Tese Sobre o Underground Do Movimento Heavy Metal PDF
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TREVAS NA CIDADE
O UNDERGROUND DO METAL EXTREMO NO BRASIL
2008
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TREVAS NA CIDADE
O UNDERGROUND DO METAL EXTREMO NO BRASIL
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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___________________________________________________
Presidente: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, IFCS/UFRJ
__________________________________________________
Profa. Dra. Janice Caiafa, ECO /UFRJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Emerson Giumbelli, IFCS /UFRJ
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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RESUMO
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
6
AGRADECIMENTOS
À professora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti por ter, orientando esse
trabalho, me orientado no aprendizado da antropologia. Em suas aulas, em nossas
reuniões, por meio das leituras sempre atenciosas que fazia dos meus textos, pelas dicas
de leitura preciosas e pela leitura dos seus próprios trabalhos, por toda essa convivência,
Maria Laura me ajudou a achar um jeito de aprender o ofício da antropologia. Tenho a
impressão de que a assimilação de toda a experiência como aluno dela se alongará por
muitos anos. Gratidão é o mínimo que posso esboçar pela sua dedicação.
Ao professor Emerson Giumbelli, pelos precisos comentários e ótimas
sugestões, feitos em todos os passos deste trabalho, que foram de enorme valia para a
elaboração final da dissertação. Além desse agradecimento ao professor Giumbelli,
quero deixar registrado meu apreço pelos esforços que o então coordenador do
programa Emerson fez para que uma idéia de um grupo de alunos do qual eu fazia parte,
a jornada IFCS-MUSEU-IUPERJ, fosse realizada da melhor maneira possível no final
de 2007.
A todo o corpo docente do programa de pós-graduação em sociologia e
antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo ambiente de trabalho
prazeroso, generoso e sincero que sempre senti em suas aulas e eventos. Faço especial
menção ao professor Marco Antonio Gonçalves pelas contribuições feitas na ocasião da
qualificação do projeto de pesquisa do qual essa dissertação brotou.
Aos professores Amir Geiger, da UERJ, e Samuel Araújo, da Escola de música
da UFRJ, e ao pesquisador Hermano Vianna, pelos preciosos comentários feitos a partes
dessa dissertação, apresentadas nas jornadas dos alunos de 2006 e 2007.
À professora Janice Caiafa, por ter aceitado participar da banca de defesa dessa
dissertação.
Aos colegas mestrandos e doutorandos do IFCS com os quais tive as mais
diversas conversas, inclusive sobre antropologia. Minha estada no Rio de Janeiro ficou,
em todos os aspectos, mais agradável com a companhia dos meus colegas de curso.
Desses, alguns viraram amigos. Independentemente dos rumos que nossas vontades nos
levarão a tomar, tenho certeza que, de alguma forma, não me separarei de Bernardo
Curvelano Freire, Thais Danton Coelho e Olivia von der Weid.
7
SUMÁRIO
LEGENDA.......................................................................................................................1
INTRODUÇÃO...............................................................................................................2
5 – TREVAS NA CIDADE.........................................................................................183
5.1 - O underground na cidade...................................................................................189
5.2 – O underground pelas cidades - o show como prática ritual..............................197
5.2.1 – Preparando o ritual – organização e vivência do ‘circuito’.........................200
5.2.2 – Dramatização da negação: quando o underground vence o mainstream....213
PÓSFACIO...................................................................................................................224
ANEXO I......................................................................................................................241
ANEXO II.....................................................................................................................245
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................250
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LEGENDA
Os termos entre uma aspa (‘’) são idéias, noções e conceitos de autores.
Os termos entre duas aspas (“”) indicam expressões dos praticantes do underground do
metal extremo.
13
INTRODUÇÃO
qual profissionais atuam de acordo com suas especialidades nos diversos momentos da
confecção de uma gravação ou de um show. O fã nesta cadeia produtiva, longe de ser
um agente passivo, é sua pedra de toque, pois garante a constante atualização do
processo.
