CHIARELLI - Anna Bella Geiger
CHIARELLI - Anna Bella Geiger
CHIARELLI - Anna Bella Geiger
Anna Bella Geiger. O po nosso de cada dia, 1978. (foto de Janurio Garcia)
Chiarelli
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1. A exposio Anna
Bella Geiger:
Constelaes foi
apresentada nos
Museus de Arte
Moderna das cidades
do Rio de Janeiro, de
Salvador e de So
Paulo e, igualmente,
nos sales do
Ministrio das
Relaes Exteriores,
Palcio do Itamaraty,
Braslia, DF, entre
novembro de 1996 e
julho de 1997.
2. COCCHIARALE,
Fernando. O sentido
constelar na obra de
Anna Bella Geiger. In:
COCCHIARALE,
Fernando (Curador).
Anna Bella Geiger:
Constelaes. Rio de
Janeiro: Museu de Arte
Moderna do Rio de
Janeiro, 1996, p. 9-15.
3. Alm do texto de
Cocchiarale, a outra
base para este ensaio
foi Fax para Anna
Bella Geiger, a
apresentao que
escrevi para a exposio que Geiger realizou
na antiga galeria
carioca Joel Edelstein
Arte Contempornea,
em 1995, publicado
em Anna Bella Geiger
O Mundo Talvez
Olan ulay. Rio de
Janeiro: Joel Edelstein
Arte Contempornea,
1995.
4. Idem,
p. 10.
5. A ditadura militar
brasileira referida aqui
teve incio com um
golpe militar em 1964,
tornando-se mais
efetiva quatro anos
depois. A dcada de
1970 ser o perodo
mais intenso da
represso militar no
Brasil, situao que
comearia a se
transformar gradualmente a partir da
primeira metade da
dcada seguinte.
6. Sobre o assunto, ler,
entre outros: SAN
TOS, Nelson Viana
dos. A militarizao da
educao no Estado
Novo. 1995.Disser
tao - Faculdade de
Educao da Univer
sidade de So Paulo,
So Paulo, 1995 ;
ABUD, Ktia Maria. A
Construo de uma
Didtica da Histria:
Algumas idias sobre a
utilizao de filmes no
ensino. Histria, So
Paulo, v. 1, n. 22, 2003.
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9. At o incio dos anos 1980 (quando o carter repressor da ditadura militar vai, aos poucos, se
abrandando, devido s presses para a redemocratizao do pas), o sistema de ensino fundamental no Brasil, de oito anos, estava dividido em dois estgios: o primrio, em que o aluno era introduzido s reas bsicas da Matemtica, da Lngua Portuguesa, da Histria e da Geografia, e o secundrio, em que, ao lado do aprofundamento dessas disciplinas, inclua-se o ensino dos rudimentos de uma lngua estrangeira. Nos perodos de exceo ditatorial, alm de uma disciplina especfica, relativa aos valores cvicos e patriticos, eram observados vrios rituais ligados ao culto
aos smbolos da Ptria, como o hastear da Bandeira e o canto do Hino Nacional no incio das atividades dirias e a produo de trabalhos escolares de teor laudatrio, relativos s comemoraes
dos dias consagrados a esses mesmos smbolos.
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*
Geiger buscar a segunda estratgia para a desmontagem dos smbolos
da identidade brasileira tambm em certos instrumentos pedaggicos do antigo
ensino primrio e secundrio brasileiro. A partir da interveno pardica em tais
instrumentos, a artista discute duas questes cruciais naquele momento: em primeiro lugar, a identidade nacional ou a impossibilidade de se pensar de forma
unvoca nessa questo num pas multitnico como o Brasil; em segundo lugar,
o espao que o Brasil e a Amrica Latina ocupam em um mundo ento dividido
entre os Estados Unidos e a antiga Unio Sovitica.
No seu livro de artista Histria do Brasil11 Geiger reflete sobre as
projees idealizadas da identidade brasileira, interferindo em reprodues da
tela Primeira Missa no Brasil, do pintor acadmico brasileiro Victor Meirelles
(1832-1903), realizada em 1860.
