Tese Sobre o Underground Do Movimento Heavy Metal PDF

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E
ANTROPOLOGIA

TREVAS NA CIDADE
O UNDERGROUND DO METAL EXTREMO NO BRASIL

LEONARDO CARBONIERI CAMPOY

2008
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2

TREVAS NA CIDADE
O UNDERGROUND DO METAL EXTREMO NO BRASIL

Leonardo Carbonieri Campoy

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia –
PPGSA, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em sociologia (com concentração em
antropologia).

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro


Cavalcanti

Rio de Janeiro
Agosto de 2008
3

TREVAS NA CIDADE – o underground do metal extremo no Brasil

Leonardo Carbonieri Campoy

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

___________________________________________________
Presidente: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, IFCS/UFRJ

__________________________________________________
Profa. Dra. Janice Caiafa, ECO /UFRJ

__________________________________________________
Prof. Dr. Emerson Giumbelli, IFCS /UFRJ

Rio de Janeiro
Agosto de 2008
4

Campoy, Leonardo Carbonieri


Trevas na cidade/ Leonardo Carbonieri Campoy - Rio de
Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2008
xi,270f.:il.;31cm
Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Dissertação (mestrado) – UFRJ/IFCS/Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Antropologia, 2008.
Referências Bibliográficas f.250-259

1. Antropologia. 2. Antropologia Urbana. I. Cavalcanti,


Maria Laura Viveiros de Castro. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III.
Título.
5

RESUMO

TREVAS NA CIDADE – o underground do metal extremo no Brasil

Leonardo Carbonieri Campoy

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Este trabalho trata do underground do metal extremo no Brasil, uma prática


urbana organizada em torno da composição, audição e apresentação de um estilo de
música homônimo. Inicialmente, a pesquisa procura compreender, através da etnografia
desses fazeres, como a organização de meios de comunicação específicos resulta na
configuração de um espaço social de produção de metal extremo no Brasil. Em um
segundo momento, procura-se compreender que tipo de música é o metal extremo a
partir de uma etnografia das construções dos seus estilos, dando especial ênfase àquele
que nos parece ser o mais representativo, o black metal. Finalmente, em um terceiro
movimento analítico, busca-se apreender o underground do metal extremo como um
modo de inserção na cidade. Para tanto, a etnografia privilegia a montagem,
organização e vivência do show, o principal evento dessa prática urbana.

Palavras-chave: antropologia urbana, antropologia da música, ritual, underground do


metal extremo, show.

Rio de Janeiro
Agosto de 2008
6

AGRADECIMENTOS

À professora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti por ter, orientando esse
trabalho, me orientado no aprendizado da antropologia. Em suas aulas, em nossas
reuniões, por meio das leituras sempre atenciosas que fazia dos meus textos, pelas dicas
de leitura preciosas e pela leitura dos seus próprios trabalhos, por toda essa convivência,
Maria Laura me ajudou a achar um jeito de aprender o ofício da antropologia. Tenho a
impressão de que a assimilação de toda a experiência como aluno dela se alongará por
muitos anos. Gratidão é o mínimo que posso esboçar pela sua dedicação.
Ao professor Emerson Giumbelli, pelos precisos comentários e ótimas
sugestões, feitos em todos os passos deste trabalho, que foram de enorme valia para a
elaboração final da dissertação. Além desse agradecimento ao professor Giumbelli,
quero deixar registrado meu apreço pelos esforços que o então coordenador do
programa Emerson fez para que uma idéia de um grupo de alunos do qual eu fazia parte,
a jornada IFCS-MUSEU-IUPERJ, fosse realizada da melhor maneira possível no final
de 2007.
A todo o corpo docente do programa de pós-graduação em sociologia e
antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo ambiente de trabalho
prazeroso, generoso e sincero que sempre senti em suas aulas e eventos. Faço especial
menção ao professor Marco Antonio Gonçalves pelas contribuições feitas na ocasião da
qualificação do projeto de pesquisa do qual essa dissertação brotou.
Aos professores Amir Geiger, da UERJ, e Samuel Araújo, da Escola de música
da UFRJ, e ao pesquisador Hermano Vianna, pelos preciosos comentários feitos a partes
dessa dissertação, apresentadas nas jornadas dos alunos de 2006 e 2007.
À professora Janice Caiafa, por ter aceitado participar da banca de defesa dessa
dissertação.
Aos colegas mestrandos e doutorandos do IFCS com os quais tive as mais
diversas conversas, inclusive sobre antropologia. Minha estada no Rio de Janeiro ficou,
em todos os aspectos, mais agradável com a companhia dos meus colegas de curso.
Desses, alguns viraram amigos. Independentemente dos rumos que nossas vontades nos
levarão a tomar, tenho certeza que, de alguma forma, não me separarei de Bernardo
Curvelano Freire, Thais Danton Coelho e Olivia von der Weid.
7

Não posso deixar de agradecer também aos colegas do Museu Nacional e do


IUPERJ com os quais ajudei a realizar a já citada jornada dos alunos IFCS-MUSEU-
IUPERJ. Além de Bernardo, Olivia e Antonio Brasil Jr, junto com Bianca Arruda,
Bruno Marques, Carla Soares, Eduardo Dullo, Gabriel Banaggia, José Vitor Regadas e
Vitor Grunvald, tive a oportunidade de construir um evento que resume na prática meu
ideal de cotidiano acadêmico: diálogo pleno entre perspectivas distintas. Se esta
experiência não se reflete diretamente na dissertação, com certeza ela se reflete na
minha educação acadêmica.
E como não agradecer às duas pessoas com as quais dividi um teto no Rio de
Janeiro? Ter convivido com Antonia Walford, a mais brasileira das escocesas, me fez
perceber que existem outras extremidades a serem atingidas. Com o paulista Eduardo
Dullo, um antropólogo de vocação, aprendi que existem outras simplicidades a serem
descobertas. Amigos, confidentes e cúmplices, Antonia e Eduardo influenciaram o
resultado final da minha pesquisa e muito mais.
Aos amigos que viraram participantes dessa pesquisa e aos participantes que
viraram amigos, não tenho palavras para dizer o quanto sou grato. Façamos como o
Aerosmith aconselha: let the music do the talking.
Contudo, a relação que tenho com quatro deles nem a música diz. Athos “o
moralista sujo” Maia, Cláudio “sou real até a morte” Rovel e Otávio “eu acredito no
metal” Lanner são meus sinônimos de amizade sem fim. E Carlos Machado Jr, meu
primo, é o irmão que não tive. Não preciso agradecê-los, mas se não os citasse aqui,
ficariam muito bravos comigo.
Ao CNPq e à FAPERJ, pelas bolsas de estudo que me permitiram cursar as
disciplinas e redigir a dissertação sem preocupações financeiras.
Aos outros e outra, vocês sabem das suas importâncias na minha vida. É o
suficiente.
8

Às mulheres mortas da minha vida


9

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É puro jazz do


coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur
volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

Ana Cristina Cesar


10

SUMÁRIO

LEGENDA.......................................................................................................................1
INTRODUÇÃO...............................................................................................................2

1 - UNDERGROUND DO METAL EXTREMO..........................................................8


1.1 - Metal extremo?.....................................................................................................10
1.2 - Ingressando no underground................................................................................16
1.3 - Fazendo o underground.......................................................................................23
1.4 - Gravando o underground: EPs, LPs e demos......................................................29
1.5 - Distribuindo o underground: selos e distros........................................................35
1.6 - Vendendo o underground: cartas, lojas e shows..................................................42
1.7 - Economia underground: comércio?.....................................................................49

2 – “O REAL ESPÍRITO UNDERGROUND”............................................................54


2.1 - UNDERGROUND E MAINSTREAM...................................................................65
2.1.1 - O real e o falso...............................................................................................67
2.2 - Aprendizado underground: a gradação da percepção e a modulação da escuta..73
2.3 - A ambivalência do underground..........................................................................82
2.4 - Uma ou duas palavras sobre o debate frankfurtiano e suas leituras.....................85

3 - SERES DO SUBMUNDO – OS ESTILOS DE METAL EXTREMO.................91


3.1 - Estudando o heavy metal: o problema da diversidade.........................................91
3.2 - Patológicas: gore/grind/splatter...........................................................................99
3.3 - Pelo ponto de vista da sarjeta: trash metal.........................................................106
3.4 - O horror da beleza e a beleza do horror: doom metal........................................113
3.5 - O corolário musical do metal extremo underground nacional: death metal......122

4 - A EXTREMIDADE DO EXTREMO: BLACK METAL.....................................134


4.1 - Guerra contra o bem, estilizando o mal..............................................................142
4.2 - As ramificações do mal: misantropia, luciferianismo, paganismo e nacional
socialismo......................................................................................................................150
4.3 - O HORROR! O HORROR!...............................................................................169
11

5 – TREVAS NA CIDADE.........................................................................................183
5.1 - O underground na cidade...................................................................................189
5.2 – O underground pelas cidades - o show como prática ritual..............................197
5.2.1 – Preparando o ritual – organização e vivência do ‘circuito’.........................200
5.2.2 – Dramatização da negação: quando o underground vence o mainstream....213

PÓSFACIO...................................................................................................................224

ANEXO I......................................................................................................................241

ANEXO II.....................................................................................................................245

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................250
12

LEGENDA

Utiliza-se o itálico para referenciar palavras em língua estrangeira, nomes próprios de


bandas e os codinomes utilizados pelos praticantes do underground do metal extremo.

Os termos entre uma aspa (‘’) são idéias, noções e conceitos de autores.

Os termos entre duas aspas (“”) indicam expressões dos praticantes do underground do
metal extremo.
13

INTRODUÇÃO

O heavy metal, atualmente e em todos os países, é um gênero musical produzido


e distribuído pelo que podemos definir como indústria fonográfica. Suas gravações são
feitas por profissionais, cada etapa do processo ficando a cargo de um especialista.
Devido às redes de distribuição das gravadoras ou a subsidiárias locais, o lançamento da
gravação pode ser sincronizado, acontecendo simultaneamente em vários países. No
mesmo dia, gôndolas de megastores na Hungria, na Argentina e na Malásia são
ocupadas pelo último lançamento desta ou daquela banda.
Grande parte dos shows de heavy metal também é produzida e agendada pela
indústria fonográfica. O departamento de eventos das gravadoras organiza as turnês das
bandas, marcando as datas e planejando toda a estrutura da apresentação: o palco, as
luzes e a acústica. O departamento de marketing cuida da divulgação, mandando para os
principais meios de comunicação especializados em heavy metal exemplares das últimas
gravações, bem como convites para os shows. Na turnê, uma extensa trupe acompanha a
banda, composta de ajudantes de palco, técnicos de luz e som, seguranças, maquiadores
e figurinistas.
O fã de heavy metal espera ansiosamente pelos resultados dessas produções. Ele
acompanha pelos meios de comunicação o andamento das gravações, qual banda entrou
em estúdio e qual está saindo. Ele guarda dinheiro para comprar as gravações, mesmo se
ele já tenha as escutado através de programas de trocas de arquivos pela internet. Ele
acessa as páginas eletrônicas de suas bandas favoritas para saber se há algum show
agendado em sua cidade ou nas imediações. Se for preciso e se lhe for possível, viajará
algumas horas apenas para comparecer ao show da sua banda favorita.
Nessas relações de produção e consumo, há uma diferenciação, relativamente
precisa, entre músico e fã. O músico e os outros profissionais da música cuidam da
produção, enquanto o grupo de fãs realiza o consumo. Os primeiros estão no palco, e os
segundos, na platéia; os primeiros estão atrás da gôndola, digamos assim, enquanto que
os segundos estão na frente dela. Dois processos distintos realizados por duas categorias
distintas, porém, em conjunto, fundando um movimento que se pode definir como
indústria fonográfica.
Em termos descritivos, não há nada problemático com este breve resumo do
heavy metal. Quando sua produção, distribuição e consumo acontecem no registro da
indústria fonográfica, eles se dão sob uma contundente divisão social do trabalho, na
14

qual profissionais atuam de acordo com suas especialidades nos diversos momentos da
confecção de uma gravação ou de um show. O fã nesta cadeia produtiva, longe de ser
um agente passivo, é sua pedra de toque, pois garante a constante atualização do
processo.
Em termos históricos, uma descrição do heavy metal a partir da sua posição
enquanto um produto da indústria fonográfica não só não é problemático, como em boa
medida desejável. Pois, se concordarmos com o sociólogo canadense Will Straw (1993),
esse gênero musical nasce, nos primeiros anos da década de 70, dentro da indústria
fonográfica. Diferentemente do punk, por exemplo, o heavy metal não emana “das ruas”
de metrópoles inglesas e norte-americanas e daí vai para o estúdio. Cronologicamente
falando, ele se realiza primeiramente como uma gravação distribuída por muitos países,
em milhões de cópias, basicamente com o intuito de render dividendos.
Mais de 30 anos se passaram desde o lançamento da primeira gravação da banda
inglesa Black Sabbath, aquela que a radical maioria dos músicos, fãs e críticos de heavy
metal considera o debute desse gênero musical. Em todos esses anos e apesar da recente
crise da música gravada, gerada pelas trocas de arquivos de áudio pela internet que não
pagam direitos autorais, certamente o heavy metal sedimentou ainda mais sua presença
na indústria fonográfica. Surpreende a pujança desse produto. São diversos os selos e
gravadoras que se especializaram em produzir e lançar esse gênero musical. É
incontável o número de bandas que fazem heavy metal ao redor do mundo e, sem
exageros, a cada dia da semana, em alguma cidade, uma dessas bandas está subindo no
palco para apresentar suas canções para os fãs. A história do heavy metal, assim como a
da coca-cola, é uma história de sucesso comercial.
Todavia, esse heavy metal é o que aparece. Esse heavy metal é aquele que quer
aparecer nas megastores, nos grandes festivais de música e nas mídias de grande
veiculação, como no rádio e na TV. Esse heavy metal pede passagem e, mesmo que sua
intensa e distorcida sonoridade seja escutada, às vezes, como ruído, mesmo que sua
temática e iconografia produzam atritos com algum senso comum de normalidade, essa
abertura lhe é dada. Contudo, quando abarcamos o heavy metal para além das suas
manifestações mais nítidas, quando procuramos observá-lo em registros que não sejam
suas prateleiras específicas, o Rock in Rio ou a série The Osbournes da MTV norte-
americana, percebemos que sua profundidade abriga diversas e complexas práticas de
composição, escuta e apresentação disso que chamamos de heavy metal.
15

Por um lado, essa condição múltipla do heavy metal se traduz em


desdobramentos do seu próprio estilo, desaguando em uma miríade de “sub-gêneros”
que seus interessados, músicos, apreciadores, críticos musicais e acadêmicos
preocupam-se em cunhar. Desde o momento em que o termo heavy metal se estabilizou
como uma maneira mais ou menos representativa de se referenciar um tipo de rock que
diminui as possibilidades dançantes dessa música para acrescê-la com mais intensidade
e altura, tornando-a mais rígida, outros termos foram surgindo para dar conta das
variáveis estilísticas que essa ou aquela banda apresentava. Com efeito, foi assim que as
bandas Slayer, Metallica e Exodus, da Califórnia, ficaram reconhecidas como expoentes
do thrash metal; do mesmo estado norte-americano, Poison, Motley Crue e Cinderella
semearam o glam metal; Morbid Angel, Deicide e Death da Flórida representando o
death metal; Candlemass, na Suécia, o doom metal; Iron Maiden na Inglaterra, e
posteriormente Helloween na Alemanha, o melodic metal; ainda na Alemanha, o power
metal com Running Wild e Rage. E a lista poderia continuar até atingirmos os últimos
rincões da capacidade de críticos, diretores de marketing das gravadoras, músicos e fãs
em criar termos para as espécies da família heavy metal. No limite, essa diversidade de
“sub-gêneros” gera discussões entre os interessados acerca da própria capacidade do
termo heavy metal em abrigar suas diferenciações. Eles se perguntam: será que o heavy
metal ainda existe ou agora seus desdobramentos já são autônomos?
Mas a principal diversificação do heavy metal, ocorrida ao longo de sua história,
é sua extrapolação da indústria fonográfica. O heavy metal foi “às ruas” e se tornou,
também, um fator de agregação social. Ao fã não basta ter o disco, ouvi-lo e,
esporadicamente, comparecer a algum show de suas bandas favoritas. Ele deixa seu
cabelo crescer, veste-se de couro negro e sai à procura de outros apreciadores do estilo.
Pontos de referência se estabelecem em várias cidades. Lojas de discos, bares e casas de
shows onde os apreciadores se encontram para vivenciar o heavy metal. O fã quer
experimentar o heavy metal não só como um consumidor. Bandas “de garagem”,
formadas nesses pontos de encontro, ensaiam suas primeiras notas. Primeiro,
aprendendo a tocar as músicas mais conhecidas para depois, compor suas próprias. Com
um repertório pronto, fazem seus shows em locais pequenos, para um público de no
máximo quinhentas pessoas, com parcas condições acústicas e precários equipamentos
de som. Depois de algumas apresentações e tendo certo domínio de suas composições,
as bandas bancam gravações próprias de duas ou três canções que são divulgadas
localmente através de uma fita k7 ou cd - demonstração.
16

Afora sua veiculação nas mídias populares e distante de sua produção


profissional, o heavy metal é composto, distribuído e escutado por grupos locais, em
lares e estúdios, algumas vezes em becos e bares, mas sobretudo no palco. Essa
aproximação do heavy metal com o fã, se comparado com o mecanismo que acima
definimos como indústria fonográfica, opera mudanças tanto no fã quanto no próprio
heavy metal. O estilo musical não mais se resume a um produto a ser adquirido, uma
gravação a ser escutada nas horas de lazer ou nas andanças pela cidade, tornando-se,
para além disso, uma atividade que motiva o envolvimento prático dos fãs. Uma prática
social não-profissional, mas, não obstante, como veremos mais adiante, dotada de forte
relevância identitária para quem a exerce. O fã, por sua vez, não é mais aquele
consumidor de música, ávido colecionador de últimos lançamentos e raras gravações.
Ele se torna executor da prática heavy metal, compondo músicas, produzindo shows e
veiculando gravações. Constituinte de grupos locais e produtor de estéticas sonoras, ele
faz do heavy metal uma ação social e um modo de inserção na cidade.
Para quem possui alguma familiaridade com o heavy metal, sua extrapolação das
relações de produção e consumo da indústria fonográfica não é surpresa. Para além da
superfície da sua comercialização em grande escala, se articulam “cenas” de feitura de
tipos de heavy metal que não querem, necessariamente, aparecer. Grupos de músicos e
apreciadores que estão interessados em praticar tipos de heavy metal não só como um
produto comercial.
Se essas breves considerações sobre as particularidades do heavy metal nos
possibilitaram apresentá-lo enquanto uma prática social urbana, no entanto, é justamente
essa condição que instiga o estranhamento e demanda, assim, uma observação
pormenorizada. Pois, se por um lado, pode-se dizer que essas práticas de heavy metal
não se explicam pelas relações da indústria fonográfica, por outro, não sabemos como
explicá-las. Dizer que o heavy metal se aproxima do fã enquadra o problema, mas não o
resolve. Por mais familiar que se esteja com o heavy metal, não sabemos como esse
estilo musical se transforma em fator de agregação social. Sendo assim, podemos dizer
que esse é o problema geral dessa dissertação: como o heavy metal se transforma em
uma vivência afetiva e em um modo de inserção na cidade? De outro modo, se
concordarmos com Adorno e Horkheimer (1985) que a música, em contexto
“ocidental”, está radicalmente marcada pela “indústria cultural”, então, qual é o
significado dessa arte quando feita por outros propósitos? O que buscam na música,
essas pessoas que não querem fazer dela um produto comercial? Ou seja, averiguando
17

uma prática social de feitura de heavy metal, estamos explorando, em última instância,
para além das luzes e sombras da “indústria cultural”, a música enquanto uma
mediação: como ela é feita e o que ela faz?
Para explorar esse problema, escolhemos uma prática que se auto-denomina o
underground do metal extremo no Brasil. No primeiro capítulo, a pesquisa procura
compreender, através da etnografia, como a organização de meios de comunicação
específicos resulta na configuração de um espaço social de produção de metal extremo
no Brasil. No segundo capítulo, intimamente imbricado com o primeiro, buscamos
explorar as percepções dos praticantes do underground acerca desse espaço social de
produção musical. Nos terceiro e quarto capítulos, procura-se compreender que tipo de
música é o metal extremo a partir de uma etnografia das construções dos seus estilos,
dando especial ênfase àquele que nos parece ser o mais representativo, o black metal.
Finalmente, em um terceiro movimento analítico, busca-se apreender o underground do
metal extremo como um modo de inserção na cidade. Para tanto, a etnografia privilegia
a montagem, organização e vivência do show, o principal evento dessa prática urbana.
Talvez, o leitor não familiarizado com o heavy metal esteja se perguntando: mas
o que é underground? O que é metal extremo? Afinal, se essa prática não se manifesta
nos meios de comunicação populares, é difícil termos algum senso comum sobre ela.
Pois bem, nessa introdução, preferimos lucrar com essa ausência de senso comum do
que nos flagelar pela sua falta. Ao invés de explicar o que essas categorias significam,
convidamos o leitor a acompanhar nossa busca por uma compreensão do underground
do metal extremo no Brasil sem mais delongas. Se uma introdução é, como diz
DaMatta, ‘uma visita de consideração’ feita pelo leitor ao livro, então, como construtor
dessa ‘casa’, quero ser o mais hospitaleiro possível deixando toda a casa aberta a esses
visitantes. Peço, aliás, que não fiquem somente na ‘varanda’ e conheçam a ‘casa’
inteira. Se por ventura o fizerem, por favor, reparem nos ‘móveis’, avaliem se a ‘casa
está limpa’ e reflitam se o construtor é ou não é ‘modesto e bem-intencionado’.
18

1 - UNDERGROUND DO METAL EXTREMO

Este trabalho trata daquilo que meus interlocutores denominam underground.


Este termo é utilizado por grupos urbanos formados a partir de um tipo de música e em
cada um encontram-se realidades distintas sendo nominadas por ele. Caiafa (1985) nos
fala de um underground entre os punks e Ferreira (2006) nos fala de outro entre os
apreciadores de música eletrônica e freqüentadores de raves, por exemplo. Mesmo
havendo possibilidades de traçarmos semelhanças entre os diversos tipos em evidência
no Brasil, é preciso guardar que me reporto ao underground do metal extremo e, apesar
de achar a proposta instigante, não anseio qualquer teoria geral deste fenômeno tão
comum nas urbes nacionais.
Poderíamos, neste momento, partir para uma história do heavy metal, indicando
suas origens e suas bandas seminais, traçando suas rupturas com o rock e suas
continuidades com a contra-cultura dos anos 60. Além de nos prover um recorte
temporal e espacial do heavy metal, sua história nos localizaria melhor no tema em
questão, familiarizando-nos com um fenômeno aparentemente pouco conhecido por
quem não é seu apreciador. Porém, há dois senãos com essa possível história.
Primeiro, o que se pretende nesta pesquisa não é a elaboração de uma narrativa
histórica de uma manifestação do heavy metal. Para tanto, enquanto abordagem
acadêmica, tal tarefa demandaria um método historiográfico de pesquisa. Levantar
dados históricos, vasculhar fontes e basear a pesquisa do material em alguma
historiografia. Como estudante de antropologia, mesmo ciente da proximidade entre as
duas disciplinas, entendo que apenas um historiador esteja capacitado para dar conta de
tal empreitada1. Segundo, e mais importante, a história do estilo é ponto de acalorados
debates entre os interessados em heavy metal. Há consensos. Dificilmente um
apreciador discordaria de que a inglesa Black Sabbath foi a primeira banda do estilo,
por exemplo. Mas a regra é que cada um tenha a sua versão das continuidades e rupturas
que teriam dado forma ao estilo, versões essas que estão em constante embate, seja nas
páginas de uma revista especializada, em livros e mesmo em uma roda de conversa
entre fãs. Bom exemplo dos dissensos é aquele gerado acerca das origens do próprio

1
Baseamos nossa percepção dessa complicadíssima relação entre história e antropologia principalmente
nos dois clássicos textos de Lévi-Strauss sobre o ponto (1975 e 1983). Sobre a visão de Lévi-Strauss
sobre tal ponto, ver Schwarcz, 1999; Goldman, 1999 e Almeida, 1999.
19

termo heavy metal2. Aliás, segundo Frith (1996), discutir a história do seu estilo favorito
com seus pares é um dos prazeres dos fãs de música em geral. Portanto, defender uma
versão da história do heavy metal, além de desautorizar a legitimidade daquela que
parece ser uma das principais práticas dos interessados no estilo, implica em apresentar
afirmações sobre o heavy metal não corroboradas pela etnografia ainda. Portanto,
deixemos que a história do heavy metal seja relatada, neste trabalho, pelos agentes
mesmos dessa história.
A questão que se impõe, neste primeiro momento, é nos perguntarmos se isso
que meus interlocutores chamam de underground compreende algo mais do que música.
Para tanto, exploro-o através das pessoas que dizem praticá-lo, das suas práticas e dos
resultados e produtos destas práticas.
A etnografia foi realizada entre 2003 e 2007 em várias cidades do país,
acompanhando shows, coletando material, conversando com participantes em lojas,
bares, rodas de conversa e, algumas vezes, compondo e tocando com eles3. Durante
esses quatro anos me deparei com uma série de gravações, zines4, revistas
especializadas e páginas eletrônicas que diziam ser do underground do metal extremo
brasileiro. Todo esse material e toda a experiência adquirida em coletá-los estão, de
alguma forma, influenciando meus argumentos e reflexões sobre o fenômeno. No
entanto, para sermos mais precisos, elenquei algumas bandas e zines para balizar nossa
entrada no underground. Os segundos: Dark Gates zine, de Juiz de Fora (MG); Unholy
Black Metal zine de Lages (SC); Anaites zine de Fortaleza (CE); Fereal zine de Campo
Grande (MS); Total Destruction zine de Curitiba (PR) e o zine/revista especializada em
metal extremo A Obscura Arte de Curitiba (PR). As primeiras: Sad Theory e Murder
Rape de Curitiba (PR); Unearthly do Rio de Janeiro (RJ); Ocultan de São Paulo capital;
Miasthenia e Vulturine de Brasília (DF); Daimoth de Recife (PE)5. Esses zines e as

2
Dissenso no qual alguns estudiosos mergulharam. Ver Walser (1993, pp. 1-26), Weinstein (2000, pp.
18-21) e Alvim (2006, p. 61-63).
3
Esta pesquisa é precedida por outra sobre o mesmo tema (Campoy, 2005). Parte do material que utilizo
aqui foi levantada durante esta pesquisa inicial, tanto sob uma observação participante quanto uma
participação observante. Na época, integrava a formação de uma banda como vocalista. Vale dizer ainda
que, desde meus treze anos venho participando do underground do metal extremo. Toda a experiência
acumulada nesses anos certamente se reflete nesta pesquisa.
4
Zine, ou fanzine, é uma pequena revista de difusão variável e periodicidade irregular, editorada e
redigida pelos próprios apreciadores do metal extremo, mas muito comum em outros estilos de música
também, principalmente no punk. A seguir, teremos mais espaço para tratar das especificidades dos zines
de metal extremo no Brasil.
5
Procuramos escolher as bandas e os zines de modo que representassem as regiões do país. No entanto,
tivemos pouquíssimo sucesso em coletar material oriundo dos estados da região norte. Também não foi
possível assistir qualquer show de alguma banda desta região. Porém, acreditamos que essa falta não
20

gravações dessas bandas serão nossos principais interlocutores, mas sempre que
conveniente for, abordaremos material adjacente.

1.1 - Metal extremo?

Maurício Noboro, 32 anos, doutor em história pela Universidade Federal do


Paraná, escreveu e editou o Total Destruction zine de 1993 a 1996. Nestes quatro anos,
lançou oito edições, uma marca que ele considera respeitável: “a maioria dos zines que
eu recebia na época duravam no máximo duas edições. Era difícil encontrar zine com
periodicidade e longevidade”. Ele descreve assim, em entrevista concedida ao
pesquisador, as razões que o levaram a montar um zine de metal extremo:

Era muito difícil encontrar informações sobre as bandas que eu curtia. A maioria das
revistas trazia informações sobre as bandas clássicas de metal, aquelas que todo mundo
já sabia tudo sobre elas. Por outro lado, também era muito difícil conhecer pessoas na
minha cidade que curtiam as mesmas bandas que eu. Isso porque aconteciam poucos
shows e tinham poucos lugares onde o pessoal podia se encontrar, como lojas de cd e de
roupas. Mas, além disso, creio que eram poucas as pessoas que naquela época, em
Curitiba, curtiam esse tipo de som. Então o zine foi a forma que encontrei tanto para
conseguir mais informações sobre as bandas que gostava quanto para conhecer pessoas
que tinham os mesmos gostos que eu.

Nos primeiros anos da década de 90 circulavam no Brasil duas revistas


especializadas em heavy metal, a Top Rock e a Rock Brigade. E de fato, Maurício está
certo quando nos diz que as bandas veiculadas nessas revistas eram, na maior parte das
vezes, as “clássicas”, “aquelas que todo mundo já sabia tudo sobre elas”. Bandas
notórias do heavy metal, com um reconhecimento por parte do público já estabelecido
ao longo dos anos. Bandas como AC/DC, Black Sabbath e Iron Maiden protagonizavam
as capas dessas revistas em razões de um novo lançamento, de uma entrevista com
algum membro da banda que a revista tinha conseguido ou por causa de um show
recentemente feito no Brasil. “Nada contra essas bandas”, nos diz Mauricio, “mas eu
estava a fim de ouvir e conhecer coisa mais pesada”. E é justamente por isso que ele
monta o zine Total Destruction, para estabelecer contatos com bandas, pessoas e outros
zines que também estavam “a fim de ouvir e conhecer coisa mais pesada”.
Retrospectivamente, Mauricio entende que seu objetivo foi alcançado: “eu recebia mais

comprometa a validade dos argumentos quando defendidos como válidos para todo o país. As fortes
semelhanças que iremos perceber entre os materiais de todas as regiões nos permite supor que no norte
elas também possam ser verificadas. Contudo, essa verificação fica a ser feita.
21

de 200 cartas por mês, do Brasil e do mundo todo. Eu recebia material de Manaus,
Bósnia e Malásia no mesmo dia. Chegou ao ponto em que eu virei referência para a
galera de Curitiba. O pessoal vinha me pedir material, até mesmo o Carlão, produtor do
programa de rádio sobre metal da época”. Em 1996, Mauricio entra para a universidade,
começa a achar que aquele “trampo do zine toma muito tempo”, e assim acaba com o
zine. Mas valeu a pena? “Claro, é muito legal ver que em muita fita-demo e cd tem lá o
agradecimento para o Total Destruction”.
O que denominamos de metal extremo baseia-se nisso que Maurício chama de
“coisa mais pesada”. Como ele mesmo me explica: “é esse metal mais brutal, mais
rápido (...), é death, black, trash, grind, splatter, doom, enfim, esse tipo de som”. Mas
Maurício, é mais pesado, mais brutal, mais rápido em relação a quê? “Cara, em relação
a esse metal mainstream, cheio de solo, gritinho agudo e firula (...), é metal, mais um
outro tipo de metal, mais extremo”.
O termo heavy metal não representa um único tipo de música. Sob seu tímido
abrigo, uma série de metais está em curso. Essa é a visão de Maurício, reverberada por
outras vozes deste universo, seja no Brasil seja em outros países6 É simplesmente
impossível especificar todos os metais do heavy metal. A segmentação do estilo, se
formos acompanhar a criatividade das bandas na etiquetagem dos seus sons, parece não
ter fim. No limite, cada banda está a compor um tipo de heavy metal, o qual será
etiquetado por termos como bombastic war black metal ou ultra noise porn splatter.
Todavia, essas segmentações dos estilos de heavy metal parecem acontecer
gradativamente, ou seja, uma dada segmentação só se desdobra a partir de outra, prévia.
O relato de Maurício Noboro nos indica uma segmentação seminal do heavy metal. Ele
inclui na categoria metal extremo toda uma série de estilos os quais seriam diferentes
(“mais brutais, mais pesados, mais rápidos”) do que chamou de metal mainstream. É
nessa distinção inicial feita por Maurício, tão amplamente escutada em campo durante a
pesquisa, que se define o tipo de heavy metal averiguado neste trabalho, qual seja, todo
aquele que se define como extremo.
Assim como no relato de Maurício, o vendedor de cds Mauro Flores, em
entrevista concedida ao pesquisador, nos diz que seu interesse pelo death metal e suas

6
A socióloga norte-americana Deena Weinstein (2000, pp. 43-52) afirma que duas formas distintas de
heavy metal se cristalizam a partir do final dos anos 80 no mundo todo: uma mais “comercial”, outra mais
“underground”. Essas duas formas, segundo a autora, agrupariam qualquer tipo de metal feito a partir
desses anos. O sociólogo inglês Kahn-Harris (2007) expõe argumentos semelhantes ao longo de todo seu
estudo sobre o metal extremo a nível mundial.
22

constantes idas aos shows de bandas nacionais deste tipo de heavy metal deve-se a essa
percepção:

Eu comecei a curtir death quando um amigo do meu irmão foi lá em casa com um disco
do Coroner. Faz tempo isso, devia ter uns 15, 16 anos, e já se vão ai mais 15 anos. Eu
fiquei louco com aquele som, me lembro até que disco era, o Mental Vortex. Era
lançamento (...) eu e meu irmão ouvíamos um Accept ali e um Helloween lá,
gostávamos muito dessas bandas, até hoje gosto. Mas a intensidade daquele disco bateu
mais fundo. Aquilo era brutal (...) não teve como escapar. Ai fui conhecendo mais coisa
do tipo (...) Cynic, Death, Morbid Angel, esse death da Flórida que no início dos anos
90 tava explodindo. Ai eu me perguntei: e não tem ninguém fazendo esse som aqui em
São Paulo? Pra minha grata surpresa tinha muita gente.

Mauro diz nunca ter participado de banda, mas se descreve como um “grande
apreciador do death e trash”. Essa apreciação, da qual “não teve como escapar”, não só
o tornou um habitué nos shows nacionais mas também fez com que ele estabelecesse
relações de amizade com outros apreciadores do death metal. Relações essas que,
segundo ele, lhe renderam um emprego:

Eu nunca tive saco pra estudar música, nunca tive vontade de tocar em banda, mas eu
comecei a ir direto nos shows do Vulcano, do MX e tal. Eu queria mais do que ficar em
casa ouvindo meus discos (...). E ai, com os shows, você conhece o pessoal, faz amigo,
por ai vai. Acho que meu trabalho aqui na galeria tem tudo a ver com isso. Claro que
tem. Eu só consegui esse trabalho porque sou amigo de anos do dono da loja, amigo de
show, de buteco (...).

Notem o tipo de emprego que Mauro conseguiu. Vendedor de cds em uma loja
na galeria do rock em São Paulo. Ora, esse local é, como disse certa vez King
Diamond7, “um verdadeiro shopping da música pesada”. Localizada no centro da capital
paulista, a galeria do rock é um prédio de quatro andares repleto de lojas especializadas
em “culturas alternativas”: no primeiro andar encontramos lojas de hip hop e
cabeleireiros afro. No segundo lojas de roupas e materiais para skatistas. No terceiro e
quarto, rock em todas suas vertentes. Mauro trabalhava em uma loja especializada em
“death, doom, black e trash” como disse. Ele não só se inseriu como um apoiador do
underground do metal extremo nacional, como também deixou o metal extremo
transbordar para sua esfera profissional. Gosta do trabalho Mauro? “Porra, era tudo que
queria. Tirando o salário baixo e a molecada que não sabe nada, que vem aqui querendo

7
King Diamond é um célebre vocalista do heavy metal. Dinamarquês, além da banda homônima, cantava
no Mercyful Fate. Ele teria dito isso em ocasião de uma tarde de autógrafos na galeria do rock em 1999.
23

cd do Dimmu Borgir8, tá legal (...) paga as contas, rola uns cds a preço de custo e
ingressos pros shows”.
No mesmo tom, o vocalista da banda catarinense Havoc, o Demoniac9, comenta
sobre a relação que sua banda mantém com o heavy metal de modo geral. Em uma
entrevista sua publicada no Anaites zine número oito, de 2005, lemos o seguinte trecho.
Cito pergunta e resposta:

O Heavy Metal (old) representa algo para vocês ou vocês costumam ouvir somente
Black metal?
Demoniac - Sim, já representou muito, na época que eu tinha 13 anos ouvia com
freqüência Heavy Metal mas isso foi a cerca de 14 ou 15 anos atrás, agora só me dedico
a cena extrema e a bandas extremas, sendo que meu gosto é bastante similar ao gosto
musical dos outros integrantes da Havoc.

Este “velho”heavy metal que o entrevistador alude refere-se a todo o estilo que
não seja black metal, tipo tocado e apreciado pelo Havoc. Sim, ele já representou muito
para Demoniac, quando era mais novo, provavelmente em seus primeiros anos de
apreciação do heavy metal. Mas agora, no momento da entrevista, seu gosto é
reclamado como estando voltado totalmente ao extremo.Sua dedicação é para a cena
extrema, a qual, mais adiante na entrevista, também chama de extrema cena
underground. Segundo Demoniac, desde 2002 ele vem se dedicando ao underground
como vocalista da banda Havoc.
Estes três relatos, de Maurício, Mauro e Demoniac, nos apresentam uma mesma
representação do heavy metal cingido em dois. O mainstream, “velho” heavy metal o
qual até apreciaram algum dia em suas vidas, mas que, em algum momento, não se
interessaram mais. Por outro lado, o death e o black, o extremo metal que lhes atraiu, do
qual “não havia como escapar”. Para eles, é como se o heavy metal fosse um núcleo
musical do qual emanam múltiplos feixes, porém, que se propagam em apenas duas
direções, underground e mainstream.
Uma questão de gosto, poderíamos dizer. Uma questão de vontade estética, de
deleite para com um tipo de organização sonora. Uma escolha de qual arte os apraz, seja
lá qual for o critério desta escolha. Certamente, mas suas apreciações estéticas não são

8
Dimmu Borgir: banda norueguesa de black metal a qual, segundo grande parte do público deste tipo de
metal, é “falsa”. Eles teriam ficado muito conhecidos e teriam vendido muitos cds. Para balizar, ver o
interessante item sobre a trajetória do Dimmu na indústria fonográfica em Moynihan & Soderlind (2003,
pp. 265-269).
9
Os músicos de black metal usam codinomes. Além de Demoniac, o Havoc, na época da entrevista,
contava com Evil na bateria, Itrasbiel Zulphulas e Hell Knight nas guitarras.
24

estáticas. Ver e ouvir o heavy metal dessa maneira, em dois, não é, de modo algum, uma
representação inerte.
Perceber o heavy metal dividido em dois grandes tipos, um central, mainstream,
outro extremo, underground, não só é uma representação do estilo como também
articula a vinculação dessas pessoas no underground. Maurício monta seu zine por
querer ouvir e conhecer “coisa mais pesada e extrema”, inexistente, segundo ele, no
mainstream. Mauro torna-se freqüentador assíduo dos shows locais, estabelecendo
amizades e até mesmo angariando um trabalho, porque queria mais do que ficar em casa
ouvindo seus discos. Demoniac diz que, agora, só se dedica a bandas extremas e a cena
underground extrema. Seja comparecendo aos shows como um apreciador, montando e
participando de uma banda ou ainda editando e escrevendo um zine, todos os três, para
ouvir e conhecer metal extremo, se conectam a outras pessoas que também querem
ouvir e conhecer metal extremo.
Começamos a vislumbrar no que consiste esse underground do metal extremo
no Brasil. A princípio, podemos dizer que ele é um conjunto de relações instituídas a
partir do interesse em compor, ouvir e apresentar esse tipo de heavy metal. Vimos como
é essa vontade de vivenciar o metal extremo que levou e leva Maurício, Mauro e
Demoniac a estabelecerem relações diversas com outras pessoas que também querem
vivenciar o metal extremo para além de uma escuta caseira das gravações.
Poderíamos defender que aqui está uma primeira demonstração de que o
underground do metal extremo no Brasil é mais do que música. Afinal ele também se
constitui de relações sociais. Mas tal asserção é prematura se lembrarmos de uma
condição essencial do fazer musical, por algum tempo relegada pelos estudiosos mas
ultimamente relembrada com força10: música não é uma atividade autônoma praticada
por um individuo autônomo. Práticas musicais, por mais musicais que sejam, são
associações de pessoas com pessoas, com instrumentos, partituras, conservatórios,
gravações e qualquer outro elemento propriamente musical ou não. Mesmo o mais
solitário compositor se vê em associação com toda uma tradição desta atividade quando
cria suas sonatas em um piano, quando anota suas criações em partituras e quando
arranja sua apresentação, imaginando a cadência da regência, a disposição da orquestra
e os aplausos no fim do ato. Isso para ficarmos em certo senso comum do fazer musical,
pois poderíamos ainda lembrar do trabalho de Maurice Halbwachs (1980) no qual toda

10
Essa lembrança é feita, por exemplo, em Menezes Bastos (1995) e Shepherd & Wicke (1997).
25

memória musical é uma construção coletiva da memória, ou do texto onde Schultz


(1964) procura caracterizar por uma fenomenologia bergsoniana o caráter social da
música. Enfim, música é mais do que harmonias, melodias e ritmos.
Sendo assim, qualificar o underground como relações nada mais é do que
apontar seu estatuto de práticas musicais. Porém, não podemos esquecer que essas
relações underground são tecidas a partir de uma representação dual do heavy metal. A
participação e a prática do underground são explicadas como, em parte, resultado de
uma rejeição do outro pólo, aquilo que chamam de mainstream. Seja porque falta metal
extremo nele, seja porque seu heavy metal não é apreciado, o mainstream é repelido e
negado pelos praticantes do underground. Os indícios até o momento nos apontam que
o underground do metal extremo no Brasil enquanto relações só pode ser compreendido
conjuntamente com uma averiguação das diferenças que mainstream e underground
comportam. A questão que se impõe, então, é compreendermos como essa diferenciação
articula a organização do underground. Balizando a etnografia nessa direção
poderemos, ao mesmo tempo, compreender melhor no que consistem as relações
underground bem como fundamentar uma caracterização dessa oposição binária
mainstream/underground.

1.2 - Ingressando no underground

O underground do metal extremo brasileiro é algo no qual se ingressa. Em um


dado momento de suas vidas, arrebatados pela música de alguma banda ou por ter
acompanhado um show que lhes comoveu, seus praticantes passam a, paulatinamente,
se inserir no underground. Participam de suas atividades, se dedicam a manter, como
dizem, “a chama do underground acessa”. Seja escrevendo um zine entre uma aula e
outra, antes, durante ou depois do expediente, seja trabalhando em lojas e distribuidoras
underground, alimentam suas insaciáveis vontades de se relacionar com o metal
extremo por vias que não sejam aquela incômoda, para eles, de um ouvinte “consumidor
passivo”. Eles não querem apenas consumir metal extremo e sim, de alguma maneira,
produzi-lo.
Em linhas gerais, é assim que seus praticantes descrevem seus primeiros
contatos com o underground. Um encanto, um êxtase ignitor de um impulso
incontrolável de saber mais, de ouvir e fazer mais metal extremo. Como o mainstream
não satisfaz suas vontades, foi preciso procurar outros caminhos, outras direções para
26

canalizar seus gostos. Vias subterrâneas nas quais, uma vez escolhidas, o gosto musical
divide sua preeminência com a própria sustentação e manutenção dessas vias. Pois o
que é o underground senão práticas musicais constitutivas do metal extremo, porém
tecidas em contraposição ao mainstream do metal? Tanto a música que fazem quanto as
formas pelas quais essa música é produzida, circulada e recebida tornam-se, assim,
objetos de dedicação.
É interessante observar como os praticantes explicam suas inserções no
underground. Descrevem-nas como conseqüências do arroubo que os primeiros
contatos com o metal extremo produziu na pessoa. O impacto que esse tipo de música
teve foi de tal modo, de tal força, que seria insuficiente relacionar-se com ela apenas
enquanto um objeto de apreciação estética. Escutá-la de vez em quando, ir a um show
ou outro e comprar um cd quando sobrasse dinheiro não seria o bastante diante da
impacção que essa música lhes causou. Foi preciso retribuir.
Cléverson, 35 anos, motorista de ônibus em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, e baterista (mas quando conversamos não tocava em nenhuma banda), descreve
seus primeiros contatos com o metal extremo de maneira semelhante àquela descrita por
Mauro:

No começo eu ouvia AC/DC, Iron e Nazareth, mas ai um colega me passou uma fita do
Slayer. Pirei, era aquilo, era aquilo que eu tava procurando(...) não demorou nem duas
semanas até eu estar gastando toda minha grana com aulas de bateria. Era aquele som
que eu queria fazer, era aquilo que eu queria fazer da minha vida, descer o braço na
batera (...) meu pai me bateu muito por causa da grana que eu gastava com as aulas,
com camisetas e com discos e não ajudava em casa (...) sei lá, hoje eu rio disso tudo,
mas tô aqui, no show, brutalizando (um largo sorriso toma seu rosto nesse momento,
enquanto levanta sua lata de cerveja em minha direção, querendo brindar o show de
seus amigos, sua presença ali, a brutalidade).

E demorou muito para você ter sua primeira banda?

Demorou porque demorou pra aprender o instrumento (...) convite tinha toda hora, todo
dia neguinho me convidava pra fazer um som (...) claro, tava toda noite em show,
bebendo com os caras, indo nos ensaios (...) mas eu queria fazer direito, queria tocar
legal (...) comecei a fazer um som com uns caras depois de um ano ou quase isso.

Cléverson estabelece uma relação direta entre sua descoberta da música do


Slayer, banda norte-americana pioneira do trash e do death metal, e suas primeiras aulas
de bateria. Era isso que ele queria fazer da sua vida, o mesmo que “os caras” do Slayer
faziam. Foi por isso que começou a tocar bateria e foi por isso que enfrentou as
conseqüências de suas escolhas, como os conflitos com seu pai. Foi por isso que, como
27

me disse em trecho da conversa não citado acima, largou os estudos. Para ser um
músico de metal extremo.
Cléverson tem plena noção de suas escolhas. Apesar de parecer um pouco
magoado, ele entende que a vida de um músico de metal extremo não traz significativas
retribuições financeiras:

No começo eu até sonhava com a vida de rock star (...) fama, viagem, fazer o que eu
quisesse (...) ilusão, pura ilusão. Isso aqui não dá nada (tocar em uma banda de metal
extremo), você até paga pra tocar e sem ajuda de ninguém, todo mundo pensando no
seu (...) quem quiser fazer tem que fazer pelo som, tem que fazer por que gosta e não
vive sem a barulheira na cabeça (...) tem que fazer por orgulho.

Cléverson diz que já faz “uns vinte anos” que ele está “nessa”, tocando em
shows e comparecendo nos de seus colegas, para “apoiar”. Seus amigos, ele me disse,
são todos da “cena” e até mesmo sua esposa ele a conheceu “andando com a galera”.
Mas sua constância no underground ele explica por não viver sem “a barulheira na
cabeça”, por orgulho.
Escutar o metal extremo não é uma atividade qualquer, frívola e momentânea. É
isso que Cléverson quer nos dizer quando sublinha o impacto de suas primeiras
audições da música do Slayer. Ter escutado essa banda foi de tal modo significativo que
ele define esse momento como crucial para suas escolhas subseqüentes. Ele se encantou
por essa música de tal maneira que decidiu aprender um instrumento para tocá-la
também. Daí sua orgulhosa inserção no underground. Para além das desilusões, a
necessária “barulheira” o manteve em contato com os shows e eventos do underground
do metal extremo em sua cidade.
Importante precisar o mecanismo que buscamos esclarecer aqui. Os praticantes
do underground relacionam sua inserção neste espaço com um encanto que o metal
extremo teria lhes causado. Essa música ultrapassou a condição de produto, ela dotou-se
de um significado a mais para estes ouvintes, para além de um bem comercializável. Ela
se transformou em um sentido, em algo pelo qual quiseram se dedicar de alguma
maneira, fazendo-a também, ouvindo-a em shows, produzindo esses shows e
estimulando sua circulação. O ingresso no underground é o início dessa dedicação.
Essa maneira de explicar suas ingressões no underground não aparece apenas
em suas descrições dos primeiros contatos com o metal extremo. Com efeito, os
praticantes dizem que é assim que deve acontecer o conhecimento do metal extremo
pela pessoa.
28

Guga, 30, vocalista da banda curitibana de death metal Sad Theory, salientou em
várias conversas que tivemos que “o death se conhece sozinho, eu não mostro pra
ninguém, o cara tem que chegar nele por conta”. Mas porque Guga? “Death não é uma
coisa que você sai por ai mostrando pra galera, ou o cara descobre por conta e vai atrás
da parada (o death metal), ou fica do jeito que tá. A parada é para poucos, é pra quem
pode”. De fato, Guga se mostrou um tanto receoso quanto a mostrar sua coleção de cds,
tida por seus colegas como “muito boa”: “cara, eu até te mostro, mas digo desde já, eu
não vou gravar nada pra você e muito menos te emprestar. Tem cd ali que nem eu
ouço”.
Apesar de aparentemente contraditórias, as posições de Guga e Cléverson
coadunam-se. Mesmo que para o segundo o metal extremo tenha sido apresentado por
um amigo e para o primeiro ele deve ser descoberto sozinho, ambos apontam para o
caráter afetivo que esse tipo de música tem entre os praticantes do underground. Para
Guga, a individualidade da descoberta enfatiza a apreensão dessa música em um
registro outro que não o da música como produto, descartável e/ou utilitária. O metal
extremo é pessoal, e sua descoberta é a culminância de uma procura afetiva da pessoa.
Descobrir por conta o metal extremo é dar total vazão a essa relação contínua entre
música e subjetividade. Daí o extremo cuidado de Guga com seus cds. Para ele, sua
coleção vai muito além de um aglomerado de cds. Ela é o resultado de sua trajetória no
underground do metal extremo. Ai ele achou a música e essa descoberta o ajudou a se
achar. Professor de história e caçula entre seus quatro irmãos, Guga mora com os pais e
faz questão de sublinhar a importância material do metal em sua vida: “cara, eu trabalho
para bancar os ensaios e gravações da banda e os meus cds”.
Arroubo, impacto, significado. O metal extremo para os praticantes do
underground não é um produto alienável, uma “curtição” das horas vagas, um som
ambiente. Como muitos nos disseram, desta música um poder muito forte emana e
portanto, todo o cuidado em se aproximar dela. Se ela lhe tocar, se ela ultrapassar a
aparência e ressoar em sua essência, estará imbricado nela, estará entrelaçado nela e
assim, tudo que pode fazer é retribuir aquilo que ela lhe está dando pelo arroubo, pelo
impacto e pelo significado.
Em uma entrevista ao sítio eletrônico Metal Attack o músico Mantus, da já
inativa banda carioca de black metal Mysteriis, expressa de modo exemplar essa relação
que o praticante do underground tece com o metal extremo: “Eu costumo dizer que não
é a pessoa que escolhe tocar Black Metal, mas sim o Black Metal escolhe aqueles que
29

possuem o necessário para o representar”. Para Mantus é como se não houvesse outra
escolha ao apreciador de black metal a não ser praticá-lo. O contato com o estilo é como
um chamado. Se a pessoa responde é porque possui os atributos para representá-lo, ela
está apta a praticá-lo11. Esta representação, esta retribuição, dar-se-á por uma dedicação
ao black metal e ao seu espaço de existência, o underground.
Dissemos acima que o underground se constitui a partir de uma rejeição daquilo
que seus praticantes denominam mainstream. Essa aversão começa a ser construída
desde o momento no qual a pessoa entra no underground. Segundo seus praticantes,
como pudemos observar, a forma como eles escutam a música é diferente da forma
como ela seria escutada no mainstream. Enquanto aqui a música é um produto, lá é um
sentimento, enquanto lá ela está inextricavelmente conectada à pessoa, aqui ela está
descolada de qualquer afeto. Para os praticantes do underground o metal extremo é
virtude, é forte, uma verdade, e o metal mainstream é fingimento, é fraco, é falso. Não
seria um exagero afirmar que, para eles, se trata não só de formas diferentes de escutar
música, mas também de músicas de diferentes qualidades.
A diferença entre essas músicas, esses tipos de metal, opera o ingresso da pessoa
no underground. O fato de que seus praticantes explicam suas inserções no
underground por um arroubo afetivo que o metal extremo teria lhes causado nos parece
ser um dado de extrema importância para a pesquisa. Primeiro porque começamos a
vislumbrar uma característica central do underground, qual seja, um severo zelo na
transformação daquilo que lhe é estranho, externo, naquilo que lhe é próprio, interno. A
dinâmica constitutiva do espaço do underground parece tomar extremo cuidado em
como se dará seu metabolismo, em como aquilo que lhe é diferente torna-se semelhante.
Desse ponto de vista, o ingresso da pessoa é uma espécie de rito de iniciação no qual a
tarefa que o aspirante precisa cumprir é a transformação de sua escuta da música. Em
meio a infindável gama de estilos musicais presentes na urbe, dentro deste vasto
gradiente de músicas veiculadas nos mais diversos meios de comunicação, o aspirante
precisa descobrir o metal extremo e escutá-lo para além de uma música ambiente, como
um som afetivo, logo significativo. Se de fato essa significação se processou, dizem os

11
Agradeço a Claudia Azevedo por ter me indicado a leitura da entrevista citada. Em um de seus textos
(2007), ela também analisa a mesma entrevista, procurando refletir sobre a construção das fronteiras dos
múltiplos estilos de metal extremo no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro.
30

praticantes, a entrada no underground acontecerá de modo “natural”12. Todavia, devido


a sua crucialidade, deixemos a questão apenas levantada. Dados subseqüentes nos
ajudarão a aprimorá-la.
A segunda questão, que nos encaminhará aos desenvolvimentos seguintes,
refere-se ao próprio papel da música. O underground certamente é um espaço
organizado a partir da música. Compô-la, escutá-la, apresentá-la, em um termo,
experienciar a música não só é a pulsão originária do underground como também, como
acabamos de ver, é um modo específico de escutar a música que opera a entrada da
pessoa neste espaço. O termo práticas musicais cabe de modo vernacular em uma
definição inicial do underground do metal extremo brasileiro. Neste sentido, nossa
pesquisa corrobora exemplarmente a frase de Tia DeNora: ‘música possui propriedades
organizacionais13’ (2000, p. 151).
Contudo, afirmar que a música tem propriedades organizacionais é dar o
primeiro passo, é enquadrar o nosso problema. O trabalho está em descrever como essa
organização acontece. Como a própria socióloga inglesa diz, o trabalho está em
descrever como as relações de produção da música operam na construção de pessoas,
sujeitos, categorias e vice-versa (DeNora, 2000, p. 156). É preciso localizar como e
onde a música é feita, circulada e apresentada. É preciso nos perguntar de que modo a
música entra nos ouvidos e quais técnicas são investidas para ela sair, observando quais
transformações, articulações, continuidades e rupturas acontecem nesses processos. Mas
é preciso também ter cuidado com a veemência da afirmação. Incluir a música, esse
elemento estético, no rol de fatores organizacionais de uma sociedade, da subjetividade
e de eventos não quer dizer que ela seja protagonista de toda a história. Se, por um lado,
restaura-se a qualidade agenciadora da música, dando-a sua importância devida,
relegada certas vezes por uma visão da estética como um elemento descolado da fruição
social, por outro é preciso manter a perspectiva pela qual o social nunca é tomado como
resultante de um único fator preponderante. Ou seja, desenvolver o projeto maussiano
intensa e extensivamente: deliberadamente não deixando de lado o aspecto estético
desses fatos sociais, justamente por serem fatos sociais totais.
Mesmo que esta pesquisa não pretenda sequer entrar no espinhoso debate acerca
das diferenças entre sociedades ‘tradicionais’ e ‘modernas’, vale apontar para um

12
Aliás, essa é a palavra mesma que Mantus usa, na mesma entrevista já citada, para traçar sua
aproximação do black metal: “Black metal não foi uma escolha! Foi algo natural visto que a maioria das
bandas que me influenciaram tocam e pregam o estilo”.
13
Tradução livre de: “music has organizational properties”.
31

argumento pertinente de DeNora acerca do lugar da música em ambas. A autora defende


que etnomusicólogos e estudiosos da música em geral entendiam que enquanto nas
sociedades ‘tradicionais’ a música tinha um fator operante, nas ‘modernas’ ela era
efêmera, ‘apenas para ouvir’. O estatuto dessa diferença, diz DeNora, baseia-se em certo
pressuposto implícito de nossa percepção ocidental na qual o desencantamento do
mundo teria também descolado a música ocidental de qualquer responsabilidade na
constituição do social. Assim, o que os estudos tentavam explicar é porque lá, na tribo, a
música importa e aqui, na cidade, não. É contra essa forma de abordagem que DeNora,
amparada por sua pesquisa na sociedade ‘moderna’, argumenta que as diferenças entre
ambas talvez não seja a importância organizacional da música, mas sim como ela
organiza os social (2000, pp. 151-163). O argumento da autora nos parece ser produtivo
para uma antropologia da música nas sociedades complexas, na cidade, pois aponta para
uma postura pela qual, quando a música é objeto, a teoria musical é muito mais um
dado do que um método. O som não precisa, necessariamente, ser abordado em si, pois
ele é tomado como mais um elo de tantos outros das relações e associações que passam,
de alguma maneira, pela música. Sendo assim, produção de música pode ser tomada não
só como emissão de sons e sim como todas as ações investidas na sua articulação, bem
como os efeitos dessa articulação em outros elementos que não a coligação de sons.
Observar essa precaução epistemológica em uma antropologia do underground
do metal extremo brasileiro se faz necessário devido aos dados que a etnografia vem nos
apresentando. Referimo-nos ao underground, até o momento, como um espaço
justamente porque suas atividades estão interessadas em uma conformação, em uma
delimitação de um ambiente específico, próprio. É por isso que seus praticantes dizem
ingressar nele. Mas de modo algum podemos entender a demarcação desse espaço
como, apenas, a definição de lugares e regiões fisica e geograficamente específicos. Por
mais que ele tenha locais, eventos e pessoas específicos como referência em cada
cidade, o underground tende a se consolidar como um espaço de troca, de circulação de
bandas, produtos e pessoas a nível nacional e quiçá internacional. Neste sentido, a
música certamente possui sua centralidade. Afinal, é por metal extremo que essas
pessoas, bandas e produtos circulam. No entanto, para que a música circule, e para que
ela circule da forma como querem seus praticantes, uma série de outras ações é
investida, outras práticas que claramente articulam e caracterizam o underground tanto
quanto sua música. São essas práticas que passamos a observar adiante.
32

1.3 - Fazendo o underground

Cara, eu não venho aqui pra curtir, eu não venho aqui pra festar. É claro que eu quero
ver meus amigos, ouvir um som, tocar minhas músicas, beber, sair de casa, dar um
tempo do trampo, é claro que tudo isso é legal, é bom, é um prazer. Mas não é esse o
esquema do underground, pelo menos não é esse meu esquema com o underground.
Minha vontade aqui não é curtir, isso é conseqüência (...), o que eu quero é fazer o
underground e eu acho que todos aqui pensam ou deveriam pensar assim também. E no
fim das contas toda essa dedicação acaba sendo um grande prazer também. Um prazer
de me orgulhar em fazer algo que acredito.

Houve um momento da pesquisa no qual percebi claramente que dependendo de


como me apresentava aos praticantes do underground do metal extremo brasileiro a
recepção que me ofereciam era diferente. Mais precisamente, percebi que haviam duas
formas distintas de abordá-los e a cada uma correspondiam respostas diferentes. Se eu
me apresentasse como um antropólogo interessado em pesquisar o underground
geralmente recebia olhares desconfiados, respostas evasivas e recusas para entrevistas e
conversas. Uma descrença, uma suspeita se expressava quando deixava claro, no
primeiro contato, que meu interesse era obter dados para minha dissertação. Por outro
lado, quando me apresentava como um praticante de metal extremo, um ouvinte, ex-
integrante de banda e conhecedor das bandas e das gravações underground a recepção
era outra. Eu era aceito, simplesmente aceito como mais um deles, um insider. E a
recepção tornava-se mais interessada ainda se eu dissesse que era de Curitiba, cidade
natal de algumas bandas “clássicas” do metal extremo nacional, como o Infernal, o
Amen Corner e o Murder Rape.
No entanto, ao longo da pesquisa, fui percebendo que, ao invés de ter que
escolher entre essas opções de abordagem, a melhor postura, mais ética e ao mesmo
tempo mais eficaz, estava a meio caminho entre ambas. De início, agia como sempre
agi, como um praticante, interessado em conhecer mais sobre o trabalho da banda, em
estabelecer contato. Nos shows, assistia as apresentações e quando conseguia
acompanhava e participava de rodas de conversas. Em um segundo momento, quando o
contato estava estabelecido e/ou quando me parecia interessante aprofundar alguma
questão em uma conversa, dizia que estava fazendo mestrado em antropologia e minha
dissertação trataria do metal extremo no Brasil. Essa postura, de algum modo, eliminou
possíveis desconfianças quanto a minha pesquisa. Ao invés de ser tomado como um
estrangeiro, persona non grata no underground, me vi sendo tomado como alguém
altamente preocupado com o underground, um super-praticante, tão dedicado que
33

resolveu fazer de seus estudos uma maneira de “lutar pelo underground”. Em certas
ocasiões, essa transformação de um possível defeito em virtude foi extremamente
benéfica para a pesquisa.
Maio de 2006. Show em São Paulo do Anathema, banda inglesa de doom metal.
Como era feriado, resolvi ir assistir o show, passar na galeria do rock e visitar alguns
conhecidos da cena metal paulista. Chego ao local do show, no Hangar 110,
acompanhado por alguns colegas. Estávamos todos muito animados com o evento.
Além de gostarmos muito da banda principal haveria quatro apresentações prévias de
bandas brasileiras, todas voltadas ao doom. Faltando algumas horas para o local abrir, o
bar logo a frente já estava repleto de homens e mulheres em preto, todos obviamente
presentes pelo show. Aconchegamo-nos em uma mesa, pedimos uma cerveja e
dissolvemo-nos no aglomerado negro, conversando e apreciando o som ambiente,
Candlemass, banda sueca unânime entre fãs de doom.
Entramos na casa de show e logo percebemos que algo não estava certo. Os
banheiros estavam lacrados e o bar não estava funcionando. Apesar da indignação e das
reclamações de vários presentes o primeiro show, de uma banda brasileira, começa.
Show rápido e tenso, a banda parece não conseguir desenvolver sua música. Tocam não
mais do que meia hora e, logo que deixam o palco, o organizador do evento fala ao
microfone que devido à “problemas técnicos” as outras bandas brasileiras não vão mais
tocar e o palco está sendo preparado para o Anathema. Estranho, ainda era cedo, a
acústica do recinto estava boa e não parecia haver nenhum problema com o
equipamento de palco. Não passou dez minutos desse primeiro comunicado quando o
organizador volta ao palco para anunciar aquilo que já se pressentia: a banda principal
não se apresentará por problemas da casa de show com a vigilância sanitária da capital
paulista. Após certo pandemônio generalizado, com alguns gritando “quero meu
dinheiro de volta” e outros lamentando apaixonadamente a perda do show, conseguimos
sair de dentro da casa, não sem antes trocar umas palavras com os próprios integrantes
do Anathema, também pegos de surpresa pelo cancelamento em cima da hora. De fato,
o problema todo era da casa para com a burocracia municipal. Mas a noite estava apenas
começando e o melhor que tínhamos a fazer era sentar em um bar, falar mal do Hangar
110, reforçar nosso apreço pelo metal e botar a conversa em dia.
Estávamos em seis pessoas na mesa, cinco homens e uma mulher, todos
morando em São Paulo menos eu. Como conhecia apenas um deles e estava conhecendo
os outros naquela noite não demorou muito para que a conversa rumasse para uma
34

avaliação descompromissada das cenas paulista, curitibana e carioca, pois na época já


estava morando na capital fluminense. A conversa estava boa e como todos ali tinham
alguma inserção no underground, como membro de banda ou editor de zine, resolvo
arriscar e comento que minha mudança para o Rio se devia a minha intenção de realizar
um estudo antropológico sobre o metal extremo no Brasil. E, grata surpresa, eles se
mostraram extremamente interessados no assunto. O resto da noite foi gasto em cima
desse tópico.
Para a pesquisa, a conversa daquela noite foi como que um grupo de discussão
acerca do metal extremo e do underground nacionais. À medida que os tópicos surgiam
todos davam suas opiniões, balizavam com as outras, ponderavam sobre as variáveis e
raramente chegávamos a um consenso. Contudo, um ponto de vista, condensado na fala
que abre esse item, dita nessa noite, se cristalizou unânime entre nós. Participar do
underground do metal extremo nacional é, antes de tudo, uma responsabilidade.
Apesar de operar dentro de um dualismo prazer e dever, esforço e gozo, o ponto
de vista não defende que o underground é uma responsabilidade no sentido de ser um
fardo arduamente carregado pelos praticantes. Para eles, como fica claro na fala citada,
certamente há uma esfera de prazer em participar do underground, na convivência com
seus pares e no momento de distância dos “deveres da vida” que proporciona. Mas são
conseqüências secundárias diante de um outro prazer, maior e, esse sim, visado, aquele
resultante do “orgulho em fazer algo que eu acredito”. E se o que eles acreditam é o
underground em si, em tudo o que esse espaço, lócus e topos, representa, então cabe se
dedicar a ele, inserir-se em suas atividades efetivamente, ativamente. O prazer virá,
justamente, da sintonia entre ação e crença, algo que para eles é desarmônico no
mainstream. Esta é a responsabilidade embutida na participação e imbuída aos
participantes, aceita unanimemente na conversa daquela noite mas que surgiu em outros
momentos da pesquisa também, sob outras formas, como neste e-mail de resposta que
recebi de uma praticante, quando a perguntei se poderíamos conversar sobre seu gosto
pelo black metal:

Olha, não tenho tempo para isso, me desculpe. Mas posso te dizer uma coisa? Meu
interesse pelo metal negro não tem nada a ver com gosto. Não é só uma música, não é
só um gosto. É um destino que só a mim concerne. Espero que compreenda.
Sinceramente (...)

Novamente, é preciso ter em mente que tal postura é contrastante com a forma
que eles percebem o mainstream. Neste a música é apenas para ouvir, descolada de
35

qualquer outro significado que o prazer corpóreo, auditivo ou dançante. A relação que a
pessoa ai teria com a gravação, com o show, com os meios informativos, enfim, com
todas as práticas do mainstream, seria a de um consumidor passivo. Tudo que a pessoa
precisa fazer é pagar. Para ter sua música, sua “curtição”, ele não precisa montar o
show, escrever revistas ou ter sua própria banda. Daí sua passividade. Ele só recebe, não
faz. No mainstream, a música é apenas uma questão de gosto. Já no underground a
pessoa precisa ser um produtor ativo deste espaço. Ela precisa esforçar-se para mantê-
lo, ela precisa lutar por ele. Com efeito, já que ele não é uma questão de gosto, já que
praticá-lo é classificado pelos sues integrantes como um destino, então não basta apenas
estar lá em seus eventos. Como dizem seus praticantes, não basta “dar as caras” de vez
em quando. É preciso apoiar, é preciso fazer o underground.
Lembremos daquela definição inicial do underground: um conjunto de
atividades interessadas em produzir, circular, apresentar e escutar metal extremo no
Brasil. Consoante com essa definição, fazer o underground é se inserir de alguma
maneira nessas atividades. A pessoa estará fazendo isso, aos olhos e ouvidos de seus
praticantes, se participar de atividades que instalam e promovem a troca de metal
extremo.

Flyer de divulgação do Underground Fest, show de metal extremo realizado em Bangu,


zona oeste carioca, em 2006. No verso, o chamado de apoio ao metal nacional.
36

Show em Juiz de Fora, Minas Gerais, julho de 2005. Entrando no local, um


estúdio de ensaio que em algumas noites recebe shows, chega-se numa pequena sala,
ornamentada com pôsteres de filmes e shows, que serve como recepção. Além do
porteiro que cobra a entrada e revista as pessoas que chegam, ocupa o recinto um casal
jovem, ambos em preto. Estão sentados em frente a uma mesa coberta de cds, fitas k-7 e
flyers. Os primeiros e as segundas à venda e os terceiros de graça. O movimento está
tranqüilo, poucas pessoas circulam no local, a maioria provavelmente músicos e amigos
das seis bandas que tocam hoje à noite. Como de costume, o horário divulgado para o
início das apresentações já passou e não há nenhum sinal de que vão começar.
Os cds e fitas dispostos na mesa são todos nacionais, alguns com capas em preto
e branco, foscas, e outros com capas coloridas, brilhantes. A maioria das gravações
estampa em sua contracapa um nome, Nocturnal Age records. Pergunto ao casal que
cuida da mesa se este é o selo que lança essas gravações. O homem responde: “isso
mesmo. É o selo do baixista do Blasphemical Procreation, que toca hoje. Além do
material que ele lança, tem alguma coisa aqui que ele só distribui, um material do
nordeste, do pessoal do Suicide Apology records”. Passo os olhos nesse “material do
nordeste” e como são de bandas que nunca tinha ouvido, pergunto se eles me
recomendam algum. O homem continua respondendo: “depende do que você
curte...esse aqui é mais brutal, um death trash rápido...esse tem um vocal foda, o cara é
bom mesmo...esse já é mais técnico, muita guitarra trampada, black veloz e bem feito,
eu gosto muito”. Este último cd, com “muita guitarra trampada14” é o da banda
Daimoth, de Recife, Pernambuco. A descrição me apeteceu e resolvi ficar com ele15.
Enquanto pagava pelo cd e coletava exemplares dos flyers dispostos na mesa, chega
uma outra pessoa perto de nós e assim que ele vê o cd em minhas mãos diz:

– Ocê tá levando o Daimoth? Muito boa essa banda, vai gostar.


– Ah, é? Ele comentou que os caras são bons, não conheço muita coisa do nordeste
então resolvi ver qual é dos caras.
– É um pessoal novo, os bicho são empenhados mesmo. Eles gravaram em casa
com Pro-tools e ocê vai ver, tá muito boa a gravação.
– Você conhece os caras então?
– É, eu distribuo o material do selo deles, o Suicide Apology.
– Então é você quem cuida da Nocturnal Age?

14
Trampada, de trampo, uma corruptela de trabalho. Na descrição, a palavra indicava que as guitarras da
banda em questão eram virtuosas, com fraseados ao mesmo tempo velozes e cheios de notas.
15
O cd me custou doze reais. Valor de 2005.
37

– É, eu e o vocalista do Prophetical Age, de Sorocaba. A gente já lançou algum


material e estamos distribuindo o material do Suicide. Acabamos de lançar o cd da
minha banda o Blasphemical Procreation...é esse aqui.
– Já ouvi falar de vocês...legal.
– Deixa eu ir que daqui a pouco vamos tocar. Vai assistir o show?
– Vou sim, valeu pela dica. Bom show.

1.4 - Gravando o underground: EPs, LPs e demos

O cd do Daimoth em questão chama-se Inquisition, possui seis canções em um


total de dezesseis minutos e vinte e nove segundos. O produto em si oferece poucas
informações. Na capa um desenho em preto e branco de tom medieval, uma bruxa presa
em um tronco sendo preparada para queimar na fogueira, é sobreposto pelo logo16 da
banda no canto alto à direita e pelo nome da gravação centralizado embaixo. A
contracapa é uma foto da banda, também em preto e branco, com o logo em menor
tamanho inserido no topo. Mais abaixo o nome das seis canções, endereços de contato e
a logomarca da Suicide Apology Records. O cd veio lacrado em uma mini slipcase17.
Segundo o site da Suicide a tiragem do cd é de quinhentas cópias.

Capa e contracapa do cd Inquisition da banda pernambucana Daimoth.