Em termos históricos, uma descrição do heavy metal a partir da sua posição
enquanto um produto da indústria fonográfica não só não é problemático, como em boa
medida desejável. Pois, se concordarmos com o sociólogo canadense Will Straw (1993),
esse gênero musical nasce, nos primeiros anos da década de 70, dentro da indústria
fonográfica. Diferentemente do punk, por exemplo, o heavy metal não emana “das ruas”
de metrópoles inglesas e norte-americanas e daí vai para o estúdio. Cronologicamente
falando, ele se realiza primeiramente como uma gravação distribuída por muitos países,
em milhões de cópias, basicamente com o intuito de render dividendos.
Mais de 30 anos se passaram desde o lançamento da primeira gravação da banda
inglesa Black Sabbath, aquela que a radical maioria dos músicos, fãs e críticos de heavy
metal considera o debute desse gênero musical. Em todos esses anos e apesar da recente
crise da música gravada, gerada pelas trocas de arquivos de áudio pela internet que não
pagam direitos autorais, certamente o heavy metal sedimentou ainda mais sua presença
na indústria fonográfica. Surpreende a pujança desse produto. São diversos os selos e
gravadoras que se especializaram em produzir e lançar esse gênero musical. É
incontável o número de bandas que fazem heavy metal ao redor do mundo e, sem
exageros, a cada dia da semana, em alguma cidade, uma dessas bandas está subindo no
palco para apresentar suas canções para os fãs. A história do heavy metal, assim como a
da coca-cola, é uma história de sucesso comercial.
Todavia, esse heavy metal é o que aparece. Esse heavy metal é aquele que quer
aparecer nas megastores, nos grandes festivais de música e nas mídias de grande
veiculação, como no rádio e na TV. Esse heavy metal pede passagem e, mesmo que sua
intensa e distorcida sonoridade seja escutada, às vezes, como ruído, mesmo que sua
temática e iconografia produzam atritos com algum senso comum de normalidade, essa
abertura lhe é dada. Contudo, quando abarcamos o heavy metal para além das suas
manifestações mais nítidas, quando procuramos observá-lo em registros que não sejam
suas prateleiras específicas, o Rock in Rio ou a série The Osbournes da MTV norte-
americana, percebemos que sua profundidade abriga diversas e complexas práticas de
composição, escuta e apresentação disso que chamamos de heavy metal.
15
uma prática social de feitura de heavy metal, estamos explorando, em última instância,
para além das luzes e sombras da “indústria cultural”, a música enquanto uma
mediação: como ela é feita e o que ela faz?
Para explorar esse problema, escolhemos uma prática que se auto-denomina o
underground do metal extremo no Brasil. No primeiro capítulo, a pesquisa procura
compreender, através da etnografia, como a organização de meios de comunicação
específicos resulta na configuração de um espaço social de produção de metal extremo
no Brasil. No segundo capítulo, intimamente imbricado com o primeiro, buscamos
explorar as percepções dos praticantes do underground acerca desse espaço social de
produção musical. Nos terceiro e quarto capítulos, procura-se compreender que tipo de
música é o metal extremo a partir de uma etnografia das construções dos seus estilos,
dando especial ênfase àquele que nos parece ser o mais representativo, o black metal.
Finalmente, em um terceiro movimento analítico, busca-se apreender o underground do
metal extremo como um modo de inserção na cidade. Para tanto, a etnografia privilegia
a montagem, organização e vivência do show, o principal evento dessa prática urbana.
Talvez, o leitor não familiarizado com o heavy metal esteja se perguntando: mas
o que é underground? O que é metal extremo? Afinal, se essa prática não se manifesta
nos meios de comunicação populares, é difícil termos algum senso comum sobre ela.
