CHIARELLI - Anna Bella Geiger

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Tadeu Chiarelli

anna bella geiger outras


anotaes para o mapeamento da
obra*

No texto que escreveu para o catlogo da mostra retrospectiva de Anna


Bella Geiger, Constelaes,1 o crtico e curador brasileiro Fernando Cocchiarale
identificou pelo menos quatro momentos importantes na trajetria da artista, iniciada ainda nos anos 1950: a produo de gravuras viscerais (1965-1968); suas
inquietaes em relao natureza da obra de arte (a partir de 1973); a descoberta da pintura nos anos 1980 e, a partir da dcada seguinte, a atual produo
de peas em cera e metal que, para Cocchiarale, so quase-objetos, quase-gravuras, quase-pinturas, superfcie/estofo; uma espcie de sntese constelar de seus
diversos tempos e territrios.2
Apesar dessa diviso dos tempos e territrios da artista, o prprio crtico esclarece que os mesmos no so necessariamente estanques. De fato, uma
das questes que interessa na produo de Geiger a possibilidade de estabelecer
conexes entre esses grupos na aparncia desarticulados mas que, ao serem percebidos em conjunto, confirmam a pertinncia do ttulo da retrospectiva mencionada: Constelaes.
Para este texto que visa apenas situar a pea que ela apresenta na mostra
Poza, Recens Orbis Descriptio Cum Euros/Latinus de incio retornaria
sua produo realizada a partir de 1973, mencionada por Cocchiarale na citao
acima.3
justamente na dcada de 1970 que a artista estabelece um corte importante em sua trajetria, ento no incio, a partir da superao do conceito de arte
como expresso do seu eu mais profundo, para assumir uma postura crtica em
relao arte, sua natureza e suas conexes com o espao sociopoltico brasileiro
e internacional. Porm, mesmo nesse perodo em que a artista passa a operar num
corte de vis conceitual, percebe-se que, ao pensar a arte como sistema inserido
no mbito do capitalismo internacional, ela no abdica de refletir sobre si mesma
e sobre a sua circunstncia, agora dentro de um recorte crtico que leva em conta
a sua situao de brasileira de primeira gerao, vivendo em um pas repleto de
contradies polticas e sociais, sob um regime de exceo.
Cocchiarale assim se manifesta sobre a produo de Geiger nos anos de
1970:
(...) J em 1973, seu trabalho orientou-se para uma investigao sobre a funo e a natureza
da obra de arte, investigao essencial para o desenvolvimento da produo de muitos artistas
nesse perodo, mas que no Brasil colocou problemas de difcil soluo. que entre a crtica
de uma questo como a brasilidade, carregada de conotaes ideolgicas tradicionais, e sua
organizao como trabalho de arte havia sempre o risco de no ultrapass-las, transformando

Anna Bella Geiger. O po nosso de cada dia, 1978. (foto de Janurio Garcia)

Chiarelli

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1. A exposio Anna
Bella Geiger:
Constelaes foi
apresentada nos
Museus de Arte
Moderna das cidades
do Rio de Janeiro, de
Salvador e de So
Paulo e, igualmente,
nos sales do
Ministrio das
Relaes Exteriores,
Palcio do Itamaraty,
Braslia, DF, entre
novembro de 1996 e
julho de 1997.
2. COCCHIARALE,
Fernando. O sentido
constelar na obra de
Anna Bella Geiger. In:
COCCHIARALE,
Fernando (Curador).
Anna Bella Geiger:
Constelaes. Rio de
Janeiro: Museu de Arte
Moderna do Rio de
Janeiro, 1996, p. 9-15.
3. Alm do texto de
Cocchiarale, a outra
base para este ensaio
foi Fax para Anna
Bella Geiger, a
apresentao que
escrevi para a exposio que Geiger realizou
na antiga galeria
carioca Joel Edelstein
Arte Contempornea,
em 1995, publicado
em Anna Bella Geiger
O Mundo Talvez
Olan ulay. Rio de
Janeiro: Joel Edelstein
Arte Contempornea,
1995.

a obra em uma espcie de ilustrao simplificada do debate. Face totalidade temtica e


ideolgica da brasilidade, o trabalho de Anna Bella optou pela pardia (...). Postais, vdeos,
atlas e cartilhas aparecem como um iderio elementar que ironiza mecanismos do circuito
de arte e da cultura brasileiras (...).4