O cd em questão é considerado um EP18, uma gravação de curta duração. Pelo


número de canções e pela duração ele difere de um cd completo, full length ou long
16
Logo ou logomarca é como as bandas chamam o desenho de seus respectivos nomes estilizados.
17
Slipcase é o nome comumente usado na indústria fonográfica para a caixa do cd, aquela mais utilizada,
de acrílico. Mini slipcase é uma caixa desse tipo em menor tamanho.
18
EP, sigla para extended play, termo da indústria fonográfica para uma gravação de curta duração,
geralmente contendo de quatro a seis canções. Diferente de um single, com uma ou duas canções no
máximo.
38

play, de longa duração. É uma gravação de uma banda só, ou seja, não é nem um split,
uma gravação dividida por duas bandas, muito menos uma coletânea, uma compilação
de canções de várias bandas. Pela sua produção “bem feita”, com capa impressa em
papel couché e cd prensado industrialmente, difere também de um cd ou fita reh19, uma
gravação de um ensaio que a banda resolve lançar, e um cd ou fita demo, de
demonstração.
Esses tipos de gravação, todos utilizados pelas bandas, diferem quanto ao tempo
de duração, ao número de bandas participantes e principalmente quanto a sua produção.
Compreenderemos melhor essas diferenças balizando-as com uma descrição do cd do
Daimoth.
O Inquisition foi gravado, como indicado no diálogo transcrito acima e depois
confirmado pela banda, com o Pro Tools. A principal característica desta forma de
gravação digital, lançada inicialmente em 1989, é que ela permite uma produção caseira
da música. Ela não demanda um estúdio de gravação (apesar de ser também muito
utilizada por profissionais), não requer outras tecnologias além de um computador e um
microfone e, apesar de ser um tanto complexo seu manuseio, pode ser gerenciada por
um não especialista. Basta que a pessoa tenha paciência para aprender a usá-la
bisbilhotando-a20.
Foi dessa forma caseira que o Daimoth gravou o Inquisition. Literalmente. Em
entrevista concedida por e-mail ao pesquisador, eles21 dizem:

Como foi o processo de gravação do Inquisition?


Nós melhoramos a acústica de um quarto da casa de um dos membros da banda colando
caixas de ovos na parede, colocamos o computador ali e começamos a gravar cada
instrumento separadamente usando uma guia22 gravada em estúdio de ensaio (...).

19
Reh de rehearsal, ensaio em inglês.
20
Essas informações foram retiradas do sítio eletrônico da companhia que produz o Pro Tools,
www.digidesign.com, e de uma conversa com Murilo Da Rós, produtor musical, músico e proprietário do
estúdio de gravação Clínica PRO Music em Curitiba. Nessa conversa Murilo também comentou sobre as
controvérsias emergidas entre músicos e produtores com o advento desta tecnologia. Segundo ele, a
principal revolução tecnológica deste programa, além de ser o primeiro a cumprir com os três processos
básicos da produção eletrônica da música (apreensão do som, mixagem e masterização), está na
possibilidade de gravar uma nota de cada vez para depois compilá-las em uma faixa só. O programa
corrigiria assim possíveis erros e deficiências de habilidade dos músicos. Apesar de estar sendo
largamente utilizado por profissionais e não profissionais da música, as possibilidades que o Pro Tools
oferece, segundo Murilo, permite que pessoas “sem talento e sem qualidade técnica” gravem e lancem
música.
21
As respostas foram assinadas pelo Daimoth. Nenhum integrante se identificou.
22
Guia é como as bandas chamam uma gravação com todos os instrumentos juntos das canções que serão
gravadas. No processo de gravação do cd em si cada instrumento é gravado separadamente e o músico
ouve a guia enquanto grava suas partes.
39

O processo de gravação foi difícil?


Nós nos batemos com o Pro Tools (...) mas depois que entendemos como funcionava o
programa, ai foi fácil (...) a bateria também deu mais trabalho. Como tínhamos que
microfonar cada parte dela, precisamos de um mesa de som de 8 canais e mais
microfones.

Mesmo sendo gravado dessa forma, na casa de um dos integrantes e com a


banda gerenciando todo o processo, eles gostaram do resultado:

O Inquisition é um EP (...) a banda devia ter um ano no máximo quando começamos as


gravações. E desde os primeiros ensaios sabíamos que nossa intenção era gravar algum
material. As músicas foram saindo e chegou um ponto que achamos que tínhamos um
bom material para gravar. Não é uma demo porque colocamos muito esforço na
gravação e tivemos muito cuidado no acabamento do cd, mas também não é um full (...)
é uma mostra do peso e da raiva que o Daimoth tem para despejar.

Notem a relação que a resposta faz. O Inquisition não é uma demo porque a
banda teve “muito cuidado no acabamento”. De fato, quando se compara o cd com uma
gravação considerada demo pela banda, percebe-se que Inquisition é tudo menos
“tosco”, adjetivo esse que Lalas, baixista do A Tribute to the Plague, usou em algumas
conversas que tivemos para classificar a qualidade da fita K-7 demo de sua banda:

A demo é muito tosca. A gravação foi ruim, a gente entrou no estúdio sem saber muito
bem o que ia fazer e como tínhamos pouca grana a gente teve dois dias pra gravar. E
ainda por cima copiamos as fitas em casa mesmo, no som de casa (...) é uma chiadera só
(...) mas valeu pra aprender.

A demo em questão, sem título, foi gravada e lançada em 1998. Contém duas
músicas num tempo total de doze minutos e quatorze segundos e foi gravada em
estúdio, analogicamente23 em uma mesa de oito canais. Apesar de não terem gostado do
resultado final da gravação a banda resolveu lançá-la, todavia timidamente:

A demo serviu mais para testar o som da banda, pra ouvir o que a gente tava compondo.
E como tinha uma moçada querendo ouvir o som fizemos umas cem cópias em casa
mesmo e vendemos nos shows, acho que por uns três reais (...).

Ambas as gravações foram totalmente financiadas pelas respectivas bandas e


ambas enfatizaram que não houve lucro na venda, no caso da demo “nem cobriu os
custos”. Aliás, essa é a tônica nas gravações do underground do metal extremo

23
Analógico, processo de gravação mecânico e não eletrônico. O som sai dos amplificadores direto para
uma fita master via microfone sem mediação de qualquer computador. A mixagem da fita, o processo de
equalização do volume de cada instrumento, pode ser feito tanto de modo analógico quanto digital. No
caso em questão, analógico.
40

brasileiro. As bandas financiam suas gravações por conta própria na grande maioria das
vezes.
Esse é o caso do Madrigal of Sorrow, segundo full length da banda curitibana
Sad Theory. Lançado em 2003, o cd possui onze canções e um vídeo. As gravações
aconteceram durante todo o ano de 2002 no estúdio Clínica PRO Music, em Curitiba, de
propriedade do já citado Murilo Da Rós. Pude acompanhar todo o processo de sua
feitura, desde os ensaios finais até o show de lançamento24.
Quando questiono porque o Madrigal é um full, Guga, o vocalista, me responde
que “as músicas se completam, uma chama a outra (...) do jeito que compomos não tem
como ouvir uma música só”. E Carlos, baixista, complementa: “é um cd completo
porque há um conceito que perpassa todas as músicas, um conceito trabalhado a partir
do livro de Baudelaire, As Flores do Mal”.
Olhando de fora o Madrigal of Sorrow não difere em nada de um cd da
Madonna ou do U2, por exemplo. Guardado em uma slipcase, o cd traz uma estampa de
flores verde e branca, as quais parecem ser extensões do desenho de um caule espinhoso
que ilustra a capa, denunciando o motivo baudelariano da produção. O encarte de onze
páginas começa com um poema de autoria do baixista da banda, evolui pelas letras das
canções entremeadas por fotos dos integrantes e mais desenhos de flores, terminando
em uma ficha técnica da gravação e nos agradecimentos. Os textos e as fotos estão
nítidos e, algo raro nas produções do underground, as canções possuem copyright25
identificado no encarte. O resultado da gravação, aqui também desempenhada através
do Pro Tools, é considerado tanto pelo produtor do disco, Murilo, quanto pela banda
como “muito bom”. Sem chiados e sem ruídos indesejáveis, para Guga as canções “têm
vida”. Este cd, como qualquer outro produto da indústria fonográfica, nada mais é do
que o cume de uma série de ações sincronizadas. No entanto, sua filiação underground
se descortina quando compreendemos a articulação dessas ações.

24
Todo esse processo durou dois anos, 2002 e 2003. Tanta convivência junto, além de fazer com que nos
tornássemos mais amigos do que já éramos antes, culminou com uma parceria entre o pesquisador e a
banda na composição de uma das canções da referida gravação, intitulada Blinding Sun.
25
Quando uma canção tem copyright, explica-me o guitarrista da banda, quer dizer que ela foi publicada
oficialmente. A banda manda para o órgão oficial que cuida desses trâmites, controlado pela escola de
música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, partitura e letra das canções, paga uma taxa e garante
os direitos de autoria sobre suas composições. De fato, a banda me cobrou uma taxa pela publicação da
letra que escrevi junto com eles. Aliás, a taxa que me cabia pagar, equivalente a minha parte de
composição no cd, era de 6,66 reais. O valor, significativo para um estilo de música que adora falar do
diabo, foi objeto de algumas brincadeiras entre nós.
41

A banda bancou a grande maioria das etapas de produção do cd. Quando não o
fez foi porque algum amigo de algum dos integrantes “deu uma força”. Totalizando
cinco mil reais, o custo da gravação, diárias do estúdio e mão de obra do produtor, foi
dividido entre os integrantes, mil duzentos e cinqüenta reais para cada um, pagos em
módicas parcelas durante todo o ano de 2002. As fotos do encarte foram feitas pelo
amigo Otávio, o qual, nos shows, também é ajudante de palco da banda. As artes do cd
e do encarte foram feitas pelo Juan II, irmão do guitarrista Juan I. O vídeo incluso no cd
também teve seus custos de produção pagos pela banda, a não ser a locação, sítio do
amigo Athos, também letrista de cinco canções, e o cachê da atriz Ana, a qual abriu mão
de seu pagamento em razão de ser o vídeo da banda do seu então namorado, o Guga.
Nos três casos apresentados, o financiamento das gravações foi custeado pelas
próprias bandas. É interessante notar que esse gasto, longe de ser um prejuízo, é
percebido pelas bandas como um dispêndio positivo. No discurso do Sad Theory, apesar
de enxergarem os custos da gravação como um mal necessário, não vêem outra forma
de produzir sua própria música: “fazer música própria no Brasil é assim mesmo, ou
você banca ou esqueça. Ninguém vai chegar pra você e bancar sua carreira”, comenta
Carlos. Guga complementa a resposta argumentado que “mesmo se alguém quisesse
bancar, algum empresário ou gravadora, teriam que deixar todo o processo nas nossas
mãos. Como isso não existe, sempre vão querer meter o dedo na sua música, deixa que a
gente banca por conta”.
O Sad Theory completava cinco anos de atividade na ocasião da gravação. Antes
dela, já haviam lançado uma demo e um primeiro full length. Todo esse trabalho prévio,
juntamente com os vários shows realizados por todo o país, emprestava à banda um
reconhecimento positivo entre os apreciadores de metal extremo no Brasil. Este gozo de
certa notoriedade levanta a possibilidade de acontecer com a banda aquilo que podemos
chamar de uma profissionalização, ou seja, de ter seu trabalho financiado por outros
atores e instituições da indústria fonográfica, como o empresário e a gravadora. No
entanto, se isso ocorresse, a banda diz que perderia aquilo que lhe é essencial, o controle
sobre sua música.
Para as bandas do underground do metal extremo brasileiro, profissionalização é
sinônimo de perda de controle sobre sua música. Não há possibilidade de fazer metal
extremo da maneira que querem, tendo o controle total da composição e da gravação, ao
mesmo tempo em que são financiados para tanto por outrem. O empresário ou a
gravadora invariavelmente demandaria alterações em algum desses processos, “meteria
42

o dedo”, e isso é um problema para eles. Portanto, é essencial garantir a autonomia


sobre todas as etapas de produção da sua música. Para tanto, arcar com os custos das
suas gravações é condição sine qua non, seja para bandas mais notórias e com “longo
tempo de estrada”, seja para os iniciantes.
Mesmo com menos tempo em atividade e um menor reconhecimento no
underground, a possibilidade de ter suas gravações financiadas por outrem também é
tratada pelas outras duas bandas. Contudo, elas a levantam no intuito de explicitar a
recusa de tal possibilidade. Lalas, baixista do Tribute, diz que “a princípio não vejo
nenhum problema em ter minha música bancada por alguém de fora da banda, mas não
é isso que buscamos (...) não é sobreviver de música que queremos e sim viver a
música”. Para “viver a música”, para fazer dela elemento fundamental de suas
existências, a banda “não está disposta a fazer concessões (...) se alguém quiser nos
pagar tem que ser porque acredita no nosso som e não porque vê alguma chance de
ganhar grana com a gente”. A recusa mais veemente quanto a tal possibilidade é feita
pelo Daimoth:

Como foi o financiamento da gravação do Inquisition?


A gravação saiu barata, não gastamos muito. Mas todos os gastos com a gravação foram
pagos pela banda.

A banda possui empresário ou teve ajuda para arcar com os custos da gravação?
Não e nem queremos. Nós aliamos nossas forças apenas com pessoas, selos e distros
que sejam totalmente underground. Desprezamos a fama e o lucro (doenças do
judaísmo e do cristianismo) e só queremos que os fiéis seguidores do underground
tenham acesso ao Inquisition.

Alterações nos processos de composição e gravação vindas de fora da banda é


um problema porque, como as respostas do Tribute e do Daimoth esclarecem, essas
mudanças teriam como intuito lucrar com o lançamento das gravações. O problema não
é a venda em si, mas a venda com o intuito único e exclusivo de lucrar. E aos seus olhos
essa é, sempre, a perspectiva do empresário e da gravadora, arautos da indústria
fonográfica. Alterações que na verdade são deturpações, pois nada mais vil para um
praticante do underground do que vender sua música por lucro. Se isso acontece se
perturba aquilo que os músicos dizem ser o mais essencial de suas vidas, aquilo que os
faz estarem no underground e os faz gastarem suas economias, a música, esta
reprodução em alta fidelidade de suas subjetividades.
43

1.5 - Distribuindo o underground: selos e distros

Tão importante para as bandas do underground quanto a etapa de inscrição da


música é o modo como farão o resultado dessas inscrições circularem. Após notarem
suas canções em meios tais como uma fita K-7, um cd ou mesmo um vinil, elas
precisam fazer com que esses produtos cheguem aos “fiéis seguidores do underground”.
No estágio de distribuição das gravações, diferentemente dos predecessores, a banda
precisa se aliar a agentes externos. Todavia, externos à banda, não ao underground.
Travei o diálogo transcrito acima com Yuri D’Ávila, um dos idealizadores da
Nocturnal Age Records. Yuri, quando morou no estado de São Paulo26 conheceu e ficou
amigo de Juliano Sferatu27, vocalista da banda Prophetic Age. Como é designer de
formação, Yuri fez alguns trabalhos para a banda de seu amigo. Desenvolveu os
projetos gráficos do sítio eletrônico, do cd-demo e do primeiro full length da banda. A
produtiva parceria entre Juliano e Yuri deu um passo adiante quando ambos resolveram
montar a Nocturnal Age Records. Como o próprio esclarece, a função desta instituição é
“(...) patrocinar em parceria com bandas, a prensagem de trabalhos gravados (...)28”. A
banda paga a gravação e eles arcam com os custos da prensagem do cd. Nesta parceria,
além de ter os custos da prensagem compartilhados, a banda se beneficia com a
possibilidade de ter sua gravação distribuída, seja em sua própria localidade seja em
cidades e regiões que por si mesma teria muita dificuldade em atingir. Eles, por sua vez,
recebem em troca certa quantia de cópias para serem vendidas.
Arcando com todos ou grande parte dos custos da prensagem, podem ser
considerados responsáveis pelo lançamento da gravação, ou seja, um selo. Com efeito, o
Nocturnal Age é o selo do segundo full length da banda santista de death metal In Hell e
do debut29 da também santista banda de black metal Empire of Souls, dentre outros, pois
arcou com toda a prensagem dessas gravações.
Yuri ainda nos diz que, com o passar do tempo a Nocturnal Age “(...) firmou
parcerias com outros selos e passou a distribuir outros lançamentos além de seus
próprios (...)”. Essas parcerias compreendiam uma ajuda no financiamento da
prensagem do lançamento de um outro selo ou simplesmente a distribuição dos

26
Yuri não identifica a cidade, mas certamente é Sorocaba, cidade da banda Prophetic Age e de Juliano.
27
Muito provavelmente o “sobrenome” de Juliano é seu codinome como frontman da banda.
28
Todas essas informações foram coletadas tanto no show em Juiz de Fora quanto em alguns e-mails
posteriormente trocados com Yuri.
29
Debut: primeiro full length de uma banda. Se lançaram alguma gravação antes do seu debut foi uma
demo ou uma fita-reh.
44

lançamentos destes na suas regiões, Juiz de Fora, Minas Gerais, onde Yuri atualmente
mora, e Sorocaba, São Paulo, cidade onde habita Juliano. Nestas situações onde a
Nocturnal Age não é mais um selo, principal financiador e distribuidor de um
lançamento, ela é um distro30, distribuidor dos lançamentos de outros selos. Sendo
assim, Yuri entende que a Nocturnal Age Records pode ser considerada um selo e um
distro.
As diferenciações entre um selo e um distro ficam mais nítidas se as percebemos
na dinâmica da parceria entre a banda Daimoth, o Suicide Apology Records, ambos de
Recife, Pernambuco, e o Nocturnal Age Records, situado ao mesmo tempo em Juiz de
Fora e Sorocaba, no contexto de lançamento do Inquisition. A banda arcou com a
gravação, a Suicide prensou o cd e o vende no nordeste31 e a Nocturnal o vende no
sudeste. Logo, a Suicide é o selo, responsável pelo lançamento, e a Nocturnal seu distro
oficial no sudeste. Diferenciação essa estampada no próprio cd:

Os selos e os distros são os agentes externos aos quais, normalmente, uma banda
do underground se alia no intuito de fazer com que suas gravações circulem em um
perímetro o mais amplo possível. Incansáveis copiadores e sagazes vendedores, os selos
e os distros são espécies de links do underground. Clicando em seus ícones, tem-se
acesso a uma série de outras possíveis relações dentro deste espaço. Os selos e os
distros entendem que a matéria prima do seu negócio, a distribuição, muito mais do que
“boas bandas”, são os contatos.

30
Diminutivo de distribuidor. Vale lembrar que não encontrei gravadoras underground, ou seja,
instituições que financiam a gravação das bandas. Esta etapa da produção de um cd, como vimos, fica
totalmente a cargo das bandas.
31
A Suicide também oferece o cd em seu sítio eletrônico.
45

Edson é o idealizador, proprietário e único funcionário da Mountain


distro/prod32, baseada em Nilópolis, Rio de Janeiro. Conhecemo-nos em um show
realizado no clube Mackenzie, Méier, zona norte do Rio, em abril de 2006. Em uma
ante-sala, na frente do salão onde as apresentações aconteciam, Edson e mais quatro
pessoas expunham seus materiais à venda, cada um com sua mesa própria. Fiquei
surpreso com a quantidade de cds, fitas, vinis e zines que Edson estava ali expondo: “e
olha que eu nem trouxe todo meu material, aqui só tem uma parte”. Pergunto como
conseguiu todo aquele material: “a maioria é eu mesmo que lanço. Faço o contato com a
banda, fechamos um acordo na porcentagem das vendas e lanço o material. O que tenho
aqui que não lancei, é material de outros produtores que trocaram comigo seu material
pelo meu”. Ele me dá um catálogo do seu acervo, me repassa seu endereço de e-mail e
acabo comprando alguns zines com ele.
Impressiona a qualquer praticante do underground a quantidade de gravações e
zines que Edson disponibiliza. Tamanho acervo se deve a duas razões. Primeiro, como
pude atestar em conversas subseqüentes que tive com Edson, ele não só é um fiel
seguidor como também fiel promotor do underground. A Mountain é sua única
atividade, “é meu trabalho”, e ele passa a maior parte do dia estimulando seus contatos:
respondendo cartas e e-mails, ouvindo gravações, convidando bandas para lançarem
seus materiais com ele, oferecendo parcerias para outros selos e distros e atividades
afins. Segundo, suas gravações não são prensadas industrialmente como são aquelas
lançadas e distribuídas pela Nocturnal. Elas são gravações caseiras, feitas no “som de
casa”, copiadas em fitas e cds virgens, desses que compramos em supermercados, lojas
de informática e camelôs. A quantidade de bandas fazendo música própria no
underground do metal extremo brasileiro é assustadoramente grande e Edson tem a
capacidade de aglutinar boa parte dessa produção em um só catalogo:

32
Prod de produção ou produtor. Os selos e distros geralmente são denominados, em seus “nomes
fantasias”, por prod ou records.
46

Frente do catálogo da Mountain distro/prod.


47

Verso do catálogo. Cada linha refere-se a uma gravação disponibilizada pela Mountain.

A Mountain distro/prod, assim como a Nocturnal Age Records, é tanto selo


quando distro. Lança gravações, arcando com os custos da prensagem, e distribui
gravações lançadas por outros selos e bandas. Podemos dizer, a partir dos dados
48

auferidos em ambos os casos, que os termos selo e distro, antes de denominarem


instituições diferenciadas, referem-se muito mais a atividades mais ou menos distintas,
executadas por uma instituição só. O que determina a condição de selo ou distro é, na
verdade, a porcentagem paga na prensagem da gravação e a atuação em sua
distribuição. As combinações que podem surgir daí são as mais variadas. Por exemplo:
uma gravação pode ter vários distros oficiais, como é o caso do último lançamento da
banda paulistana de black metal Ocultan. O Profanation, lançado em 2007, possui sete
distribuidores oficiais identificados na contracapa do cd, dentre eles nosso Nocturnal
Age. Ou o selo da gravação também é seu único distro, como é o caso do Madrigal of
Sorrow da curitibana Sad Theory. A paulista Die Hard Records lançou e vende o cd. E
um distro pode distribuir gravações de vários selos, como a carioca Mountain do Edson
que distribui muito metal extremo nordestino oriundo dos mais diversos selos.
Muitas vezes essas instituições não restringem suas atuações aos trabalhos de
prensagem e distribuição de gravações. Vão além, impulsionando o metal extremo
underground por outras frentes promocionais. Essa é a postura do fortalezense
Hioderman e seu complexo underground, o Anaites ZDP. O Anaites pode ser
considerado um multi-complexo cultural do underground nacional, ou se preferir em
termos althusserianos, verdadeiro aparelho ideológico do metal extremo brasileiro.
Além de lançar e distribuir gravações, selo e distro, Hioderman lança compilações de
bandas. Seu Anaites Compilation chegou na terceira edição em 2006. A compilação,
dupla e veiculada em cd virgem, assim como as cópias vendidas por Edson, abriga
canções de trinta e quatro bandas nacionais e estrangeiras, todas representantes de
alguma verve do metal extremo. Além da compilação, Hioderman edita o Anaites zine,
na décima edição em 2006. Como seu flyer anuncia, são quarenta páginas de
“divulgação extrema do underground”. Folheando o zine, descobrimos que Hioderman
não só o editou como fez todas as entrevistas contidas no “artefato”.
Além de compilações e zines, essas instituições também organizam shows. A
“profanação sangrenta”, show com seis bandas realizado em 2005 em Santos, foi
organizada pela própria Nocturnal Age. Os responsáveis por essas instituições quase
sempre são eles mesmos integrantes de bandas do underground do metal extremo
nacional. Juliano da Nocturnal Age, toca no Prophetic Age e seu sócio, Yuri, toca baixo
nas Blasphemical Procreation e Sepulcro.
49

Flyer de divulgação dos produtos da Anaites-distro e cartaz da “profanação


sangrenta” organizada pela Nocturnal Age. No canto inferior direito do cartaz, a
logo da instituição.

Muito mais do que prensar e distribuir gravações, essas instituições divulgam, no


sentido forte deste verbo, o metal extremo underground. Seus eventos, produções, zines
e gravações engendram uma circulação das pessoas e dos produtos underground por
todo o Brasil. Portanto, como percebemos em suas atuações, é plenamente factível
reportarmo-nos a um underground nacional. Apesar de haver cenas locais específicas,
com pessoas peculiares, bares e casas de shows referenciais e histórias e “causos”
conhecidos só ai, o underground enquanto um espaço de produção, apresentação e
principalmente circulação de música, músicos e público, funciona a nível nacional.
Circulação movimentada, articulada por essas vias agitadas e populosas que são essas
instituições.
Daí a importância dos contatos. Essas instituições fazem o underground
construindo suas vias de ligação, tecendo-o por cartas, e-mails, gravações feitas no
nordeste, prensadas em São Paulo e adquiridas por um curitibano em Juiz de Fora. Sem
os caminhos abertos e mantidos por estas instituições bandeirantes, o underground não
seria apenas sossegado, calmo e desabitado. Ele simplesmente não existiria.
50

1.6 - Vendendo o underground: cartas, lojas e shows

Vimos no item anterior como as atividades de distribuição, divulgação e


promoção das gravações underground engendram um circuito de trocas a nível nacional
baseado nos contatos. Contudo, não podemos esquecer que elas ativam tal circuito e
estabelecem tais contatos no interesse de tornar as bandas conhecidas perante seu
público, como se fossem o marketing do underground. Como qualquer prática
publicitária, essas atividades só terão êxito se alcançarem seu objetivo final, a venda.
Nesse sentido, podemos tomar as instituições analisadas anteriormente tanto como
agências de publicidade quanto seus clientes, uma vez que elas promovem os produtos
underground ao mesmo tempo em que os disponibilizam à venda. Já perpassamos a
primeira destas atividades. Vejamos agora como se realiza a venda no underground.
Todas as instituições analisadas anteriormente vendem seus produtos pelo
correio. Desde que se tenha conhecimento delas, o mecanismo é simples. A pessoa os
contata por carta ou e-mail dizendo em quais produtos está interessado. Num segundo
momento, eles repassam o valor total da compra indicando forma de pagamento,
geralmente depósito bancário, algumas vezes pedindo que o valor seja “escondido no
envelope” e raramente oferecendo possibilidades de pagamento por cartão de crédito.
Efetuado o pagamento, é só esperar os produtos chegarem ao endereço indicado.
Adquiri alguns produtos underground dessa forma. Com Hioderman,
proprietário do Anaites, comprei algumas de suas compilações e zines. Contatei-o por e-
mail, através do endereço eletrônico indicado em seu sítio eletrônico, dizendo quais
produtos estava interessado. No mesmo dia ele me repassou o valor total indicando
forma de pagamento por depósito bancário e pedindo que lhe informasse quando o
montante fosse depositado. Tudo feito, recebo por e-mail sua confirmação de que os
produtos tinham sido mandados por correio em carta registrada. Em dois dias, um
envelope com tudo que tinha pedido mais uma série de flyers chega ao meu endereço.
A venda por correios é um desdobramento de uma prática que, num passado
recente, foi muito comum entre os praticantes do underground, a troca de fitas K-7.
Muitos contam que conheceram suas bandas favoritas de metal através de um disco que
um amigo teria emprestado ou pela permuta de reproduções caseiras dos discos em fitas
K-7. Em alguns zines dessa época era comum a publicação de anúncios de pessoas
querendo trocar “listas de fitas”. Trocavam por carta suas listas e se ambos se
interessavam por algum material que o outro tinha realizavam a permuta. E como diz
51

Maurício Noboro: “como não dava pra gravar disco em disco, grava em fita K-7
mesmo”. Mesmo atualmente, principalmente entre os apreciadores de black metal,
alguns praticantes gabam-se de ter “mais de quinhentas fitas K-7 só de material
underground33”. Foram justamente esses ávidos colecionadores de fitas os primeiros a
vendê-las por correio. Count Butcher, praticante de longa data residente em Blumenau,
Santa Catarina, contou-me que começou a vender fitas no final dos anos 80 porque:

(...) cara, eu já tinha tudo, todas as listas que mandavam eu já tinha tudo, mas a galera
não tinha o que eu tinha e ficavam pedindo pra que eu liberasse o material (...) ai eu
comecei a pedir uma ajuda no custo da fita. A galera mandava grana na carta mesmo e
eu mandava a fita pra eles.

O comércio do “Conde Açougueiro” deu tão certo que atualmente ele é


proprietário da única loja de metal da sua cidade: “isso é legal, mas também é chato
porque tenho que vender bandinha melódica pros posers34 que vem aqui”.
Mas Conde também vende produtos do underground do metal extremo nacional,
assim como toda loja especializada em heavy metal do país. São nessas lojas que tanto
os selos e distros quanto as bandas encontram uma segunda maneira de vender seus
produtos. Em quase todas as cidades que pude visitar durante a pesquisa encontrei uma
loja especializada em vender produtos heavy metal. Recintos pequenos, equipados com
mostruários de cds, cabides de roupas e algumas prateleiras para os discos de vinil e
revistas.
Não existem lojas underground e sim lojas especializadas em heavy metal nas
quais, como indica a pejorativa frase de Conde, se vendem produtos heavy metal em
geral. Desde gravações e revistas consideradas mainstream até os produtos dos selos,
distros e bandas underground. Vale a pena ouvirmos Conde um pouco mais para
entendermos como se dão as relações entre os praticantes do underground com as lojas
especializadas:

33
Kahn-Harris defende que a prática de trocar fitas é comum no underground do metal extremo mundial
(2007, pp. 79-81).
34
Com “bandinhas melódicas” conde refere-se às bandas do metal mainstream, as quais, segundo ele,
“seriam mais voltadas à melodia do que ao peso”. Poser é um termo muito comum entre os fãs de metal
em geral. A palavra adjetiva alguém que se preocupa mais com a imagem, com as roupas, com o look do
que com a música e os sentimentos que ela proporcionaria. O poser só faz pose, diferentemente de seu
antônimo, o headbanger, que sente a música.
52

Esse pessoal que vende bandinha melódica tá sempre mandando catálogo, oferecendo
produto sem eu pedir (...) os caras fazem de tudo pra vender. Eu só compro deles
quando é lançamento de banda grande que vai vender muito ou banda clássica (...) Iron,
Black, Judas, essas bandas tem que ter sempre na loja. Quando é metal extremo
nacional ai é diferente (...) eu tenho que ir atrás e descobrir o que tá rolando e mesmo
assim muitos nem mandam (...) já tive que pedir pra moçada de banda falar com eles
que pode mandar que aqui é loja real.

Algumas bandas que gravaram e lançaram por conta própria suas gravações
deixam algumas cópias nas lojas de suas cidades para venda. Loja e banda chegam num
acordo quanto ao valor do produto e a porcentagem que ficará com a primeira e o cd vai
para a gôndola. Todavia, com os selos e distros é diferente. O interesse de comercializar
esses produtos deve partir do proprietário da loja, pois dificilmente um selo oferece seus
produtos por iniciativa própria. O que me surpreendeu na loja do Conde foi a grande
quantidade de produtos underground que raramente encontrava em outras lojas do país.
Foram necessários dez minutos de conversa para entender as razões dessa
especificidade: “cara, eu luto pelo underground faz vinte anos, brutalidade sonora é
minha vida e a minha loja é uma extensão disso tudo”. Conde mostrou interesse em
vender produtos underground e, o mais importante, foi aceito como vendedor desses
produtos justamente por fazer parte daquele circuito de contatos formulador deste
espaço. Ele é um praticante do underground assim como Juliano Sferatu, Edson e
Hioderman. Tão praticante que até codinome tem.
Os argumentos de Conde ressoam nos de Yuri. Indagado se a Nocturnal Age
vende seus produtos para lojas, responde que:

(...) a princípio sim. Mas primeiro, tem que ser loja de heavy metal. Segundo,
procuramos saber como funciona a loja, quais produtos ela vende. Terceiro, procuramos
referências sobre o proprietário, geralmente através de conhecidos que moram na cidade
da loja. Após termos essas informações decidimos se venderemos ou não. Loja grande,
estilo Saraiva, nem pensar, fora de questão.

É interessante notar essa dinâmica no local onde mais se comercializa heavy


metal no Brasil, nas galerias do rock, localizadas no centro de São Paulo capital, entre a
avenida São João e a rua 24 de maio. Como são quase cinqüenta lojas uma ao lado da
outra, percebemos nitidamente que aquelas que vendem produtos underground são de
propriedade de pessoas conectadas às atividades deste espaço. Por exemplo: a
Multilation vende. Com efeito, seu proprietário não só é praticante como também fez de
sua loja selo: a Multilation Records. Aliás, Mauro Flores, praticante que teve seu
discurso analisado no início deste capítulo, trabalha lá. Quase ao lado da Multilation
53

está a Rock Animal que não vende produtos underground. Seu proprietário promoveu
shows de bandas consideradas mainstream pelos nossos informantes. Atrás do balcão
desta loja vemos uma foto do proprietário com os integrantes da banda norte-americana
Kiss, tirada em ocasião do seu show em São Paulo em 1999. Ora, ninguém representa
melhor o metal mainstream aos ouvidos dos praticantes do underground do metal
extremo brasileiro do que o Kiss e o também norte-americano Metallica.
Seria difícil traduzir as vendas do underground em números. Porém, sua
principal modalidade de comércio não é aquela feita por correio ou nas lojas
especializadas. São importantes, mas não se comparam com as vendas feitas nos shows.
A apresentação ao vivo das bandas é o principal momento deste espaço. Mais
adiante teremos melhores condições para tratar de tal centralidade. Por ora, podemos
visualizá-la na forma como a troca acontece no âmbito deste evento. A venda no show
não necessita das informações prévias que a venda por carta demanda. Ela também
desarma as possíveis desconfianças de um praticante do underground em vender seus
produtos para uma loja. Aos olhos de um praticante se você está no show é “natural”
que você tenha alguma conexão com as atividades e eventos do underground. Logo, as
trocas cuidadosas e desconfiadas das cartas e das lojas se transformam, no show, em
trocas despreocupadas e garantidas.
As mesas com produtos à venda fazem parte da paisagem de um show.
Verdadeiras feiras do underground, essas mesas são montadas pelos responsáveis dos
selos e distros ou por qualquer um que queira vender gravações, zines e camisetas.
Antes das apresentações começarem ou no intervalo de uma banda para a outra, o
público se amontoa nelas querendo ver o que o Edson trouxe dessa vez, qual é o novo
lançamento da Suicide Apology ou que vinil da Genocide Productions o Yuri trouxe.
Foram em conversas nessas mesas que soube da existência de Hioderman e de seu
complexo underground. Foi em uma delas que adquiri o cd do Daimoth e conheci Yuri
e seu Nocturnal Age Records, assim como Edson e seu Mountain distro/prod. Ficamos
sabendo de uma banda ou de um recente lançamento e conversamos com quem produz e
distribui essas gravações. Trocam-se, sobretudo, informações. Como esses shows não
acontecem todo dia e como sabemos que aquelas gravações são raras e difíceis de
encontrar, gastamos mais do que o previsto.
Durante o ano de 2002, os curitibanos do Sad Theory, além de gravar seu
segundo disco completo, fizeram alguns shows em cidades próximas. Um deles
aconteceu em Ponta Grossa, cento e cinqüenta quilômetros ao norte da capital
54

paranaense. Transcrevo abaixo alguns trechos do meu caderno de campo escritos em


ocasião deste evento:

Onze horas da manhã de um sábado de sol e cá estamos na Van alugada indo para Ponta
Grossa. Além de mim, do motorista e da banda, acompanham-nos Raquel e Ester,
respectivamente namoradas do Juan e do Carlos, Athos, André, Otávio e Jaison, amigos
da banda. O evento vai ser numa casa de shows nova, comenta Guga em voz alta: “além
de nós tocam uma banda de Cascavel, outra de São Paulo e a banda do Roger”. Este
último, conhecido de Guga, foi quem convidou o Sad Theory.
Somos os primeiros a chegar. “O pessoal de Cascavel já tá chegando e os caras de São
Paulo chegam mais à noite” informa Roger. Tudo estava por fazer, desde a montagem
do palco até a organização do bar. O tradicional mutirão do show entra em cena.
Lá pelo fim da tarde chega “o pessoal de cascavel”. Além dos integrantes da banda, um
pequeno séqüito veio do oeste paranaense, também formado por namoradas e amigos.
Algumas horas depois “os caras de São Paulo” também aparecem com seus amigos e
namoradas.
Nenhuma das bandas está recebendo cachê pelos shows de logo mais. Roger,
organizador, garantiu equipamento de amplificação e bar livre para todas as bandas.
Elas, por sua vez, precisariam trazer instrumentos próprios e arcariam com o
deslocamento até Ponta Grossa (O Sad Theory dividiu os custos da Van com seus
amigos e namoradas). Mas em retribuição ao convite aceito, Roger ofereceu para todas
as caravanas um jantar em um rodízio de pizza.
Essa parte foi interessante, não pela pizza, mas pelas conversas entre os representantes
de cada cidade. Intensa troca de informações sobre as cenas locais, quem saiu de qual
banda, quem está gravando e quais shows vão rolar. Guga é sempre o melhor do Sad
Theory nesses momentos. Por isso ele é o encarregado de realizar a tradicional troca de
cds. Deu para cada banda um cd do ST e em troca recebeu os cds delas. Eu, como não
fazia parte dos oficiantes da caravana de Curitiba, a banda, comprei os cds dos
paulistanos e cascavelenses. A banda do Roger ainda não tinha gravado nada.
Durante o show todas as bandas colocaram seus cds à venda na sala de entrada da casa.
Não deu outra: tudo vendido. Conversando com Juan sobre o sucesso das vendas ele
diz: “é por isso que a gente toca de graça, não só pra vender cds (...) nesses shows fora
de Curitiba divulgamos a banda e abrimos chances de tocar em outras cidades. Os caras
de Cascavel acabaram de convidar a gente pra ir tocar lá daqui alguns meses”.

Raramente um show underground se resume a apresentação de uma só banda. A


regra é uma composição de várias bandas provindas das imediações e em alguns casos,
vindas de mais longe. Como as bandas não recebem cachê e, por outro lado, o
organizador não lucra muito com esses shows, arma-se um conjunto de retribuições
entre ambas as partes.
O organizador sempre deixa as bandas venderem suas gravações nos shows. Se
essas vendas provêm à banda algum retorno por todo o gasto de ter se deslocado até a
cidade do show, ela também é interessante para o organizador, tornando seu evento
mais estimulante para o público. No cartaz do show de Ponta Grossa, Roger colocou a
seguinte frase: “sorteio de tatuagens e piercings, venda de cds das bandas”.
55

Por outro lado, como essas bandas chegam no dia da apresentação e vão embora
logo após o show acabar, o organizador oferece alimentação para as bandas. No show
em Ponta Grossa, o Sad Theory resolveu, durante o jantar, dar um cd para Roger
justamente por ter achado “muito legal” da parte dele oferecer aquele banquete de
pizzas para nós todos. Afinal, como defendeu Carlos, “ele não tem nenhuma obrigação
de pagar por isso aqui”.
Retribuições como essas não acontecem apenas nas relações da banda com o
organizador. Entre as bandas, há o costume de trocar gravações e se convidarem para
tocar em shows nas suas respectivas cidades. Podemos encontrar essas prestações e
contra-prestações até mesmo entre a banda e o grupo de amigos que os acompanha. A
divisão dos custos de deslocamento entre todos é retribuída pela banda por entrada livre
no show, algumas bebidas de graça e talvez o melhor, o agradecimento pelo “apoio”
feito no palco. No show de Ponta Grossa, por exemplo, Guga gritou algumas vezes, no
intervalo entre uma canção e outra, o nome de todos nós, dizendo que éramos “foda,
vocês são foda, valeu mesmo por toda a força”.
Financeiramente falando, certamente essas retribuições ocupam uma função
compensatória. Em um evento que demanda gastos expressivos e pouco retorno
financeiro, todos os implicados procuram aliviar as despesas uns dos outros. “Dão uma
força”, contribuindo o quanto podem e fazendo aquilo que está ao seu alcance.
Porém o equilíbrio das expensas não é a única função dessas retribuições. Juan
nos dá a chave para compreender o que mais elas articulam: “(...) divulgamos a banda e
abrimos chances (...)”.
Acima identificamos o underground como um sistema de circulação de pessoas
e produtos a nível nacional tanto formulado quanto estimulado pelos contatos. Ora,
esses contatos são desdobramentos dos encontros acontecidos nos shows. Esses eventos
são como as ilhas no Kula descrito por Malinowski (1983 [1922]). Grupos provindos de
diversas regiões do país se encontram para tocar e ouvir metal extremo underground.
Situação ideal no entendimento de Juan para divulgar sua banda. Divulgar, novamente,
no sentido forte deste verbo: vendendo gravações, firmando shows e acordos de
lançamento em outras regiões, apresentando suas composições ao vivo, em um termo,
mostrando que a banda está ativa e “batalhando” pelo seu devido lugar. A princípio,
quem está presente, seja músico ou público, está ali “batalhando” pelo underground.
Mas essa suposição precisa se transformar em uma confirmação. O encontro
precisa se transformar em contato. Daí a eficácia das retribuições. Recebendo e
56

aceitando o convite para tocar no show, oferecendo banquetes de pizza e retribuindo


com cds e uma “apresentação fudida”, os agentes do underground demonstram que
estão compromissados com aquele espaço, que estão dispostos a “manter a chama do
underground acessa”. Os encontros furtivos dos shows se tornam contatos que “abrirão
chances”. A banda poderá tocar em outras cidades e ter sua gravação distribuída em
locais onde jamais algum integrante esteve. O organizador terá prestígio entre o público,
pois seu evento “deu certo”, e ganhará confiança entre as bandas, pois não se mostrou
um “mercenário que só pensa em grana”. Os amigos, as namoradas (os) e os músicos
que não tocaram naquele evento, aos quais coletivamente podemos nos reportar, por
falta de outra palavra, como público, tiveram uma ótima noite. “Deram uma força” para
as bandas de seus amigos, conseguiram comprar gravações raras a muito procuradas,
ouviram um “som brutal” e colheram dados para suas pesquisas.
É assim que as compras e vendas efetuadas no show se tornam preeminentes em
relação àquelas realizadas nas lojas ou pelo correio. Fazendo parte do todo um sistema
de arregimentação de contatos, elas extrapolam sua condição de transações financeiras
do tipo mercadoria pelo seu equivalente em dinheiro.

1.7 - Economia underground: comércio?

A partir dos três itens anteriores podemos concluir que as etapas de gravação,
distribuição e venda da música, em conjunto, formam uma economia. Um sistema de
circulação de bens materiais produzidos por músicos, distribuídos por intermediários e
consumidos pelo público. Até ai, economia ordinária que se distingue muito pouco,
diriam os economistas, de outros modos de produção, como a atividade petrolífera ou a
de farinha de trigo, por exemplo. A não ser as especificidades que a manufatura requer,
o processo que nela resulta é idêntico nestas três economias, qual seja, a conformação
de um mercado a partir da produção, distribuição e consumo de um dado produto.
Não há nada de errado em definir o underground do metal extremo brasileiro
como um mercado. Seguramente ele pode ser interpretado como um coletivo
constituído por meio de relações de troca. Poderíamos até mesmo traçar as oscilações
das ofertas e demandas que o pressionam. Afinal, dentro dos limites do underground, e
em alguma medida estabelecendo suas demarcações, acontece um comércio.
Mas a imprecisão de tal definição advirá se adjetivarmos este comércio, esta
forma de troca, da mesma maneira que os economistas fazem. Pois comércio,
57

crescimento e lucro parecem ser sinônimos para esta doxa. Como argumenta Polanyi
(1980), a linguagem dos economistas estende a qualquer atividade de troca que suas
penas encontram os motivos quase instintivos do constante crescimento e de um lucro
sempre maior. Os economistas tendem a definir toda troca como troca capitalista.
De modo algum se pretende aqui apontar as “falácias” do capitalismo e muito
menos questionar epistemologia e método dos economistas. Mas, para sermos
meticulosos na descrição do nosso tema, precisamos reconhecer, de saída, que nem toda
troca envolvendo transações financeiras necessariamente é impelida por interesses de
crescimento e lucro. Como tão bem nos mostrou Mauss (2003), só compreenderemos o
significado das trocas se as percebemos em meio aos contextos nos quais se realizam.
De modo que, a partir do já exposto, podemos sim nos reportar a uma economia do
underground. Ela é o resultado de um processo baseado nas etapas de produção,
distribuição e venda. Os próprios praticantes reconhecem tal condição. Reconhecem tão
bem que eles mesmos enfatizam que o comércio underground não é um comércio como
qualquer outro.
Na quarta edição do Dark Gates zine, de Juiz de Fora, Minas Gerais, lemos na
entrevista dada por Brucolaques, membro da banda de black metal Saevus, da mesma
cidade, o seguinte trecho. Reproduzo partes da pergunta e da resposta:

(...) Existe uma preocupação de para quem e onde divulgar o material da banda?
Você acha que é possível conciliar a ideologia e postura da banda com uma
gravadora grande e capitalista, por exemplo? Ou preferem trabalhar com uma
gravadora menor, porém restrita a seus ideais como a South Satanic Terrorists?
Brucolaques: (...) Nós procuramos divulgar nossos materiais a pessoas que realmente
façam valer a pena ter os mesmos em mãos. Inclusive, quando negociamos com alguma
distribuidora a divulgação de nossos materiais em seu respectivo catálogo, temos a
preocupação em saber se os mesmos estão indo em boas mãos e se depois irão seguir
para boas mãos também. Quanto a assinar com um selo comercial, sem chance! Não
faria sentindo se assinássemos com um selo que representa tudo contra o que lutamos.
Os princípios do black metal estão distantes de vínculos direcionantes e mercantis (...).

Os discursos das bandas de black metal em especial são normalmente radicais e


absolutos. A postura é apresentada como a única possível. Se houver alguma abertura,
alguma relativização, as ações estão fadadas ao fracasso. Mas, sob essa caricata retórica,
o trecho nos aponta uma característica da circulação das gravações de todos os estilos de
metal extremo expressos no underground. Ela não pode extravasar os limites deste
espaço.
O músico quer divulgar as gravações da sua banda. Ele quer negociar com selos
e colocar seu material em circulação. Sabe que suas gravações precisam ser vendidas,
58

que um valor em dinheiro será dado em troca por elas. Não é esse seu problema e sim
como e com quem isso será feito.
As “boas mãos” às quais o entrevistado se refere são aquelas dos responsáveis
pelos selos e distros tratados anteriormente. As pessoas para quem “realmente” vão
fazer valer a pena divulgar o material da banda são aqueles praticantes que efetivamente
demonstraram seu comprometimento e apoio para com as atividades da cena. Ou seja,
as pessoas e instituições para as quais a banda procura divulgar suas gravações são essas
do underground, única e exclusivamente. Já o comércio e o mercantilismo
“direcionantes” tão veementemente refutados seriam os modos de circulação do
mainstream, capitalista, direcionado exclusivamente ao lucro, o qual, como o
entrevistador levanta, é inconciliável com postura e ideal da banda.
Os agentes do underground demonstram um severo zelo quanto ao âmbito de
circulação de suas gravações. Pelos seus discursos, as gravações não podem ser
produzidas por “grandes” gravadoras assim como não podem ser comercializadas em
“grandes” lojas. O acesso a elas é restrito, apenas permitido aos “fiéis seguidores” do
underground.
É importante ressaltar que estamos tocando em ponto delicado da pesquisa. O
discurso dos praticantes é pavoneado, defendendo uma postura radicalmente hostil ao
“mercado” e ao “comércio”. Entrevistas como a de Brucolaques estão recheadas de
afirmações como a que transparece no trecho citado. Sente-se certa competição interna
entre eles, cada um tentando ser mais eloqüente e incisivo no extremismo com o qual
negam o “lucro” e a circulação irrestrita de suas gravações. Interna pois essas
afirmações, de fato, não são feitas em “grandes” revistas ou em meios de comunicação
massivos. São feitas de praticante para praticante, veiculadas em zines, conversas de
shows e nas apresentações das bandas, quando estão em poder do microfone. Além do
trecho citado, lembremos aqui dos dizeres dos integrantes do Daimoth, explicando que a
tiragem de quinhentas cópias do Inquisiton se deve as suas vontades de que o mesmo
seja apenas para os “fiéis seguidores” do underground e as condições que Yuri diz
demandar das lojas que querem vender as gravações da Nocturnal Age. O proprietário
precisa ter “referências”.
Podemos elencar uma série de fatos que expõem a favor dos praticantes,
confirmando que essas gravações circulam apenas no perímetro underground. Como
observado anteriormente, essas gravações são financiadas pelas próprias bandas. Não há
financiamento externo nas suas produções. E não adianta procurarmos suas gravações
59

nas populares lojas de departamento do nosso país. O Inquisiton não está à venda na
Saraiva e mesmo o “bem produzido” Madrigal of Sorrow do Sad Theory não está
disponível nas lojas Americanas. Essas lojas não possuem as “referências” exigidas
pelos praticantes. A própria quantia de cópias por si só já restringe o tamanho da
circulação dessas gravações. A tiragem, quando prensada industrialmente, dificilmente
passa de quinhentas cópias e quase nunca chega a mil. Existe até um prestígio na
comprovação de uma prensagem pequena. O selo de Brasília Genocide Productions, no
flyer de divulgação do full length da banda de death metal baiana Impetuous Rage, diz
que além do cd, lançou uma versão “para os maníacos”, em vinil e limitada a quinhentas
cópias numeradas à mão.

Flyer de divulgação do álbum Inverted Redemption dos baianos do Impetuous Rage.

Quando as cópias são feitas em fitas e cds virgens, o controle da tiragem é


inexistente. Edson, que tem na Mountain distro/prod seu modo de vida, diz que as
cópias podem variar “de cem a mil, depende do título”. Aliás, como em ambos os casos,
prensagens caseira e industrial, os lançamentos são resultados de acordos entre selos e
bandas, cabe questionar como é feito o controle de cópias vendidas. O número dessas
vendas deveria ser importante, pois determina a porcentagem a ser paga para a banda.
60

Porém, estatisticamente, esse controle não é feito. As gravações não possuem


numeração e os acordos feitos entre bandas e selos são “de boca”, verbalmente
decididos. São contatos fechados e não contratos assinados. Não poderia ser de outra
forma. Os selos e distros não são pessoas jurídicas, não possuem número de CNPJ35.
Não adianta pedir nota fiscal no underground. Por outro lado, as bandas não garantem
seus direitos autorais nos órgãos oficiais responsáveis. Elas não podem requerer a
observância da autoria de suas canções. Acordos não cumpridos no underground não
resultam em multas rescisórias. Usando o jargão econômico, podemos dizer que a troca
promovida no underground do metal extremo é informal. A circulação de seus produtos
não é constrangida pelas estipulações jurídicas nacionais36.
Eles estão certos. A circulação das gravações é discreta, restrita ao perímetro do
underground e regida por suas próprias regras. É despropositado questionar se ela
ocorre de maneira distinta da qual eles argumentam. Podemos até lançar uma fórmula
econômica para o underground: o aumento de suas vendas é totalmente determinado
pelo crescimento dele próprio. O primeiro é diretamente proporcional ao segundo37.
Mas isso não refuta todos os dados apresentados nesse capítulo. Pelo contrário.
Confirma ainda mais uma característica que paulatinamente vem se apresentando. Se o
underground é composto por um sistema de trocas, é um sistema específico de trocas. É
esta especificidade que precisamos compreender. Daí a delicadeza no tratamento do
discurso de seus praticantes. Ao invés de medirmos a veracidade contida nele,
procurando saber o quão próximo da realidade ele está, precisamos tomá-lo como parte
da realidade deste espaço e averiguar como se articula e o que é articulado por ele.
A continuação da entrevista de Brucolaques é elucidativa. Após fazer duas
refutações semelhantes, que sua banda não assinaria com um selo comercial porque este
representaria tudo aquilo contra o que eles lutam e depois, na frase seguinte, dizendo
que os princípios do black metal estão distantes de vínculos mercantis, o entrevistado

35
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica.
36
Uma ressalva. Os selos surgidos de lojas, como a Die Hard Records e a Multilation Records, são
pessoas jurídicas.
37
Cabe balizar essa restrição da circulação underground pela seguinte reflexão. Será que ela se manteve
restrita única e exclusivamente pela vontade de seus praticantes? Será que sua manutenção também não
resulta, pelo menos em parte, do fato de que o underground do metal extremo brasileiro nunca em sua
história teve sua produção almejada pelas “grandes” gravadoras e pelo “público de massa” aos quais são
tão avessos? Colocando de outro modo, será que eles suportariam a força da demanda externa? Contudo,
como não há dados empíricos para desenvolvermos tais questões, elas ficam apenas como reflexão
paralela.
61

declara com quem sua banda se filia: “(...) nós trabalharemos apenas com selos que
tenham honestidade e que possuam o real espírito underground”.
62

2 – “O REAL ESPÍRITO UNDERGROUND”

Marshall Sahlins, no seu La Pensée Bourgeoise, entende que o materialismo


histórico e o pensamento burguês, notadamente o pensamento econômico,
compartilham um ponto central de suas teorias acerca da produção econômica. Quando
optam por uma explicação prática do sistema econômico ambas estariam encobrindo o
sistema significante contido na práxis da produção. Concebendo a produção de bens
apenas pelas movimentações das leis de oferta e demanda, valor de troca na linguagem
marxista, estariam ignorando o “código cultural de propriedades concretas” que
determinariam a utilidade daqueles bens, ou seja, aquilo que, para o antropólogo norte-
americano, produz o ao mesmo tempo em que é produzido no mercado. Para Sahlins, os
dois grandes concorrentes da explicação do sistema econômico de mercado falham em
suas tarefas por caírem em erro metonímico. Tomam esse sistema como o cerne da
sociedade ocidental quando ele seria na verdade parte desta forma cultural38 (1976, pp.
166-167).
Na progressão dessa crítica, Sahlins instaura uma perspectiva propriamente
antropológica acerca da produção de bens. Segundo ele, precisaríamos entender a
produção material como um constante processo de definição recíproca entre homens e
objetos. Essa via de mão dupla na qual a produção se torna também produto é ao mesmo
tempo permeada e organizada por aquilo que o autor chama de sistema de códigos
simbólicos. Sahlins defende sua posição teórica argumentando que as preferências dos
norte-americanos pela carne de boi e de porco ao invés das do cachorro e do cavalo não
se devem pelas melhores qualidades nutritivas dos primeiros e sim pela maior
‘humanidade’ dos segundos. Assim como a saia é uma vestimenta feminina e a calça
masculina não porque essas peças melhor ajustam-se aos respectivos corpos de seus
portadores e sim pelas diferenças de gênero da sociedade norte-americana. Não só o
valor de troca é arbitrário, ponto esse que economistas e materialistas históricos
concordariam, como também o próprio valor de uso de um produto. São essas aspas que
Sahlins coloca na “utilidade” do bem que o distanciam de uma análise puramente
prática do mercado na sociedade ocidental e da troca como fenômeno humano.

38
Para sermos condizentes com Sahlins, vale ressaltar que ele livra Marx desse erro. O alemão teria
percebido que a reprodução material é uma reprodução social mesmo mantendo a naturalidade do valor
de uso (a casa agrega valor por ser um abrigo). Daí a preferência de Sahlins por materialismo histórico ao
invés de marxismo.
63

A proposta de Sahlins vai bem além do que esse vago resumo indica. Mas não
nos interessa discutir o estatuto de sua teoria, suas lacunas e contribuições. Trouxemos
um movimento de sua argumentação à baila por entender que ele oferece uma
interessante dica de procedimento para continuarmos averiguando o underground do
metal extremo brasileiro. É sobretudo isso que nos interessa em Sahlins. Seu enfoque.
No capítulo anterior percebemos como as práticas de gravação, distribuição e
venda do underground, em conjunto, conformam um sistema de trocas com dimensões
econômicas. Gravações que são produzidas por músicos, distribuídas e vendidas por
intermediários e consumidas pelo público. Sistema com dimensões econômicas
singulares não só pelas peculiaridades dos bens aí circulantes mas pelas características
dessa circulação. Seus agentes não são tão diferenciados entre si. Dependendo do
contexto, um músico pode ser intermediário o qual, por sua vez, pode ser público. Seus
produtos não são financiados a não ser pelos seus produtores e para comercializá-los,
seja vendendo seja comprando, é preciso ter “referências”. Restringida em todas as
etapas de seu processo, a circulação underground procura manter uma autonomia
financeira e seu âmbito nos limites deste espaço.
Mas, como começamos a entrever no final do capítulo precedente, estas práticas
não serão compreendidas se mantivermos a descrição apenas no nível de seu
funcionamento. O discurso dos praticantes, utilizando o formato underground de
circulação como recurso, parece indicar que a realidade social deste espaço abrange
mais do que a formatação de um mercado de gravações. Colocando a questão à la
Sahlins, podemos dizer que parece haver mais do que bens sendo produzidos nesta
economia. Se a produção desses bens é sua ossatura, contudo, precisa de órgãos e
músculos para se sustentar e descargas elétricas para se locomover. Precisa, sobretudo,
de um espírito.
Nada de metáforas aqui. No trecho citado que termina o capítulo anterior, o
entrevistado deixa bem claro qual é a referência que seus possíveis parceiros precisam
possuir, o “real espírito underground”. Do que se trata este espírito? Como esse mana
anima a troca underground?

***
64

A existência de uma banda de black metal é (ou deve ser) ligada apenas às suas
ideologias e satisfação própria, pouco se importando com dinheiro e fama. Mas
talvez recentemente isso tenha dado lugar a busca pela promoção através da mídia
e pelo dinheiro. O que acha, enfim, da popularização e comercialização maciça do
estilo nos últimos tempos?
Doom-Rá - O nascimento de uma horda39 de Black Metal deve ser motivado
primordialmente por prazer de fazer algo que se identifique, por parte dos guerreiros a
que integram, por realizar seus ideais, forma de narrar seu ódio e náusea da sociedade
judaico-cristã, forma de honrar o conhecimento luciferino, narrar em seus hinos40 suas
práticas ocultas, suas visões pessoais sobre tudo, sobre a realidade de cada um...
Resumindo, Black Metal de verdade é a prática de Ideologia e Atitude, eu pessoalmente
penso assim, agora sobre as bandas que se dizem Black Metal, mas só estão na cena
para buscar fama, $$$, acho isso deprimente, o verdadeiro Black Metal é feito nos
subterrâneos, criptas do Necro-Underground, para satisfação própria, forma de honrar
seus demônios pessoais, como forma de combate as utopias tão achadas "normais" hoje
por muitos que antigamente defendiam uma postura mais séria, radical... O escroto é
que muitas dessas ditas bandas hoje mercenárias, posers, e que ainda assim são
chamadas de Black Metal, começam por muitas vezes dentro do Underground, onde
ficavam com discursos radicais anti isso, anti aquilo, "usando" zines, flyers, para firmar
seus nomes entre os maníacos hellbangers41, mas com tempo, mudam os discursos,
mudam os meios de divulgação, seguem modas ditas lá fora, por grandes selos, mudam
totalmente suas sonoridades por achar que assim ganharão a tão sonhada "fama", se
expõem em revistinhas de metaleiros (que divulgam juntos com merdas como White-
Metal, Un-Black42, Gothic, Merdas, Merdas...), tocam em festivais ao lado de bandas
cristãs, isso é deprimente... Penso que, se desde o início queriam apenas "fama", "$$$",
não deveriam ter surgido dentro do Underground, que fossem homens para assumirem
seus reais interesses dentro do Black Metal, e que se afastassem dos eventos dedicados
as verdadeiras hordas Black Metal (...).

Este trecho é de uma entrevista dada por Doom-Rá, membro e idealizador da


banda goiana Uraeus, ao Black War webzine. Podemos dizer que ele resume
exemplarmente todas as questões vinculadas ao underground do metal extremo
brasileiro. Mas, antes de prosseguirmos com uma análise de suas palavras, cabe nos
determos no meio pelo qual suas palavras foram expressas, os zines.
Se os praticantes inscrevem suas canções nas gravações é no zine que eles
escrevem suas opiniões. Zine ou fanzine, corruptela do termo inglês magazine.
Enquanto esta última seria uma revista profissional, feita para o fã, aquele seria amador,
feito pelo fã. O zine não é uma invenção dos praticantes do underground do metal
extremo brasileiro. Segundo Duncombe (1997, p. 1-17) desde os anos trinta,
principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra, esse tipo de revista vem sendo

39
Os apreciadores de black metal referem-se a bandas como hordas.
40
Assim como se referem a suas canções como hinos ou opus.
41
Hellbanger é um equivalente de headbanger entre os apreciadores de metal extremo. É pouco utilizado,
mas preferível ao pejorativo metaleiro.
42
White-metal e un-black metal são estilos de metal idênticos na sonoridade com o black metal, mas
totalmente diferentes nas letras. Enquanto o segundo trata do maléfico, os primeiros versam sobre o lado
benéfico do cristianismo. Como o entrevistado deixa claro, os praticantes desses estilos não apreciam a
sonoridade alheia.
65

produzido pelos mais diversos movimentos sociais, desde os aficionados por filmes de
ficção científica até as diferentes facções do partido comunista italiano, passando pelos
movimentos ecológicos e feministas dos anos sessenta. Segundo o mesmo autor, a
utilização dos zines por apreciadores de certos estilos de música se deve,
principalmente, ao movimento punk inglês irrompido no final dos anos setenta. Não
temos conhecimento de nenhuma pesquisa feita no Brasil especificamente sobre os
zines. Contudo, ele é tratado em pesquisas acerca dos punks nacionais, como em Caiafa
(1985) e Wendel Abramo (1994). É muito provável que os praticantes do underground
do metal extremo se basearam nos zines punks nacionais para fazerem os seus.
Os zines do underground do metal extremo brasileiro são revistas idealizadas,
editoradas, escritas, diagramadas, impressas e veiculadas pelos próprios praticantes,
muitas vezes uma pessoa só. Toda sua produção é caseira. Quando digitados no
computador, são nele diagramados, impressos em preto e branco, copiados em folhas
A4 e veiculados entre os praticantes, seja pela venda ou pela permuta por outros zines.
Quando batidos na máquina de escrever, seguem o mesmo processo a não ser pela
diagramação, que neste caso é feita pela colagem dos textos e fotos em folhas que
servirão como matriz de todas as cópias. Sua periodicidade é irregular e o tamanho da
tiragem de cada número depende da demanda, uma vez que seu editor o copia em
máquinas de xérox. Raramente passam de vinte números, normalmente se extinguindo
em dez edições.
Seria redundante fazer uma análise extensiva dos meios de produção,
distribuição e comercialização dos zines. Seguem os mesmos processos das gravações
averiguadas no primeiro capítulo e neles encontramos as mesmas características. Auto-
financiamento, restrição de sua distribuição ao âmbito do underground e
comercialização feita no show ou a partir de informações adquiridas nos shows.
Também são “informais”. Não possuem editoras, jornalistas responsáveis nem ISSN43.
Contudo, um exame dos zines traz maior nitidez a uma característica já
apresentada pelas gravações, qual seja, o âmbito nacional do underground. Por mais que
eles tenham suas sedes estabelecidas nas cidades onde moram seus idealizadores, todo
seu conteúdo é organizado por entrevistas com bandas e resenhas de shows e
lançamentos oriundos e realizados pelo Brasil todo. No número oito do Anaites zine,
por exemplo, Hioderman publicou entrevistas com bandas dos seguintes estados: Minas

43
International Standard Serial number. Número de série de padronização internacional que toda
publicação “formal”, livro ou periódico, geralmente possui.
66

Gerais, São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Ceará, Recife, Santa Catarina e até mesmo
com uma de Portugal.
Além de oferecer certo panorama do underground pelas entrevistas, os zines
ajudam a sedimentar o circuito nacional deste espaço trazendo em suas páginas finais
endereços de bandas, selos, distros e outros zines também. As quatro últimas páginas do
zine editado por Countess Death, Unholy Black Metal de Lages, Santa Catarina, contêm
endereços de “hordas” e zines do Brasil todo, inclusive do Anaites zine e do Uraeus:

Uma outra característica dos produtos underground que os zines nos ajudam a
compreender é sua pessoalidade. Eles carregam consigo algo de seus produtores.
O zine certamente cumpre uma função informativa. Ele transmite aos seus
leitores uma visão do underground em certos períodos de tempo, espécie de fotografia,
informando quais bandas estão na ativa e quem está lançando gravações. Oferece
endereços para contato de bandas, selos e distros assim como anúncios de apreciadores
procurando apreciadores e músicos procurando músicos. Alguns deles ainda trazem
históricos de bandas, pôsteres e traduções de letras. Mas a função informativa deste
67

meio de comunicação não corresponde a uma impessoalidade no tratamento do seu


conteúdo. Pelo contrário. O zine tem um dono e é, como dizem, o “artefato” desse dono.
Se os jornais de grande circulação do Brasil concorrem segundo o critério da
independência, o zine é explicitamente compromissado com as idéias e intenções de
seus donos e totalmente partidário do underground. Countess Death deixa bem claro no
editorial do seu zine quais são seus objetivos com o Unholy Black Metal:

(...) foi elaborado a partir da necessidade de expandir minhas idéias, experiências e


ideologia, com reais guerreiros e guerreiras que estão fazendo algo pelo movimento
underground, pois é através do Black Metal que mostraremos a todos que somos fortes,
inabaláveis e que jamais seremos corrompidos pela maldita escória oportunista (...).

O próprio teor das entrevistas está regulado de acordo com essa expansão das
“idéias, experiências e ideologia” dos seus donos e únicos “jornalistas”. Countess
Death, mulher, perguntou a todos os entrevistados o que achavam da inserção das
mulheres no underground. Já Bernardo, idealizador do Dark Gates zine de Juiz de Fora,
Minas Gerais, estimula em suas entrevistas discussões filosóficas acerca do material das
bandas em questão. Na quarta edição, ele faz a seguinte pergunta para os catarinenses
do Goatpenis:

A banda sempre apresentou uma postura ideológica contra a raça humana,


demonstrando ódio e repúdio pela mesma. Com certeza muitos filósofos e pensadores,
como Nietzsche, Schopenhaeur e outros, bem como experiências pessoais influenciaram
a banda. Que tipo de idéias levou a banda a este caminho ideológico? Como seria o
processo de “Inhumanization44”?

Lord Chax e seu Fereal zine de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, estão
interessados em questionar seus entrevistados sobre as relações que bandas de black
metal teriam com o nacional-socialismo. Para os maranhenses do Ave Lúcifer, Lord
Chax pergunta:

Sabemos que o black metal tomou muitos rumos diferenciados, pois muitas hordas têm
abordado não somente o ocultismo em suas letras mas guerras, atrocidades e também
letras de cunho racista que algumas hordas de NSBM45 têm. Vossa pessoa concorda
com esses tipos de temáticas ou em sua opinião o black metal esta só para reverenciar o
pai da sabedoria e da luxúria, AVE LUCIFER REX?

A propriedade dos zines é respeitada pelos próprios entrevistados. Eles


reconhecem que não estão dando uma entrevista para “qualquer” meio de comunicação
e sim para o zine da Countess Death, do Bernardo e do Lord Chax. Quase todas as

44
Título da gravação lançada em 2004 pela banda.
45
NSBM: National socialism black metal. Black metal nacional socialismo.
68

entrevistas acabam com um efusivo agradecimento por parte deles, como o fez Baron of
the Dark Lands, baterista da mineira Agnus Negrae, na entrevista concedida ao Anaites
zine. A última pergunta de Hioderman termina assim: “(...)Irmão, creio por esta ser isso!
Agradeço o tempo cedido. Há algo mais que tu queiras acrescentar?”. E o “irmão”
acrescenta:

Nós que somos eternamente gratos, grande irmão Zartan46, pelo grande espaço cedido
em vosso profano pergaminho, hail Anaites e também pelo grande apoio que nos tem
concebido. Desejamos a ti glórias eternas em vossa negra jornada!!! Hail Darkness!
Hail Satan! Hail evil!

Publicar a entrevista de uma banda nas páginas do seu zine significa que seu
editor aprecia a banda em questão. Ele a “apóia” e é por isso que suas entrevistas estão
ali. Como afirma Bernardo do Dark Gates no editorial do quarto número: “gostaria de
ressaltar que todas as bandas entrevistadas possuem o meu apoio, caso contrário não
iriam estar nestas páginas”. Resultado deste apoio dado pelo zine é uma interessante
divulgação da banda a nível nacional. A banda sabe disso e retribui sua divulgação
divulgando o zine na sua região, seja fisicamente, vendendo ou simplesmente
repassando cópias, seja verbalmente, falando “bem” do zine, afirmando que ele é real.
A publicação de uma entrevista é mais uma das formas de sedimentar a transformação
de encontros fortuitos em alianças underground. Se traçarmos os contatos entre bandas
e editores de zines chegaremos novamente ao denominador comum dos encontros
underground, o show. Ambos se conheceram, ou conheceram alguém que os colocou
em contato, em algum show. Ademais, vale ressaltar que a publicação de uma entrevista
no zine, se não for resultado dessa troca de retribuições, é como forma de divulgação de
uma banda que o zineiro está lançando através de seu selo. Contudo, não há compra ou
venda de espaço nos zines que pesquisamos.
A pessoalidade do zine não significa que ele não possa ser vendido. Como
vimos, os praticantes do underground realizam sem problema algum a troca comercial.
Apesar de fazerem algum tipo de escambo, trocando zines por zines e gravações ou
estas por gravações e zines, acham plenamente legítimo o uso do dinheiro em suas
trocas. No entanto, os produtos underground são de uma alienabilidade específica.
Inseridos em uma circulação comunal, sua movimentação mantém a ligação com seu
produtor. O dinheiro é mais um favorecedor da troca do que um fim em si mesmo. Na
troca underground, o respeito pelo produtor é preeminente ao lucro.

46
Zartan é o codinome utilizado por Hioderman.
69

Com efeito, os produtos underground carregam consigo algo de pessoal dos seus
produtores. Eles são os “artefatos” de seus produtores, materializações de suas vontades
e transportadores de suas idéias, valores e mensagens. São suas criações. Nítido nos
zines, a pessoalidade dos produtos underground se escancara nas gravações.
As gravações são resultados dos esforços dos músicos. Financiaram seu
processo, entraram em contato com selos e distros para lançá-las e, sobretudo,
compuseram as canções ali contidas. A organização sonora inscrita no cd, magnetizada
nas fitas K-7 e traçada nos sulcos dos vinis foram criadas pelos músicos. Mesmo se
utilizando de mecanismos tecnológicos, mesmo que tenha sido subsidiada pelo dinheiro,
essa criação, segundo os músicos do metal extremo underground, não se define pelos
aparatos externos.
Para seus músicos, compor metal extremo é um processo de transformação das
suas subjetividades em forma de sons. Doom-Rá responde assim à Countess Death
sobre aquilo que o influencia no processo de composição: “o Uraeus não sofre
influências diretas em seus hinos”. Não são influenciados diretamente pois a matéria-
prima de sua música são seus “sentimentos”. Morte, membro da banda Night Eternal,
sendo indagado pela mesma pergunta, diz: “meus sentimentos, eu não me prendo a
nada, porque gosto de viver cada vez mais livre de tudo! Livre de dogmas e obrigações
(...)”. Os “sentimentos” destituídos de qualquer “dogma e obrigação” estão livres para
serem exteriorizados pelos músicos em forma de sons coligados.
“Sentimentos” entre aspas, pois se trata de uma leitura e uma valoração de uma
realidade tida como subjetiva. “Sentimento” como uma espécie de ponto convergente da
sensação e da intelecção. Daí o pulular de perguntas nos zines sobre a “ideologia” ou a
“mensagem” que as bandas querem passar. Discutem se o black metal feito por tal
banda é “luciferiano” ou “ocultista”, se o death metal daquela banda é um “espelho da
nossa sociedade” ou “um tapa na cara de Jeová”, se o splatter que esta banda faz é mais
“açougueiro” ou “porn”.
Por isso que, se quisermos aproximar o metal extremo underground brasileiro de
algum movimento artístico/filosófico, podemos defini-lo como romântico. Compor é
antes de tudo um trabalho do espírito livre e o produto desta composição estará marcado
por sua unicidade. As palavras de Edward Hanslick, musicólogo alemão o qual,
segundo Videira (2007), escreveu o livro síntese do pensamento romântico acerca da
música, não poderiam ser mais esclarecedoras:
70

Compor é um trabalho do espírito com um material espiritualizável. (...) de natureza


mais espiritual e sutil do que qualquer outro material artístico, os sons assimilam de boa
vontade qualquer idéia do artista. Já que as coligações de notas, em cujas relações
repousa o belo musical, são obtidas não por um alinhamento mecânico, mas pela livre
criação da fantasia, a força espiritual e a particularidade dessa determinada fantasia
imprimem sua marca característica ao produto. Sendo criação de um espírito que pensa
e sente, uma composição musical tem, portanto, em alto grau, a capacidade de ser ela
mesma plena de espírito e de sentimento (Hanslick, 1989 [1854], pp. 67-68).