Pois bem, nessa introdução, preferimos lucrar com essa ausência de senso comum do
que nos flagelar pela sua falta. Ao invés de explicar o que essas categorias significam,
convidamos o leitor a acompanhar nossa busca por uma compreensão do underground
do metal extremo no Brasil sem mais delongas. Se uma introdução é, como diz
DaMatta, ‘uma visita de consideração’ feita pelo leitor ao livro, então, como construtor
dessa ‘casa’, quero ser o mais hospitaleiro possível deixando toda a casa aberta a esses
visitantes. Peço, aliás, que não fiquem somente na ‘varanda’ e conheçam a ‘casa’
inteira. Se por ventura o fizerem, por favor, reparem nos ‘móveis’, avaliem se a ‘casa
está limpa’ e reflitam se o construtor é ou não é ‘modesto e bem-intencionado’.
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1
Baseamos nossa percepção dessa complicadíssima relação entre história e antropologia principalmente
nos dois clássicos textos de Lévi-Strauss sobre o ponto (1975 e 1983). Sobre a visão de Lévi-Strauss
sobre tal ponto, ver Schwarcz, 1999; Goldman, 1999 e Almeida, 1999.
19
termo heavy metal2. Aliás, segundo Frith (1996), discutir a história do seu estilo favorito
com seus pares é um dos prazeres dos fãs de música em geral. Portanto, defender uma
versão da história do heavy metal, além de desautorizar a legitimidade daquela que
parece ser uma das principais práticas dos interessados no estilo, implica em apresentar
afirmações sobre o heavy metal não corroboradas pela etnografia ainda. Portanto,
deixemos que a história do heavy metal seja relatada, neste trabalho, pelos agentes
mesmos dessa história.
A questão que se impõe, neste primeiro momento, é nos perguntarmos se isso
que meus interlocutores chamam de underground compreende algo mais do que música.
Para tanto, exploro-o através das pessoas que dizem praticá-lo, das suas práticas e dos
resultados e produtos destas práticas.
A etnografia foi realizada entre 2003 e 2007 em várias cidades do país,
acompanhando shows, coletando material, conversando com participantes em lojas,
bares, rodas de conversa e, algumas vezes, compondo e tocando com eles3. Durante
esses quatro anos me deparei com uma série de gravações, zines4, revistas
especializadas e páginas eletrônicas que diziam ser do underground do metal extremo
brasileiro. Todo esse material e toda a experiência adquirida em coletá-los estão, de
alguma forma, influenciando meus argumentos e reflexões sobre o fenômeno. No
entanto, para sermos mais precisos, elenquei algumas bandas e zines para balizar nossa
entrada no underground. Os segundos: Dark Gates zine, de Juiz de Fora (MG); Unholy
Black Metal zine de Lages (SC); Anaites zine de Fortaleza (CE); Fereal zine de Campo
Grande (MS); Total Destruction zine de Curitiba (PR) e o zine/revista especializada em
metal extremo A Obscura Arte de Curitiba (PR). As primeiras: Sad Theory e Murder
Rape de Curitiba (PR); Unearthly do Rio de Janeiro (RJ); Ocultan de São Paulo capital;
Miasthenia e Vulturine de Brasília (DF); Daimoth de Recife (PE)5. Esses zines e as
2
Dissenso no qual alguns estudiosos mergulharam. Ver Walser (1993, pp. 1-26), Weinstein (2000, pp.
18-21) e Alvim (2006, p. 61-63).
3
Esta pesquisa é precedida por outra sobre o mesmo tema (Campoy, 2005). Parte do material que utilizo
aqui foi levantada durante esta pesquisa inicial, tanto sob uma observação participante quanto uma
participação observante. Na época, integrava a formação de uma banda como vocalista. Vale dizer ainda
que, desde meus treze anos venho participando do underground do metal extremo. Toda a experiência
acumulada nesses anos certamente se reflete nesta pesquisa.