4. Idem,
p. 10.

5. A ditadura militar
brasileira referida aqui
teve incio com um
golpe militar em 1964,
tornando-se mais
efetiva quatro anos
depois. A dcada de
1970 ser o perodo
mais intenso da
represso militar no
Brasil, situao que
comearia a se
transformar gradualmente a partir da
primeira metade da
dcada seguinte.
6. Sobre o assunto, ler,
entre outros: SAN
TOS, Nelson Viana
dos. A militarizao da
educao no Estado
Novo. 1995.Disser
tao - Faculdade de
Educao da Univer
sidade de So Paulo,
So Paulo, 1995 ;
ABUD, Ktia Maria. A
Construo de uma
Didtica da Histria:
Algumas idias sobre a
utilizao de filmes no
ensino. Histria, So
Paulo, v. 1, n. 22, 2003.

7. Aqui fao referncia


srie Brasil nativo/
Brasil aliengena,
1977, concebida por
dois conjuntos de
cartes-postais: o
primeiro, composto por
nove imagens de
indgenas brasileiros
aculturados, publicados e vendidos em
locais pblicos como
smbolos do brasileiro
puro; o segundo,
composto por nove
imagens em que
Geiger repete de
maneira pardica as
aes do indgenas,
captados no primeiro
conjunto de cartes.

O crtico, ao estabelecer tais coordenadas para entender a produo de


Geiger no perodo, sugere questes que tambm podem ser expandidas para a
produo de outros artistas brasileiros de ento.
No Brasil, em plena ditadura militar,5 questionar a funo e a natureza
da obra de arte no mbito do capitalismo, refletir sobre o poder coercivo da arte
como instituio era, necessariamente, inquirir sobre a funo, a natureza e o
poder repressor do Estado brasileiro.
Dentro dessa situao, para Anna Bella Geiger e para outros artistas,
seus contemporneos, uma estratgia possvel era, em primeiro lugar, problematizar os smbolos, o imaginrio que justificava, do ponto de vista ideolgico, o
poder institudo fora com o golpe de 1964. E esse imaginrio repousava em
grande parte no sentimento de brasilidade que, desde antes do golpe de 1964,
reestruturava-se pelas faces conservadoras do pas e, entre elas, os militares.6
Refletir sobre a natureza da arte como instituio burguesa no Brasil
naquele perodo era, em grande medida e para vrios artistas , problematizar
e tratar do desmoronamento dos mitos da brasilidade. Nesse sentido, poderiam
ser enunciados vrios artistas que, entre meados dos anos de 1960 e incio da
dcada de 1980, e das mais diversas maneiras, tornaram o questionamento daquelas estruturas simblicas a base de suas respectivas poticas: a prpria Anna
Bella Geiger e tambm Regina Silveira, Glauco Rodrigues, Mario Ishikawa, Cildo
Meireles, Ben Fonteles, Nelson Leirner e outros.
No caso especfico de Geiger, ela empreender a desmontagem daquelas
estruturas por meio de dois vetores principais.
O primeiro deles se configura pelos trabalhos que produziu em vdeo e as
fotoperformances, em que colocava sua condio pessoal mulher, artista, filha
de imigrantes, nascida e vivendo em um pas perifrico para pensar criticamente, tanto as funes que a instituio arte impunha naquele perodo da histria
quanto o prprio conceito de brasilidade, to caro aos militares no poder.
Em vrias produes Geiger usa sua imagem fotogrfica, deslocando-a
como uma mercadoria, como algo exterior a si mesma, quer repetindo em chave
irnica imagens clich da brasilidade oficial,7 quer inserindo-a em fotos padronizadas de artistas modernos contemporneos internacionais, divulgadas pelos
grandes meios de comunicao.8
Como se situar? Onde se inserir enquanto artista e mulher numa instituio que apenas valoriza em seu territrio cannico homens nascidos brancos
em pases hegemnicos? Onde se situar como brasileira, filha de imigrantes poloneses, num pas que cultua como smbolo da nacionalidade a imagem idealizada
do indgena?