A não ser pelo argumento de que nas relações entre as notas repousa o belo
musical47, os praticantes do underground endossariam as palavras de Hanslick sem
hesitações. Contudo, fariam um adendo atualizador. A consistência espiritual das
composições transborda os limites dos sons e se espalha nos meios transportadores
dessas composições, fazendo com que os cds, fitas K-7 e vinis também sejam vistos e
ouvidos como portadores dos “sentimentos” dos músicos que compuseram as canções ai
contidas.
Perscrutável é a obra de suas artes, imperscrutável os artistas que as fizeram.
Pode-se discutir as qualidades das gravações, avaliando sua produção e abordando a
“mensagem” que elas transmitem, mas não se averigua os espíritos que as compuseram.
São por demais amplos, livres de “dogmas e obrigações”. São únicos e nenhuma de suas
exteriorizações, nem mesmo a mais sublime delas, a música, os representa planamente.
Mesmo que ela seja entendida pelos músicos do metal extremo underground como uma
espécie de busca interior, maneira de auto-conhecimento, esquadrinhamento dos
recônditos de suas almas, há sempre uma sobra, um aquém-cultura indizível, intocável e
concernente só a eles mesmos.
Se, pelo lado da composição, salta aos olhos o romantismo do metal extremo
underground, pela forma como concebem a arte da música em si chama atenção como
se distanciam de uma visão da “arte pela arte”. Discordariam totalmente de uma
passagem de Hanslick disposta algumas páginas após aquelas nas quais estava o trecho
anteriormente citado:

Não se busca em peças musicais a representação de determinados processos


psicológicos ou de acontecimentos; busca-se, antes de tudo, música e desfrutar-se-á
apenas o que ela integralmente dá (idem, p. 77).

Não é bem assim, diriam os praticantes. A música deve ser tecnicamente “bem”
feita. A composição deve ser “original” e a execução exímia. O músico precisa ter, ou

47
Pois, como já deu para notar através dos nomes das bandas, dos selos e dos codinomes utilizados, não é
exatamente uma idéia de belo que os praticantes têm em mente, ou de forma mais relativista, o belo deles
está mais à esquerda.
71

no mínimo estar buscando, o controle técnico de seus instrumentos, praticando-o


constantemente. Os músicos do Sad Theory são todos formados em conservatórios de
música erudita ou popular brasileira. Um deles é professor de música. Os paulistas do
Ocultan chegam a ensaiar cinco vezes por semana. Enfim, todo o imaginário atual do
músico erudito, conhecedor profundo dos meandros dessa arte e virtuoso na execução
dos instrumentos, exerce profunda influência entre os músicos. Cansamos de ouvir em
rodas de conversa durante alguns shows que “se Bach ou Wagner fossem vivos nos dias
de hoje, seriam compositores de metal48”.
Porém, o conhecimento mais profundo acerca da música e a maior destreza na
execução não teriam sentido para um músico do metal extremo underground se não
forem utilizados em função dos “valores e ideais” da banda. O black metal é arte, mas
arte negra, arte da “blasfêmia, do ocultismo e do satanismo” como definiram os
catarinenses do Impuro. O death metal também, mas arte da morte, “culto da morte”
como os baianos do Incrust preferem. Doom metal é a arte da dor, “tocar e ouvir doom é
aprender a verter lágrimas” como nos salientou um integrante da carioca Avec Tristesse.
Finalmente, o grind, o splatter e o gore tratariam do corpo roto, dilacerado e de todas as
“perversões” possíveis de se aplicar aos corpos em tal estado, como a necrofilia por
exemplo, tema saboroso para os catarinenses do Flesh Grinder. Importante salientar:
não se trata apenas de abordar tais temas nas letras das canções, mas de perceber as
coligações de notas construtoras das composições como veículos propagadores destes
temas. A mensagem transmitida por uma canção se constitui conjuntamente por letra e
música.
Perceber a música que fazem dessa forma vincula-se diretamente à maneira pela
qual o metal extremo é produzido, circulado e vendido. Se fazer metal extremo é
praticar uma arte proselitista na qual a música, por mais técnica, exímia e virtuosa que
seja, é ela mesma uma técnica de compor leituras e posturas frente à realidade
circundante, então sua bandeira fundamental levanta-se justamente nas maneiras de ser
produzido, distribuído e circulado.
São essas as palavras de Doom-Rá na abertura desse item. “Black metal de
verdade”, nos diz ele, “é a prática de ideologia e atitude”. “Ideologia” como ele a utiliza

48
Robert Walser realizou sugestivo estudo acerca das influências da música que hoje se classifica como
clássica em composições de algumas bandas e músicos do heavy metal norte-americano (1993, pp. 57-
107). Segundo este estudo, os compositores do barroco, do romântico e do virtuosismo teriam maior
influência nas composições do heavy metal norte-americano. Bach, Wagner e Paganini antes de Vivaldi
ou Liszt. Apesar de não termos comparado partituras em nosso estudo, parece que é esse o caso também
do metal extremo underground brasileiro.
72

pode ser compreendida naquele sentido amplo e genérico: crenças, valores e ideais,
concernentes às mais diversas ordens, ao político, econômico, moral e religioso
principalmente. No entanto, metal extremo underground não é um partido político,
movimento social, ONG e muito menos uma igreja. É música. Trata-se de promover tais
éticas e morais através da composição, audição e apresentação de um tipo específico de
música.
O princípio primeiro a ser defendido pelos praticantes de tal arte, do qual poucos
deles discordariam, concerne às técnicas de se fazer música em sentido amplo. Ao
processo de composição, às conquistas e manutenções das harmonias, melodias e ritmos
e às formas de inscrever, distribuir e receber música. O underground em si, esta é a
“atitude” do “verdadeiro” metal extremo, onde a “ideologia” iniciática codificada nas
canções e apresentações é ele mesmo. Espaço produtor e produzido por música, restrito
e relativamente (para eles totalmente) autônomo, no qual o “ideal” prepondera sobre a
“fama e o lucro”. Ora, ideal não só da música “ideológica”, mas da instalação de um
sistema de trocas “ideológico”, não regido por motivações de lucro e de fama a maior
possível. O espírito underground nada mais é do que sua própria representação, ao
mesmo tempo produzindo as trocas ai realizadas e sendo produzido por essas mesmas
trocas. Troca-se com quem possui o verdadeiro espírito underground, e trocando entre
pares abre-se margem para ser possuído por este espírito. Espírito esse, nunca é demais
ressaltar, musical, espécie de rebento moderno de Apolo com Dionísio. Ao mesmo
tempo em que estabelece a apolínea harmonia do mesmo, dá condições de expressão de
uma dionisíaca estética da diferença49.
Neste sentido, metal extremo e underground se complementam. O primeiro se
completa sendo feito no segundo o qual, por sua vez, resolve-se em sua posição de
condicionante do primeiro. Todavia, complementos para os praticantes do underground.
Seria um tanto improvável pensar que este underground que estamos averiguando
existiria sem o metal extremo, mas este tipo de música certamente se expressa sem o
underground no Brasil. Mas para os praticantes o metal extremo que não é feito neste

49
Nada mais nietzscheniano do que encontrar uma relação positiva entre Apolo e Dionísio. O filósofo
alemão argumenta assim no seu O nascimento da tragédia: ‘A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio,
vincula-se nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens
e objetivos, entre a arte do figurador plástico, a apolínea, e a arte não-figurada da música, a de Dionísio:
ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e
incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição a
qual a palavra comum “arte” lançava aparentemente a ponte (...)’ (1999 [1872], p. 27).
73

espaço não é “de verdade”, eles não possuem o real espírito underground. Eles são
falsos.

2.1 - UNDERGROUND E MAINSTREAM

Os musicólogos estão cientes de que a inscrição da música é um contínuo


embate social50. Seja em relação à partitura, ao disco ou mesmo às apresentações, o
registro dessa arte em matéria que sobrevive a sua execução arregimenta uma série de
agentes e técnicas em lados opostos, disputando quais formas de materializar a música
serão praticadas. Às vezes, certas práticas ganham o estatuto oficial. Amparadas pelos
aparelhos jurídicos dos direitos autorais e reprodutivos, compelem o fazer musical a
seguir suas direções, constrangem a música a entrar nos seus moldes. Mas sob as linhas
mestras destas práticas, o burburinho continua. Suas nomeações não dissolvem as
crenças de outros agentes que outras práticas são melhores. Suas patentes não coagem o
cessar das disputas. Os motins estouram para lhe tirar o atributo legal ou simplesmente
para lhes dizerem “nós não seguimos as suas ordens”.
O sistema de trocas do underground do metal extremo brasileiro é resultado
dessas disputas travadas em torno da produção da música. Antes de ser uma fórmula
“anti-mercado” ou “anti-indústria fonográfica”, o underground é uma organização
específica de mercado e indústria de música, dispondo técnicas e tecnologias de
produção, distribuição e divulgação de maneira que lhe proporcionem maior autonomia,
controle e discrição. Frente ao gradiente de meios de comunicar disponíveis, o
underground seleciona e utiliza ao seu modo os métodos de fazer e propagar música que
lhe interessam51.
Os praticantes estão cientes que vivem o fazer de sua música como uma disputa.
As categorias underground e mainstream representam os embates que travam a cada
gravação lançada, a cada zine escrito e cada show apresentado. Elas são assimiladas
como congregando cada quesito dessa disputa. Enquanto os objetivos do metal extremo

50
Como, por exemplo, em Szendy, 2003.
51
Neste sentido, concordamos com Certeau que o consumo dos meios de comunicação não se limita a
realizar a recepção da mensagem produzida por um “outro lado”, dominante e quase conspirador. Quando
o underground “consome” tecnologias como o Pro-Tools ou quando revive o vinil como meio de
inscrição da gravação, ele não está recebendo tais tecnologias e as utilizando de acordo com os manuais
de uso que as acompanham e sim realizando uma outra produção, ‘(...) astuciosa, é dispersa, mas ao
mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos
próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante’
(CERTEAU, 1994, p. 39, grifo do autor).
74

underground são a “ideologia e a atitude” os do mainstream seriam a “fama e o lucro”;


enquanto o primeiro é restrito aos seus praticantes o segundo está aberto a “qualquer
um”; enquanto o produto do primeiro mantém na sua circulação uma conexão com seu
produtor, são artefatos, os produtos do segundo estão desprovidos de qualquer
pessoalidade, são só produtos. Consequentemente, na medida em que essas categorias
são próprias dos praticantes do underground, o primeiro é positivo e o segundo
negativo.

UNDERGROUND MAINSTREAM
AMPLITUDE DA RESTRITA IRRESTRITA
CIRCULAÇÃO
MOTIVOS E IDEAIS E FAMA E LUCRO
OBJETIVOS ATITUDES
RELAÇÃO DO
PRODUTO COM A PESSOAL IMPESSOAL
PESSOA
VALORAÇÃO POSITIVA NEGATIVA

Duas formas de representar os processos de produção, distribuição e divulgação


da música distintos e opostos. Embaixo o underground, compacto, discreto e próximo
aos seus produtores. Em cima o mainstream, delgado, público e anônimo. O primeiro
voltado para dentro, circunspecto, semelhante ao Werther de Goethe, honroso e fiel aos
seus princípios. O segundo escancara-se para fora, exposto e extrovertido, concordante
com as maneiras de Holly Golightly de Truman Capote, sempre querendo mais e mais.
Essas duas categorias não só congregam naquilo que representam as regras e
modos de funcionamento do underground como também combustam a sua
movimentação. Como vimos, quem está possuído pelo espírito underground obtém sua
credencial para participar desse sistema de trocas e quem não está pode estar sendo
assombrado pelo fantasma do mainstream. Todavia, ambas as categorias são
filogenéticas, ao nível das espécies. Compreenderemos seus acionamentos
acompanhando suas congêneres ontogênicas, real e falso, operantes ao nível do ser.
75

2.1.1 - O real e o falso

Hoje diversas hordas usam do death/black para se autopromoverem, e depois


mudam radicalmente de opinião ideológica e do estilo musical. O que você tem a
dizer sobre isso?
Lord Seremoth: É lastimável que isso ocorra no movimento nacional e mesmo no
exterior, mas o pior é ver que quando isso acontece tem aqueles vermes que continuam
apoiando esta atitude e dizendo que eles “evoluíram” musicalmente, ou que os mesmos
precisavam fazer isso para ganhar mais “dinheiro” (...), todos os que são reais devem
boicotar, execrar e expulsar estas falsas bandas do nosso meio. Devemos apoiar as
bandas que mesmo com o passar dos anos se mostram firmes em suas ideologias e estilo
musical, sem aceitar idéias modernas, sem se vender nem se prostituir musicalmente. O
black e o death devem ser feitos por ideologia underground, nunca por interesses $$
(financeiros) ou de $uce$$o. Não podemos dividir o palco com estas bandecas falsas,
melódicas, estrelinhas e panelinhas. Todos os reais, nunca devem comprar cds ou
demos, nem nada destas bandecas e nem ir aos seus shows ou entrar em contato, ou
seja, deixá-los para o puro esquecimento que é o lugar deles52.

O metal extremo no Brasil não se limita ao underground. Algumas bandas


estrangeiras obtiveram reconhecimento em nosso país, seja pela comercialização de
suas gravações, importadas e lançadas nacionalmente, seja pelos shows que
constantemente realizam por aqui. São bandas profissionais, contratadas por gravadoras
e recebendo cachê pelas suas apresentações. Bandas como a norte-americana Cannibal
Corpse, a norueguesa Marduk, a alemã Sodom e a inglesa My Dying Bride são
remuneradas por gravarem e apresentarem metal extremo.
As gravadoras que financiam e gerenciam as carreiras dessas bandas são
especializadas em heavy metal, algumas em metal extremo, e atuam em nível
internacional. Gravadoras como a alemã Nuclear Blast, a sueca Black Mark e as norte-
americanas Century Media, Roadrunner e Metal Blade, lançam as gravações das bandas
internacionalmente através de acordos com selos locais. O mecanismo é simples. Um
selo local adquire os direitos de comercialização da gravação para o seu país ou região,
por exemplo América do Sul, e a gravadora estipula o volume de cópias a serem
comercializadas em um primeiro momento. Se a gravação “vendeu bem” novamente
selo e gravadora entram em contato para negociar novas prensagens. O número dessas
prensagens depende muito da banda em questão. Bandas de forte expressão
internacional, grandes para as dimensões do metal extremo, chegam a ter no Brasil
prensagem inicial de cinco mil cópias. Já bandas “novatas” ou “cult” para este mercado
dificilmente lançam mais do que duas mil cópias. No Brasil, os principais selos de

52
Trecho da entrevista dada por Lord Seremoth, guitarrista do Lord Satanael, a Countess Death publicada
no Unholy Black Metal zine.
76

comercialização do heavy metal estrangeiro são os paulistas Hellion Records e Rock


Brigade Records e o curitibano Evil Horde53.
Duas bandas brasileiras entraram nesse mercado profissional e internacional de
metal extremo. Os gaúchos do Krisiun profissionalizaram seu death metal através de um
contrato com a norte-americana Century Media e atualmente gozam de um status de
banda “grande”. Chegam a fazer, como fizeram em 2005, cento e vinte shows por ano
nos Estados Unidos e Europa, se apresentando inclusive nos festivais mais importantes
do gênero, como o Milwalkee Metal Fest nos Estados Unidos e o Wacken Open Air na
Alemanha. No entanto seus três integrantes ainda moram no Brasil, residindo
atualmente em São Paulo capital. Já os mineiros do Sepultura mudaram-se para
Phoenix, Estados Unidos, cidade sede da gravadora com a qual assinaram seu primeiro
contrato, a Roadrunner. O trash metal da banda conquistou de tal maneira o mercado
internacional do metal extremo que o extravasou. O álbum Roots, de 1998, com canções
compostas em parceria com músicos como o baiano Carlinhos Brown e com índios
Xavante, alça a banda a patamares que nenhuma outra banda de metal extremo do
mundo alcançou. Vendem centenas de milhares de cópias em países como Indonésia e
Tailândia, fazem turnê mundial e disputam os holofotes dos palcos e flashes das
câmeras com músicos alheios ao trash metal. Mesmo após a saída dos irmãos Cavalera,
espinha dorsal da banda, o Sepultura ainda mantém, talvez de forma mais tímida, seu
status de banda “grande” para além do metal extremo.
Muito bem. Mas para os praticantes do underground do metal extremo brasileiro
todos esses selos, gravadoras e bandas, nacionais e internacionais, são falsos. Eles
estariam fazendo e promovendo o metal extremo por fama e lucro. Não estariam
cuidando para que suas gravações fossem parar em “boas mãos”, as mãos do
underground. Pelo contrário. Dizem os praticantes que o metal extremo é utilizado por
esses agentes como meio para alcançar mais notoriedade e acumular mais capital.
Portanto, quanto menos restrito forem, quanto mais fácil for adquirir suas gravações,
melhor. Falsos.
É interessante notar que a falsidade recai mesmo sobre as bandas brasileiras,
oriundas do underground do metal extremo nacional. Tanto Krisiun quanto Sepultura
fizeram seus primeiros shows no underground e lançaram suas primeiras gravações por

53
Hellion e Rock Brigade são, respectivamente, desdobramentos de uma loja e uma revista especializadas
em heavy metal homônimas. Já o Evil Horde é desdobramento da banda Murder Rape.
77

selos deste espaço54. Mas a notoriedade alcançada por ambas teria feito com que
esquecessem de suas origens e se preocupassem mais com a manutenção dessa
notoriedade adquirida. Falsos.
Esses agentes classificados como falsos não reclamam uma filiação ao
underground. Mesmo as bandas brasileiras, na época em que estavam assinando seus
contratos, deixaram bem claro em entrevistas publicadas em revistas especializadas55
que não eram underground e que não davam importância para toda essa “história de que
somos falsos”. Ou seja, quando há certo consenso por parte dos praticantes de que essa
banda ou aquele selo não são underground, eles apontam especificamente quem é falso.
Eles dão nome aos bois, eles acusam.
Por outro lado, quando a falsidade é assunto interno ao próprio underground,
raramente identificam quem é falso. Seja em zines, seja em conversas, quase nunca
apontam de quem estão falando ou de qual selo ou distro estão tratando. A questão é
levantada de modo difuso, como no trecho da entrevista de Lord Seremoth para o
Unholy Black Metal Zine. Há bandas que estariam se utilizando do underground para se
“autopromoverem”, o metal extremo underground estaria “se abrindo”, “vermes”
estariam “infestando” a cena dessa ou daquela cidade. Tratam da questão como se o
underground estivesse na iminência de se dissolver por completo porque falsos estariam
se imiscuindo neste espaço e utilizando-o “para proveito próprio”. No entanto, não
ficamos sabendo quem seriam esses falsos.
É compreensível que seja assim. O falso não estaria se importando com a feitura
do “verdadeiro” metal extremo, ideal e pessoal, fim em si, genuíno apenas quando
qualificado como underground. A banda, o selo ou o distro falsos utilizariam das
relações underground para serem mais conhecidos e ganharem mais dinheiro com um
metal extremo que é “só música”. Ser falso significa negar o underground usurpando-o,
imiscuindo-se em seus contatos e sugando toda sua potencialidade relacional. Desse
modo, chamar alguém de falso pra valer56 é uma acusação muito forte. Traidor, o falso
deve ser expulso deste espaço pois não tem a honra de ser underground.

54
Algumas bandas do underground dizem que foram influenciadas (influência indireta, apenas musical
como dizem) por essas bandas, mas quando o fazem enfatizam que a influência se limita às primeiras
gravações, quando Krisiun e Sepultura ainda eram underground.
55
São inúmeras. Cito duas. Do Sepultura na Revista Bizz, agosto, 1990 e do Krisiun na Rock Brigade de
julho, 2006.
56
Chamar alguém de falso muitas vezes é a brincadeira preferida nas rodas de conversa em shows.
Caçoam um do outro se chamando mutuamente de falsos, contam um caso de falsidade de seus amigos e
riem muito disso tudo. Mas essa jocosidade com o falso só acontece entre amigos, quando estão certos
que não serão mal-entendidos pelo interlocutor, ou seja, que não serão levados a sério.
78

Mas não há agentes vistos muito menos auto-intitulados como falsos no


underground. Nenhum praticante durante a pesquisa estendeu sua mão e disse: “prazer,
eu sou um falso”. São todos “de verdade”, possuídos pelo real espírito underground.
São todos reais, fiéis à “ideologia” do metal extremo e comprometidos com a “atitude”
underground. Fazem música que “não é só música” e só a fazem dentro dos limites
deste espaço. Todos eles batem no lado esquerdo do peito e no lado interno do punho e
dizem: “o metal está no meu sangue e é por isso que eu mantenho a chama do
underground acessa”.
O falso está para o real assim como o mainstream está para o underground.
Enquanto os primeiros se referem as bandas, selos, distros e pessoas, os segundos dizem
respeito ao conjunto desses agentes. Mainstream é o externo em duplo sentido, tanto
essa “indústria fonográfica” que busca pela fama e lucro quanto pela sua relação não-
afetiva com a música. O falso é a iminência de “mainstreamnização” do underground
em ambos os sentidos. Se ele está buscando “fama e lucro” pelas malhas deste espaço,
consequentemente não guarda nenhuma relação afetiva com o metal extremo. O falso
muitas vezes é descrito como sinônimo de poser, uma imagem, uma pose para o outro.
Já o real é interno também em duplo sentido, ser para si e para o underground. Ele o
constrói fazendo parte de uma banda, escrevendo um zine, montando selos e distros ou,
se for só público, ele o apóia adquirindo os artefatos e comparecendo nos shows reais.
Ele “mantém a chama do underground acessa” porque não poderia ser de outra forma.
Fiel e comprometido com seus sentimentos, princípios e valores subjetivos, tudo o que
ele pode fazer é externá-los em forma de metal extremo underground57.
Portanto, as classificações que os termos real e falso traduzem se referem ao
discurso do underground. Um discurso de defesa deste espaço. Justamente por estarem
cientes de que disputam formas de fazer, distribuir e veicular música, seus praticantes
acreditam que precisam defender as práticas engendradas e engendradoras do
underground.

57
Essa forma de conceber a música como um espelho da subjetividade, arriscamo-nos a dizer, pode ser
estendida ao heavy metal em geral onde quer que ele se expresse. Essa característica fica clara quando a
banda começa a receber uma demanda maior pelas suas gravações e se vê na iminência da
profissionalização. Tanto Krisiun quanto Sepultura, nas referidas entrevistas, negam a vinculação
underground mas não o caráter afetivo de suas músicas. O Ocultan, banda que atualmente (2007) vem
recebendo forte reconhecimento internacional pelo seu black metal, defende o mesmo argumento em
entrevista à revista/zine A Obscura Arte número dez: “ideologia e radicalismo black metal não têm nada a
ver com a quantidade de cds que a banda vende”. A desvinculação da banda do underground parece
corresponder a uma desvinculação entre dois elementos que para os praticantes é essencial, metal extremo
enquanto ideologia e underground.
79

Fazer o underground é uma luta. Countess Death escreve no editorial do seu


zine: “(...) durante todos esses anos de batalha que eu sigo dentro do cenário
underground (...)”. Na seção de anúncios da revista/zine A Obscura Arte um leitor pede
que “(...) escrevam-me somente reais apreciadores da arte negra que lutem para que a
chama do underground não se apague”. Se o underground é uma luta seus praticantes
são guerreiros. Nesta mesma revista/zine um outro leitor diz que “(...) quero me
corresponder com reais guerreiros de espírito impuro e sedentos por guerra; seres que
apóiam os verdadeiros hinos de destruição e blasfêmia (...)”. Uma luta por uma
utilização específica dos meios de fazer e divulgar música. Nessa batalha, os termos
underground, mainstream, real e falso são escudos e armas. Na retranca underground e
real, no ataque, ferindo o inimigo, mainstream e nas margens, vigiando as fronteiras,
falso. Neste sentido, pela perspectiva do praticante, não há nenhuma ambigüidade entre
estes termos. A linha que divide underground e mainstream é impermeável, ou melhor,
severamente metabolizada. Passar do primeiro ao segundo ou se insinuar no primeiro
pelo segundo corresponde a uma transformação de qualidade. Diferenças de gênero e
não de grau, assim como as diferenças entre o sagrado e o profano tal como tratadas por
Durkheim (1996 [1912]).
Mas é preciso enfatizar que o underground como uma luta é percebido assim tão
somente pela perspectiva do praticante. Mainstream e falso, categorias referentes ao
externo, são acusações eficazes apenas internamente. Assim como a bruxaria entre os
Azande, analisada por Evans-Pritchard (2004 [1976]), essas categorias inimigas
explicam as razões da luta do underground e não como se realiza essa batalha. Elas são
muito mais peças essenciais na conformação deste espaço do que percepções
qualificadas da indústria fonográfica. Elas poluem o underground, elas são um perigo
para este espaço e, como Mary Douglas (2002 [1966]) nos mostrou, só há sujeira onde
há limpeza, só pode ser desordenado aquilo que está organizado de acordo com uma
ordem. Podemos ser mais incisivos aqui. O praticante só pode falar em pureza
underground, só pode se perceber como um real, justamente porque se sente
constantemente em perigo. O falso pode ser seu parceiro de troca e o fantasma do
mainstream pode estar, tal como o corvo de Poe, a bater em seus umbrais.
Sendo assim, real e falso não só congregam, naquilo que representam, as regras
e modos de funcionamento deste espaço como também regulam a alteridade no
underground, definindo aquilo que ele é e aquilo que ele não é, o mesmo e o diferente.
80

Regulação intrínseca da alteridade, configurando o funcionamento deste espaço ideal de


fazer música que é o underground.
Isso não quer dizer que não há nenhuma realidade prática, concreta, no
underground. Pelo contrário. Procuramos mostrar no primeiro capítulo como ai se
realiza um sistema de trocas altamente povoado e movimentado a nível nacional. Mas
essas trocas só são povoadas e movimentadas se seus agentes souberem por onde e por
quem elas passarão, e assim, em qual sentido se locomoverão. Daí um sistema de trocas,
‘(...) contínuo processo de vida social no qual homens reciprocamente definem objetos
em termos deles mesmos e eles mesmos em termos dos objetos58’ (Sahlins, 1976, P.
169).

2.2 - Aprendizado underground: a gradação da percepção e a modulação da escuta

O Underground do metal extremo nacional é uma prática musical. Se há


conformação de alguma realidade, se há alguma significação social por ele engendrada,
antes de tudo, empiricamente, são realidade e significação social produzidas por música.
Suas circunscrições e alocações dizem respeito a formas de inscrever, distribuir e
divulgar um tipo de metal extremo. Assim, essas disposições e classificações
conformam um modelo específico de emitir e propagar música no Brasil, espécie de
comunidade musical. Certamente uma comunidade imaginada, para usar a imagem de
Benedict Anderson59 (2008), pois suas reuniões, pontuais, dispersas e aperiódicas,
acontecem apenas nos shows. Mas uma comunidade altamente delimitada naquilo que
lhe importa, sua imaginação.
Com efeito, seu tipo de produção musical não se limita à feitura, inscrição e
propagação de música. Se concordarmos com Lévi-Strauss que,

58
Tradução livre de: ‘(...) a continuous process of social life in which men reciprocally define objects in
terms of themselves and themselves in terms of objects’.
59
Vale enfatizar que Anderson formula o conceito de comunidades imaginadas para tratar única e
especificamente daquilo que define como ‘condição nacional’ (nation-ness) e, obviamente, existem
grandes diferenças entre este tema e o nosso. Contudo, a maneira como o autor formula tal conceito, ‘(...)
dentro de um espírito antropológico (...)’ (2008, p. 32), nos permite incorporá-lo sem grandes déficits
explicativos devido às diferenças dos objetos: comunidade porque, independentemente das desigualdades
internas, a nação e o underground são concebidos pelos seus membros como uma camaradagem
horizontal; imaginada porque, mesmo que todos os seus membros não se conheçam, guardam em suas
mentes uma imagem e em seus corpos um sentimento de comunhão mútua entre eles (op. cit). Nosso uso
de Anderson vai até ai.
81

o desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através do ouvinte e por ele. Em


ambos os casos, observa-se com efeito a mesma inversão de relação entre o emissor e o
receptor, pois é, afinal, o segundo que se vê significado pela mensagem do primeiro: a
música se vive em mim, eu me ouço através dela. O mito e a obra musical aparecem,
assim, como regentes de orquestra cujos ouvintes são os silenciosos executores (2004
[1964], p. 37).

então a sua escuta é também fundamental nesta produção. Se, por um lado, na troca,
efetua-se a regência deste tipo de música através da inscrição e distribuição, por outro,
na audição, se realiza a execução de seu significado. Essa comunidade musical
imaginada só terá vida se for realmente imaginada pelas pessoas que se vinculam, ou
almejam se vincular, a ela. E essa imaginação é silenciosamente executada na audição.
Uma orquestra na qual não há como traçar uma linha divisória entre regência e
execução. Na apreensão do underground do metal extremo nacional como um espaço de
música não podemos separar a feitura da audição, a regência da execução, a emissão da
recepção. Ambos os pólos são certamente específicos, mas intimamente
complementares. À produção do som corresponde uma produção de significado
realizada na escuta. Cabe então buscarmos uma apreensão dessa silenciosa execução do
metal extremo underground. Tentaremos escutar escutas.

***

O principal artifício para atestar o estatuto do real e do falso é o tempo de


inserção no underground. A participação da pessoa nas práticas deste espaço por um
longo período de tempo é usada como um recurso para “revelar” a realidade ou
falsidade da pessoa. Assim, Mantus, na mesma entrevista citada no primeiro capítulo,
diz que “(...) o tempo é o melhor laboratório, revela tudo”. Multilador, guitarrista e
vocalista da fluminense Bellicus Daemoniacus, respondendo a Countess Death sobre o
que acha do problema dos falsos no underground, diz que “(...) o tempo irá dizer quem
é real nessa história”. Mesmo o Ocultan, banda “grande” do underground nacional,
segue na mesma linha. Count Imperium, baterista, argumenta nas páginas da A Obscura
Arte que “quanto à pessoa ser falsa ou não, só o tempo poderá vir a esclarecer isto”.
Este tempo se refere ao período de inserção da pessoa no underground. Se ao longo de
sua inserção a pessoa, banda, selo ou distro, se mostra observador das regras do
underground, cumpridor de suas determinações, então é real. De outro modo, se utilizou
o underground para proveito próprio, é falso.
82

Nessa mesma chave do tempo de inserção, a imagem da biografia de uma pessoa


perante os outros praticantes é de extrema importância. Nas rodas de conversa em
shows, aqueles reconhecidamente “veteranos” do underground geralmente
monopolizam a palavra. Eles “viveram o passado áureo” da cena de suas cidades,
quando não haviam tanto falsos como “hoje em dia “60. Parece que o que eles dizem,
simplesmente por ser dito por eles, tem mais peso. Todos ouvem.
São nessas rodas que as “histórias” de cada cena local, geralmente épicas e/ou
cômicas, são propagadas. Os “veteranos” são sempre os protagonistas. Foram
verdadeiros heróis, conseguindo realizar o “show mais fudido da cidade”, foram muy
machos, agarrando todas quando foram tocar em tal cidade, ou foram bobos, passando
por situações embaraçosas, como um deles que teria se perdido em Assunção, Paraguai,
após um show de sua banda e só conseguiu voltar para o Brasil após quatro anos. As
entrelinhas dessas histórias são as mesmas: “eu já vivi muita coisa no underground”.
O “veterano” tem poder. Suas acusações de falsidade são mais verídicas. As
bandas que ele ouve e os zines que ele lê são mais reais. Eles sabem muito bem
manipular seus poderes, aumentando ainda mais seu prestígio e diminuindo o status de
seus desafetos. Ele sabe colocar a cena local a seu favor. O underground do metal
extremo brasileiro é um grupo relativamente pequeno de pessoas e as cenas locais
menores ainda. De modo que o poder aglutinado em algumas poucas pessoas ganha
mais força ainda.
Mas o que confere poder ao “veterano” é seu longo tempo de inserção no
underground. Ele sabe manipular sua biografia, se mostrar e ser visto como alguém que
por muito tempo pratica as atividades deste espaço. Ele até pode aumentar o impacto
desse tempo de inserção nos outros praticantes, mas não inventá-lo. O mesmo elemento
que lhe dá força pode fazê-lo desmoronar. Afinal, “o tempo é o melhor laboratório,
revela tudo”, até mesmo a falsidade de um “veterano”. A sagacidade de um “veterano”
real está em compreender que ser um “individualista” no underground, agir em proveito
próprio, trai a ordem deste espaço. O “veterano” real manipula de acordo com o
underground e não o underground. Para tanto, ele precisa saber quais são suas regras e
modos de funcionamento.

60
Para os praticantes do underground do metal extremo, o passado sempre foi melhor do que os dias
atuais. Não é coincidência que daqueles que cursam a universidade e optaram pelas ciências humanas, a
radical maioria cursa história e um ou outro filosofia. Doom-Rá, um dos mais eloqüentes praticantes que
pude conhecer, cursou história. Aliás, certa vez comentei que era formado em ciências sociais para um
outro praticante estudante de história e prontamente ele disse: “blá, sociais é coisa de punk”.
83

Até aqui reportamo-nos ao praticante no singular. Porém, cada pessoa que de


algum modo estabelece relações no underground detém diferentes percepções do que
viria a ser isso que chamam de underground. Mas aqui sim, dentro do underground, são
diferenças de grau e não de gênero. Se o underground nada mais é do que atividades, a
introjeção de suas regras e modos de funcionamento, basicamente representadas pelos
termos averiguados no item anterior, se dá pelo tempo de prática dessas atividades.
Quanto mais tempo a pessoa praticou o underground, maiores são suas chances de ser
reconhecido como um “veterano” real, graduação máxima, verdadeira personificação
deste fenômeno. Ou seja, maiores são suas chances de compreender o que significa ser
underground e real e repudiar o mainstream e seu correlato, o falso. Consequentemente,
maiores são suas chances de canalizar suas ações neste espaço de acordo com tais
termos. O aprendizado underground é prática e a socialização da pessoa só cessa
quando ela se desvincula deste espaço.
As práticas colocam em contato pessoas com distintos níveis de inserção, logo
diferentes graus de percepção do underground. “Novatos” organizam shows em
conjunto com “veteranos” e “secundaristas” lançam gravações conjuntas com
“docentes”. Pessoas que viveram os “fudidos anos 80” contam suas “histórias” para
quem começa a dar seus primeiros passos underground na hoje “decadente” primeira
década dos anos 200061. Mas com toda certeza a presente década será a “fudida década”
daqui a dez anos, quando os atuais “novatos” serão os reais “veteranos”. E assim, na
prática e na oralidade, a “etnia” do underground do metal extremo brasileiro vai se
reproduzindo em meio à urbe nacional.

***

O metal extremo é constituído por um grupo de estilos musicais que se


distinguem entre si de acordo com suas sonoridades, temáticas abordadas, iconografia e
vestuário dos integrantes das bandas. Apesar de cada banda poder misturar essas
distinções, os praticantes se referem a certos rótulos gerais que guardariam as
diferenciações internas básicas do metal extremo. São eles: o black metal, o death
metal, o doom metal, o trash metal e o gore/grind/splatter. No capítulo seguinte

61
Essa é a razão pela qual não adentramos em nosso tema pela questão juvenil. Apesar da grande maioria
dos praticantes ser classificada como jovem, o considerável número de pessoas com mais de trinta e cinco
anos presentes faz com que, de saída, desconsideremos qualquer recorte geracional para esta pesquisa.
84

trataremos especificamente das diferenças entre os estilos. Por ora, precisamos assinalar
como se compreende tais diferenças.
A história de como os praticantes chegaram a conhecer o metal extremo
normalmente é narrada da seguinte maneira. Eles apreciavam heavy metal em geral até
que algum amigo ou familiar próximo apresentou uma gravação de metal extremo que
os arrebatou. Não conseguiam parar de ouvi-la até o ponto em que começaram a
procurar outras gravações de metal extremo. Foram em lojas pesquisar ou perguntaram
para os mesmos amigos e familiares se tinham algo parecido com aquela primeira
gravação. Essa fascinação cresce a tal ponto que eles decidem ultrapassar a posição de
ouvintes e fazer algo por aquele estilo de música. Querem se aproximar dele de alguma
forma, tocando-o, ouvindo-o ao vivo, contatar outros fascinados e conhecê-lo ainda
mais. Esta vontade de se aproximar do metal extremo faz com que se insiram no
underground. Lembremos dos relatos de Maurício, Mauro e Cléverson apresentados no
primeiro capítulo.
Mas é a partir do momento em que começam a praticar o metal extremo
underground, eles mesmos o dizem, que seu verdadeiro aprendizado se inicia. Pois
quando ingressam no underground começam a perceber um outro tipo de metal
extremo. Claro, outro em relação ao mainstream. Ricardo, 22, capixaba radicado no Rio
de Janeiro e assíduo comparecente nos shows da capital fluminense, narra assim suas
impressões quando aportou no underground:

Essas bandas que fazem um som extremo mas lançam cds por gravadora grande foram
legais. Eu comecei por ai...Slayer, Venom, Cannibal...hoje em dia até aturo mas não
dá...é muito bonitinho, bem produzidinho, gravadinho e tal. Não dá conta, sacou? Fica
faltando alguma coisa...

Você diria que essas bandas são falsas?

Soam falsas...parece que é só pra vender, não dá. Brutalidade pra vender? Brutalidade
de verdade é crua, seca, tosca, entra na cabeça que nem tiro, BAM, e não tem como
escapar. Eu só ouço isso aqui, com o som dessa galera ai (estávamos conversando em
um show e nesse momento Ricardo aponta para a platéia), quando comecei a ver a
galera ao vivo não deu pra acreditar, quanto tempo eu perdi! Aqui que eu me liguei no
brutal de verdade mesmo, antes era só preparação.

Metal extremo underground soa diferente do metal extremo mainstream. Esse


ponto de vista nítido na voz de Ricardo, que não é músico, é elaborado também por
Joel, 28, gaúcho, músico que pediu para não ter seu codinome e banda identificados, em
conversa tida em 2005:
85

Quando a banda vira profissão alguma coisa da essência do estilo é perdida...começam a


ficar mais melódicos, a usar teclados, vozes femininas, mais solos...a essência da arte
extrema, a brutalidade em forma de música, fica pra trás...a música fica mais aparente,
entende? Vira uma função e não uma necessidade...arte extrema é uma necessidade
íntima e quem tem respeito próprio respeita ela.

Mas Joel, você diria que essas bandas estão fazendo metal extremo?

Eles dizem que estão né...podem até estar fazendo...pra eles, pra quem curte...mas olha
só, a questão não é se eles estão fazendo ou não metal extremo e sim porque estão
fazendo essa música. Eles fazem como uma profissão...o problema não é só ganhar
dinheiro com ela, mas a forma como você a encara, entende? Esses caras acham que
podem fazer da arte extrema uma função nas suas vidas enquanto pra mim ela é a minha
vida...são duas coisas muito diferentes, e quer saber? Você ouve isso na música
deles...tá lá, bem claro. Mas deixa estar, eles vão pagar por isso, não aqui, nessa vida,
mas vão pagar.

A introjeção das características musicais do metal extremo começa quando os


praticantes foram arrebatados por este tipo de sonoridade. Então, começam a apreciar o
vocal gutural, as guitarras em trítono62, o baixo amplificado e os bumbos duplos da
bateria. Começam a distinguir como soa um trash oitentista, um death de pegada sueca
ou norte-americana, um doom arrastado ou cadenciado, um black norueguês e outras
inúmeras distinções possíveis entre os estilos de metal extremo.
Ricardo está certo, é só uma preparação, porém fundamental. As primeiras
escutas de metal extremo, apresentando as distinções e características musicais do
estilo, familiarizam o ouvinte com suas especificidades. Oferecem-lhe bases de
julgamento estético de um tipo de música o qual, segundo os musicólogos que o
averiguaram (BERGER, 1999a, 1999b; WALSER, 1993), baseia-se quase totalmente no
ritmo e não na melodia. Familiaridade fundamental na medida em que, como Wisnik
(1989) argumenta, toda a música ocidental baseia-se no tom (melodia) e não no pulso
(ritmo). Aliás, o autor foi muito feliz em chamar a Sagração da Primavera composta
por Stravinski em 1913, primeira obra ocidental com ênfase no pulso, de heavy metal.
Só não foi muito feliz adjetivando o heavy metal de Stravinski como luxuoso (idem, p.
44). Ora, se o heavy metal de Stravinski é luxuoso, o do Coroner é modesto, o do
Impaled Nazerene é parco? Talvez Wisnik tenha dado eco a uma depreciação que o

62
Segundo Wisnik (1989, p. 65), o trítono, um intervalo de três notas entre o fá e o si ou entre o dó e o fá
sustenido, provoca forte instabilidade na composição por ser um fraseado incompleto. O trítono é um
pedaço de uma oitava, ela sim, completa. Daí sua nomeação, cunhada no medieval, como diabolus in
musica.
86

heavy metal enquanto música, para não falar do preconceito que seus ouvintes sofrem63,
geralmente recebe de musicólogos e críticos de música. Só temos a lamentar que uma
análise tão sagaz do heavy metal e da obra de Stravinski deságüe em julgamento
estético, de ambos, tão canhestro.
Voltando, vale contarmos uma situação de campo que ilustra bem a importância
dessa familiaridade.
Durante a pesquisa re-incorporei ao meu cotidiano uma prática de quase todo
apreciador de heavy metal, passar tardes inteiras em lojas especializadas. Em toda
cidade que visitava, procurava passar horas e horas nas lojas, conversando com
vendedores e outros apreciadores. Em uma dessas tardes, em 2004 em São Paulo
capital, estava conversando com o vendedor quando uma moça entra na loja reclamando
que o cd que tinha ganhado de um amigo e que tinha sido comprado ali estava com o
“vocal estragado”. Era um cd do Cannibal Corpse. Eu e o vendedor nos olhamos e
compartilhamos de um estranhamento óbvio naquela situação. Não havia como o vocal
estar “estragado”. Ou o cd estava com problemas, e aí toda a banda vai soar “estragada”,
ou estava acontecendo algum mal entendido. Colocamos o cd pra rodar e nada de
errado. O vocal do George Corpsegrinder Fischer soava como sempre soou, mais
semelhante a um urro de um urso do que a uma voz humana. E a moça disse: “ouviram,
o vocal está estragado”. Sim, ouvimos, o estranhamento dela era outro totalmente
diferente do nosso. Ela sequer chegou a imaginar que alguém poderia cantar daquele
jeito. Ela estranhou o vocal gutural, um dos pilares estilísticos do metal extremo.
O relacionamento com o metal extremo prossegue ao longo do ingresso da
pessoa no underground, não mais como uma familiarização e sim como um
aprimoramento da escuta64. Mas, ao mesmo tempo em que há uma continuidade ao
nível de refinamento do saber acerca dos meandros do estilo, acontece uma ruptura no
registro do arranjo da escuta. Por mais “brutal” que o metal extremo mainstream possa
ser “não dá mais conta”. “Fica faltando alguma coisa”.

63
Sobre o preconceito que os apreciadores de heavy metal dizem sofrer, remeto o leitor à tese de Pedro
Alvim Leite Lopes (2006).
64
Este aprimoramento tende a variar de acordo com, novamente, o tempo de inserção da pessoa e com as
atividades que irá praticar. Um músico e um escritor de um zine com relativa longevidade podem
apresentar sagazes refinamentos da escuta. Aliás, quanto ao segundo, boa parte dos textos que produz são
críticas e comentários dos últimos lançamentos, publicados na seção de resenhas. O escritor de zine é o
equivalente underground ao crítico de arte. Não é por acaso que os reais “veteranos” são, na grande
maioria, músicos e zineiros. Já os responsáveis pelos selos e distros, promotores de shows e aqueles
poucos que são só público podem tanto dominar as nuanças estilísticas como se manterem em nível
relativamente genérico de aprimoramento da escuta, pois suas posições não demandam, necessariamente,
um apuro no julgamento estético do metal extremo.
87

A ruptura é paulatina. Ela se define ao longo do tempo de freqüência da pessoa.


Ricardo e Joel nos apontam qual é o bisturi desse corte. A incorporação de tudo aquilo
que real e falso representam, realizada na prática do underground, se dissemina pela
percepção do praticante, fazendo com que ele diferencie o metal extremo mainstream
do underground. O primeiro soa falso para Ricardo e Joel ouve nele razões espúrias que
levaram seus músicos a compô-lo. O real e o falso articulam de tal maneira a realidade
deste espaço a ponto de modular a escuta dos seus praticantes.
A diferenciação entre ambos os metais extremos, underground e mainstream, é,
sem dúvidas, um produto da freqüência da pessoa nas práticas do underground. Toda a
informação que ela aí recebe, principalmente acerca de como as biografias das bandas
são assimiladas pelos praticantes, pesa na conformação do seu gosto musical. Afinal, ela
quer se vincular ao espaço do underground. Ela se sente, em certa medida, pressionada
a balizar sua apreciação de acordo com os limites do gosto underground. E essas
apreciações, esses julgamentos estéticos serão importantes nas conversas, nas relações
face-a-face, quando cada praticante está a julgar não só o gosto do outro, mas o próprio
posicionamento underground do outro. Contudo, os praticantes elevam, por assim dizer,
essa diferenciação dos metais extremos ao nível da percepção auditiva. Eles acreditam
que ambos os metais soam diferentes, soam underground ou mainstream.
Se no nível do discurso podemos apenas apontar para essa diferenciação que os
praticantes dizem fazer, no show podemos perceber como essa modulação da escuta é
importante. No show ela possui uma função social, ou melhor, ela executa a
organização do social.
Os locais inapropriados para uma apresentação ao vivo dificultam a propagação
do som no recinto. Os equipamentos de amplificação antigos e amadores deixam a
qualidade do som mais precária ainda. Enfim, o baixo orçamento de um show
underground faz com que as qualidades acústicas deste evento sejam ruins. Apesar de
haver alguns produtores de shows underground que conseguem oferecer às bandas e ao
público melhores condições acústicas, a regra é um desempenho insatisfatório quanto a
propagação do som.
Os praticantes reclamam dessas condições. Eles entendem que com um pouco
mais de cuidado e perseverança é possível organizar um bom show com um baixo
orçamento. Eles querem apresentar e apreciar as composições, mostrar e perceber a
música. Afinal, o praticante do underground também é um amante da arte dos sons.
88

Porém, na hora do show, no momento mesmo das apresentações, essas precárias


condições não importam. Os chiados indesejáveis, o som “embolado65” como dizem,
não é empecilho para que aquele evento se transforme em uma celebração de tudo
aquilo que o underground representa para os presentes. Os ruídos não impedem que o
som regido pelos músicos mancomunados com seus instrumentos seja ouvido como
uma música, como metal extremo underground, razão e objetivo desse espaço. Teremos
melhores condições de tratar do show mais à frente. Por ora, é importante assinalar a
execução que a escuta realiza neste evento. Levando ao patamar perceptivo as regras e
modos de funcionamento do underground, ela conecta o ouvinte àquela música que está
sendo apresentada. Ela o permite ouvir naqueles sons mais do que composições, ela o
faz ouvir o próprio underground. Daí falarmos do underground do metal extremo
nacional como uma prática musical. Com o ouvinte conectado à música, esta, por sua
vez, conecta todos os presentes no show. Aqui sim, no show, a comunidade imaginada
na e pela música está junta. Aqui não há mais luta, não há mais mainstream e falsos. O
show é a vitória, o underground se revela e pode ser entusiasticamente celebrado.
Para além da escuta no show, é preciso notar também que as distinções entre
metais extremos underground e mainstream se expressam nas gravações. Enquanto as
gravações do metal extremo mainstream teriam sido feitas por profissionais
especializados que sabem utilizar as tecnologias de gravação com o máximo de
qualidade, as gravações underground são muitas vezes balbuciações dos praticantes
tentando entender como funciona um programa de gravação ou como se microfona uma
bateria, por exemplo. Muitas gravações underground são literalmente toscas, cheias de
chiados e ruídos, mal se compreende as notas e dificilmente se diferencia os
instrumentos da voz. Já as gravações mainstream são “limpas”, livres de qualquer ruído
estranho à canção, com notas e instrumentos nítidos. É justamente em relação às
diferenças das gravações que Ricardo se refere quando nos fala que a “brutalidade de
verdade é crua, seca e tosca” e os cds lançados por “gravadoras grandes são muito
bonitinhos, bem produzidinhos e gravadinhos”. Para um produtor de música não
acostumado a relativizar sua posição, as gravações underground não passam de um
culto da tosquice. Para os praticantes é isso mesmo, tem que ser assim. A tosquice é real
e a produção profissional, falsa. Sendo assim, a escuta de uma gravação underground,

65
Som embolado: quando os instrumentos não são discerníveis. Pode acontecer tanto ao vivo quanto em
uma gravação. O som embolado é o antônimo de um som coeso, quando os instrumentos parecem estar
em harmonia uns com os outros. No entanto, enquanto o embolado é creditado a problemas acústicos, o
som coeso é fruto de uma “boa” composição.
89

certamente em nível mais acanhado do que a escuta no show, também está regulada por
essa diferenciação mainstream e underground e guarda em potência a possibilidade de
executar no ouvinte a imaginação da comunidade underground66.
Portanto, para o caso do underground do metal extremo brasileiro concordamos
totalmente com Max Peter Baumann quando afirma que ‘(...) a realidade da escuta e da
audição não se encontra nem no sujeito nem no objeto, mas na atividade cíclica e no
fluxo dinâmico entre ambos67’ (1992, p. 123). O underground, esse fluxo dinâmico de
pessoas, palavras e objetos, completa sua atividade cíclica de produção da música
dotando seus praticantes com batutas para realizarem aquela silenciosa execução da
audição. Assim, ao mesmo tempo em que ele figura como uma “prótese auditiva”, a
instalação dessa máquina de fazer ouvir nos ouvidos e gravações completa a
conformação de sua realidade enquanto uma organização específica dos meios de
produção da música.

2.3 - A ambivalência do underground

Espaço de troca, circuito de pessoas, palavras e objetos transitando por eixos


produtores e reprodutores de música. O underground do metal extremo brasileiro pode
ser resumido dessa forma, ambiente musical discreto e específico.
Contudo, mais do que meros veículos intermediários, esses modos de fazer,
divulgar e escutar música específicos do underground mediam o parentesco, digamos
assim, entre as pessoas, palavras e objetos que nele circulam. Uma conjugalidade que
faz estes elementos compartilharem de uma mesma substância, de um mesmo espírito, o
espírito do underground. Os objetos carregam algo de quem os fez, as idéias brotam da
subjetividade, são espelhos, sempre incompletos, de quem as criou; as pessoas são
irmãos, correligionários do mesmo partido, soldados defendendo a mesma bandeira e
confrades compartilhando a mesma crença.
Poderíamos continuar lançando mão de uma série de imagens que nos
ajudariam, por analogia, a compreender a natureza da vinculação social do
66
Fora da moldura ritual do show, a escuta de uma gravação ganha outros contornos. A pessoa pode estar
ouvindo aquele cd ou aquela fita por prazer, para passar o tempo, enfim por qualquer motivo que ele
tenha em mente. Porém, como nos lembra Halbwachs (1980), a memória musical é necessariamente
social. A escuta de uma gravação pode fazer o ouvinte lembrar de um show que lhe é particularmente
importante. Então, com as lembranças de um show memorável, no caminho para a escola ou para o
trabalho, na solidão do quarto, o underground pode ser reforçado na subjetividade do praticante.
67
Tradução livre de: “(...) the reality of hearing and listening lies neither in the subject nor in the object,
but in the cyclic activity and in the dynamic flow between them”.
90

underground. Facções políticas, divisões e companhias dos exércitos, congregações


religiosas, classes escolares, todos esses fenômenos sociais compartilham com o
underground, ao menos em nível generalizante, a condição de instituírem entre seus
membros um elo, uma conexão, um eixo de pertencimento não determinado pela
consangüinidade. Na visão nativa, por mais que essas associações tenham causas e
interesses muito bem delimitados, a verdadeira razão da força e pujança de sua união
não está em seus protocolos. Está na “união espiritual” dos seus membros, no
“sentimento”, no “respeito”, no “coração”. Não importa que elas não estejam baseadas
em pretensos pertencimentos “biológicos”, seus membros a transformam em carnal e
universal. A insígnia da divisão e as iniciais da facção são tatuadas e o metal extremo
“vai para o sangue”.
Seria desmesurado, talvez, afirmar que o underground é uma sociedade. De
qualquer forma, preferimos nos referir a ele como um agregado de práticas urbanas,
dispersas na urbe e entrelaçadas com tantas outras, do que uma sociedade ou mesmo
uma tribo urbana68. No entanto, dentro do ambiente dessas práticas há claros indícios
daquilo que Malinowski (1983 [1922]), Mauss (2003 [1950]) e mesmo Lévi-Strauss
(1976), colocam como o elemento transformador da hostilidade em amizade, da
separação em aproximação e da guerra em negócios, a troca. Uma vez inserido nela e
reconhecido pelos outros agentes como um parceiro, não se é mais um estranho e sim
um familiar. Não tanto uma sociedade, mas uma associação onde certamente há
disputas, mas disputas pontuais nas quais certos consensos se mantêm. Se os disputantes
questionarem esses consensos, underground, mainstream, real e falso, estarão
colocando em suspenso a própria possibilidade da troca, logo a sobrevivência do
underground.
Mas, se para o lado de dentro a relação é de paz, para fora é de guerra. A
restrição e a relativa autonomia do ambiente conformado em volta do uso específico dos
meios de produção e reprodução da música são alcançadas a partir de um rompimento,
ou no mínimo um distanciamento, de outros usos dos meios de produção e reprodução
da música. O underground é totalmente diferente daquilo que seus praticantes chamam
68
Como nos alerta Magnani (1992), o termo tribo urbana pode até ter algum rendimento analítico
enquanto metáfora, ou seja, emprestando o termo tribo do arcabouço conceitual da etnologia e utilizando-
o como um delimitador inicial de um problema urbano para o qual ainda não se tem um enquadramento
teórico mais preciso. Um bom ponto de partida. Porém, utilizá-lo como uma categoria descritiva e
explicativa, que demanda precisão, pode não ser adequado. O termo tribo, além de poder evocar imagens
muitas vezes depreciativas dos grupos urbanos os quais se busca analisar, como “selvagens” e
“primitivos”, por exemplo, pode também dar a entender que esses grupos vivem isoladamente quando, na
verdade, estão imersos nas múltiplas relações constituintes da malha social urbana.
91

de mainstream, meios de produção e reprodução da música massivos, totalizantes,


abertos e irrestritos. A música é o meio pelo qual o mainstream atinge seus fins, “fama e
lucro”. Neste sentido é significativo que o underground seja visto como possuindo um
espírito enquanto que seu oposto não. Este é pura máquina, pura técnica, só aparência,
exatamente como aquilo que Adorno e Horkheimer (1985) denominaram
ressentidamente de indústria cultural, desarticulada de qualquer possibilidade de
criatividade artística e de produção da diferença69. O mainstream é conforto e
entretenimento e o underground é esforço e ideal. A relação entre ambos só pode ser
dissonante.
Daí a ambivalência do underground. Ao mesmo tempo em que demarca
constantemente sua diferença em relação ao seu entorno de modo absoluto, explícito,
beligerante e raivoso, internamente cria uma irmandade, aliança amistosa a qual, por
mais que seus membros enfatizem que não é “curtição”, traz prazeres. O nome de um
show realizado na capital fluminense em 2006 expressa de modo salutar essa
ambivalência. Uma Aliança Negra, irmandade de pessoas, palavras e objetos voltada à
negação de toda e qualquer música que não a sua própria.
Importante sublinhar esse registro. Por enquanto, estamos tratando das disputas
acerca das formas de produção, reprodução e escuta da música. Mais à frente, com a
temática do metal extremo underground, veremos que é possível estender essa
ambivalência fraternidade ao interno/repulsão ao externo a outros níveis. Por ora, ela
concerne ao já tratado, ao fato de que o underground figura como uma comunidade
musical fundada no seio das técnicas de produção e reprodução da música. Fundação
essa que mesmo sendo explicada como um rompimento com tais técnicas, utiliza essas
mesmas técnicas. Daí a importância da modulação da escuta underground. A
“silenciosa execução” do ouvinte incute significado subjetivo para esta outra forma de
produção e reprodução da música e assim, a faz repercutir para além das próprias
técnicas. Comunidade imaginada, comunidade escutada por “próteses auditivas” que
decodificam na sua música regras e modos de funcionamento e codificam essas regras e
modos de funcionamento em forma de música. Por isso, uma antropologia do
underground do metal extremo brasileiro não pode privilegiar na sua análise a recepção

69
Apenas salientando: conhecemos a realidade do underground para além daquilo que seus praticantes
dizem que ele é. Já em relação ao mainstream nada sabemos para além do que estes mesmos praticantes
dizem que ele é. Portanto, nosso uso de Adorno e Horkheimer aqui é mais como uma legenda da
categoria mainstream do que uma análise de processos produtivos e reprodutivos da música.
92

ou a emissão. Não se trata de uma linha reta que começa na produção e termina no
consumo e sim um círculo no qual recepção e emissão são faces do mesmo fenômeno.

2.4 - Uma ou duas palavras sobre o debate frankfurtiano e suas leituras

No que tange às técnicas de produção e reprodução da arte, certa sociologia da


cultura tendeu a estender as diferenças políticas entre Adorno e Horkheimer (1985) de
um lado e Benjamin (1994) de outro para diferenças metodológicas. A visão ressentida
da indústria cultural dos primeiros e uma perspectiva relativista e esperançosa das
técnicas de reprodução da arte do segundo foram tomadas como matrizes de pesquisas
que salientavam em suas análises, respectivamente, a emissão e a recepção. Deixem-nos
ilustrar o ponto.
O sociólogo e crítico de música inglês Simon Frith (1988) entende que perpassa,
em certos argumentos de críticos, estudiosos e fãs da música popular, um ressentimento
implícito com a indústria fonográfica. Quando correlacionam a industrialização da
música com um declínio das tradições folclóricas e comunitárias, nos diz o autor, eles
estariam assumindo que há ‘(...) alguma atividade humana essencial, o fazer música,
que vem sendo colonizada pelo comércio70’ (idem, p. 12). Segue-se no argumento de
Frith que a música popular no século XX, devido ao tal ressentimento com a
industrialização, é percebida em um contraste entre música como expressão (music-as-
expression) e música como produto (music-as-commodity). A primeira como a
verdadeira e autêntica música, a segunda como espúria, exploradora das criatividades e
capacidades musicais dos artistas e degenerativa das qualidades auditivas dos
apreciadores.
É contra esse estado de percepção da música popular no século XX que o autor
defende que a música não é o ponto de partida da indústria fonográfica e sim seu
produto final: ‘a industrialização da música não pode ser entendida como algo que
acontece com a música, uma vez que descreve um processo pelo qual a música mesma é
feita – um processo pelo qual se fundem (e se confundem) argumentos monetários,
técnicos e musicais71’ (op. cit, p. 12). O autor chama de industrialização da música o

70
Tradução livre de: ‘(...) there is some essential human activity, music-making, which has been
colonized by commerce’.
71
Tradução livre de: ‘the industrialization of music cannot be understood as something which happens to
music, since it describes a process in which music itself is made – a process, that is, which fuses (and
confuses) capital, technical and musical arguments’.
93

modo como a música popular no século XX é feita, e cabe então analisá-lo em seus três
principais aportes: os efeitos das mudanças tecnológicas, as crises e afluências
econômicas da indústria fonográfica e o surgimento de uma nova função nas práticas
musicais, o profissional da música.
Já o comunicólogo espanhol Jesús Martin-Barbero (2003) entende que nos
estudos dos meios de comunicação massivos não há mais lugar para indagações que
resultam sempre em uma mesma constatação: a ideologia dominante manipula os
discursos através das mídias de massa. Não há mais como perceber os meios de
comunicação operando entre ‘emissores-dominantes’ e ‘receptores-dominados’, como
se entre esses dois pólos a mensagem circulante fosse apenas produtora de ideologia e
alienação, esvaziada de conflitos, contradições, resistências e lutas. O principal
problema nesse tipo de pesquisa, defende o autor, é tomar o processo total da
comunicação apenas pelo pólo emissor.
A partir dessa crítica, Martin-Barbero elabora sua proposta de estudo: ‘(...) re-
ver o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro pólo, o da recepção, o das
resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos’ (idem, p. 28).
Se o processo de comunicação for tomado a partir do pólo receptor, ou se preferirmos
do pólo consumidor, veremos então que as mídias são mais do que meios de
comunicação, são mediações, ou seja, operam transformações das mensagens no
processo mesmo de sua transmissão. Para o autor, isso seria perceptível nos usos das
mídias feitos pelos movimentos sociais latino-americanos (op. cit, pp. 225-269).
Eis aí dois autores preocupados com um mesmo tema social porém entrando
nele, literalmente, por lados opostos. Frith estende as implicações de Adorno e
Horkheimer para além deles mesmos na medida em que um saudosismo ressentido
análogo ao dos autores é apontado por ele como o impasse na compreensão da música
popular no século XX. A industrialização não só é fato como é berço da música popular
do século XX no ocidente. Tudo que podemos fazer é conviver com ela e tentar
compreendê-la. Sem reclamações. Martin-Barbero, por sua vez, entende que são
justamente reclamações que o pólo receptor está fazendo. Declaradamente inspirado por
Benjamin, o autor (op. cit, pp. 75-101) até concorda que a indústria cultural é um fato,
mas, de modo algum, isso implica uma planificação da comunicação. Pelo contrário. As
próprias técnicas de reprodução da arte dariam as condições de constantes re-
significações da mensagem, obviamente, recebida.
94

Esses diferentes procedimentos metodológicos estão calcados em apropriações


possíveis do debate frankfurtiano. A visão de Adorno e Horkheimer da indústria
cultural, ultimo estágio de implantação do capitalismo, asfixiadora da única esfera de
produção da diferença na modernidade, a arte, se transforma em ponto de partida para
pesquisas que procuram resolver as técnicas de reprodução apenas pelo lado emissor. Já
a visão de Benjamin, esperançosa, que vê no advento das técnicas de reprodução uma
qualidade revolucionária baseada na aproximação do público com a arte e pelas
possibilidades perceptuais que elas engendrariam, se transforma em inspiração para
estudos que focam em suas análises apenas o outro pólo, o receptor.
Não há nada de errado em transformar as leituras políticas que definem o debate
frankfurtiano em procedimentos analíticos. O problema é que acabam transformando as
visões julgadoras e totalmente interessadas desse debate em procedimentos analíticos.
Assim, escolher entre o pólo receptor e o emissor na análise acaba mantendo o ponto
menos analítico desses autores. Se entrarmos pelo segundo, saímos na conclusão de que
a indústria cultural de fato existe. Aliança dominante, onipotente e inexorável, quase
conspiratória mas que, no entanto, explica a realidade dos modos de produção. Qualquer
crítica é “ressentimento implícito”. Entrando pelo primeiro, concluímos que sempre
existem saídas, que todo o processo de comunicação por estes meios é na verdade
negociação e conflito, os dominados re-significam recebendo. Não perceber isso é
“fascismo intelectual”. Parece-nos que privilegiar emissão ou recepção na análise
necessariamente deságua em defesas e ataques de modos específicos de organização dos
meios de produção e reprodução da arte.
Não estamos clamando por uma busca do ponto de vista independente e
desinteressado, neutro. Mas concordamos com o sociólogo inglês Peter Martin quando
defende que ‘(...) não cabe ao sociólogo decidir se a música clássica é realmente a
manifestação da mais alta e ardorosa busca da alma humana, ou se o blues é realmente o
choro de dor de uma raça oprimida, por mais que essas questões sejam cruciais para
muitos músicos e ouvintes72’ (1995, p. 12). Justamente porque essas questões são
importantes para os artistas e para quem consome suas obras, precisamos compreender
como elas são produzidas. Como tais valores se cristalizam e se tornam preeminentes ou
secundários, como eles organizam formas de fazer e consumir arte ou vice-versa. Enfim

72
Tradução livre de: ‘(...), it is not for the sociologist to decide whether classical music is really the
embodiment of the highest strivings of the human soul, or whether blues is really the cry of pain of an
oppressed race, though such questions are the crucial matters for many musicians and listeners’.
95

como a arte é feita socialmente. Ora, ai está a grande contribuição do debate


frankfurtiano mas que, de certo modo, se mantém enterrada quando concordamos ou
discordamos com as posições desse debate. Para além das profundas diferenças políticas
que as duas perspectivas apresentam, Adorno e Horkheimer de um lado e Benjamin de
outro nos mostram que as técnicas de produção e reprodução se tornaram centrais na
feitura da arte. Guardadas as diferenças e proporções, é difícil não topar na análise da
arte em contextos urbanos com tais técnicas. Mas é preciso não fazer política com o
debate frankfurtiano para perceber que o seu pioneirismo está em apontar para o fato de
que se faz política com as técnicas de produção e reprodução da arte.
O debate frankfurtiano assume que os meios de reprodução da arte são territórios
cruciais de defesa e ataque identitários naquilo que outrora se convencionou como
modernidade. O grande problema da indústria cultural, para Adorno e Horkheimer
(1985), é que a ela correspondem modos de percepção distraídos, de entretenimento,
logo espúrios e degradados. Se levarmos em conta a sociologia da música elaborada por
Adorno (1975), temos nela não só uma tipologia das escutas como todo um
apontamento de possibilidades de fuga da indústria cultural, como na análise da música
de seu mestre, Schoenberg. Já para Benjamin (1994) a grande possibilidade
revolucionária das técnicas estava justamente na transformação de uma percepção
contemplativa da arte, a qual para o autor não era nada além de fascismo intelectual, em
distração. Mas distração não é entretenimento para Benjamin e sim fragmentação do
lócus original da obra de arte. Uma vez que esta perde sua unicidade, seu “aqui e
agora”, através da reprodução, a mesma obra de arte pode ser recepcionada a um só
tempo em diferentes lugares, acentuando assim diferentes acolhimentos. Para além de
suas notáveis diferenças Adorno, Horkheimer e Benjamin demonstram que a
industrialização da arte não é só industrialização, pois corresponde a modos de
percepção, e a recepção só pode ser múltipla se for produzida pelas técnicas de
reprodução. A emissão não é só máquina e a recepção não é só humana. Novamente,
muito mais do que termos ligados por uma linha reta, as técnicas de reprodução da arte
são relações, ao mesmo tempo, de produção e recepção.
Antes de assumirmos qualquer posição frente às condições da música
contemporânea, procuramos averiguar tais condições. Buscar uma compreensão
antropológica de qualquer manifestação social que guarde relações com alguma música,
pelo menos em contexto urbano, certamente demanda a conscientização de que as
técnicas de fazer, escutar e apresentar música, essas técnicas eletrônicas, mecânicas,
96

magnéticas e digitais, são causas e efeitos, muitas vezes ambos ao mesmo tempo, dessas
manifestações sociais. Ou seja, a compreensão da música enquanto um tema social
demanda percebê-la enquanto uma construção, gerada em meio a alianças e conflitos
constituídos pelas e constituintes das diferentes formas de gravação, veiculação,
distribuição e escuta. Se essas técnicas ensejam desprezo ou júbilo pelo “mercado
fonográfico”; se elas acionam ou não controvérsias acerca da autenticidade da música;
se elas enfatizam a emissão ou a recepção, só poderemos saber após a etnografia.
Foi nesta afinação que tentamos compor nossa análise do underground do metal
extremo brasileiro. Não tanto por opção teórica mas também pelo que a etnografia
apresenta. Toda a crítica que seus praticantes fazem ao “mercado” da música
condensada naquilo que denominam mainstream, toda essa postura contra qualquer
meio massivo de produção e comunicação da música, de modo algum os coloca à
margem destes mesmos meios. Pelo contrário, os coloca frente a frente, em disputa
pelas formas com as quais irão utilizar esses meios. Contudo, nessa política das
produções do som, são em alguma medida vitoriosos. Conseguem manter suas formas
em operação, discretas, auto-sustentáveis e relativamente autônomas. É aqui que sua
crítica ou, para colocar de modo clássico, seus sistemas classificatórios, re-encontram
sua eficácia. As disposições e classificações acionadas pelas categorias underground e
mainstream regulam o funcionamento do sistema de trocas. Essas categorias lançam os
praticantes na disputa e, se observadas ao longo do conflito, garantem suas vitórias, a
manutenção da troca e do show. Vimos também pelos termos real e falso como essa
observação é importante para os praticantes. Antes de serem categorias propriamente
nominadoras de pessoas e bandas do underground, real e falso classificam modos de
representar este e se portar neste espaço. Fala-se menos dessas categorias do que se age
pelo que elas representam. Agência que exibe conhecimento das regras e modos de
funcionamento do underground e procura reconhecimento de que essas regras e modos
estão sendo acionados “do jeito certo”.
97

3 - SERES DO SUBMUNDO – OS ESTILOS DE METAL EXTREMO

3.1 - Estudando o heavy metal: o problema da diversidade

Nos capítulos anteriores procuramos fazer uma antropologia da comunicação do


underground do metal extremo nacional. Como se organiza a sua troca e como a
percepção dos praticantes acerca dessa troca constitui um espaço específico de produção
de música. Cabe agora compreendermos o que está sendo comunicado no underground
e a partir daí, como se organiza e como se percebe o metal extremo underground
brasileiro.
É inevitável começarmos nossa apreensão do metal extremo pela apresentação
de um problema que perpassa boa parte da bibliografia acadêmica que tratou do heavy
metal73: sua diversidade. É possível abordar o heavy metal univocamente, enquanto um
estilo musical, ou, reconhecendo que as diferenças entre os estilos de metal são por
demais agudas, é necessário se reportar, na análise, somente a um desses estilos? De
outro modo, o heavy metal é um só ou é múltiplo?
Muito provavelmente, o sociólogo canadense Will Straw publicou em 1984 o
primeiro artigo acadêmico voltado a uma análise do heavy metal74. A reflexão proposta
no seu artigo procura contextualizar o surgimento deste estilo de música, segundo o
autor acontecido no início dos anos 70 nos Estados Unidos e Inglaterra, no âmbito das
transformações da indústria fonográfica. O autor nos diz que as várias pequenas
gravadoras surgidas nesses dois países durante a década de 60, não conseguindo se
manter no negócio da música, são compradas pelas grandes gravadoras no começo dos
anos 7075. Contudo, essa compra das gravadoras pequenas e locais pelas grandes e
internacionais corresponde a uma assimilação da mão de obra das primeiras pelas
segundas. Segundo Straw, os executivos das grandes gravadoras estavam de cientes que

73
Importante guardar essa distinção, no caso do heavy metal, entre bibliografia acadêmica e não-
acadêmica. Este estilo musical é objeto de uma série de livros que não resultam de pesquisas feitas em
âmbito universitário. Porém, sem desconsiderar a qualidade desses livros, seria impossível, devido ao
grande número deles, incluí-los na revisão bibliográfica feita a seguir.
74
Originalmente publicado em 1984, o artigo Characterizing Rock Music Culture: the Case of Heavy
Metal foi republicado, com a inclusão de um pequeno pós-escrito, em 1993. A paginação citada
subseqüentemente se refere à segunda versão.
75
Ao longo de todo o texto o autor não define explicitamente quais são os critérios utilizados para
identificar uma gravadora como pequena e outra como grande. Porém ele nos dá pistas de que essas
denominações se referem a “fatia” do mercado que cada gravadora domina. Em dada altura do texto
(1993, p. 370) nos diz que as seis maiores gravadoras norte-americanas eram responsáveis, em 1979, por
86% dos discos lançados neste ano.
98

os responsáveis pelas pequenas sabiam que tipo de música poderia render grandes
lucros. Afinal, foram essas pequenas gravadoras que sedimentaram o rock, durante os
anos 60, na indústria fonográfica. Seus proprietários e responsáveis eram, eles mesmos,
músicos e promotores de shows que teriam percebido o potencial do rock para ser a
linha mestra da indústria fonográfica da época. Contudo, mesmo com o “sucesso” do
rock, suas gravadoras não conseguiram fazer frente ao poder econômico das grandes
gravadoras. Perderam seus negócios, mas ganharam empregos com ótimos salários.
Segundo Straw, o heavy metal é fruto desse contexto fonográfico. Lançadas pelas
grandes gravadoras da época, as primeiras bandas que poderiam ter sua música definida
como heavy metal foram montadas por essa ‘elite do rock’ (STRAW, 1993, p. 370),
oriunda das pequenas gravadoras dos anos 60. Músicos que sabiam como funcionava o
mercado da música, pessoas que estavam totalmente inseridas nas gravadoras lançaram
os primeiros discos de heavy metal e assim, segundo o autor, fundaram esse estilo de
música que viria a se tornar também um estilo de vida.
A perspectiva de Straw oferece interessante contraponto em relação a alguns
estudos, notadamente aqueles realizados no Centre for Contemporary Cultural Studies
de Birmingham durante a década de 7076, que viam grupos urbanos formados a partir de
estilos de música como fenômenos totalmente extra-institucionais. Como se o punk ou o
disco, por exemplo, tivessem emanado das ruas de Londres e Nova York, na ebulição da
condição juvenil que quer resistir a ‘cultura hegemônica’ dos seus pais, como
defenderam Hall e Jefferson (1976). Para Straw, mesmo que o heavy metal tenha se
tornado um estilo de vida já em meados da década de 70, estilo enquanto comunicação
de uma diferença distintiva como quer Hebdige (1979, pp. 100-127), não se pode
esquecer que ele é, sobretudo, resultado da conjunção de interesses financeiros da
indústria fonográfica com o interesse da “elite do rock” de então em se manter ativa no
negócio da música gravada. Ou seja, para Straw, a música produzida preconiza o modo
de vida heavy metal.
Entretanto, Straw, no pós-escrito incluído em seu artigo quando republicado
(1993, p. 381), faz uma ressalva quanto ao recorte histórico do seu texto: este diz
respeito tão somente à década de 70. Essa ressalva é significativa. É possível se reportar

76
Os estudos realizados sob a tutela do centro para estudos culturais contemporâneos de Birmingham, ou
CCCS, são os grandes responsáveis pela popularidade da categoria subcultura, outrora muito utilizada em
trabalhos preocupados em analisar grupos urbanos juvenis. Duas publicações deste centro de estudos se
destacam: a coletânea organizada por Stuart Hall e Tony Jefferson, intitulada Resistence Through Rituals:
Youth Cultures in Post-war Britain (1976) e o livro de Dick Hebdige, Subculture: the meaning of Style
(1979).
99

ao heavy metal como um estilo musical coeso e relativamente indiferenciado apenas


nessa década. É possível tratar da realidade social de uma série de bandas e seus
respectivos públicos como agentes de um único tipo de heavy metal apenas nos anos 70.
É possível defender que o heavy metal é basicamente resultado de transformações da
indústria fonográfica apenas nesse período histórico. Para o autor, a razão da
impossibilidade de estender historicamente essas afirmações é que ‘pelo final dos anos
80 (...) o heavy metal emergiu como um dos estilos musicais mais diversos’ (op. cit).
A diversidade do heavy metal, a multiplicidade de tipos de metal que estariam
sob a alcunha do heavy metal, traçou o recorte histórico da análise de Straw. Ela, a
diversidade, pareceu ser tão importante para o autor que ele se sentiu obrigado a frear
seu argumento no momento histórico de seu surgimento. Quando o heavy metal se
diversifica musicalmente não há mais como abordá-lo enquanto um só. Ele, o heavy
metal, se torna mais que um. Ele se torna outros.
Esta diversidade do heavy metal não foi um problema apenas para Will Straw.
Uma série de trabalhos acadêmicos que abordou este estilo de música se viu na
necessidade de encontrar uma forma de resolvê-la, seja diretamente explicando-a, seja
obtendo uma maneira de enquadrá-la. Enquanto Straw, de certa maneira, se exime de
abordá-la, a socióloga Deena Weinstein (2000) procura explicar aquilo que define como
fragmentação do heavy metal nos Estados Unidos, que teria acontecido por volta dos
anos 83-84, como resultado de uma “supersaturação” dos elementos musicais e líricos
do estilo (idem, p. 45). O esgotamento das possibilidades de variação musical do heavy
metal teria feito com que dois ‘subgêneros’ irrompessem, cada um enfatizando aspectos
musicais por demais distintos. O ‘lite metal’ acentuando a melodia e a temática
dionisíaca e o ‘speed/trash metal’ sublinhando o ritmo em sua música e o caos em suas
letras (op. cit, pp. 45-51). Já o sociólogo e musicólogo Robert Walser (1993) toma uma
posição mais relativista. Ele indica a fragmentação do estilo e elenca os mesmos
‘subgêneros’ que Weinstein aponta, porém não almeja qualquer explicação. Para o
autor, a história do heavy metal é por demais contestada pelos seus próprios fãs. Cada fã
conta uma história do estilo, sublinhando as diferenças internas que lhe são mais caras.
Sendo assim, qualquer interpretação das distinções dos ‘subgêneros’ depende do que o
heavy metal significa para quem está traçando essas distinções (idem, pp. 11-16).
Porém, após esse posicionamento relativista da introdução, Walser parte para uma
musicologia do heavy metal como um todo, baseada em análises de partituras de
canções que, de modo algum, podem ser consideradas representativas de todos os
100

‘subgêneros’ do estilo (op. cit, pp. 57-107). Um fã pode até concordar com o argumento
que perpassa a musicologia de Walser, a idéia de que os guitarristas de heavy metal se
apropriam de certas características musicais daquilo que se convencionou denominar no
século XX de música clássica (op. cit, p. 58), mas pelas mesmas razões que o autor
aponta na introdução, este mesmo fã pode contestar a validade desse argumento para
todos os estilos de heavy metal.
No Brasil, os trabalhos acadêmicos que abordam o heavy metal não fogem ao
tratamento da diversidade. Tanto a dissertação de Janotti Jr (2004) quanto a tese de
Alvim Leite Lopes (2006) marcam, ao longo dos respectivos textos, a multiplicidade
dos tipos de metal abrigados sob o heavy metal em contexto nacional. Contudo, como o
recorte de ambos é espacial, o primeiro abordando a cena heavy metal soteropolitana
(2004, pp. 57-124) e o segundo o mundo artístico do heavy metal no Rio de Janeiro
(2006, pp. 2-28), os distintos estilos de metal são classificados como ‘subgêneros’,
como partes do todo social/musical heavy metal. Para o nosso argumento, é importante
assinalar que, para ambos os autores, as diferenças entre os estilos de metal não
desautorizam abordagens unívocas deste estilo de música quando o objeto é sua
manifestação dentro dos limites de uma cidade. As diferenças existem, elas são
importantes na visão nativa, porém não impedem uma análise comum. A musicóloga
Cláudia Azevedo (2007) segue, de certa maneira, a mesma linha argumentativa. Seu
artigo procura averiguar, a partir de um ponto de vista histórico, as construções das
diferenças e semelhanças musicais dos distintos ‘subgêneros’ de metal praticados no
Rio de Janeiro desde a década de 80. Porém, o heavy metal é mantido intacto. São
‘subgêneros’ de um gênero77.
Se, mesmo reconhecendo a diversidade do heavy metal, esses autores tratam-no
enquanto uma unívoca e relativamente coesa manifestação social/musical, outros
autores, entretanto, entenderam que as diferenças internas são tão cruciais na
compreensão da realidade deste fenômeno que, para eles, não é mais possível
empreender uma abordagem unívoca do heavy metal. É preciso se manter restrito a
manifestação de uma dessas diferenças.