4
Zine, ou fanzine, é uma pequena revista de difusão variável e periodicidade irregular, editorada e
redigida pelos próprios apreciadores do metal extremo, mas muito comum em outros estilos de música
também, principalmente no punk. A seguir, teremos mais espaço para tratar das especificidades dos zines
de metal extremo no Brasil.
5
Procuramos escolher as bandas e os zines de modo que representassem as regiões do país. No entanto,
tivemos pouquíssimo sucesso em coletar material oriundo dos estados da região norte. Também não foi
possível assistir qualquer show de alguma banda desta região. Porém, acreditamos que essa falta não
20
gravações dessas bandas serão nossos principais interlocutores, mas sempre que
conveniente for, abordaremos material adjacente.
Era muito difícil encontrar informações sobre as bandas que eu curtia. A maioria das
revistas trazia informações sobre as bandas clássicas de metal, aquelas que todo mundo
já sabia tudo sobre elas. Por outro lado, também era muito difícil conhecer pessoas na
minha cidade que curtiam as mesmas bandas que eu. Isso porque aconteciam poucos
shows e tinham poucos lugares onde o pessoal podia se encontrar, como lojas de cd e de
roupas. Mas, além disso, creio que eram poucas as pessoas que naquela época, em
Curitiba, curtiam esse tipo de som. Então o zine foi a forma que encontrei tanto para
conseguir mais informações sobre as bandas que gostava quanto para conhecer pessoas
que tinham os mesmos gostos que eu.
comprometa a validade dos argumentos quando defendidos como válidos para todo o país. As fortes
semelhanças que iremos perceber entre os materiais de todas as regiões nos permite supor que no norte
elas também possam ser verificadas. Contudo, essa verificação fica a ser feita.
21
de 200 cartas por mês, do Brasil e do mundo todo. Eu recebia material de Manaus,
Bósnia e Malásia no mesmo dia. Chegou ao ponto em que eu virei referência para a
galera de Curitiba. O pessoal vinha me pedir material, até mesmo o Carlão, produtor do
programa de rádio sobre metal da época”. Em 1996, Mauricio entra para a universidade,
começa a achar que aquele “trampo do zine toma muito tempo”, e assim acaba com o
zine. Mas valeu a pena? “Claro, é muito legal ver que em muita fita-demo e cd tem lá o
agradecimento para o Total Destruction”.
O que denominamos de metal extremo baseia-se nisso que Maurício chama de
“coisa mais pesada”. Como ele mesmo me explica: “é esse metal mais brutal, mais
rápido (...), é death, black, trash, grind, splatter, doom, enfim, esse tipo de som”. Mas
Maurício, é mais pesado, mais brutal, mais rápido em relação a quê? “Cara, em relação
a esse metal mainstream, cheio de solo, gritinho agudo e firula (...), é metal, mais um
outro tipo de metal, mais extremo”.
O termo heavy metal não representa um único tipo de música. Sob seu tímido
abrigo, uma série de metais está em curso. Essa é a visão de Maurício, reverberada por
outras vozes deste universo, seja no Brasil seja em outros países6 É simplesmente
impossível especificar todos os metais do heavy metal. A segmentação do estilo, se
formos acompanhar a criatividade das bandas na etiquetagem dos seus sons, parece não
ter fim. No limite, cada banda está a compor um tipo de heavy metal, o qual será
etiquetado por termos como bombastic war black metal ou ultra noise porn splatter.
Todavia, essas segmentações dos estilos de heavy metal parecem acontecer
gradativamente, ou seja, uma dada segmentação só se desdobra a partir de outra, prévia.
O relato de Maurício Noboro nos indica uma segmentação seminal do heavy metal. Ele
inclui na categoria metal extremo toda uma série de estilos os quais seriam diferentes
(“mais brutais, mais pesados, mais rápidos”) do que chamou de metal mainstream. É
nessa distinção inicial feita por Maurício, tão amplamente escutada em campo durante a
pesquisa, que se define o tipo de heavy metal averiguado neste trabalho, qual seja, todo
aquele que se define como extremo.
