A Noite Não Adormece Nos Olhos Das Mulheres
A Noite Não Adormece Nos Olhos Das Mulheres
A Noite Não Adormece Nos Olhos Das Mulheres
s 11h30 da manh estava no Rio Doce/CDU. Por sorte, algumas cadeiras vagas. Sentei-me e, ao
colocar o fone de ouvido, me desconectei por alguns minutos do caos sonoro ao redor. Pouco tempo depois,
surgiram risadagens de uns sujeitinhos medocres que estavam na cadeira de trs. Aquela zombaria me
incomodava, tocava e tomava corpo. Continuei escutando msica, mas o amargo na minha boca denunciava
a violncia. Fiquei me perguntando se era comigo: Ser que estou ficando louca? Ser que estou noiando
desnecessariamente?
Os pensamentos confusos e incmodos continuavam quando uma outra mulher se sentou ao meu
lado. Ela tambm estava com fones de ouvido, que tambm no a impediram de escutar a corja se
manifestando. A galhofa ordinria continuava. A mulher ao meu lado deu um breve suspiro, abriu a bolsa,
pegou o seu martelo e olhou para trs. Olhou com seus olhos de louca e disse com uma voz firme e calma:
Eu mato! Se for preciso, eu mato! Mato mesmo e no tenho nada a perder. O silncio agora vinha dos
mesmos sujeitos. Ela se voltou para frente e disse pra mim: se tem uma coisa na vida que eu no suporto
preconceito. E, como no podia ser diferente, respondi olhando pros olhos dela: estamos juntas.
Deixou-me apenas a insanidade pela dor desmedida
O esteretipo da louca a desculpa perfeita para os que apontam. A louca instvel, no tem
condies de afirmar nada sobre a realidade. A suscetibilidade nervosa caracterstica das mulheres vista
como a incapacidade de observar e analisar as coisas com a clareza necessria. Os nervos flor da pele e a
instabilidade hormonal so forjados como caractersticos de um ser frgil emocionalmente. A inveno da
louca serve como meio de invisibilizar as desigualdades e a violncia, desse modo evita-se a nomeao das
coisas como so. De onde voc t tirando isso? No t acontecendo nada, voc est imaginando coisas,
voc t nervosa.
Da feitiaria pra bruxaria, a bruxa que se junta com outras mulheres para fortalecer saberes de cura e
taxada de insana, aquelas que fizeram o pacto com o diabo. Passamos pela histeria, o descontrole total que
toma conta do corpo das mulheres. Ainda somos bruxas, ainda somos histricas e agora somos a populao
mais medicalizada, somos amigas do Rivotril, diagnosticadas com qualquer outra sndrome. A insanidade foi
o que restou entre os dois polos: da falta de responsabilizao das agresses do macho e da dor desmedida
de ser o que se . Nos dizem loucas e por muito nos acuamos, entramos na nia da nia. Duvidamos da
nossa sensibilidade e da nossa intuio justo como eles precisavam. Foi preciso soco atrs de soco, dos mais
perversos, vindos dos nossos amigos, dos nossos companheiros, para que ns consegussemos nos
reconhecer.
Somos apontadas, queimadas, apedrejadas e espancadas. Nos dizem loucas. Eu quero novidade!
Somos loucas sim e a partir de agora assumimos a nossa loucura h muito tempo forjada. Mas no
aceitaremos que nos apontem o dedo. Somos loucas porque NS dizemos que somos, porque a loucura o
nosso instrumento de fala. A loucura que permite que ns falemos, pois se no fssemos loucas o
suficiente para falar, morreramos, igualmente loucas, mas sufocadas. No somos ss o suficiente para
permanecermos no cotidiano silenciosamente opressivo. No mais abaixaremos a cabea, e sim
desconfiaremos do que eles dizem sobre ns. Eles j falaram demais, diagnosticaram demais, riram demais e
violentaram demais pra permanecerem e reafirmarem seus privilgios imundos de homem.
Afirmamos que a loucura dessa carta parte do acmulo sem fim das foras e escritos femininos que
tecem nossa trajetria. Isso fruto de uma reflexo nossa, das nossas relaes, de como vivemos nesse
mundo e de como queremos remodel-lo. Dos nossos erros e acertos. uma tomada de posio clara e
necessria. Chegou a hora dos homens escutarem. No cabem apropriaes e no se espera uma aprovao
do que aqui atestamos. A tentativa de tomar para si o lugar da fala, no nosso processo de corporificao e
sujeitamento no mais eficaz.