77
Juntamente com a dissertação de Jorge Luiz Cunha Cardoso Filho (2006), esses são os três trabalhos
nacionais de fôlego sobre o heavy metal. Todavia não são os únicos. Jeder Janotti Jr, na condição de
professor da faculdade de comunicação da Universidade Federal da Bahia, orientou e vem orientando
trabalhos sobre o heavy metal. Alvim Leite Lopes, por sua vez, também cita na bibliografia da sua tese
(2006, p. 183) a monografia de graduação em comunicação social de Elisa Palha, a qual não tivemos a
oportunidade de ler. A produção acadêmica nacional sobre o heavy metal gira, assim, entre as áreas de
musicologia, comunicação social e ciências sociais.
101

Natalie Purcell (2003) entende que o death metal norte-americano é tão


autônomo em relação ao heavy metal que ele mesmo já teria se tornado um gênero
constituído por ‘subgêneros’ (idem, pp. 9-52). Harris Berger (1999b), assim como
Alvim Leite Lopes e Janotti Jr, tem como universo de pesquisa os músicos e
apreciadores de uma cidade, Akron, no estado norte-americano de Ohio, mas apenas os
apreciadores de death metal dessa cidade (idem, pp. 56-75, 200-241, 251-275). Já Keith
Kahn-Harris (2007) propõe um recorte semelhante, porém mais abrangente, ao nosso.
Mesmo que seu material de pesquisa tenha sido coletado em três países, Inglaterra,
Suécia e Israel (idem, pp. 97-120), o autor afirma que sua pesquisa trata da cena do
metal extremo mundial, fenômeno musical e socialmente distinto do heavy metal (op.
cit, pp. 9-26). Interessante notar que o autor justifica seu recorte utilizando a explicação
proposta por Weinstein (op. cit, pp. 2-5). Em algum momento da década de 80, duas
tendências de heavy metal se cristalizam. Aquela que Weinstein definiu como
‘speed/trash metal’, nos diz Kahn-Harris, se transformará, já no início dos anos 90, no
metal extremo, um conjunto destes seguintes estilos: black metal, death metal, trash
metal, doom metal e grindcore, exatamente os mesmos observados em nossa pesquisa
com o underground do metal extremo brasileiro.
É possível estabelecer uma aproximação entre todos esses autores. Seja
explicando a diversidade, seja enquadrando as diferenças em ‘subgêneros’ ou mesmo
escolhendo algumas dessas diferenças como objeto específico da análise, todos
concordam que existe uma diversidade interna ao heavy metal. Sim, o heavy metal, para
boa parte da bibliografia acadêmica, é múltiplo. Contudo, esses autores se distanciam
uns dos outros quanto à maneira como concebem essa diversidade. Para Weinstein
(2000), Walser (1993), Janotti Jr (2004), Alvim Leite Lopes (2006) e Azevedo (2007),
essas diferenças estão englobadas pelo gênero heavy metal. Por mais generalizante que
o termo heavy metal possa ser, ele ainda seria o gênero de uma série de espécies, os
‘subgêneros’. Já para Purcell (2003), Berger (1999b) e Kahn-Harris (2007), a agudeza
dessas diferenças esgarça o heavy metal, rompendo assim sua capacidade acolhedora.
Por mais que ele possa ser considerado a matriz histórica de outros estilos, esses
mesmos estilos não poderiam ser abordados conjuntamente através de uma análise do
heavy metal. Seria preciso fechar o foco em cada um desses estilos.
Podemos colocar o distanciamento entre as abordagens acima revisadas na chave
do universalismo/particularismo. Em todas elas o heavy metal é múltiplo, mas, enquanto
para algumas, essa multiplicidade pode ser emoldurada em uma unidade, o universo do
102

heavy metal, para outras, essa multiplicidade expressa unidades particulares, não
suscetíveis de serem enquadradas por qualquer categoria mais ampla. Tal é o
distanciamento entre essas abordagens, espécie de imbróglio que se apresenta na
literatura acadêmica sobre o heavy metal.
Após esse breve resumo bibliográfico, não cabe concordar ou discordar das
análises expostas. Até mesmo porque cada uma ilumina facetas dessa manifestação
ampla e complexa que é o heavy metal, contribuindo assim na construção de desejada
perspectiva holista sobre ele. Mas, assim como cada uma dessas abordagens aponta para
a diversidade e se posiciona frente a ela, nós também detectamos no underground do
metal extremo nacional uma diversidade e, sendo assim, precisamos resolver como a
trataremos.
Os praticantes do underground do metal extremo nacional discutem
exaustivamente a história do heavy metal. Nos shows, nos zines, em bares, na rua e na
casa, eles expõem e debatem suas visões das continuidades e rupturas históricas deste
estilo de música. Exegetas, passam horas discorrendo sobre as diferenças estilísticas
entre os tipos de metal, estabelecendo limites e construindo abrangências. Concordamos
com Walser (1993) em que, no limite, cada praticante possui a sua interpretação das
semelhanças e diferenças acerca dos diversos estilos de heavy metal. Mas, para os
praticantes, o “legal” é debater essas interpretações, expô-las e ouvi-las, torná-las
públicas. As interpretações individuais, desse modo, são construídas nessas conversas e,
dependendo da sua qualidade e da persuasão com que são expostas, influenciarão outras
interpretações em subseqüentes conversas.
Ou seja, a mesma preocupação que encontramos na literatura acadêmica sobre o
heavy metal pauta o debate entre os praticantes do underground do metal extremo
nacional. A questão é interpretar e explicar as semelhanças e diferenças. A discussão do
underground é da mesma natureza que o imbróglio da literatura. Quais são as
particularidades de cada estilo e em qual medida essas particularidades podem ser
abarcadas por estilos mais abrangentes, universais, como o heavy metal e o metal
extremo. A diferença entre as discussões dos praticantes e a dos acadêmicos é que,
enquanto esses constroem uma representação sobre a realidade, aqueles constroem uma
representação da realidade que será, ela mesma, construtora da realidade do
underground78.

78
A literatura acadêmica sobre heavy metal é praticamente desconhecida pelos praticantes.
103

Se concordarmos com Simmel que estilo é uma categoria construída em meio ao


conflito entre singularidade e universalidade79, então as perspectivas dos praticantes
acerca do metal extremo underground nada são constantes sintetizações, aglutinações
de singularidades musicais, líricas e visuais nos universos black metal, death metal,
trash metal, doom metal e gore/grind/splatter, os quais, por sua vez, são sintetizados no
estilo “generalizante” que é o metal extremo. Todavia, sintetizações de extrema eficácia
na organização do underground, pois regulam a forma como as diferenças das
sonoridades, temáticas abordadas, iconografia e vestuário dos integrantes das bandas e
dos praticantes em geral serão percebidos internamente. É dessa forma que encararemos
a diversidade interna do metal extremo underground nacional, a partir do ponto de vista
nativo que valoriza distinções, acompanhando a construção dessas sintetizações que os
praticantes estão a fazer.
Em relação aos estilos gore/grind/splatter, trash metal e doom metal,
procuraremos esboçar como seus motivos principais são traçados e como há uma
convergência estilística entre eles. Ao death metal daremos mais ênfase por entender
que esse estilo apresenta de forma mais explícita os principais motivos musicais do
metal extremo. Para o black metal um capítulo próprio se faz necessário, uma vez que
ele expressa da maneira mais nítida aquilo que podemos chamar de “ideologia” do
underground.

79
Estilo é uma das preocupações de Simmel que perpassam praticamente toda sua obra. A leitura aqui
proposta está baseada no último capítulo do seu Philosophie des Geldes, na tradução francesa (2007, pp.
545-569). Baseamo-nos também na extensa discussão sobre “estilo de vida” em Simmel feita por
Waizbort (2000, pp. 169-244).
104

A HARMONIOSA DIVERSIDADE DO METAL EXTREMO.


Cartaz de um show realizado em 2006, em Vila Velha, Espírito Santo, com bandas
representantes de todos os estilos. É comum, mas não regra, indicar, nos cartazes, o estilo
de cada banda.
105

3.2 - Patológicas: gore/grind/splatter

Show em Criciúma, outubro de 2006, o primeiro Great Steel Festival. Dez


bandas, todas sulistas, representando várias vertentes do metal extremo, tocando por
mais de seis horas no clube União Mineira. Fui acompanhado de alguns colegas de
Blumenau, o Rogério e o Luiz, ambos apreciadores de longa data do metal extremo. Já
integraram bandas, mas atualmente preferem ficar “sossegados”, como Rogério disse
enquanto dirigíamos para Criciúma.
Das bandas que se apresentariam no evento, nós três só conhecíamos o trash do
Juggernaut. As outras bandas eram incógnitas, provavelmente recentemente formadas,
espécie de nova safra do metal extremo catarinense e gaúcho. Quando a quinta banda
começou a preparar o palco para se apresentar, Luiz comenta conosco: “olha só, vai
rolar um splatter agora”. Olhei para o palco e instantaneamente concordei com ele, era
uma banda de splatter metal. No entanto, ao mesmo tempo em que concordei,
surpreendi-me com nossa classificação. Como é que sabíamos que era uma banda de tal
estilo? Não havia pano de fundo pendurado (tecido com o nome da banda, geralmente
pendurado minutos antes da apresentação, que poderia nos dar alguma pista do estilo),
não conhecíamos aquelas pessoas no palco, não tínhamos visto no cartaz ou no flyer do
show que uma banda de splatter estaria se apresentando. Tínhamos quatro jovens, dois
de cabelo curto e dois de longos, vestidos em camisetas pretas e bermudas preparando o
palco. Como o show não tinha profissionais cuidando da aparelhagem do palco,
sabíamos que eram os integrantes da banda ali, montando a bateria e ligando os
instrumentos de corda, mas como sabíamos que aqueles quatro jovens apresentariam
splatter metal? Claro, as bermudas, eles estavam de bermudas. Não deu outra. Era a
banda Ovários e eles tocaram, os quatro, de bermudas.

O sociólogo Paula Scarpa estudou em sua dissertação (2007) a produção e o


consumo de filmes exploitation no Brasil, filmes “(...) cujo elemento central é a
violência estetizada de maneira gráfica e realista” (idem, p. 4). Filmes “extremos”,
como seus apreciadores os definem, pois exploram o excesso de violência em suas
produções. Scarpa descobriu que a produção desses filmes no Brasil é feita de modo
underground, auto-financiada, de veiculação restrita aos próprios produtores e, o mais
interessante para nossa pesquisa, que esse underground dos filmes extremos no Brasil
mantém íntimas relações com o underground do metal extremo no Brasil,
especialmente no estado de Santa Catarina (op. cit, pp. 175-193). O autor, em sua
pesquisa de campo, compareceu ao Splatter Night de 2006, um festival de música e
cinema “extremos” que acontece anualmente, em outubro, desde 1996, sempre em
Joinville, Santa Catarina. Ele descreve o evento assim:
106

(...) Um grande galpão dá espaço para as bandas se apresentarem e uma ampla área
externa dá espaço para venda de produtos em barraquinhas, mesas e bancos e até uma
área reservada para acampamento. O público é predominantemente masculino, numa
proporção de 70% de homens para 30% mulheres. A faixa etária média é mais velha do
que a esperada inicialmente por mim, variando aproximadamente de 20 até 45 anos. Os
membros antigos, presentes desde longa data neste meio social, e também os
organizadores do festival, tendiam a ficar mais pertos de si. No festival realizado em
2006 podiam-se ver barracas de acampamento de pessoas que viajaram de longe para
estarem presentes. Indivíduos com roupas de cirurgiões médicos, sujas de sangue falso,
podiam ser vistas circulando pelo ambiente desde pessoas vestidas de formas mais
“convencionais”, embora a cor preta fosse majoritariamente predominante no ambiente.
No galpão de dentro bandas se apresentavam enquanto um telão de fundo mostrava
trechos de filmes de alguns dos próprios participantes (op. cit, pp. 180-181).

Evento realizado em um galpão, público em sua maioria masculino, barracas e


mesas vendendo produtos underground, cor preta predominante no vestuário. Tudo nos
lembra um show do underground do metal extremo nacional, até mesmo a postura dos
membros antigos e organizadores do festival, os “veteranos” reais do evento em
questão.
Contudo, o show teve apresentação de filmes “extremos”, algo que nunca
presenciamos em outros shows do metal extremo. O próprio evento foi organizado por
cineastas e músicos. As bandas que se apresentaram no show não se definem como
propriamente metal extremo. Fazem grind core, splatter metal ou gore metal80, os
quais, segundo as bandas, não são metal nem punk. O texto de apresentação do
myspace81 da principal banda do Splatter Night de 2006, a paulista Rot, pode ser
esclarecedor:

O ROT teve início em 1990, formado por Mendigo e Marcelo, que, mesmo antes dessa
data, já estavam bem ativos no meio underground punk e metal, seja no envolvimento
com outras bandas e projetos ou fazendo fanzines, trocando tapes e mantendo contato
com pessoas ao redor do mundo. O caráter da banda desenvolveu-se a partir desse forte
envolvimento com o underground de um modo geral, embora o ROT dificilmente possa
ser enquadrado dentro dos padrões do metal ou do punk82.

Nem punk nem metal. É grind/gore/splatter. Uma prática


musical/cinematográfica urbana que parece buscar uma autonomia, se já não a alcançou.
No que tange à música, fazem frente ao punk e ao metal extremo, suas matrizes

80
Os apreciadores destes estilos dizem que existem grandes diferenças entre eles, não obstante,
entendemos que os três possam ser analisados em conjunto.
81
Myspace: sítio eletrônico de relacionamento da internet muito utilizado por bandas de todo o mundo
pelo fato de que é possível adicionar canções em suas páginas. Um interessante meio de divulgação livre
que não é juridicamente ilegal, como os programas de troca de arquivos digitais. Estaremos indicando os
endereços de myspace de todas as bandas comentadas neste capítulo que o possuam, para que o leitor que
tiver interesse tenha meios de ouvir as canções da banda.
82
www.myspace.com/rotgrindcore. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008.
107

reconhecidas. Seus praticantes fazem shows específicos, como o Splatter Night, e


possuem zines específicos, como o Gore zine, de Rio Grande, Rio Grande do Sul, e o
Sodomizing Underground, de São Paulo capital. Já sua produção cinematográfica, pelo
que Scarpa averiguou, é vasta e também está calcada numa série de encontros nacionais
específicos, mostras de filmes “extremos” (op. cit, pp. 175-193).
No entanto, independentemente de essa autonomia de suas práticas ser ou não
sociologicamente factível, o estilo gore/grind/splatter, mesmo que dificilmente se
encaixe plenamente no punk ou no metal extremo, explicitamente apresenta motivos do
punk e do metal extremo e, assim, circula no underground do metal extremo e no do
punk.
Naquilo que nos interessa, no underground do metal extremo, a posição do
gore/grind/splatter é única em relação aos outros estilos expressos neste espaço
justamente por essa forte influência punk. Ele se apresenta no underground deslocando
certas particularidades fundamentais do estilo do metal extremo sem, com isso, criar
qualquer espécie de atrito. O gore/grind/splatter é uma espécie de “primo distante” do
metal extremo amigavelmente recebido na “casa” do underground.
O caso das bermudas dos integrantes da banda Ovários é exemplar. Se uma
banda de black metal ou death metal sobe no palco para se apresentar com algum
integrante vestindo bermuda, sem dúvidas ela perderá qualquer respeito entre os
presentes. O vestuário do metal extremo é, invariavelmente, para os homens, composto
de calças de couro ou jeans. Mas ali no Great Steel Festival, show de metal extremo
underground, os integrantes da Ovários subiram ao palco de bermudas, peça de roupa
que, no punk, não é objeto de qualquer evitação e, o mais interessante, não houve
qualquer manifestação negativa por parte do público. Pelo contrário, foram aplaudidos.
Não houve estranhamento. Afinal, era uma banda de gore/grind/splatter, o mais punk
dos estilos de metal (ou, pelo lado do punk, o mais metal dos estilos punk).
As canções das bandas gore/grind/splatter possuem um tempo de duração curto
se comparadas às canções dos outros estilos de metal extremo. Enquanto uma canção de
doom metal pode variar de cinco a dez minutos, uma canção gore/grind/splatter não
passa de quatro minutos. A faixa Anatomopathologic, por exemplo, da banda Anopsy83
de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, possui três minutos e onze segundos.
Consequentemente, lançam gravações com um número de canções que nenhuma banda

83
www.myspace.com/anopsy. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008. A canção citada se encontra
para audição.
108

dos outros estilos consegue alcançar. A fita demo Scathologic paradise, dos
fortalezenses da Scatologic Madness Possession84, lançada em 2004, possui quinze
canções, enquanto a fita demo da curitibana Hate, título homônimo, trash metal,
lançada em 1998, possui quatro. Aliás, a banda cearense é adepta daquilo que chama de
“no fucking lyrics”, ou seja, suas canções não acompanham letras, mesmo havendo um
vocalista na formação da banda85. Só as bandas de gore/grind/splatter, no metal
extremo, aderem a este tipo de prática musical, certamente emprestada de bandas punk.
Assim como somente elas flertam com o humor. Por exemplo: o nome de uma banda de
Aracaju, Sergipe, Inrisório86, é um neologismo que brinca com a sigla I.N.R.I e com o
adjetivo irrisório. Tomando a sigla como representação de Jesus Cristo, a banda procura
transmitir a idéia de um Jesus patético, irrisório, pode-se dizer até ridículo. Essa idéia,
para os praticantes do underground do metal extremo, é cômica. Ela provoca risadas,
expressão essa que nenhuma banda dos outros estilos, quando estão se apresentando,
procura provocar87.
Humor, “no fucking lyrics”, canções curtas e bermudas são algumas das
particularidades que o gore/grind/splatter não compartilha com nenhum outro estilo de
metal extremo underground. Mas então como é que este estilo se aproxima dos outros?
O que faz com que o gore/grind/splatter, mesmo sendo tão peculiar para o
underground, mesmo que seja um estilo de metal tão punk, seja considerado pelos
praticantes do underground um estilo de metal extremo? O que ambos compartilham?
A banda Flesh Grinder de Joinville, Santa Catarina, pode nos ajudar a
compreender como o gore/grind/splatter se aproxima do metal extremo. Eles se
apresentam assim no seu myspace88:

84
www.myspace.com/scatologicmadnesspossession. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
85
A afirmação está na entrevista dada por Marcelo, baterista da banda, ao webzine Thundergod:
http://thundergodzine.com.br/entrevista_smp.htm. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008.
86
www.myspace.com/inrisorio. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008.
87
Podemos dizer que existe uma evitação do riso no palco. Afora as bandas de gore/grind/splatter, em
nenhum show de metal extremo underground que assistimos vimos algum integrante de banda rir durante
a apresentação.
88
http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendID=48206176. Acessado
pela última vez em 13/03/2008. O texto citado abaixo se encontra no sítio eletrônico em inglês.
109

Ontem, por volta das 23h30, a Polícia Militar recebeu uma denúncia anônima e invadiu
uma casa localizada na rua Aquidaban, em Joinville-SC. De acordo com o denunciante,
os donos da casa são conhecidos por terem atitudes estranhas aos olhos dos vizinhos e,
nos últimos dias, o cheiro de carne em decomposição vindo do local estava
preocupando alguns dos outros moradores. Após a invasão, e para a surpresa dos
policiais, logo no quintal da casa foram encontrados restos do que pôde se supor serem
corpos humanos, em acelerado estado de putrefação, e ossos espalhados, no que parecia
ser uma espécie de laboratório de horrores. O cheiro dos cadáveres era insuportável e,
por toda parte, haviam membros dilacerados por instrumentos de corte e alguns com
marcas de dentes, o que levou a PM a suspeitar de canibalismo do mais violento. Dentro
da casa o horror não era menor. Alguns oficiais não conseguiram continuar ao ver
diversos corpos pendurados no teto, como em um abatedouro. Em uma mesa cirúrgica
no centro da sala, mais alguns corpos pareciam estar sendo dissecados, com órgão
empilhados em um jarro de vidro. O chão estava escorregadio por causa do sangue e
vermes. A PM encontrou os quatro responsáveis pelas atrocidades na cozinha, enquanto
analisavam um estômago apodrecido.
F.A.M.G., vulgo Necromaniak, R.A.M., vulgo Butcher, e D.R.H. vulgo Khil, foram
presos em flagrante e levados à delegacia. Em interrogatório, a PM descobriu que o
grupo, que se autodenomina Flesh Grinder, tem uma espécie de culto às coisas podres
de ordem patológica e vem atuando desde 1993. De acordo com eles, muito sangue e
nojeiras explícitas já foram espalhados e que sua fábrica de horrores irá continuar ainda
por muitos anos.

“Um culto às coisas podres de ordem patológica”. Nós não poderíamos ser mais
precisos na definição da temática abordada pelas bandas que fazem gore/grind/splatter.
Coisas podres, corpos humanos podres, abertos e escarafunchados não pela busca de
patologias mas porque estes “legistas” sofrem patologias. O gore/grind/splatter busca
uma representação explícita de tripas humanas em decomposição, de cabeças humanas
fisicamente divididas, de sangue coagulado. Seus músicos e apreciadores gostam de
brincar de serem legistas “loucos”, de serem “maníacos” pela morte, de serem
açougueiros. Daí eles comparecerem aos shows vestidos de médicos sujos de “sangue”
e daí a metáfora com o verbo em inglês grind para descrever a sonoridade do estilo.
Uma música que procura representar a trituração e a moedura da carne humana, assim
como o blues busca representar musicalmente o trem passando. Mas triturar e moer
carne humana todo legista faz. O músico gore/grind/splatter representa essas ações de
forma horrenda, “nojeiras explícitas”. O instituto médico legal imaginado pelos músicos
gore/grind/splatter se parece com, ou melhor, soa como uma “fábrica de horrores”.
Repugnante. É assim que o vocalista da banda curitibana Lymphatic Phlegm nos
descreveu89 como seu vocal deve soar: “repugnante, é como se eu estivesse vomitando”.
O corpo humano violentamente aberto e manuseado não só inspira metáforas da
música gore/grind/splatter como também estará estampado no material gráfico das

89
Nossa conversa aconteceu no intervalo de um show, em Curitiba, 2004.
110

bandas. O Intestinal vomit90 de Teresina, Piauí, divulgou sua biografia entre alguns
zines através do seguinte material:

Neste sentido, da repugnância, vômitos, excrementos e toda espécie de líquidos


e sólidos expelidos pelo corpo humano inspiram os músicos na composição das imagens
construídas em suas canções. A banda I shit on your face91 de Vila Velha, Espírito
Santo, lançou em 2005 o cd Anal Barbeque, com canções intituladas From Fetus...to
Feces e Brown Puke (the Tale of an Obstructed Large Intestine). Já na letra da canção
Fistfucking the Facefucked92, contida no álbum split93 com a banda Penis Fibrosis94,
lançado em 2008, a banda narra secreções em meio a práticas sexuais tais como a
felação e o coito anal com o pulso. Bandas como a I shit on your face, que misturam em
suas letras e material gráfico imagens de excrementos humanos com o sexo, sempre de
forma explícita, são consideradas pelos praticantes como adeptas do porn gore.

90
www.myspace.com/intestinalvomitgore. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
91
www.myspace.com/ixsxoxyxf. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
92
A letra: Triple X of sixty nine/None performs this shit like mine/My violence for this position/Are
creating a whores’ extinction/My rock cock.../Chokes her brutally/My fist bashes.../The ass,
unrelentingly/My hand is all inside.../Splitting her assring.../Cum for her suffering/Fistifucked/She’s
puking all the.../Secretion of my dick.../Breathless is this chick/Facefucked (tradução livre: putaria no 69/
ninguém faz essa merda como eu/minha violência nessa posição/é levar a puta à extinção/meu pau é “do
rock”…/faz ela engasgar brutalmente/meu pulso golpeia…/seu cu duramente/toda minha mão está
dentro/rompendo seu “anel”.../gozando pelo seu sofrimento/comida pelo pulso/ela está vomitando toda
a.../secreção do meu pau.../essa “gata” está sem ar/ comi a cara dela).
93
Álbum, em vinil ou não, dividido por duas bandas. Neste caso é em vinil.
94
Não há informações no álbum sobre a cidade da banda.
111

Patologias e perversões são os temas abordados no estilo gore/grind/splatter.


São os objetos de um enunciado que já é uma representação patológica e perversa.
Sujeito patológico abordando patologias, sujeito perverso abordando perversões. O
estilo gore/grind/splatter opera uma duplicação da representação da doença, espécie de
reforço, aos mesmos moldes nos quais Kristeva (1980) enquadra o crime premeditado.
Se o crime, seja lá qual for, é abjeto em si por perturbar uma identidade, um sistema,
uma ordem, então o crime premeditado realiza uma duplicação dessa abjeção
justamente porque, de certa maneira, o sujeito tem a consciência de que sua ação
perturbará uma identidade, uma ordem ou um sistema95 (idem, p. 12). Sendo assim, a
abjeção do gore/grind/splatter está nessa representação patológica da patologia, nessa
musicalização repugnante da repugnância, num termo, representação doentia da doença.
É essa particularidade, uma representação perturbadora daquilo que perturba, que o
aproxima do metal extremo underground nacional.
Se o gore/grind/splatter, na disposição interna dos estilos de metal extremo
underground, está alinhando na margem, porosa, que faz fronteira com o punk, já o
trash metal, o death metal e o doom metal estão no centro deste arranjo. Herdeiros
diretos, por assim dizer, do heavy metal pré-fragmentação, aquele formulado nos anos
70 ao qual Straw (1993) se reportava, eles figuram como a polpa do metal extremo.
Numa analogia com definições de espectros políticos, o trash, o death e o doom não são
nem esquerda, como seria, talvez, o gore/grind/splatter, nem direita, onde certamente
está o black metal. Eles estão no centro.

95
Para Kristeva, essa identidade pode ser tanto a da vítima quanto a do próprio criminoso. Já o sistema
perturbado, certamente, é o sistema social. De qualquer forma, queremos manter nosso uso das idéias de
Kristeva quanto ao abjeto apenas nesse nível de conceituação: o abjeto, quando acionado, nos termos da
autora, quando manifestado, possui uma enorme força desagregadora. Daí o horror que ela causa. Ainda
mais quando sua manifestação é fruto de alguma vontade, de algum planejamento ou premeditação. Ai ela
é ‘ténébreuse (...), une haine qui sourit’ (op, cit). Para além dessa idéia, Kristeva conceitua a natureza da
abjeção como ‘reconnaissance du manque fondateur de tout être, sens, langage, désir’ (op, cit. p. 13), ou
seja, ela enquadra a abjeção em uma argumentação psicanalítica a qual preferimos não nos reportar.
112

3.3 - Pelo ponto de vista da sarjeta: trash metal

Mauro Flores, praticante já citado anteriormente, entende que o trash metal96 é o


“vovô” do metal extremo:

O trash é vovô do metal extremo. O Motorhead já fazia esse som ríspido, bem lixão
mesmo, no final dos anos 70, mas isso que a gente conhece como trash metal surge lá
no começo dos anos 80, lá na Califórnia, com Slayer, Metallica, Exodus e o Testament.
Basicamente, essas bandas misturaram o heavy metal das bandas inglesas dessa época,
das quais a mais conhecida é o Iron Maiden, com o então recente punk/hardcore
californiano, que tava nascendo ali nas pistas de skate. Ai, o heavy metal, que até então
era aquela coisa melódica, limpa, com guitarras nítidas e vocais limpos, começou a ficar
mais sujo, mais distorcido nas guitarras e mais gritado nos vocais. Por isso que eu digo
que é o “vovô” da parada, o trash é a semente de toda a brutalidade que vem depois.

Na conversa que tivemos, Mauro discorreu longamente sua percepção sobre a


genealogia do estilo que mais aprecia, o trash metal. Sua narrativa exemplifica aquilo
que Walser (1993) defende: que cada fã interpreta as continuidades e rupturas internas
ao heavy metal dando preeminência ao estilo que mais aprecia. Para Mauro, todo o
metal extremo nada mais é do que um desenvolvimento do trash. É interessante notar,
na questão da influência que o punk teria causado no trash, como Mauro,
diferentemente da percepção dos apreciadores do gore/grind/splatter, separa o metal
extremo do punk. Mauro, você acha que o trash é tão punk quanto metal?

Não, de jeito nenhum. Trash é metal, é trash metal e não trashcore ou trash punk (...), o
punk é importante, fez com que o metal, pelo trash, perdesse o “nariz em pé” de
músicos virtuosos, o metal ficou mais rua com o punk, entende? Mais da galera mesmo
(...) mas mesmo assim, o trash é técnico, não tem nada daquela coisa de faça-você-
mesmo do punk, não tem nada de (cabelos) moicanos e (a proposta política da)
anarquia, trash é cabelo grande, calça preta colada e nenhuma ideologia além do som
pesado.

A visão de Mauro coloca o trash como um estilo de metal extremo que empresta
qualidades do punk, diferentemente daquilo que a banda Rot, de gore/grind/splatter,
diz. Enquanto esta última, mesmo reconhecendo ambos como matriz, não é nem punk
nem metal, o primeiro é metal com pitada de punk. O trash é “técnico” e não está
baseado no “faça-você-mesmo97” musical próprio do punk; seus músicos usam cabelos

96
Trash, e não thrash, é o termo de utilização mais comum entre os praticantes.
97
Ou como é conhecido entre os praticantes, do it yourself (DIY). A idéia, no registro musical, é que,
mesmo que a pessoa não saiba tocar algum instrumento, que ela forme uma banda e faça seus shows. Essa
idéia tornou-se uma espécie de filosofia punk quando extrapola o registro musical. Os zines resultam, no
registro da produção dos meios de comunicação, dessa filosofia. Toda etnografia do punk trata do DIY.
Remeto o leitor à Caiafa (1985) e Wendel Abramo (1994).
113

longos e não moicanos, calças pretas coladas ao corpo e não bermudas e se querem
divulgar alguma idéia, é aquela do “som pesado” e não a da anarquia, tão ligada no
imaginário urbano ao movimento punk. Se baseando nessa separação entre punk e
metal, Mauro traça uma genealogia do metal extremo fundada no trash, o “vovô” ou,
como os praticantes preferem, old school.
Walser não percebeu que, por mais que cada fã interprete a sua maneira a
história do heavy metal, certas interpretações são compartilhadas por boa parte dos fãs
e, o mais importante, essas interpretações recorrentes terão forte influência na realidade
social do heavy metal. Ora, a interpretação de Mauro é a mesma dos integrantes da
Violator98, banda de trash metal de Brasília, Distrito Federal. No texto de apresentação
do seu myspace, dizem que “a Violator foi formada no começo de 2002 por amigos que
não têm outras pretensões além de tocar o velho trash metal99” (grifo nosso). Mauro
terminou seus comentários sobre o trash metal dizendo que “(...) tocar o velho trash
metal hoje é honrar as raízes do metal extremo” (grifo nosso).
É importante contextualizarmos o discurso do trash. Independentemente se os
outros estilos de metal extremo são ou não “frutos” do trash, fato é que este estilo se
tornou datado entre os praticantes justamente pelo surgimento dos outros estilos. Frente
ao death, ao doom e ao black, o trash é, de fato, percebido como velho. Sendo assim, na
semântica dos estilos de metal extremo underground, acionar atualmente a identidade
trash “pura100” significa, necessariamente, se remeter ao passado do metal extremo.
Espécie de celebração dos “velhos tempos”, aliar-se à “velha escola” do metal “lixão”
demanda do praticante a incorporação em sua imagem de todos os elementos desse
passado.

98
www.myspace.com/viothrash. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
99
Texto original em inglês.
100
Pura no sentido de ser apenas trash, e não trash-death, como algumas definem seus estilos.
114

A VELHA ESCOLA DO LIXO.


Foto de divulgação da banda brasiliense de trash metal Violator.

Calças pretas coladas ou calças jeans rasgadas, tênis branco e o “clássico” colete
jeans com patches101 costurados. A indumentária apresentada pela Violator figura no
imaginário do metal extremo underground como qualquer coisa de ancestral, como
qualquer coisa de trash metal.
A Violator celebra os velhos tempos até mesmo em suas canções. A letra da
canção Addicted to Mosh, contida no seu único cd full length, Chemical Assault,
lançado em 2006, marca todos os elementos que compõem o estilo trash em meio ao
underground nacional. A letra é uma metalinguagem sobre o trash, um “metatrash”:

Attack!
Thrashers return to this city/
To bring back all the insanity/
That has been lost through the time/
But now is time to remember/
Raise your fist and destroy your neck/
Against the stage/
A feeling inside drives you/
fuckin' mad/
Dive in the crowd and slam/
All around/
Adrenalin explodes. Take your life back/

101
Patches: pequenos pedaços de tecidos com nomes de bandas impressos ou bordados que os praticantes
costuram em suas roupas.
115

In the pit.

We Thrash to Live/
Addicted to Mosh/
We Bang ‘til Death/
With no remorse/
If mania boils in your blood/
Then you know it’s for real!

Thrash!
Tight pants, denims with patches/
Our way, the underground!
We are in league, and we won’t admit/
Anyone say it as a trend.

No breakdowns and no pretensions.


All we want is the Thrashbanger beat/
Unstoppable head banging – We’re Obsessed by old school spirit102.

Começando por uma afirmação de que os thrashers estão de volta para trazer a
insanidade que foi perdida ao longo do tempo, a letra passa a narrar aquilo que seria
uma postura verdadeiramente trash no show. Levantar o pulso e destruir o pescoço na
frente do palco pelo chacoalhar da cabeça. Um sentimento te leva a loucura e você
começa a “dançar” o trash pelo mosh, subindo no palco e se jogando, ou
“mergulhando”, na galera e pelo slam, o “empurra-empurra” na frente do palco. Traga
sua vida de volta, a banda pede, para o pit, o “poço” na frente do palco onde toda essa
insanidade acontece. Em seguida, após uma estrofe na qual a banda lança mão de
imagens bastante utilizadas no metal extremo underground para descrever a importância
do estilo para seus praticantes, como vida e sangue, a letra pontua a vestimenta trash, a
idéia de união do underground e a negação da possibilidade de que este estilo se torne
uma moda. Eles não vão admitir que alguém diga isso. A última estrofe responde, por
assim dizer, porque o trash não é uma moda. O sentimento de união não se rompe e na
vivência do estilo não há outras intenções além do querer a batida trash para chacoalhar
a cabeça constantemente. Eles estão obcecados pelo espírito da velha escola.

102
Tradução livre: Ataque! Os thrashers voltaram à cidade/ Para trazer toda a insanidade/ Que foi perdida
ao longo do tempo/ Mas agora é hora de lembrar/ Levante seu pulso e destrua seu pescoço/ Na frente do
palco/ Um sentimento te leva/ A loucura/ Mergulhe na galera e se debata/ Por todos os lados/ Adrenalina
explode/ Traga sua vida de volta/ Ao poço. Tocar thrash é nossa vida/ Viciados no mosh/ Nós
chacoalhamos até a morte/ Sem remorsos/ Se o êxtase ferver em seu sangue/ Você sabe, é pra valer!
Thrash! Calças coladas e coletes com patches/ Do nosso jeito, underground! Nós estamos juntos e não
vamos admitir/ Ninguém dizendo que é moda. Sem separações e pretensões. Tudo que queremos é a
batida do thrashbanger/ Incontrolável chacoalhar de cabeça – Somos obcecados pelo espírito da velha
escola.
116

As bandas de trash metal são as únicas do metal extremo underground que


escrevem letras sobre o próprio estilo. Elas são as únicas que pontuam em suas letras,
por exemplo, seus vestuário e “danças” característicos. Neste sentido, não é por acaso
que a Violator utiliza imagens como a insanidade, a loucura, o vício, o êxtase e a
obsessão. Estas condições individuais, estas imperfeições individuais são elas mesmas
objeto de representação deste estilo.
Weinstein defende que as letras das canções das bandas norte-americanas de
trash se caracterizam pela temática do caos, pelos ‘(...) horrores concretos do mundo
real ou possivelmente real: o isolamento e alienação dos indivíduos, a corrupção
daqueles no poder e os horrores feitos pelas pessoas, uns aos outros ou ao meio
ambiente103’ (2000, p. 50). As bandas de trash do underground nacional seguem linha
semelhante. A intenção é representar aquilo que percebem como a realidade, existente
ou iminente, do mundo que vivemos atualmente. A guerra é o tema preferido da banda
paulistana Bywar104, as mentiras dos governantes da carioca Taurus105 e a psicose da
também paulistana Blasthrash106. Mas nenhuma outra possibilidade de realidade foi
mais abordada pelas bandas trash do que a bomba nuclear e os efeitos que sua explosão
causaria. A Violator, no mesmo cd onde se encontra a canção citada acima, lançou a
canção intitulada Atomic Nightmare. A primeira estrofe da letra sumariza
exemplarmente a temática trash:

In a world built by greed/


Politicians rule with fear/
Bombs terrorize human kind/
Imminent annihilation/
Brings our dreams to devastation/
Victims of a Science of death107.

103
Tradução livre de ‘(...) concrete horrors of the real or possibly real world: the isolation and alienation
of individuals, the corruption of those in power, and the horrors done by people to one another and to the
environment’.
104
www.myspace.com/bywar. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
105
www.myspace.com/taurusofficial. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
106
www.myspace.com/blasthrash. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
107
A letra inteira: In a world built by greed/Politicians rules with fear/Bombs terrorize human
kind/Imminent annihilation/Brings our dreams to devastation/Victims of a Science of death. Burn, and
see, nature slaughtered/ Blasts/The whole world destroyed/The Fate of all living things will be leaded to
Extinction/Atomic Nightmare! Lunatics with the power/To erase all inhabitants/Desolation preserve an
empire/Widespread vast destruction/Can´t escape the toxic corrosion/Killing radiation overdose. Atomic
Nightmare! Darkness in the burning sky/The world comes to Demise/Human Race is
Terminated/Welcome to Nuclear Holocaust/Poison spreads everywhere/Hopes are reduced to
ashes/Toxic Waste infects our vein/Welcome to Nuclear Holocaust, now die! Marching Over Blood!
Atomic Nightmare! Chemical Attack/Atomic Nightmare! Nuclear Disaster/Atomic Nightmare!
Radioactive Dust/Atomic Nightmare! (A tradução livre: em um mundo erguido pela ganância/Políticos
governam pelo medo/Bombas terrorizam a espécie humana/Iminente aniquilação/Leva nossos sonhos à
117

Somos todos vítimas não porque a guerra nuclear, de fato, aconteceu, mas pela
iminência da aniquilação, por termos nossos sonhos, nossas vontades, nossos desejados
futuros devastados pela simples existência da bomba. Os responsáveis por este pesadelo
atômico são os gananciosos governantes que controlam pelo medo, financiadores dessa
ciência da morte.
A realidade de acordo com a representação trash é sempre essa. A violência, a
guerra, a bomba nuclear, a ciência sem limites, as catástrofes de um modo geral
aniquilam e devastam o meio ambiente e a esperança em um melhor futuro e em uma
convivência mais harmoniosa. O pesadelo prepondera sobre o sonho e a morte sobre a
vida. A narrativa aponta os responsáveis. Não tanto os “governantes” mas aquilo que os
impulsionam: a ganância, a obsessão e o egoísmo que os fazem sempre querer mais.
Como efeito, somos todos vítimas. Enlouquecemos, acordamos à noite suando frio, com
medo, e procuramos escapar dessa realidade nos viciando em entorpecentes os mais
diversos. O trash metal é um deles. Coloca-nos em êxtase, libera nossa adrenalina e nos
oferece um escape sujo deste mundo lixo. O trash é percebido pelos seus praticantes
como mais um entorpecente deste mundo entorpecido, como mais uma insanidade desse
mundo insano. Para os thrashers, se o mundo é um lixo, então que ele seja percebido
pelo ponto de vista da sarjeta.

devastação/Vítimas de uma ciência da morte. Queime e veja a natureza estraçalhada/Explosões/O mundo


inteiro destruído/O destino de todas as coisas vivas ruma à extinção/Pesadelo atômico! Lunáticos com
poder/Apagarão todos os habitantes/Desolação preserva um império/Vasta destruição se alastra/Não há
como escapar da corrosão tóxica/Overdose de radiação assassina. Pesadelo atômico! Escuridão no céu em
chamas/O mundo chega ao fim/Raça humana acabou/Bem-vindo ao pesadelo atômico/Venenos se
espalham por tudo/Esperanças se esfarelam/Lixo tóxico infecta nossas veias/Bem-vindo ao pesadelo
atômico, agora morra! Marchando sobre o sangue! Pesadelo atômico! Ataque químico/Pesadelo atômico!
Desastre nuclear/Pesadelo atômico! Pó radioativo/Pesadelo atômico!).
118

O MUNDO É UM LIXO.
Capa do cd Chemical Assault da banda Violator, lançado em 2006. A cidade foi destruída,
a guerra nuclear está em curso e o thrasher, literalmente na sarjeta, está entorpecido.
119

3.4 - O horror da beleza e a beleza do horror: doom metal

De todos os praticantes do metal extremo underground, aqueles que dizem


preferir o doom metal se mostraram, ao longo da pesquisa, os mais dispostos em discutir
as características históricas do seu estilo preferido. Foram com eles que tivemos as
conversas mais longas sobre o que é o doom metal, quais são suas origens,
características e diferenciações internas. Essa disposição em discutir o estilo se reflete
nas comunidades voltadas ao doom no sítio eletrônico de relacionamento orkut108. Na
comunidade doom metal – BR109, por exemplo, há uma série de tópicos onde os
membros discutem o que é doom metal e quais são as bandas precursoras do estilo. Já
na comunidade cena doom/dark do Brasil110, os membros apresentam a cada mês
dossiês das bandas nacionais do estilo, trazendo breve biografia, discografia, propostas
musicais da banda e endereços, eletrônicos e urbanos, por assim dizer, para contato.
Essa constante disposição em discutir do praticante apreciador do doom
correlaciona-se com a forma que ele procura construir sua imagem no underground. O
apreciador de doom procura se portar como um erudito do metal extremo. Se todo
praticante é um exegeta deste tipo de música, o apreciador do doom se porta como um
refinado. Ele entende que tem melhores condições de apontar quais são as continuidades
e rupturas históricas do metal extremo, alguém que se percebe mais apto para traçar os
recortes das diferenciações internas e qualificar as características de cada estilo. O
apreciador do doom entende que ele tem ‘cultura’, se entendermos esse termo de acordo
com uma das suas aplicações definidas por Sapir como

(...) um ideal antes convencional de refinamento individual, baseado em certa porção do


conhecimento e experiência assimilados, mas composto principalmente de uma série de
reações típicas que têm a sanção de uma classe e de uma tradição há muito estabelecida
(1970, p. 284).

Uma postura antes de um conhecimento. Os apreciadores de doom se portam


como uma casta superior, pois supostamente letrada, do underground. Na conversa
citada no primeiro capítulo, tida com praticantes do underground justamente em

108
www.orkut.com. O orkut, sítio eletrônico de relacionamento lançado na rede pelo google
(www.google.com), é muito utilizado pelos brasileiros, sabe-se lá por quais razões. Nele a pessoa pode se
tornar membro de comunidades, páginas temáticas criadas pelos próprios participantes do sítio, nas quais
é possível abrir tópicos onde se discute e se divulga questões relacionadas com o tema dela. É extensa a
quantidade de comunidades voltadas ao heavy metal em geral e ao metal extremo em particular.
109
www.orkut.com/Community.aspx?cmm=108635. Acessado pela última vez em 13/03/2008. É preciso
que o leitor tenha uma página pessoal no orkut para poder acessar as comunidades.
110
www.orkut.com/Community.aspx?cmm=21698127. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
120

decorrência do cancelamento do show de uma banda inglesa de doom, este estilo nos foi
definido por um dos presentes assim: “é como se A Bela e a Fera, que na verdade é um
conto dos irmãos Grimm que foi deturpado por Hollywood, fosse re-escrito por Goethe
ou mesmo Álvares de Azevedo”. Só um apreciador de doom definiria seu estilo
preferido dessa maneira, comparando-o com clássicos da literatura universal e
brasileira.
Essa postura de refinados está relacionada com a semelhança do doom com o
estilo dark ou gótico. Se o gore/grind/splatter e o trash guardam alguma relação com o
punk, o primeiro aceitando-a e o segundo negando-a, o doom, por sua vez, se aproxima
daquilo que Wendel Abramo (1994) chamou de estilo e prática urbana dark. Jovens, em
sua maioria universitários, vestidos em preto, com cabelos curtos com cortes
geométricos e rostos carregadamente maquiados, que se reuniam nas décadas de 80 e
90, em locais como a casa de shows Madame Satã, na capital paulistana, para ouvir
canções de bandas como as inglesas Joy Division, Siouxie and the Banshees, e The Cure
(idem, pp. 115-150). Os darks ou, como os apreciadores de doom do underground do
metal extremo preferem chamá-los, os góticos, apesar de terem como núcleo de suas
práticas a música, são, em sua grande maioria, jovens universitários (op, cit.)
interessados em artes em geral, notadamente literatura e arquitetura. Seus gostos na
literatura, dizem os praticantes do underground apreciadores do doom, vão de Byron,
Goethe, Poe, Baudelaire até os brasileiros Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos.
Na arquitetura, se mostram interessados na barroca e gótica européia bem como aquela
produzida pela escola alemã Bauhaus111. Além desses interesses artísticos, os góticos,
ainda de acordo com apreciadores do doom, apesar de serem pessoas solitárias, quando
em grupo gostam de passar a noite em cemitérios recitando poesias, bebendo vinho e até
mesmo fazendo sexo em cima das sepulturas112.
Essa descrição dos góticos de modo algum é pejorativa. O apreciador de doom
aponta para essas características na intenção de corroborar uma aproximação entre o
gótico e o seu estilo favorito. Antonio, 37 anos, se percebe como “um grande apreciador

111
Não é por acaso que uma das bandas mais apreciadas pelos góticos, a inglesa Bauhaus, leva o mesmo
nome da escola alemã de arquitetura.
112
Essa descrição dos gostos e costumes dos góticos de acordo com os apreciadores de doom do
underground é uma sumarização de uma série de informações coletadas em rodas de conversa em bares e
shows. Não foi possível comparar essas informações com alguma etnografia dos góticos no Brasil pois,
até onde sabemos, a única feita é a de Wendel Abramo (1994), a qual, contudo, se refere à década de 80.
Eis ai uma interessante proposta de etnografia: os góticos no Brasil.
121

de doom”. Foi ele quem fez a descrição deste estilo aproximando A Bela e a Fera de
Goethe e Álvares de Azevedo. Na mesma conversa ele afirmou:

O cara que gosta de doom, ou melhor, a pessoa que gosta de doom, porque tem muita
mulher que gosta também, pode até não ir em cemitério, ler poesia e ficar nessa onda
“deprê” do gótico, mas ninguém pode negar a influência do gótico no doom, de jeito
nenhum. O doom é quase que um Sister of Mercy (banda inglesa que os góticos gostam)
com guitarra distorcida. Aliás, o Paradise Lost (banda inglesa de doom metal) gravou
uma música do Sisters e, aliás, não é à toa que doom metal também é conhecido como
gothic metal.

O apreciador de doom quer que seu estilo preferido seja percebido como um
correlato do gótico. Com esta correlação, ele constrói sua distinção no underground. Ao
nível musical e lírico, estabelecendo uma genealogia do seu estilo diferente das dos
outros, mas também no registro pessoal, ou melhor, nos gostos além música. O
apreciador de doom gosta de ser percebido no underground como um praticante que lê
romances e poesias, costume esse que, independentemente se o praticante faz ou não,
não é utilizado como uma marcação do metal extremo em geral. Ele bebe vinho nos
shows ao invés de cerveja ou aguardente, as bebidas mais consumidas nestes eventos.
Enfim, o apreciador de doom quer ser percebido como um elegante, um refinado, um
gentleman do underground do metal extremo nacional.
Para os padrões do underground, os apreciadores de doom sempre estão muito
“bem” vestidos. O show, para ele, é um baile da gala. As calças de couro, pretas,
parecem ter sido encomendadas em alfaiates, tal é o ajuste delas nos seus corpos. As
botas pretas de couro, chegando aos joelhos, sempre lustradas. Cintos e braceletes com
tachas de ferro adornam os limites da sua camisa preta de mangas longas, também justa
ao corpo. O cabelo longo e liso. Suas damas de companhia também impecáveis. Saias
negras e longas combinadas com espartilhos negros de couro, adornados com tachas de
ferro na frente e um longo entrelaçado de cadarços atrás. Macacões de couro também
servem, justíssimos, complementados por botas ou sapatos de salto alto e cintos de
couro com tachas. Brincos e colares são utilizados por ambos, mas ele prefere um colar
prateado, geralmente com uma cruz invertida pendurada, e ela uma coleira de tachas de
ferro ou de seda preta. A maquiagem tenta embranquecer o rosto e enegrecer a periferia
dos olhos e nela, tinge também os lábios de vermelho ou roxo.
Mas a correlação com o gótico construída pelos apreciadores de doom somente
está no estilo, ou de forma mais precisa, na música, no vestuário e nos gostos artísticos
122

além música. A relação com os góticos enquanto um grupo urbano, enquanto uma
prática urbana, é de diferenciação e separação. Com a palavra, novamente, Antonio:

Essa coisa de pular muro do cemitério na madrugada e ficar recitando poesia (...), ai é
meio over, é demais, não acha? Eu não ando com esse pessoal, eu acho que chega a ser
pedante. Isso eu não faço, a galera do metal não faz, isso é coisa de quem quer se
mostrar (...), guarde seus sentimentos pra você, suas leituras pra você e quando você
quer botar isso pra fora, coloca na música e mostra na música.

Aqui sim temos uma descrição pejorativa dos góticos feita por um apreciador de
doom. Uma depreciação das ações que os góticos fariam e não dos gostos artísticos que
os góticos teriam. O apreciador de doom e o gótico, pela perspectiva do primeiro, não
“andam” juntos, eles não fazem parte do mesmo grupo, eles praticam, não obstante as
aproximações de gosto artístico e visual, diferentes práticas urbanas.
A razão da separação está na música. Para Antonio, o gótico expressa “seus
sentimentos e suas leituras” em atividades “pedantes” como a incursão noturna ao
cemitério. Tudo aquilo que o gótico estaria recebendo em termos de afeto com seu
envolvimento com literatura, música e arquitetura se transformaria em ações imaturas,
em uma ostentação despropositada, exemplificada por Antonio pela incursão ao
cemitério. Já o doom é música. Ele é feito não “para se mostrar” e sim para “botar para
fora os sentimentos e as leituras”. Para Antonio, como para qualquer praticante de metal
extremo, sua produção, tanto na composição quanto na escuta, é regida pela necessidade
interna da pessoa em extravasar “seus sentimentos” e não por pressões externas, seja lá
de qual ordem. Em relação ao gótico, o doom é comedido, sério e propositado porque é
música, podemos dizer, porque é metal extremo.
Fazendo essa separação sociológica com o gótico, assim como o trash faz com o
punk, o doom constrói sua entrada no centro do underground do metal extremo
brasileiro. Neste espaço não há incursões ao cemitério nem recitações de poesias. Pela
perspectiva dos apreciadores de doom, ai só se faz música e é para apresentar e ouvir
música que ingressam nele. Filiado ao espaço do underground, o doom assume
plenamente sua posição como um estilo de metal extremo. Aí sim, o doom ganha a
forma de doom metal.
A Bela e a Fera re-escrita por Goethe. Percebendo o doom metal em meio aos
outros estilos de metal extremo underground compreendemos como este estilo pode ser
descrito da maneira que Antonio fez. Aliás, descrição essa, em nossa opinião, astuta. O
título do conto dos irmãos Grimm se referiria aos vocais. As bandas de doom são as
123

únicas que se utilizam de dois vocalistas, um homem e uma mulher, como a capixaba
Evictus113. Nessa banda, enquanto o baixista Eduardo faz o vocal gutural, rouco,
semelhante aos vocais dos outros estilos de metal extremo, a soprano Fernanda114 faz
um vocal lírico, limpo, semelhante aos vocais femininos de uma ópera. Um dueto de
pólos opostos, do belo e do horror, assim como a imagem que o título do conto
transmite. Contudo, diferentemente do final do conto, onde a Bela e a Fera encontram
um no outro o amor, na temática das bandas doom esses pólos opostos nunca se
encontrariam. Eles sofreriam pois se perderam ad aeternum. Eis ai a pena de Goethe115,
o sofrimento triste e constante resultante da separação, a perda da unicidade tão peculiar
a certa literatura romântica116.

A BANDA EVICTUS
O motivo do sofrimento, sublinhado pela descrição de Antonio, de fato, é caro às
bandas de doom metal. O encontramos nos próprios nomes das bandas, como no da
carioca Avec tristesse117 e no da curitibana Eternal sorrow118. Uma tristeza, um eterno
infortúnio, uma melancolia que as bandas de doom metal procuram representar tanto na
música quanto nas letras das canções. Na primeira, ela é construída por meios do dueto
dos vocais, do uso dos teclados, raros nos outros estilos, e principalmente no tempo de
progressão da canção, lento e cadenciado em relação aos outros estilos de metal
extremo. As canções doom geralmente são as mais longas, chegando a contabilizar dez
113
www.myspace.com/evictus. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
114
Interessante notar que a vocalista da banda é caracterizada como soprano. Essa marcação lírica é
específica do doom em referência ao metal extremo. Aliás, os vocalistas raramente são marcados como
vocalistas nas bandas de metal extremo. No gore/grind/splatter ele é o “vômito”, no trash ele é o
“screams”, no death é o “garganta” e no black é o “vociferador”.
115
O Goethe de Werther, muito provavelmente, e não o Goethe do Wilhelm Meister.
116
Sobre a perda da unicidade como um tema do romantismo ver Duarte, 2004 e Cavalcanti, 2004.
117
www.myspace.com/avectristesse. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
118
www.myspace.com/eternalsorrowdoommetal. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
124

minutos de duração, como a To the Death, da banda Adágio119, de Araraquara, São


Paulo, contida no cd Romantic Serenades, de 1999.
Já nas letras, as bandas procuram estampar um sofrimento pela perda de
qualquer ordem. Um amor que se foi, a infância que não volta ou até mesmo a saudade
do campo podem servir de material para as letras das bandas doom. A banda
Tenebrys120 de Belém do Pará, Pará, procurou tratar da perda de um ente querido e, para
tanto, compôs The Absolute Evil, uma canção que trata da morte do garoto João Hélio,
ocorrida em meados de 2007 em Cascadura, zona norte da capital fluminense121.
Dividida em três partes, a letra começa com “os fatos” do acontecido:

(The fact)
His flesh dilacerated with just
six years
Cowards flee in despair
of their own ignorance
Blinded by the social decay
and the certain of the impunity
That leaves a repugnant trace
of blood and pain

A segunda parte da letra se coloca na posição da irmã do menino durante o


funeral:

(In the funeral, his sister)


I want my brother
I want my baby back
I want to hear his little voice
I want to go with him
I gonna be with him until the end because he is alive
I will kill those two
They took my brother

A terceira e última parte indica de quem é a culpa:

(The Fault)
We all are blamed

119
www.myspace.com/adagiodoommetal. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
120
www.myspace.com/tenebrysband. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
121
O assassinato do garoto João Hélio, para quem não se lembra, foi bastante veiculado nos meios
jornalísticos nacionais no começo de 2007. Ele morreu quando dois homens abordaram o carro da sua
família na intenção de roubá-lo. Os homens mandaram todos saírem do carro, mas quando a mãe foi
retirar o garoto do banco de trás, o cinto de segurança o prendeu. João Hélio chegou a descer, mas os
assaltantes arrancaram com o carro. Com o movimento a porta traseira do veículo se fechou, fazendo com
que o garoto ficasse preso pelo abdome. Os dois dirigiram alguns quilômetros com o garoto preso para
fora do carro.
125

For the silence and inertia


The horror felt today
And the forgetfulness of tomorrow
We are the blindness for the fear
The asphalt that consumed his body
The putrid politicians
We are the absolute evil
And the in-sa-ni-ty122

Durante a execução da canção, a segunda parte, espécie de lamentação raivosa e


desesperada da irmã pela morte do menino, ocupa uma posição central. Ela é o refrão da
canção, cantada pelo único vocalista da banda em estilo gutural, diferentemente das
duas outras partes, cantadas em estilo lírico. Vale notar também o tom apocalíptico pelo
qual a banda descreve “os fatos” da morte de João Hélio e aponta as razões pelas quais
somos todos culpados. De certa maneira, a banda procura compartilhar a dor da irmã
com todos nós, pois somos culpados e vítimas, ao mesmo tempo, desse “horror sentido
cotidianamente”. Somos réus e promotores do “mal absoluto” que nos faz perder.
Enfim, a imagem da dor da perda, tão sublinhada por Antonio em sua definição
do doom metal através da alusão à Goethe, é prezada nesse estilo. Contudo, é preciso
guardar a posição da qual ele está falando, a de um apreciador, de um praticante do
underground interessado em legitimar sua própria interpretação do estilo preferido.
Interpretação astuta e eloqüente, bem ao modo doom metal de se portar. Neste sentido,
precisamos relativizar a definição de Antonio, pois nos parece que os elementos
expressivos do doom metal apontam para uma temática mais ampla, onde o motivo da
dor da perda é apenas uma de suas partes.
Podemos citar uma série de bandas que não estão tão interessadas em trabalhar
com a imagem da dor da perda. A banda sergipana Scarlet peace123, em seu full lenght
Into to the Mind´s Labyrinth, de 1998, lança mão de imagens como a solidão e o
esquecimento. Já a paulista Soul sad trabalha com os motivos da depressão e do “vazio
da alma” em canções como My Fallen Garden e Martyrium124 e a cearense Triarchy125

122
A canção não foi lançada em nenhuma gravação, mas se encontra disponível no myspace da banda.
Sua tradução livre: (os fatos) Sua carne dilacerada com apenas/seis anos de idade. Covardes fogem em
desespero/de sua própria ignorância. Cegos pela decadência social/e com a certeza da impunidade/deixam
um repugnante traço de sangue e dor. (sua irmã, no funeral) Eu quero meu irmão/eu quero meu bebê de
volta/quero ouvir sua pequena voz/quero ir com ele/ eu vou estar com ele até o fim porque ele está
vivo/vou matar aqueles dois/eles levaram meu irmão. (a culpa) Somos todos culpados/pelo silêncio e
inércia/pelo horror sentido cotidianamente/e pelo esquecimento vindouro. Somos a cegueira provocada
pelo medo/o asfalto consumiu seu corpo/os pútridos políticos/somos o mal absoluto/e a insanidade.
123
www.myspace.com/scarletpeace. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
124
www.myspace.com/soulsad. Acessado pela última vez em 13/03/2008. Essas duas canções não foram
lançadas em nenhuma gravação, mas se encontram no sítio eletrônico citado.
126

tende a aludir nas letras das canções do seu cd Broken Dreams, de 2003, para a
“complexidade dos sentimentos humanos e das adversidades dos relacionamentos
afetivos”, como o texto de apresentação do seu myspace diz. As representações dessas
bandas podem até estar aludindo à dor da perda, porém esta não é o elemento expressivo
central daquelas.
Diferentemente do gore/grind/splatter e do trash, onde há uma maior coesão
estilística, não há um elemento expressivo que possa ser caracterizado como
paradigmático do doom metal. A linha mestra que distingue esse estilo de metal
extremo de seus congêneres está mais na maneira como os conteúdos da expressão são
dispostos, na forma, em um jogo de imagens que almeja imbricar a beleza no horror,
como a letra da canção Beautiful like Sadness, da banda Adágio, também inclusa no cd
já citado Romantic Serenades, exemplifica:

I see you, my beloved


I brought flowers to cover your body
Beautiful and cold flowers
Cold like your soul

The tears that I cry


Sweet tears of love
You sad beauty
Beautiful like sadness

I contemplate your face


Inside a coffin
Pale like the moon light
Moon that saddens me

I see you, my beloved


I brought flowers to cover your body
Beautiful and cold flowers
Cold like your soul

Now I'm alone


Alone to find you
Alone to cry
Alone to die with you126

125
www.myspace.com/triarchy. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
126
Tradução livre: Eu vejo você, minha amada/eu trouxe flores para cobrir seu corpo/belas e frias
flores/frias como sua alma. As lágrimas que choro/doce lágrimas de amor. Sua beleza triste/bela como a
tristeza. Eu contemplo sua face/dentro de um caixão/pálida como luz da lua/lua que me entristece. Eu
vejo você, minha amada/eu trouxe flores para cobrir seu corpo/belas e frias flores/frias como sua alma.
Agora estou sozinho/sozinho para te encontrar/sozinho para chorar/sozinho para morrer com você.
127

Encontramos nessa letra várias imagens caras ao doom metal. A solidão, o rosto
pálido, o choro, a morte e mesmo a dor da perda, na medida em que a letra nada mais é
do que o retrato de um amante contemplando sua amada morta. Porém, essas imagens
alusivas ao sofrimento são adjetivadas pela beleza. São com belas e frias flores que o
amado cobre o corpo dela, são doces lágrimas que ele derrama sobre ela, sobre a amada
de uma beleza triste, tão bela quanto a tristeza. Na última estrofe, corolário do calvário
do amante, sozinho ele lamenta e sozinho prefere morrer para estar ao lado de sua
amada.
O enredo, por assim dizer, do estilo doom metal se distingue no underground do
metal extremo construindo as imagens de uma beleza horripilante e vice-versa, de um
horror belo. Neste sentido, temos no doom não tanto pólos opostos que nunca se
encontram, mas, antes, em mútua alusão. Sofrer pela perda é bonito e a beleza faz
sofrer. A dor é sã e a saúde é dolorida. A tristeza alegra e a alegria entristece.
Mas a particularidade do doom metal no underground é justamente aquilo que o
coloca no centro do metal extremo nacional. Essa mútua alusão entre beleza e horror é
também uma mútua contaminação da beleza pelo horror e vice-versa. Mais uma vez,
assim como nos dois estilos analisados anteriormente, temos no doom um estilo que se
pretende disruptivo tratando de imagens disruptivas.

3.5 - O corolário musical do metal extremo underground nacional: death metal

A construção das especificidades destes três estilos do metal extremo brasileiro,


gore/grind/splatter, trash e doom, nos ajudam a perceber que, por mais autônomo que o
underground seja defendido por seus praticantes, ele se constitui a partir de contrastes
com outras práticas urbanas. Seja aceitando semelhanças estilísticas mas se
diferenciando em termos de atividades, caso do trash e do doom com o punk e o gótico
respectivamente, seja aceitando semelhanças estilísticas e se aproximando em termos de
atividades, caso do gore/grind/splatter com o punk, estes três tipos de metal extremo
constroem suas identidades no underground se aproximando e se distanciando de estilos
e práticas urbanas alheios a este espaço. Esse é um dos motivos da qualificação da
autonomia do underground como relativa127. Sua identidade enquanto uma prática

127
Um outro motivo, como vimos no primeiro capítulo, são as necessárias relações que os praticantes
precisam ter com diversos agentes e instituições externos ao underground para lançarem suas gravações e
128

urbana é, em parte, montada em contrastes com outras práticas urbanas que seus
praticantes fazem a cada show, a cada gravação lançada e a cada exegese de seus estilos
preferidos.
Contudo, os praticantes que dizem ter como seu estilo preferido o death metal
não levantaram ligações extra metal extremo para o caracterizarem. Guga, vocalista da
banda curitibana de death metal Sad theory128, comentando o surgimento histórico deste
estilo129, diz que:

O death metal quando surgiu era uma radicalização do trash, mas isso lá atrás. O death
radicalizou tanto que hoje tá bem longe do trash. Eu acho que hoje o death metal é puro
metal extremo (...), é o mais rápido, o mais pesado e o mais agressivo.

Para seus apreciadores, a genealogia do death metal começa no metal extremo.