Por celebrar, no campo pictrico, a juno entre Igreja Catlica e Estado,
Primeira Missa, desde sua primeira exibio pblica, considerada por muitos
no Brasil como o smbolo mais perfeito da nacionalidade. A importncia que essa
tela adquiriu no imaginrio local pode ser medida pela sua reproduo em filmes
documentrios, enaltecedores do sentimento de brasilidade12 e, sobretudo, em
publicaes didticas, destinadas ao pblico infantil e juvenil para fortalecer-lhes
o sentimento de brasilidade quer em ilustraes grficas, quer em reprodues
fotogrficas.
No livro citado, Geiger ora chama a ateno para o apagamento de
Primeira Missa como smbolo da nacionalidade,13 ora para o carter perifrico
dado aos indgenas naquela composio pictrica.14
Na seqncia, no mesmo livro, a artista contrape a cpia grfica desses
indgenas presentes na obra de Meirelles a imagens fotogrficas de indgenas j
devidamente aculturados, publicadas pelas revistas ilustradas da poca, por sua
vez mescladas a imagens de outras origens.
J no livro Sobre a arte,15 Geiger, a partir de uma srie de perguntas
a respeito da natureza do objeto de arte objeto de contemplao, objeto de
discusso, objeto ideal, objeto material...? etc. , associa o conceito de arte
burocracia e ao adestramento ideolgico dos jovens para a absoro de valores
patriticos, como aquele que associa a palavra Brasil imagem do mapa do territrio brasileiro.
A imagem do mapa do Brasil, entendido pelas autoridades do pas como
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instrumento de divulgao dos valores fundamentais do sentimento de brasilidade, ter grande importncia nos livros didticos locais desde os anos 1930. Ao
mapa esto associados conceitos de integridade territorial e integrao e identidade nacional.16
Justamente esse smbolo do Brasil que ser explorado criticamente por
Geiger que nesse e em outros trabalhos ir parodiar as propostas de exerccios
escolares que usavam o mapa do pas para a glorificao dos atributos nacionais
exerccios esses divulgados em livros didticos para a alfabetizao infantil.
De novo, Geiger usa o mesmo expediente de estudante perversa para desmontar esse outro mito brasileiro: ao copiar as instrues de brasilidade contidas
nesses livros, a artista as problematiza, quer incluindo legendas inesperadas sob
as imagens apropriadas, quer explorando outros estratagemas.
A crtica que a artista vai desenvolver a partir da repetio/desestruturao do mapa do Brasil no livro citado mobilizar seu interesse pelos mapa-mndi,
tradicionais instrumentos de conhecimento e controle.
Em seu livro Novo Atlas 1,17 Geiger primeiramente apresenta cinco
intervenes em imagens do mapa-mndi, acoplando a elas textos datilografados,
de carter crtico, relativos dominao cultural.
Na sexta pgina do livro, ela reproduz quatro imagens de mapa-mndi.
A primeira segue os padres de propores convencionais entre os continentes.
Sob a imagem, a artista coloca a legenda O Mundo. Nas demais, Geiger segue
a estratgia de repetir a imagem convencional. No entanto, de novo como a aluna
perversa, ela ressignifica aquelas convenes da carta geogrfica, alterando a proporo dos continentes, a partir de pressupostos de dominao econmica (legenda: Do petrleo), poltica (legenda: Desenvolvimento e Subdesenvolvimento) e
cultural (Do Domnio Cultural Ocidental) que regem as relaes de poder entre
os pases e os continentes.
Na ltima pgina do livro, a artista apresenta dois mapas da Amrica
Latina, sobrepondo textos tambm de carter crtico s imagens. Neles, os limites
atuais entre o Brasil e os pases vizinhos so alterados ou realados, quer pela aluso grfica ao Tratado de Tordesilhas,18 quer pelo realce e conseqente excluso
da imagem do Brasil dentro do contexto da Amrica Latina. Esses dois mapas,
como ser visto, so importantes para as transformaes da potica da artista,
pelo fato de apontarem, pela primeira vez, para a preocupao de Geiger com a
arbitrariedade das linhas de fronteira, questo grfica/formal que ressurgir em
suas pinturas dos anos 1980.
