Causos Do Romualdo - João Simões Lopes Neto (PT-BR) 2009
Causos Do Romualdo - João Simões Lopes Neto (PT-BR) 2009
Causos Do Romualdo - João Simões Lopes Neto (PT-BR) 2009
Fonte:
LOPES NETO, J. Simões. Casos do Romualdo. Porto Alegre : Martins Livreiro, 2000.
INTRODUÇÃO
Leitor!
Entendamo-nos desde já:
E' possível (o autor ignora-o), que haja coletânea semelhante, anterior, nacional; se
existe, para melhor bem, que supere a atual no conteúdo e na forma!
Em assunto de populdrio (folk-lore diz-se, elegantemente, nas altas letras...), o
registro comporta o pueril do conto, o esborcinado do dizer e a ingenuidade do ouvinte.
O merecimento deste livro subsiste na paciência com que foi ele coligido; falta-lhe
relevância artística, é certo; fora porém crueza destroçá-lo por esse pecado.
Destinado à leitura entre golpes de cousas sérias, aos homens graves entediará; pois
- e lhes não advirá mal, por isso-, demo-lo então aos frívolos e, destes, aos mais elevados: às
crianças.
Patranhas por patranhas... que se não diga que até nisso falta-nos prata em casa!...
Fica entendido, pois não?
I - O PRIMEIRO CASO
Certa hora de pleno dezembro, por véspera do Natal, estava eu
desassossegadamente abanando os mosquitos, quando, por mão de alto e grave sujeito, chegou-
me um pacote, atado em cruz por cadarço listado; farta placa de lacre fechava a laçada do atilho,
nem endereço nem sinete.
- Mandam-lhe!
Assim disse e logo saiu o imperturbado bípede.
Fiz - há! - solertemente e estendi a mão, tomando o volume, trégua foi para os
mosquitos, que apertaram as evoluções e o zumbir.
Mas logo, mirado o pacote e o seu anonimato, despontou a dúvida, o receio, a
inconveniência de um engano, uma troca...
Verificar, lógico, o verificar impunha-se.
- Oh! senhor?!... clamei.
O senhor sumira-se; nem sombra dele nem rastro; dobrara a esquina..., sumira-se,
era o certo.
Pois...
Se fora a desfiar ponderações sobre a interrogante - e muda - expectativa, não
bastaria a hora, aquela, de pleno dezembro, por véspera do Natal, etc. etc.
Fui-me ao laçarote: o lacre o impediu de correr, quebrei o lacre e ainda o laçarote
não correu...
Cortei-o!
Sublime lance! Recordei o de Alexandre, o magno, perante o nó górdio...
Enquanto isso, os mosquitos revigoraram o ataque. Olhei-os com furor, à nuvem
oscilante com ódio! E abanei, abanei-os em acelerado, com o próprio sobredito pacote. Súbito,
passei de irado para pacífico; estaquei, e, num sorriso arguto, soprei ao ignoto:
- E - isto - se é uma broma?...
E sopesei o... problema: leve.
Apalpei-o: brando.
Olfatei-o: inodoro. Inodoro, bem, não. algo de lacre e de cadarço novo...
Apus-lhe o ouvido: mudo. Figura geométrica: ladrilho. Comentário de estética: papel
de embrulho, amarelo, pingentes de cadarço; escamas de cera com breu e ocre.
Lamentável!
Âmbito de conjetura: tudo.
Ímpeto de curiosidade: abre!
Conselho de prudência: vê lá!
O livre arbítrio: ora!...
E sem mais tardança esventrei o calhamaço. Era um robusto caderno salpintado de
muito porém legibilíssimo bastardinho da mão inteligente de um Padre vigário, arquivista alegre
nas horas vagas, e que na primeira página, com sutil e perita malícia, tracejara o título:
CASOS DO ROMUALDO
Ora, aqui tem o leitor o primeiro da série dos que vão, talvez fazê-lo dizer:
- Apre!...
Eu, de mim, ignoro quem foi Romualdo. Contados os seus casos na prosa chata que
se vai ler, muito perdem do sabor e graça originais; guarde porém o leitor a essência da historieta e
repita-a, - por sua vez: recorte-a, enfeite-a com o brilho do gesto e da dição, acrescente um ponto
a cada conto.., e terá presente, imaginoso, criador, inesgotável.., serás tu próprio, leitor, o
Romualdo, redivivo...
Verifique o mais incrédulo: em roda de palestra há dois temas que fornecem -
sempre - matéria para assunto; histórias de cobras e de jóias perdidas.
Quando a conversação amodorrar, quando nela forem caindo retalhos de silêncio,
pausas longas, frases dispersas... experimente, amigo: fale de cobras e de jóias
perdidas; e, daqui por diante... nos casos do Romualdo!
IV - O PAPAGAIO
O reverendo Padre Bento de S. Bento - que o Senhor talvez conhecesse, não? - era
um santo homem paciente - paciente! paciente! - como naquela época outro não houve.
Nos circos de burlantins muita cousa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios,
cabras que fazem provas, cavalos dançarmos e burros que a dente pegam o palhaço pelo... atrás
das pantalonas; mas a paciência para esse ensino não pode comparar-se, não pode-se, com a do
reverendíssimo.
O Padre Bento, farto de aturar sacristães e não querendo estragar a sua paciência,
que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.
Preparava as galhetas, o missal, etc.; depois pachotrentameflte paramentava-se e
pachorrentamente esperava a hora de oficiar; chegada, encaminhava-se para o altar, ë começava
e concluía, parte por parte, tudo muito em ordem.
Mas o filé, o bem bom era quando entrava a ladainha: ele cantava o nome do soneto
e uma vozinha esquisita, porém, muito clara respondia logo:
- O-o-a por nob-s!
E os fiéis, em seguida, pela pequena nave atora, acudiam ao estribilho:
- Ora pro nobis!
Dessas ladainhas assisti eu a muitas, na capelinha de S. Romualdo, que era próxima
a nossa casa, na Vila de...