Seu “surgimento” não demanda ligações exteriores, pois, é um desdobramento do
“vovô” do metal extremo, o trash. Um desdobramento que seus apreciadores preferem
denominar como “radicalização”. O death teria potencializado o trash, teria elevado ao
máximo suas características musicais, as quais Guga define como “velocidade, peso e
agressão”.
Então, essa “pureza” do death metal da qual fala Guga, advém, por um lado, da
sua proveniência calcada no metal extremo e, por outro, das suas qualidades musicais. O
death metal expressaria a “essência” musical do metal extremo, espécie de núcleo de
todas as variações praticadas no underground. Mas que qualidades musicais são essas
que Guga define como “velocidade, peso e agressão”?
Danilo, professor de música e guitarrista da também curitibana Infernal130,
explica quais são os elementos musicais explorados pelas bandas de death metal:

A agressão está nas guitarras distorcidas em afinação baixa. O normal no death é afinar
um tom e meio ou mesmo dois tons abaixo. E com aquele som distorcido, que parece
que tá arranhando, o som fica agressivo. A velocidade tá na bateria com dois bumbos ou
pedal duplo rápido, o que a galera chama de blast beats. A rapidez ai é essencial pra
preencher os buracos deixados pelas guitarras. A harmonia entre guitarra e bateria está
no baixo, que é um instrumento de corda percussivo, acompanhando os bumbos da
bateria. No meio disso tudo o vocal gutural, rosnado, cavernoso mesmo. Quando esse
conjunto é bem feito, tua banda tem peso.

fazerem seus shows (indústrias de prensagem de cds e vinis, lojas de cds especializadas em heavy metal
em geral, bares e casas de shows).
128
www.myspace.com/sadtheory. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
129
Estes comentários foram feitos em uma conversa de bar tida com Guga e Danilo, guitarrista de death
metal, em Curitiba no ano de 2005.
130
www.myspace.com/bandainfernal. Acessado pela última vez em 13/08/2008. Vale indicar que desde
2006, Danilo trocou a guitarra pelo violino distorcido como seu instrumento de execução enquanto
membro da banda.
129

Quando Danilo fala em guitarras distorcidas, ele se refere aos efeitos sonoros
que os guitarristas de death metal se utilizam, geralmente produzidos por um pedal131. O
efeito preferido dos guitarristas de death metal é aquele que aumenta o volume do som
do instrumento distorcendo suas propriedades acústicas, tal como o turvamento que a
água causa na imagem de algum objeto quando imergido nela. Afinações “baixas” são
afinações abaixo da nota lá, padrão de afinação na música ocidental. Dois tons ou um
tom e meio abaixo seriam, respectivamente, afinação em fá e fá sustenido.
Os bumbos, por sua vez, são os instrumentos tocados pelo baterista com os pés.
Quando Danilo fala em bumbos duplos, ou pedais duplos132, está se referindo à
duplicação de batidas no bumbo como característica do death metal e, o mais
importante, o mais rápido possível. Não há variações ou fraseados. Não há melodias. A
intenção é bater no bumbo alternadamente, de forma constante, o mais rápido possível.
Essa técnica é aquela “que a galera chama de blast beats”, uma rajada de batidas no
bumbo. Importante lembrar que, por mais que Danilo não indique, os bateristas de death
metal se utilizam fartamente de outros instrumentos, como a caixa, os surdos e os
pratos.
O baixo, “instrumento de corda percussivo” de acordo com Danilo, funciona no
death metal como uma ligação entre percussão e guitarra. Prolongando a batida curta da
percussão e encurtando as notas longas das guitarras, o baixo harmonizaria a música das
bandas de death metal equalizando volume e tempo das notas, sonicamente distintas, da
percussão e da guitarra.
Finalmente o vocal “gutural”, qualificado assim por Danilo por ser uma técnica
de canto na qual a garganta prepondera sobre a boca. Nessa técnica, o vocalista encurta
a passagem de ar na sua garganta, adstringindo suas cordas vocais. Consequentemente,
sua capacidade de melodia, de cantar diferentes notas, é reduzido a praticamente zero.
Em contrapartida, o vocal nessa técnica sai distorcido, tal a distorção das guitarras.
Sendo assim, o vocal “gutural” é uma distorção monotonal, metal extremo de uma nota

131
O pedal é um aparelho de efeitos sonoros ligado a meio caminho entre o instrumento e a caixa
amplificadora. O som produzido pelo músico passa pelo pedal antes de sair pela caixa. Leva esse nome
por ficar aos pés do guitarrista, facilitando que ele troque os efeitos ao longo da apresentação pelo toque
dos pés. O pedal, sem dúvidas, é universal no metal extremo underground nacional. Não basta que o som
seja acusticamente elétrico, é preciso que ele seja eletronicamente distorcido.
132
Bumbos duplos são dois bumbos no kit da bateria. Pedais duplos é um bumbo só sendo batido por um
pedal com duas baquetas (na gíria dos músicos de metal extremo, dois “pirulitos”). Não confundir este
pedal com o pedal das guitarras.
130

só, em fá ou fá sustenido. Como disse Guga: “cara, a boca só serve pra sair o som e pra
mudar as palavras, a garganta faz tudo, quer dizer, fica tocando essa nota única”.
De fato, percebemos a exploração desses elementos musicais indicados por
Danilo em todas as bandas que se definiram como death metal vistas e ouvidas durante
a pesquisa. Assim como o julgamento que Danilo faz também foi percebido, tanto em
quem compõe quanto em quem ouve o death metal. As bandas que conseguiram
imbricar esses elementos em sua música eram consideradas “boas”, ou seja, são bandas
que fariam um death metal “rápido, pesado e agressivo” ou, em outra metáfora,
equivalente, “brutal”. As resenhas de gravações atestam este tipo de julgamento. No
Dark Gates zine, Bernardo resenha o segundo full lenght da banda Queiron de Capivari,
São Paulo, assim:

Depois de várias demo-tapes e seu merecido debut-cd (...), esses três cavaleiros do
apocalipse nos presenteiam com mais este trabalho, Templars Beholding Failures,
contendo 1 intro e 9 músicas, moldadas no mais puro brutal death metal. Marcelo,
Tiago e Daniel destilam todo seu ódio com técnica, velocidade e brutalidade. O melhor
é não destacar som algum, ponha o cd pra rolar e ouça-o do começo ao fim (...), são
quase 50 minutos de pura blasfêmia. Aos fãs do estilo, um convite para detonar com os
pescoços, aos de ouvidos delicados, sugiro distância, aos posers, cuidado...estamos
chegando! Congratulações à banda!

No entanto, o death metal é considerado por Guga como “puro” metal extremo
não por apresentar essas qualidades sônicas, mas por potencializá-las. Para Guga, o
death metal não é “rápido, pesado e agressivo”, é o “mais rápido, o mais pesado e o
mais agressivo” dos estilos de metal extremo, ou seja, uma “radicalização” musical de
um tipo de música denominada como extrema.
O metal extremo underground nacional significa para seu praticante,
independentemente do estilo, música “pesada e agressiva” composta por meio dos
elementos sônicos apontados por Danilo: guitarras distorcidas e em “baixa afinação”,
bumbo duplo, baixo “harmonizador” e vocal “gutural”. O julgamento estético do
underground procura pesar se uma dada banda conseguiu compor uma música “pesada
e agressiva” a partir destes elementos. De outro modo, compor uma música que não
apresente pelo menos um destes elementos certamente significa uma descaracterização
do metal extremo e muito provavelmente pode resultar em um afastamento dos seus
compositores do underground133. Poderíamos exemplificar o ponto com uma série de

133
A guitarra distorcida é o único elemento imprescindível. O vocal gutural e o bumbo duplo são
importantes, mas não utilizá-los não implica, necessariamente, em descaracterização do metal extremo,
como vimos no caso do doom metal. O baixo, por sua vez, pode ser utilizado como instrumento melódico
131

resenhas de gravações, de shows, de conversas que tivemos e entrevistas que fizemos


com os praticantes. Todas elas deixam bem claro que o gosto musical preponderante do
underground se delicia com uma música “brutal”. Sendo assim, se estamos falando de
uma prática urbana organizada a partir da composição, audição e apresentação de
música, fazer um metal extremo “pesado e agressivo” a partir daquele conjunto de
elementos sônicos é um dos delimitadores do próprio underground. O gosto musical
pela música “pesada e agressiva” opera no registro sociológico do underground,
estabelecendo uma referência para o praticante fundamental, na medida em que,
espraiado nacionalmente, se movimentando mais por cartas e e-mails do que por ruas e
calçadas, transitando por bares e casas de show, o underground possui poucas
referências territoriais.
Essa articulação identitária que a música “pesada e agressiva” fornece ao
underground do metal extremo é nítida a partir da particularidade do death metal neste
espaço. Enquanto os praticantes que dizem preferir outros estilos clamam pela união do
underground, o apreciador de death metal, do estilo “mais pesado e mais agressivo”,
sublinha o senso de comunidade do underground, de uma irmandade baseada no
interesse mútuo de seus membros pelo metal extremo.
Rodolfo, 28 anos, morador de Três Pontas, Minas Gerais, baterista de uma banda
de death metal134, conversou conosco no mesmo show em Juiz de Fora, em 2005, onde
conhecemos Yuri D’Ávila. Trocando impressões sobre as cenas de nossas cidades, foi
inevitável rumar nossa conversa para uma avaliação do underground nacional. Rodolfo
sublinhava constantemente sua inserção ativa neste espaço, trocando cartas e fitas com
pessoas do país todo, ajudando na organização dos shows, tocando “pra valer” em uma
banda e indo aos shows de outras bandas. Enfim, Rodolfo se caracterizava como um
praticante real, mas sem mencionar este termo.
Ele estava animado com a conversa, pareceu ter se interessado no fato de que eu
estava fazendo uma pesquisa sobre o metal extremo no Brasil. Com essa disposição
demonstrada por Rodolfo, resolvo provocá-lo, lançando na conversa uma reflexão que
havia anotado em meu caderno de campo algumas horas atrás naquela mesma noite.
Queria saber como ele interpretava a sua inserção no underground como uma forma de

ao invés de percussivo. Teremos então um baixista com “técnica”, um virtuoso. Afora esses instrumentos,
os teclados aparecem em bandas de doom e black metal, com controvérsias, e instrumentos de sopro,
essencialmente melódicos, são evitados ao máximo. Novamente, vemos aqui, na política sonora do
underground, a primazia do pulso (ritmo) sobre o tom (melodia).
134
Rodolfo, nome verdadeiro, pediu para não divulgar o nome de sua banda, segundo ele “porque não sei
o que os outros caras da banda acham disso”.
132

contribuir na construção coletiva deste espaço e não como uma forma de auto-
promoção, tanto dele próprio como da sua banda:

Mas toda essa participação sua no underground não seria uma forma de promover a sua
banda? Toda essa troca de cartas, esse empenho em fazer um som legal, toda essa ajuda
que você dá pra galera, não é uma forma de se fazer mais conhecido, de vender mais
cds e fitas, de se promover no underground?

De modo algum Rodolfo respondeu rispidamente. Começou dizendo que a


minha interpretação era possível, afinal, a sua inserção, disse, é sim uma auto-
promoção. Porém, ressaltou que,

- pra ser conhecido no underground, tem que existir o underground (...), toda banda que
faz um trabalho sério pensa em sobreviver de música, pra mim quem diz que não é um
fingido, bando de falso, hipócrita (...), mas conseguir isso é muito difícil, no Brasil
quase impossível, então tem que rolar ajuda, mutirão mesmo, todo mundo ajudando
todo mundo, como uma comunidade. Eu quero me dar bem junto com todo mundo que
tá aqui pra valer, fazendo a coisa séria, pelo metal extremo, pela pancadaria135.

- então você acha que o underground é uma comunidade?


- não eu não acho, ele é uma comunidade, é um grupo pequeno mas de pessoas unidas,
se ajudando a toda hora, não importa como. Cara, eu vou pro Rio, venho pra cá (Juiz de
Fora), BH, São Paulo, não só pra tocar mas pra ver show, pra encontrar meus amigos
(...), onde você acha que eu fico? Onde você acha que eu como? Na casa desses caras,
que eu conheci por carta ou viajando por ai. E quando eles vão lá pra Três Pontas, ficam
na minha casa (...) é assim que funciona, todos juntos, lutando pelo nosso metal (...).

- e você gosta dessa luta ou acha que ela dá resultados?


- resultado financeiro não dá, você sabe disso, todo mundo aqui é quebrado, mas cara,
olha pro mundo de hoje, guerra, ódio, briga, é só desunião, separação (...), ficam
falando que estamos na era de aquário, essa conversa furada de hippie que tá tudo numa
paz (...), eu só vejo individualismo e egoísmo, todo mundo querendo tirar o seu e foda-
se o outro (...) não, aqui não, aqui nós trabalhamos em conjunto, essa é a mágica do
metal, eu nunca vi a pessoa antes mas se ela tá pra valer no underground terá minha
ajuda, e em dez minutos de conversa você sabe se ela tá pra valer no underground (...)
não é gostar ou não dessa luta, ela é minha vida, tá no meu sangue (...) não tenho
dinheiro, mas tenho amigos e tenho princípios.

Para Rodolfo, não é preciso pedir mais união ao underground porque ele já está
unido, tão unido que já se cristalizou em uma comunidade. Uma comunidade, como
Rodolfo a percebe, que poderia ter como lema o mesmo dos mosqueteiros de Dumas, un
pour tous, tous pour un. Constituída a partir de um interesse pelo metal extremo,
contudo, para Rodolfo, ela é mais do que um grupo de pessoas que se reúnem
periodicamente para fazer, ouvir e apresentar esse tipo de música. A comunidade do
underground seria uma rede de solidariedade, baseada em uma igualdade e em uma

135
Noto que as respostas transcritas de Rodolfo foram lidas por ele após eu as ter redigido durante nossa
conversa. Ele fez questão de lê-las, mas não fez questão de alterações.
133

reciprocidade mútua entre seus membros, ajudando os músicos e as bandas “sérios” na


suas promoção e participação ativa. Ou seja, a comunidade que Rodolfo percebe no
underground é uma resolução de duas práticas internas que geralmente são tidas como
opostas pelos praticantes, a auto-promoção em um lado e o trabalho coletivo em outro.
Sintetizando ambas, a comunidade do underground trabalharia coletivamente pela
promoção de todos os praticantes “sérios”.
De certa maneira, a percepção do underground nacional como um grupo de
pessoas com direitos e deveres iguais, trabalhando solidariamente na construção deste
espaço, é perceptível nos discursos dos apreciadores de todos os estilos de metal
extremo. Frente às hierarquias que existiriam no mainstream entre o fã, o produtor e o
músico, o praticante percebe no underground um mesmo patamar de importância para
todos, patamar este que é, ele mesmo, construído por todos.
Mas este senso de comunidade geralmente se manifesta no discurso dos
praticantes conjugado no imperativo afirmativo. É como se o underground estivesse a
ponto de se esfarelar. Ele está frágil, convalescente, portanto é preciso pedir por uma
união efetiva, por uma doação dos praticantes em vista de uma futura pujança comunal
do underground. É preciso que a comunidade venha a se consolidar. O espectro do
individualismo ronda o underground, então o praticante clama por união igualitária:
hellbangers do Brasil, uni-vos!
Já o praticante apreciador de death metal, como Rodolfo, conjuga este senso de
comunidade no particípio. A comunidade do underground está feita, a rede solidária do
metal extremo no Brasil funciona, é pujante, e o praticante só precisa mantê-la
operando, sendo “sério”, ingressando no underground “pra valer”. O espectro do
individualismo existe no discurso do apreciador de death metal, mas o espírito
benfazejo da comunidade do underground o mantém distante.
No discurso do death metal, a comunidade do underground surge concretizada.
O estilo percebido como o mais “puro” do underground, com uma genealogia metálica
intacta, o primogênito legítimo do metal extremo, é aquele que afirma a existência da
comunidade do underground, de uma rede solidária baseada no gosto pelo metal
extremo.
A solidariedade, esse senso de reciprocidade no qual a comunidade do
underground se baseia, é a “mágica” do metal como diz Rodolfo, o seu elemento
especial, aquilo que só ele proporcionaria. Uma “mágica” em dois sentidos. Em um
deles, a solidariedade seria praticada por pessoas que não se conhecem, que nunca se
134

viram, mas que compartilham o interesse pelo metal extremo e a vontade de


participação ativa no underground. Em outro, ela oferece um ponto de apoio ao
praticante frente a um mundo percebido como cheio de “ódio, guerra e briga”. Para
Rodolfo, no “mundo de hoje”, onde só há “desunião e separação”, a rede solidária do
underground também é uma rede de apoio, espécie de torniquete, ajudando-o a
enfrentar aquilo que chama de “individualismo e egoísmo” com um pretenso
comunalismo generoso. Esses são os truques sociais da solidariedade para o praticante
de death metal. Fazer com que, “após dez minutos de conversa”, duas pessoas que não
se conhecem, se percebam como amigas, unidas em um mundo onde só há “desunião e
separação”.
Mas quando voltamos nossos olhos e ouvidos para o estilo do death metal, não
há como não percebermos certa contradição entre suas temáticas e a maneira como seus
apreciadores concebem a comunidade do underground. O estilo preferido dos
praticantes que qualificam este espaço como uma rede solidária, cantará e versará, assim
como os outros estilos de metal extremo, sobre temas desagregadores. Afinal, estamos
falando do estilo que se pretende o “mais pesado e agressivo”, aquele que teria
potencializado a “brutalidade” do metal extremo, aquele que leva como nome próprio a
própria morte.
Purcell (2003) afirma que uma espécie de horror montado a partir de imagens de
corpos humanos dilacerados, violência gratuita e de símbolos religiosos é a temática do
death metal norte-americano (idem, pp. 151-186). Já Bogue (2004), trabalhando a partir
de uma perspectiva deleuziana, entende que o motivo da violência se configura como o
tema central do death metal no mundo todo. Berger (1999), por sua vez, encontra no
death metal composto pelas bandas da cidade de Akron, Estados Unidos, a agressão
como tema central136 (idem, pp. 251-294). No entanto, simplificaríamos demais o death
metal do underground do metal extremo brasileiro se apontássemos nele, como fizemos
nos estilos analisados anteriormente, apenas um tema central. Enquanto os outros estilos
apresentam poucas variações estilísticas em relação a um tema central, a particularidade
do death metal é apresentar uma ampla diversidade de temas centrais. As bandas podem
tratar de escritores “malditos”, como a Sad theory tratou de Baudelaire; assim como as

136
Ainda sobre este trabalho, foi uma grata surpresa encontrar em sua etnografia as mesmas opiniões que
Rodolfo tem acerca do underground nas vozes dos músicos e apreciadores de death metal em Akron.
Aliás, o principal participante da pesquisa de Berger, Dann, comenta sobre suas trocas de cartas com a já
inativa banda brasileira, carioca, Dorsal Atlântica (op. cit, p. 274). Temos nesta confluência de dados
entre esta pesquisa e a nossa mais um indício das conexões internacionais que o underground do metal
extremo engendra.
135

de gore/grind/splatter, podem tratar do corpo humano dilacerado, como faz a banda


mineira de Sete Lagoas Embalmed alive137 na sua fita-demo de 2003, Regurgitating the
Internal Parts, lançada em 2003; podem também elencar, tal as bandas de trash, as
guerras e a destruição advinda com elas, como elencaram os santistas da Chemical
disaster138 no seu cd Scraps of a Being de 2000; a dor da perda, típica do doom, pode
ser tratada pelas bandas de death metal também, como fizeram os baianos da Sades139
na canção E que Meus Rogos Cheguem a Ti, inclusa na fita demo de 2006, Final
Destination; finalmente, podem cantar e versar, junto com as bandas de black metal que
logo veremos, sobre o satanismo, como canta e versa a banda de Danilo, a Infernal.
As bandas de death metal do underground nacional trabalham em suas letras
com todos os motivos centrais dos outros estilos de metal extremo. Na verdade, os
motivos das suas letras são os motivos dos outros estilos de metal extremo. Na lírica do
metal da morte não há uma particularidade que o diferencie dos outros estilos. Temos
então, com o death metal, um peculiar movimento de diferenciação estilística interna ao
underground. O estilo que afirma sua particularidade de forma mais forte, pretendendo
ser o mais “puro” de todos, o mais “agressivo e pesado”, é aquele que apresenta a mais
parca delimitação lírica. No que tange aos motivos das letras, o death metal é o receptor
universal do underground.
Porém, inversamente, a música do death metal é emprestada pelos outros estilos.
Por exemplo: nas combinações estilísticas que as bandas fazem, o death metal é o único
que se encaixa em todos os estilos, ele é o sobrenome com maior conectividade no
metal extremo. A banda pode compor um trash death metal, um doom death metal e
assim por diante com todos os estilos. Estes, por sua vez, só funcionam como nomes
próprios. Um doom trash metal ou um trash doom metal soariam ao praticante como
experimentações musicais bizarras ou “cult”. O death metal é aceito como o doador
universal de motivos musicais do metal extremo nacional. A sua “pegada” como os
praticantes dizem, ou seja, as suas características musicais, aquelas que Danilo nos
descreveu, serve como aditivo de “peso e agressividade” a todos os tipos de metal
extremo.
Em todos os estilos, a letra opera como legenda da música. Incrustando-se na
música, a letra traduz metaforicamente em palavras os motivos trabalhados no som,

137
www.myspace.com/embalmedaliveband. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
138
www.myspace.com/chemicaldisasterband. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
139
www.myspace.com/sadesmetal. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
136

delineia em adjetivos, substantivos e verbos as melodias, harmonias e ritmos. Legenda


curta e precisa. O metal extremo underground nacional é um tipo de arte na qual tanto
seu produtor quanto seu consumidor não estão interessados em multiplicar as
referências e alusões das obras140. As metáforas que a letra emprega, para o praticante,
são as únicas possíveis. Neste sentido, podemos dizer que no metal extremo letra e
música equilibram-se uma na outra na construção dos estilos por meio de uma mútua
significação. Ambas, por linguagens diferentes141, transmitem o mesmo significado.
O death metal não foge à regra. As letras escritas pelas bandas, recheadas de
imagens de desagregação, repugnância, violência e blasfêmia, são cantadas em canções
percebidas pelos praticantes como desagregadoras, repugnantes, violentas e
blasfemadoras. Porém, enquanto os outros estilos constroem suas particularidades em
uma junção de motivos musicais precisos com motivos líricos precisos, o metal da
morte demanda precisão apenas na música. Qualquer letra, desde que se encontre no
campo semântico do metal extremo, pode ser utilizada por bandas de death metal. Já o
inverso não acontece. A música do death metal deve ser composta somente a partir
daquele conjunto de elementos sônicos: guitarras distorcidas em afinação “baixa”,
bumbo duplo veloz, baixo “harmonizador” e vocal “gutural”. Alterações nesse conjunto
que não o descaracterizem podem ser muito bem aceitas pelo público underground,
como foi a troca da guitarra pelo violino que Danilo, do Infernal, fez. Aliás, essa troca
exemplifica a frase de Juan, inclusa acima em uma nota. Danilo foi “tradicional
(mantendo a distorção e afinação “baixa”), mas de um jeito inovador (trocando o
instrumento)”. Porém, se uma banda de death metal propõe alguma variação deste
conjunto que escape aos limites musicais do death metal, ela transforma o death em seu
sobrenome e ganha um novo nome próprio. Por exemplo: se a banda cadencia o bumbo
duplo mas mantém os outros elementos, será rotulada de doom death metal. Se, por
outro lado, ela propõe alguma variação que escape aos limites do metal extremo,

140
Originalidade e criatividade são dois valores muito bem quistos no underground, porém elas estão
regradas por essa demanda de encurtamento de referências e alusões e, claro, pelas regras sonoras e líricas
do metal extremo. Juan, guitarrista do Sad theory, em uma de nossas tantas conversas durante as
gravações do disco da banda, disse o seguinte a respeito da originalidade e criatividade no metal extremo
underground: “tem que ser tradicional de um jeito inovador, fazer mais do mesmo de um jeito diferente”.
Pelos dados da pesquisa, tendemos a concordar com ele, fazendo uma ressalva. São poucas as bandas que
conseguem executar esse tipo de criatividade e originalidade. De modo que a grande maioria só cumpre a
primeira metade desse programa, fazendo “mais do mesmo”.
141
No show a música prepondera sobre a letra. Porém, vale notar que mesmo nas fitas demo mais toscas,
as bandas fazem questão de trazer no encarte as letras de suas canções.
137

adicionando instrumentos de sopro por exemplo, ela arrisca não só sua filiação ao death
metal como também ao próprio underground.
De modo que a particularidade do death metal no underground está em uma
inversão da relação entre música e letra. A música legenda a letra, ela traduz em
melodias, harmonias e ritmos os adjetivos, substantivos e verbos, delineia em sons
ouvidos como violentos e agressivos, palavras de violência e agressão. Daí o metal da
morte ser considerado o estilo mais “puro” do metal extremo, o mais “agressivo e
brutal”, por todos os praticantes. Em uma prática urbana fundamentalmente musical, o
death metal seria a cristalização sonora dos valores e afetos que seus praticantes buscam
representar pela música. Pela sua perspectiva, o filho legítimo do metal extremo
cumpriu seu dever, exprimindo ritmos da virulência, expelindo melodias da agressão e
vomitando harmonias pelos intestinos delgados abertos. O death metal figura, assim,
como o corolário musical do underground do metal extremo nacional.
138

O DEATH METAL EM AÇÃO

Danilo e seu violino em show da Infernal. Ao fundo, o bumbo duplo da bateria

Guga e Carlos, “garganta” e baixista da Sad Theory


139

4 - A EXTREMIDADE DO EXTREMO: BLACK METAL

Os praticantes do underground do metal extremo nacional procuram em seus


estilos favoritos características que o tornariam “melhor” do que seus congêneres. Paras
eles, diferenciar seu estilo preferido no underground é uma questão de julgamento de
qualidades, de produzir uma superioridade, um patamar para o estilo ao qual nenhum
outro teria chegado ou poderia chegar. Como vimos, o apreciador de gore/grind/splatter
julga seu estilo preferido superior em razão da violência e repugnância nele explícitas,
“nenhum outro é tão nojento quanto o gore”, ele diz. O trasher encontra na
ancestralidade, no pretenso pioneirismo pelas vias da “agressividade”, esse patamar
elevado do trash metal. O apreciador de doom metal arrogará ao seu estilo favorito a
qualidade do mais refinado, letrado e culto do underground, “é para poucos” é o que ele
diz se você pede que descreva o doom metal. Já o death metal será julgado superior pela
sua música, como acabamos de ver, considerada a “mais agressiva e brutal” do
underground do metal extremo nacional.
Esses julgamentos de modo algum inibem a convivência harmoniosa que estes
estilos mantêm no underground. Também não inibem a convivência harmoniosa entre
os praticantes, assim como não demandam do julgador um gosto único, totalmente
voltado ao seu estilo favorito. Normalmente esses julgamentos são expostos após uma
afirmação de aceitação de todos os estilos: “olha, eu gosto de todos, mas prefiro este,
pois...”. Para sermos precisos, estes julgamentos são produtores e produtos das
diferenças entre os estilos do gênero metal extremo no underground, porém não tolhem
o aspecto coletivo desta prática urbana. Pelo contrário. Apimentando as rodas de
conversas dos shows, oferecendo material para fazer piadas acerca das particularidades
do estilo preferido do colega e oferecendo parâmetros para um zinero escrever sua
resenha, esses julgamentos reforçam ainda mais o underground enquanto um coletivo
único.
No entanto, o apreciador de black metal, no seu discurso, tende a tencionar essa
harmoniosa convivência das diferenças. Sua análise do underground é crítica, diz não
compactuar com os rumos que este espaço vem trilhando. Ele se coloca na iminência de
romper com o underground.
140

Em entrevista ao Anaites zine, oitava edição, os membros da banda Mordor142,


de Teófilo Otoni, Minas Gerais, criticam o underground nacional de várias formas em
suas respostas. Quando questionados acerca das suas visões sobre o cenário143 nacional
atual, o baixista e vocalista Nattens responde que:

(...) só vejo falsidade ultimamente. Tirando algumas poucas hordas sérias e respeitáveis,
só vejo modistas, falsos que acham legal se vestir de preto, que acham que estão
assustando alguém. Ficam fazendo cara de mau e dizendo que são satanistas sem
nenhum fundamento ideológico (...), os valores se perderam, o cenário underground
está corrompido.

Em outra pergunta, onde Hioderman os questiona sobre o que acham de bandas


supostamente underground darem entrevistas para revistas “comerciais”, o guitarrista
...em Sombras144 diz que acha:

Lamentável. Prefiro não ocupar meu tempo pensando sobre bandas modistas, que
posam de fodões. Pessoas que não se encontraram, e que se moldam de acordo com
uma certa tendência não merecem sequer comentários. Eles próprios se encarregam de
se destruir.

Suas críticas recaem até mesmo sobre a cena belo-horizontina, onde estaria
acontecendo algumas “mesclas” do underground com estilos musicais execrados pela
banda:

(...) não compactuamos com idéias de um modismo eletrônico, new metal, dance, rave,
etc, que estão se mesclando ao movimento em Belo Horizonte, do qual queremos
apenas distância (...), saudamos aqueles belorizontinos (sic) que ainda mantém a chama
do eterno metal mineiro.

No discurso do apreciador de black metal, o underground não precisa de união,


como dizem os apreciadores de gore/grind/splatter, trash e doom. Tampouco
transparece nele a materialização da comunidade do underground, como surge no de
death metal. O underground em sua perspectiva estaria decadente, “os valores se
perderam”, ele teria sido corrompido “pelas modas” e pelas “misturas”. Afora algumas
“hordas respeitáveis”, os praticantes “não se encontraram”, seguindo assim padrões de

142
As bandas de black metal se percebem como as mais reais do underground, por razões que tentaremos
compreender neste item. Mas vale indicar aqui que, sendo as mais reais, são as mais preocupadas em
controlar a divulgação de sua música. Portanto, elas são as mais avessas à internet. Seus membros dizem
que a internet facilita o acesso às suas músicas e informações por pessoas “indesejáveis”, falsos e
modistas principalmente. Sendo assim, teremos poucos endereços de myspace das bandas desse estilo
para indicar ao leitor.
143
Cenário é utilizado pelos praticantes como um equivalente de underground, geralmente fazendo
referência ao âmbito nacional e/ou mundial. Cena, em contrapartida, faz referência ao underground local
de uma cidade e/ou região do país.
144
Apenas para não deixar dúvidas ao leitor. O codinome do músico inclui as reticências.
141

comportamento impostos por alguma nova tendência, “eletrônico, new metal, dance,
rave”, em detrimento da “eterna chama” do metal.
Temos aqui mais um exemplo daqueles modos de acusação que as categorias
real e falso engendram. A banda Mordor se colocando na posição de real, classifica
praticamente todo o underground nacional como falso, “vendido e modista”.
Obviamente, eles não compactuam com tal estado, eles são reais, são dignos de respeito
por manterem a “verdadeira chama acesa” junto com outras “poucas hordas sérias”. No
discurso do apreciador de black metal, esse não compactuar-se com a falsidade beira o
rompimento com o underground, como deixa claro, novamente, Doom-Rá. Em certa
altura da sua entrevista ao Dark Gates zine, quarta edição, o líder da Uraeus, expondo
como seriam suas maneiras de conviver com a “sociedade capitalista”, enviesa sua
resposta em direção a um tratamento da sua relação com a própria cena underground
local145:

Vivo sozinho já a uns 6 anos e sempre convivi apenas o suficiente com a sociedade
capitalista, apenas suguei o que eu queria dela, sempre mantive-me oculto, nunca sai
por ai entre leigos, falando as minhas idéias, me arrependi de me misturar com a dita
cena black metal local, deveria ter me ocultado, sempre tentei ser amigo de todos, só
levei punhalada, vejo que mesmo no black metal, os defeitos típicos do ser humano são
visíveis, como traição, inveja, fofoca, falsidade, o melhor então é conviver com nossos
demônios mais íntimos de nossas solitárias escuridões (...).

Porém, na prática, esse rompimento não se efetiva. Na prática, esse afastamento


não se realiza. Ao contrário do que o apreciador de black metal diz, seu estilo favorito é,
junto com o death metal, o mais presente e inserido no underground do metal extremo
nacional. São das bandas de black metal a maioria das entrevistas publicadas nos zines,
são delas e das bandas de death metal a radical maioria das gravações circuladas pelo
underground e são os shows dessas bandas que mais acontecem pelo país afora. São os
músicos dessas bandas que montam os selos e os distros, esses promotores da
movimentação do underground. Não há dúvidas. As bandas de death e black metal são
as mais ativas, para usar um termo dos próprios praticantes, e articuladas do
underground. Suas ações nos fazem pensar que, diferentemente do que dizem, estão sim
muito preocupadas com os rumos que as cenas vêm tomando.
O tom crítico dos seus discursos, a “lamentação” que o apreciador de black
metal expressa pelo estado atual do underground, obviamente, fala mais sobre a

145
Doom-Rá morou em várias cidades. A cena local a qual ele se refere nessa entrevista, provavelmente, é
a cena goianiense.
142

maneira que ele percebe seu estilo preferido do que sobre sua postura prática neste
espaço. Tal como em um teatro, a depreciação do underground é um “gancho”, uma
“deixa” para a construção da singularidade que o black metal guardaria frente aos seus
congêneres. Antes de romper com o cenário, o apreciador de black metal quer, com sua
crítica, delinear seu estilo e forçar o reconhecimento desse delineamento pelos outros
praticantes do underground.
Os membros do Mordor nos ajudam a perceber qual delineamento é esse. Na
mesma entrevista, esclarecendo qual seria o significado da banda para eles, dizem:

Seria demasiado complexo buscar um conceito que expressasse com exatidão o que
vem a ser o Mordor nessa terra. O Mordor é caos, guerra, destruição! É um elo entre
guerreiros que lutam pelo que pensam, e o fazem até a morte. É a manifestação de
nossas concepções sobre um universo de assuntos identificados (com) nosso “modus
vivendi”. É a nossa arma, o nosso escudo que sustentamos com força, garra e honra. É
onde depositamos todo nosso ódio e o transformamos em arte extrema, direcionando-a
aos hereges guerreiros que nos acompanham. É o reflexo de nosso orgulho em manter
viva a chama do underground nacional! Filosofia de vida extrema! Enfim, o Mordor
somos nós e nós somos o Mordor!!!

Como vimos nos dois primeiros capítulos, é intrínseca à participação no


underground percebê-la como uma luta, seja lá qual for o estilo preferido. Luta que está
dotada de grande importância afetiva e moral para o praticante, porém, que raramente
extrapola a esfera musical de suas vidas. Lutam pelo tipo de música que gostam, o metal
extremo, e pela maneira que querem gravar, distribuir e divulgar esse tipo de música, o
próprio underground. Os praticantes muitas vezes a descrevem como um embate contra
o “mundo” ou contra a “sociedade capitalista”, mas na prática essa luta se traduz na
organização e manutenção de uma maneira relativamente autônoma de experienciar a
música na cidade.
No trecho citado, a banda Mordor está acionando essa concepção de luta para
significar sua participação no underground. A princípio, com um único diferenciador
em relação ao discurso padrão das bandas, o tom mais beligerante. Caos, guerra e
destruição, uma arma e um escudo sustentados com honra. A banda Mordor significa,
para seus membros, uma máquina de transformar ódio em arte extrema. Transformação
essa que lhes traz orgulho, pois, por meio dela entendem que estão mantendo a tão
importante chama do underground acessa.
Todavia, a luta pelo underground tal como a banda Mordor coloca parece não
estar só se referindo àquela abnegação que encontramos no discurso de outras bandas,
àquela doação pela manutenção do underground, espécie de sacrifício do indivíduo pelo
143

coletivo. Antes de uma luta pelo underground, a banda denota uma guerra do
underground. A banda Mordor é um elo de guerreiros que não está lutando pelo metal
extremo e sim pelo que pensam, ela é uma manifestação de assuntos que se identificam
com o “modus vivendi” dos seus integrantes. Uma guerra que não é só pela música, mas
que usa a música para guerrear. Uma guerra baseada no underground, mas que se
direciona para fora dele.
A banda paulistana Triumph, em entrevista à revista/zine A Obscura Arte,
décima edição, é bastante incisiva neste mesmo ponto. Questionados sobre como vêem
o estado atual do underground, partem para a constante crítica contumaz que toda banda
de black metal faz a ele: “o que vemos hoje em dia é o lado artístico muito em alta, tem
banda hoje querendo lançar seu cd e fazer shows e esquece todo o sentimento maior que
há no black metal”. Na frase seguinte, a banda esclarece qual é esse sentimento maior
do que o lado artístico que estaria por trás do estilo que tocam: “black metal é arte, mas
acima de tudo, é atitude e culto”.
Uma atitude, um culto ou, como muitos preferem, uma “ideologia”. O black
metal para seu apreciador seria mais do que um estilo de música, seria um estilo de vida,
um agregado de condutas e valores específicos, certamente baseados no metal extremo
underground, mas referidos para além dele. O black metal seria a radicalização da luta
empreendida neste e por este espaço, no sentido de que ele representa não só um tipo de
metal extremo mas, sobretudo, um estilo de vida extremo ou, como os membros da
Mordor preferem, “filosofia de vida extrema”.
Radicalização essa que, por um lado, se assemelha àquela percebida no death
metal, pois em ambos trata-se de ser “mais brutal e mais agressivo”. Enquanto o death
metal é a música “mais brutal e mais agressiva”, o black metal é a “ideologia mais
brutal e mais agressiva”. Porém, por outro, distinta. Enquanto a radicalização do death
metal é assimilada pelo underground como um todo, a do black metal tende a se manter
entre seus apreciadores. Se o death metal é o metal extremo mais “puro” do
underground, o black metal é julgado pelo seu apreciador como a vanguarda do metal
extremo. Consequentemente, ele, o apreciador, se julga como a elite do underground.
Ele se vê como o mais real dos reais, o defensor do underground. Ele se sente capaz de
apontar “típicos defeitos do ser humano” no estado atual da “lamentável” cena local,
pois o estado atual do seu estilo preferido é venturoso. O black metal transparece para
seu apreciador como uma vitória, como uma conquista, como a campanha mais exitosa
do underground. Ele e o black metal atingiram a perfeição. Desse modo, não há
144

surpresas na contumaz crítica que ele faz ao underground. Este sempre lhe parecerá
estar aquém do black metal. O underground sempre lhe parecerá falso.
Mas é preciso sublinhar: o discurso crítico, bem como suas ameaças de
rompimento, são formas de distinção do black metal dentro do underground. Mesmo
que o black metal não goze da mesma popularidade do death metal entre os praticantes,
ele não se sapara do underground. Suas bandas sobem aos mesmos palcos e nas mesmas
noites que sobem as bandas dos outros estilos. Dividem as páginas dos mesmos zines e
têm suas gravações lançadas e distribuídas pelos mesmos selos e distros.
Com esse discurso, o black metal quer forçar sua especificidade para todo o
underground. Ele quer fazer com que todos aceitem a sua “radicalização ideológica”
como o paradigma desta prática urbana. Tal como um profeta (personagem esse que as
bandas de black metal muitas vezes abordam em suas letras), o black metal diz ao
underground: “venhais comigo, sigais-me, pois sei qual é vosso destino”. Mas então,
qual é esse destino que o black metal diz estar reservado ao underground? Ou seja,
como é essa “ideologia”, essa “filosofia de vida extrema” que o apreciador de black
metal diz seguir e forçosamente propõe aos seus pares?

***

A banda Triumph, com sua incisividade característica, define em uma palavra


esta “ideologia”. Na resposta seguinte àquela na qual disseram que black metal é, acima
de tudo, atitude e culto, a banda marca ainda mais sua visão do estilo que representam:

Black metal é satânico e puramente satânico. Tudo o que não for satânico não é black
metal, é outra forma de metal. Eu não consigo entender o porquê estas pessoas não
abrem os olhos, o black metal é assim auto-intitulado pelas letras e atitude e não por seu
som especificamente. O principal é isto. Black metal é satânico e puramente satânico
será.

A visão da Triumph corresponde à visão de praticamente toda banda de black


metal do underground do metal extremo nacional. Isso que eles chamam de satanismo é
o sentimento que eles sobrepõem à música. Esta é a atitude, o culto, a “ideologia” do
black metal, o satanismo. No Unholy Black Metal zine, a banda fluminense Bellicus
Daemoniacus, define sua “ideologia” assim: “satanismo, aniquilação da escória cristã,
vingança e maldade! Exaltamos e aguardamos o império de Lúcifer”.
145

Cada banda procura transmitir um satanismo mais repugnante do que a outra,


mais violento e malvado. A banda paulista Fecifectum, pela voz de seu líder Lord
Diabolous Occultus Maleficum, descreve, em entrevista ao mesmo Unholy Black Metal
zine, este satanismo assim:

Imolem os cordeiros celestiais, destruam suas casas, blasfemem muito, façam sua parte,
somos os lobos que comem a carne podre das ovelhas brancas, transpiramos o fedor do
satanismo em nosso sangue, levantaremos nossas espadas para destruir e dar de
oferenda ao pai Satã.

Poderíamos continuar citando inúmeros trechos de entrevistas onde o satanismo


é afirmado como uma “ideologia” acima da música e descrito de maneira violenta,
repugnante e agressiva, “radical” como as bandas preferem. É uma assunção
amplamente aceita: compor e escutar black metal no underground significa cultuar
alguma forma de satanismo.
Atitude “puramente satânica”, exaltação do “império de Lúcifer”, uma
“ideologia diabólica”. Podemos facilmente compreender que as bandas de black metal
estão se referindo a figura judaico-cristã que ora é definida como diabo, ora como
Lúcifer ou mesmo, Satã e Satanás. Pelo exposto até aqui, podemos dizer mais, podemos
dizer que a referência a tal figura procura acentuar uma aceitação e uma proposição
daquilo que o diabo representaria na cosmologia judaico-cristã, pelo menos ao nível de
certo imaginário comum: a oposição ao bem ou, inversamente, o posicionamento ao
lado do mal.
Porém, vasculhando um pouquinho mais a cosmologia judaico-cristã,
compreendemos que as bandas de black metal estão se utilizando de uma figura que
raramente teve uma representação nítida ao longo da história dessas duas religiões. Mais
ainda, raramente teve uma função cosmológica unívoca. Luther Link (1998), em
sugestivo estudo histórico das representações pictóricas (quadros e afrescos) e
iconográficas (estátuas) do diabo entre os séculos VIII e XV na Europa ocidental,
entende que a ‘(...) essência (do diabo) é uma máscara sem rosto’ (idem, p. 20). Ora
representado como uma espécie de homem das cavernas, ora como uma serpente ou até
mesmo como uma maçã; empunhando um tridente, um arpéu ou uma harpa; às vezes
legendado como Satanás, outras como diabo ou ainda, já na renascença, Lúcifer. Para
Link, não há qualquer constância na representação medieval européia da figura que, nos
últimos séculos, ganhou um corpo de homem e uma cabeça de bode com chifres,
fedendo a enxofre e usando uma capa. Para o autor, essa riquíssima variação pictórica e
146

iconográfica do diabo corresponde a sua dupla função cosmológica no judaísmo-


cristianismo. Se, por um lado, o diabo era o inimigo de Deus/Jesus, por outro era seu
cúmplice. Ao mesmo tempo em que, contra eles, tenta os homens na Terra na intenção
de desvirtuá-los, afastando-os dos desígnios divinos, o diabo, com a cumplicidade deles,
gerencia o local de tortura eterna destes mesmos pecadores que não ascenderam ao
reino dos céus, o inferno. À revelia divina, tenta o ser humano a cometer o pecado. Mas,
não havendo formas de salvação, o diabo faz cumprir a pena promulgada pela ira divina,
torturando eternamente essas almas em seu palácio em chamas. Para Link, essa
ambivalência do diabo constitui-se em problema moral e teológico crucial durante os
séculos VIII a VX, ocupando muitas páginas de filósofos como Santo Agostinho e
Espinosa.
As palavras de Link nos previnem de um possível erro, coloquemos assim, tão
latente na pesquisa antropológica, especialmente em contexto urbano. Na compreensão
do satanismo referido pelas bandas de black metal, precisamos tomar todo cuidado em
não reificar qualquer pressuposição daquilo que esta “ideologia” estaria denotando. O
satanismo do black metal do underground nacional é um recorte específico do
arcabouço cosmológico judaico-cristão, por sua vez múltiplo e heterogêneo. Sim,
sabemos que o black metal re-significará esse arcabouço em seus próprios termos. Mas
como? Como é que se articula o “império de Lúcifer” pelo ponto de vista do black metal
underground nacional?
Para começarmos a compreender como esse satanismo é constituído, é preciso
fazer uma ressalva quanto a esta sobreposição da música pela “ideologia” que os
praticantes operam. A prática do black metal no Brasil não resultou, pelo menos até o
momento, em qualquer tentativa de organização filosófica, teológica ou mesmo militar
que extrapole o âmbito do underground. Não foi escrito nada equivalente a Bíblia ou ao
Livro dos Espíritos no black metal, muito menos algo parecido com uma sistematização
filosófica das idéias e princípios desta “ideologia” satânica. Não existem igrejas ou
faculdades do black metal. No mesmo sentido, apesar de seus praticantes produzirem
constantemente imagens se colocando em trincheiras, evocando um estado de guerra
deles contra todos, o black metal não possui um braço paramilitar. Ou seja, o
descolamento entre “ideologia” e música não corresponde ao surgimento de qualquer
prática para além da composição, gravação, audição e apresentação da música black
metal no underground. Isso não quer dizer que não haja um tratamento filosófico,
religioso ou militar do black metal. Há sim, tratamentos filosóficos, religiosos e
147

militares que se expressarão por meio da iconografia, das roupas, acessórios, gravações
e, principalmente, pelas letras e apresentações das bandas de black metal. O black metal
encampa sua guerra, cultua sua religião e doutrina suas máximas na articulação do seu
estilo, obviamente, em constante relação com seus congêneres do underground.

4.1 - Guerra contra o bem, estilizando o mal

Mais precisamente, o culto ao satanismo já é, em si, uma guerra. A banda


curitibana Murder rape146 incluiu no seu segundo full lenght, And Evil Shall Burn Inside
Me Forever, lançado em 2001, a canção ...And Evil Returns. Sua letra diz:

...And evil returns


Full of anger and spite
Tears of blood
Rip and drop form the sky
Finally, the end of the celestial paradise.

Lamentation, despair
And screams of pain
These are the smooth melodies
That your ears will be able to hear
Under the command of the Beast

Legions march, pail faces


Are shown by the opaque light of the moon
Misery has been sowed
At the womb of earth.

Today it’s present


Contaminating all the ones
Who possess a “pure heart”.

We are the sons of misery


The damned by god
But blessed by the Beast.

We are the army of Satan


We are the torment of the Nazarene
The damnation of the once virgin
We are the fury of the Beast.

146
A banda também não possui myspace, mas o leitor encontrará algumas de suas canções disponíveis
para audição neste sítio eletrônico: www.lastfm.com.br/music/Murder+Rape. Acessado pela última vez
em 13/03/2008.
148

SATAN
Lord of lords
The annihilator of ignorance
The indestructible warrior
May our battle
Be felt at the ends of the universe147.

O satanás que encontramos na letra não é aquele demônio grotesco que Bakhtin
(1993) percebe na obra de Rabelais e na cultura popular da Europa medieval: figura
bonachona que caçoa e é caçoada, instigadora do riso e dos prazeres carnais. O satanás
descrito pelo Murder rape é raivoso, odioso e senhor da destruição. Seus inimigos estão
muito bem precisados, o paraíso celestial, os corações puros, o nazareno e a virgem.
Todos eles sentirão a raiva do senhor dos senhores, Satã. Entrarão em desespero,
sentirão dor e lamentarão.
A letra nada mais é do que uma descrição do velho embate do mal contra o bem,
travado pelo diabo contra o divino. O interessante é que, pela posição do narrador na
letra, o diabo entra neste embate mais como um pai e inspirador do que exatamente um
combatente. Ele plantou a semente do sofrimento nesta terra. Talvez um general, pois
ele comandará a guerra a partir da qual ecoarão as doces melodias da lamentação, do
desespero e dos gritos de dor. De qualquer forma, no front estarão seus filhos, aqueles
que receberam sua benção. O narrador compõe o exército de satanás, ele é o fruto da
semente do sofrimento nesta terra, ele é o tormento do nazareno e a maldição da virgem.
Ele destruirá o paraíso celeste e dará essa oferenda ao pai Satã.
O narrador não só é a banda como também, podemos dizer, todo praticante de
black metal. Esse compartilhamento da narração se constrói, particularmente, nas duas
primeiras frases da terceira estrofe, onde a letra faz clara alusão à prática do estilo148.
Legiões marcham com suas faces pálidas sob a luz da lua. Ora, grupos se deslocam à
noite para participar, tocando e assistindo, dos shows das bandas de black metal, as
quais, invariavelmente, se apresentarão, todos os membros, com seus rostos pintados

147
…E o diabo retorna/cheio de raiva e ódio/lágrimas de sangue/rasgam e pingam do céu/finalmente, o
fim do paraíso celestial. Lamentação, desespero/e gritos de dor/Essas são as doces melodias/que suas
orelhas poderão escutar/sob o comando da Besta. Legiões marcham, faces pálidas/contrastam com a luz
opaca do luar/sofrimento foi plantado/no útero da terra. Hoje ele está presente/contaminando todos/ de
“coração puro”. Nós somos os filhos do sofrimento/amaldiçoados por Deus/mas abençoados pela Besta.
Nós somos o exército de Satã/nós somos o tormento do nazareno/a maldição da dita virgem/nós somos a
fúria da besta/SATÃ/senhor dos senhores/o aniquilador da ignorância/ o guerreiro indestrutível/que sua
batalha/seja sentida nos confins do universo.
148
Vale notar também que, em todos os shows que pudemos acompanhar do Murder rape durante a
pesquisa, foram mais de vinte, a banda sempre começava sua apresentação com esta canção.
149

com tinta branca e negra, o corpsepaint como é conhecida entre os praticantes tal
pintura:

Fotos do encarte do cd Evil Shall Burn Inside Me Forever, do Murder Rape. Acima, o
vociferador (vocalista) Nargothrond. Abaixo, o baixista e líder da banda Agathodemon.
150

Corpsepaint. Exploremos um pouco mais essas pinturas cadavéricas, exclusivas


do black metal no underground, que os músicos usam quando se apresentam. Apesar de
que cada músico possui uma pintura própria, o corpsepaint em geral se define pelo
espalhamento de uma pasta branca, a mesma que os palhaços usam, pelo rosto todo e
uma pasta negra delineando os olhos e, em alguns músicos, também a boca. Batom
negro nos lábios, como Agathodemon está usando na foto, e tinta vermelha respingada
pelo rosto, imitando sangue, podem também estar presentes na composição das pinturas.
Entre os praticantes, é controversa a origem do corpsepaint. Alguns a atribuem às
bandas norueguesas do início dos anos noventa, as quais são tidas por muitos como as
primeiras representantes do “genuíno” black metal149. Outros atribuem seu uso pioneiro
pela banda mineira, já inativa, Sarcófago, tida, por sua vez, como a precursora do metal
negro no Brasil150. Porém, de qualquer forma, todas as bandas explicam seu uso como
um elemento fundamental da guerra que o black metal encampa. Sobre o corpsepaint, a
banda Mordor, na mesma entrevista dada ao Anaites zine, diz:

O corpsepaint nos é fundamental, sendo a manifestação de nossos sentimentos, a


materialização de uma atitude interior, a expressão de todo ódio aos nossos opositores,
aos que nos envergonham. É o mórbido reflexo da alma dos guerreiros de coração
negro.

O corpsepaint compõe a imagem de guerreiro que o músico de black metal tanto


busca imbuir em si próprio. Suas bandas são chamadas de hordas, suas canções são
chamadas de hinos, tiram fotos e sobem ao palco com armas, geralmente armas brancas,
facas, machados, lanças e clavas pontiagudas. Toda a vestimenta do apreciador no
show, suas roupas e acessórios, é montada como se fosse um uniforme ou uma

149
Mais à frente, iremos tratar da profunda influência, não só no quesito corpsepaint, que as bandas
norueguesas de black metal do início dos anos noventa exercem nas bandas brasileiras (e muito
provavelmente no black metal praticado em qualquer país). Por ora, vale notar que o black metal
norueguês é tomado como o mais autêntico de todos, pois teria sido neste país que o estilo tomou a forma
que as bandas brasileiras procuram imitar atualmente.
150
Interessante notar que o Sarcófago surge bem antes das bandas norueguesas. Enquanto o boom nórdico
acontece por volta dos anos 1990 e 1991, a banda mineira já reclamava uma “ideologia” satânica em
1985. Aliás, em entrevista ao interessante livro que conta a história do underground black metal
norueguês, um zineiro deste país, em atividade naqueles anos, conta que foram os discos do Sarcófago os
maiores inspiradores daquilo que viria a ser o tão “respeitado e autêntico” black metal norueguês
(MOYNIHAN & SODERLIND, 1998, p. 36). Ou seja, podemos dizer que o black metal,
cronologicamente falando, é fruto da cultura popular brasileira.
151

armadura151. O cabelo, se não é longo, é inexistente. Botas pretas estilo militar, calças
pretas coladas ao corpo, camisetas pretas de bandas de black metal e jaquetas pretas de
couro são peças básicas, tanto para o homem quanto para a mulher. A variação pode ser,
para ele, a estampa camuflada, principalmente nas calças, e para ela, geralmente em
shows maiores, festivais underground, vestidos e espartilhos pretos são apropriados.
Essas peças são básicas, mesmo na condição de expectador. No entanto, na hora da
apresentação, a vestimenta do músico se adornará de maneira excessiva. Cintos com
tachas grandes de ferro ou cinturões de bala, adornos de couro nos braços e nas pernas
também com tachas de ferro ou, algo que só as bandas de black metal usam, com
grandes pregos, como estes que o vocalista Malleficarum, da banda brasiliense Vultos
vociferos, aparece usando no encarte do único cd da banda, Ao Eterno Abismo, lançado
em 2005:

Entretanto, nenhum outro símbolo será mais ostentado pelos apreciadores de


black metal do que a cruz católica invertida. Aparecendo em colares, nas capas das
gravações, nos logotipos das bandas e tatuada nos corpos, a cruz católica invertida,
junto com o corpsepaint, identifica para qualquer praticante do underground a banda ou
o apreciador do black metal. Seu portador gosta de ser explícito, ele quer deixar bem

151
Os praticantes que encontramos fora do contexto das apresentações também estavam usando as
mesmas peças que descreveremos neste parágrafo. Aqueles que não estavam, explicaram a ausência por
questões de “trabalho”.
152

claro sua filiação black metal apresentando a cruz católica invertida de modo evidente e
excessivo, como faz o tecladista Hysrucs Midgard, da banda carioca Unearthly, na sua
foto no encarte do cd Infernum – Prelude to a New Reign, lançado em 2002:

O uso desses elementos, dos braceletes com grandes pregos, da cruz invertida e
do corpsepaint, certamente operam na construção da particularidade do black metal no
underground. Eles marcam tanto o estilo quanto seu apreciador. Suas ostentações
pontuam a identidade do estilo, assim como filiam a pessoa a esta mesma identidade.
Máscaras que mascaram o indivíduo em uma identidade coletiva num ambiente que, por
mais englobante que seus limites possam ser, guarda em seu território uma diversidade
riquíssima.
Porém, para além do nível sociológico, a função contrastiva destes elementos
também envolve a marcação da “ideologia” satânica do black metal. O uso deles
comunica aquilo que os apreciadores do black metal enfatizam em suas entrevistas, qual
seja, a sobreposição da “ideologia” sobre a música. Ou melhor, uma vez que a
“ideologia” satânica é unicamente apresentada no estilo do black metal, o uso destes
elementos faz parte da montagem desta “ideologia”. Eles materializam nos corpos,
objetos e eventos do underground o culto ao satanismo que o metal negro quer celebrar.
Podemos tirar as aspas da ideologia, pois ela está aí, no estilo. Ela é o estilo do black
metal.
Se insistirmos um pouco mais no corpsepaint, podemos visualizar como o
satanismo se encarna, literalmente, no estilo do black metal. Talvez menos explícito do
que a cruz invertida, o corpsepaint, contudo, é uma máscara que, se por um lado
encobre a identidade do músico, por outro desvenda de modo surpreendente a
identidade deste estilo de metal extremo.
153

Lembremos de como os membros do Mordor explicam o uso das pinturas


cadavéricas. Manifestação dos sentimentos, materialização de uma atitude interior,
expressão do ódio aos seus opositores, um mórbido reflexo das suas almas de guerreiros
de coração negro. Metáforas que denotam a máxima black metal: guerra contra o bem
(sempre é bom lembrar: o bem do judaísmo-cristianismo) por meio de um culto ao
satanismo (também judaico-cristão).
Utilizado unicamente nos shows e fotos promocionais, o corpsepaint é o
corolário de uma transfiguração de si pela qual o músico passa, espécie de acionamento
de um alter ego guerreiro: seu nome é trocado pelo seu codinome, suas vestimentas
ordinárias dão lugar à “armadura”, empunha armas e instrumentos e, finalmente, no seu
rosto ele desenha a face de um outro self.
Essa transfiguração de si, o próprio Mordor afirma, é menos uma transformação
em outro, em uma alteridade radical, do que a exteriorização de um outro si, de uma
alteridade íntima radicalmente colocada para fora. O black metal está dentro do músico.
Os praticantes de modo geral não se cansam de reiterar que este estilo representa sua
honra, é seu princípio de vida ostentado com orgulho. “Nós somos o Mordor e o
Mordor somos nós”. Consequentemente, os elementos que compõem este estilo também
são percebidos nessa chave, uma exteriorização de uma alteridade intimamente radical.
O corpsepaint é a “materialização de uma atitude interior”, é o “reflexo da alma de
guerreiros de coração negro”.
Continuando nesta etnopsicologia, se o black metal lhes é tão íntimo a ponto de
colorir seus corações, se esse culto ao satanismo é percebido pelos praticantes como
nada mais do que uma exteriorização de uma intimidade radical, então a montagem do
guerreiro black metal responde ao anseio satânico do músico. O show, especialmente, é
o momento, como exemplarmente diz Doom-Rá no Dark Gates zine, “(...) que a horda
tem a chance de interpretar a idéia defendida em vossos hinos e entrevistas”,
encarnando em seu corpo a ideologia do black metal e sobrepondo ao seu rosto, o rosto
do cadáver, do diabo ou, porque não, do mal. Sendo assim, em relação ao corpsepaint,
podemos dizer quase o mesmo que Vernant (1988) disse sobre as máscaras de Górgona:

A possessão: usar uma máscara é deixar de ser o que se é e encarnar, durante a


mascarada, o poder do além que se apossou de nós e do qual imitamos ao mesmo tempo
a face, o gesto e a voz (idem, p. 104).

Alguns músicos chegam a falar em possessão. Yuri D’Ávila, nosso participante


no primeiro capítulo, se remeteu em uma de nossas conversas ao Sir Necrogorphus
154

Abominus, seu codinome quando toca baixo e canta na banda Blasphemical


Procreation, como “uma entidade que se apodera de mim nos momentos de blasfêmias
e profanações”. Porém, há certa retórica neste uso da possessão pelo black metal, mais
uma vez, procurando construir um discurso malvado e horripilante acerca de si mesmo
através do uso de uma palavra que, para eles, causaria calafrios em um cristão. A não
ser pela palavra, estamos bem longe de uma possessão aos moldes da Umbanda e do
Candomblé, por exemplo. Antes de uma possessão, o corpsepaint representa uma
exteriorização do estilo black metal no corpo do músico, uma exteriorização da face
íntima do mal no rosto do músico152. Porém, já que para o músico satanismo e
intimidade são praticamente sinônimos, o corpsepaint, tal como a Górgona de Vernant,
é a face do diabo que eles pretendem imitar também pelo ‘gesto e voz’. Imitação essa
cheia de invenção. O diabo, pelo ponto de vista do black metal, habita o submundo
urbano do metal extremo, veste couro, toca guitarra e canta em gutural. O corpsepaint é
a máscara que o black metal deu ao diabo, este rosto sem máscaras. Ou melhor, o
corpsepaint é a íntima contribuição do black metal a este rosto de múltiplas máscaras.

4.2 - As ramificações do mal: misantropia, luciferianismo, paganismo e nacional


socialismo

No black metal, o diabo é a figura central, mas não o tema central. O diabo é
como se fosse um carro abre-alas, dando o tom de uma narrativa que se multiplicará em
cada banda. Ele está lá, em seu trono, comandando e abençoando todos os seus
discípulos. Mas seu império é vasto, aglutinando mundos diversos, povoados por seres
aborrecíveis, hediondos e grotescos. O núcleo narrativo do black metal está em todo
este império do mal. Como fiéis trovadores, a maioria das suas composições glorificará
o rei, mas não deixarão de cantar e versar sobre os domínios homologados como parte
deste reino. O diabo abre um enredo baseado, de fato, na narração das variações deste
reino, um enredo que poderíamos intitular: Sob o Signo da Marca Negra – a guerra
contra o bem travada pelos horripilantes e raivosos paladinos do mal.
Logo após o carro abre-alas, seguindo as alas do niilismo e do ocultismo, entra o
carro da misantropia, e a banda brasiliense Vulturine certamente seria um de seus

152
Podemos até falar em uma des-possessão, na medida em que muitos músicos se referem ao show como
um momento de liberação, como um momento no qual eles podem ser aquilo que realmente são, livres
das pressões cotidianas do trabalho, da família e de qualquer outra atividade pelas quais são responsáveis.
155

destaques. No seu único lançamento, o vinil em sete polegadas intitulado O Caminho da


Mão Esquerda, gravado, segundo a banda, no “ano bastardo de 2007”, seus membros
Vlad Hades, Daemon Est Deus Inversus e Necrofagus, definem sua música assim:

Fazemos música para trazer discórdia, dor, tristeza, conflito, atos de violência, abuso de
drogas, terror, depravação, degradação da natureza, colapso universal e tudo aquilo que
concerne a aniquilação total da humanidade deste planeta fedorento...anti-cristo...anti-
humano.

Misantropia que se define não só por um ódio à humanidade, mas pela


proposição do aniquilamento da vida humana sob a face deste planeta. A guerra contra o
bem travada pelo black metal é radicalizada aqui em uma guerra contra a vida. Para o
Vulturine, existe um sério problema com o ser humano, o fato de ele estar vivo. Esse é o
tema das duas canções do lado No Future do seu vinil, Life: a Real non Sense Thing e
The Final Breath of Humankind. No outro lado, No Hope, a posição da banda quanto a
este problema, seguir no Caminho da Mão Esquerda, uma metáfora que denota uma
negação de qualquer possibilidade de vida. O caminho da mão esquerda é o caminho da
morte.
Tentamos alguns contatos com a banda, via e-mail do selo que lançou o vinil,
Genocide produções, uma vez que não havia na gravação qualquer endereço de contato
diretamente com a banda. Recebemos uma única resposta no quinto e-mail. Uma
mensagem sem texto, com um único arquivo anexado, este:

A banda Vulturine ainda mantém o motivo anti-cristão em sua narrativa. As


letras de suas canções tratarão do “senhor do sub-solo”, de “Lúcifer”, enfim do diabo do
black metal. Porém, algumas bandas do misanthropic black metal descartarão toda a
156

temática satanista de sua imagem e enfatizarão apenas o aniquilamento da vida humana


da face da terra. Esse é o caso da banda catarinense, muito conhecida no exterior,
Goatpenis. Em entrevista ao Dark Gates zine, o baterista Anti-Human Terrorist explica
a mensagem que a banda procura passar no cd Inhumanization, de 2004:

Até poucos anos atrás, ainda falávamos dessa lorota patética de satanismo. Ainda
usávamos aquelas pinturas caricatas com preto e branco no rosto. Lentamente o
cérebro consegue perceber que nada é útil, tudo tem um fim e não há solução para
nada, então (...) a idéia do álbum é de que o melhor para a raça humana é que ela
desapareça e deixe pelo menos o mundo inorgânico em paz. Não vejo melhora para
esta desgraça evolutiva e simiesca, apenas a degradação de si mesmo. O processo de
“inhumanização” já está bem na nossa cara, a natureza já está começando a agir
contra os predadores humanóides, espero que mais e mais catástrofes venham e a
natureza faça o seu papel: reciclar a vida em cinzas.

Nas fotos, o guitarrista do Goatpenis, Sabbaoth. A Primeira, em show em Blumenau, 2002,


“quando eles acreditavam nessa lorota de satanismo”; a segunda em show de 2006,
Curitiba, sem o Corpsepaint, mas com “bombas” no pescoço e capuz no rosto.

A misantropia surge no black metal como mais uma das inúmeras ramificações
estilísticas, para eles ideológicas, pelas quais seu tema central, a guerra contra o bem, se
expressará. O Goatpenis, por exemplo, descartou as palavras satã e satanismo do seu
vocabulário apenas para colocar no mesmo lugar as palavras destruição e
aniquilamento, assim como trocou a palavra nazareno pela palavra vida e o corpsepaint
e os pregos pelo capuz militar e as “bombas”. O movimento do enredo continua o
157

mesmo, guerra contra o bem a partir de uma aceitação e proposição do mal. Eles estão
contra nós, de um jeito ou de outro.
Mas é preciso ter conhecimento para ser um verdadeiro black metal, é preciso
estudar a fundo as doutrinas e filosofias da ideologia por trás do black metal para ser
uma “horda respeitável”. Este é o argumento de uma outra prática do apreciador de
black metal, aquela que os praticantes chamam de luciferianismo. A doutrina de Lúcifer
se baseia em uma interpretação da passagem bíblica do anjo decaído, como nos
explicou, na mesma conversa de 2005, Joel, o músico gaúcho que não quis ter seu
codinome e banda identificados no segundo capítulo, um assumido luciferianista:

Lúcifer é considerado um decaído pois quis saber mais do que o cristianismo permitia.
Ele quis levantar o véu da doutrina cristã e, claro, os teólogos o condenaram ao inferno,
pois conhecimento para a igreja católica é uma heresia. Os oficiantes da igreja católica
são muito espertos em condenar o saber, pois eles sabem, no fundo, que sua igreja está
baseada em mentiras e falsidades. Qualquer um que ousar saber mais daquilo que ela
permite, perceberá sua hipocrisia.

O luciferianismo enfatiza uma opinião que todo praticante de black metal tem.
Para ele, a religião judaico-cristã é uma mentira, uma falsidade, uma doutrina de seres
fracos que, com medo do auto-conhecimento, se apóiam em uma religião onde todas
suas ações mundanas estariam subordinadas às vontades divinas. Geralmente, é difícil
encontrarmos opiniões mais precisas entre os praticantes acerca desta mentira que seria
a religião judaico-cristã. O discurso deles avança pouco ou quase nada para além desta
acusação de falsidade, de uma religião baseada na imagem e não “na verdade do
homem”, como diz Brucolaques, vocalista da mineira Saevus, em entrevista ao Dark
Gates zine: “(...) o cristianismo é, em essência, a negação da verdade do homem, ou
seja, a subtração dos reais valores primitivos do ser humano”. Às vezes, a acusação ao
cristianismo é ampliada para toda e qualquer religião, ou seja, qualquer forma de
religião seria, em última instância, uma “negação dos reais valores primitivos do ser
humano”.
Na esteira dessa crítica, a busca pelo saber, porém, implica na busca por
conhecimento muito específico. Não se trata de um saber acadêmico sobre a religião e
sim de se aprofundar mais ainda naquilo que tanto lhes interessa, a luz das trevas,
saberes e filosofias interpretadas por eles como maléficas. O saber que o luciferianismo
busca é um saber essencialmente demonológico.
Com efeito, discutirão acerca da igreja de satã, fundada em 1966 nos Estados
Unidos por Anton Szandor Lavey. Brucolaques, na mesma entrevista, diz que Lavey
158

pode ser considerado “o fundador do satanismo moderno, um homem com idéias


interessantes”, mas uma das falhas de sua seita, aquela que afastaria o praticante da
igreja de satã, continua o vocalista da Saevus, “é ser bem dogmática, o que acaba por
criar aquela sensação de que tudo não passa de cristianismo invertido”. O black metal,
para ele, não é cristianismo invertido, e sim uma filosofia de vida pela qual “(...) o
indivíduo é sua própria divindade”. Lerão o clássico de Eliphas Levi, Dogma e Ritual
de Alta Magia, interessados principalmente na figura do Baphomet e do pentagrama
invertido, dois símbolos muito presentes nos desenhos, colares e torsos dos praticantes,
como está em Ciriato, guitarrista da curitibana Doomsday Ceremony:

Contudo, o luciferianismo em si não chega a ser uma ramificação estilística do


black metal. Nenhuma banda rotula sua música como luciferianistic black metal. Esta
prática é mais uma postura que os praticantes defendem como real, uma maneira de
demonstrar aos seus pares que ele assumiu a ideologia do black metal, isso que eles
chamam de satanismo, como estilo de vida. Já que, como Brucolaques disse na sua
159

última fala, o satanismo do black metal se traduz na máxima “o indivíduo como sua
própria divindade”, cabe então conhecer profundamente essa divindade através do
estudo de obras e práticas que reflitam seus “corações negros”.
Mas uma variação do luciferianismo, o paganismo, se transformará em uma forte
ramificação estilística do black metal do underground nacional, o pagan black metal.
Compreenderemos melhor do que se trata esta variação se voltarmos às bandas
nórdicas, principais inspiradoras do metal negro em geral, mas sobretudo o pagão, no
Brasil. Para tanto, usaremos o livro Lords of Chaos, escrito por dois jornalistas,
inteiramente voltado a um detalhamento histórico dos acontecimentos relacionados com
as bandas escandinavas, notadamente com as norueguesas.
Por volta do final dos anos oitenta, contam Moynihan e Soderlind (1998), um
punhado de bandas norueguesas começa a chamar a atenção do público internacional de
heavy metal devido ao tipo de música que faziam, até então pouco familiar aos ouvidos
do fã deste gênero, mas, sobretudo, em razão do visual dos membros, “extremo” para a
época, e pelas suas entrevistas, onde declaravam abertamente sua filiação ao satanismo.
Para essas bandas, a música era um meio de propagar e glorificar o mal representado
pelo diabo. O conjunto destes elementos, da música, do visual e das entrevistas, veio a
ser identificado pela comunidade internacional do heavy metal como black metal. No
entanto, até ai, nos contam os autores do livro, ninguém da imprensa especializada em
heavy metal tinha dado muita importância ao “extremismo” deste black metal (idem, pp.
33-44).
Já nos primeiros anos da década de noventa, essas bandas começaram a fazer
mais do que compor músicas em glorificação ao mal. Seus membros, que se auto-
intitulavam “círculo fechado”, começaram a se suicidar, a matar estranhos, a matar uns
aos outros e, principalmente, a queimar igrejas cristãs. Dois desses acontecimentos,
sempre segundo os autores, fizeram do black metal norueguês um tema “quente” para as
revistas especializadas em heavy metal do mundo todo, tanto pela natureza do
acontecimento em si, quanto pelo fato de que seu feitor, supostamente o mesmo em
ambos, foi preso, levado ao júri e condenado por um de seus atos.
Um dos patrimônios históricos da Noruega são suas igrejas católicas stave,
edifícios totalmente de madeira construídos durante a idade média, momento de
assimilação do catolicismo na península escandinava. O valor histórico dessas igrejas
estaria em sua arquitetura, uma mistura de motivos locais (a lá barco viking) com
motivos romanos. Até junho de 1992 havia trinta e duas igrejas desse tipo no país. Após
160

o dia seis desse mesmo mês, sobravam trinta e uma. Segundo os autores (op. cit, pp. 81-
108), todas as evidências levam a crer que Varg Vikernes153, único membro do Burzum,
banda atualmente muito cultuada entre os praticantes brasileiros, seria o responsável
pelo incêndio que transformou uma delas, que leva o nome de Fantoft, em um punhado
de cinzas.

Na primeira foto, a igreja stave Fantoft antes do incêndio. Na segunda, o que restou dela.

Pouco mais de um ano após este incêndio, por razões que os autores definem
como “problemas pessoais entre os dois” (op. cit, pp. 109-144), o mesmo Varg
assassina o principal responsável pelo crescimento e notoriedade do black metal
norueguês até então. Euronymous (codinome de Oystein Aarseth), abriu a primeira loja
especializada em heavy metal de Oslo, fundou o primeiro selo de metal extremo da
Noruega e tocava baixo em uma das principais bandas do boom norueguês, o Mayhem.
Na noite do dia dez de agosto de 1993, Varg vai até o apartamento de Euronymous e,
após uma discussão que ambos tiveram, o esfaqueia até a morte. Após algumas
semanas, Varg é preso, confessa o assassinato e é sentenciado a passar vinte e um anos
na prisão, o mesmo número de anos que ele já tinha vivido até então. O assassinato de
Euronymous marca, de certa maneira, o fim do boom do black metal norueguês e o
início do estouro deste estilo de metal extremo pelos undergrounds do mundo afora.

153
Codinome de Christian Vikernes. Varg, ou Vargr, em norueguês significa tanto lobo (o animal mais
evocado no black metal) quanto fora-da-lei.
161

As duas fotos mais conhecidas dos praticantes brasileiros de Varg, na esquerda, e


Euronymous, na direita. Ambas foram digitalizadas a partir da revista/zine A Obscura
Arte, décima edição. Vale notar, lançada em 2005, com as seguintes manchetes de capa:
Euronymous – Entrevista dada uma semana antes do seu assassinato e Burzum – Doze
anos depois Varg Vikernes dá sua versão da morte de Euronymous.