Entretanto, um posicionamento preciso. A falta de reconhecimento dos erros, a falta de humildade
em questionar seus privilgios de homens cis1 faz parte de um movimento circular uniforme machista que
insiste em manter a inadequao de coletivos ditos libertrios s questes de gnero/sexo/desejo. No
assumir participao na sequencia de agresses aqui relatadas refletem como a postura do meio libertrio
no prope tornar o cotidiano verdadeiramente transformador.
Manipulao masculina e isolamento das afeminadas: ei, libertrio, eu sei que voc machista!
Os mais humilhantes detalhes morrem na minha garganta, mas nunca nas
minhas lembranas. (Conceio Evaristo)
Somos instrudes, desde a tenra infncia, que em briga de marido e mulher no se mete a colher.
Pois bem, contra esta mxima que trazemos nossa denncia e, desta vez, ela incide sobre ns mesmes. O
foco primordial aqui abrir os nossos olhos e direcionar os homens a uma autocrtica sobre como eles se
colocam nas relaes; seja entre os prprios homens, seja em sua participao na construo de
comunidades e, especificamente, em sua relao com as mulheres e todes no-machos.
No precisamos repetir que quem vos escreve um conjunto de loucas em conveno histrica. Isso
talvez te quebre na emenda, mas j no cabe a ns mesmas nos compadecer, seja voc meu amigo de anos,
meu vizinho que mal dou bom dia, ou quem sabe um bbado nojento que depois no lembra o que fez.
Imagine se um cara lhe conta eu estava em casa, parado, e do nada uma cadeira lanada na minha
cabea pela minha companheira. Voc no se perguntaria se est faltando alguma parte dessa histria?
Histrias como essa foram relatadas por Soulfly aos seus amigues libertries durante quase seis meses no
intuito de expor os conflitos vividos em seu relacionamento de alguns anos com sua (atual) ex-companheira,
nas quais alegava-se a instabilidade dela regada a remdios controlados.
Essa exposio, por parte dele, das suas vivncias privadas s vieram tona porque uma bicha loucaafeminada que compe o meio libertrio, em contato com ele em outros momentos, logo percebeu a
existncia das agresses fsicas e psicolgicas cometidas por ele. Por isso, procurou a ento companheira a
fim de se solidarizar. Soulfly, sentindo-se ameaado pela bicha e sua iniciativa de desmantelar a histria do
bom militante, espalhou um boato entre os membros do LA.M.A. - Laboratrio de Mdias Autnomas. O
boato era o seguinte: a bicha se aproveitou do momento de fragilidade e confuso da ex-companheira
para encher a sua cabea de coisas, dizendo, inclusive, que os membros homens do LA.M.A. agrediam suas
companheiras, tratando-a por fofoqueira e maligna. Da a fofoca real comeou, Soulfly foi disseminando essa
histria mentirosa, tentando tirar o dele da reta e falando para cada pessoa o que impressionaria mais. Os
machos, que j no gostavam da bicha - dentre outras coisas - por ela sempre apontar suas posturas
machulentas, viram nesse episdio uma tima oportunidade para gong-la de vez e retirar do espao mais
uma louca. Este foi o comeo das manobras de manipulao por parte do agressor. Colocou a bicha como
mentirosa e culpabilizou a (atual) ex-companheira pela dita instabilidade do relacionamento para que
ningum soubesse o que hoje se confirma.
Erick Marcos Alves Ucha, ou melhor, Soulfly antimachista, antisexista, antiproibicionista,
Cisgnero quando sua identidade de gnero est em consonncia com o seu sexo, dentro do sistema heterossexual do desejo;
quando sua conduta psicossocial, expressa nos atos mais comuns do dia-a-dia, est inteiramente de acordo com o que a
sociedade espera. O termo muito utilizado por tranfeministas para escancarar privilgios, nomeando o que antes no era
nomeado, pois era tido como normal.
que a mulher revidasse para evidenciar o que h muito j se sabia, mas se negava, quebrando o ciclo da
violncia.
Do que se tratam todos esses acontecimentos contados aqui se no de uma clara demonstrao da
manuteno dos privilgios, de quem pode falar e de quem no pode, de quem tem essa legitimidade ou
no? Por que ao se eximirem de procurar a outra parte para ouvir, no impulso primrio de esclarecer toda a
histria, reafirmaram os seus posicionamentos aparentemente lineares, coerentes e corretos perante o
mundo. Viraram a cara para as loucas, para a bicha fofoqueira e, com isso, permaneceram em seus
pedestais, negando tudo que se parece irracional.