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Traando seu trabalho na fronteira entre as dimenses pblica e privada


do eu, Geiger no responde a tais questes, mas as aprofunda na medida em que
problematiza os esquemas de representao estabelecidos naquelas imagens stan
dards quer de grandes artistas homens, quer de indgenas puros.
Alm de se caracterizarem sempre como auto-retratos, outra questo que
interessa nesses trabalhos so seus procedimentos de produo. Essas fotocolagens ou fotoperformances no podem ser encaradas como exemplos inseridos na
tradio da arte moderna. Nelas, o estranhamento causado no observador no
se d pelo carter sincopado, com cortes de perspectivas e alteraes bruscas
de propores, tpicos da fotomontagem dad; e nem pelo sentido do maravilhoso, caracterstico da fotomontagem surrealista, com os quais esses trabalhos
guardam, de fato, alguma semelhana. Neles os parmetros parecem ter sido os
trabalhos de fotocolagens de tradio vernacular, em grande parte produzidas
por mulheres annimas, e, sobretudo, por escolares do antigo ensino primrio e
secundrio brasileiro.
As fotoperformances de Geiger guardam muitas semelhanas com trabalhos realizados por crianas e adolescentes brasileiros quando, no faz muito
tempo,9 eram convocados a produzir cartazes, capas de trabalhos escolares ou
flmulas de papel para comemorar datas festivas, como o Dia da Ptria, o Dia da
Bandeira, o Dia do Soldado etc. Artefatos bem acabados, repletos de teor cvico
e patritico, e produzidos a partir de colagens de imagens recortadas de grandes
personalidades ou figuras tpicas, retiradas de revistas de grande circulao.

8. Aqui fao referncia


s sries de fotocolagens da artista, reali
zadas em 1975: Dirio
de um artista brasileiro, e Artes e Deco
rao, em que Geiger
cola sua imagem em
cenrios suntuosos,
tpicos de interiores
aristocrticos ou da
alta burguesia europia
ou ento em cenrios
compartilhados com
artistas internacionais,
brancos e homens,
como Matisse,
Duchamp, e
Liechtenstein,
entre outros.

9. At o incio dos anos 1980 (quando o carter repressor da ditadura militar vai, aos poucos, se
abrandando, devido s presses para a redemocratizao do pas), o sistema de ensino fundamental no Brasil, de oito anos, estava dividido em dois estgios: o primrio, em que o aluno era introduzido s reas bsicas da Matemtica, da Lngua Portuguesa, da Histria e da Geografia, e o secundrio, em que, ao lado do aprofundamento dessas disciplinas, inclua-se o ensino dos rudimentos de uma lngua estrangeira. Nos perodos de exceo ditatorial, alm de uma disciplina especfica, relativa aos valores cvicos e patriticos, eram observados vrios rituais ligados ao culto
aos smbolos da Ptria, como o hastear da Bandeira e o canto do Hino Nacional no incio das atividades dirias e a produo de trabalhos escolares de teor laudatrio, relativos s comemoraes
dos dias consagrados a esses mesmos smbolos.

Nota-se naqueles trabalhos da artista a mesma eficcia de acabamento, a


necessidade em colar sua prpria imagem com tal destreza e cuidado que somente sob um segundo olhar que se percebe que seu retrato no faz parte efetiva do
ambiente em que foi inserido.10
Em suas produes Geiger parece agir como uma estudante perversa
que, ao montar cuidadosamente seu trabalho escolar, ao invs de reverenciar
o tema que supostamente deveria enaltecer, ela o destri ao instaurar sua crtica
de cunho pardico.
Se em Brasil nativo/Brasil aliengena, ao repetir com aparente obedincia os gestos dos indgenas dos cartes-postais, Geiger atesta a impossibilidade
de ser o outro (aquele outro, assumido como smbolo do coletivo), ao inserir sua

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10. Sobre este assunto,


consultar: JAREM
TCHUK, Daria.
Desconstrues
alegricas de Anna
Bella Geiger. In
SANTOS, Alexandre
dos e SANTOS, Maria
Ivone dos (Org.). A
fotografia nos proces
sos artsticos contem
porneos. Porto Alegre:
Unidade Editorial da
Secretaria Municipal
da Cultura/ Editora da
UFRGS, 2004.