O efeito desses acontecimentos noruegueses, chamemos assim, foram e ainda


são arrebatadores entre os praticantes de black metal do underground nacional.
Podemos dizer que todo o estilo do black metal que estamos descrevendo neste item é
uma imitação, com alguns poucos ajustes, do black metal constituído por bandas como
o Burzum e o Mayhem, desde a música até o visual e a ideologia satânica. Não só
imitam as bandas norueguesas mas, além disso, os praticantes nacionais cultuam alguma
imagem “maligna” da própria Noruega, um país frio, terra dos guerreiros viking, que
tem em alguns meses do ano, duas horas de sol por dia. Não é raro vermos pessoas nos
shows destoando a primazia do negro com as camisetas vermelhas da seleção de futebol
norueguesa.
A notoriedade do black metal norueguês no Brasil advém, em grande medida, da
interpretação que os praticantes fazem desses acontecimentos, certamente alimentada
também pelos próprios noruegueses. A impressão geral é “lá eles fizeram o que
cantavam”, ou seja, os acontecimentos noruegueses seriam o resultado deliberado de
uma orquestração de um programa de destruição do bem, da vida e da igreja católica da
face daquele país. Aquilo que os praticantes nacionais tanto reclamam, que o black
metal é uma ideologia maior do que sua música, teria realmente acontecido na Noruega
162

durante os primeiros anos da década de noventa. Lá, o “círculo fechado”, auto-


denominação das principais bandas envolvidas nos acontecimentos, teria transformado
o underground black metal em um coletivo de destruição e propagação do mal. Tal
como um mito de origem, essa interpretação dos acontecimentos noruegueses é re-
contada constantemente no underground nacional dos anos 2000, sobretudo em zines e
em rodas de conversas em bares e shows. O black metal nacional conecta sua origem
aos acontecimentos noruegueses e, assim, alimenta a sobreposição da música pela
ideologia, se contagia pela esperança de que, algum dia, tal como seus “ancestrais”
fizeram acontecer, o mal prevaleça também no Brasil154.
Voltemos ao pagan black metal. Algumas bandas norueguesas
responsabilizavam o cristianismo por um “esquecimento” das crenças e costumes
religiosos nativos. Seu argumento era de que a entrada do cristianismo na Escandinávia
teria “esmagado” a “autêntica” cultura religiosa nativa. Os povos nórdicos teriam sido
forçados a renegar seu vasto e politeísta panteão de deuses em prol de uma religião
estrangeira, baseada no culto a uma “imagem” de um deus “fraco”. A “essência” dos
povos nórdicos, diziam essas bandas, refletida em suas crenças e costumes, teria sido
soterrada pela “imagem” do deus romano. Desse modo, a guerra contra o cristianismo
das bandas norueguesas guardava um componente de libertação por meio de um retorno
aos “reais e íntimos” cultos religiosos da Escandinávia. Abundavam em suas letras,
muitas vezes cantadas não em inglês mas nas línguas locais, heróis vikings e
personagens míticos do Edda, como Loki e Odin155.
A banda de Brasília Miasthenía156 monta sua temática dentro desta mesma
chave, digamos, neo-pagã, fazendo apenas um ajuste territorial no enredo. O
cristianismo teria “esmagado” a “autêntica” cultura ameríndia quando chega à América
do sul. Através dos colonizadores espanhóis e portugueses, os ameríndios foram
forçados a renegar seu vasto e politeísta panteão de deuses em prol de uma religião

154
Neste sentido, o livro Lords of Chaos poderia ser um interessante contraponto para os próprios
praticantes. Moyniham e Soderlind, por meio de extensa coleta de dados, mostram que, antes de ser uma
orquestração do mal, os “acontecimentos noruegueses” podem ser entendidos como uma orquestração da
mídia européia, em conjunto com os selos das bandas envolvidas, no intuito de transformar uma série de
suicídios, assassinatos e incêndios esparsos em um recurso de marketing para a venda do true norwegian
black metal mundo afora. No entanto, talvez por não ter sido vertido ao português ainda, ou mesmo por
desconhecimento da sua existência, o livro não é lido pelos praticantes. Não é esse tipo de conhecimento
que procuram.
155
O Burzum, banda de Varg Vikernes, é exemplar desse tipo de temática. Aliás, mesmo preso, Varg
continuou gravando e lançando discos da sua banda e, além disso, escreveu e publicou alguns livros
teológicos acerca da “autêntica” religião escandinava. Porém, em 2003, faltando dois meses para ganhar
sua condicional, Varg tenta fugir da cadeia, é pego, perde suas regalias e sua futura condicional.
156
www.myspace.com/miasthenia. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
163

estrangeira, baseada no culto a uma “imagem” de um deus “fraco”. A “essência” dos


povos das terras baixas da América do Sul, dizem os membros da Miasthenía, refletida
em suas crenças e costumes, teria sido soterrada pela “imagem” do deus romano. Cabe
então relembrar em suas letras, entoadas em português e, às vezes, nas línguas de certos
povos ameríndios, os “reais e íntimos” cultos religiosos vivos até o início da
colonização. O canibalismo, por exemplo, será assim lembrado na letra da canção
Essência Canibalística, incluída no cd lançado em 2004, Batalha Ritual:

O pajem tupinambá anuncia o fúnebre ritual


Imolação e vingança, sangue, ódio e poder
Os deuses bestiais se manifestam na velha dança
Teoruira!!! Desprezando o deus inimigo.

Debe mara pa, xe remiu ram begue!!! (Que todo infortúnio


recaia sobre você, minha comida, minha refeição)
Nde akanga juka aipota kuri ne!!!
(Quero arrebentar sua cabeça ainda hoje)

Cauim e sangue, embriaguez e êxtase


É o espírito imortal sorvido em crânios inimigos
Minha ira em cálices de morte...
Seu sangue é minha força vital
Sua morte o signo de minha vitória!!!

Eu vejo o mundo invisível ao seu redor


E o crepúsculo que anuncia uma Era de Sangue
E a profecia das Maracás desferindo o golpe mortal
O estandarte do eterno caos
A dinastia abismal forjada em ódio ancestral
Corpos descarnados, corações arrancados.

Desfrute da ceia triunfal canibalística


E sinta o despertar do espírito da águia
Sinto a vitalidade selvagem
E a natureza infernal pulsando em minhas veias.
A inocência primitiva que habita a escuridão
A supremacia das Maracás, da idolatria pagã.

A letra, ao mesmo tempo em que rememora uma prática indígena, também


evoca o tema central do black metal. O canibalismo tupinambá, tal como narrado pela
Miasthenía, é maléfico. São deuses bestiais que dançarão neste ritual de rebelião,
instigado pela vingança, pelo ódio e pelo poder. O texto está recheado com as palavras
preferidas dos letristas de black metal, como “ódio ancestral”, “vitalidade selvagem” e
“natureza infernal”. Ou seja, no estilo do pagan black metal, a rememoração da
“essência” ameríndia é uma rememoração essencialmente satânica. A lembrança das
164

práticas indígenas também lembrará a prática do próprio black metal. Afinal, qual é o
“deus inimigo” imolado na letra?
É significativo o fato de que o pagan black metal seja definido também como
folk metal. Essa ramificação estilística do black metal no Brasil procura reconstruir
ficcionalmente um mundo sul americano que teria sido perdido com o advento do
cristianismo, como na letra da Miasthenía, ou salientar as “autênticas” características
culturais de alguma região do país. É este tipo de metal folclórico que a banda
catarinense Austhral157 procura compor, dando atenção especial à incorporação de
ritmos musicais “sulistas” no seu black metal, como a própria banda explica no texto de
apresentação do seu myspace:

O Austhral é uma banda de Florianópolis que se intitula uma das únicas representantes
de um folk metal nacional autêntico. Com influências de ritmos sulistas tradicionais
como a música gaúcha, tango e música barroca, o Austhral conta histórias da sua terra
por meio do metal conceitual. Em sua formação sempre teve gaúchos, catarinenses e
paranaenses que têm ligações estreitas com a cultura da região. A sonoridade de suas
composições já foram comparadas com bandas como Finntroll, Thyrfing, Old Man’s
Child (bandas nórdicas), entre outras. Mas os músicos garantem que estas não são
influências diretas do seu trabalho.

O romantismo do pagan black metal é inegável. Ele apresenta aquela mesma


sensibilidade romântica que Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2004) aponta
nos estudos folclóricos de Mário de Andrade. Uma sensibilidade que, no caso do black
metal, encantada por culturas percebidas como ‘autenticamente nacionais’, enseja uma
arte da rememoração e da celebração da ‘universalidade’ dessas mesmas culturas. O
folclore do black metal também é ‘(...) um canal privilegiado de religação com um
mundo que aspira à totalidade’ (idem, p. 59). Mais ainda, a sensibilidade romântica do
metal negro também está cheia de nostalgia. As canções rememoram, ao mesmo tempo
em que lamentam, a perda dessa totalidade. Dói perceber que os “cultos indígenas” se
esvaíram e a “cultura da região” sulista está a ponto de se esvaecer, uma dor íntima, pois
a “perda” dessas culturas é sentida pelos praticantes do metal negro neo-
pagão/folclórico como uma dilaceração de suas próprias almas. São eles mesmos que se
esvaem com a “perda”. Privação essa causada por agentes muito precisos. Assim como
assinalou José Reginaldo Gonçalves (1996) nos estudos folclóricos, a retórica do black
metal constrói imaginariamente uma coesão unitária das culturas indígena e regional,
para então responsabilizar agentes externos pela sua desestruturação, esmaecimento,

157
www.myspace.com/austhral. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
165

enfim, pela sua “perda”. Contudo, diferentemente dos estudos folclóricos, o black metal
nomeia este agente externo de maneira levemente modificada. A “perda” não foi
causada pelo mundo moderno e sim pelo “deus inimigo” dos portugueses e espanhóis.
O forçoso culto ao deus romano “soterrou” os “reais valores” da nossa terra, diz o
veredicto black metal.
Porém, mundo moderno e cristianismo não correspondem, no pensamento black
metal, a substâncias distintas. Pelo contrário. Por mais que o segundo termo seja o mais
utilizado, o cristianismo está classificado como o corolário de um mundo
contemporâneo baseado na “aparência” e na “imagem”, inteiramente desgostoso para o
black metal. Na esteira da religião que cultua “imagens”, seguem o lucro, a fama e as
modas passageiras. Para o black metal, este mundo é povoado por pessoas “fracas e
preguiçosas”, que não possuem princípios e não observam compromissos com seus
valores, que preferem transferir as necessárias decisões e ações de suas vidas para, no
plano moral, os desígnios divinos e, no plano prático, digamos assim, para a tecnologia.
Mundo moderno e cristianismo são termos que denotam um mesmo inimigo no
beligerante sistema classificatório black metal. O inimigo da “aparência” e da
“fraqueza”. Inusitada inversão essa que faz o black metal. A sensação de liberdade
sentida pelos praticantes quando acionam os eventos do underground em suas vidas é,
na verdade, a resolução de uma ânsia por regramento de suas condutas e uma vontade
de comprometimento com seus valores158.
A confluência do cristianismo com o mundo moderno, engendrada a partir desse
dualismo externo e interno, aparência e valores, aduba o brotamento da mais
controversa ramificação estilística do black metal, aquela denominada como national
socialism black metal, ou NSBM. Novamente, as bandas nórdicas serão as fundadoras
dessa aparentemente contraditória bricolagem estética, também presente no Brasil.
Conjuntamente com a acusação de que o cristianismo teria “soterrado” os
valores, crenças e costumes religiosos da Escandinávia pagã, as bandas de black metal
acusavam os Estados nórdicos de serem cúmplices dessa “perda”. Endossando o
cristianismo como a religião oficial, os Estados Nórdicos estariam fechando os olhos
158
Interessante notar que esse comprometimento se concretizará não só no plano moral, como fidelidade à
ideologia black metal, e no musical, como fidelidade ao underground, mas também no plano dos
relacionamentos afetivos dos praticantes. A prática do “ficar” tão comum entre os jovens brasileiros, essa
constante troca de parceiros sexuais, é quase inexistente no underground do metal extremo. Quase todos
namoram a longo tempo e sempre estão acompanhados de suas “musas” e “príncipes guerreiros” nos
shows. Vale notar ainda que o homossexualismo masculino é fortemente execrado e o feminino, às vezes
com contornos vampirescos, relativamente aceito, nos apresentando assim, certa dominação masculina no
que tange a construção dos gêneros nesta prática urbana.
166

para a “morte” da “autêntica” cultura escandinava. Mas essa leniência tinha suas razões,
diziam as bandas, pois os Estados-nação nórdicos estavam interessados em manter
dividida uma cultura “originalmente” unitária. O norte europeu como um todo, desde a
Alemanha até a Islândia, era, para as bandas, um só território dedicado a abrigar uma só
cultura, a Germânia, sempre qualificada pelos músicos como “naturalmente” hostil ao
estrangeiro. Desse ponto de vista, o incêndio da igreja Fantoft na Noruega, se
concordarmos com Moynihan e Soderlind que o culpado teria sido um músico de black
metal, foi um ataque tanto ao cristianismo quanto ao próprio Estado norueguês.
Incendiaram um só edifício e queimaram dois inimigos, a casa de deus e um símbolo
histórico altamente valorizado pelo Estado.
Mas o endossamento do cristianismo e a divisão territorial da Germânia eram as
pontas do “problema” com o Estado moderno. Sua natureza democrática também foi
arrolada como ponto de acusação pelas bandas de black metal. O Estado moderno é
massificado, elas diziam, seu poder decisório é “fraco”, pois ele está espraiado,
descentralizado. Além disso, privilegiando as questões econômicas, os Estados estariam
dando mais importância ao lucro financeiro, quando o “verdadeiro tesouro” dos seus
povos estava nas artes e nas religiões pagãs. A preeminência da economia sobre as
“práticas do espírito” fazia com que os Estados nórdicos abrissem as portas dos seus
países para estrangeiros indesejados pela ótica do praticante, principalmente “aquele
com mais dinheiro”, o judeu, fomentando assim uma indiferenciação, no limite uma
mistura, entre o forasteiro, “de cor” e o nativo, ariano159.
Ora, a ideologia do nacional socialismo alemão, adicionada com a maneira que
foi posta em prática por Hitler, se encaixava perfeitamente com este tipo de crítica ao
Estado moderno. No entanto, dois ajustes foram necessários para que o NS adjetivasse o
BM. Primeiro, as bandas nórdicas deixavam bem claro que, mesmo se apropriando de
uma ideologia política, elas não eram bandas políticas. Podemos dizer que elas não
poderiam se considerar bandas políticas, afinal, elas fazem arte, um cultivo do espírito e
dos valores, e política pertence à esfera do externo e da imagem. Sendo assim, se
tratava, elas diziam, de uma estética nacional socialista, muito apropriada para uma
prática urbana beligerante e satânica. Foi justamente este satanismo, por sua vez, que
demandou o segundo ajuste para a realização da confluência. Os praticantes
simplesmente se esqueceram do discurso cristão “do bem” do terceiro Reich em prol de

159
Estes dois últimos parágrafos resumem dois capítulos do livro de Moynihan e Soderlind (1998, pp.
145-214).
167

uma imagem de horror e violência que a estética do nacional socialismo também


evocava, logo transformada em imagem satânica e maléfica. Pronto. As suásticas já
podem ir para as capas das gravações, os discursos de Hitler já podem servir como
introdução das canções e a cabeça raspada e as botas militares, símbolos dos grupos
neo-nazistas europeus, já podem ser contrabandeadas para o underground do metal
extremo via o national socialism black metal. O praticante agora é um kamerad.
Contudo, o nacional socialismo não poderia se sobrepor ao black metal. O uso
explícito de imagens evocativas do nazismo alemão pelas bandas de black metal era
balizado por duas preocupações. Primeiro, mesmo simpatizando com a proposta
paramilitar dos grupos neo-nazistas europeus, as bandas nórdicas tomavam cuidado em
marcar as diferenças entre ambos os grupos. A cabeça raspada e as botas militares
precisavam aparecer nos corpos dos praticantes junto com o negro da “armadura” e,
principalmente, com o corpsepaint. As suásticas e as fotos de combatentes alemães em
ação na segunda guerra, antes de serem os motivos centrais das capas das gravações e
dos logotipos das bandas, aludiam a elementos simbólicos do paganismo nórdico e a
desenhos e pinturas de deuses nórdicos em combate. O nacional socialismo não repôs o
paganismo e sim o reforçou. O logotipo da banda alemã Absurd exemplifica o ponto:

As pontas da suástica, dentro do círculo abaixo das letras b e s, foram dobradas,


dando um aspecto, para o praticante, pagão ao símbolo máximo do nacional socialismo.
Abaixo da letra r, em tamanho maior do que a suástica estilizada, uma das
representações pictóricas mais conhecidas do martelo do deus do trovão Thor, o
Mjolnir.
168

Uma segunda preocupação das bandas eram os possíveis problemas legais que
poderiam ter com uma apologia explícita do nacional socialismo. Por mais underground
que elas fossem, seus cds e cartazes de show circulavam pelas cidades e, em algum
momento, a ostentação de imagens do nacional socialismo nesses objetos poderia lhes
causar problemas com a justiça, especialmente na Alemanha, onde, de fato, aconteceu
com o Absurd160. Com efeito, o NS tinha mais um forte motivo para ser mascarado no
BM em formato pagão. Mascaramento esse que culminou na cunhagem de um outro
estilo muito próximo ao NSBM, war black metal, designação um tanto redundante em
nossa opinião. O que diferenciará estes dois estilos é a porcentagem, digamos assim, de
motivos nacional socialistas explícitos na imagem da banda.
É verdade que, no Brasil, algumas bandas se definem como NSBM, como a
carioca Nachtkult161 e a paulista Thornsland162. Trazem nas capas de suas gravações
fotos de soldados alemães lutando durante a segunda guerra e ornamentam seus
logotipos com suásticas. Elas não querem deixar dúvidas quanto sua ramificação dentro
do black metal:

Logotipo da banda carioca de NSBM Nachtkult.

Infelizmente, não conseguimos conversar ou mesmo trocar e-mails com bandas


nacionais declaradamente NSBM, assim como as gravações coletadas não traziam as
letras das canções. Também não conseguimos assistir nenhum show, se é que essas
bandas realmente se apresentam ao vivo. Sendo assim, não temos como avaliar
possíveis traduções nacionais das críticas ao Estado moderno feitas pelas bandas
nórdicas, se é que algum tipo de tradução é feita. Afinal, como mostra Almeida (2004),
os grupos neo-nazistas de São Paulo, na importação da ideologia do nacional socialismo

160
Até 2005, os integrantes dessa banda eram procurados pela justiça alemã, acusados de apologia ao
nacional socialismo, como seu baterista explicou em entrevista à revista/zine A Obscura Arte, décima
edição. Em toda sua carreira, ainda em curso, realizaram apenas um show em solo alemão, intitulado
Kristallnacht, e suas gravações são lançadas por um selo polonês, onde não há leis anti-nacional
socialismo, sugestivamente nomeado como no colours records, www.no-colours-records.de. Acessado
pela última vez em 13/03/2008.
161
A banda não possui myspace, mas possui um sítio próprio: www.nachtkult.de.tc. Acessado pela última
vez em 13/03/2008.
162
Também sem myspace, mas com sítio próprio: www.thornsland.tk. Acessado pela última vez em
13/08/2008.
169

para o Brasil, mantém em sua agenda o ponto que, supostamente, seria o mais difícil de
conservar diante da realidade social brasileira, a superioridade biológica do ariano. A
manutenção desta “reivindicação” no Brasil, contudo, demandou a adição de um outro
tema: supuseram que a região sul, incluindo São Paulo, é predominantemente habitada
por arianos e, assim, luta-se pela separação destes quatro estados do resto do Brasil.
Em um primeiro momento, após constantes tentativas fracassadas de contatar as
bandas NSBM brasileiras, mesmo se utilizando da minha inserção como praticante do
underground, supomos que elas, as bandas, não quisessem ingressar na circulação de
gravações e eventos desta prática urbana, por motivos desconhecidos. No entanto, à
medida que começamos a seguir as repercussões do NSBM entre os apreciadores de
black metal em geral, percebemos que os representantes deste estilo não são bem vindos
no underground em razão de uma forte aversão ao seu item racial. O entrave está na
“raça pura”, como diz a banda carioca Escrófula, em entrevista ao Fereal zine:

War metal é um estilo muito bom, agora se é NS e nazista, ai acho uma tremenda
idiotice e uma total falta de cultura. Para eles obterem a raça pura no Brasil, o primeiro
passo teria que ser o suicídio deles mesmos, pois sendo brasileiros, já são impuros por
natureza. Será que esses caras não conseguem ver que no Brasil não existe nem nunca
vai existir raça pura?

Consequentemente, o apoio à possibilidade de separação da região sul do resto


do país, deixando entrever que o NSBM no Brasil também arrolaria em sua agenda tal
“reivindicação”, também é criticada, mesmo por bandas sulistas, como criticou a Havoc,
de Lages, Santa Catarina, na sua entrevista ao Anaites zine:

Nós não somos nem um pouco patriotas, não tem como gostar de um país alienado por
carnaval e futebol, onde os políticos deitam e rolam em cima da massa e os clérigos
manipulam suas mentes. Mas o separatismo é incompatível com o black metal, essa é
nossa opinião. Não somos uma banda política e sim satanista.

A beligerância, a evocação de um regime de Estado totalitário e mesmo a


aversão ao judaísmo não parecem ser problemas do NSBM para o praticante nacional.
Em última instância, o estilo do NSBM em si não é um problema para o apreciador
nacional de black metal. “War metal é um estilo muito bom”. A aversão surge quando a
expressão desta ramificação vier acompanhada de um endossamento da superioridade
racial do ariano e de um apoio a políticas separatistas do território nacional, também
baseadas em diferenças raciais. Mas para que essa aversão surja, é preciso que a “raça
pura” e o separatismo sejam expressos no estilo e não somente na opinião dos músicos.
170

O NSBM toca em um dos limites do próprio underground do metal extremo. Em


uma prática urbana diferenciada de outras pela preeminência do fazer musical, um estilo
que se baseia na transposição de uma ideologia política em motivos musicais tende a
causar uma espécie de curto circuito identitário. É como se o praticante, frente ao
NSBM, se perguntasse: afinal, se trata de metal extremo ou de propaganda nacional
socialista? Tudo bem, o praticante pondera, estamos falando de duas coisas extremas,
mas de duas extremidades diferentes que talvez não se encaixem, uma coisa é um
programa político de extrema direita, outra coisa é uma arte extrema que não tem lado
nenhum, pelo menos no espectro político. Ou seja, parece que o NSBM não consegue, e
talvez nem seja possível, realizar completamente aquele esvaziamento do conteúdo
político do nacional socialismo na formulação de uma estética nacional socialista.
Talvez suas bandas não queiram esvaziar seu conteúdo político, mas, então, terão que
acatar um forçoso distanciamento do underground.
Para o gosto do praticante, há no NSBM um “ranço” político desagradável,
saturado e impalatável, que não combina com o sabor das práticas do “espírito”. Sendo
assim, a controvérsia que o NSBM causa se localiza na própria configuração do black
metal, num primeiro momento, e no underground, em última instância. Ele não se
encaixa facilmente na dualidade dicotômica externo/interno, aparência/valores,
espírito/prática, que parece estar organizando a visão de mundo black metal e que, em
boa medida, organiza as afinidades constituintes do próprio underground. Uma
dualidade dicotômica que separa totalmente a política da arte e da religião.
Não importa se o praticante, no seu papel de cidadão, concorde ou não com a
pauta do nacional socialismo. Aliás, pode-se dizer que a maioria dos praticantes
nacionais pende para a direita no que tange ao espectro político. Eles apreciam regimes
autoritários, dizem que o Brasil perdeu valiosa chance de desenvolvimento quando
Getúlio Vargas se afastou do integralismo de Plínio Salgado na década de 30,
concordam que ditadura militar de 64 foi uma “verdadeira revolução” no país, assim
como apóiam o uso excessivo da força policial e dizem ser a favor da pena de morte.
Porém, essas questões políticas devem ser mantidas distantes da sua arte “extrema”, de
seu cultivo do “espírito”. “Não somos uma banda política e sim satanista”. Eles aceitam
que sua música inspire políticas violentas163, mas ela não pode servir de veículo de
propaganda explícita.

163
Por exemplo: gostaram de saber que alguns soldados norte-americanos escutavam black metal
enquanto trocavam tiros nas ruas de Bagdá durante a derradeira invasão norte-americana do Iraque.
171

A controvérsia com o NSBM se complica ainda mais no Brasil com a questão


racial. Neste ponto, a tensão não nasce apenas da ambigüidade com a qual este estilo é
percebido pelos praticantes (é arte ou é propaganda?), mas também de uma possível
importação que não altere suas características em nada. A hierarquização racial da
ideologia nacional socialista, supostamente acatada pelas bandas NSBM, esbarra na
percepção de um Brasil multiétnico, misturado ou, como os praticantes preferem,
“impuro”. Não se trata de discordar de uma ideologia da diferença social, mas de uma
ideologia da diferença racial. Desse modo, o praticante pode até nutrir simpatia por
parte da ideologia nacional socialista, mas execra sua “reivindicação” de uma
superioridade do ariano. Se esta bandeira se expressar na imagem da banda, ela não será
considerada apenas ambígua, mas “idiota”, “com total falta de cultura”, por não
perceber que neste país um estado totalitário pode até ser uma resolução plausível para a
“alienação” dos seus habitantes, para a “corrupção” dos seus políticos e para a
“manipulação” dos seus clérigos, contanto que leve em conta a natureza “impura” de
sua raça.
Finalmente, a saída encontrada até o momento para o impasse do NSBM é
aquela proposta pelo war black metal. Um estilo que mascara o declarado nacional
socialismo em motivos pagãos e/ou satânicos, traduzindo-o em motivos religiosos, do
“espírito”. Ai sim, ao invés de criar um curto circuito no underground, o war black
metal realiza a semelhança latente entre uma ideologia que fundamentou um estado
totalitário, uma política de diferença racial, o assassinato hediondo de mais de cinco
milhões de pessoas e uma guerra que praticamente destruiu a Europa e a Ásia, com um
estilo musical que crítica o judaísmo e o cristianismo “do bem” pela construção
ficcional de um passado livre do deus da “imagem” e/ou pela aceitação e proposição de
um satanismo absoluto. As contradições são assentadas e as referências ao nacional
socialismo, ao invés de serem claramente marcadas, são aludidas em códigos
reconhecidos apenas pelos praticantes.
172

4.3 - O HORROR! O HORROR!

Anything approaching the change that came over his features I have never seen before, and hope
never to see again. Oh, I wasn’t touched. I was fascinated. It was as though a veil had been rent. I saw on
that ivory face the expression of somber pride, of ruthless power, of craven terror - of an intense and
hopeless despair. Did he live his life again in every detail of desire, temptation, and surrender during that
supreme moment of complete knowledge? He cried in a whisper at some image, at some vision, he cried
out twice, a cry that was no more than a breath - ‘The horror! The horror!”
I blew the candle out and left the cabin. The pilgrims were dining in the mess-room, and I took
my place opposite the manager, who lifted his eyes to give me a questioning glance, which I successfully
ignored. He leaned back, serene, with that peculiar smile of his sealing the unexpressed depths of his
meanness. A continuous shower of small flies streamed upon the lamp, upon the cloth, upon our hands
and faces. Suddenly the manager’s boy put his insolent black head in the doorway, and said in a tone of
scathing contempt – “Mistah Kurtz - he dead”.
Joseph Conrad

Patologias, perversões, corpos dilacerados, destruições, guerras nucleares,


narcotizações, bestas belas e belezas horripilantes, a dor da perda, a melancolia, a
tristeza, a morte. As imagens dos estilos do metal extremo underground brasileiro
remetem, sempre, a um movimento de desorganização, de desestruturação, de
desordem, de rompimento, de quebra e perturbação. São imagens que os praticantes
tomam como abjetas, depravadas, poluentes, depressivas, hediondas, grotescas e
mórbidas, duplicadas nessas qualidades pelas maneiras abjetas, depravadas, poluidoras,
depressivas, hediondas, grotescas e mórbidas com as quais são expressas. Sem dúvidas,
o gênero de todos os estilos de metal extremo é o horror, porém, diferentemente dos
roteiros de filmes de horror, suas histórias não culminam na morte do vilão, do
assassino ou do zumbi. Pelo contrário. No final, os monstros sobrevivem, o cutelo
continua a cortar os intestinos e o cheiro de putrefação adensa mais e mais. A tensão
não diminui. Ela amansa quando o ouvinte aperta o stop do seu player ou quando as
luzes do sol começam a penetrar pelas janelas do bar onde o último show acaba de
acontecer. Mas, subitamente, ela volta a se intensificar quando alguém fizer as cordas da
guitarra novamente vibrar.
Com o black metal, podemos dizer que chegamos ao ápice do horror tal como
estilizado pelo metal extremo underground brasileiro. Com ele, tocamos na extremidade
do metal extremo, na medida em que este horror é deflagrado na roupagem do mal. Mal
absoluto, este que o black metal estiliza. Os motivos acionados em suas ramificações
são manipulados de maneira que toda a negatividade neles latente se manifeste. O diabo
perderá qualquer ironia e malícia no black metal, qualquer ambigüidade, para se tornar
173

um senhor da destruição absoluta, um austero pai que abençoa seus filhos antes de
mandá-los para a “batalha final” contra o nazareno. A própria morte, que em muitas
cosmologias religiosas detém posição fundamental na redenção do fiel e na purificação
da alma, é estilizada como o aniquilamento irreparável, aprisionando o ser humano e
resgatando apenas a “natureza inorgânica” das garras dessa “lastimável evolução
simiesca”. A morte é impura no black metal. As crenças e costumes religiosos
ameríndios são “escavados” para servirem de atentados contra o cristianismo “do bem”
e as suásticas, antes de corroborarem uma filiação política ao nacional socialismo,
encarregam-se de reforçar uma imagem de violência desmesurada que o nazismo
conteria, senão em certo imaginário comum, certamente no imaginário dos praticantes.
No estilo do black metal, não se trata de elementos de rompimento mas, para eles, do
rompimento mesmo. Não se trata de perspectivas sobre a violência mas, para eles, da
violência em si. Não se trata de partes maléficas e sim do todo maléfico.
O black metal não só atinge o ápice do horror do metal extremo como também,
dentre seus congêneres, é aquele que mais explicita a luta do underground em seus
motivos. Primeiro ele a radicaliza, levando-a de uma luta pela manutenção desta prática
urbana enquanto um espaço de produção musical, para o nível de uma guerra contra o
bem e, porque não, para eles, contra o mundo. O black metal estiliza essa guerra em
cada elemento narrativo de seu estilo. Nas suas roupas, nas suas fotos, nas suas capas,
nas suas canções, nos nomes e nas faces dos seus músicos, o black metal está se
arregimentando para uma batalha. Beligerância ofensiva. O black metal, como ficou
claro no desenho que a banda Vulturine nos mandou, está contra eu e você, contra todos
nós. Além disso, e o mais importante, a radicalização da luta que o black metal promove
se completa quando ela é afirmada pelos seus praticantes como uma ideologia, um
culto, uma “filosofia de vida extrema”. À guerra contra o bem a partir da aceitação e
proposição do mal, o praticante confere o estatuto de uma moral e uma ética, um
princípio no qual ele diz acreditar e diz regrar sua conduta a partir deste. Pode-se
afirmar, é verdade, que todos os estilos de metal extremo underground são percebidos
como uma paixão, ou mesmo como um valor, que não se limite à música. O metal
extremo é algo que o praticante diz “não conseguir viver sem”, “está no sangue”, é uma
“atitude de vida” sem substitutos e equivalentes. Não se limita à música, porém, esta
“atitude” não se descola da, nem se sobrepõe à, música. Ambas vão juntas. Já na
retórica do apreciador de black metal, a música é posicionada como um meio para a
expressão daquilo que realmente lhe importa, a “filosofia de vida”. Apenas ele
174

reclamará seu estilo preferido como algo mais do que um estilo musical, como uma
espécie de regente de suas idéias e diretor de seus atos.
Propomos, então, embarcar na retórica do black metal de maneira heurística. Sob
a roupagem do mal, a ideologia black metal exemplifica a própria ideologia
underground. Se alcançamos o cérebro com o “virtuoso e puro” death metal, chegamos
ao coração do underground do metal extremo nacional com o “negro, impuro e envolto
em trevas” black metal. Sendo assim, um outro coração pode nos guiar pelos caminhos
da sua retórica. Um coração mais antigo, contudo, mergulhado nas mesmas trevas.
O crítico literário Lionel Trilling (1972) considera que o Coração das Trevas de
Joseph Conrad, publicado pela primeira vez na Europa em 1899, ‘(...) sumariza toda a
radical crítica da civilização européia feita pela literatura desde o momento da sua
publicação164’ (idem, p. 99). Narrada a partir da voz de Marlow, a novela conta a
história do encontro deste marinheiro inglês, que foi trabalhar para uma companhia de
comércio belga no Congo, com um peculiar funcionário desta mesma companhia, Kurtz,
enviado ao país africano para ser um dos agentes de primeira classe da extração e coleta
de marfim, principal atividade comercial da empresa. Logo no começo do livro, quando
Marlow, descansando com seus colegas no convés do navio onde trabalha, ancorado no
estuário do rio Tâmisa, começa a narrar sua aventura no Congo, ficamos sabendo que o
encontro exerceu grande impacto no marinheiro. Marlow nutre grande admiração, até
mesmo lealdade, pela figura de Kurtz, um homem que o fascinou tanto pelo que era,
quanto pelo que fez.
Marlow não conheceu Kurtz de primeira. Quando chega ao país africano de
posse belga, o marinheiro é obrigado a esperar alguns meses no posto central da
companhia por peças de reposição para o navio que iria capitanear ao longo do rio
Congo, trazendo marfim dos postos de coleta localizados no interior do país. Na
convivência com os agentes da companhia, Marlow começa a ouvir falar deste tal de
Kurtz, às vezes bem, sendo descrito como um verdadeiro defensor da empresa européia
na África, às vezes não tão bem assim, sendo acusado de empregar métodos incomuns
para extrair dos nativos a maior quantidade de marfim possível. De todo modo, Marlow
começa a se interessar pela figura de Kurtz, um homem a quem, de acordo com os
relatos dos agentes, o melhor da Europa contribuiu na sua formação. É um amador das
belas artes, pintor e músico. Também escreve, publicou artigos em jornais e periódicos

164
Tradução livre de: ‘(...) it contains in sum the whole of the radical critique of European civilization
that has been made by literature in the years since its publication’.
175

europeus, dentre eles, um relatório para a ‘Sociedade Internacional da Supressão dos


Costumes Selvagens’. Parece ser um eficaz empreendedor do comércio. Seu posto de
coleta sempre foi aquele que mais aplacou a sede de Bruxelas pelo marfim congolês.
Enfim, Marlow começa a montar uma representação de Kurtz como um belo espécime
da Europa do século XIX, um homem racional e de ética altruísta, dotado de qualidades
práticas, morais e intelectuais superiores. Contudo, o que confere exoticidade a Kurtz, o
que não encaixa na representação que Marlow fazia dele, mas, ao mesmo tempo, lhe
surpreende e fascina, é o fato de que Kurtz, ao subir o rio Congo em busca de marfim,
tornou-se líder, Trilling dirá, ‘(...) virtualmente um deus (...)’ (op. cit, p. 100), de uma
tribo local, governando-a cruel e autoritariamente. Como assim, se pergunta Marlow.
Como que um homem criado ao molde europeu, defensor irrepreensível e contumaz
cultivador da idéia civilizatória, um cavalheiro, embrenha-se na ‘selva mais selvagem’ e
torna-se um líder voraz e violento de um bando de ‘primitivos’? Marlow não consegue
entender este tal de Kurtz. Será, ele se pergunta, que ele passou para o ‘outro lado’, o
lado inimigo da cruzada civilizatória? Mas por quê? Ou será que Kurtz, na intenção de
levar mais a fundo a empresa colonialista, se despe de qualquer amarra moral e força,
pelo bem ou pelo mal, a civilização européia goela abaixo dos nativos? Essas
contradições fascinam Marlow, uma fascinação que Conrad cunhará como fascinação
pelo abominável. Pois para Marlow, independentemente das intenções de Kurtz, tudo
leva a crer que o paladino europeu, ao adentrar na selva congolesa, inoculou seu coração
com o veneno das trevas. A estada do marinheiro no Congo ganha outros contornos.
Suas preocupações com as funções que deve exercer como funcionário da companhia
são paulatinamente obliteradas pela ânsia de conhecer este abominável Kurtz. Ele terá
sua chance em sua primeira viagem rio acima, que tem como objetivo, justamente,
trazer o agente de volta ao posto central devido a problemas de saúde pelos quais estaria
passando.
Outros críticos (Bloom [org.], 1987) julgam que a qualidade literária do Coração
das Trevas está na sutileza com a qual Conrad se posiciona frente tanto à empresa
colonialista européia quanto à vida dos nativos. No relato da viagem de Marlow rio
acima, Conrad teria procurado deixar claro ao leitor que seu livro não trata de uma
atualização da imagem do bom selvagem, presente no imaginário europeu, pelo menos,
desde Montaigne. Os acompanhantes de Marlow na viagem, o gerente da companhia e
alguns peregrinos, ‘brincam’ de atirar nos selvagens que aparecem na margem do rio,
assim como tratam os nativos que os servem no navio, praticamente escravos, com
176

desprezo e brutalidade. Por outro lado, Marlow, homem de mentalidade medíocre


segundo Luiz Costa Lima (2003, pp. 212-227), abomina tanto os selvagens quanto a
maneira dos europeus em lidar com eles. Para ele, ambos são, na mesma medida,
sórdidos e brutos. Conrad também ratificaria qualquer enaltecimento dos ideais
europeus quando esclarece ao leitor, no estratégico encontro que Marlow tem, durante a
viagem, com o único europeu (bom, um russo) que se manteve ao lado de Kurtz durante
sua liderança da tribo, que os feitos de Kurtz não são frutos de uma escolha por uma
vida nobre e virtuosa. Porém, é nesse mesmo encontro que Marlow descobre que não
havia qualquer compaixão pelos nativos nos atos do agente. No relatório publicado no
boletim da “Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens”, Kurtz
escreve a frase ‘exterminem os brutos’ referindo-se a selvageria dos costumes nativos.
Enfim, qualquer leitura que procure apontar no livro de Conrad uma clara posição sobre
debates pertinentes para a Europa do XIX, pode ser contraposta por outra na qual aquela
posição estaria sendo negada pelo escritor polonês, naturalizado inglês. Narrativa sutil,
narrativa ambígua.
Portanto, se concordarmos com essas leituras, é difícil achar resquícios
panfletários no livro de Conrad. Ora, a culminância disto que podemos denominar de
sutileza narrativa está no ápice do livro, quando Kurtz finalmente aparece. Aparece
moribundo, em vias de falecer, nos braços de Marlow, já dentro do navio. Marlow não
tem chance alguma de conversar com Kurtz. Tudo que pôde fazer foi ouvir seus últimos
pedidos, guardar uma caixa de documentos para entregar à sua noiva na Europa, o que
Marlow lealmente fará, e ouvir seus últimos lamentos, “nada mais que suspiros”: o
horror! o horror! Conrad deixa ao leitor a tarefa de interpretar o que Kurtz quis dizer
com este horror duplamente suspirado.
Mas, em meio a ambigüidades sutis e meias palavras, Conrad não deixa dúvidas
quanto ao fascínio que Marlow nutre pela figura de Kurtz. Mesmo sem saber as razões
dos seus atos, mesmo sem saber por que proferiu o horror no último instante da sua
vida, Marlow só tinha respeito por Kurtz. Para além da estranheza, Marlow
reverenciava Kurtz por tudo, tanto pelo que fez quanto pelo que era. Para Trilling,
Marlow viu em Kurtz um ‘(...) herói do espírito (...)’ que ‘(...) pela regressão à
selvageria (...), atingiu o ponto mais fundo para além da civilização que alguém poderia
ir, a irredutível verdade do homem, o núcleo profundo de sua natureza, seu coração das
177

trevas165’ (1972, p. 101). Não se trata de altruísmo, nem de nobreza e virtude, muito
menos sinceridade, essa verdade para outrem. Trata-se de autenticidade, a verdade para
si. A gesta de Kurtz, para Marlow, foi ter tocado, ou procurado tocar, aquilo que lhe é
íntimo, profundamente íntimo, que o diferencia de todos e que a civilização tende a
recalcar. Enfim, Kurtz saiu em busca da realidade que lhe fazia um indivíduo. Ela só
poderia estar para além dos papéis, da falsidade, que a sociedade lhe outorga. Eis por
que Trilling considera o livro de Conrad um resumo da crítica que a literatura durante o
século XX fará à civilização européia. Sendo a Europa sinônimo de civilização, criticar
a segunda equivale a criticar a primeira.
Essa sinonímia, espécie de justaposição entre Europa do século XIX e a idéia de
civilização, é crucial para compreendermos, no entender de Trilling, os contornos da
crítica que o Coração das Trevas resumiria. Em nenhuma passagem do livro, nos diz o
crítico literário norte-americano, Conrad dá margem para uma completa negação dos
ideais europeus do século XIX. Pelo contrário. Marlow acreditaria sem pestanejar que o
projeto europeu ‘(...) pode e, de fato, realiza seus objetivos anunciados166 (...)’ (idem, p.
102), contudo, os realiza sob a égide de uma nação particular, a Inglaterra, sua pátria e a
pátria que o polonês Conrad resolveu adotar e servir, também como marinheiro. Neste
sentido, a brutalidade que Marlow confere aos agentes coloniais estaria se remetendo,
na verdade, à Bélgica e por extensão, a toda nação européia que não soube imitar os
‘bons e justos’ atos ingleses na sua empreitada colonialista. Lembremos também que,
para Trilling, a ‘regressão à verdade do homem’ que Kurtz teria empreendido não
corresponde a uma redenção moral no sentido europeu. Kurtz não teria ‘(...) purgado de
si mesmo qualquer vício europeu, nem mesmo a ganância167’ (op. cit, p. 101). Ele
colonizou, ele procurou encarar o mundo racionalmente, sem encontrar em sua
governança entidades metafísicas e sem encontrar em suas causas e efeitos, espíritos e
fantasmas. Ele encarou o mundo como um universo lógico, passível de ser apreendido
pela experiência sensória, inteligível pela ciência empiricamente orientada e
representável, belamente representável, pelas belas artes. Portanto, os aportes do
colonialismo e do iluminismo estariam sendo, digamos, endossados no livro de Conrad.

165
Tradução livre de: ‘(...) hero of the spirit whom (...), by his regression to savagery (…), had reached as
far down beneath the constructs of civilization as it was possible to go, to the irreducible truth of man, the
innermost core of his nature, his heart of darkness’.
166
Tradução livre de: ‘(...) can and does fulfill its announced purposes (...)’.
167
Tradução livre de: ‘(...) purged himself of none of the European vices, not even greed’.
178

Mas o endosso viria com uma nota de ratificação ao todo que os ideais e projetos
europeus do XIX em conjunto constituiriam, aquele representado pela idéia de
civilização. Kurtz tentou empreender à risca esta idéia. Ele tentou ser um homem
civilizado, mas esta civilização lhe angustiou. Ele tentou edificá-la, mas ela o
desmoronou. No seu íntimo, um profundo mal estar com esta civilização o tomou.
Como nos Versos Íntimos de Augusto dos Anjos, o beijo que ele deu nela foi a véspera
de um escarro. Ele a afagou, fazendo-se de exemplo civilizatório a ser seguido, e ela o
apedrejou, nunca provendo a ansiada felicidade. Ele fez dela seu destino, se sacrificou
por ela, e com isso se perdeu, perdeu seu íntimo de vista, perdeu sua integridade
pessoal, mais precisamente, perdeu a totalidade da sua pessoa a qual, sua ‘viagem de
regressão à selvageria’, teria como porto. Marlow, a voz narrativa à qual o crítico
literário norte-americano certamente não chamaria de medíocre, teria compreendido
através de Kurtz que a verdade do ser humano não será iluminada pela busca incessante
por um remate desta civilização. Ou, colocando a crítica em sentido construtivo,
Marlow teria percebido que o sabor amargo do veneno das trevas tem nuanças
adocicadas. Empreender um escape desta civilização certamente acarretará dor e
sofrimento, mas pode também desaguar em uma redenção verdadeira, a re-descoberta
de si. Pode-se alcançar o coração das trevas, a intimidade, colocando o coração em
trevas, sofrendo e lutando. Marlow talvez não tenha coragem para tanto (medíocre?),
mas sem dúvidas respeita quem a teve.
Se concordarmos com a maneira pela qual Trilling interpreta e contextualiza este
desconcertante livro de Conrad, podemos arrolá-lo, junto com Luiz Fernando Dias
Duarte (2004), na reação romântica que tanto marcou as manifestações e discussões
intelectuais, científicas, políticas e artísticas na Europa desde o século XVIII. Reação à
instauração da ‘(...) dimensão moderna da nossa cultura’, da qual ‘(...) seus mais
ardentes defensores foram chamados justamente de iluministas, por acreditarem na
derrota e no extermínio da sombra que teria obscurecido até então a “marcha da
humanidade”’ (idem, pp. 6-7). Pois bem, por ser uma novela, uma obra que se pretende
artística e não filosófica, seria despropositado procurar no Coração das Trevas uma
reação ponto a ponto ao iluminismo, ou, se preferirmos, ao mundo moderno. Todavia, a
interpretação da gesta de Kurtz que nos oferece Trilling, permite-nos perceber no livro
de Conrad aquele elemento que Duarte qualifica como o nódulo da reação romântica, a
denúncia da perda da totalidade. Sendo o universalismo e o individualismo, por sua vez,
cruciais no iluminismo, conhecimentos e/ou ideologias que enfatizam as partes
179

articuladoras de um todo, a reação romântica, nos diz o autor, denunciaria a perda que
esta fragmentação causaria, ‘perda sobretudo do sentido específico que a co-presença
dos elementos na totalidade acarretaria’ (op. cit, p. 8). Ou seja, a denúncia romântica
estaria defendendo, em contraposição ao iluminismo, que o todo se constitui em algo
mais do que a soma das partes. Essa totalidade para além das partes, nos diz Duarte, foi
encontrada pelos filósofos alemães, principais formuladores do romantismo, em vários
níveis. No conceito de uma totalidade cultural, nas categorias de ‘originalidade’ e
‘primordial’ na idéia de ‘vida’ e, particularmente importante para nosso argumento, na
de ‘espírito’ (op. cit, pp. 8-9), esta noção de que, para além da matéria, haveria um
‘espírito’ não só animando, mas, sobretudo, garantindo a existência individual e
coletiva. Este espírito poderia até estar se manifestando nas partes que o compõem,
porém, reagiram os românticos, a sua qualidade última, a sua natureza, é, por definição,
indecomponível.
Também é apropriado chamar atenção para uma outra dimensão da reação
romântica apontada por Duarte, a da diferença, ‘(...) a ênfase no caráter não igualitário,
hierárquico, propriamente distinto ou específico, dos entes entre si’ (op. cit, pp. 9-10).
Em contraposição clara e direta à ideologia da igualdade, teríamos aqui não só a
marcação da totalidade, mas também da sua especificidade, certamente comparável,
mas, em última instância, não igualável168.
Estas dimensões da reação romântica podem ser localizadas no Coração das
Trevas na maneira como Conrad se utiliza da idéia de natureza. A África “primitiva,
bucólica e praticamente intocada”, não só servirá como cenário, mas também será
estrategicamente imbuída por Conrad de um protagonismo no desenrolar da novela.
Ora, Kurtz empreende uma viagem pela natureza na busca pela sua natureza. Ao se
tornar o líder de uma tribo no coração da floresta, Kurtz regride ao coração selvagem. A
natureza é meio e fim na gesta de Kurtz. Ao mesmo tempo cenário e personagem, causa
e efeito do desenrolar da trama, a natureza é um fundamental elemento narrativo no
Coração das Trevas, denotando um anseio pelo retorno ao atávico momento da

168
Contudo, o próprio método da comparação, tão utilizado na antropologia, seria problematizado por
esta marcação da diferença, principalmente, pelo fato de que ela demandaria do método comparativo, a
inclusão da historicidade dos elementos comparados. Lembremos da celeuma de Boas com o responsável
pela organização da disposição das coleções etnológicas nos museus norte-americanos, Otis Mason.
Enquanto este queria dispor as coleções de acordo com os objetos (uma flauta Navaho ao lado de uma
flauta Tinglit, por exemplo), Boas, alemão, pedia que elas fossem dispostas de acordo com a tribo da qual
os objetos são produtos (uma flauta Navaho ficaria ao lado de um chocalho Navaho, por exemplo). Sobre
o ponto ver Boas, 1999.
180

totalidade não fragmentada, aquela que diferenciará o ‘verdadeiro’ Kurtz, tanto em


relação aos outros indivíduos quanto aos “falsos” papéis sociais que Kurtz estaria se
sentindo obrigado a cumprir. Sendo assim, pode-se dizer que a natureza na novela de
Conrad, ou melhor, a ‘revalorização da natureza’, também apontada por Duarte como
característico da reação romântica (op. cit, p. 7), figura como a metáfora articuladora da
crítica à civilização européia para a qual Trilling nos chama atenção. Uma natureza que
retornará enegrecida, envolta em trevas, como se quisesse dizer que a ‘sombra que teria
obscurecido a marcha da humanidade’ não é tão descartável quanto os iluministas
pensavam. O selvagem da floresta jogado sobre a civilização da cidade, do inexplicável
sentimento ponderando a clara intelecção, do obscuro do coração que envolve a luz do
cérebro. O próprio título do livro, ele mesmo ambíguo, joga o leitor tanto para o coração
das trevas quanto para as trevas do coração.
É justamente a partir desse retorno sombrio da totalidade não fragmentada que
podemos propor uma analogia entre a narrativa do Coração das Trevas e o estilo do
black metal underground brasileiro. Enquanto no livro de Conrad tal retorno é
referenciado pela revalorização da natureza, no black metal ele será denotado pelo mal.
Como vimos, algumas ramificações do black metal elaboram uma crítica do
cristianismo a fim de buscar um passado e/ou uma “universalidade” que teriam sido
perdidos com o advento desta religião. Também procuramos apontar como essa busca
está embebida em uma sensibilidade romântica, na medida em que a perda com o
esfacelamento desta totalidade é encarada como uma perda íntima, um esfacelamento de
si mesmo. Com o pagan e o folk black metal, as ramificações aqui em questão, talvez
estejamos muito próximos do conceito de totalidade cultural do filósofo alemão Herder,
aquele que Duarte descreve como uma entidade ‘(...) menor que a Humanidade, mas
certamente maior e mais expressivo que os entes individuais que (a) compunham (...)’
(op. cit, p. 8). A busca estilizada por essas ramificações procura uma totalidade cultural
da qual o praticante deseja se sentir como parte.
Mas podemos inverter o argumento e dizer que o pagan e o folk black metal
elaboram uma busca pela totalidade cultural a fim de criticar o cristianismo. O acento da
afirmação não estaria mais na busca e sim na vociferação direcionada às forças
benéficas do cristianismo. Aqui está a particularidade do black metal enquanto um estilo
musical brasileiro. Podemos encontrar nele uma “pegada” folclórica que o aproxima de
uma série de estilos musicais nacionais preocupados em versar, divulgar ou mesmo
celebrar alguma brasilidade que estaria escondida, “soterrada”, nos recônditos do
181

sempre famigerado estado atual da nação169. Porém, não podemos recortar da sua
“pesquisa folclórica” a virulência ao cristianismo, sua vontade de mal-dizer o bem. Não
podemos esquecer que a negritude do black metal é de outra natureza.
As bandas que se definem como propriamente satânicas também estão à procura
de uma totalidade não fragmentada. Mas, ao invés da totalidade cultural, elas buscam
uma totalidade pessoal. Com efeito, quando as bandas explicam do que se trata este
assumido satanismo, procuram deixar claro que não se trata de uma crença em uma
entidade divina, tal como, para elas, os cristãos concebem seus ídolos. A banda Mordor
chega a diferenciar um satanismo “tradicional” e outro “moderno”. No primeiro, como
disseram em entrevista ao Anaites zine, satanás surge enquanto “(...) uma entidade real,
uma divindade, e não compactuamos com tal crença”. Eles compactuam com o
satanismo “moderno”, através do qual “(...) buscamos ser nossos próprios deuses”. Eis o
elemento propositivo do mal absoluto estilizado pelas bandas de black metal que
acentuam o satanismo em suas identidades no underground. Sob a roupagem do mal,
surge uma proposição de auto-desenvolvimento afetivo e intelectual que não se curvaria
a nenhuma ideologia (além do black metal), a nenhuma instituição (além do
underground) e a ninguém, além deles mesmos. Ser um satanista pelo black metal
significa ser um indivíduo, eles prefeririam um guerreiro, autônomo, que parte em uma
constante busca, eles prefeririam guerra, por si mesmo. Brucolaques, da mineira Saevus,
resume claramente essa busca ao Dark Gates zine:

O satanista é aquele que segue seus próprios códigos, destruindo padrões pré-
estabelecidos para a criação de seus próprios padrões, criados por si para si, visando
construir algo mais verdadeiro em sua vida, buscando a evolução para atingir a
perfeição. Eu penso que para o satanista ser “sua própria divindade”, ele precisa de
conhecimento, sabedoria e auto-desenvolvimento, caso contrário, ele ficará na auto-
ilusão.

Mais verdadeiro, pois os “padrões” adviriam de si mesmos, de suas intimidades,


e não de algum outrem metafísico, como adviria na maneira que eles entendem o
cristianismo, ou social, como adviria na maneira que eles entendem o mundo moderno.
Brucolaques está certo em colocar entre aspas a frase “sua própria divindade”. O
satanismo do black metal propõe uma insurgência total do indivíduo para com qualquer
possível dependência afetiva ou intelectual. Neste sentido, o “eu divino” é uma metáfora

169
A música caipira e sertaneja, tal como surgem no trabalho de Elizete dos Santos (2005), e os
lançamentos da gravadora Marcus Pereira, como nos mostra João Sautchuk (2005), são exemplos.
182

para caracterizar a idéia de um total controle que o praticante satanista possuiria sobre si
mesmo.
Talhadura de si com buris próprios, a busca pela totalidade pessoal do black
metal eleva o ser que a engendra, o faz ser melhor não apenas para si, mas em relação
aos outros indivíduos que não a fazem. De fato, o praticante de black metal apreciador
dessa idéia se sente não só diferente, mas superior. Super-homem, melhor-homem-do-
que-o-outro170. Novamente com a palavra, Brucolaques, na mesma entrevista:

O progresso de uma nova era só será possível com o extermínio de todos os fracos e
submissos, permanecendo seres espiritualmente superiores, estabelecendo-se assim uma
humanidade forte e consciente. O ser humano poderia ser perfeito, mas preferiu escolher
um caminho inútil que o afasta de seus instintos e o condena a rastejar diante de deuses
impotentes. A derrota destes será inevitável!

A ambivalência, agora no registro do black metal. Ao mesmo tempo em que


encampa uma guerra contra o bem a partir de uma estilização de um mal absoluto, o
black metal propõe a construção de uma pessoa íntegra e autônoma, comprometida com
uma constante busca por auto-conhecimento. A construção pela destruição ou a
destruição para a construção. O retorno a uma totalidade pessoal não fragmentada que
toma o caminho da maldade para encontrá-la, um caminho da mão esquerda que busca
retornar ao que o praticante conceberia como uma pessoa “direita”. A ambivalência está
nesta denotação recíproca entre destruição e construção, estilizada, de alguma maneira,
em todas as ramificações do black metal.
Estamos de volta ao coração das trevas, mas agora conduzidos pelo black metal.
Com este, refizemos aquele mesmo retorno sombrio à totalidade não fragmentada
referenciada pela narrativa de Conrad. A analogia entre ambos os estilos quase chega a
ser uma semelhança. Se, no livro, a metáfora é o selvagem e, no black metal, os
elementos maléficos do cristianismo, no entanto, em ambos a referência é a mesma, a
“verdade e o autêntico”. Até mesmo a revalorização da natureza, tão explícita em
Conrad, está presente no black metal quando seus apreciadores falam em “instintos
esquecidos pelos caminhos que a humanidade escolheu171”. A principal diferença entre

170
Não é por acaso que alguma leitura da filosofia de Nietzsche terá grande saída entre essas bandas.
Uma leitura muito parecida com a que o nazismo alemão fez do filósofo seu conterrâneo, utilizando-o
como legitimador de sua eugenia anti-semita, com a anuência de sua irmã, Elizabeth Vöster-Nietzsche (a
qual, de fato, entregou a bengala do irmão a Hitler, em 1932, ato simbólico de transmissão da missão que
o filósofo teria cunhado ao “homem de ação”). Contudo, deixemos de lado o espinhoso debate que
procura esclarecer se a leitura nazista do filósofo seria ou não seria uma “deturpação” de suas idéias.
171
Aliás, muitas das fotos ilustrativas das gravações mostram os músicos na “floresta negra”, como se
fossem “animais selvagens noturnos” (talvez venha dessa revalorização da natureza como crítica a cidade,
183

ambos estaria, além da óbvia sutileza narrativa, na intensidade da perturbação proposta.


Enquanto o Coração das Trevas é passível de ser interpretado como uma ratificação da
civilização européia do XIX, o black metal chega a apontar como um problema, o
próprio fato da vida humana. Isto posto, podemos arrolar tanto o livro quanto o estilo
musical, novamente com Duarte, em um romantismo da sombra que, diferentemente do
romantismo da luz, ‘(...) mais próximo da reflexividade da sua ideologia de origem
(...)’, o próprio iluminismo, preferiria a ‘(...) intuição, essa anschauung tantas vezes
invocada e citada’ (op. cit, p. 12). Com intensidades diversas, tanto o livro de Conrad
quanto o black metal estilizam essa intuição em detrimento da intelecção, o coração
preeminente ao cérebro. Detrimento esse caracterizado pelo negro, pelas trevas. Ambos
querem jogar trevas sobre a luz.
Mas se é possível formular tal analogia entre os estilos da novela de Conrad e o
do black metal, por outro lado, não podemos esquecer a diferença dos seus estatutos. O
Coração das Trevas é um livro. Um grande livro para alguns críticos literários, como
para o próprio Trilling e mesmo para Harold Bloom (1987); ‘o mais intenso de todos os
relatos que a imaginação humana jamais concebeu’ segundo Jorge Luís Borges (1999);
mas ainda assim, um livro. Sem dúvida, uma novela de poder narrativo assombroso,
mas o Coração das Trevas, ao que nos consta, além da radical influência exercida em
muitos intelectuais e escritores do mundo todo, durante todo o século XX, não se
transformou em matéria além de livro172.
O black metal, por sua vez, é uma manifestação de uma prática urbana. Um
estilo do underground do metal extremo nacional, certamente, mas um estilo que faz do
underground um de seus principais motivos. A guerra do black metal, por mais que
eleja uma série de inimigos externos ao underground, antes de qualquer coisa, encampa
uma defesa de tudo aquilo que esta prática significa para seus praticantes. Assim como
sua ideologia, essa “filosofia de vida extrema” composta pela celebração do reino do
mal absoluto, antes de tudo, é uma filosofia de vida underground. Na medida em que

a evocação tão comum da figura do lobo no black metal norueguês, às vezes também celebrada no
brasileiro, como em certas imagens do Murder rape. Vale lembrar a dupla significação da palavra varg ou
vargr em norueguês, utilizada como codinome por Varg Vikernes: lobo e fora-da-lei). Outro dado
interessante, neste sentido, é o hobby de muitos apreciadores: acamparem nos parques nacionais do país,
onde ficariam “longes da falsidade das cidades”. Doom-Rá diz ir com freqüência aos parques nacionais ao
redor de Goiânia e eu mesmo acompanhei alguns músicos curitibanos em acampamentos no cânion do
Guartelá, noroeste do Paraná.
172
E filme. Ele inspirou a produção do Apocalypse Now de Coppola. Aliás, as conexões românticas da
novela de conrad são belamente indicadas por Coppola quando, na seqüência que abre o filme, ele a
sonoriza com a sinfonia Cavalgada das Valkírias, do compositor romântico Wagner.
184

essa ideologia é um elemento identitário do black metal no underground, ela funciona


como uma espécie de pedido deste estilo para com seus congêneres, demandando-lhes
que “levem mais a sério” esta prática urbana. Sim, a música é importante, reflete o black
metal, mas ela perderá toda sua “força”, toda sua autenticidade, se sair do underground.
Portanto, ele demanda aos seus cognatos que sobreponham, assim como ele mesmo o
faz, o underground à música. Daí seus músicos e apreciadores serem os mais críticos
deste espaço, mas, ao mesmo tempo, serem os mais ativos. Eles são os mais
preocupados com os “rumos que o underground toma”.
Assim, pelas trevas do black metal, jogamos luz no underground enquanto um
modo de vida. Tal estilo escancara um elemento que os outros tangenciam, qual seja, a
inseparabilidade dos motivos trabalhados em suas imagens com a própria condição da
prática urbana. De certa maneira, o black metal grita aquilo que os outros sussurram:
metal extremo só é extremo se for underground. Todo o peso, agressão e brutalidade
que eles tanto buscam em sua música se dissolvem se esta for composta, escutada,
apresentada e comercializada fora do âmbito underground. Será menos “verdadeira”,
menos autêntica. Podemos formular este enunciado em termos mais antropológicos. É
como se eles afirmassem: “olha, isto aqui é sim uma atuação, mas não a entendam como
um fingimento, como se estivesse totalmente descolada das vidas dos seus atores ou, a
pior das interpretações, não entendam como um mero entretenimento, como lazer e
distração; não, nós não vamos sair por ai matando e sim, nós nos divertimos muito
fazendo estas atuações. É por isso que fazer música extrema, e fazê-la no underground,
é de extrema importância na construção das nossas noções de pessoa e das nossas
maneiras de inserção na cidade”. Sendo assim, através da vivência no underground
dessas imagens perturbadas da perturbação que o metal extremo underground estiliza,
desta brincadeira séria com imagens do mal, seus praticantes buscam construir um
coletivo do qual se sentirão parte, buscam construir a si mesmos, buscam construir as
suas verdades. O underground, por mais ficcional que seja sua matéria, é socialmente
real para seus praticantes.
185

5 – TREVAS NA CIDADE

A busca sombria por uma totalidade estilizada pelo metal extremo só será
percebida como verdadeira pelos praticantes se for empreendida no âmbito do
underground. Esta é uma das depreensões que podemos fazer a partir da etnografia das
construções dos estilos. As imagens perturbadoras da perturbação serão menos
perturbadoras se circularem naquilo que chamam de mainstream, na “grande mídia”. Ou
seja, a construção dos estilos está totalmente informada pelas condições de produção
musical que o underground organiza. Daí nos referirmos a este espaço, no segundo
capítulo, como uma “prótese auditiva” que será, ao longo da participação, instalada na
percepção do praticante. O underground tem a capacidade de aumentar as qualidades
musicais definidoras do metal extremo, peso, velocidade e agressão, e de deixar este
tipo de música “mais sujo e menos limpo”, “mais rítmico e menos melódico”, “mais cru
(adjetivo muito utilizado pelas bandas) e menos cozido”.
O inverso também procede. O underground só será verdadeiro se for metal
extremo. Como vimos, nas suas relações horizontais com as diversas práticas urbanas
organizadas a partir de um tipo de música, com os diversos undergrounds que existem
país afora, nossos praticantes julgam depreciativamente qualquer manifestação não-
metal extremo. Com efeito, o underground punk é “muito político”, o gótico “quer se
mostrar” e o da música eletrônica é para pessoas “fracas e preguiçosas, que fazem
música apertando botão e não se esforçando para dominar as técnicas de um
instrumento”. Diplomacia megalomaníaca. O “melhor” underground é aquele que
abriga a mais “verdadeira” das músicas, o metal extremo.
Metal extremo só é extremo se for underground, e underground só é
underground se for metal extremo. Temos, então, uma homologia entre a prática urbana
e sua música. Underground e metal extremo, se denotando reciprocamente, constroem
uma linguagem de comum acordo. Assim fazendo, constituindo uma prática urbana pela
música e cantando nessa a prática urbana, a linguagem do underground do metal
extremo brasileiro referencia um terceiro elemento, a autenticidade, uma verdade que
não poderia ser alcançada por nenhum outro tipo de música e em nenhuma outra esfera
social.
Importante esclarecermos do que se trata essa autenticidade e, para tanto,
novamente, o livro Sincerity and Authenticity de Lionel Trilling (1972) é um sugestivo
186

recurso. Segundo Richard Handler (1986, p. 2), neste ensaio o crítico literário norte-
americano empreende uma análise hermenêutica de obras literárias e filosóficas a fim de
interpretar culturalmente as noções de ‘sinceridade’ e ‘autenticidade’. Para Trilling,
estes dois termos representam elementos fundamentais da ‘vida moral’ ocidental, pelo
menos, desde a renascença européia (1972, pp. 2-7).
A chave da interpretação de Trilling, justamente aquilo que faz esta obra de
crítica literária ser aprazível para as ciências sociais, está na relação entre indivíduo e
sociedade (podemos até arriscar e dizer que sua interpretação oferece uma forma de
pensar o surgimento das noções de indivíduo e sociedade). A partir do século XVII,
Trilling defende que uma franqueza nas relações sociais ou, como ele mesmo coloca,
uma sinceridade enquanto ‘uma ausência de dissimulação ou atuação ou fingimento173’
(idem, p. 13) na esfera pública, começou a ser valorizada em alguns países europeus.
Uma maneira de se apresentar para o outro, ser sincero é ocupar os papéis sociais da
maneira mais honesta. Formulando de outro modo, ser sincero é se preocupar com a
maneira pela qual o outro nos percebe. Para Trilling, o que está em jogo na noção de
sinceridade não é ‘quem você pensa que é’, mas sim ‘como você é pensado’. Sendo
assim, o autor entende que a valorização da sinceridade na Europa a partir do XVII,
além de refletir uma ‘(...) revisão dos modos tradicionais de organização comunal que
ensejou o surgimento da entidade que figura nas mentes dos homens sob o nome de
sociedade174’ (op. cit, p. 26), permite pensar também que, sob sua prevalência, a noção
de indivíduo era inseparável da noção de sociedade. Mesmo que o pêndulo dobre para o
lado da segunda, ambos se realizam em consonância, sem qualquer atrito.
Com a noção de autenticidade irrompida em meados do XIX, Trilling entende
que o pêndulo dobra para o lado do indivíduo. Ser autêntico é descobrir quem você é
independentemente das posições e funções sociais, é ter ‘um sentimento de ser175’ (op.
cit, p. 92) que não precisa corresponder à maneira pela qual o outro nos percebe. A
preocupação da autenticidade está na descoberta de um ser para si, de um self, de um
indivíduo que, descobrindo sua natureza, se sustenta existencialmente por si mesmo,
como bem lembrou Richard Handler (1986, p. 3), comparando a noção de autenticidade
em Trilling com a noção de natureza em Cassirer. Ao surgimento da noção de
autenticidade, aí sim, Trilling conecta uma separação entre indivíduo e sociedade, ou

173
Tradução livre de: ‘the absence of dissimulation or feigning or pretence’.
174
Tradução livre de: ‘(...) revision of traditional modes of communal organization which gave rise to the
entity that now figures in men’s minds under the name of society’.
175
Tradução livre de: ‘a sentiment of being’.
187

melhor, entre indivíduo e papéis sociais. Pois a descoberta do ser para si é a descoberta
do verdadeiro ser, o qual se realiza, sempre, insatisfatoriamente nos papéis sociais que
ocupa, ou melhor, encena. Deste ponto de vista, a sociedade pode ser percebida como
incompleta, em perspectiva branda, ou mesmo falsa, em acepções mais incisivas, como
é, para o autor, o Coração das Trevas. O ensaio de Trilling corresponde às suas
palestras proferidas em Harvard na primavera de 1970. Para ele, os ocidentais nessa
época ainda ‘viviam moralmente’ sob a ânsia da autenticidade irrompida no XIX.
O underground do metal extremo parece buscar uma autenticidade similar a esta
formulada por Trilling. O indivíduo dono de si, pelo metal extremo como gênero
musical, e a comunidade autêntica, pelo underground como forma de prática urbana.
Não se trataria de um papel social a ser encenado, de constrangimentos a serem
suportados. O underground seria o espaço social no qual o praticante pode dar vazão a
quem ele realmente é, onde sua subjetividade verdadeira se sincronizaria com a
objetividade das relações sociais.
A maneira como os praticantes se referem ao underground atesta a valoração
desta prática urbana como a “mais verdadeira” das atividades que eles executam. Em
conversa tida por programa digital de troca de mensagens instantâneas (MSN) em 2006,
o baixista e vocalista Moisés Grinder, da banda baiana de death metal Incrust, se referiu
a sua inserção no underground assim:

Pra mim, não ganhar grana com o death metal não é razão pra parar de fazer música e
sumir da cena, como tantos falsos fazem. Sabe por quê? (nova mensagem) Porque eu
ganho muito mais do que grana na cena, ganho o prazer que meu trabalho não dá, toco
minha música, minha essência, que ninguém nessa cidade entende...na cena eu sou
quem eu quero ser (nova mensagem) não preciso ficar obedecendo gente que me irrita
só porque eles tão com a grana (nova mensagem) é um saco isso, na verdade...pra
sobreviver, tenho que compactuar com toda essa alienação do trabalho e tal, tenho que
viver nessa cidade alienada pela festa que não acaba nunca. Mas ainda bem que existe a
cena forte e unida de Salvador...aí eu sou quem eu sou.

Onde não se é “alienado”, onde a “grana” não prevalece sobre o “prazer”, onde
“eu sou quem eu sou”. O underground se configura para seus praticantes como uma
comunidade muito parecida com aquela gemeinschaft de Tönnies (1944) e Simmel176
(2007), sobrepujada pela gesselschaft, a sociedade moderna impessoal na qual as
relações sociais são, para Tönnies (1944), instrumentais e não espontâneas, para Simmel

176
Sobre as semelhanças entre as abordagens de Tönnies e Simmel no que tange a transformação da
comunidade em sociedade, da gemeinschaft em gesselschaft, ver Vandenberghe, 2001, pp. 84-85.
188

(2007), objetivas e não subjetivas177. E se lembrarmos da maneira como o músico


Rodolfo vê o “mundo de hoje”, em conversa transcrita no terceiro capítulo, percebemos
que é justamente em contraposição a uma sociedade na qual “o individualismo e o
egoísmo” preponderariam que a solidariedade da comunidade do underground é
sentida:

(...) olha pro mundo de hoje, guerra, ódio, briga, é só desunião, separação (...), ficam
falando que estamos na era de aquário, essa conversa furada de hippie que tá tudo numa
paz (...), eu só vejo individualismo e egoísmo, todo mundo querendo tirar o seu e foda-
se o outro (...) não, aqui não, aqui nós trabalhamos em conjunto, essa é a mágica do
metal, eu nunca vi a pessoa antes mas se ela tá pra valer no underground terá minha
ajuda (...)

A “mágica do metal”, para Rodolfo, está em uma espécie de resolução que o


underground daria àquilo que ele percebe como os problemas do “mundo de hoje”.
Nessa contemporaneidade regida pela vontade de promoção individual e pela ânsia de
acumulação de capital, o underground costuraria um mutualismo no qual todos
trabalham e crescem juntos. A “mágica” estaria na transformação da função da relação
social. Se, no “mundo de hoje”, as relações seriam meios para se alcançar fins
individuais, no underground elas seriam meios para se construir o todo social que este
espaço representa para o praticante. O responsável por tal transformação, o “mágico”, é
o metal extremo. É para fazer metal extremo que essa espécie de comuna contraposta ao
“mundo de hoje”, que é o underground, é levantada.
Para Moisés, Rodolfo e tantos outros praticantes, nada no underground do metal
extremo parece ser alienante. A música que traduziria a “essência” dessas pessoas seria
feita por meio de relações essenciais. Os praticantes colocam o metal extremo como um
ideal e um valor e percebem as relações de companheirismo e amizade do underground
como a única maneira de vivenciá-lo plenamente, ou seja, sem haver qualquer
corrupção ou falsificação, qualquer sujeira que deturpe estes ideal e valor. A busca pela
autenticidade desta prática urbana, então, parece estar concentrada nessa tentativa de

177
No que tange particularmente a obra de Simmel (2007), a argumentação dos praticantes acerca da
sociedade moderna ecoa e muito a maneira com a qual o autor formulava esta gesselschaft. Pois, para
Simmel (idem), esta nada mais é do que a objetificação de formas de relação social específicas em
sistemas auto-regulados e auto-referenciados. A relação entre os indivíduos nessas esferas é, sempre,
mediatizada pelo dinheiro, por sua vez, também uma objetificação do valor e do símbolo. Dessa maneira,
para Simmel (op. cit) a sociedade moderna não só se caracteriza pela separação entre cultura objetiva e
cultura subjetiva, mas também por um conflito entre ambas as esferas engendrado no indivíduo. Em razão
do conflito entre executar as tarefas na sociedade com a ânsia de ser quem realmente se é, Simmel (1988)
argumentará que a sociedade moderna é trágica. Vandenberghe (2001, p. 103) dirá que, para Simmel, a
gesselschaft é, por definição, inautêntica.
189

expressão coletiva de verdadeiros selves, onde os planos do social e do individual se


harmonizariam.
Aí está o aspecto propositivo do underground do metal extremo nacional. Essa
verdade plena constituída em um ajuste do indivíduo com a sociedade cumpre com a
função construtiva e positiva desta prática urbana. Função importantíssima, pois, pode-
se dizer que o underground só se sustenta em razão desse “eu sou quem eu realmente
sou” que o praticante diz vivenciar nele. Afinal, se o montante de tempo e dinheiro que
o praticante investe nele não é retribuído nessas mesmas moedas, contudo, retorna em
forma de gozo pela vivência da verdade, logo reforço e manutenção dessa verdade.
Ciclo de dádiva tipicamente maussiano: o praticante se doa pelo underground e este,
por sua vez, retribui na moeda do mana, da “força” que o praticante diz sentir emanando
deste “sub-mundo”.
Todavia, a função construtiva e positiva é, ela mesma, dependente do enunciado
destrutivo e negativo do underground do metal extremo nacional. A negação do
mainstream, tanto no que tange a oposição do underground às relações do “mundo de
hoje”, quanto à oposição do metal extremo aos valores e afetos deste mundo
“capitalista/democrático/cristão”, contextualiza e significa o empreendimento
propositivo desta prática urbana. Negando o mundo a sua volta e fruindo de estéticas do
abjeto, do perverso e do mal, esta prática urbana constrói sua identidade. Desse modo, a
relação entre os termos underground e mainstream não se conforma apenas em uma
oposição classificatória simétrica, mas, sobretudo, em uma valoração assimétrica178. O
underground está contra o mainstream, o underground é melhor que o mainstream.