Essa situao foi perdurada por meses e nenhum pedido de desculpas foi feito a ex-companheira de
Soulfly. Em nenhum momento eles exercitaram a autorreflexo e questionaram seus lugares de privilgio,
assumindo que o fato de no saber foi uma escolha. Foram coniventes. Muitos dos socos que ela levou so
resultantes do pacto fraternal de cada um que compunha o LA.M.A.
Os discursos e atitudes apresentados ao longo da nossa reflexo no podem permanecer impunes,
precisam de responsabilizao. Essa encenao e toda essa manipulao pode ser escancarada. A fora das
mulheres, das bichas, das loucas a prova de que podemos fazer ruir esses discursos opressores
materializados nas posturas de macho. A sororidade5 surge quando ns nos reconhecemos. Quando nos
reconhecemos como sujeitas de nossas vidas, como companheiras no mundo - na contrapartida da inimizade
e da competio difundidas sobre nossas relaes - a sororidade existe. A experincia de nos agrupar, de nos
organizar e compartilhar com nossas semelhantes contribui para a construo de uma realidade menos
sofrida para ns. A soma de nossas pulses, adivindas de tantos gritos silenciados, de tantas lgrimas
derramadas, podem irromper e quebrar a solidariedade machulenta. Essa que tanto nos violenta e silencia,
descorporificando o que realmente somos ou queremos ser.
A cada mulher que se sente louca, um homem mantm seu privilgio. A cada bicha silenciada, o
machismo se sobrepe. A cada mulher que permanece calada, h um macho coagindo-a. No duvidemos
das loucuras umas das outras, muito menos do silncio da companheira. E reafirmamos: desconfiem do que
eles dizem sobre ns. O machismo no pontual, no uma situao, algo estruturante.
Em cada canto que uma voz for silenciada a sororidade, a cumplicidade e o cuidado com a outra devem
existir. No somente pelos laos de afinidade e amor que nutrimos para com as nossas amigas, mas para com
tantas outras para alm de nossos laos, enxergando-nos como irms e no como inimigas. A construo do
nosso fortalecimento e a realizao da nossa potncia podem ultrapassar as fronteiras das barreiras pessoais,
das intrigas. No podemos cair nas armadilhas dos machos violentos que precisam do nosso
enfraquecimento e da nossa desunio para manterem seus privilgios. Devemos cuidar da outra, por que ela
tambm sou eu e eu tambm sou ela. Juntas podemos resistir. Tomemos conta de nossos corpos e faamos
deles fontes de nossa libertao, ao escolher nossos caminhos, ao viver nossa sexualidade e a busca pelo
prazer sem medo de se tocar, gozar, ao nos organizar. Que juntas aprendamos a nos defender para fortalecer
a capacidade adormecida em cada uma de ns de sermos protagonistas de nossas existncias, sem que
digam para ns o que devemos fazer ou no. Criaremos mais e mais, derrubemos os muros do privado e o
lado mais podre deles sero evidenciadas em cada beco, cada praa, cada quarto.
Duas mulheres se encontraram em um nibus, e naquele momento, se reconheceram atravs da
violncia sofrida. Reconheamo-nos nessas mulheres que se encontraram, que se reconheceram, se
protegeram e se apoiaram. Carreguemos os nossos martelos, e mesmo que no tenhamos coragem de
carreg-los como defesa, apoiemos as que os carregam.
Resistir juntas nos transforma hoje nas bruxas que morreram queimadas no passado, nas histricas que,
confinadas em hospcios, foram mortas acreditando que o desvio precisa ser a norma e em tantas outras
mulheres que vieram antes de ns.
Essa carta por todas as mulheres que j foram agredidas por Soulfly.
por todas as mulheres e bichas que j sofreram e sofrem agresses cotidianamente.
Essa carta para que nenhuma de ns continue se calando frente s violncias e opresses.
por ns que gritamos e por todas que nos erguemos!
5
Rapidamente: sororidade vem do latim, sororis (irm) e idad (qualidade). Termo muito utilizado no feminismo numa dimenso
poltica de reconhecimento e posicionamento das mulheres umas com as outras e perante o mundo; frequentemente utilizado
em contrapartida fraternidade e solidariedade machistas.
A noite no adormece
nos olhos das mulheres
a lua fmea, semelhante nossa,
em viglia atenta vigia
a nossa memria.
A noite no adormece
nos olhos das mulheres
h mais olhos que sono
onde lgrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranas.
A noite no adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retm e expulsam a vida
donde Ains, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de ns
os nossos clices de lgrimas.
A noite no adormecer
jamais nos olhos das fmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso lquido lembradio
em cada gota que jorra
um fio invisvel e tnico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistncia.
(Conceio Evaristo)