11. Histria do Brasil


Ilustrada em Cap
tulos (livro da artista,
de 1975, dez
exemplares).
12. Andr Chaves de
Melo Silva, em seu
estudo sobre o ensino
da histria no Brasil e
suas relaes com o
cinema, a imprensa e
o poder ditatorial de
Getlio Vargas
perodo de 1930 a
1945, que antecede
aquele outro perodo
que se inicia em 1964,
estabelecendo, no
entanto, algumas
diretrizes autoritrias
para a formulao de
um imaginrio nacional
que perdurar por mui
to tempo no Brasil
comenta a cena de
um cinejornal, de
1940: No cinejornal
49 (de 1940) assistimos, primeiro, a
inaugurao, por Darcy
Vargas, da Casa do
Pequeno Jornaleiro
(palavra que significava
trabalhador). Naceri
mnia, estudantes
subiram uma cruz,
deixando o local com
uma forma semelhante
(...) imagem pictrica
tradicionalmente
difundida de Cabral
[nobre portugus tido
oficialmente como o
descobridor do Brasil]
e a celebrao da
primeira missa no
Brasil. In SILVA,
Andr Chaves de
Melo. Ensino de
Histria, Cinema,
Imprensa e Poder na
Era Vargas (19301945), 2005. Disser
tao - Faculdade de
Educao da Univer
sidade de So Paulo,
So Paulo, 2005, p. 86.
13. A artista, atravs de
cpias xerogrficas,
repete a imagem do
quadro, enfatizando
a perda da qualidade
da mesma a cada
reproduo.

imagem nas fotos de divulgao protagonizadas por artistas homens respeitados


do circuito internacional, ela aparentemente reiterando os valores simblicos
daquelas imagens paradigmticas do artista entendido como gnio desvenda
os esquemas ficcionais, ideolgicos, daquelas imagens.

*
Geiger buscar a segunda estratgia para a desmontagem dos smbolos
da identidade brasileira tambm em certos instrumentos pedaggicos do antigo
ensino primrio e secundrio brasileiro. A partir da interveno pardica em tais
instrumentos, a artista discute duas questes cruciais naquele momento: em primeiro lugar, a identidade nacional ou a impossibilidade de se pensar de forma
unvoca nessa questo num pas multitnico como o Brasil; em segundo lugar,
o espao que o Brasil e a Amrica Latina ocupam em um mundo ento dividido
entre os Estados Unidos e a antiga Unio Sovitica.
No seu livro de artista Histria do Brasil11 Geiger reflete sobre as
projees idealizadas da identidade brasileira, interferindo em reprodues da
tela Primeira Missa no Brasil, do pintor acadmico brasileiro Victor Meirelles
(1832-1903), realizada em 1860.
Por celebrar, no campo pictrico, a juno entre Igreja Catlica e Estado,
Primeira Missa, desde sua primeira exibio pblica, considerada por muitos
no Brasil como o smbolo mais perfeito da nacionalidade. A importncia que essa
tela adquiriu no imaginrio local pode ser medida pela sua reproduo em filmes
documentrios, enaltecedores do sentimento de brasilidade12 e, sobretudo, em
publicaes didticas, destinadas ao pblico infantil e juvenil para fortalecer-lhes
o sentimento de brasilidade quer em ilustraes grficas, quer em reprodues
fotogrficas.
No livro citado, Geiger ora chama a ateno para o apagamento de
Primeira Missa como smbolo da nacionalidade,13 ora para o carter perifrico
dado aos indgenas naquela composio pictrica.14
Na seqncia, no mesmo livro, a artista contrape a cpia grfica desses
indgenas presentes na obra de Meirelles a imagens fotogrficas de indgenas j
devidamente aculturados, publicadas pelas revistas ilustradas da poca, por sua
vez mescladas a imagens de outras origens.
J no livro Sobre a arte,15 Geiger, a partir de uma srie de perguntas
a respeito da natureza do objeto de arte objeto de contemplao, objeto de
discusso, objeto ideal, objeto material...? etc. , associa o conceito de arte
burocracia e ao adestramento ideolgico dos jovens para a absoro de valores
patriticos, como aquele que associa a palavra Brasil imagem do mapa do territrio brasileiro.
A imagem do mapa do Brasil, entendido pelas autoridades do pas como

