenciais para que se torne realmente um
ato/processo de leitura. , sim, uma situao de dilogo, dilogo que se estabelece entre o
leitor e o enunciado, em uma instncia do eu-tu-ele-aqui-agora, porm preciso entender
como isso ocorre.
Entendemos a leitura como um ato enunciativo, como um colocar a lngua em
funcionamento por um ato individual de utilizao. Esse entendimento um grande passo
para a explicitao desse processo to complexo. A leitura, portanto, deve ser vista como um
ato de constituio de sentido.
Nesse caminho, acreditamos que o nosso percurso foi profcuo, tendo em vista a figura
de leitor que nele se desenhou. Um leitor que passa a agir no ato/processo de leitura, tendo o
papel de re-constituir os sentidos postos no enunciado, reconhecer as marcas ali presentes de
uma enunciao anterior, e, com isso, constituir seu sentido, deixando marcas de sua
presena. Esse leitor (eu), que dialoga com o enunciado (tu), utiliza a lngua para se enunciar
e desse modo produzir sentido, no caso, leitura.
Aplicar este trabalho na atividade docente, portanto, ser o prximo desafio, uma vez
que um professor, que se proponha a pesquisar com mais afinco o tema da leitura, deve fazer
com que essa pesquisa chegue escola. Somente desse modo essa etapa estar finalizada, mas
no totalmente, uma vez que acreditamos que um final sempre um re-comeo.
Se, em sua prtica docente, o professor conseguir mostrar para o aluno que ele precisa
apropriar-se do texto, em todos os nveis, via lngua, ento ser possvel faz-lo entender que
a leitura depende dele, de suas referncias, de sua colocao como sujeito-leitor.

149

Assim, com vistas a uma concepo terico-metodolgica da leitura, permitimo-nos


essa trajetria de buscas em um trabalho de pesquisa que se constitui de questes amplamente
discutidas, mas que nem sempre nos levam a respostas objetivas, principalmente quando se
trata de ensino. Na escola no a leitura que se adquire, mas prticas de ler que, nesse espao,
desvendam-se . Entendemos, portanto, que a leitura no depende de ensino, ela uma prtica
subjetiva e por isso, intersubjetiva. Ela depende do sujeito, sujeito esse que constitui sentidos,
os seus sentidos. , pois, esse ato de leitura, que envolve o sujeito, sempre particular, nico,
pois cada leitor constitui a sua leitura tendo como base o eu-tu-aqui-agora.
Como diz Barthes, um texto feito de escrituras mltiplas, oriundas de vrias
culturas e que entram umas com as outras em dilogo, em pardia, em contestao; mas h
um lugar onde essa multiplicidade se rene, e esse lugar no o autor, como se disse at o
presente, o leitor (2004, p. 64). o momento de a escola reconhecer o papel desse leitor,
leitor - sujeito que se apropria da lngua para constituir o seu sentido.
Encerra-se aqui uma etapa do trabalho, mas inicia-se uma nova trajetria, uma
trajetria de docncia, docncia que est atrelada a um novo sentido, a busca de novas
perspectivas no que diz respeito ao ensino. O processo pedaggico tem por objetivo
fundamental a leitura, que inicialmente pode ser delimitada por esse processo, porm deve
bem depressa se tornar ilimitada, sem regras, sem graus. A leitura, pois, deve ser mais que o
ato de aprender, deve ser prazer, ser o desejo de escrever, ou seja, de dar um sentido prprio
ao que se leu.

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