Assim como no relato de Maurício, o vendedor de cds Mauro Flores, em
entrevista concedida ao pesquisador, nos diz que seu interesse pelo death metal e suas
6
A socióloga norte-americana Deena Weinstein (2000, pp. 43-52) afirma que duas formas distintas de
heavy metal se cristalizam a partir do final dos anos 80 no mundo todo: uma mais “comercial”, outra mais
“underground”. Essas duas formas, segundo a autora, agrupariam qualquer tipo de metal feito a partir
desses anos. O sociólogo inglês Kahn-Harris (2007) expõe argumentos semelhantes ao longo de todo seu
estudo sobre o metal extremo a nível mundial.
22
constantes idas aos shows de bandas nacionais deste tipo de heavy metal deve-se a essa
percepção:
Eu comecei a curtir death quando um amigo do meu irmão foi lá em casa com um disco
do Coroner. Faz tempo isso, devia ter uns 15, 16 anos, e já se vão ai mais 15 anos. Eu
fiquei louco com aquele som, me lembro até que disco era, o Mental Vortex. Era
lançamento (...) eu e meu irmão ouvíamos um Accept ali e um Helloween lá,
gostávamos muito dessas bandas, até hoje gosto. Mas a intensidade daquele disco bateu
mais fundo. Aquilo era brutal (...) não teve como escapar. Ai fui conhecendo mais coisa
do tipo (...) Cynic, Death, Morbid Angel, esse death da Flórida que no início dos anos
90 tava explodindo. Ai eu me perguntei: e não tem ninguém fazendo esse som aqui em
São Paulo? Pra minha grata surpresa tinha muita gente.
Mauro diz nunca ter participado de banda, mas se descreve como um “grande
apreciador do death e trash”. Essa apreciação, da qual “não teve como escapar”, não só
o tornou um habitué nos shows nacionais mas também fez com que ele estabelecesse
relações de amizade com outros apreciadores do death metal. Relações essas que,
segundo ele, lhe renderam um emprego:
Eu nunca tive saco pra estudar música, nunca tive vontade de tocar em banda, mas eu
comecei a ir direto nos shows do Vulcano, do MX e tal. Eu queria mais do que ficar em
casa ouvindo meus discos (...). E ai, com os shows, você conhece o pessoal, faz amigo,
por ai vai. Acho que meu trabalho aqui na galeria tem tudo a ver com isso. Claro que
tem. Eu só consegui esse trabalho porque sou amigo de anos do dono da loja, amigo de
show, de buteco (...).
Notem o tipo de emprego que Mauro conseguiu. Vendedor de cds em uma loja
na galeria do rock em São Paulo. Ora, esse local é, como disse certa vez King
Diamond7, “um verdadeiro shopping da música pesada”. Localizada no centro da capital
paulista, a galeria do rock é um prédio de quatro andares repleto de lojas especializadas
em “culturas alternativas”: no primeiro andar encontramos lojas de hip hop e
cabeleireiros afro. No segundo lojas de roupas e materiais para skatistas. No terceiro e
quarto, rock em todas suas vertentes. Mauro trabalhava em uma loja especializada em
“death, doom, black e trash” como disse. Ele não só se inseriu como um apoiador do
underground do metal extremo nacional, como também deixou o metal extremo
transbordar para sua esfera profissional. Gosta do trabalho Mauro? “Porra, era tudo que
queria. Tirando o salário baixo e a molecada que não sabe nada, que vem aqui querendo
7
King Diamond é um célebre vocalista do heavy metal. Dinamarquês, além da banda homônima, cantava
no Mercyful Fate. Ele teria dito isso em ocasião de uma tarde de autógrafos na galeria do rock em 1999.