Agora sabem quem cantava as ladainhas do Padre Bento?
Era o Lorota, um pagagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante...
Com ele diverti-me muitas vezes:
- Lorota, dá cá o pé!
E ele, ensinado pelo padre, respondia, amável!
Coitado! ... O padre morreu e o Lorota, não tendo mais a quem dar contas, fugiu.
Passaram-se os anos.
Uma vez, estava eu na Serra, numa espera de onça, quando senti - confesso não
medo mas um arrepio de... frio - quando ouvi, nas profundezas do mato virgem, uma ladainha
religiosa!
E pausada, afinada, bem puxada em suma!
Seria um sonho? ... Estaria eu errado na tocaia das onças, e em vez de estar na
floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança de algum convento, de alguma capela, de
alguma romaria?
E a ladainha, compassada e cheia, vinha se aproximando:
- Bento S. Bento!
- Ora pro nobis!
- Santo Atanásio!
- Ora pro nobis!
- S. Romualdo!
- Ora pro nobis!
Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas a ver se
bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente; nada!
Nisto, a ladainha pousou nas árvores, por cima de mim. Pousou, sim, é o termo
próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o
papagaio do Padre Bento, era o Lorota!
A paciência do bicho! ... Ensinar, direitinho, aos outros, a cantoria toda! ...
Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real, e perguntei para
cima:
- Lorota? Dá cá o pé!
Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou-me com a
antiga resposta que ele sempre dava:
- Romualdo é bonito! Bonito!
E como para obsequiar-me fez um - crrr! - como aviso de comando e recomeçou a
ladainha:
- Bento S. Bento!
- Ora pro nobis!
- Santo...
Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso... o Lorota e seu bando bateu asas... e
eu olhei em frente: a sete passas de distância estava agachada, de bocarra aberta, pronta para o
salto, uma onça dourada, uma onça ruiva, uma onça de braça e meia de comprido!
E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante:
- Or...a pro no.. .bis!
S... Ro...mual...do!
Ora... pro... nobis!...
V - O TATU-ROSQUEIRA
Já em rapaz eu ouvira falar numa raça de tatus-rosqueira, porém, punha minhas
dúvidas nessas históriasPassaram-se os anos caminhei muito, muito, aconteceu-me muito, mas
de. tatu-rosqueira, nada!
Pois dessa feita, no Rincão das Tunas, vi; do outro lado do rio Camaquã, com estes,
que a terra há de comer, vi... e se me fosse contado não acreditaria.
Periga a verdade, mas lá vai, e, demais, estavam presentes o capitão Felizardo, já
falecido, o licenciado Silvinha (que perdi de vista), além dos peães, sem falar nos cachorros, por
sinal bons tatuzeiros.
É sabido que as jararacas andam sempre em casal e que se alguém mata uma pode
também matar a outra, no mesmo lugar, porque a viúva vem pelo rastro da companheira; se se
carrega a primeira, por exemplo, para perto de casa, é contar que a outra aí vem dar; quer dizer, o
bicho acompanha o seu defunto, ou seja pelo faro, ou pela dor da saudade, com os olhos da
alma...
Sabe-se também - isso eu vi, vezes e vezes! - que o lagarto conduzido pela cauda,
semimorto ou semivivo (há diferença entre estes estados de saúde), quando menos se espera,
quebra o rabo e escapa-se.
A perdiz, finge de morta: fecha os olhos, afrouxa o pescoço, reina as asas e... zuct!
de repente apruma-se e desfere o vôo.
O zorrilho...
Esta pequena divagação, que pode parecer maçante, é necessária e vem apenas
provar que todo animal tem um instinto muito particular para certas aflições em que se encontra.
Era por uma bonita noite de luar. Estávamos mateando e pitando; conversa vai,
conversa vem, quando o major Felizardo lembrou que podia divertir-nos proporcionando-nos uma
caçadita aos tatus.
- E tatu-rosqueira, então, que é praga! ... concluiu o major.
A este dito, saltei.
- Pois há? ... inquiri.
-Xi! assim!...
E o major juntou em molho os dedos das duas mios, e assobiou comprido.
Aprestamo-nos e saímos rumo do rincão.
De chegada soltamos os cachorros, e daí a um quase-nada já lhes ouvíamos o
ganiçado. Começamos a bater as toca. Aquilo foi rápido.
Havia mesmo muito tatu!
Cachorro farejava, cavava na entrada da toca, e nós já rente, de enxada, dá-le que
dá-le!
Eu é que tive a sorte de descobrir o primeiro tatu; o primeiro tatu, não, o primeiro
rabo de tatu. E no que o descobri, agarrei-o. Tironeei, tironeei, e nada, o bicho não vinha; já ia
meter o dedo... sabem, bem?... quando o licenciado Silvinha gritou-me:
- Não faça isso, Romualdo... destorça a rosca do rabo!...
- Quê?
- Sim, e para a esquerda, a modo de parafuso inglês!
Sem ter consciência do que fazia, às mãos ambas dei umas quantas voltas para a
esquerda, e qual não foi o meu espanto quando senti que efetivamente aquilo cedia, afrouxava,
desatarraxava-se! ... E fiquei com o rabo na mão... sem o tatu!
Pelos outros lados os companheiros andavam na mesma faina. Algo desapontado,
indaguei do licenciado:
- E agora?...
- Passe a outro. Guarde esse rabo aí no saco; daqui a pouco você verá o resto!
Aquilo era curioso, passei a outra cova, a mesma manobra: outro rabo, no saco;
outra e outra, e assim porção delas.
A certa altura o tenente-coronel deu ordem de parar, pois não poderíamos
transportar toda a caçada; o saco estava cheio a mais de meio.
Eu estava desconfiado e furioso, mas disfarçando, achava esquisito vir ao mato
caçar tatus e só levar-lhes as caudas...
Mas o coronel Felizardo fez um sinal e logo nos arrolhamos em volta do saco; fez-se
silêncio e daí a pouco começou a tatuzada a sair das tocas - desrabados todos - e vieram se
chegando para o saco, focinhavam nele e ficavam quietos, como viúva velha chorando na cova de
marido novo...