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instrumento de divulgao dos valores fundamentais do sentimento de brasilidade, ter grande importncia nos livros didticos locais desde os anos 1930. Ao
mapa esto associados conceitos de integridade territorial e integrao e identidade nacional.16
Justamente esse smbolo do Brasil que ser explorado criticamente por
Geiger que nesse e em outros trabalhos ir parodiar as propostas de exerccios
escolares que usavam o mapa do pas para a glorificao dos atributos nacionais
exerccios esses divulgados em livros didticos para a alfabetizao infantil.
De novo, Geiger usa o mesmo expediente de estudante perversa para desmontar esse outro mito brasileiro: ao copiar as instrues de brasilidade contidas
nesses livros, a artista as problematiza, quer incluindo legendas inesperadas sob
as imagens apropriadas, quer explorando outros estratagemas.
A crtica que a artista vai desenvolver a partir da repetio/desestruturao do mapa do Brasil no livro citado mobilizar seu interesse pelos mapa-mndi,
tradicionais instrumentos de conhecimento e controle.
Em seu livro Novo Atlas 1,17 Geiger primeiramente apresenta cinco
intervenes em imagens do mapa-mndi, acoplando a elas textos datilografados,
de carter crtico, relativos dominao cultural.
Na sexta pgina do livro, ela reproduz quatro imagens de mapa-mndi.
A primeira segue os padres de propores convencionais entre os continentes.
Sob a imagem, a artista coloca a legenda O Mundo. Nas demais, Geiger segue
a estratgia de repetir a imagem convencional. No entanto, de novo como a aluna
perversa, ela ressignifica aquelas convenes da carta geogrfica, alterando a proporo dos continentes, a partir de pressupostos de dominao econmica (legenda: Do petrleo), poltica (legenda: Desenvolvimento e Subdesenvolvimento) e
cultural (Do Domnio Cultural Ocidental) que regem as relaes de poder entre
os pases e os continentes.
Na ltima pgina do livro, a artista apresenta dois mapas da Amrica
Latina, sobrepondo textos tambm de carter crtico s imagens. Neles, os limites
atuais entre o Brasil e os pases vizinhos so alterados ou realados, quer pela aluso grfica ao Tratado de Tordesilhas,18 quer pelo realce e conseqente excluso
da imagem do Brasil dentro do contexto da Amrica Latina. Esses dois mapas,
como ser visto, so importantes para as transformaes da potica da artista,
pelo fato de apontarem, pela primeira vez, para a preocupao de Geiger com a
arbitrariedade das linhas de fronteira, questo grfica/formal que ressurgir em
suas pinturas dos anos 1980.
*
Um outro elemento de unio entre esses livros em que Geiger subverter
os signos da identidade brasileira e do poder dos pases hegemnicos sero as

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14. Na tela em
questo, o ritual
catlico, levado adiante
pelo sacerdote,
acompanhado de perto
pelas figuras emblemticas dos descobridores
portugueses que
chegaram ao Brasil em
1500. Os indgenas,
apartados do centro de
interesse da tela,
apenas assistem a cena
como espectadores
passivos da Histria.
Isolando as imagens
dos indgenas da cena
composta por
Meirelles, a artista
enfatiza o processo de
segregao que foi
imposto aos primeiros
habitantes do Brasil
pela histria construda
pelos homens brancos.
15. Sobre a arte (de
1976, sem indicao
de tiragem).
16. Questes fundamentais em um pas
multifacetado, mul
titnico, necessitado de
um smbolo forte o
bastante para unir
raas e etnias dspares,
sem uma tradio
histrica comum e
sem um presente de
realizaes compar
tilhadas.
17. Novo Atlas,
1977, cem exemplares.

18. Em 1494, Portugal


e Espanha, por meio
do Tratado de Torde
silhas, dividiam o
mundo entre si. Se
obedecido, a rea
territorial brasileira
seria muito menor do
que hoje. A expanso
territorial do pas por
pioneiros (os bandeirantes), desobedecendo s coordenadas do
Tratado (anulado em
1750), at hoje
motivo de orgulho para
muitos brasileiros.

(continuao )
A interveno que
Anna Bella Geiger faz
no mapa da Amrica
Latina com as
indicaes dos limites
territoriais impostos
pelo Tratado est
dentro das preocupaes gerais da artista
com os smbolos da
brasilidade e com a
arbitrariedade dos
poderes institudos.
Geiger, em 1995,
voltar a se ocupar
poeticamente do
assunto Tratado de
Tordesilhas, ao
produzir a obra A
linha imaginria de
Todesilhas, em ferro,
encustica e fio de
cobre, pertencente ao
Museu de Arte
Moderna do Rio
de Janeiro

19. Fao referncia


aqui aos tpicos
notebooks norte-americanos, como aqueles
distribudos pela CVS
Pharmacy, Inc.,
encontrados em
qualquer supermercado norte-americano.