*
Um outro elemento de unio entre esses livros em que Geiger subverter
os signos da identidade brasileira e do poder dos pases hegemnicos sero as
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14. Na tela em
questo, o ritual
catlico, levado adiante
pelo sacerdote,
acompanhado de perto
pelas figuras emblemticas dos descobridores
portugueses que
chegaram ao Brasil em
1500. Os indgenas,
apartados do centro de
interesse da tela,
apenas assistem a cena
como espectadores
passivos da Histria.
Isolando as imagens
dos indgenas da cena
composta por
Meirelles, a artista
enfatiza o processo de
segregao que foi
imposto aos primeiros
habitantes do Brasil
pela histria construda
pelos homens brancos.
15. Sobre a arte (de
1976, sem indicao
de tiragem).
16. Questes fundamentais em um pas
multifacetado, mul
titnico, necessitado de
um smbolo forte o
bastante para unir
raas e etnias dspares,
sem uma tradio
histrica comum e
sem um presente de
realizaes compar
tilhadas.
17. Novo Atlas,
1977, cem exemplares.
(continuao )
A interveno que
Anna Bella Geiger faz
no mapa da Amrica
Latina com as
indicaes dos limites
territoriais impostos
pelo Tratado est
dentro das preocupaes gerais da artista
com os smbolos da
brasilidade e com a
arbitrariedade dos
poderes institudos.
Geiger, em 1995,
voltar a se ocupar
poeticamente do
assunto Tratado de
Tordesilhas, ao
produzir a obra A
linha imaginria de
Todesilhas, em ferro,
encustica e fio de
cobre, pertencente ao
Museu de Arte
Moderna do Rio
de Janeiro
capas que a artista escolhe para eles, as mesmas dos cadernos escolares norteamericanos, fartamente vendidos naquele pas.19
Tal aspecto, aparentemente menor, traz, no entanto, algumas questes
que ajudam a entender o trabalho da artista nos anos de 1970, cujos desdobramentos nas dcadas seguintes sero notveis.
Em primeiro lugar, o fato de Geiger interferir de forma crtica em smbolos da brasilidade (o ndio, o mapa, a pintura clebre), em publicaes cujas capas
afirmam um dos ndices mais conhecidos de norte-americanidade,20 possui um
alto grau de ironia. Afinal, tanto para setores da esquerda brasileira como para
faces conservadoras, os Estados Unidos representavam uma ameaa contra os
brios nacionais, pela capacidade de supostamente corromper os valores mais tradicionais do Brasil. Ao cobrir sua crtica aos mitos da brasilidade e do poderio
internacional com um ndice tpico do cotidiano dos jovens escolares norte-americanos, Geiger dava bem a dimenso do alto grau de ironia de seus trabalhos.
Por outro lado, inegvel que chamou a ateno da artista um elemento
de interesse que possuem as capas desses cadernos escolares: observando seu
padro de estampagem, notvel como, ao mesmo tempo, ele pode sugerir uma
camuflagem e um grande mapa-mndi. Geiger, atenta a esse carter dbio da padronagem, ir utiliz-la em uma das cinco primeiras intervenes do livro Novo
Atlas 1, explorando propositadamente o carter duplo daquele padro.
As possibilidades estticas e ticas dessa dualidade entre a imagem do
mapa e a imagem da camuflagem vo se tornar um dos pontos mais explorados
pela artista nos anos que se seguiriam. Copiando a estrutura da camuflagem, ou
transformando a imagem do mapa-mndi em camuflagens, Geiger continuar a
discutir as relaes entre arte e poder a partir do embaralhamento perverso desses
cdigos.21
*
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*Texto originalmente publicado no catlogo da exposio Anna Bella Geiger: other annotations for the
mapping of the work. BARTELIK, Marek (Ed.). POZA: on the polishness of polish contemporary art.
Hartford, Connecticut: Real Art Ways, 2008, p. 50-59.
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