Ai então é que era pegar e sangrar tatu! ... Foi uma senhora matança! Fizemos umas
quantas enfiadas e voltamos para casa vergando ao peso da caçada. Eu, por mim, confesso,
estava atônito!
Em caminho é que o brigadeiro Felizardo me foi contando a cousa pelo miúdo
- Romualdo, você conhece o tatu peludo ou de rabo mole, o bola, o guaçu e outros;
mas parece que este, nunca viu...
- De ouvido, sim!
- Ora! ouvir falar é uma cousa, ver é outra... Este tatu tem o rabo como uma rosca,
por isso se chama rosqueira; caçá-lo é facílimo: descoberta a toca, basta poder agarrá-lo pela
cauda e em vez de puxar destorcê-la e depois levá-la para um pouco distante naturalmente o
rosqueira sente falta do peso do rabo e pelo faro vai em busca, acha-o e começa logo a cavar no
chão um buraco estreito e fundo, entra então com o focinho a dar voltas e mais voltas à cauda
solta, e tanto trabalha que fá-la cair de ponta para baixo no buraco que preparou: então, chega-lhe
terra e vai-o enchendo, de forma que a cauda pode ficar fincada corno uma estaca, e quando ele
sente que está firme, senta-se-lhe em cima e...
- E... parece incrível!
- E começa a andar à roda, à roda, sempre para a direita, até atarraxar-se de novo
ao rabo. No que está pronto vai-se embora!
No dia seguinte fui ao mato, sozinho, para verificar o caso.
Descobri logo umas sete covas, portanto sete tatus; destorci sete rabos, pu-los no
chão trepei a uma árvore topada e esperei vieram os tatus: vieram os tatus, fizeram os tais
buracos, fincaram as caudas, sentaram-se em cima delas e começaram a rodar, a rodar, a rodar.
Dentro em pouco um primeiro cessou o movimento e atirou-se para a frente, na sua posição
natural, de quatro patas; e logo outro, enfim todos os sete, perfeitamente bons, enrabados,
completos. Sem querer fiz um movimento, e os bichos fugiram rápidos como setas. Era a pino do
meio-dia.
Para comer é que não são bons: têm a carne mui dura.
VI - A FIGUEIRA
Morava na rua da tomba em um casarão acachapado, pintado de amarelo. Ao fundo
o quintal, parecendo pequeno por ter ao centro uma colossal figueira.
Esta colossal figueira havia estendido grossos braços para todos os lados e copava e
fechava de tal forma a ramaria e a folhagem, que a sombra era perpétua.
Não só através dela não filtrava um rastilho de sol, como também nem um pingo de
chuva passava para baixo.
Não consegui manter uma galinha no quintal: quantas lá punha morriam de frio; e ali
mesmo as enterrava, o cachorro, esse, tiritava como se estivesse em plena garua de agosto,
batida de minuano.
Por estas e outras andava eu aborrecido com a figueira. Carregar, isso carregava
que era uma temeridade.., mas nos últimos anos, menos, bastante menos.
Por outro lado, era debaixo da figueira que os meus pequenos e os da vizinhança
brincavam; ai faziam as suas merendas, principalmente quando havia frutas; e com o andar do
tempo a criançada chegou a fazer em volta dela um verdadeiro tapete de sementes diversas, de
laranjas, marmelos, pêssegos, uvas, pêras, ameixas, de araçás, de butiás, de limas, melões, etc.,
enfim um calçamento de caroços e pevides.
Naturalmente cada ano as raízes da figueira cresciam e enterravam e afogavam essa
caroçama que desaparecia.
Preciso dizer que a casa e o quintal e portanto a árvore pertenceram aos avós da
minha sogra, esta aí nasceu e faleceu, com noventa e sete anos; e que há cinqüenta e três anos
que os ditos bens pertenciam ao meu casal: basta isto para calcular-se a idade da figueira!
Ora muito bem.
Há de haver uns sete anos fez um inverno molhado e frio como nunca passei outro.
Todo o mundo lembra-se desse ano. Em casa fomos todos, de ponta a ponta, atacados de tosses
e catarreiras tão fortes, que julguei iríamos acabar héticos. Chiados de peito, roncos, assobios,
fanhosidades, rouquidães... um barulho que até alarmava os andantes na rua!
O doutor que acudiu, como se tratasse de uma única doença, já receitava os
lambedouros em dose para vir em frasco grande, dos de genebra.
Mas, qual! ... Cheguei a desanimar, e certa vez puxei o médico para uma sala dos
fundos, para conversar à vontade. Conforme íamos andando, a casa ia ficando às escuras; o
doutor estacou:
- Homessa! Estaremos à boca da noite às duas horas da tarde?...
- Não é nada, doutor: é a figueira!
- Que figueira, Romualdo?
- Ali, na escuridão.., não vê?
O doutor teve medo de seguir avante; eu, já se vê, prático velho, nem me abalei.
Mas tanto como rodou nos calcanhares, disse-me com franqueza:
- Romualdo, toda a doença da sua casa está ali; é a umidade, a escuridão, o
abafamento que a figueira produz, derrube-a, Romualdo, derrube-a!
- O abafamento... a escuridão... a umidade...
- Sim, homem: meta-lhe o machado!
Compreendi: era tal e qual! Mas como todos estimávamos muito a figueira, resolvi
derruba-la, não podá-la muito, sim.
Logo no dia seguinte começou a esgalhação; trabalhou-se uma semana, de fio a
pavio, apenas parando para comer, veio carreta de bois para levantar as lenhas da poda.
Foi uma alegria, na casa. Sol, ar livre, por todas as portas e janelas; chio e paredes
começaram a orear.
Ninguém mais tomou lambedouro.
Logo na primavera começou a brotação e vieram galhos novos, bonitos porém com
um enfolhamento esquisito.