***

Nos dois primeiros capítulos, essa relação fundamentalmente diacrítica entre


underground e mainstream foi abordada ao nível das práticas de produção musical.
Procurou-se compreender como um espaço de composição, escuta, gravação,
divulgação e apresentação de música se organiza a partir das representações de modos
de produção musical distintos que underground e mainstream configuram. Pois bem.
Com a etnografia das construções dos estilos, podemos inferir que a relação entre estes
dois termos não se resume à diferenciação de modos de produção musical. A “luta”,

178
Sobre as diferenças entre a operação classificatória, distintiva e simétrica, e a operação valorativa,
hierárquica e assimétrica, ver Duarte, 1986.
190

como os praticantes falam, do underground contra o mainstream se encontra no centro


da formulação identitária desta prática urbana. Em um só movimento, ela articula a
negação do outro e condiciona a proposição do mesmo. Uma “luta” pelo underground e
uma “luta” do underground.
É importante enfatizar que, nesse sentido, estamos tomando estes termos de
maneira eminentemente simbólica. Underground e mainstream configuram, assim,
distintas visões de mundo179, concernentes única e exclusivamente aos praticantes. Seja
lá qual for o elemento da vida humana, não é exagero formular dessa maneira, nossos
praticantes possuem duas formas de percebê-lo. O Mainstream, prontamente
inferiorizado e negado, e o underground, plenamente aceito.
Ora, a arena onde se realiza essa guerra simbólica é a cidade. Nos meandros do
espaço urbano, ou se preferir, nos capítulos da trama urbana, esse exercício de
identidade musical dará vazão às suas negações e construções. A cidade é o ambiente no
qual a autenticidade dessa prática auto-denominada underground será buscada.
Propomos, então, explorar em diante os significados do underground enquanto uma
prática urbana procurando compreender como sua “luta” contra o mainstream se realiza
não só como uma guerra simbólica, mas também como uma forma de experiência da
cidade. Ou seja, se mantivemos durante toda nossa exposição um olhar propriamente
interno ao underground, apontando como seus limites são estabelecidos, a seguir
tentaremos deslocar nosso ponto de vista em alguns graus, procurando compreender
como esses limites não só separam, mas também, ao mesmo tempo, inserem.

5.1 - O underground na cidade

Em sua dissertação, Jeder Janotti (2004), na intenção de averiguar como a


música se materializa no tecido urbano, parte para uma descrição daquilo que chama de
‘cena heavy metal’ da cidade de Salvador. Suas descobertas são muito interessantes,
principalmente aquela em que mostra como ‘assumir-se headbanger, em Salvador é,
antes de tudo, operacionar valores diferenciais à axé music, marca registrada da cidade
(...)’ (idem, p. 57). Para o autor, ser um ‘chacoalhador de cabeça’ em Salvador significa,

179
Utilizamos a noção de ‘visões de mundo’ a partir de Velho (1981). Podemos dizer também que o
binômio underground/mainstream pode ser apreendido a partir dos conceitos de ‘ethos e visão de mundo’
de Geertz (1989, pp. 93-103) e mesmo de ‘ethos e eidos’ de Bateson (1965). Apesar das diferenças entre
esses autores, suas conceituações são válidas para o nosso caso na medida em que todas enfatizam que,
entre uma maneira de conduta e uma forma de apreender o mundo simbolicamente, antes de haver uma
relação de causa e feito, ambas se articulam mutuamente.
191

em boa medida, construir uma diferença em relação à ‘marca registrada’ da capital


baiana, seja nas roupas pretas contrastando com a ‘(...) imagem colorida e feliz do
carnaval baiano’ (op. cit, p. 58), ou na marcação anti-comercial, underground, do heavy
metal em relação ao ‘(...) papel mercadológico (...)’ (op. cit, p. 57), mainstream, do axé.
Mas o autor defende que essa relação de diferenciação com o axé não é de confronto
permanente, podendo mesmo se transformar em parceria. O crescimento do axé na
cidade de Salvador, além de prover trabalho para os músicos de heavy metal, como
instrumentistas de apoio nos trios elétricos, também fez com que uma série de estúdios
de gravação surgisse na cidade. Mesmo com suas agendas lotadas com gravações de
blocos de percussão e bandas estilo É o tchan, esses estúdios sempre tinham um horário
ou outro, a preços módicos, para gravar os lançamentos independentes das bandas
soteropolitanas de heavy metal.
Envolta neste contexto de enfrentamento simbólico ao axé, Janotti nos mostra
como a ‘cena metálica’ de Salvador se apropriou do espaço urbano não da maneira que
quis, mas do jeito que lhe foi possível. As lojas de discos se instalam no centro velho da
cidade, pois,

(...) com o deslocamento do grande comércio e da classe média para áreas situadas
longe dos prédios decadentes e da confusão das regiões centrais, o aluguel das lojas e
galerias antigas caiu muito, o que permitiu que pequenos empreendedores, como das
lojas de discos, pudessem alugar pontos comerciais nessas áreas (op. cit, p. 59).

Já os shows aconteciam em associações de moradores de bairros periféricos ou


em salões de clubes, pois, segundo Janotti, as casas de show de Salvador ‘(...) não
tinham interesse em um público que não consumia’ (op. cit, p. 60). Ou melhor, ratifica o
autor, um público que, preferindo pagar mais barato em suas bebidas, comprava suas
garrafas de vodka e conhaque nos supermercados ao invés de consumir nos bares das
casas de show. De qualquer forma, mesmo sob tais dificuldades, a ‘cena metálica’
soteropolitana floresceu segundo Janotti. Um selo surgiu, apreciadores começaram a
editar zines, várias bandas ganharam reconhecimento local e nacional e a ‘cena’ se
consolida como um circuito de informação, objetos e pessoas heavy metal no tecido
urbano de Salvador. Todavia, na sombra do axé.
Sob perspectiva semelhante a de Janotti, mas se utilizando de outra terminologia,
Pedro Alvim (2006) busca descrever em sua tese o ‘mundo artístico do heavy metal’ no
Rio de Janeiro. Assim como o axé na capital baiana constrange a ‘cena heavy metal’
desta cidade, o autor observa que, na capital fluminense, os adeptos deste ‘mundo
192

artístico’ dizem sentir ‘intensa discriminação’ (idem, p. 2) por parte dos não-adeptos.
Partindo deste apontamento, Pedro Alvim levanta questão interessante: como que um
‘mundo artístico’ tão pujante na cidade como o do heavy metal, celeiro de inúmeras
bandas, especialização de inúmeras lojas, estilo celebrado em todas as edições do maior
festival de música do país, o Rock in Rio, é objeto de forte rejeição? O que faz do heavy
metal no Rio de Janeiro ser um ‘mundo artístico’ tão praticado e, ao mesmo tempo, tão
estigmatizado?
Se entendemos seu argumento, Alvim defende que a discriminação advém tanto
da maneira que a ‘temática e a estética’ do heavy metal são construídas quanto da forma
pela qual essa construção é percebida pelos não-adeptos:

(...) a temática e a estética do heavy metal, em parte sobre símbolos sagrados (Geertz,
1978:144) ícones do domínio cosmológico do “mal” no pensamento religioso de
diversas tradições, sobretudo a cristã, converteriam esses símbolos tidos como dados
(Wagner, 1981) em convenções artísticas (construídas), primeiro esvaziando-os de seu
poder “tabu” de coerção (Geertz, 1978:144, 149) e medo, em seguida questionando e/ou
complexificando a bipartição cosmológica estanque de bem versus mal (alterando assim
ethos e visão de mundo via símbolos sagrados – Geertz, 1978), o que termina gerando
as reações de demonização e acusações atribuindo poderes “maléficos” ao gênero e a
seus fãs por parte de não adeptos (2004, p. 2).

Parece-nos que Alvim vê e escuta no heavy metal uma construção estética


eminentemente crítica da religião, principalmente a cristã. Elaborando sua temática a
partir de elementos religiosos do mal, o heavy metal estaria des-construindo o caráter
‘dado’ destes elementos transformando-os em arte, consequentemente, ‘construídos’.
Tal movimento, além de dissolver qualquer interdito associado a estes elementos,
causaria um curto-circuito na dualidade bem-mal fundamental das religiões. Provocando
um pouco, pode-se dizer que para Alvim, o heavy metal brinca com coisa séria. Esta
brincadeira custa caro, contudo. A dissolução da verdade do mal que o heavy metal
provoca é tomada pelo não-adepto, ironicamente, como uma maledicência, como uma
espécie de obra do diabo e, assim, gerando a ‘intensa discriminação’ que os fãs deste
tipo de música dizem sentir.
Porém, a rejeição não impede a prática do heavy metal na cidade do Rio de
Janeiro. Ao mesmo tempo em que trata da estigmatização, Alvim mapeia em sua tese
toda a apropriação dos equipamentos urbanos pelos adeptos e mostra como, assim, se
organiza um verdadeiro circuito do heavy metal na cidade (op. cit, pp. 29-56, 122-169).
Segundo o autor, tal circuito se desenrola, sobretudo, na zona norte da cidade, como na
193

rua Ceará, mesmo endereço da Vila Mimosa, famoso ponto de prostituição do Rio de
Janeiro, ou nas cidades metropolitanas, como em Duque de Caxias e Belford Roxo.
Pensando a partir da descrição de Alvim, podemos dizer que o heavy metal no
Rio de Janeiro se realiza enquanto uma prática urbana, e não apenas como uma música a
ser consumida, longe da zona sul, região símbolo da normalidade carioca em algum
senso comum, tanto da própria cidade quanto do país todo. Por este ponto de vista, o
heavy metal enquanto prática pode ser aproximado do crime, do baixo meretrício e da
pobreza, e distanciado da praia, dos “cartões postais” da cidade e do samba. Se, como
Janotti aponta, o heavy metal em Salvador encontra no axé, ‘marca registrada’ da
cidade, sua oposição, esta será dada no Rio pela “carioquice” estereotipada da zona sul.
Ou seja, pelo seu distanciamento das ‘marcas registradas’ de cidades metonímias
do Brasil e pela sua aproximação com práticas percebidas como desviantes da
normalidade, o heavy metal em nosso país dá margens para ser apreendido, tanto pelo
apreciador, quanto pelo detrator, a partir de dualidades dicotômicas tais como colorido-
monocromático, bonito-feio, alegre-triste, normal-anômalo, centro-periferia ou até
mesmo dominante-dominado.
Denunciando sua herança roqueira, o heavy metal em geral, seja no Brasil seja
em outros países, sempre incomodou padrões normais de comportamento. Tomando a
liberdade de discorrer a partir de algum senso comum sobre esse estilo musical, pode-se
dizer que a presença em um show, mesmo das bandas mais consagradas na indústria
fonográfica, sempre tem um gostinho de transgressão para o fã. O jovem adolescente se
vê longe dos constrangimentos da família e da escola, “livre” para dar seus primeiros
goles de cerveja e baforar seus primeiros cigarros, flertar e, assim, sentir-se mais
homem, mais mulher, mais adulto. Já este, tem a chance de “lembrar de seus velhos
tempos” da adolescência, tirar a poeira das roupas de couro, se esquecer do paletó e do
tailleur e, pelo menos por uma noite, “ir à loucura” ao som dos seus ídolos de outrora.
Além disso, se o rock incomodou por sua conotação sexual na década de 50 (lembremos
das censuras na televisão aos rebolados de Elvis “the pelvis” Presley) e pelo seu
engajamento político de esquerda nas décadas de 60 e 70 (todos os movimentos
contestatórios dessas décadas, dos hippies, dos jovens, das mulheres e dos negros, por
exemplo, fizeram do rock sua trilha sonora), o heavy metal perturbará principalmente o
normal religioso, elencando como principais motivos do seu estilo, a magia, a morte e,
194

sobretudo, o diabo. Se o rock nutriu uma sympathy for the devil180, o heavy metal
encarna o diabo de tal maneira a ponto de cantar, na gravação que muitos fãs e críticos
consideram sua estréia fonográfica, my name is Lucifer, please take my hand181. Todo
esse incômodo que o heavy metal provoca, é importante salientar, é estimulado tanto
pelos seus apreciadores quanto pelos seus detratores. O heavy metal sempre sofreu
acusações das mais variadas estirpes. As detrações mais incisivas, como não poderia
deixar de ser, ocorreram nos Estados Unidos, como a formação do PMRC182 em 1985 e
a acusação de que a banda Marilyn Manson teria influenciado, pela sua música, os
jovens Dylan Klebold e Eric Harris a entrar em sua escola, em 1999, no estado do
Colorado, fortemente armados e atirando em qualquer coisa que se mexia, até acabar
sua munição com um atirando no outro, como haviam planejado na véspera183.
As análises de Janotti e Alvim mostram muito bem como essa característica
opositora/transgressora do heavy metal se realiza no tecido urbano, tanto territorial
quanto relacional, de duas capitais brasileiras. Em nossa leitura, a qualidade destes
trabalhos está em apontar o quão complexo é a formação do espaço do heavy metal na
cidade. Janotti (op. cit) nos mostra como essa oposição não pode ser pensada enquanto
uma separação e Alvim (op. cit) nos esclarece que essa “discriminação” opera tanto no
apreciador quanto no detrator. Além disso, ambas as análises em conjunto também nos
fazem pensar que, no Brasil, o heavy metal possa conter algo de “anti-brasilidade” ou de
uma “outra brasilidade”, não contemplada pelos ritmos e identidades detentores da
“marca registrada” de cidades metonímias do nosso país184. Sendo assim, o heavy metal

180
Famosa canção da inglesa Rolling Stones, contida no disco Beggars Banquet, de 1968.
181
A frase está na canção N.I.B, contida no disco homônimo da inglesa Black Sabbath, lançado em uma
sexta-feira, 13 de fevereiro de 1971.
182
Parents Music Resource Center. O Centro de apoio musical dos pais é uma comissão do senado
federal norte-americano idealizado por Tipper Gore em 1985, esposa do então senador Al Gore. Essa
comissão fez audições públicas com boa parte dos músicos de heavy metal, punk e pop, com a intenção
de “esclarecer dúvidas” acerca das letras de algumas das suas canções. Como resultado, a comissão
conseguiu aprovar um sistema de classificação da música vendida neste país e elegeu quinze canções
consideradas inapropriadas para os jovens yankees, “as quinze fétidas” (filthy fifteen) como ficou
conhecida a lista lançada em 1985. Das quinze, nove são canções de heavy metal mas, infelizmente,
perdemos o topo da lista para o Prince, com sua Darling Nikki, canção que estimulava, segundo a
comissão, masturbação. Sobre a atuação da PMRC em relação ao heavy metal, ver Weinstein, 2000, pp.
265-270.
183
Ver Larkin, 2007. Também remeto o leitor ao documentário de Micheal Moore sobre os
acontecimentos que ficaram conhecidos como o “massacre de Columbine”. No seu Tiros em Columbine,
lançado em 2002, ele faz uma entrevista com o líder da banda Marilyn Manson.
184
Na verdade, tomando o heavy metal como um todo, ele parece ter uma relação ambígua em relação a
certos ritmos e identidades tidos como genuinamente brasileiros. Se, por um lado, a mineira Sepultura se
utiliza do berimbau e de cantos dos índios Xavante no seu álbum Roots (1996), celebrando assim, de certa
maneira, um Brasil culturalmente miscigenado, bem ao tom de Gilberto Freire (2002 [1933]), por outro,
as bandas de metal extremo underground fazem uma severa crítica ao Brasil “alegre e harmônico”,
195

no Brasil não seria só opositor e transgressor, mas também menor, em nossas palavras,
underground. Contudo, são apenas especulações. Fato é que estes trabalhos, além de
fornecerem belos exemplos de inserções urbanas por oposições, nos mostram que, não
obstante todo o constrangimento e dificuldade, a ‘cena’, o ‘mundo artístico’, a prática
urbana do heavy metal floresce, e floresce pujante, no Brasil. Para um fã (e ambos os
autores também deixam claro em seus textos que são fãs), nada mais gratificante.
Mas, como já indicado anteriormente, ambos os trabalhos tratam do heavy metal
em geral. Tanto Janotti quanto Alvim abordam o heavy metal como um só gênero e uma
só prática urbana. O underground do metal extremo nacional, por sua vez, é uma das
divisões internas do heavy metal. Seus praticantes soteropolitanos provavelmente
freqüentam as mesmas lojas especializadas que os fãs da ‘cena’ de Salvador
freqüentam, assim como os praticantes cariocas vão se divertir na rua Ceará, esse point
do ‘mundo do heavy metal’ no Rio de Janeiro. Contudo, para além desses cruzamentos,
o underground se constitui enquanto uma prática urbana específica se distanciando do
heavy metal em geral, daquilo que seus praticantes definem como heavy metal
mainstream. Na verdade, a primeira instância da luta pelo underground parece começar
aí, dentro das ‘cenas’ e ‘mundos artísticos’ desse tipo de música que, por mais que
contenha algo de opositor e transgressor, também está solidamente inserido no lucrativo
mercado da produção fonográfica185. Em um show de death metal, em 2003, Curitiba,
ouvimos o seguinte comentário de um presente:

Se a pessoa curte mesmo a música, se tem o metal no sangue, ela não pode ficar na sua
casa ouvindo seus cds. Ela tem que ir lá no show das bandas daqui. Tem que mostrar a
cara. Pô, você vê um monte de carinha andando por ai com camiseta de banda gringa,
que gasta uma grana preta em cd gringo, mas na hora do show das bandas de Curitiba,
que fazem um trabalho por amor a música, que ralam sem grana, sem lugar pra ensaiar,
pra tocar, aparece 100, 200 pessoas. O metaleiro tem que virar headbanger.

marcando em suas entrevistas a alienação pela qual o “futebol e o carnaval” seriam responsáveis. Ou seja,
e essa é a ambigüidade, parece que o heavy metal nacional às vezes reclama uma designação de estilo
popular, como se fosse uma sonoridade que emana das raízes culturais brasileiras, e em outras se
aproxima do pop, de uma música transnacional que em nada espelha a cultura local.
185
Tão inserido que o heavy metal é uma espécie de menina dos olhos de algumas gravadoras devido à
lealdade dos fãs para com suas bandas favoritas. O heavy metal pode vender pouco, mas vende sempre,
não só os lançamentos, mas também o catálogo. Bandas como Metallica, Iron Maiden e Black Sabbath,
medalhões do estilo, já venderam ao longo de suas carreiras, dezenas de milhões de cópias das suas
gravações. Menina dos olhos que fica mais brilhante ainda com as fortes quedas de vendagens que a
pirataria digital vem causando à indústria fonográfica. A lealdade do fã de heavy metal, assim como sua
preocupação com a “boa” qualidade do som da cópia, faz com que ele ostente as menores porcentagens
de música ilegalmente adquirida pela internet. Alguns dados estatísticos sobre a música digital que
especificam os downloads por gênero musical, podem ser achados nos seguintes sítios: no Brasil,
www.abpd.org.br e, no mundo, www.ifpi.org (acessados pela última vez em 15/06/2008).
196

Se articulando a partir de uma divisão entre bandas estrangeiras e bandas


nacionais, o comentário reclama o apoio às bandas locais, essas sim, que fariam música
“por amor”, que não estariam interessadas em ganhar os famigerados “lucro e fama”
que o mainstream proporcionaria, onde, certamente, o sujeito do comentário alocaria as
bandas estrangeiras. O “metaleiro”, designação depreciativa no underground por
corresponder a um “consumidor passivo” de música que apreciaria o heavy metal
apenas esteticamente, teria que se transformar em um headbanger, o “verdadeiro”
apreciador que deixaria de ouvir seus cds de banda “gringa” para comparecer nos
eventos e atividades do heavy metal da sua cidade e, podemos dizer, num segundo
momento, para ser um próprio promotor dessas atividades, um músico, zineiro ou um
responsável por selos e distros. Se transformar em alguém que possui “o metal no
sangue”, que o faz e não apenas o recebe, que o pratica. Ou seja, o comentário parece
demandar uma saída do mainstream metálico e uma entrada no underground do metal
extremo. Duas práticas, segundo ele, distintas.
Coadunada a essa separação entre underground e mainstream dentro dos
próprios ‘mundos’ e ‘cenas’ do heavy metal, não podemos esquecer da separação entre
metal melódico e extremo, tão ou mais importante para nossos praticantes. Para eles,
como vimos, o metal mainstream está baseado na melodia, no tom, nas notas agudas,
“notas altas” na gíria musical. O metal deles é grave, sempre “para baixo”, ao encontro
do ritmo e do pulso.
Ressalta-se ainda que, dentre os nossos praticantes, diferentemente do que
Alvim percebeu em seu campo, não notamos qualquer sensação de discriminação ou
rejeição por serem apreciadores do metal extremo. “Isso existe”, alguns deles dizem, se
referindo ao preconceito, mas “não me importo”, reiteram, “não me atinge”. Percebendo
por este prisma, o que notamos foi o contrário do sentimento de uma rejeição, uma
ênfase na completa adoção da identidade do underground pelos seus praticantes. Não
parece haver qualquer negatividade na maneira com que eles vivenciam suas
participações. Ela é tida como uma vontade e uma intenção as quais, segundo eles,
nenhuma “barreira” social tosará.
Desse modo, se concordarmos com Alvim e Janotti que essa rejeição, de certa
maneira, constrange territorialmente a circulação do heavy metal no tecido urbano e o
assemelha simbolicamente a certas práticas consideradas “sujas”, como o crime a
prostituição, então os praticantes do underground, antes de se ressentir, aceitam essa
espécie de oclusão da cidade para suas práticas e transformam sua semelhança com o
197

“sujo” em uma verdadeira celebração estética da “sujeira”. Se a cidade não os quer, eles
tampouco querem a cidade e, se ela quer os rebaixar, eles parecem aceitar de bom grado
ser rebaixados. No caso do underground do metal extremo nacional, fica difícil afirmar
quem rejeita e discrimina quem, se é o adepto ou o não-adepto. Pois aí, é como se
houvesse uma glória em ser rebaixado, é como se houvesse um trono a ser conquistado
quando se é considerado vil.
Mas a principal diferenciação entre o underground do metal extremo nacional
em relação as ‘cenas’ e ‘mundos’ do heavy metal tal como analisados por Janotti e
Alvim, é seu transbordamento dos limites de uma única cidade. Para usar um dos
conceitos de Magnani (2002), pode-se dizer que o underground é um ‘circuito’
brasileiro de metal extremo que passa por diversas cidades do país, tanto capitais, como
Rio de Janeiro e Salvador, quanto centros regionais, como Joinville, Teófilo Otoni e
Jundiaí. Um ‘circuito’ que, por não se resumir aos contornos de uma cidade, não pode
ser qualificado como efêmero. Como bem salienta Magnani, ele tem “(...) existência
objetiva e observável: pode ser levantado, descrito e localizado” (idem, p. 24). O
underground passa por Curitiba, mas não fica apenas nela, assim como passa pelo Rio
de Janeiro, mas também não fica só aí. O underground passa por São Paulo mas, apesar
de se demorar um pouco mais, também não fica ai. Passa também por Belo Horizonte,
aliás, podemos dizer que em boa medida seus movimentos começaram na capital
mineira, com a “extrema ideologia satânica” do Sarcófago sendo propagada nos idos de
1985. Mas o underground na terra mãe também não fica. Ele passa. Ele vai até
Fortaleza, entra no computador do Hioderman em forma de entrevistas e sai diagramado
em forma de Anaites zine, o qual chegará à caixa postal da Countess Death, em Lages,
Santa Catarina, saindo de lá pelo Unholy Black Metal zine, como um endereço indicado
no meio de tantos outros endereços de zines, selos, distros e bandas. Ele será gravado,
pelo Pro-tools, na casa do baterista do Daimoth, em Recife. Equalizado e mixado, sairá
em forma de cd direto para Juiz de Fora, para as mãos de Yuri que, por sua vez, vende
um dos exemplares para um curitibano em passagem pela sua cidade com fins de
pesquisa. De Minas, o underground sai junto com Yuri e sua horda Blasphemical
Procreation e vem “blasfemar” nos palcos do clube Mackenzie, Méier, Rio de Janeiro.
Pelas cidades do Brasil, o underground passa e por estas passagens, ele se faz.
Feito de passagens, o underground do metal extremo é uma circulação de
informações, objetos e pessoas operante a nível nacional. Observá-lo apenas dentro dos
limites de uma cidade, além de possibilitar uma confusão entre ele e o ‘mundo artístico’
198

ou a ‘cena’ do heavy metal, pode nos fazer perder de vista que tal amplitude de
circulação define o underground como uma prática social e musical. Observando-o em
uma cidade, podemos avistar apenas um momento dessa passagem, quando, de fato, o
espaço do underground a extravasa, ou melhor, sendo condizente com sua terminologia,
quer se por “embaixo” dela. É daí que queremos notá-lo.

5.2 – O underground pelas cidades - o show como prática ritual

The kula is thus an extremely big and complex institution, both in its
geographical extent, and in the manifoldness of its component pursuits. It welds
together a considerable number of tribes, and it embraces a vast complex of activities,
interconnected, and playing into one another, so as to form one organic whole.
Malinowski, 1983 (1922), p. 83.

O Kula, tal como descrito por Malinowski, oferece uma imagem sugestiva para
visualizarmos o caráter da circulação do underground. Assim como essa “complexa
instituição social” trobriandesa, o underground é um composto social formado na
confluência de diversas atividades que são realizadas por grupos que vivem
geograficamente distantes uns dos outros. Se, no Kula, temos tribos circulando por ilhas
a fim de trocar conchas, no underground, temos grupos locais, se preferirmos ‘cenas’ e
‘mundos artísticos’, circulando pelas cidades com o interesse de trocar metal extremo.
Vimos nos dois primeiros capítulos como essas circulações e trocas acontecem.
Seguimos os passos das gravações, observando como são feitas, distribuídas e vendidas,
assim como seguimos a produção dos zines, focando a importância que as informações
veiculadas por eles têm na organização de uma circulação circunscrita e relativamente
autônoma.
Contudo, para o praticante, este circuito por si só não corresponde ipsis litteris
ao underground ou, para continuar pensando junto com Malinowski, sua representação
como um ‘todo orgânico’ que forma esta prática urbana é mais uma síntese sociológica
nossa do que uma nítida percepção deles186. Com isso, não queremos dizer que os

186
Vale ressaltar que, na seqüência do trecho citado, é justamente uma diferenciação entre análise
sociológica e pensamento nativo que Malinowski esboça: ‘Yet it must be remembered that what appears
to us an extensive, complicated, and yet well ordered institution is the outcome of ever so many doings
and pursuits, carried on by savages, who (...) have no knowledge of the total outline of any of their social
structure. (…) The integration of all the details observed, the achievement of a sociological synthesis of
all the various, relevant symptoms, is the task of the ethnographer’ (idem, pp. 83-84). Em que pese a total
impossibilidade de auto-percepção que o autor confere ao conhecimento nativo, que soa tão datada aos
199

praticantes não sabem o que estão fazendo quando mandam seus zines e gravações para
outros estados. Sabem muito bem que estão, assim, cremos que deixamos isso claro,
“lutando pela chama do underground”. Porém, para eles, o circuito só terá significado
se ele confluir para o e emanar do show. Para o praticante, o underground como um
‘todo orgânico’ só é vivenciado neste evento. Pensando junto com eles, é no show que a
“chama do underground” é acessa e é no show que ela brilhará com a maior
intensidade.

***

É significativo que, no trecho do praticante citado algumas páginas acima, “o


metaleiro vira headbanger” quando pára de ouvir as bandas “gringas” em casa e
comparece aos shows das bandas locais. O momento de transformação do “consumidor
passivo” em alguém que nutriria “amor” pelo metal extremo, o momento no qual esta
música seria “injetada nas veias” da pessoa, é o show.
Já Doom-Rá, da Uraeus, em entrevista ao Dark Gates zine, vê no show um
momento de descoberta:

(...) quando eu aprecio material (fita-demo, CD, LP) de hordas que não conheço, tento
compreender se há alguma verdadeira ideologia no artefato, através dos hinos e das
fotos (...), mas é no show que a horda tem a chance de interpretar a idéia defendida em
vossos hinos e entrevistas, é no show onde se descobre que algumas hordas de black
metal só tocam black metal e outras vivem o black metal.

Os praticantes se remetem ao show como o momento extraordinário de suas


inserções no underground. Seria nele que a pessoa “mostraria a cara”, o evento por onde
ela se iniciaria nas relações underground e, à medida que seu comparecimento se
repetisse em outros shows, paulatinamente se transformasse em um “verdadeiro
praticante”. O show seria também o principal momento para as bandas demonstrarem
sua “ideologia” e para o público endossá-la como “verdadeira”, ou seja, o momento no
qual a idéia do underground seria apresentada, reforçada e celebrada. Enfim, os
praticantes se remetem ao show como o momento crítico de suas filiações a esta prática
urbana.

nossos ouvidos, estamos fazendo a mesma diferenciação para o caso do underground do metal extremo
nacional.
200

Temos assim, nas maneiras como os praticantes se referem ao show, alguns


pontos que a literatura antropológica187 enfatiza na prática ritual, sobretudo, sua
dimensão propriamente reveladora do mundo social. Colocando em ato os principais
elementos constituintes dessa prática urbana, em local e momento específicos, o show
parece se constituir para o praticante como o lócus privilegiado de experiência do
underground enquanto um todo, talvez não tanto orgânico, mas certamente concreto,
como algo que existiria também fora de seus corpos e mentes. Para usar a seminal
argumentação de Durkheim acerca do rito como “sociedade em ato” (1996 (1912), pp.
209-250), para o praticante, no show, o underground como uma idéia de um coletivo
social e musical se sincronizaria com a ação social e musical deste evento. Daí a
revelação que propiciaria o show ao praticante. Ele comunicaria o underground,
digamos, em versão cheia.
Dada sua excepcionalidade apontada pelos próprios praticantes, o evento do
show pode ser também um extraordinário momento heurístico para a análise da prática
urbana em questão. Pois, se o underground surge nele como um todo, o ‘circuito’ deve
estar surgindo nele também. Além disso, se o show comunica o underground, ele deve
necessariamente falar sobre sua inexorável “luta”. Desse modo, se os próprios
praticantes se referem ao show como um ritual, seguiremos essa indicação e faremos a
nossa análise ritual desse evento que de modo algum se resume às apresentações das
bandas.

187
DaMatta, 1990 (1979); Douglas, 2002 (1966); Gluckman, 1963; Leach, 1972; Radcliffe-Brown, 1973;
Tambiah, 1985; Turner, 1969.
201

Cartaz digitalizado do show II Hellmaster Ritual, realizado em Sorocaba, 2008.

5.2.1 – Preparando o ritual – organização e vivência do ‘circuito’

CADERNO DE CAMPO, MAIO/2004, CURITIBA:

Show no Lino’s. Bandas locais convidando algumas bandas catarinenses.


Afora o som das bandas, que conheço pouco, já dá para imaginar o “tom” da
noite. Muito grind e death metal no volume máximo, num recinto mínimo.
Qualidade acústica deprimente, equipamento de amplificação precário, zumbido
nos ouvidos pelo fim de semana inteiro. O ar sempre úmido dessa cidade chega a
ficar pegajoso em dia de show no Lino’s, com aquela fumaça do cigarro, aquele
cheiro de couro velho das jaquetas e o cheiro de neutrox que tomam conta do
ambiente quando a moçada começa a “agitar” as cabeças...é, vejo que não estou
em bom dia. Gosto muito disso tudo, mas tem horas que cansa. Eu fico achando
que já sei de tudo, a noite já aconteceu na minha imaginação...hoje é uma dessas
“horas”. Força.
Bom, o que dizer do Lino’s? O boteco mais freqüentado da cidade pelos
punks, pelos headbangers, pelos psychos e, de vez em quando, uns motoqueiros
ainda estacionam por lá (mas nada de Harley, é CB 750 mesmo). Toda essa
movimentação underground rola no Lino’s desde o começo dos anos 80, quando o
pessoal do punk “descobriu” sua pinga barata e sua mesa de sinuca com feltro
rasgado. Dois ambientes, mais um outro que alguns teimam em chamar de
“banheiro”, respondem pelo espaço do bar do seu Lino. No primeiro, por onde se
202

entra, o balcão do bar, na frente das prateleiras de bebidas, fica à esquerda, e a


mesa de sinuca à direita. Um corredor, com a largura equivalente do corpo de um
adulto, separa os dois. Logo após esta sala central, chegamos na “salinha”, um
micro-ambiente onde ficam as mesas, quatro ou cinco no máximo, em dias
“normais” e onde acontecem os shows, como o de hoje. Não há janelas e a luz
artificial está sempre naquele tom de “prestes a queimar”. Também não há palco.
Os músicos se encolhem em um dos cantos da sala, colocam os amplificadores em
cima de engradados de cerveja e tocam. Sendo generoso, este ambiente é
confortável para vinte pessoas. Já rolaram shows com mais de cem, não
contabilizados banda e a proporcionalmente gigantesca bateria.

O show no Bar Lino’s de Curitiba, realizado no começo de 2004188, é um


exemplo da maneira circunscrita e pessoal pela qual o show underground se constitui,
desde sua organização. Esse show pode ser considerado como uma festa de amigos
realizada em um bar. Um músico se responsabilizou por organizar um show para sua
banda tocar, para mostrar pro “pessoal” suas novas composições que estarão presentes
numa futura gravação189. Inicialmente, ele contatou seus colegas de cidades próximas a
sua na intenção de saber se podem vir tocar em tal data. Ter bandas de outras cidades
tocando, apesar de não ser uma necessidade, dá ao show um atrativo a mais para o
praticante comparecer, não só pelas apresentações em si, mas também pela certeza do
encontro com o “pessoal” de fora, para conversar, para trocar gravações e zines, para
saber o que está acontecendo “lá” e reportar o que está acontecendo “aqui”. Além de
toda essa troca de informações, possíveis parceiras visando futuros shows podem ser
fechadas na noite. Para o responsável pelo show, por sua vez, convidar bandas de fora
pode ser uma maneira de retribuir um convite feito anteriormente ou pode ser uma
forma de ganhar créditos com essas bandas, quase uma espécie de auto-convite para a
sua ir tocar na cidade delas num futuro próximo.
Em shows pequenos como esse, como os custos com transporte, possível estadia,
alimentação e, o mais importante, bebidas e substâncias ilícitas, serão pagos pelos
próprios integrantes, as bandas “estrangeiras” convidadas são, geralmente, de cidades
próximas. Sendo assim, como os shows pequenos são os mais comuns, o ‘circuito’
brasileiro do underground do metal extremo acaba tendo eixos de circulação mais
movimentados. Curitiba com o norte e Porto Alegre com o sul de Santa Catarina, Belo
Horizonte com o interior mineiro, Rio de Janeiro em uma triangulação com Vitória, no

188
O trecho inteiro do caderno de campo no qual descrevo esse show encontra-se no Anexo II.
189
Se essa era a motivação da banda Necrotério para organizar o show, todavia, inúmeras podem ser as
razões de um show como esse. O aniversário de um dos integrantes, o nascimento de um filho de alguém
do “pessoal” ou mesmo a páscoa (data preferida dos shows de black metal, a sexta-feira, quando cristo
morre, e não o domingo, quando ele ressuscita) podem motivar a organização de um show.
203

Espírito Santo, e Juiz de Fora, no sudeste mineiro, São Paulo capital com as diversas
cidades do interior paulista, como Campinas, Jundiaí, Piracicaba e mesmo com cidades
mais distantes, como Bauru e São José do Rio Preto, Fortaleza com Teresina, Natal e
São Luis do Maranhão, Salvador com o interior baiano, assim como Recife com
Campina Grande e o resto do interior pernambucano, todas essas “pernas” são muito
mais movimentadas do que, por exemplo, Porto Alegre e Fortaleza ou Brasília e
Florianópolis. Movimentação em mão dupla, tanto das cidades pequenas em direção as
maiores, quanto das segundas para as primeiras. Contudo, vale ressaltar, isso não
descaracteriza a amplitude nacional do underground, uma vez que a maior
movimentação desses eixos se aplica somente ao deslocamento de pessoas. Os objetos e
informações movimentam-se velozmente pelo Brasil todo por correio e, quando alguma
gravação ou zine não chega a uma dada cidade por carta, são trazidas pelas pessoas que
já o receberam, justamente, pelas movimentações mais curtas que os shows engendram.
Bandas arranjadas, o organizador precisa agora decidir onde o show acontecerá.
Casas de shows preparadas para receber grande quantidade de público, mais de mil
pessoas, geralmente localizadas em regiões da cidade reconhecidas como pontos de
divertimento noturno, são, de saída, descartadas, tanto pela visibilidade que elas dão aos
eventos ai alocados, quanto pelo preço do aluguel que cobram. A preferência do
underground recairá sobre bares e espaços os mais diversos, como clubes e associações
de moradores, geralmente localizados nos centros velhos da cidade ou em bairros
distantes do centro, na “periferia”. A partir do show de Curitiba, podemos entender
como se dá a negociação do organizador com o proprietário do local quando o evento é
realizado em um bar. O Lino’s, já inativo, desde a década de 80 abrigou shows de punk,
psychobilly (estilo formado na confluência entre o punk e o rockabilly) e metal extremo.
A convivência com o proprietário do local durante esses vinte anos sempre foi amistosa.
Seu Lino pedia 20% da entrada para o bar, um real no caso do show organizado pelo
Necrotério, mais a garantia de que o público consumiria sua bebida. Para seu Lino, uma
boa maneira de manter seu bar movimentado, um boteco de esquina vazio em dias sem
shows. Para os praticantes, valores acessíveis para utilizar um espaço que, por mais que
não ofereça a mínima qualidade acústica, é ideal para um evento underground. Afastado
dos locais de “agito” noturno da capital paranaense, cravado no centro histórico da
cidade, bem perto de pontos de prostituição, o Lino’s sempre estava meio sujo, com o
feltro da mesa de sinuca rasgado e freqüentado por mendigos, prostitutas e travestis
atrás de uma pinga barata. O Lino’s era tosco, a meia-luz, bem ao gosto underground.
204

Ter sido uma referência espacial por mais de vinte anos para diversos
undergrounds faz do Lino’s uma exceção. A regra, em qualquer cidade, é um constante
atrito entre praticantes e proprietários dos bares. Este pode pedir uma porcentagem do
valor de entrada maior do que o valor que aqueles acham justo e assim, a parceria não se
efetiva. Também pode acontecer que, julgando que o consumo de bebidas não foi
lucrativo durante o show, o proprietário fecha suas portas para o underground realizar
em seu bar outros eventos. Sempre há também a possibilidade de que o proprietário não
se anime com a idéia de ter seu local utilizado por “satanistas e pervertidos”. Certa vez,
durante um show em Vila Velha, Espírito Santo, 2006, quando o vocalista da banda
Catacumba iniciou o show gritando “satanás está aqui conosco”, o proprietário do bar
subiu no palco e obrigou que a banda parasse de tocar imediatamente, causando certo
tumulto entre o público. Ou, em outra ocasião, Campinas 2002, o impacto causado no
dono do John’s bar pelo strip-tease de uma “vampira”, que finalizou a apresentação da
banda soteropolitana Mystifier, foi de tal ordem que ele proibiu a realização das outras
duas apresentações que ainda estavam para acontecer naquela noite. A essas ações dos
proprietários, os praticantes reagem adulterando o número de pagantes, levando bebidas
das suas casas e até mesmo promovendo “quebra-quebras” dentro do bar, como de fato
ocorreu em Vila Velha. Esses constantes atritos fazem com que o underground não só
circule pelo país, como também pelo próprio espaço das cidades, procurando um
proprietário que aceite abrigar os shows em seu bar, algum seu Lino que não veja
problemas em cruzes invertidas e “vampiras” nuas e que tenha em seu estoque uma
pinga oferecida a preços módicos.
Não é exagero afirmar que boa parte dos shows underground é organizada em
moldes semelhantes à maneira que foi o show no Lino’s. Como efeito de uma
organização gerenciada fundamentalmente na base da “conversa” e do “contato”, esses
shows se caracterizam pela falta de garantia que se realizem tal como foram planejados.
No dia do show, as bandas podem aparecer ou não e os locais podem estar disponíveis
ou não. De modo que, como o underground é um sistema de trocas, os praticantes
confiam na efetividade das suas “conversas” e “contatos” por entenderem que faltar aos
compromissos acordados significa desrespeitar a própria maneira de dar, receber e
retribuir desta prática urbana. Não comparecer ao show, como banda ou mesmo como
público, demonstra falta de comprometimento, “falsidade” até, colocando em risco,
assim, suas inserções no underground. Pode-se dizer, então, que o constrangimento que
esse sistema de prestações e contra-prestações provoca nos praticantes é forte, afinal, as
205

bandas, na maioria das vezes, aparecem e o “pessoal” está por lá. Só não é tão forte
assim, compreensivelmente, com os proprietários dos bares, alheios aos mecanismos
articuladores do underground.

CADERNO DE CAMPO, NOVEMBRO, 2007, RIO DE JANEIRO:

Setembro, 2007. Festival underground no Rio, intitulado Aliança Negra.


Dez bandas, quase todas de black metal, tocando por mais de doze horas neste
domingo ensolarado, no clube Mackenzie, Méier. Sete bandas cariocas, duas
mineiras e uma alemã, esta última, Grafenstein, fechando sua turnê de seis ou sete
shows pelo Brasil. Apesar de ser “gringa”, pelo que pude levantar sobre a banda,
na internet, ela faz parte da rede underground européia. Suponho que seja por isso
que ela está presente neste festival. Uma banda internacional com certo
reconhecimento pelos fãs de heavy metal em geral dificilmente seria convidada
para um festival como esse de hoje. Vamos lá ver “qualé”. Vou acompanhado pela
Cláudia, musicóloga que também estuda o metal extremo em seu doutorado em
musicologia, e pelo Grind Stressor que, figura carismática e freqüentador da cena
carioca por pelo menos uns vinte anos, baterista e vocalista de algumas bandas,
segundo ele, “conhece geral”.
O local do show é um clube de recreação. Tem piscinas, quadras,
lanchonete e toda a estrutura para um dia de lazer e esporte com os amigos e a
família. Como é domingo, o evento começava às duas horas da tarde e, como o
show se realizaria em dois palcos distantes um do outro, fazendo com que o pessoal
percorresse quase toda a extensão do clube entre uma apresentação e outra, as
dependências do local foram divididas por dois grupos muito distintos. Banhistas e
esportistas de fim de semana viram seu clube ser tomado por quase mil
apreciadores de black metal devidamente vestidos para um evento importante
como é o de hoje. Além da compreensível estranheza que alguns olhares dos sócios
do clube denunciavam, não houve qualquer atrito entre nós e eles. Talvez eles já
estejam acostumados com a “invasão”. O clube Mackenzie, já há alguns anos,
recebe shows do underground do metal extremo carioca. Seu salão social, o recinto
onde foi montado o palco principal do evento, apesar de ficar devendo em sua
acústica, tem plena capacidade para abrigar um palco de médias proporções e um
público de mil pessoas confortavelmente.

A organização de shows maiores do underground também se dá por este


sistema, mesmo que sobreponha às “conversas” e “contatos”, o dinheiro e o contrato,
como aconteceu na organização do show Aliança Negra, realizado em setembro de
2007, no clube Mackenzie, Méier, Rio de Janeiro190. O tamanho deste show é raríssimo.
Dez bandas se revezando em dois palcos montados em recintos distintos do clube, o
principal no salão central e o secundário em uma quadra coberta. Um público de, no
mínimo, mil pessoas para assistir dez horas de apresentações de metal extremo
praticamente ininterruptas, pois quando uma acabava no palco principal, em cinco
minutos outra estava começando no secundário. Como o show ocorreu em um clube

190
O trecho inteiro do caderno de campo no qual descrevo esse show também se encontra no Anexo II.
206

recreativo, boa parte da estrutura necessária para as apresentações, palco, amplificação,


luzes e bateria, precisou ser alugada, assim como foi necessário contratar mão-de-obra
especializada para montar e operar todos esses equipamentos. Além do porte estrutural
diferenciado, o Aliança Negra tinha como principal atração uma banda alemã de war
black metal (aquele estilo que encaixa o nacional socialismo em motivos pagãos),
Grafenstein, em turnê pelo Brasil durante os meses de setembro e outubro de 2007.

Cartaz digitalizado do show Aliança Negra.

A realização de um evento deste porte no underground, com todo o


planejamento e capital financeiro que ele demanda, só é possível quando o seu
organizador é um profissional, um promotor de eventos. Não se trata de organizar uma
festa para os amigos, onde o não comparecimento pode “pegar mal” ou se um
amplificador estoura durante as apresentações, o show simplesmente acaba. No Aliança
Negra, qualquer falha dos equipamentos ou a falta de alguma das bandas previamente
convidadas colocaria em risco a “boa” imagem dos seus organizadores, todos com
alguns anos de atuação na cena carioca, e obviamente, influenciaria negativamente
207

naquilo que é um dos principais objetivos deles, lucrar com os eventos que realizam191.
Portanto, para garantir que tudo dê “certo”, as bandas convidadas, além de terem seus
custos arcados pela organização, recebem cachês e assinam contratos nos quais multas
rescisórias estão estipuladas. A insegurança quanto à realização do show organizado
pelas “conversas e contatos”, tão presente nos shows underground, é assim, com os
contratos e os pagamentos, amainada.
Eis aí um dos únicos agentes que consegue lucrar no underground e, ao mesmo
tempo, ser “bem” visto pelos praticantes, o promotor de eventos. Se os shows que
organiza têm “boas” qualidades acústicas, se ele promove a apresentação de bandas que
nunca tinham tocado na sua cidade e cobra pelo ingresso um preço relativamente
barato192, o praticante só terá respeito por ele. O lucro de modo algum coloca em xeque
sua reputação. Afinal, dado todo o trabalho que teve em organizar o evento, o praticante
entende que nada mais é justo do que ele ganhar para tanto. Além disso, o promotor de
eventos profissional não é um agente externo ao underground. Antes, ele é um
praticante que percebeu a possibilidade de, para colocar de modo simples, unir o útil ao
agradável. Espécie de empreendedor do underground, ele soube encontrar uma forma
de organizar “bem” o principal evento desta prática urbana, o qual ele certamente terá
grande prazer em participar, mas que também se transformará em um meio de
subsistência. Por isso que o capital financeiro que ele movimenta e os contratos que
assina, antes de substituírem os “contatos e as conversas”, os complementa.
A lista de bandas convidadas para tocar no Aliança Negra foi totalmente
montada a partir dos “contatos e conversas” que movimentam o circuito underground
no eixo Juiz de Fora - Rio de Janeiro. Vejamos: o promotor de eventos que trouxe a
banda alemã para o Brasil é de Minas, Belo Horizonte. O contato que Yuri D’Ávila
tinha com este promotor fez com que ele, agora não só um responsável por selo, mas
também promotor, trouxesse o Grafenstein para tocar em sua cidade, Juiz de Fora, no
show onde suas bandas também tocariam, Sepulcro e Blasphemical Procreation. Não
custa nada, pensou Yuri, avisar seus contatos no Rio, o pessoal do Rio Metal Works,
sobre a possibilidade de levar a banda alemã para tocar na capital fluminense um ou
dois dias depois do show de Juiz de Fora. Além de reforçar suas ligações com o Rio de
Janeiro como promotor e responsável por selo, Yuri também viu nesse aviso uma ótima

191
Lucro que vem essencialmente dos ingressos. Não há patrocínio de qualquer empresa em shows
underground.
192
Doze reais (2007) foi o preço do ingresso para o Aliança Negra.
208

chance para pegar carona com a banda alemã e arranjar mais uma apresentação para
suas bandas na cidade que mantém relações tão estreitas com a sua. Para o pessoal do
Rio, ótima chance para realizar um “evento como o underground carioca nunca tinha
visto antes”. Mais alguns convites a banda cariocas e o cast do Aliança Negra estava
pronto. Fechado o contrato com o clube Mackenzie pelo aluguel do seu espaço e
equipamentos reservados com as agências de eventos, agora é partir para a divulgação.
O show underground é divulgado por aquele velhíssimo meio de comunicação
que podemos chamar de boca-a-boca. O organizador fala sobre os shows para os seus
colegas os quais, por sua vez, falam para seus conhecidos e, assim, as informações
acerca do lugar, horário e bandas que tocam na noite são conhecidas por quem quer
saber dessas informações. Esse foi o único meio de divulgação do show no Lino’s e
esse é, sem dúvidas, o meio mais veloz, mais eficiente e consequentemente, o mais
utilizado para divulgar um show underground. Muitas vezes, o boca-a-boca é
complementado pela confecção e distribuição de flyers (ou, como os cariocas dizem,
filipetas) e cartazes, como aconteceu no Aliança Negra. Eles são deixados para
distribuição nos e colados nas paredes dos locais mais freqüentados pelos praticantes,
basicamente bares e lojas especializadas em heavy metal. Os cartazes podem também
ser pregados em muros e postes localizados em ruas centrais das cidades. Contudo, na
prática, esses meios impressos de divulgação servem mais para lembrar o praticante do
show sobre o qual ele já tinha sabido através de algum conhecido seu193. Além destes,
um show underground pode ainda ser divulgado pelas rádios rock do país, não como
uma inserção no horário comercial, mas como um lembrete dado pelo locutor anfitrião
do programa heavy metal, geralmente veiculado nas madrugadas. Se os lembretes feitos
pelo rádio são raros e em termos de divulgação, muito pouco eficientes, na televisão,
por onde, atualmente, não é veiculado nenhum programa de heavy metal no país, são
inexistentes. Ou seja, os mesmos “contatos e conversas” que estão na base da
organização dos shows, são também os meios pelos quais os shows são divulgados. Se o
underground não extravasa sua rede de relações em nenhum momento da sua
circulação, não seria diferente no momento da divulgação do seu principal evento.

193
Os cartazes terão uma importância divulgadora maior com o advento da internet. Mesmo que muitos
praticantes, principalmente os apreciadores de black metal, sejam avessos a “teia mundial”, por ela ser
“aberta demais”, as artes digitalizadas dos meios impressos são amplamente divulgadas nos sítios
eletrônicos do underground do metal extremo. Todavia, temos os “contatos e conversas” modelando a
comunicação underground na internet também, pois os endereços desses sítios, mesmo que, a princípio,
possam ser acessados por qualquer um, só são divulgados entre os praticantes.
209

CADERNO DE CAMPO, NOVEMBRO, 2007, RIO DE JANEIRO:

No show, essa pessoalidade é gritante (será que eu não percebia isso tão
nitidamente em Curitiba por, justamente, conhecer todo mundo?). Parece que
todos se conhecem, ficam trocando de roda de conversa a toda hora, falam sobre
tudo, mas principalmente sobre metal extremo. As próprias piadas são
relacionadas ao underground. Aparece uma menina vestida em trajes vampirescos,
com um espartilho de látex justíssimo, saia negra de couro que desce rente ao seu
corpo, botas vermelhas de salto alto e, o melhor, uma mecha grisalha no começo do
seu cabelo longo, liso e negro, e uns cinco ou seis que conversavam em roda
brincam: “caraca, saca a Mortícia, tá real hoje”, “ai, sinistro, a Mortícia vai
blasfemar muito hoje”. Levando à boca um cigarro, manchando-o com seu batom
negro, ela responde, com um leve sorriso no rosto: “meu homem, ele, Belzebu, me
espera”, e todos, “Mortícia” inclusa, desfazendo toda sua pose de Marilyn Monroe
do mal, riem muito. E o Grind Stressor, de fato, “conhece geral”. O cara passou dos
quarenta e, durante o evento, parece uma criança hiper-ativa de cinco. Não pára
de ir pra lá e pra cá, dessa roda para aquela roda, sempre falando e gesticulando
muito, contando suas histórias para quem ainda não as ouviu e relembrando de
outras com colegas “das antigas”.

Assim como não seria diferente ao longo do evento. Antes, durante e depois das
apresentações das bandas, os “contatos” são vivenciados face-a-face e estimulados nas
conversas, sem aspas, das rodas. Os organizadores finalmente se encontram, se
atualizam mutuamente com as informações sobre os shows que vão acontecer nas suas
cidades e com outras, um tanto supérfluas para se transmitir em uma ligação de telefone
ou por carta, como a saída de tal pessoa dessa banda e a entrada daquela em outra. Os
responsáveis por selos e distros fecham seus acordos com integrantes de bandas com os
quais vinham se comunicando anteriormente. Os zineiros, além de trocarem seus
“artefatos” entre si, fecham acordos para futuramente fazer, ou fazem no local mesmo,
novas entrevistas com integrantes de bandas para os próximos números. Sem esquecer
das conversas sem fins práticos, coloquemos assim, por onde os “veteranos reais”
constroem suas imagens de “veteranos reais” e acusam outros “veteranos reais” de
“falsos”, por onde se fazem piadas sobre os amigos e por onde se constroem as
aproximações e diferenças dos estilos de metal extremo, elaborando analogias entre e
traçando as histórias do death, doom, trash, gore e black metal. Qualquer show
underground propicia esses momentos de feira nos quais produtos são comercializados
e trocados, acordos são firmados e informações, fundamentais e banais, são
transmitidas.
Dessa maneira, pode-se dizer que o show, desde sua organização até sua
vivência, é o momento no qual a rede de comunicação pessoal e circunscrita, matéria-
210

prima do ‘circuito’, é tecida. Engendrando, estimulando e imbricando as diversas


práticas e interesses constituintes dessa prática urbana, o show é a principal referência
relacional e territorial do underground. Pois, se nele os praticantes se encontram, trocam
e demonstram seus comprometimentos, é nele também que encontram o underground
no espaço público da cidade. Localização territorial importantíssima, na medida em que
os praticantes não estabelecem locais de encontros em praças de bairros, como os
skatistas fazem, ou em pontos específicos dos centros das cidades, como os punks
geralmente fazem, ou faziam. Também não costumam fazer visitas noturnas aos
cemitérios, como os góticos fariam. É verdade que os praticantes do underground do
metal extremo brasileiro vão a alguns locais freqüentados pelos apreciadores de heavy
metal em geral. Eles passam pelas lojas especializadas, como na galeria do rock em São
Paulo e também vão beber e se divertir nos bares onde o fã de heavy metal costuma ir,
como no Garage, na rua Ceará, Rio de Janeiro. Contudo, apesar de não se sentirem
estranhos e de serem vistos como familiares pelos habitués, estes não são os seus
‘pedaços’, para se utilizar de outro conceito de Magnani, aquele “(...) tipo particular de
sociabilidade (face-a-face) e apropriação do espaço urbano” (2002, p. 21, parênteses
incluso nosso). Suas idas a estes locais, freqüentes ou não, antes de corresponder a uma
vontade de dar vazão social aos seus gostos pelo heavy metal, resulta de necessidades,
como o trabalho e reuniões com o responsável pelo selo que irá lançar suas gravações,
ou de escolhas pelo “menos pior” divertimento possível fora de casa (já que vamos sair
de casa para nos divertir, que seja no bar heavy metal ao invés de ser na rave, no forró
ou no samba). O show, este sim, é o ‘pedaço’ do underground. O show transforma o
bar, o clube ou a associação de moradores no espaço onde as práticas do underground
se realizarão por uma noite. Nos dias de show, o praticante não ficará em casa fazendo o
underground, ouvindo gravações, escrevendo cartas e e-mails ou diagramando zines.
Ele vai ao show para viver o underground, para ver e ouvir as bandas ao vivo, para
coletar gravações, vender e trocar zines e conhecer os amigos de carta ou MSN. Enfim,
se o underground é uma espécie de comunidade imaginada (Anderson, 2008), no show
essa comunidade se encontra efetivamente para construir as formas e celebrar todos os
conteúdos da sua imaginação.

***
211

A partir dessa espécie de nó que o show dá no ‘circuito’ nacional, conseguimos


localizar o underground na cidade. Seja em suas apropriações do espaço, seja nas
interações que engendra, o show nos permite tomar o underground do metal extremo no
Brasil como um roteiro traçado no mapa da cidade, um drama tramado em meio ao
contexto da trama urbana. Contudo, modo de estar na cidade circunscrito e pessoal. As
relações underground parecem ser sempre, “restritas”, como os praticantes falam.
Certamente, a precariedade financeira influencia a maneira como as relações
underground se constituem. Em uma prática urbana amadora na qual grande parte dos
custos das suas atividades é financiada pelos próprios praticantes, a falta de dinheiro
estará constantemente impondo restrições em todos os níveis, nas possibilidades
tecnológicas de gravação dos cds e confecção dos zines, na distribuição desses produtos,
na escolha dos locais onde os shows se realizam assim como na sua divulgação.
Outra falta, a de demanda externa, também pode ser arrolada como um fator de
manutenção da pessoalidade e circunscrição da rede de relações underground. Afinal, é
lícito perguntar: quem, além dos praticantes, quer ouvir esse tipo de música, ler esses
zines e ir aos shows? Para quê imprimir cartazes maiores, comprar inserções em canais
de rádio e tevê ou mesmo promover panfletagem em pontos de agito noturno da cidade,
pensam os organizadores que dispõem de maior quantidade de capital financeiro para
divulgar seus shows, se as pessoas que serão atingidas por essa publicidade não estão
interessadas em metal extremo? Essa insignificância, digamos assim, do metal extremo
para o consumidor de música em geral pesa para que suas produção e consumo se
restrinjam, basicamente, ao underground194.
Porém, salta aos olhos a maneira como os praticantes zelam pelas relações
circunscritas e pessoais que definem o underground como uma prática urbana. Salta aos
olhos suas insistências, práticas e discursivas, na busca por uma efetiva “restrição” de
seus fazeres em relação a quem lhes é estranho. Não obstante essas faltas que
constrangem o underground a ser do jeito que é, não há como não notar a vontade de
seus praticantes em mantê-lo do jeito que ele é195. Pois, a filiação a esta prática urbana
parece fazer sentido ao praticante somente se for mantida no nível circunscrito e

194
Dando maior peso a esta falta de demanda, assinalemos que as duas bandas do underground do metal
extremo nacional que foram alvo de demandas externas, Sepultura e Krisiun, aceitaram satisfatoriamente
o maior apelo a sua música e assinaram contratos com gravadoras profissionais.
195
Dando maior peso a essa vontade, assinalemos que Sepultura e Krisiun, a partir do momento em que
começaram a ficar conhecidas para fora do underground, foram classificadas aí como “falsas”, como
bandas do mainstream.
212

pessoal. Para o praticante, é como se o underground fosse um segredo que só é


transmitido aos sussurros para quem ele tem certeza que será capaz de mantê-lo secreto.
Uma comparação entre o show e os desfiles das escolas de samba do Rio de
Janeiro pode nos ajudar a compreender um pouco mais do que se trata tal “restrição”.
No desfile, a escola de samba se abre para a cidade quando sai na avenida e apresenta o
trabalho de bastidores. Um ano todo de criação de enredo, escolha de samba-enredo,
confecção de alegorias, fantasias, adereços e ensaios para brilhar na avenida nesse único
dia de desfile. Parte do significado deste espetáculo, tanto para quem o faz quanto para
quem o assiste, está nessa revelação do trabalho anual na passagem pela avenida, nessa
abertura que a cidade dá para as escolas e as escolas dão para a cidade. Os olhos e as
luzes da cidade voltam-se às escolas e elas buscam corresponder a esta centralidade
brilhando e empolgando (Cavalcanti, 2002, 2006). Já o show, mesmo que seja aberto
para qualquer um, só o localiza quem já está inserido na rede de relações underground.
Todo o trabalho de bastidores, de organização do evento, só se abre para quem está nos
bastidores. As luzes e os amplificadores estão voltados para dentro, para os olhos e
ouvidos de quem tem alguma responsabilidade na sua produção. Soma-se a isso a
distância do local do show de pontos de agito noturno da cidade e temos assim a
“restrição” da qual o praticante fala, ou mesmo uma “oclusão” do underground em
relação à cidade.
Diferentemente daquilo que alguns dos seus praticantes reclamam e para
surpresa de alguns que não tinham conhecimento de sua existência, o underground não
só faz parte da cidade como também, traçando seu mapa e encenando seu drama,
contribui com sua parcela para a construção das realidades urbanas deste país. Contudo,
ficando apenas com essa constatação, corremos o risco de relegar a vivência que as
pessoas que participam dessa prática urbana têm dela. Para elas, o roteiro do
underground é traçado contra o mapa da cidade, seu drama protagoniza o papel de
inimigo na trama urbana. Eis aí a especificidade do underground enquanto uma prática
urbana: ele é um modo de estar na cidade que valoriza simbolicamente a negação da
cidade.
Ora, agora em uma classificação espacial, estamos novamente diante daquele
movimento de distinção do mundo em duas partes antagônicas. Fazendo e participando
do show, adentra-se no âmbito familiar do underground, onde ‘(...) não é preciso
nenhuma interpelação: todos sabem quem são, de onde vêm, do que gostam e o que se
pode ou não fazer’ (Magnani, 2002, p. 21). Mas esse âmbito familiar só se constitui a
213

partir da classificação da cidade como o estranho espaço “aberto e impessoal” do


mainstream, regido pela busca de “fama e lucro”.
Percebe-se, então, como é importante para o praticante que as relações
underground se mantenham circunscritas e pessoais. Independentemente se são
resultados de faltas ou produtos da vontade, comunicar-se nesse registro, digamos,
discreto, dá condições para que a classificação underground versus mainstream se
articule também a partir de uma dimensão espacial. As relações fornecem um ponto de
apoio familiar ao praticante, como se configurassem uma “aldeia”, permitindo que ele
tome a cidade como um terreno estranho, como uma espécie de “floresta”. A partir
dessa dualidade entre interno/familiar e externo/estranho, os praticantes elaboram as
mais variadas experiências da cidade, como “restrição”, “oclusão” ou mesmo, no limite,
“separação”. De qualquer forma, o que combusta essas elaborações internas é o
desconhecimento do público, no sentido forte da palavra, das atividades pessoais e
circunscritas do underground, notadamente o show.

***

Tudo acontece nessa prática urbana a partir da “luta” do underground com o


mainstream. Nos modos de produção musical, nas temáticas dos estilos de metal
extremo, na relação com o heavy metal em geral, na experiência da cidade, em todas as
suas dimensões, trata-se de articular a construção de um “real sub-mundo” em oposição
aos “falsos fluxos centrais”. Dois valores opostos, de naturezas distintas, em constante
conflito e, sobretudo, concernentes única e exclusivamente aos praticantes.
Essa “luta” pode ser traduzida, em parte, como um esforço do praticante pela
construção dessa prática urbana, ou seja, uma “luta” pelo underground. Os praticantes
constantemente se reportam ao “sacrifício” que fazem para manter a “chama do
underground acesa”: uma abnegação para financiar suas gravações, um dispêndio de
tempo para preparar seus zines, um zelo para manter a circunscrição e a pessoalidade de
suas práticas, enfim, uma auto-doação pelo underground.
Nas apresentações das bandas todo esse esforço é recompensado. Mais
precisamente, as apresentações das bandas são os momentos nos quais a “luta” não se
resume a um esforço, mas abarca também uma conquista.
214

5.2.2 – Dramatização da negação: quando o underground vence o mainstream

Aqui sim, nas apresentações, o underground se comunica como um todo. Seu


enunciado destrutivo é celebrado através do meio que é a razão de ser dessa prática
urbana: o metal extremo. Nas apresentações, o mainstream não é mais a indústria
fonográfica ou a cidade. Ele se transforma, agora, nos afetos e valores dessa “sociedade
cristã/democrática/capitalista” tão desprezada nos discursos dos praticantes. Quando é
momento de apresentação, é hora de desprezar esse mainstream, é hora de denegrir e
repudiar esse “mundo” odiado. É hora de “profanação”, de “vociferar contra as almas
cristãs”, de se encantar com a guerra e de imaginar a destruição do “mundo” ao invés de
se desencantar com ele. Consequentemente, é hora de trazer o “verdadeiro” self à luz
das trevas e alimentá-lo com intuição ao invés de soterrá-lo com racionalização. É hora
de substituir a multiplicidade dos papéis sociais pela totalidade do indivíduo dono-de-si.
Dramatizando a negação, a apresentação é o ponto culminante da “verdade”, de
vivência da “autenticidade” que transforma os outros papéis sociais em “falsos”.
A primeira nota tocada por uma guitarra é como a corneta que coloca os
soldados e guerreiros em alerta, avisando que o conflito está instaurado. O vestuário se
transforma em “armadura” de couro, adornada pelos cinturões de bala e cruzes
invertidas. A imitação de sangue e o corpsepaint mascaram seus rostos. O músico já
não responde pelo seu nome de batismo. No show, ele ostenta seu codinome de guerra
underground. As armas/instrumentos foram afiadas/afinados. Os soldados que serão
liderados por estes bravos guerreiros que tomaram o front já estão a postos, na frente do
palco, esperando os comandos de ataque serem transmitidos. Todos conhecem as
estratégias e todos sabem qual é o objetivo do embate. Tudo está pronto para que o
roteiro do metal extremo underground seja encenado. Tudo está pronto para que as
representações perturbadoras das perturbações sejam celebradas.
Cenário montado, as bandas começam suas evoluções. É interessante notar aqui
que, se o enredo da luta é o mesmo para todas as bandas, no entanto, cada uma o encena
de maneira própria. Agathodemon, nas apresentações da curitibana Murder Rape,
sempre tem consigo o “cálice belial” cheio de hóstias. Em dado momento do show, ele
enche sua boca com essas hóstias, mastiga-as por alguns segundos para depois cuspi-las
pelo palco. Já a catarinense Goatpenis, no final da sua apresentação, incinera uma
estrutura metálica em forma de símbolo da paz.
215

Sabbaoth, guitarrista da Goatpenis, incinerando o símbolo da paz em show de 2002, em


Blumenau.

Se não são evoluções performáticas, são evoluções discursivas. Com efeito, a


banda de black metal Catacumba, do Espírito Santo, tem nos discursos do seu vocalista
Gordoroth Vomit Noise, o ápice dos seus shows. Às vezes feitos no início, em outras, no
meio das apresentações, seus discursos são evocações da figura de satanás, uma espécie
de chamado da entidade para que ela se faça presente no recinto onde está acontecendo
o show. As bandas de grind/splatter/gore, por sua vez, geralmente projetam no alto da
parede de trás do palco filmes de violência gráfica explícita, como que oferecendo uma
trilha imagética ao som que tocam. O Flesh grinder, de Joinville, por exemplo, sempre
projeta os filmes do seu colega Petter Baiestorf, renomado diretor de filmes gore do
Brasil, também da mesma cidade.
Adereços, cenários, performances. Os shows das bandas underground cumprem
com todos os quesitos de uma apresentação cênica. Até o lugar é o mesmo para ambos,
o palco italiano, de três paredes e frente aberta para a platéia. E é disto mesmo que se
trata. A apresentação de uma banda dramatiza a guerra do underground contra o
mainstream. Ela coloca em ato estético toda a negação dos valores e afetos do “mundo
cristão/democrático/capitalista” que o metal extremo subscreve. Porém, o show de metal
extremo underground é uma apresentação de música complementada por elementos
cênicos. Estes, oferecendo uma tradução visual dos sons, ajudam as bandas a contar
suas histórias. Ajudam muito, é verdade, na medida em que a sinestesia entre visão e
audição, no show, permite uma cognição mais certeira da mensagem. Contudo, a música
se sustém como o principal veículo narrativo do show, não só por ser a linha mestra da
dramatização da negação (afinal, trata-se de uma apresentação de música), mas por ser
também o principal elemento organizacional dessa prática urbana. Nenhuma banda de
216

metal extremo underground conseguirá dramatizar a negação se não a fizer por meio de
um metal extremo “pesado, agressivo e brutal”.
Um argumento da filósofa norte-americana Suzanne Langer (1942) pode nos
ajudar a elucidar a função narrativa da música no show. Segundo Langer,

Se a música tem alguma significância, essa é semântica e não sintomática. Seu


‘significado’ não é, evidentemente, um estímulo para evocar emoções, nem uma
sinalização que anuncia essas emoções; se a música ‘tem’ algum conteúdo emocional,
ela tem no mesmo sentido que a linguagem ‘tem’ seu conteúdo conceitual –
simbolicamente. A música não deriva dos afetos, nem se destina a eles; mas nós
podemos dizer, com certas reservas, que ela é sobre eles. Música não é a causa ou a cura
dos sentimentos, mas sua expressão lógica196 (idem, p. 218, aspas da autora).