23
cd do Dimmu Borgir8, tá legal (...) paga as contas, rola uns cds a preço de custo e
ingressos pros shows”.
No mesmo tom, o vocalista da banda catarinense Havoc, o Demoniac9, comenta
sobre a relação que sua banda mantém com o heavy metal de modo geral. Em uma
entrevista sua publicada no Anaites zine número oito, de 2005, lemos o seguinte trecho.
Cito pergunta e resposta:
O Heavy Metal (old) representa algo para vocês ou vocês costumam ouvir somente
Black metal?
Demoniac - Sim, já representou muito, na época que eu tinha 13 anos ouvia com
freqüência Heavy Metal mas isso foi a cerca de 14 ou 15 anos atrás, agora só me dedico
a cena extrema e a bandas extremas, sendo que meu gosto é bastante similar ao gosto
musical dos outros integrantes da Havoc.
Este “velho”heavy metal que o entrevistador alude refere-se a todo o estilo que
não seja black metal, tipo tocado e apreciado pelo Havoc. Sim, ele já representou muito
para Demoniac, quando era mais novo, provavelmente em seus primeiros anos de
apreciação do heavy metal. Mas agora, no momento da entrevista, seu gosto é
reclamado como estando voltado totalmente ao extremo.Sua dedicação é para a cena
extrema, a qual, mais adiante na entrevista, também chama de extrema cena
underground. Segundo Demoniac, desde 2002 ele vem se dedicando ao underground
como vocalista da banda Havoc.
Estes três relatos, de Maurício, Mauro e Demoniac, nos apresentam uma mesma
representação do heavy metal cingido em dois. O mainstream, “velho” heavy metal o
qual até apreciaram algum dia em suas vidas, mas que, em algum momento, não se
interessaram mais. Por outro lado, o death e o black, o extremo metal que lhes atraiu, do
qual “não havia como escapar”. Para eles, é como se o heavy metal fosse um núcleo
musical do qual emanam múltiplos feixes, porém, que se propagam em apenas duas
direções, underground e mainstream.
Uma questão de gosto, poderíamos dizer. Uma questão de vontade estética, de
deleite para com um tipo de organização sonora. Uma escolha de qual arte os apraz, seja
lá qual for o critério desta escolha. Certamente, mas suas apreciações estéticas não são
8
Dimmu Borgir: banda norueguesa de black metal a qual, segundo grande parte do público deste tipo de
metal, é “falsa”. Eles teriam ficado muito conhecidos e teriam vendido muitos cds. Para balizar, ver o
interessante item sobre a trajetória do Dimmu na indústria fonográfica em Moynihan & Soderlind (2003,
pp. 265-269).
9
Os músicos de black metal usam codinomes. Além de Demoniac, o Havoc, na época da entrevista,
contava com Evil na bateria, Itrasbiel Zulphulas e Hell Knight nas guitarras.
24
estáticas. Ver e ouvir o heavy metal dessa maneira, em dois, não é, de modo algum, uma
representação inerte.
Perceber o heavy metal dividido em dois grandes tipos, um central, mainstream,
outro extremo, underground, não só é uma representação do estilo como também
articula a vinculação dessas pessoas no underground. Maurício monta seu zine por
querer ouvir e conhecer “coisa mais pesada e extrema”, inexistente, segundo ele, no
mainstream. Mauro torna-se freqüentador assíduo dos shows locais, estabelecendo
amizades e até mesmo angariando um trabalho, porque queria mais do que ficar em casa
ouvindo seus discos. Demoniac diz que, agora, só se dedica a bandas extremas e a cena
underground extrema. Seja comparecendo aos shows como um apreciador, montando e
participando de uma banda ou ainda editando e escrevendo um zine, todos os três, para
ouvir e conhecer metal extremo, se conectam a outras pessoas que também querem
ouvir e conhecer metal extremo.