Esquisito, deveras. Folhas compridas e curtas, e largas e estreitas; recortadas umas,
lisas outras; lustrosas, foscas; ... uma trapalhada! ... e até notei alguns pequenos espinhos.
Vi, vi bem: eram espinhos; pequenos, porém espinhos.
Até aí nada de espantar: curioso e tal, mas tem-se visto..
No ano seguinte porém, e nos outros, é que a figueira começou a encher-me de
espanto, a num e ao vizindário e outras pessoas muitas. Sinto não lhes haver tomado os nomes,
mas nem tudo lembra: se tenho tido essa precaução, hoje, com tais testemunhas, entupiria a
muitos incrédulos malcriados a quem hei referido este caso. Mas quem mal não pensa, mal não
cuida...
Pois esse ano a figueira deu figos e... marmelos; no seguinte, pêssegos e ameixas,
de repente, só peras; no noutro ano, puramente laranjas, depois, apenas figos; em seguida, uvas..,
e assim sucessivamente, melancias, cocos, limas, araçás, etc.., até que em certa temporada deu
umas frutas esquisitas, compridinhas, ressequidas, sem gosto nenhum, nem sumo, e que, bem
examinadas, eram quase como penas de aves.., até pelo cheiro ... de galinha, que conservavam...
Matutei muito, mas encontrei a explicação do fenômeno.
Simplíssimo: a figueira tinha absorvido o suco germinativo de todas as pevides e
caroços e sementes que lhe alastravam o chão.., e também o das galinhas mortas que junto às
suas raízes foram enterradas... Com a força do sol tudo aquilo grelou dentro da sua seiva. Como a
árvore não pôde reagir contra a invasão, antes foi dominada, assim é que começou a dar frutos, na
desordem que mencionei.
Em conclusão: a figueira já não sabia o que fazia; estava como uma pessoa muito
velha, de miolo mole, que já não regula.
Pobre da minha figueira. Coitada!
Estava caduca!
XI - O COBERTORZINHO DE MOSTARDAS
No meu tempo de meninote fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela época
dava a nota no comércio da província. Como era da praxe, o meu primeiro posto foi o de -
vassoura.
Varria o armazém - uma "venda" em ponto grande - agarrava à unha as baratas
vagabundas que passeavam sobre os queijos e os bacalhaus, lustrava os sapatos de fivela do
patrão e ia à missa das sete horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu
cascudo dado pelo sr. 1º caixeiro; comia - por último - na ponta da mesa grande, sem toalha e tudo
no mesmo prato; ao escurecer ia a casa tomar a bênção aos meus pais e voltava logo, para dormir
numa esteira, atrás das pipas. Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender - a ser gente.
Mas a vida ia correndo. O diabo foi uma mulatinha, que...
Foi assim: perto do armazém morava uma senhora viúva, com três filhas, meninotas
como eu, porém bonitinhas como uns feitiços...
De manhã, quando eu ia à missa ou de lá vinha, espichava para elas os olhos... mas
baixava-os logo, entre respeitoso e envergonhado.
As meninas riam-se, cochichavam e beliscavam-se.
À noite, quando ia à bênção caseira ou de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.
Aquela obrigada passagem pelos três diabinhos punha-me as orelhas em fogo e
forçava-me a trocar o passo, na atrapalhação do meu acanhamento.
Porém, a mais dos três diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha, bem da
cor do pêssego maduro, e ladina como um sorro...
A mandado das sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras,
puxa-puxa, pé-de-moleque ou broinhas, que eram os doces que havia; e embirrava em que só
havia de ser servida por mim!
- Seu Romualdo, quatro de broinhas e dois de puxa-puxa!
Se outro caixeiro vinha atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:
- É o seu Romualdo quem me serve. A nhãnhã deu "orde"! ...
E este seu criado Matias... A vida ia correndo.
Ora, uma tarde, tinham todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho de
plantão ao balcão. Nessa tarde, não sei porquê, até uns sujeitos que costumavam ficar por ali
fazendo horas, até esses não apareceram.
Estava eu olhando para uma caixa de massas italianas e cá de mim para mim
perguntando que estranha árvore seria aquela que dava lasanha e macarrão, quando
embarafustou porta adentro a mulatinha:
- Seu Romualdo, três de pé-de-moleque!
Fiz os três vinténs de pé-de-moleque e por minha conta tomei de uma rapadura e
dei-lha, dizendo, meio a tremer de mim mesmo:
- Toma: isto é doce como tu..
A mulatinha avançou na rapadura e respondeu espevitada:
- Como tu, vá ele! "Menas" confiança! Estomagado com a ingratidão, quis retomar a
rapadura e fisguei o pulso da mulata. Houve uma pequena luta silenciosa e ... justo, ao tempo que
entrava da rua o patrão, a mulata bradava às armas:
- Seu Romualdo, não me belisque!
- Largue a cabra, menino! berrou o meu patrão, a dois passos de mim.
E como vinha de mãos a prumo sobre as minhas orelhas ... quebrei o corpo. Depois,
não sei explicar o que se passou: divisei ao meu lado, na boca de uma barrica, um alguidar com
manteiga; nele e nela afundei as mãos e com tal bocado - três ou quatro libras - fiz arma de
defesa.
Os dedos ferozes tornaram a roçar-me as orelhas ... outra negaça de corpo e quando
alcei-me, plantei a plastada da manteiga na cara do patrão. Olhos, barbas, nariz, boca, testa.
Calafetei-o!
E voei, porta fora, assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e gritou-me:
- Bem feito! Apanhou! ... Apanhou! Bem feito! ...
Cinco minutos depois entrava em casa.
- Tratante! bradava Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão... ao segundo pai dos
caixeiros! Patife!
- Mas ele ia arrancar-me as orelhas... murmurava eu, Romualdo filho, a tremer, com
a boca pegada a cuspo grosso.
E Romualdo pai:
- Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino!
E Romualdo filho:
- Que ele sempre... tratou-me... como cachorro... gaudério! Ih! Ih! Ih!
E mais não disse, que os soluços embargaram-me a voz e os queixumes. Afinal a
"velha" acomodou as cousas. As mães sabem sempre ser anjos.
Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.
Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro rega-
bofe a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.
Mostardas é uma povoação perdida entre areiais, junto à costa do oceano. Gente
boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do
diário; tece a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.
Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão
aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele,
era necessário tosqueá-los à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e ficava
com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse lidando em água esperta.
Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas.
O lanchão amarrou novamente; nele devia eu regressar. Na véspera da partida, a
santa da madrinha arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente, era apenas uma canastra
pequena, forrada de couro cru, peludo. O mais eram presentes que eu levava: um fardo de
miraguaia salgada, uma barrica de camarões secos, uma peça de picote, umas toalhas com
rendas de bilros, etc.
E para mim, expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das tais ovelhas
especiais. O meu cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para o meu corpo: muito leve,
transparente e felpudinho. Do lado que devia ficar para os pés. tinha duas barras vermelhas e do
lado da cabeça tinha o meu -Romualdo - em letras azuis.
Fiquei encantado! E como já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o atando-o com uma
eitibira larga, descascada a capricho.
Na manhã seguinte, sob bênçãos e lágrimas dos meus padrinhos, embarquei.
O lanchão içou velas. Ainda uns abanados de mãos, de lenços ... e tudo lá ficou,
para sempre, na volta do arroio!
Mal pus os pés em terra, meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé... como
caixeiro!
Chorei pelo patrão da manteiga, pelas meninas e até pela mulatinha; chorei por
Mostardas, pelo lanchão...
Entreguei os presentes, as cartas, dei as lembranças, os recados e os abraços que
me confiaram.
Na minha desgraça só o meu cobertorzinho me consolava. Mal toquei-lhe, para
mostrá-lo à minha mãe, a embira, de ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção,
mas já foi suando que o amarrei de novo com uma ourela de pano piloto. Minha mãe abanava-se
de leque, como em dezembro.
Segui para Bagé. Uma viagem dessas, naquele tempo, dava para um romance!
Todos sabem disso. Passemos adiante.
Quando a "deligência" fez a última parada, perto da igreja de S. Sebastião de Bagé, o
meu novo patrão esperava a encomenda.
Era eu.
Era ele um espanhol baixinho, gordo e gritão.
Como é dos estilos, pus a canastra ao ombro e marchamos para a casa do negócio.
Fazia frio!... frio!... Que frio que fazia!... As fumaças do cigarro do espanhol ficavam
paradas no ar, endurecidas, talvez congeladas... Pouca gente a pé. Muitos homens a cavalo;
emponchados, todos.
Chegamos. Entramos. Pousei a canastra. Olhei.
E chorei, logo. Aquela. distância, aquelas caras novas e cousas estranhas
achatavam-me.
O patrão então falou:
- Mira, chico, estarás estrompado, he?... Vate a dormir. Mañana tempranito te
tomarás un cimarón con galletas!
E conduziu-me ao meu quarto, isto é, ao quarto da caixeirada.
Lá, no Rio Grande, tínhamos esteiras, aqui temos pe1egos... Ganhei na troca.
Atirei-me sobre o meu pelego. Mas o frio cortava.
Meio de gatinhas, pés duros, canelas duras, ombros duros, mãos duras, consegui
abrir a canastra e sacar o meu cobertorzinho. Provavelmente eu devia de estar com a cara como
uma batata roxa...
Tocar no cobertor foi uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo sobre meus
pelegos, uma alegria; meter-me debaixo dele, um consolo divino... E ferrei num sono de pedra.
Lá pelas tantas acordei-me meio afogado, lavado em suor.
Acordei-me sob uma granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros,
todos em trajes menores, sentados nos peitoris das janelas, que davam para o quintal.
- Que abafamento! que calor! diziam eles.
- Parece meio-dia de fevereiro!
- Se tivesse água agora, era banho certo!
Eu, por mim, não podia mais; parecia-me que tinha um pano de fogo em cima do
corpo. Fui para a janela, como os outros.
Nisto o espanhol abriu a porta do nosso quarto e - descalço, em ceroulas e de
poncho de pala enfiado - bradou:
- Eh! muchachos! Habrá fuego en la calle? Que está caliente como un sol dormiendo!
Mas logo bateram à porta da frente.
- Hay fuego, muchachos! Es fuego! A ver!
Saímos todos com o patrão; abriu-se uma porta e logo entraram uns quantos sujeitos
vestidos muito à frescata.
- Chê! Bote um capilé! pediu um, esbaforido.
- Outro! Que calor! gritou outro tipo.
- Menino, dá cá um refresco... reclamou um terceiro.
- Donde es el fuego? inquiria, aflito, o espanhol.
- Que fuego, nem fuego! Calor da noite é que é.
- Isto é tormenta!
- Olha! Outro capilé!
- Aqui também!
E o calor aumentava.
Casas abriam-se com rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das "mangas" de
vidro.
Crianças vinham para a rua, em camisinha. Ouviam-se risadas, conversas,
chamados. Começavam a mandar buscar cousas ao armazém. Tijolos de goiabada, rapaduras e
bolacha doce, latas de sardinha, ovos e toucinho para fritadas, varas de lingüiça, para comezainas
improvisadas.
Outras casas de negócio vizinhas também abriam, para servir à sua freguesia. Havia
movimento em toda parte, como se fosse de dia.
As pessoas que chegavam de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui no
armazém ainda era mais insuportável que lá.
De repente ouvimos um estouro forte, dentro do balcão; era um barril de melado que
arrebentava, espumando. Um dos caixeiros que fora servir a um freguês avisou ao patrão que as
velas de sebo e as barras de sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.
Todos os que bebiam ao balcão, queixavam-se e reclamavam que os refrescos
estavam mornos. Veio um negro buscar uma galinha, que o seu senhor queria comer uma canja,
para passar o tempo...; o caixeiro que foi ao galinheiro voltou, atarantado, a participar ao patrão
que as aves todas estavam assoleadas e já morto um peru gordo.