Langer, dando continuidade ao topos acerca da música constituído por alguns


filósofos alemães197, enfatiza a condição eminentemente arbitrária dessa arte. Para
Langer, a música é uma forma simbólica que, como qualquer linguagem, denota
conteúdos não definidos previamente. Porém, se a música é aproximada da língua, em
outro texto Langer (1977, p. 110) também percebe diferenças entre ambas.
Diferentemente das palavras, que denotariam conceitos, o âmbito denotativo da música
seria a ‘vida afetiva’ (inner life) do humano. Mesmo negando qualquer relação de
emulação entre música e sentimento, para a autora nossos afetos guardariam
semelhanças de propriedades formais com a música, pois ambas estariam baseados em
padrões de movimento e pausa, tensão e relaxamento, concordância e discordância,
excitação e fúria, longas durações e mudanças súbitas (idem). Sendo assim, Langer
conceitua a música como um símbolo ‘presentacional’ (presentational) do tempo,
espécie de símbolo sinestésico, diferente da simbolização representacional lingüística.
Para a autora, ‘(...) música faz o tempo ser audível198’ (op. cit).
Retendo essa dimensão da música como ‘expressão lógica’ dos sentimentos para
a qual Langer aponta, podemos dizer que não há qualquer violência, maldade ou mesmo
agressão, inerentes nessa música que os praticantes definem como “pesada e brutal”.
Essas propriedades afetivas são imbuídas ao metal extremo de acordo com a semântica
simbólica do contexto no qual ele é produzido, o underground. Aí sim, a violência, a

196
Tradução livre de: “If music has any significance, it is semantic, not symptomatic. Its ‘meaning’ is
evidently not that of a stimulus to evoke emotions, nor that of a signal to announce them; if it has an
emotional content, it ‘has’ it in the same sense that language ‘has’ its conceptual content – symbolically.
It is not usually derived from affects nor intended for them; but we may say, with certain reservations,
that it is about them. Music is not the cause or cure of feelings, but their logical expression”.
197
Sobre a filosofia da música de Langer em relação à tradição filosófica alemã sobre essa arte, ver
Sheperd & Wicke, 1997 e Videira, 2007.
198
Tradução livre de: ‘(...) music makes time audible’.
217

maldade e a agressão serão escutadas nessa música por ela estar sendo feita em oposição
aos afetos e valores considerados mainstream199. É precisamente a denotação dessa
oposição à ‘vida afetiva’ do mainstream que a música dramatiza no show. Apoiada por
elementos cênicos200, toda essa negação do bem, do corpo são e da mente sã, da alegria
e da vida, não só é escutada como é vivenciada pelos praticantes juntos.
Aqui está a “força” do show, como os praticantes falam. Por piores que sejam as
qualidades acústicas do recinto e dos amplificadores, como usualmente são, ressoará do
palco, em alto volume, aquele som que eles tanto amam, que chamam de metal extremo
“pesado e agressivo”, de “brutalidade em forma de som”. Com seus corpos agarram
esses sons totalmente. Os digerem se abraçando e chacoalhando a cabeça para frente e
para trás juntos, se arremessando uns nos outros ou mesmo ficando parados, de braços
cruzados, comentando as particularidades musicais da banda que se apresenta. Ouvem
juntos, vivem juntos a música que os aproxima, que os liga e os assemelha. Neste
sentido, a avaliação “boa” da música que está sendo apresentada, de certa maneira, já
está garantida. Pois, a avaliação estética da música tocada no show está envolta por este
movimento de produção de um ambiente comunal pelo som. Tudo concorre para tanto.
As pessoas estão lá, o volume está no “talo”, é noite e estão afastados dos seus papéis
sociais encenados no mainstream. À banda cabe “descer o braço” nos instrumentos e
fazer aquilo que ensaiou a semana toda: sua música. O resultado desses elementos em
conjunto é aquilo que os praticantes chamam de “força” do show: viver o underground
sem restrições e celebrar a perturbação do “mundo” sem contradições.
Portanto, não é sem razão que os praticantes se referem ao show como uma
celebração. Este momento é outro, diferente das vidas ordinárias que levam além do
underground e diferente mesmo em relação às outras atividades desta prática urbana.
Seu caráter extraordinário se encontra justamente naquilo que DaMatta (1979) aponta
como uma das qualidades do ritual, o deslocamento de perspectivas em relação ao
cotidiano, espécie de instalação momentânea de um outro tempo201. Pois, nas

199
O musicólogo Ronald Bogue (2004) argumenta que essa oposição se expressa no próprio plano das
técnicas e práticas musicais do metal extremo, quando seus músicos procuram compor se distanciando de
conformações muito utilizadas da música popular.
200
Na escuta fora do show, a música será apoiada pelas letras e iconografias das gravações.
201
Tal deslocamento de perspectivas que o ritual faria em relação ao ordinário proposto por DaMatta,
arma aquela tipologia dos rituais brasileiros que o autor trabalhará: carnaval como inversão, paradas
militares como reforço e procissões como neutralização. Não pretendemos arrolar o show em qualquer
um desses tipos, apesar de que ele poderia ser visto como uma inversão. Retemos apenas esse sugestivo
movimento de deslocamento e instalação de outro tempo que a teoria do ritual de DaMatta, seguindo os
passos de Durkheim (1996 [1912])) e Evans-Pritchard (2004 [1976]), oferece.
218

apresentações, quem conta o tempo não é o relógio. É uma baqueta, uma palheta e uma
garganta. No show, é tempo de underground, é tempo de música.

Cartaz digitalizado do show quinta celebração das negras legiões de guerra, realizado em
Teresina, Piauí, em 2005.

Uma música que os faz viajar no tempo, para sermos mais precisos. Por meio
dela, vivenciam um instante atávico de totalidade, quando o mainstream ainda não tinha
se lançado no curso irreversível da multiplicação. Uma música que os faz viajar para
dentro de si mesmos e, junto com ela, trazer lá de dentro aquele ser “verdadeiro”, cheio
de valores e princípios. Uma música que, ouvida por muitos ao mesmo instante, instala,
por algumas dezenas de minutos, a eternidade da comunidade solidária do metal
extremo brasileiro. Dramatizando a negação, a música permite que os praticantes
saboreiem, por uma noite, a vitória sobre o mainstream. Em um mesmo movimento,
219

rompendo para fora e unindo para dentro, a música apresenta o underground como um
todo para o praticante. Para falar junto com eles, ela é a brasa que mantém a “chama do
underground acesa”.

Doom-Rá, mantendo a chama do underground literalmente acesa em show de 2005,


Goiânia.

***

O underground do metal extremo tem a destruição como valor, a perversão


como padrão de normalidade e a glorificação da morte. Eis aí um coletivo que estaria
tomando O Caminho da Mão Esquerda, para usar a imagem do título da gravação da
brasiliense Vulturine, em detrimento do mainstream, do valor direito, este que segundo
Hertz (1928 [1909]), rege e conserva a “boa” criação202.
Contudo, a virada à esquerda que esta prática urbana faz se refere, menos a uma
valoração positiva do mal absoluto, e mais a uma espécie de ataque, a um movimento de
transgressão em relação a tudo aquilo que, sob sua ótica, recai sob a égide do

202
Ainda pensando a partir de Hertz, no underground do metal extremo se esboça, literalmente, uma
preeminência da mão esquerda. É quase uma regra social, independentemente se o praticante é canhoto ou
não, que se apertem as mãos esquerdas no momento de cumprimento. Comecei perceber isso quando fui
cumprimentar Agathodemon, baixista do Murder Rape, estendendo a mão direita e ele virou sua mão
esquerda para me cumprimentar. Ele é destro, qualquer show da sua banda atesta. Mas cumprimenta com
a esquerda. A partir deste ocorrido, comecei a cumprimentar os praticantes com a mão esquerda e não
seria exagero dizer que essa postura desarmava, de saída, algumas desconfianças com minha pessoa que o
praticante poderia ter.
220

mainstream. As fotos de troncos humanos abertos, com o intestino delgado à mostra,


repulsam? O coito anal com o pulso parece uma perversão? As letras que glorificam o
diabo como o senhor do mal parecem demoníacas? O vício cantado como virtude parece
vil? E, sobretudo, a música que embala esses motivos incomoda com sua velocidade,
com sua distorção e com o privilégio dado ao pulso? Tudo isso agride? Pela perspectiva
do underground, claro que sim. Agride o mainstream, e tudo que o fere está no rol dos
motivos a serem tematizados pelo estilo musical que é a razão de ser desta prática
urbana.
Mas esta agressão musical explícita e extrema fere a quem? Agride o
mainstream, mas quem é o mainstream? Para sermos mais precisos, quem está ouvindo
essa música? Absolutamente ninguém além dos próprios praticantes. Sublinhemos
novamente: underground e mainstream são valorações concernentes única e
exclusivamente às pessoas que ingressam nessa prática urbana. O primeiro termo indica
a “aldeia”, o “espírito”, a magnânima identidade, o mesmo, enquanto o segundo, a
“floresta”, o “fantasma”, a pusilânime alteridade, o outro. Portanto, a luta do primeiro
com o segundo, antes de almejar, de fato, a destruição do outro, se traduz, na prática, em
uma construção do mesmo. Os ataques são, sobretudo, uma defesa da “filosofia de vida
extrema”, desta “ideologia” que os praticantes estão constantemente a colocar acima da
música.
É verdade que alguns praticantes afirmam a prevalência da “ideologia” sobre a
música na chave de uma crença religiosa. Chegamos a coletar depoimentos, e
preferimos não indicar de quem, nos quais o praticante diz acreditar na existência de um
local metafísico chamado inferno, governado por uma entidade chamada satanás, onde a
tortura das almas pauta o cotidiano. Ele quer ir para lá quando morrer. Também
chegamos a visitar casas de alguns praticantes, e preferimos não dizer onde, que tinham
um de seus cômodos transformado em altar satânico, repleto de velas vermelhas e
pretas, com a cruz católica invertida pendurada na parede e crânios, reais ou não,
espalhados pelo recinto. Assim como participamos de um show fechado de black metal,
que preferimos não indicar quando, onde uma das bandas, de fato, matou um porco
durante sua apresentação. Ou seja, essa “filosofia de vida extrema”, dependendo do
praticante, pode sim resultar em práticas que não se explicam totalmente pela música.
Podem ser concebidas como religiosas ou mesmo como práticas paramilitares, como
221

parece ter acontecido nos países nórdicos, notadamente Noruega203. Contudo, no Brasil,
como um coletivo, esta prática urbana faz música. Uma música plena de significados
subjetivos, sociais e morais para quem a faz, uma música que é causa e condição de uma
maneira de ser concernente aos seus músicos e apreciadores. O underground do metal
extremo no Brasil é uma “filosofia de vida extrema”, mas composta e veiculada pela
música. O elo dessas pessoas não é a religião, a família, a escola, o trabalho ou o
esporte. É a prática de um gênero musical.
É isso que os praticantes reclamam quando colocam a “ideologia” no primeiro
degrau de importância. Dizendo que o metal extremo underground é uma “filosofia de
vida extrema”, antes de significar certa funcionalidade da música para se buscar outros
fins, os praticantes estão afirmando que a música que eles fazem não pode ser
compreendida como uma mera fruição estética, como uma arte contemplativa que serve
unicamente à abstração, à reflexão ou ao deleite dos ouvidos. Não. Essa é a maneira que
o mainstream ouve música. Eles entendem que ouvem metal extremo com seus corpos,
eles fazem dessa música uma relação social. Compondo e ouvindo metal extremo no
underground, eles engendram maneiras de sentir, de ser, de se mover e de pensar, eles
se animam e saem da apatia, esse “problema” que os praticantes detectam na pessoa do
mainstream. Pois a pessoa “preguiçosa e fraca” que relega a ação social às máquinas e a
fonte da sua vontade ao divino, também é a pessoa que “ouve a música com o cérebro”.
Eles não, eles são artesãos que fazem dos seus instrumentos, apêndices dos seus corpos,
dos seus corpos, a fonte de suas vontades e das suas vísceras, fazem ouvidos.
Por entenderem que superaram a apatia tão presente neste mundo
“cristão/democrático/capitalista”, eles se vêem como seres autênticos. Eles acharam
seus “verdadeiros” selves se afastando dos “falsos fluxos centrais”. Eles se acharam em
um “sub-mundo” onde concebem o fluxo do tempo como menos civilizatório e
fragmentado, mais atávico e total, sincronizado com seus “verdadeiros” ser para si.
Neste sentido, podemos comparar o underground do metal extremo com o movimento
punk, tal como Caiafa (1985) os percebe. Para a autora, se é que a entendemos, o punk
desafia maneiras de ser, estar e de agir “normais” acelerando seus exercícios de ser,
estar e agir: “no exercício de suas estratégias, acionam uma velocidade que ultrapassa os

203
Aliás, que ainda acontecem. Países como Polônia e Ucrânia assistiram em 2006 e 2007,
respectivamente, queimas de igrejas históricas realizadas por pessoas ligadas ao black metal. No Brasil,
ao que sabemos, o único fato semelhante foi a depredação de uma igreja em Criciúma, em 2003, pelos
membros do Murder Rape. Eles foram presos na mesma noite do ocorrido e respondem, até o momento,
2008, processo judicial por vandalismo.
222

limiares da percepção” (op. cit, p. 142). Daí seu caráter de nômades. Eles aparecem para
desaparecer e vice-versa: “porque os punks trabalham mesmo esse interstício absoluto
da iminência pela aceleração que imprimem a tudo de que lançam mão. O punk se
realiza aí, no súbito dessa tensão” (op. cit). O punk aparece, mas quando se tenta flagrá-
lo, ele não está mais lá. Este é o desafio punk, agir em uma espécie de overground. Em
constante movimento veloz, não oferecer possibilidades de definições do que fazem,
não se deixar representar. Para a autora, este movimento punk lhe pareceu de tal
maneira contundente que sua própria escrita, a princípio uma tarefa de definição, ela
mesma reconhece, precisou ser um tanto quanto punk: “E também os contornos que foi
preciso fazer enquanto eles me provocavam a pensar levaram-me a evitar a luz de uma
explicação sem mistérios, e a aceitar que fosse noite também na escritura” (idem, p.
143).
No underground do metal extremo, o tempo foi freado, o tempo foi retornado até
alcançar a totalidade de uma comunidade solidária na qual todos os membros, mesmo
que não se conheçam, imaginam uma comunhão a partir de uma oposição básica. Ora,
nada mais sedentário do que uma comunidade de metal extremamente pesado que quer
parar o tempo. Mas se, ao invés de acelerar, o underground freia, é nessa mesma
manipulação do tempo e/ou do movimento que o punk faz, que ele concentra aquilo que
podemos também definir como um desafio ao seu inimigo, o mainstream. Na verdade,
um desafio de negação. O underground quer se separar do contexto que o circunda. Ele
não encara, ele foge para o “sub-mundo” e daí “luta” com seu inimigo. As relações
circunscritas e pessoais por onde ele se realiza, sendo percebidas pelos praticantes como
um contrário das relações mainstream, permite que essa “luta” seja vivenciada, contudo,
de certa maneira, latente. Sua contundência, quando ela atinge a possibilidade de ser
vivenciada como uma vitória, acontece nas apresentações das bandas.
Mas, ao mesmo tempo em que confiam na eficácia das suas campanhas, os
guerreiros do underground sabem que quando as luzes acenderem e o sol raiar, as armas
serão depostas e o conflito cessará. Dormirão e, como provavelmente o dia seguinte será
um sábado ou domingo, acordarão para terminar as tarefas dos seus trabalhos não
cumpridas durante a semana. Levarão seus filhos e seus cachorros ao parque. Ligarão
para seus pais e almoçarão na casa dos seus avós. Voltarão a viver seus papéis no
mainstream até o próximo final de semana, quando dramatizarão, mais uma vez, aquilo
que Roudinesco (2007) chama de ‘parte obscura de nós mesmos’.
223

POSFÁCIO

Para salir del sueño en el que estoy, por decir así, enredado, debo hacer fuerza con
todo mi cuerpo, porque es todo mi cuerpo el que está enredado en él.
Juan José Saer

Deve ter sido com cinco ou seis anos, quando minha mãe me deixava com uma
babá rockeira enquanto ia trabalhar, a Rose, fã de Janis Joplin e Jimi Hendrix, que
gostava de “brincar de show” comigo. Vestia-me com roupas rasgadas, colocava uns
óculos escuros no meu rosto e imaginávamos ser rockstars tocando para uma multidão a
tarde toda. A Rose sabia criar um clima de rock tão bem que apelidou as reclamações do
morador do andar de baixo de censura, a velha inimiga dos rockeiros. Não tenho
certeza. Talvez foi com uns sete anos, quando, por falta de dinheiro, fomos morar no
pensionato da minha vó, em Londrina. Um dos hóspedes, o Lee, me deu um disco do
Whitesnake, tenho ele em minhas mãos agora, o qual escutei, literalmente, por uns dois
meses seguidos, até o momento em que ganhei um outro disco dele, do AC/DC. Não sei
ao certo. Talvez começou com a minha mãe mesmo que, apesar de não tocar nenhum
instrumento, era grande apreciadora de música, de Elis Regina (meu nome, se tivesse
nascido uma menina) à Rolling Stones. Ela sempre estimulou minha inclinação pela arte
do som em geral, me matriculando em aulas de canto e me dando discos e revistas sobre
música, e pelo rock em si, deixando meus cabelos crescerem quando eu tinha uns oito
anos, por exemplo. Decisão corajosa. Em Londrina, na década de 80, ter um filho de
oito anos com os cabelos chegando ao meio das costas era quase um ato de vandalismo
e, obviamente, a vândala era ela e não eu.
É, foi tudo isso, e algo mais que não sei explicar, que fez com que a música
pesada se enredasse em meu corpo desde a infância. Minha memória não consegue
avistar um momento, uma época da minha vida na qual ela não esteja presente. Eu
sempre a quis perto, e os adultos que cuidavam de mim sempre deixaram ela se
aproximar. Havia certo excesso, mas a música pesada não chegava a ser um vício, algo
que me fizesse pular certos procedimentos comuns de um menino de classe média baixa
morando no interior do Paraná na década de 80. Fora os cabelos longos e a estatura um
tanto acima da média dos meus colegas, tive uma infância passível de ser considerada
“normal”. Uma infância com uma trilha sonora que alegrava e acalmava, que dava
material para brincadeiras e para amizades, enfim, uma infância com uma paixão. Se
224

alguns meninos tiveram como paixão os carros, os livros, os esportes ou mesmo as


brigas, eu tive pelo rock.

Eu, com um ano e meio, ao lado do meu chocalho preferido, a caixa de som.

Não deu outra. Na adolescência, já em Curitiba, essa paixão foi alçada ao


estatuto de identidade. Eu quis, eu precisava dizer para todo mundo que eu curtia
aquela música, agora mais pesada, menos pedras e mais metal, menos rolantes e mais
estanques. Eu tinha que estar vestido de preto, minhas camisetas tinham que trazer
nomes de bandas nas suas estampas e para qualquer lugar que eu fosse, o walkman e um
estojo com vinte fitas, cheio de adesivos colados, tinham que estar juntos comigo. Para
usar alguma doxa psicológica, o heavy metal foi o meio pelo qual me objetivei na
adolescência, foi o elemento pelo qual afirmei minha identidade, tanto para mim quanto
para os outros. No colégio onde estudei, uma escola laica sem nenhuma propensão
humanística (meu amigos se tornaram engenheiros, advogados e médicos), logo fui
apelidado de “metaleiro”, em boa medida um apelido carinhoso, plenamente aceito por
mim, mas com uma leve depreciação implícita. Não fui um adolescente “deprê”, muito
menos solitário ou introspectivo acima da média, mas com o apelido eu começava a
sentir o atrito que gostar de heavy metal pode causar. Eu era um daqueles caras
“estranhos”, mas bem aceito, do colégio. Em casa, novamente, a anuência da mãe.
Mesmo achando um tanto insípida aquela música que ressoava do meu quarto e de vez
em quando puxando umas conversas comigo sobre o que significava aquela “história de
225

heavy metal” para mim, ela, jornalista “moderninha”, sempre com seu ideal de uma
educação liberal, deixava a minha relação com a música pesada seguir nos seus próprios
termos. Até dava uma mãozinha para a relação continuar fértil. Eu tinha doze anos
nessa época e, no meu aniversário, ganhei dela minha jaqueta de couro. Pronto, agora
sim eu era um verdadeiro “metaleiro”.
Mas ainda não era o suficiente. O reconhecimento da minha identidade
“metaleira” pelos meus conhecidos não bastou. Eu queria mais heavy metal, mais peso,
mais volume, mais força, eu queria ver até onde essa relação poderia ir. Ela foi fundo
com os shows. Ah, como eram legais os primeiros shows. Saber que haviam outras
pessoas no mundo como eu, ouvir aquele som ao vivo, com meus ídolos bem perto. As
filas imensas não desanimavam e as esperas intermináveis não cansavam, nenhum sol
escaldante e nenhuma chuva fria, nada tirava o gosto doce daqueles momentos. Lembro
de um show em particular, do Sepultura, em 1994, quando choveu torrencialmente
durante a apresentação ocorrida a céu-aberto. Show? Aquilo foi um batizado. Dali em
diante não havia mais volta. Urrando e “se quebrando” com mais de trinta e cinco mil
pessoas, sob uma tempestade, ao som do Sepultura, me transformou em alguém que eu
ainda não conhecia muito bem. Para ser mais exato, dissipou alguém de mim. Junto com
meu par de tênis e minha camiseta do Ramones, lá na pedreira (pedreira Paulo
Leminski, local onde aconteceu o show) ficaram minhas dúvidas e hesitações. O alguém
que sobrou queria mais heavy metal ainda. Na verdade, esse alguém queria ser o heavy
metal.
Foi então que comecei a freqüentar os shows da cena local de heavy metal, as
apresentações de bandas brasileiras das quais pouco se lia nas revistas e quase nada se
ouvia falar nas rádios. Descobri a existência dessas apresentações junto com meu primo
Carlos, quase um irmão que, quatro anos mais velho do que eu, com seu ingresso no
curso de letras, estava conhecendo os músicos de heavy metal da cidade na
universidade. Recém chegado de Londrina, meu primo teve seu catolicismo descascado
pelas ciências humanas, e assim, músico como seu pai, começou a curtir música pesada
e a querer tocá-la com seus novos amigos. Eu acabei entrando no vácuo dessa inserção
dele nas relações metálicas curitibanas e, em pouco tempo, já tinha criado certa
autonomia no grupo. Em poucos meses eu passei da posição de primo do Carlos à de
Leozão. Eu era, agora, com quatorze anos, reconhecido como um freqüentador do
underground da música pesada na minha cidade.
226

Bem pesada, vale notar. Não se tratava mais do heavy metal bem assentado na
indústria fonográfica, tipo Iron Maiden e Black Sabbath. Nem o Sepultura eu gostava
mais. Foi nessa época que comecei a ouvir metal extremo, música muito rápida e muito
grave a qual, de certa maneira, correspondia a minha incessante busca pelo limite que a
minha relação com a música pesada poderia ter. O metal extremo aplacou minha ânsia,
minha sede pelo limite. Em geral, nunca gostei de metades, de meio-termos, e o metal
extremo preencheu totalmente minha paixão pela música. Soma-se a isso o fato de que
essa plenitude aconteceu não como um consumo de música, mas em meio a um grupo
de pessoas que estavam fazendo esse tipo de música. O meu tempo livre era gasto
totalmente nos ensaios da “galera”, nas tardes em frente à Jukebox, loja de discos da
cidade, e nas festas de fim de semana na casa de alguém do grupo. Como esse grupo
não se limitava a Curitiba, quando me era possível ainda viajava para outras cidades,
principalmente em Santa Catarina, para encontrar outra “galera” amiga ou para assistir o
show de alguma banda da qual tinha ouvido a fita demo e gostado muito.
Subjetivamente, o impacto dessa forte interação metálica me fez sentir que, sim, eu
estava sendo heavy metal, eu estava realizando aquela já ancestral paixão pela música.
Mas ainda faltava o passo mais importante: fazer esse tipo de música.
Contudo, quando minha constante presença no underground dava a entender que
a entrada em alguma banda, como vocalista, era iminente, fui obrigado a romper minhas
relações metálicas no Brasil. Eu estava com quinze anos, minha mãe havia falecido dois
anos antes e, como filho único criado de certa maneira distante do pai204, estava difícil
de agüentar a “barra pesada” da perda, principalmente porque minha vó, então com
setenta e sete anos, já morando em Curitiba, estava sofrendo muito com a perda da cria
mais nova de sua prole de seis filhos. Retrospectivamente, acho que, mesmo tendo já
tendo alguma maturidade afetiva, eu não estava suportando tal contexto lúgubre e
desolador. Vivia irritadiço e, devo confessar, “perdido”. Sabendo que minha vó teria no
meu primo e na minha tia um suporte, escapei, fugi por meio de um intercâmbio nos
Estados Unidos.
Mas o destino conspirava, os “deuses do metal” intervieram, obviamente, em
favor deles. Explico: nesses intercâmbios culturais, o jovem escolhe o país, mas não

204
Apesar de nunca terem se casado, meus pais tentaram morar juntos algumas vezes durante minha
infância, sempre sem sucesso. Eu acabava ficando com minha mãe e, como meu pai era cinegrafista,
sempre estava se mudando atrás de uma produtora ou rede de televisão que pagasse melhor. Contudo,
nunca se ausentou da sua “função paterna”. Por telefone, me proibiu de fazer a tão desejada tatuagem de
quatro demônios dilacerando um padre, quando eu tinha dez anos, coisa que minha mãe, liberal demais,
deixaria.
227

escolhe a cidade para onde vai. Esta é decidida na medida em que as vagas nas escolas
vão surgindo e qual agência, de diversos países, está na vez para receber tal vaga.
Escolhido os E.U.A, era muito provável que eu fosse estudar em alguma cidadezinha de
algum estado rural, tipo Idaho ou Arkansas. Afinal, a política do intercâmbio para este
país aconselha não mandar os jovens para estados “agitados”, como Nova Iorque ou
Flórida. Muito bem. Onde eu fui parar? No estado mais metal dos Estados Unidos, na
sua cidade mais metal, Califórnia, Los Angeles. Não sendo o caso de adentrar
pormenorizadamente na minha estada, vale sublinhar dois efeitos que ela teve em mim.
Primeiro, quando os norte-americanos me diziam que eu era “estranho” por ser
brasileiro e, ao mesmo tempo, branco, fui levado a compreender que ser branco aqui e
ser branco lá se tratava de coisas diferentes e, assim, a semente do interesse pela
antropologia foi plantada. Segundo, sim, eu me acalmei e consegui “achar-me” morando
por um ano longe de um contexto familiar pesado e dolorido, mas, de modo algum
fiquei longe da música pesada. Pelo contrário. Os shows em quase todo fim de semana,
as dúzias de cds e fitas do metal extremo norte-americano e uma convivência tão intensa
com o underground de lá quanto o daqui, fizeram com que eu voltasse sedento por mais
pancadaria musical. Eu não iria sossegar totalmente até subir em um palco, vestido em
couro preto, pra urrar toda a minha paixão pela música pesada.
Em 1997, com menos de dois meses no Brasil, eu já estava ensaiando como
vocalista de uma banda205 que se propunha a fazer um doom metal, estilo cadenciado,
explorador da verve melancólica do heavy metal. Já nos primeiros encontros, nós cinco
achamos que a banda tinha “química”. Os guitarristas apareciam com idéias de
melodias, o baterista e o baixista logo encaixavam o ritmo e, por fim, eu achava uma
textura vocal e uma letra para as composições. Em alguns meses, tínhamos cinco
canções prontas, número ideal para fazer nossa estréia nos palcos. Apresentação
arranjada com um conhecido pra dali umas duas semanas, tocaríamos em um show com
mais quatro bandas. Espera interminável. Lembro que dormi muito mal nesses dias, não
tinha fome nem atenção nas aulas do meu segundo ano do segundo grau. No dia do
show, eu literalmente tremia, não de medo, mas de ansiedade. Este era o dia em que a
minha relação com a música pesada seria testada, eu estaria colocando a prova minha
aptidão como um “verdadeiro” headbanger (o “metaleiro” já tinha ficado pra trás, junto
com a música pesada da indústria fonográfica).

205
Omito o nome da banda, ainda ativa, a pedidos do seu único membro original remanescente.
228

Sobre a apresentação em si, não tenho lembrança alguma. Espécie de transe no


qual minha memória pára no momento em que subi no palco e volta na hora em que
desci dele. Diz meu primo que a apresentação foi boa e eu parecia estar “incorporado”
por algum demônio. Depois desse show, além de Leozão, fiquei conhecido no
underground curitibano como diabo albino, devido a cor da minha pele e a minha
performance no palco. Passei no teste, creio eu, suportei as demandas específicas deste
rito de iniciação. Agora eu não era mais um mero freqüentador do underground. Eu
cantava em uma banda, eu já tinha subido no palco, eu estava fazendo heavy metal, o
meu heavy metal.
Com nossa estréia nos palcos, também começou aquela interminável troca de
cartas com zines do país todo, a fim de divulgar nossa banda por meio de entrevistas e
distribuição de releases (espécie de peça publicitária underground montada com um
pequeno texto informativo sobreposto a foto da banda). Também começamos a procurar
um estúdio onde poderíamos gravar duas ou três canções para nossa primeira fita demo,
a qual, de fato, ficou pronta seis meses após nosso primeiro ensaio. E, claro, essas
atividades eram pontuadas pelos ensaios, duas ou três vezes por semana, e shows,
muitos shows, quase um por mês, nos quais, vale dizer, realizava meu desempenho com
muito mais confiança e consciência. Se, no primeiro show, o diabo albino me
“incorporou”, nos seguintes, paulatinamente eu fui aprendendo a “incorporar” ele, a ser
o sujeito da ação.
Em meados de 2000, tanto eu quanto os outros integrantes achamos que o
melhor seria a minha saída. Pela parte deles, disseram que o meu vocal não estava se
encaixando mais na proposta da banda. Eu concordei. Após três anos de imersão no
underground, de dedicação diária à banda e ajuda pontual a outras bandas, como
promotor de shows, ajudante de palco, letrista e até vocalista, alguma coisa tinha se
amainado em mim. A “chama” do underground, como definíamos a vontade de colocar
em curso nossa paixão pelo metal extremo, para mim, perdeu seu brilho. Até hoje não
sei dizer bem o que aconteceu. Por um lado, o que eu percebia nitidamente na época,
um cansaço, por outro, algo que percebo só hoje, outros gostos artísticos além do metal
extremo e a vontade de ingressar em outras atividades além do underground estavam
surgindo em mim. Não que eles fossem contrários mas, de certa maneira, eu não via
como buscá-los, esses gostos e vontades, dentro do metal extremo underground, uma
prática urbana que, como vimos ao longo do texto dessa dissertação, exerce forte
constrangimento no gosto dos seus agentes. Eu estava lendo Marx, Machado de Assis e
229

Manuel Bandeira; eu estava indo a museus e teatros; no cinema, outros filmes além do
Exorcista e do Bebê de Rosemary estavam chamando minha atenção; eu estava
pensando em entrar para o curso de ciências sociais para entender melhor as diferenças,
enquanto no underground era sempre mais do mesmo, era sempre mais e mais metal
extremo. Minha paixão por essa música ainda era forte, mas certo sufoco travou minha
glote, o underground não descia mais, ficava engasgado. É óbvio, o meu vocal não
encaixava mais na proposta da banda porque eu não encaixava mais naquela proposta de
vida. Eu queria mais ainda, mais do que o underground podia me dar. Por essa época,
com dezenove anos, eu já podia me considerar um veterano do metal extremo
underground. Estava na hora de sair de cena e aposentar o diabo albino.
Em 2001, de fato, entrei para o curso de ciências sociais na UFPR e, querendo
encontrar maneiras de me afastar do underground, impregnei-me com tudo aquilo que
estava presente no cotidiano de um aluno desse curso. Imbuído de boa dose de
ingenuidade, entro para o movimento estudantil, tanto no centro acadêmico do curso
quanto no diretório da universidade. Porém, irritado com a postura de “esquerda festiva”
do movimento, não demorou seis meses para eu me afastar dos “estudantes
profissionais” e me aproximar dos livros. Já no segundo semestre do curso eu consigo
uma bolsa de iniciação científica e começo a me dedicar “pra valer” às aulas. Todas
elas. Até o momento da monografia, apesar de ter entrado no curso para estudar
antropologia, a ciência política e a sociologia me interessavam tanto quanto. Minha
primeira bolsa de iniciação era com um professor de política clássica e a segunda, com
uma professora feminista (ela fazia questão de deixar isso bem claro) de sociologia do
gênero.
Entrementes, devo confessar que, apesar de estar gostando muito do curso,
aquele senso comum de “vamos mudar o mundo e ao mesmo tempo ser felizes e sem
preconceitos” que pairava no ar das conversas dos alunos de modo algum me apetecia.
Eu não conseguia tragar esse clima lânguido, aberto e democrático dos nossos
encontros. Assim como tentei me requebrar ao som do forró, do maracatu e do samba
que animavam nossas festas, mas meu corpo só tinha aprendido a chacoalhar a cabeça
para frente e para trás ou a se arremessar violentamente ao encontro de um outro.
Enfim, todas as categorias que operam nas relações dos alunos de ciências sociais me
eram estranhas. O underground do metal extremo tinha me ensinado a repudiá-las. E
claro, eu acusava e eles me acusavam. O apelido de diabo albino deu lugar aos de
“reaça”, “mão forte (do Estado)” e até mesmo “polícia”...“iihh, lá vem o polícia”, meus
230

ouvidos detectaram quando me aproximava de uma roda de colegas. Se não era


acusação, era estranhamento. Ao longo do curso, ouvi muitas vezes a pergunta “escuta,
o que você tá fazendo aqui no curso?” e também ouvi essa, de uma professora, quando
fui perguntar se, no próximo semestre, ela estaria ofertando a cadeira de sociologia da
comunicação: “mas você não é da educação física?”.
Como deu pra perceber, mesmo comparecendo pouco aos shows e só
convivendo com quem do grupo considerava amigo, não me desliguei totalmente do
underground durante o curso de ciências sociais. E isso me incomodava, avaliação que
faço hoje. Sim, eu ainda escutava e adorava metal extremo, mas deste tipo de música só
o gosto estético eu queria manter. Todos os valores e percepções de mundo que vinham
junto com ele (esses que acabamos de analisar na dissertação), e certamente em mim
incutidos, eu tomava como um ranço que não sabia como lavar, como um claustro
invisível de onde não sabia me libertar. Afinal, como fazer antropologia, como perceber
as diferenças se utilizando em boa medida do corpo como instrumento de coleta de
dados, se seu corpo quer esmagá-las? Como apreender o ponto de vista do outro quando
você quer destruir o outro? O metal extremo, assim o julgo, quando é levado a sério
pelo seu apreciador, ou seja, quando é acatado não só como um gosto estético, faz com
que você se torne um ser arrogante e presunçoso. Eu não gostava disso e compreendi
esse desgosto, mais ou menos conscientemente, em meio ao curso de ciências sociais,
uma realidade totalmente dicotômica daquela que ajudava a construir dois, três anos
antes.
Enfim, havia pendências íntimas a resolver com o underground do metal
extremo. Já que eu não mais participava das suas atividades e encontros, mas mesmo
assim, ele ainda se manifestava em mim, contra a minha vontade, então nossa separação
não tinha sido bem assimilada. Será que eu ainda o queria? Será que eu me arrependia
de ter-me afastado dele? Ou será que, independentemente dele, a concepção que eu
tinha das ciências sociais não me apetecia? Sim, pois o desgosto com ele surgiu em
grande medida pelas leituras dos textos que eu fazia nos cursos e pela convivência, por
mais conturbada que fosse, com os colegas. Talvez, se eu tivesse no curso de educação
física, ou qualquer outro, o desgosto não teria se levantado. Essas questões passavam
pela minha cabeça naquele momento, questões que podem ser resumidas em uma só:
será que eu queria e conseguiria resolver minha relação com o underground do metal
extremo ao mesmo tempo em que encaminho uma formação em ciências sociais? Eu
realmente não saberia respondê-la naqueles anos. Mas meu orgulho não me deixaria
231

largar o curso faltando pouco para terminá-lo e meu sossego não viria se eu não
assentasse a relação com o underground. Foi nesse contexto que eu decido estudar na
minha monografia de conclusão de curso, pela antropologia, o underground do metal
extremo em Curitiba.
Talvez o leitor possa estar achando que eu fui estudar o underground na
monografia de graduação unicamente por questões subjetivas. Não é bem assim. Meus
maiores interesses durante o curso foram a antropologia urbana, naquilo que tange a
construção espacial e relacional das identidades coletivas na urbe, e a antropologia da
música, no aporte da questão dos afetos e significados transmitidos pelos sons. O
underground do metal extremo, pensava eu, poderia ser tema privilegiado para discutir
ambas as questões em uma monografia só. Mas não há como negar que aquele plano da
pesquisa que Roberto DaMatta, no seu clássico texto sobre o “anthropological blues”,
chama de pessoal ou existencial (1978, p. 25) teria forte influência no andamento do
meu trabalho. Por mais intelectualmente preparado que eu estivesse para a empreitada e
por mais insights que eu tivesse para formular o underground enquanto um tema
antropológico, nada poderia conter minha radical familiaridade com ele, nada poderia
me imunizar da avalanche de sentimentos e lembranças ambivalentes, dos prazeres e
ódios que a pesquisa prestes a ser iniciada provocaria. Na verdade, sendo a minha
intenção elaborar algum texto que pudesse ser considerado antropológico, eu precisava
suscitar em mim o “anthropological blues”, essa transformação emocional que nos
coloca a meio caminho entre o que está sendo estudado e os meios pelos quais estamos
estudando. Para tanto, minha pesquisa teria que ter, necessariamente, algum contorno de
terapia. Uma terapia que analisasse minha relação com ambos os termos do caminho.
Afinal, eu estava encarando tanto o underground quanto a antropologia de modo
sintomático. Aquele me irritava por eu ter avaliado que ele se arraigava em mim para
além do plano consciente; esta, por sua vez, como causa e efeito de tantas dúvidas que
eu tinha acerca da possibilidade de vir a ser um antropólogo, enfrentava imperialistas,
beligerantes e autoritários mecanismos de defesa. Enfim, a pesquisa precisaria compor
em mim alguma melodia mais suave, pois, nos momentos precedentes a ela, minha
carne não criava nenhuma antropologia e muitíssimo menos blues.
E lá fui eu, de caderno e caneta nas mãos, voltar ao underground, agora
fantasiado de campo. Voltei a freqüentar os shows, a ler os zines e a ouvir as gravações,
assim como reatei minhas relações com o “pessoal”. Ia aos bares beber com eles,
passava tardes inteiras nas lojas de discos e roupas de metal da cidade conversando com
232

eles, trocar cartas com o “pessoal” de fora voltei a fazer e até mesmo, de vez em
quando, indo às suas cidades revê-los e assistir aos seus shows. Embebi-me de
underground uma vez mais. Contudo, antes de estranhá-lo, estranhei a mim mesmo
naquela situação, tentando estudá-lo. Pois, se a transformação do familiar em exótico
começa com a adoção de uma outra atitude de conhecimento para com aquilo que se
quer des-familiarizar, então eu calculei que precisava achar tais atitudes e testá-las no
campo. Quanta ingenuidade! Eu achava que essas atitudes eram práticas, materiais, por
assim dizer, e a minha volta ao underground começou a beirar a comicidade. Uma das
estratégias que adotei para construir algum distanciamento foi a de ir aos shows de
bermuda e camiseta branca, simplesmente o vestuário mais execrado pelos praticantes,
sempre em calças, jaquetas e coletes pretos. Eu era um ponto branco em um mar negro.
No momento em que mais precisava de discrição, consegui virar alvo de piada por
várias noites. Parecia que tinha uma placa de néon em cima da minha cabeça, na qual
piscava em letras maiúsculas: idiota, idiota, idiota.
Se não era cômico, era trágico. Com o objetivo de “coletar as representações
acerca do fenômeno que seus atores possuem”, marquei várias entrevistas com o
“pessoal”, com pessoas com quem, alguns anos atrás, tocávamos juntos, que riam e
choravam junto comigo, que iam à minha casa e eu ia à deles, com pessoas que eu
convivi, na acepção mais plena que esse verbo possa ter. Antes de elas acontecerem, eu
já sabia que as entrevistas não seriam nem um pouco formais. Mas eu não pensava que
elas aconteceriam do jeito que todas aconteceram: começavam em um café, no
finalzinho da tarde, e acabavam em mesas de boteco, no raiar do sol, depois de ter
passado um longo desfile de lembranças nostálgicas pelas nossas mentes, prontamente
verbalizadas e resgatadas do passado com a ajuda de muito álcool e cigarro. Não tinha
como evitar, e pra ser sincero eu nem queria, o desfecho saudosista e etílico que minhas
“entrevistas” tiveram. Porém, no dia seguinte, junto com a ressaca batia o
arrependimento, ou melhor, eu me punia com o seguinte flagelo: “e o estranhamento,
senhor Leozão, estava aonde?”. Em dias de castigos mais brandos, o açoite chicoteava
assim: “cadê seu senso de responsabilidade?”. Então, tal como o poeta Gregório de
Matos, expoente do barroco baiano do século XVII, que passava suas noites em casas
de meretrício de Salvador e amanhecia na frente da igreja para confessar seus pecados
ao padre, eu procurava minha orientadora, professora Selma Baptista, dizendo: “eu não
sirvo para isso, eu não sei estranhar”. Ela ria, tentava me acalmar dizendo que eu estava
“viajando”, que não era por aí, querendo transformar instantaneamente uma paixão em
233

objeto de estudo, que eu conseguiria vivenciar antropologicamente o underground do


metal extremo. Com toda a minha teimosia, eu saía pio do seu gabinete de que ela não
me entendia. Só hoje, quatro anos distante, consigo lembrar desse período inicial, e
rocambolesco, de pesquisa e avaliar: quanta dramaticidade, quantas frustrações
supérfluas, quantas noites mal dormidas por bobagens, por forçar um estranhamento
estereotipado goela abaixo, por tentar me desligar emocionalmente de uma dimensão da
minha história pela qual eu visivelmente tinha, no mínimo, ótimas lembranças, no
máximo, uma imensa saudade, na média, uma paixão incontestável.
Foi justamente isso que compreendi ao longo dessa espécie de ópera bufa que foi
meu retorno ao underground. Não adiantava lutar contra essa paixão, eu continuaria
dando murros em pontas de faca se tentasse extirpá-la completamente do meu corpo.
Sobretudo, eu queria que nós continuássemos enredados. Contudo, era preciso
maturidade para compreender que, primeiro, a paixão pelo metal extremo não
demandava acatar todo o pacote de pré-conceitos e romantismos que geralmente vinha
com ela. Eu poderia muito bem selecionar aquilo que queria manter e aquilo que queria
descartar, sem prejuízo algum. Segundo, gostar de metal extremo poderia sim ser
conciliado com outros gostos artísticos e interesses sociais. Para tanto, bastaria que eu
soubesse conviver com esses gostos e interesses aparentemente contraditórios, mas que
em mim, se conciliavam. Para ser claro, o problema era meu e de ninguém mais. Ou
seja, que se lixe o underground e suas barreiras ideológicas, eu não as aceito e meu
gosto pela música extrema não depende da minha inserção nesse meio. Foi nessa
tentativa de encarar o underground como um campo que compreendi que eu não
dependia afetiva e emocionalmente dele. Eu poderia muito bem manter o que dele me
agradava e repudiar o que me desagradava. Assim como aquelas pessoas que conheci
por meio dele e compreendiam minha postura, valeriam à amizade, as outras
continuariam como conhecidos, meros conhecidos. Nada como um bom campo para
relaxar angústias existenciais. Minha relação com o underground estava se pacificando,
me sentia mais livre e mais calmo para com o meio no qual aprendi a amar uma música
claustrofóbica e violenta. Mas ainda havia uma monografia a ser escrita e angústias com
a antropologia a serem resolvidas.
Tendo a achar que a escrita da monografia de graduação foi o momento onde, de
fato, eu comecei a ver na antropologia uma interessante possibilidade de profissão.
Durante o campo, por mais conturbado com minhas dúvidas que fosse e por mais
carregado com minhas afetividades que tivesse sido, alguma maneira de falar
234

antropologicamente sobre o underground foi se delineando, principalmente quando eu


escrevia minhas anotações no caderno de campo. Relendo alguns trechos do caderno,
vejo que sob assaltos íntimos de vontade e repulsa, alguns eixos interpretativos iam
surgindo, chaves de compreensão iam se modelando. Será que estava aí, nos esboços do
caderno, o início do meu famigerado estranhamento? Pode ser. De qualquer modo,
naquela época eu achava que não. Eu sentei pra escrever a monografia com certa noção
do que ia deitar no papel, contudo, às vezes ainda irritado por não ter achado o maldito
estranhamento, outras maldizendo esses autores que falam de estranhamento. Na
verdade, a escrita só deslanchou quando eu parei de pensar sobre a postura que devo
tomar frente ao objeto e comecei a construir essa postura no texto. Toda a reflexão de
que eu era capaz já tinha sido feita, todo o pensar no underground já tinha sido pensado
e, além disso, com o prazo de entrega se aproximando, o melhor que eu poderia fazer
era escrever.
Tento descrever uma experiência para a qual alguns antropólogos já apontaram
e, presumo, todos os antropólogos já tiveram, uma experiência que definiria, hoje, como
o poder arrebatador da escrita. Geertz, em texto que pode ser considerado referência
para o debate acerca da problematização da escrita na antropologia, nos diz que:

A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a ver
com uma aparência factual, ou com um ar de elegância conceitual, do que com sua
capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente
penetrado numa outra forma de vida (ou, se você preferir, de terem sido penetrados por
ela) – de realmente haverem, de um modo ou de outro, “estado lá”. E é aí, ao nos
convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu, que entra a escrita (2002 [1988],
p. 15).

Concordo totalmente que a escrita antropológica é, em alguma media, uma


retórica - de convencimento como quer Geertz neste parágrafo tão desconfiado - no
limite, uma relação de fingimento ou atuação, entre o escritor e o leitor. Mas será que
essa retórica não vale para ambos? Ou seja, será que a escrita antropológica não só
convence o leitor como convence também o escritor de que ele, realmente, ‘esteve lá’?
Como eu sou menos desconfiado, menos experiente e mais ingênuo do que o Geertz do
Obras e Vidas, prefiro pensar em transformação ao invés de convencimento. Pois tendo
a achar que a pesquisa antropológica é um road movie às avessas. Os personagens se
lançam, em um clima de “se deixar levar”, num caminho por onde certamente passarão
por experiências intelectuais, emocionais e afetivas intensas, para só depois de ter
terminado o trajeto, escrever o roteiro da viagem. Ora, se concordarmos que a graça de
235

um road movie está no fim que revela a transformação que a viagem causou nos
personagens, então no road movie antropológico a graça está no texto, quando o
personagem, agora também roteirista, revelando a transformação pela qual passou ao
leitor, completa, finalmente, a sua transformação. O fim revelador do nosso road movie
é o texto, obviamente para quem o “assiste”, mas, sobretudo, para quem o protagonizou
e o roteirizou.
De qualquer modo, se não apreciam minha analogia com os filmes, foi como um
fim que encarei a escrita da monografia. Um fim que não parava de abrir começos. Não
seria um exagero dizer que a cada parágrafo que escrevia, uma nova maneira de
desenrolar o underground pelas palavras se apresentava. A cada tentativa de enquadrá-
lo no verbo, ele extravasava pelo verbo, escapulia do texto mancomunado com as
mesmas palavras com as quais tentava prendê-lo, como que dizendo, “eu não estou só
aí”. Que força ambivalente as palavras têm, eu pensava. Ao mesmo tempo em que elas
me ajudavam a estancar esse “fluxo constante”, para usar uma das definições de Simmel
para vida, elas me mostravam que esse fluxo é muito mais ágil, veloz e múltiplo do que
eu pensava. As palavras eram o meio pelo qual procurava concertar uma imagem das
experiências e relações que tive no underground, mas também o meio pelo qual essas
experiências e relações eram desconcertadas. Uma imagem de modo algum passiva. O
reflexo que o texto oferecia, exigia reflexão. Foi dessa maneira, eu brincando de pega-
pega e o underground brincando de esconde-esconde, no pátio do texto, que eu ia
entrevendo uma outra forma de perceber esse amigo íntimo.
Em uma de suas raras entrevistas, o poeta mato-grossense Manoel de Barros diz
que uma das principais funções da poesia é o ‘(...) arejamento das palavras, inventando
para elas novos relacionamentos, para que os idiomas não morram a morte por
fórmulas, por lugares comuns’. Mas logo depois ele esclarece que essa função, antes de
ser resultado de um altruísmo do poeta que se doa pela renovação constante da sua
língua mãe, é uma conseqüência de uma necessidade íntima do artista:

Sou pela metade sempre, ou menos da metade. A outra metade tenho que desforrar nas
palavras. Ficar montando em versos, pedacinhos de mim, ressentidos, caídos por aí,
para que tudo afinal não se disperse. Um esforço para ficar inteiro é que é essa atividade
poética. Minha poesia é hoje e foi sempre uma catação de eus perdidos e ofendidos.
Sinto quase orgasmo nessa tarefa de refazer-me. Pegar certas palavras já muito usadas,
como as velhas prostitutas, decaídas, sujas de sangue e esterco – pegar essas palavras e
arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da
morte por clichê. Não tenho outro gosto maior do que descobrir para algumas palavras
relações dessuetas e até anômalas (1990, p 308).
236

Foi por ter tido uma experiência análoga a esta descrita por Manoel de Barros,
que defino a escrita da monografia como arrebatadora. A tentativa de montar um texto
antropológico sobre o underground correspondeu a uma re-montagem de mim mesmo,
demandou uma ‘catação de eus perdidos’ os quais, trazidos à palavra, pediam a
construção de ‘relações dessuetas e até anômalas’, de percepções do underground não
familiares, impensadas antes da escrita. Sendo assim, muito mais do que ter voltado a
interagir no underground, ter escrito sobre ele transformou minha maneira de encará-lo,
mais ainda, transformando minha maneira de sê-lo, transformou minha maneira de ser.
Com o prazer do refazer-me que a escrita trouxe ainda latejando, eu avaliei que não
seria uma má idéia fazer mais disso, continuar praticando esse ofício até o ponto em que
eu possa chamá-lo de profissão.
Bom, mas esse relato é do ponto de vista de quem viveu a escrita da monografia
de graduação. Tenho certeza que quem a leu dificilmente compreendeu essa
transformação. No máximo, o texto confuso, hesitante e em muitas passagens reificador,
permitia entrever os esboços de alguns eixos investigativos do underground do metal
extremo os quais, se melhor explorados, poderiam se mostrar férteis em uma
antropologia urbana e em uma antropologia da música. Creio que foi esse o tom dos
comentários das duas argüidoras da minha banca de defesa, Sandra Stoll e Ana Luisa
Fayet Sallas. Sim, elas gostaram do texto e acharam que, para uma monografia de
graduação, ele cumpria com os requisitos necessários. Mas também disseram que parte
do seu conteúdo, aquele no qual tentava apresentar uma história do rock no Brasil e do
heavy metal em Curitiba, era descartável, pois, além de não ter conexão alguma com o
tema da monografia, parecia mais jornalismo do que antropologia. Quanto à etnografia
do underground em si, disseram que ela poderia ser mais “densa” e que as análises
poderiam estar mais vinculadas ao material etnográfico. Ou seja, demandaram aquilo
que geralmente se pede de um estudante de antropologia um tanto obcecado com teoria:
“esqueça os modelos e descreva, descreva mais e melhor, você vai ver que é neste
trabalho de descrição que a teoria se faz ou se concatena”. De qualquer modo, depois
das etapas masoquistas do ritual de defesa, me disseram que o texto estava muito bom e
que eu deveria continuar estudando esse tema no mestrado, para “cozinhá-lo mais”. Pois
é, eu entrei na sala onde a defesa aconteceu certo da vontade de prosseguir meus estudos
em antropologia. Porém, mais certo ainda de que eu poderia estudar na dissertação tudo
menos o underground. O processo da monografia tinha sido intenso demais para
continuar com ele. Além do mais, pensava eu, uma monografia de graduação sobre o
237

underground do metal extremo até passa, mas uma dissertação? Será que valeria a
pena? Como eu queria sair de Curitiba para o mestrado, ainda me perguntava: onde?
Quem pode orientar esse trabalho? Estudar o underground de novo? Será?
Bom, dado que esse relato fecha minha dissertação sobre o underground do
metal extremo no Brasil, orientada pela professora Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti, apresentada como parte do meu mestrado no programa de pós-graduação em
sociologia e antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, creio que o leitor
presuma quais foram minhas respostas para as indagações do último parágrafo.
O que apresento nesta dissertação é o mais recente desdobramento dessas
minhas experiências de underground e antropologia. Com certeza, o percurso mais
difícil de cumprir em todos os aspectos. Acredito que a elaboração da dissertação
sacramentou o desenredamento do underground e da antropologia do meu corpo. A
afirmação pode soar estranha depois de todo esse relato subjetivo e passional. Mas
entendo que, como a frase do escritor argentino Juan José Saer - que serve de epígrafe a
este posfácio - aponta, eu não os encaro mais como sonhos, no sentido de abordá-los
com hesitações, obsessões ou mesmo esperanças desmedidas. Eu não os tomo mais
como os únicos objetos responsáveis pelas minhas realizações pessoais. Com a feitura
da dissertação, eu acho que percebi quais são os pontos de cruzamento dos meus
interesses com a antropologia e com o underground. Contudo, pontos, partes se tocando
e não todos se englobando. Enfim, eu acho, é sempre bom salientar a incerteza da
afirmação, eu acho que encontrei certas divisões entre mim, o underground e a
antropologia. Daí a dificuldade em realizar a dissertação: ‘para sair do sonho em que
estou, por assim dizer, enredado, devo fazer força com todo o meu corpo, porque é todo
o meu corpo que está enredado nele’.
Não se trata de um distanciamento completo. Não quero dizer que, de agora em
diante, estou livre deles, ou ainda, de agora em diante estarei me afastando deles. Pelo
contrário. Se não são mais sonhos apaixonados, são realidades apaixonantes com as
quais quero continuar me enredando, agora de maneira menos sintomática, espero eu, de
maneira menos extrema. Sendo assim, apesar de estar precisando de um pouco de
distância momentânea dos livros e do teclado, alguma dose de antropologia logo, logo
vou querer. E o underground do metal extremo? Será que é possível ter uma relação
homeopática com algo que se define pelo extremismo? Estou tentando, mas devo
confessar que ter escrito essa dissertação acendeu a vontade de ressuscitar o diabo
albino.
238

Eu, o diabo albino e a jaqueta de couro, presente de aniversário de doze anos, em algum
palco do sul do país, em 1999.
239

ANEXO I – TRECHOS DO CADERNO DE CAMPO

Maio de 2004, Curitiba:

Show no Lino’s. Bandas locais convidando algumas bandas catarinenses. Afora


o som das bandas, que conheço pouco, já dá para imaginar o “tom” da noite. Muito
grind e death metal no volume máximo, num recinto mínimo. Qualidade acústica
deprimente, equipamento de amplificação precário, zumbido nos ouvidos pelo fim de
semana inteiro. O ar sempre úmido dessa cidade chega a ficar pegajoso em dia de show
no Lino’s, com aquela fumaça do cigarro, aquele cheiro de couro velho das jaquetas e o
cheiro de neutrox que tomam conta do ambiente quando a moçada começa a “agitar” as
cabeças...é, vejo que não estou em bom dia. Gosto muito disso tudo, mas tem horas que
cansa. Eu fico achando que já sei de tudo, a noite já aconteceu na minha
imaginação...hoje é uma dessas “horas”. Força.
Bom, o que dizer do Lino’s? O boteco mais freqüentado da cidade pelos punks,
pelos headbangers, pelos psychos e, de vez em quando, uns motoqueiros ainda
estacionam por lá (mas nada de Harley, é CB 750 mesmo). Toda essa movimentação
underground rola no Lino’s desde o começo dos anos 80, quando o pessoal do punk
“descobriu” sua pinga barata e sua mesa de sinuca com feltro rasgado. Dois ambientes,
mais um outro que alguns teimam em chamar de “banheiro”, respondem pelo espaço do
bar do seu Lino. No primeiro, por onde se entra, o balcão do bar, na frente das
prateleiras de bebidas, fica à esquerda, e a mesa de sinuca à direita. Um corredor, com a
largura equivalente do corpo de um adulto, separa os dois. Logo após esta sala central,
chegamos na “salinha”, um micro-ambiente onde ficam as mesas, quatro ou cinco no
máximo, em dias “normais” e onde acontecem os shows, como o de hoje. Não há
janelas e a luz artificial está sempre naquele tom de “prestes a queimar”. Também não
há palco. Os músicos se encolhem em um dos cantos da sala, colocam os amplificadores
em cima de engradados de cerveja e tocam. Sendo generoso, este ambiente é
confortável para vinte pessoas. Já rolaram shows com mais de cem, não contabilizados
banda e a proporcionalmente gigantesca bateria.
Chegando perto do bar, que fica em uma esquina do centro velho da cidade, já
dava pra distinguir do cenário da noite, a pequena mancha negra formada pelos
presentes. Mais perto do local, já se via as mesas enfileiradas na calçada, repletas com
material underground. Tem coisa interessante na mesa do pessoal de Joinville. Compro
um zine de Lages, o Unholy Black Metal, que me interessou pelo fato de ser uma
mulher que o edita. No mais, as rodas de conversa e bebida. Incrível como são nelas,
nas rodas, que circula a informação precisa sobre os movimentos do underground. Em
algumas horas, fico sabendo de quem entrou e quem saiu das bandas em Santa Catarina,
fico sabendo dos preparativos para o próximo Splatter night, festival grind que acontece
em Joinville. Fico sabendo também das gravações que estão rolando aqui mesmo e fico
sabendo que a editora do zine que acabo de comprar, a Countess Death, é mulher do
guitarrista da Havoc. O Caos, guitarrista de várias bandas espalhadas pelo sul, mas
habitante de Curitiba, abre o zine e vê uma matéria com o Uraeus, banda de Goiânia da
qual nunca tinha ouvido falar. “Ouça a banda Leozão, é boa e o cara é gente fina, o
Rodrigo Doom-Rá, ele pode ser interessante pra sua pesquisa, é historiador e tal...não é
isso que você faz, história?”, “não Caos, é antropologia”, “então, isso aí, história do
metal, cultura do metal e tal...é tudo metal, é tudo brutal, então fala com ele, fala que o
Caos te passou o contato que você tá dentro”, essa foi nossa conversa. As rodas não só
atualizam as informações, mas atualizam os próprios contatos, essa espécie de nó do
240

underground. Afinal, a coisa funciona nisso, no contato pessoal, no “quem conhece


quem” e “quem indicou quem”. Se aprofundando no underground por aí, se chega a
quem você quiser, em qualquer parte do país. Então, espécie de círculo: para ingressar
no underground é preciso saber onde e quando seus shows acontecem, é preciso
localizá-lo, mas para tanto, é preciso das informações circuladas fundamentalmente nas
rodas. Como é que se acha o underground na cidade, a não ser se você for guiado por
alguém que já está lá? Senão, vejamos. Como é que eu ia saber desse show de hoje, se
não tivesse topado na rua com o Emerson, baterista do Necrotério, que está organizando
o show para apresentar para o “pessoal” as novas composições da banda? Não havia
sequer um mísero flyer na Hard Temple, loja de metal da cidade, muito menos cartazes
espalhados pela rua XV (rua de pedestres cravada no centro da cidade) ou nos murais da
reitoria (prédio da UFPR onde acontecem as aulas dos cursos de humanas, suas paredes
são muito utilizadas para a divulgação de eventos artísticos em geral). Aliás, chamar o
trabalho do Emerson de organização é uma generosidade. O cara liga pros amigos de
Santa Catarina, chama pra tocarem aqui em tal dia e pronto. Eles pagam o transporte, o
Emerson paga alimentação e bebida. Ai é só ir lá no Lino’s e ver qual sexta ou sábado
está livre na agenda lotada do bar. Avisa a data pras bandas de SC, convida-se mais uma
ou outra banda daqui mesmo e temos um show na agenda. Agora é só sair por aí falando
do show pro “pessoal”, como ele fez comigo quando nos encontramos. E não é que dá
certo? Financeiramente não, é claro. A arrecadação do show, cinco reais por pessoa, não
cobre os gastos com a pinga barata do seu Lino. Mas os amigos, a “galera”, o “pessoal”,
estamos todos lá. Dá certo pela noite agradável, pelos amigos, pela diversão, pela
bebida, pela “brutalidade” vivenciada em grupo.
Dentro do bar, seu Lino servindo a pinga, sempre de bom humor, dois casais
jogando sinuca e o pessoal do Necrotério começando a arrumar a bateria. Tá tudo bem
agora. A moçada tá por ai e o som vai ser precioso. Dá pra agüentar até as seis da
manhã, hora em que a quarta ou quinta banda estará começando a tocar.

Novembro de 2007, Rio de Janeiro:

Setembro, 2007. Festival underground no Rio, intitulado Aliança Negra. Dez


bandas, quase todas de black metal, tocando por mais de doze horas neste domingo
ensolarado, no clube Mackenzie, Méier. Sete bandas cariocas, duas mineiras e uma
alemã, esta última, Grafenstein, fechando sua turnê de seis ou sete shows pelo Brasil.
Apesar de ser “gringa”, pelo que pude levantar sobre a banda, na internet, ela faz parte
da rede underground européia. Suponho que seja por isso que ela está presente neste
festival. Uma banda internacional com certo reconhecimento pelos fãs de heavy metal
em geral dificilmente seria convidada para um festival como esse de hoje. Vamos lá ver
“qualé”. Vou acompanhado pela Cláudia, musicóloga que também estuda o metal
extremo em seu doutorado em musicologia, e pelo Grind Stressor que, figura
carismática e freqüentador da cena carioca por pelo menos uns vinte anos, baterista e
vocalista de algumas bandas, segundo ele, “conhece geral”.
O local do show é um clube de recreação. Tem piscinas, quadras, lanchonete e
toda a estrutura para um dia de lazer e esporte com os amigos e a família. Como é
domingo, o evento começava às duas horas da tarde e, como o show se realizaria em
dois palcos distantes um do outro, fazendo com que o pessoal percorresse quase toda a
extensão do clube entre uma apresentação e outra, as dependências do local foram
divididas por dois grupos muito distintos. Banhistas e esportistas de fim de semana
viram seu clube ser tomado por quase mil apreciadores de black metal devidamente
vestidos para um evento importante como é o de hoje. Além da compreensível
241

estranheza que alguns olhares dos sócios do clube denunciavam, não houve qualquer
atrito entre nós e eles. Talvez eles já estejam acostumados com a “invasão”. O clube
Mackenzie, já há alguns anos, recebe shows do underground do metal extremo carioca.
Seu salão social, o recinto onde foi montado o palco principal do evento, apesar de ficar
devendo em sua acústica, tem plena capacidade para abrigar um palco de médias
proporções e um público de mil pessoas confortavelmente.
A escolha do clube Mackenzie, por si só, já mostra que o show de hoje não é
como qualquer show underground. O evento foi “bem” produzido. O lugar é adequado
para a magnitude do evento, os equipamentos de palco alugados, tanto os
amplificadores quanto as luzes e a própria estrutura do palco, são confiáveis e toda a
mão de obra para operá-los durante as apresentações é profissional. Uma agência de
eventos foi contratada. Tamanha organização não é comum nos shows underground,
geralmente realizados sob condições tecnológicas precárias e organizados na
“conversa”, ou seja, naquele velho sistema do “eu convido sua banda pra tocar daqui a
dois meses e você diz que sim”. Se a banda vai aparecer ou não, se o local estará ou não
disponível no dia do evento, também acordado na “conversa”, só sabemos no dia do
show. Lembro como se fosse ontem do dia quando minha banda teve que zanzar por
Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, atrás de um boteco pra tocar, pois o bar
previamente contatado estava realizando um forró na noite acordada. Isso foi em 1997 e
eu achei tudo isso “engraçado”. É compreensível. Afinal, os músicos oferecem ao
proprietário do local, em troca do espaço, parte da renda da entrada e, claro, a garantia
de uma “boa” noite de vendas de bebida. Ambas as moedas dificilmente se concretizam.
As bandas “passam a perna” no número de pagantes e a galera vem com seus bolsos
cheios de garrafas de pinga e vodka, aquelas vendidas em garrafas de plástico. E
adicione-se a isso a possível aversão do proprietário do local quando vê um bando de
pessoas vestidas em negro, com cara de poucos amigos, ostentando imagens de diabos
nas camisetas e cruzes invertidas nos colares. Deve ser por isso que o underground
raramente estabelece referências territoriais nas cidades. A regra é o zanzar por aí em
busca de um lugar para tocar.
Mas hoje não. Hoje temos alguém por trás de toda essa “boa” organização,
observando contratos previamente assinados, cuidando da qualidade acústica das
apresentações e pressionando as bandas para que entrem no palco na hora marcada. Que
impressionante! Ler no flyer que o show começa às 14:00 e realmente, ele começa às
14:00. Não tive a oportunidade de conversar com os responsáveis pelo evento, o pessoal
do Rio Metal Works, do Rato do Rio e da fashion (agências promotoras de eventos do
underground carioca), mas meus parabéns. O que vocês conseguiram fazer hoje, pela
bagatela de doze reais por pessoa, é de se louvar.
Contudo, se na organização temos um inusitado profissionalismo, a dinâmica da
divulgação prévia do show, assim como a interação durante o evento, é totalmente
pessoal. Eu fiquei sabendo do evento porque tinha ido a outro show no mesmo clube
alguns meses atrás, Grind e Claudia souberam por amigos. Não havia cartazes
espalhados pela cidade, nem anúncios nas rádios e tevês, nem mesmo um cartaz na
única loja especializada em heavy metal da zona sul, a Hard’n Heavy, com uma loja no
Flamengo e outra filial em Ipanema. Ou seja, mesmo que o evento se diferencie pelo
tamanho e pela organização, ainda se encontra sob a maneira underground de ser notado
na cidade. Só sabe dele quem já sabe do underground. Estou começando a achar que
esse underground é quase uma maçonaria.
No show, essa pessoalidade é gritante (será que eu não percebia isso tão
nitidamente em Curitiba por, justamente, conhecer todo mundo?). Parece que todos se
conhecem, ficam trocando de roda de conversa a toda hora, falam sobre tudo, mas
242

principalmente sobre metal extremo. As próprias piadas são relacionadas ao


underground. Aparece uma menina vestida em trajes vampirescos, com um espartilho
de látex justíssimo, saia negra de couro que desce rente ao seu corpo, botas vermelhas
de salto alto e, o melhor, uma mecha grisalha no começo do seu cabelo longo, liso e
negro, e uns cinco ou seis que conversavam em roda brincam: “caraca, saca a Mortícia,
tá real hoje”, “ai, sinistro, a Mortícia vai blasfemar muito hoje”. Levando à boca um
cigarro, manchando-o com seu batom negro, ela responde, com um leve sorriso no
rosto: “meu homem, ele, Belzebu, me espera”, e todos, “Mortícia” inclusa, desfazendo
toda sua pose de Marilyn Monroe do mal, riem muito.
O Grind, de fato, “conhece geral”. O cara passou dos quarenta e, durante o
evento, parece uma criança hiper-ativa de cinco. Não pára de ir pra lá e pra cá, dessa
roda para aquela roda, sempre falando e gesticulando muito, contando suas histórias
para quem ainda não as ouviu e relembrando de outras com colegas “das antigas”. Eu e
Claudia não temos esse “pique”. Damos uma passada nas mesas de material, inclusive
na do Edson, que mais parece um baú sem fundo do underground nacional, tamanha é a
quantidade de material que ele tem, e assistimos aos shows, trocando nossas impressões
antropológicas e musicológicas sobre o “fenômeno” do underground do metal extremo.
Uma em especial me chamou atenção. Estávamos no meio do salão principal vendo a
apresentação de uma banda. Volume do som “no talo”, como sempre. Claudia comenta:
“feche seus ouvidos com as mãos e repare no que acontece”. Assim fazendo, meu corpo
começa a vibrar no mesmo compasso da música, principalmente no tórax. “Viu”, ela
falou, “é uma música tão pesada e tão grave, reproduzida em volume altíssimo, que
ressoa dentro do seu corpo...todo show é assim, mas nós só percebemos a intensidade
quando fechamos o ouvido...no show você ouve a música com todo o corpo,
literalmente”. Não é por acaso que os músicos de metal extremo tomam como elogio a
designação da sua música como visceral. Se ela pode ser considerada assim, é que ela é
sentida, sem metáforas, pelas suas vísceras.
243

ANEXO II - GLOSSÁRIO DAS BANDAS

Abaixo, uma lista das bandas participantes da pesquisa. Indicamos sua proveniência,
estilo auto-declarado, status atual (2008) da banda e uma de suas gravações (listar suas
discografias completas daria uma dissertação por si só). Este glossário serve também
como discografia utilizada na dissertação. Sendo assim, vale lembrar que não indicamos
as gravadoras, pois todas as gravações são lançadas de maneira independente.

ADÁGIO – Araraquara/SP, doom metal. Ativa. Romantic Serenades, CD 1999.

ANOPSY – Duque de Caxias/RJ, splatter/gore/grind. Ativa. Unusual Sexual


Methods...Using the Deformed Corpses, CD 2007.

AUSTHRAL – Florianopolis/SC, pagan black metal. Ativa. Tocado a Vento, CD


2008.

AVEC TRISTESSE – Rio de Janeiro/RJ, doom metal. Ativa. How Innocence Dies,
CD 2004.

BELLICUS DAEMONIACUS – Campos/RJ, black metal. Ativa. K7 ensaio sem


título, 2003.

BLASPHEMICAL PROCREATION – Juiz de Fora/MG, black metal. Ativa.

BLASTHRASH - São Paulo/SP, trash metal. Ativa. No Traces Left Behind, CD


2005.

BYWAR – São Paulo/SP, trash metal. Ativa. Heretic Sign, CD 2004.

CATACUMBA – Serra/ES, black metal. Ativa. Birkat Ha-Minim – a benção dos


hereges, K7 demo 2004.

CHEMICAL DISASTER – Santos/SP, death metal. Ativa. Scraps of a Being, CD


2000.
244

DAIMOTH – Recife/PE, black death metal. Ativa. Inquisition, CD 2004.

DOOMSDAY CEREMONY – Curitiba/PR, black metal. Ativa. Apocalyptic


Celebration, CD 2007.

EMBALMED ALIVE – Sete Lagoas/MG, death metal. Ativa. Regurgitating the


Internal Parts, K7 demo 2003.

ETERNAL SORROW – Curitiba/PR, doom metal. Ativa. The Way of Regret, 1998.

EVICTUS – Vila Velha/ES, doom metal. Ativa. CD demo sem título, 2006.

FECIFECTUM – São Paulo/SP, black metal. Ativa. K7 ensaio sem título, 2003.

FLESH GRINDER – Joinville/SC, gore splatter metal. Ativa. Coroner´s Inquest


Suit, CD 2005.

GOATPENIS – Blumenau/SC, war black metal. Ativa. Inhumanization, CD 2004.

HAVOC – Lages/SC, black metal. Ativa. Cult Havoc, K7 2004.

I SHIT ON YOUR FACE – Vitória/Vila Velha/ES, gore grind porn metal. Ativa.
Anal Barbeque, CD 2005.

INFERNAL – Curitiba/PR, death metal. Ativa. Drowning in the Chalice of Sin, LP


1993/CD 1994.

INRISORIO – Aracaju/SE, grind death metal. Ativa. Amen Blasfêmia, CD 2005.

INTESTINAL VOMIT – Teresina/PI, gore grind splatter metal. Ativa.


Decomposição, CD 2007.
245

LYMPHATIC PHLEGM – Curitiba/PR, grind death metal. Ativa. Show-Off


Cadavers – The Anatomy of Self Display, CD 2007.

MIASTHENIA – Brasilia/DF, black metal. Ativa. Batalha Ritual, CD 2004.

MORDOR – Teófilo Otoni/MG, black metal. Ativa. The Remembrances of the Dark
Age, K7 2003.

MURDER RAPE – Curitiba/PR, black metal. Ativa. Evil Shall Burn Inside Me
Forever, CD 2001.

OCULTAN – São Paulo/SP, black metal. Ativa. The Coffin, CD 2003.

NACHTKULT – Rio de Janeiro/RJ, national socialist black metal. Status


desconhecido. Der Sieg Des Stolzen Blutes, CD 2004.

NECROTÉRIO – Curitiba/PR, grind death metal. Ativa. Laments of Flesh, CD


1999.

OVÁRIOS – Lages/SC, splatter/gore/grind metal. Status e gravações desconhecidos.

QUEIRON – Capivari/SP, death metal. Ativa. Templars Beholding Failures, CD


2003.

ROT – São Paulo/SP, splatter/gore/grind. Ativa. Sociopathic Behavior, CD/LP 1998.

SADES – Salvador/BA, doom death metal. Ativa. Final Destination, K7 demo 2006.

SAEVUS – Juiz de Fora/MG, black metal. Inativa. A Consolidação do Reinado das


Trevas, K7 2002.

SARCÓFAGO – Belo Horizonte/MG, black metal. Inativa. INRI, LP 1987/CD


1992.
246

SAD THEORY – Curitiba/PR, death metal. Ativa. A Madrigal of Sorrow, CD 2004.

SCARLET PEACE – Aracaju/SE, doom metal. Ativa. Into the Mind’s Labyrinth,
CD 2004.

SCATOLOGIC MADNESS POSSESSION – Fortaleza/CE, gore death metal.


Ativa. Scathologic (sic) Paradise, CD/LP 2003.

TAURUS – Rio de Janeiro/RJ, trash metal. Ativa. Trapped in Lies, LP 1988/CD


2007.

TENEBRYS – Belém do Pará/PA, doom metal. Ativa. Nenhuma gravação lançada


até 2008.

THORNSLAND – Araçatuba/SP, war holocaust black metal. Status desconhecido.


W.A.R: frontline tormentor, CD demo 2006.

TRIARCHY – Fortaleza/CE, doom metal. Ativa. Broken Dreams, CD 2005.

TRIUMPH – São Paulo/SP, black metal. Ativa. Triumph, CD 2003.

UNEARTHLY – Rio de Janeiro/RJ, black metal. Ativa. Infernum – Prelude to a


New Reign, CD 2002.

URAEUS – Goiânia/GO, black metal. Ativa. Profanas Jornadas Para Almas Negras,
K7 2004.

VIOLATOR – Brasília/DF, trash metal. Ativa. Chemical Assault, CD 2006/LP 2008.

VULTURINE – Brasília/DF, misanthropic black metal. Ativa. O Caminho da Mão


Esquerda, LP 7” 2007.

VULTUS VOCÍFEROS – Brasília/DF, black metal. Ativa. Ao Eterno Abismo, CD


2005.
247

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