Começamos a vislumbrar no que consiste esse underground do metal extremo
no Brasil. A princípio, podemos dizer que ele é um conjunto de relações instituídas a
partir do interesse em compor, ouvir e apresentar esse tipo de heavy metal. Vimos como
é essa vontade de vivenciar o metal extremo que levou e leva Maurício, Mauro e
Demoniac a estabelecerem relações diversas com outras pessoas que também querem
vivenciar o metal extremo para além de uma escuta caseira das gravações.
Poderíamos defender que aqui está uma primeira demonstração de que o
underground do metal extremo no Brasil é mais do que música. Afinal ele também se
constitui de relações sociais. Mas tal asserção é prematura se lembrarmos de uma
condição essencial do fazer musical, por algum tempo relegada pelos estudiosos mas
ultimamente relembrada com força10: música não é uma atividade autônoma praticada
por um individuo autônomo. Práticas musicais, por mais musicais que sejam, são
associações de pessoas com pessoas, com instrumentos, partituras, conservatórios,
gravações e qualquer outro elemento propriamente musical ou não. Mesmo o mais
solitário compositor se vê em associação com toda uma tradição desta atividade quando
cria suas sonatas em um piano, quando anota suas criações em partituras e quando
arranja sua apresentação, imaginando a cadência da regência, a disposição da orquestra
e os aplausos no fim do ato. Isso para ficarmos em certo senso comum do fazer musical,
pois poderíamos ainda lembrar do trabalho de Maurice Halbwachs (1980) no qual toda
10
Essa lembrança é feita, por exemplo, em Menezes Bastos (1995) e Shepherd & Wicke (1997).
25
canalizar seus gostos. Vias subterrâneas nas quais, uma vez escolhidas, o gosto musical
divide sua preeminência com a própria sustentação e manutenção dessas vias. Pois o
que é o underground senão práticas musicais constitutivas do metal extremo, porém
tecidas em contraposição ao mainstream do metal? Tanto a música que fazem quanto as
formas pelas quais essa música é produzida, circulada e recebida tornam-se, assim,
objetos de dedicação.
É interessante observar como os praticantes explicam suas inserções no
underground. Descrevem-nas como conseqüências do arroubo que os primeiros
contatos com o metal extremo produziu na pessoa. O impacto que esse tipo de música
teve foi de tal modo, de tal força, que seria insuficiente relacionar-se com ela apenas
enquanto um objeto de apreciação estética. Escutá-la de vez em quando, ir a um show
ou outro e comprar um cd quando sobrasse dinheiro não seria o bastante diante da
impacção que essa música lhes causou. Foi preciso retribuir.
Cléverson, 35 anos, motorista de ônibus em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, e baterista (mas quando conversamos não tocava em nenhuma banda), descreve
seus primeiros contatos com o metal extremo de maneira semelhante àquela descrita por
Mauro:
No começo eu ouvia AC/DC, Iron e Nazareth, mas ai um colega me passou uma fita do
Slayer. Pirei, era aquilo, era aquilo que eu tava procurando(...) não demorou nem duas
semanas até eu estar gastando toda minha grana com aulas de bateria. Era aquele som
que eu queria fazer, era aquilo que eu queria fazer da minha vida, descer o braço na
batera (...) meu pai me bateu muito por causa da grana que eu gastava com as aulas,
com camisetas e com discos e não ajudava em casa (...) sei lá, hoje eu rio disso tudo,
mas tô aqui, no show, brutalizando (um largo sorriso toma seu rosto nesse momento,
enquanto levanta sua lata de cerveja em minha direção, querendo brindar o show de
seus amigos, sua presença ali, a brutalidade).
Demorou porque demorou pra aprender o instrumento (...) convite tinha toda hora, todo
dia neguinho me convidava pra fazer um som (...) claro, tava toda noite em show,
bebendo com os caras, indo nos ensaios (...) mas eu queria fazer direito, queria tocar
legal (...) comecei a fazer um som com uns caras depois de um ano ou quase isso.
me disse em trecho da conversa não citado acima, largou os estudos. Para ser um
músico de metal extremo.