O espanhol, corado, pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado, correu
para os fundos.
Mira! Que cosa bárbara!
Do lado do arroio vinha uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos: era o povo
que tomava banho!
Nós todos no armazém suávamos como tampa de panela. Um estancieiro, freguês
da casa, pediu um chimarrão; o primeiro caixeiro amarrou a cara, porque era estopada ir-se
aquentar água àquela hora, mas mandou preparar o amargo. Saiu e voltou logo o peão com os
avios e a "chocolateira" com água, fervendo em pulo, e de entrada foi dizendo:
- Eta, diabo! ... Lá na cozinha "tá" tudo fervendo! ...
Aquilo estava esquisito, estava... Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho,
entre Santo Antônio e São João, que é o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia
como farinha, no terreiro e nos telhados.
E o espanhol, bufando, repetia:
- Que cosa bárbara! que cosa bárbara!
Eu, bem se imagina, estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa
empapada, com receio de alguma constipação, resolvi mudar outra, enxuta ... e esgueirei-me para
o quarto.
Quase não pude entrar, sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo, avancei até a
minha canastra: era insuportável, aí perto.
Então, só então, como um raio, foi que me lembrei do meu cobertorzinho!
Era ele, só ele, o calor, a quentura da sua lã, que estava causando todo aquele
estrupício na cidade.
Fiquei aterrorizado.., se o espanhol descobrisse!
Muito caladinho, apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da canastra,
que fechei com o cadeado.
E disfarçado, vim para o balcão, com os companheiros. Daí a pouco começou a
abrandar a torreira' foi abrandando; veio a viração da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram
as barras do dia e todos se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.
Nunca ninguém soube disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas, estendi o meu
cobertorzinho ao sol.
Foi o meu prejuízo: combinaram-se a quentura da lã e o calor do astro... e pegou
fogo!
Quando fui levantar a minha coberta, era pura cinza.., e nem fumaça tinha havido!
Olhem que era cobertorzinho quente, aquele!
XII - A TETÉIA
Pois sim! ... Venham-me pra cá com histórias de cachorros bem-ensinados e
obedientes! Igual, pode - e ainda duvido! - porém melhor que a minha perdigueira Tetéia não há
nem houve.., e talvez até nunca haja!
Contaram-me como grande cousa um caso dum barão alemão, um tal Münchausen,
que possuiu uma cadela lebreira, a qual, estando grávida, mesmo assim correu uma lebre que, por
coincidência estava também grávida. Correram, correram muito as duas próximas mães... e tão
próximas que durante a corrida a lebre teve as lebrinhas e a cachorra os cachorrinhos. E como a
raça não nega a traça, os cachorrinhos largaram-se logo a correr atrás das lebrinhas, enquanto
que a cachorra recém-mãe continuava a correr atrás da lebre também recém-mãe...
Sim, senhor! era um bom animal, não nego: mas a Tetéia era melhor.
Escutem e julguem.
Uma manhã saí a caçar perdizes e levei a Tetéia.
Eu não conhecia o campo, e isso foi a causa de um grande desgosto para mim. Mal
entramos no macegal, a Tetéia amarrou, toquei-lhe com o joelho na anca, ela andou uns passos: a
perdiz levantou-se no vôo e flechou! Pum! Tiro dado, perdiz em terra, e Tetéia, trazendo!
E assim, de enfiada, foram-se os cem cartuchos que eu trazia: cem perdizes em
meia hora. E note-se que eu errei dois tiros e cinco cartuchos falharam.
Sentei-me e comecei a atar as minhas perdizes, pelas pernas, para pô-las ao ombro
e regressar.
E, distraído, esqueci-me da chamar a perdigueira e fazer-lhe compreender que
estava findo o divertimento. Esqueci-me; e quando, tudo pronto, ia a marchar, só então lembrei-me
da cachorra.
Chamei: Tetéia! Tetéia! assobiei, fiz os sinais costumados.., nada! Estranhando o
fato arriei o fardo das perdizes, e andei a procurar, sempre chamando, assobiando, e nada, nada
de resposta!
Supus então - naturalmente - que a perdigueira, desobedecendo pela primeira vez,
tivesse ido para casa, sozinha, antes de mim. Era um procedimento de cachorro, mas vá lá... por
uma vez! E assim pensando, fui-me embora.
De chegada indaguei. Não, não tinha aparecido. Causou-me espécie aquela demora;
depois, quem sabe.., algum namoro...
Esperei, chegou a noite, o outro dia; e nada de Tetéia!
Tive então um pressentimento funesto... nem me restava mais dúvida: a honesta
perdigueira certamente havia sido picada por cobra... alguma cascavel, alguma viradeira medonha,
e a esta hora! ... Pobre, pobre... infeliz bicho!... Fiquei realmente paralisado, triste.
Para distrair as mágoas e variar de comida e emoções, andei caçando veados para
outro rumo; marrecas, nos banhados; quatis, tatus, etc.; e fiz várias batidas num tigre fugido de
gaiola, que não apareceu nunca, talvez assustado da minha fama.
Foi até uma imprudência esta batida ao feroz tigre; eu não tinha cachorros próprios e
os companheiros falharam-me à última hora, alegando cada qual a sua razão; um que tinha de
arrancar batatas, outro que a mulher estava para cada hora, outro que fincara um estrepe no pé ...
enfim, deixaram-me sozinho, justamente quando ali perto, à vista, o tigre urrava tremendamente,
como desafiando!
Pois fui, sozinho: eu e a minha faca de mato; apenas por segurança, para ter o
alarme certo, levei um gato num cesto, porque o gato é um animal muito elétrico e de longe já
sente a catinga do tigre, e dá logo sinal que não engana, nunca. Se é de dia, fica de pêlo eriçado e
duro, como arame, e mia duma forma muito particular; são dois miadinhos curtos e um comprido,
dois curtos e um comprido; se é de noite, apenas bufa e lambe as barbas, ficando então o pêlo
fosforescente, como vaga-lume. É claro, pois, que quem leva gato não corre o risco de ser
surpreendido por tigre; muito antes deste aproximar-se já o caçador está avisado e tem tempo de
sobra -de preparar-lhe a espera.