capas que a artista escolhe para eles, as mesmas dos cadernos escolares norteamericanos, fartamente vendidos naquele pas.19
Tal aspecto, aparentemente menor, traz, no entanto, algumas questes
que ajudam a entender o trabalho da artista nos anos de 1970, cujos desdobramentos nas dcadas seguintes sero notveis.
Em primeiro lugar, o fato de Geiger interferir de forma crtica em smbolos da brasilidade (o ndio, o mapa, a pintura clebre), em publicaes cujas capas
afirmam um dos ndices mais conhecidos de norte-americanidade,20 possui um
alto grau de ironia. Afinal, tanto para setores da esquerda brasileira como para
faces conservadoras, os Estados Unidos representavam uma ameaa contra os
brios nacionais, pela capacidade de supostamente corromper os valores mais tradicionais do Brasil. Ao cobrir sua crtica aos mitos da brasilidade e do poderio
internacional com um ndice tpico do cotidiano dos jovens escolares norte-americanos, Geiger dava bem a dimenso do alto grau de ironia de seus trabalhos.
Por outro lado, inegvel que chamou a ateno da artista um elemento
de interesse que possuem as capas desses cadernos escolares: observando seu
padro de estampagem, notvel como, ao mesmo tempo, ele pode sugerir uma
camuflagem e um grande mapa-mndi. Geiger, atenta a esse carter dbio da padronagem, ir utiliz-la em uma das cinco primeiras intervenes do livro Novo
Atlas 1, explorando propositadamente o carter duplo daquele padro.
As possibilidades estticas e ticas dessa dualidade entre a imagem do
mapa e a imagem da camuflagem vo se tornar um dos pontos mais explorados
pela artista nos anos que se seguiriam. Copiando a estrutura da camuflagem, ou
transformando a imagem do mapa-mndi em camuflagens, Geiger continuar a
discutir as relaes entre arte e poder a partir do embaralhamento perverso desses
cdigos.21
*

20. No to conhecidos como a Coca-cola,


as capas dessescader
nos foram bastante
divulgados em filmes,
seriados de televiso e
mesmo em algumas
obras de arte produzidas nos Estados
Unidos (como
Compositions III,
1965, de Roy
Liechtenstein,
coleo particular,
Nova Iorque).

As pinturas realizadas por Geiger nos anos de 1980 tm sido percebidas


como uma espcie de interregno puramente esttico em sua obra, como foi visto,
pautada pela interveno crtica em cdigos visuais preexistentes. No entanto,
mesmo levando-se em conta o voltar-se para a manualidade e para a produo de
formas supostamente originais,22 nessas pinturas no esto ausentes questes que
tambm eram visveis em seus trabalhos anteriores.
A mesma caracterstica plana dos mapas a tnica geral desses trabalhos. Quando a iluso de tridimensionalidade utilizada em partes de algumas
dessas pinturas, tal caracterstica surge como estratgia para salientar o carter
plano geral das mesmas, construdas como espcies de topologias sensveis.
Por essa semelhana formal com os mapas, tais pinturas podem ser

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entendidas como reflexes sobre o carter arbitrrio das divises territoriais.