Deste fato, creio mesmo que e que nasceu a expressão vulgar de que - quem não
tem cão, caça com gato.
Com estas distrações e outros que fazeres, passou-se o tempo; de vez em quando e
sempre com pesar e saudade, Lembrava-me da desaparecida Tetéia.
Dediquei-me então a ensinar um cachorrinho, filho dela, o seu retrato escrito e
escarrado, que me havia ficado.
Há dias - meses passados - levei o cachorrinho ao campo, para exercício. E
andando, andando, sem dar por tal, fui ter ao lugar certo daquela malfadada caçada em que se
sumiu a minha maravilhosa perdigueira.
E, dum lado para outro, eis senão quando, o cachorrinho pára, amarra.., levanta a
pata, sacudindo a cauda! Chego-me, toco-lhe com o joelho.., e quando espero que o totó vai
levantar a perdiz, ele volta-se para mim, desarrumado, humilde, com os olhos arrasados de
lágrimas... Surpreso, dei três passos, estiquei o pescoço e vi...
Vi, sim, o esqueleto da Tetéia ainda de coleira, firme, correto, na posição de amarrar;
adiante, um esqueleto de perdiz, na posição de preparar o vôo; ao lado, num ninho quase desfeito,
sete esqueletinhos de filhotes, na posição de piar, com fome! ...
Querem mais claro? ... E agora, cousa notável, foi ainda o faro filial que guiou o
cachorrinho e fê-lo descobrir e chorar perante os ossos da mãe!
Pois, e então?
A cachorra do Münchausen será acaso superior à Tetéia? Só se for porque ele era
um barão, e eu sou apenas... o Romualdo.
XX - OITENTA E SETE
A REDE
Havia três dias já, perseguíamos uma manada de cervos galheiros. Éramos vinte e
tantos caçadores, com numerosa e especial cachorrada; a caçada ia bem dirigida por um
sujeito muito prático. Como cada companheiro tinha de ficar na sua "espera" determinada,
esse já se precatava com o aviamento necessário para passar o dia e a noite no mato. Tal
havia que levava cama de vento, panela, louça, etc. Eu, que sou inimigo de bagagem pesada,
montava em pêlo no meu cavalinho baio, o Gemada, e além das armas apenas levava uma
rede, e mesmo assim, pequena, e os jornais da última semana. Na "espera" punha o Gemada
à soga, fazia um foguinho e armava a rede nos galhos de qualquer árvore e... pronto! ...
dormia regaladamente até o despertador bater.
Pois nessa tal caçada tive de mudar de "espera", por motivo de doença dum dos
companheiros. Foi já à boca da noite, O dirigente da batida procurou-me, explicou o caso e
pediu-me para ir o quanto antes, porque o lugar aquele, era certo de passagem do cervo,
talvez até paradouro seu.
Lá fui; dei com a "espera"; fiz o meu foguinho, amarrei o Gemada, e procurei uma
árvore de ramas próprias para armar a rede. Fui de sorte: topei logo com uma galharada limpa,
pontuda, cortada de jeito para o caso. Naturalmente fora o companheiro que preparara aquele
ótimo cabide... Armei a rede, deitei-me, li os telegramas, soprei a vela e ferrei no sono.
Pela manhã... não lhes conto nada! Qual a minha surpresa, quando acordei-me
abaixo de latidos e gritaria de ensurdecer!
Abro os olhos e vejo os companheiros, todos, em perseguição dum enorme cervo,
um galheiro soberbíssimo, um cervo... o cervo que me conduzia!
Compreendi tudo, de relance: na véspera, no escuro, eu armara a rede nos galhos
do cervo, que muito cansado da correria do dia, dormia a sono solto, e nem me pressentiu.
De madrugada, já refeito, levantou-se e foi andando, andando comigo na rede,
dependurada nos chifres...
Quando a cachorrada farejou-o e saiu-lhe, o bicho disparou.., e os caçadores de
atrás; porém como ele corria muito, nunca as balas chegaram-lhe a tempo... e foi isso a minha
salvação. Então, gritei aos companheiros que esperassem... e pondo-me em pé, dentro da
rede, saquei a faca e desnuquei o cervo, que caiu, redondo!
ONÇA ENFREADA
Isto passou-se em Minas Gerais, lá em cima, no Ribeirão das Gralhas.
Eu estava numas grotas, no fundo do mato grosso; tinha ido melar; era um dia
muito quente. E tinha ido montado numa mula ruça, de boa marcha e muito mansa.
Cheguei, escolhi o ponto de parada, tirei o freio à mula e atei-a pelo cabresto,
para ela ir roendo algum criciúma que por ali havia.
Era a pino do meio-dia...
Deu-me uma lombeira... uma preguiça... que não lhes digo nada! ... Peguei a
cochilar.
Dormi. E anoiteceu. Escuro, como breu! E dentro do mato! Então.., só mesmo
quem nunca viu o que é noite escura de mato.., o escuro é preto, o preto é negro, o negro e
retinto...
De repente, mesmo pesado de sono, senti faro de perigo. Olhei, e vi, na minha
frente, por entre as árvores, um grupo de bugres, ferozes, já de arco entesado e flecha pronta,
fazendo pontaria sobre mim! ... Se o luar não fosse tão claro ainda, talvez eu pudesse
esconder-me. Disfarcei, e fazendo que os não via, para os não alarmar, fui-me esgueirando
para trás, recuando, devagarinho, de mansinho recuando..
Com o intento - é claro! - de cavalgar a mula e fugir, tive a cautela de passar a
mão no freio.., os arreios que ficassem!..
Sempre recuando, e sem despregar os olhos dos bugres, de costas topei com
um animal que respirava forte; e sempre sem me voltar, atento aos índios, passei-lhe a cana
da rédea no pescoço, enfreei o animal, e quando, pelo tato, senti que estava pronto, montei-o
de salto, cravei-lhe as esporas e dirigi a montaria, procurando a beirada do mato.
Nesse instante os bugres descarregaram os arcos ... as flechas ventaram em
volta de mim ... mas era tarde - eu já estava fora do alvo!
Gesticulando, estorcendo-se, num alarido medonho, os selvagens saíram-me
nas pisadas.
E eu, vá espora!...
Notei então que o animal era habilíssimo dentro do mato: não esbarrava nos
troncos, não se enredava nos cipós, não tocava nos espinhos, saltava pedras, pulava
buracos...; apenas, por vezes, junto aos paus grossos, entre-parava-se, fazendo menção de
querer subir por eles acima ... Então, eu dava de rédea, e vá espora!
Enfim, ao clarear do dia, consegui chegar à aba do mato, sair para a várzea, que
era a salvação.
Apeei-me.. acendi o cigarro.,.. e quando puxava a primeira tragada, atirei-me pra
trás, apavorado! ...
Eu havia enfreado uma onça!
Montei uma onça, nela havia fugido, na onça atravessei a floresta!
Pode parecer exagero; mas tudo se explica: enquanto eu dormia, a onça havia
atacado e devorado a mula; os bugres, que isso viram, preparavam-se para flechar a fera e
não a mim, como supus, e daí, a minha precipitação em fugir deles; e de costas e no escuro,
julgando - de boa-fé - enfrear a mula, enfreei a onça e montei. Como nesse momento ela
estivesse meio engasgada com um pedaço de carniça, não urrou, e, depois de enfreada, não
pôde. E vai, como as esporadas doíam-lhe, ela obedeceu, disparou... e tanto, que os bugres
perderam-nos de vista.
Mas, como dizia: apeei-me, e vendo a onça, fiquei apavorado: ... e ela, sentindo-
se aliviada, também não esperou mais nada: miou de gato, e ganhou o mato!
A VARETA
Naquele tempo, as espingardas eram de carregar pela boca; o cartucho
apareceu muito mais tarde. E por serem mais leves e mais baratas, eu só usava varetas de
marmeleiro.
Uma vez, por esquecimento, depois de carregar a arma, deixei-lhe dentro a
vareta.
De tarde, atirando a um bando de pombas que havia pousado sobre uma
laranjeira, no tiro lá se foi a vareta.
As pombas - nem se pergunta, nem se duvida! - caíram todas, a chumbo.
Mas a vareta, essa ficou espetada no tronco da laranjeira e lá deixei-a ficar.
Pois no ano seguinte estava ela toda florida e cheia de botões... e no outro ano
já deu marmelos, por sinal que bem graúdos.
A vareta tinha pegado, de enxerto.
UM TALHO
Uma, tive-a eu, e creio que outra faca igual não apareça. Deu-ma o compadre
Mingote Pereira, infelizmente já falecido; Deus lhe fale n'alma! ...
Era - a faca - de têmpera muito dura, mas depois de agarrar corte, admirável:
podia se atirar para o ar um fio de teia de aranha, que antes dele cair a faca cortava-o quantas
vezes se quisesse.., tendo boa vista!
Um dia, na casa da sogra do dito meu compadre Mingote houve uma jantarola.
Corria bem a festa, quando apareceu uma travessa com - grande como um galo
-uma bela galinha assada, de forno. E como naquele tempo era de uso, um dos convidados,
mais habilitado, tinha de trinchar a ave.
A sogra convidou o Mingote.
O meu compadre levantou-se, colocou na sua frente a galinha, e armado do
garfo grande e do trinchante afiado, começou a trabalhar.
E a querer espetar o garfo.., a querer fincar a galinha... deu-lhe uns pontaços
com o trinchante, para abrir brecha onde cravasse o tridente.
Mas, por seguro, a galinha era velha, como a sogra do compadre, e dura e lisa
como chifre!
O compadre Mingote, já vermelho, tremendo no nariz, lidava, lidava.., e não
espetava!
A sogra, de lá da cabeceira, resmungou:
Oh! homem! ... nada?
O compadre respondeu: Já vai! ... E firmou o garfo a todo o muque, como quem
crava uma estaca, a pulso!
Mas a galinha agüentou a estocada; e conforme o garfo bateu-lhe no costado...
escorregou, e furou o prato e cravou-se na tábua da mesa e espirrou molho gordo, como
chuva...; a galinha saltou pra diante, como bala, e derrubando copos, garrafas e compoteiras,
bateu sobre o ombro da sogra do Mingote, ricochetou para a parede, sobre o relógio, cujo
maquinismo achatou; daí para a janela, quebrando-lhe os caixilhos e caindo no pátio, derreou
uma porca macau, matando-lhe três leitões; virou um gongá onde estava uma perua, no
choco, afinal foi bater no tampo da pipa d'água, que aluiu!
Se fosse gente, era o caso de dizer-se: vá ser dura pra o inferno!
Imagine-se o alvoroto! ... Um criado trouxe novamente a galinha, não para ser
comida, é claro, mas para ser vista, admirada, examinada.
Foi então que a sogra do Mingote censurou-o por não se haver servido da minha
faca; e gabou-a. Duvidaram; então, para dar a todos uma pequena prova, ajeitei a galinha e a
meio dela descarreguei um golpe.
Que talho! Foi como em manteiga: cortei a meio a galinha, o prato, a mesa;
atorei pelo joelho a perna do vizinho da esquerda, o pé da cadeira onde ele sentava-se, a
tábua do assoalho e o barrote!
O talho não foi adiante por falta de braço!
Que talho!
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Findava aqui o calhamaço de que a princípio se falou, quando disse que o recebi
em certa hora de pleno dezembro, por véspera de Natal, quando eu estava, desesperado, a
abanar mosquitos, etc. etc. Findava aqui, no caso deste talho. Apenas, ao canto da página, a
lápis, havia ainda uns dizeres que custei a decifrar, e que afinal eram estes: o 2º volume será o
dos "Sonhos do Romualdo".
Durmamos, pois, e vamos sonhar também...