Em quase todas elas percebe-se o campo pictrico dividido em duas partes por uma linha vertical que s vezes segue de alto a baixo, s vezes apenas
sugerida. Essas pinturas, se levarmos em conta o significado dos ttulos genricos
que lhes foram conferidos pela artista Cais e Oceano ou Pier and Ocean
reforam a arbitrariedade dos limites impostos pela cultura sobre a natureza.
Entendidas como novas formulaes para as questes j postas anteriormente nas intervenes sobre os mapas, essas pinturas trazem novos dados para
a compreenso dos trabalhos que as antecederam, ao mesmo tempo em que se
articulam como projetos para as peas de metal e cera que viriam em seguida.
Se a afirmao do limite entre o cais e o oceano dada por uma linha
vertical que divide a maioria das telas em dois territrios distintos, essa mesma
linha reafirma a existncia de um espao mnimo, uma singularidade tensionada
entre dois territrios, passvel de ser interpretada como uma projeo da prpria
artista: Geiger se constituiu como indivduo entre a cultura herdada dos pais e
dos antepassados e a cultura do pas em que nasceu.
Foi por viver como essa linha entre dois territrios, essa borda entre passado e futuro, essa espcie de fronteira entre a tradio europia e a realidade
brasileira que Geiger conseguiu estabelecer sua viso crtica e particular, tanto do predomnio dos valores culturais europeus e norte-americanos (os artistas
brancos e homens, os ambientes burgueses sofisticados etc.) sobre os pases perifricos, quanto sobre os smbolos mais visveis da brasilidade incensada pelos
militares (o ndio, o mapa etc.).
*
Esse universo cindido, visvel nos mapas e nas pinturas, permanecer
como questo crucial nas peas de metal e cera que Geiger produzir a partir dos
anos 1990. Situando-se, como bem lembrou Cocchiarale no texto citado, entre
os territrios consagrados do objeto, da gravura, da pintura, ao mesmo tempo em
que continuam a representar aquela ciso, essas peas so a encarnao desse
limite, onde se constituiu e se constitui a obra de Geiger.
Dentro deste contexto, a pea Recens Orbis Descriptio Cuns Euros/
Latinus pode ser entendida como mais um materializar-se dessa indagao de
Geiger sobre a arbitrariedade das fronteiras, operaes abstratas conectadas apenas s instncias do poder, mas com efeitos os mais diversos sobre os habitantes
deste mundo. Os conceitos de Polnia e Brasil, Amrica Latina e Europa, assim
como toda a tradio da cartografia, so reinterpretados a partir dos materiais
manipulados pela artista.
Nessa pea, e em todas as outras da srie, Geiger ope lgica das arbitrariedades geopolticas a dimenso do afeto e da memria que insistem em

Chiarelli

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21. Chamo a ateno


para algumas obras do
incio dos anos 1980
algumas serigrafias e
a instalao que a
artista apresentou na
16. Bienal Internacional de So Paulo,
em 1981, entre outras
, em que Geiger tira
partido potico e
crtico da ambigidade
existente entre o
padro de camuflagem
e o mapa-mndi.
22. Em depoimento ao
autor sobre a oscilao
dos ttulos da srie de
pinturas Cais e
Oceano e Pier and
Ocean , Anna Bella
Geiger menciona aspectos interessantes
sobre essas pinturas
que extrapolam a
questo dos ttulos,
possibilitando uma
nova compreenso das
mesmas, fornecendo
pistas, inclusive, para
que se conheam os
paradigmas visuais que
utilizou para produzilas: Algumas pinturas,
depois de terminadas,
tm mais cara de Cais
e Oceano, e outras de
Per & Ocean. No h
conceitualmente
nenhuma outra medida
a ser reconhecida
atravs de seu ttulo.
As diferenas vo
se acentuando, se
fazendo internamente
no prprio processo
da pintura, na sua estrutura interna
(contendo aporias
marcadas por duas ou
trs divises internas),
e no uso da matria
ferruginosa (oxidao)
que utilizo para determinar internamente os
diversos campos da
pintura, sua referncia
estrutura da iluminura medieval em
oposio renascentista, atravs da citao
etc. H uma espcie de
radicalizao das reas
internas, que se
processa dos anos 1980
para os anos 1990.

ressignificar os dispositivos do poder a partir de um olhar singular, marcado pela


Histria coletiva e individual.
*
Creio que o mapeamento proposto aqui pode ampliar as perspectivas de
compreenso da obra complexa de Anna Bella Geiger, uma artista que, sob este
ponto de vista, vem mantendo a coerncia de suas indagaes, conseguindo dar
uma dimenso pblica a questes que poderiam ter ficado apenas na esfera da
auto-expresso.
Sua circunstncia de brasileira de primeira gerao, de origem judaica e
polonesa, vivendo grande parte de sua vida sob o domnio de instncias repressoras, foi encaminhada pela artista no sentido de trazer-lhe uma conscincia crtica
sobre o seu estar no mundo, no como vtima do destino, mas como agente construtora de sua ao como artista e cidad do Brasil e do mundo.

*Texto originalmente publicado no catlogo da exposio Anna Bella Geiger: other annotations for the
mapping of the work. BARTELIK, Marek (Ed.). POZA: on the polishness of polish contemporary art.
Hartford, Connecticut: Real Art Ways, 2008, p. 50-59.

Tadeu Chiarelli professor Livre-Docente do Departamento de Artes Plsticas da


Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, onde tambm coordena
oGrupo de Estudos Arte&Fotografia doCentro de Pesquisa Arte&Fotografia e o Grupo
de Estudos de Crtica de Arte e Curadoria.

Anna Bella Geiger. Burocracia)

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