Cléverson tem plena noção de suas escolhas. Apesar de parecer um pouco
magoado, ele entende que a vida de um músico de metal extremo não traz significativas
retribuições financeiras:
No começo eu até sonhava com a vida de rock star (...) fama, viagem, fazer o que eu
quisesse (...) ilusão, pura ilusão. Isso aqui não dá nada (tocar em uma banda de metal
extremo), você até paga pra tocar e sem ajuda de ninguém, todo mundo pensando no
seu (...) quem quiser fazer tem que fazer pelo som, tem que fazer por que gosta e não
vive sem a barulheira na cabeça (...) tem que fazer por orgulho.
Cléverson diz que já faz “uns vinte anos” que ele está “nessa”, tocando em
shows e comparecendo nos de seus colegas, para “apoiar”. Seus amigos, ele me disse,
são todos da “cena” e até mesmo sua esposa ele a conheceu “andando com a galera”.
Mas sua constância no underground ele explica por não viver sem “a barulheira na
cabeça”, por orgulho.
Escutar o metal extremo não é uma atividade qualquer, frívola e momentânea. É
isso que Cléverson quer nos dizer quando sublinha o impacto de suas primeiras
audições da música do Slayer. Ter escutado essa banda foi de tal modo significativo que
ele define esse momento como crucial para suas escolhas subseqüentes. Ele se encantou
por essa música de tal maneira que decidiu aprender um instrumento para tocá-la
também. Daí sua orgulhosa inserção no underground. Para além das desilusões, a
necessária “barulheira” o manteve em contato com os shows e eventos do underground
do metal extremo em sua cidade.
Importante precisar o mecanismo que buscamos esclarecer aqui. Os praticantes
do underground relacionam sua inserção neste espaço com um encanto que o metal
extremo teria lhes causado. Essa música ultrapassou a condição de produto, ela dotou-se
de um significado a mais para estes ouvintes, para além de um bem comercializável. Ela
se transformou em um sentido, em algo pelo qual quiseram se dedicar de alguma
maneira, fazendo-a também, ouvindo-a em shows, produzindo esses shows e
estimulando sua circulação. O ingresso no underground é o início dessa dedicação.
Essa maneira de explicar suas ingressões no underground não aparece apenas
em suas descrições dos primeiros contatos com o metal extremo. Com efeito, os
praticantes dizem que é assim que deve acontecer o conhecimento do metal extremo
pela pessoa.
28
Guga, 30, vocalista da banda curitibana de death metal Sad Theory, salientou em
várias conversas que tivemos que “o death se conhece sozinho, eu não mostro pra
ninguém, o cara tem que chegar nele por conta”. Mas porque Guga? “Death não é uma
coisa que você sai por ai mostrando pra galera, ou o cara descobre por conta e vai atrás
da parada (o death metal), ou fica do jeito que tá. A parada é para poucos, é pra quem
pode”. De fato, Guga se mostrou um tanto receoso quanto a mostrar sua coleção de cds,
tida por seus colegas como “muito boa”: “cara, eu até te mostro, mas digo desde já, eu
não vou gravar nada pra você e muito menos te emprestar. Tem cd ali que nem eu
ouço”.
Apesar de aparentemente contraditórias, as posições de Guga e Cléverson
coadunam-se. Mesmo que para o segundo o metal extremo tenha sido apresentado por
um amigo e para o primeiro ele deve ser descoberto sozinho, ambos apontam para o
caráter afetivo que esse tipo de música tem entre os praticantes do underground. Para
Guga, a individualidade da descoberta enfatiza a apreensão dessa música em um
registro outro que não o da música como produto, descartável e/ou utilitária. O metal
extremo é pessoal, e sua descoberta é a culminância de uma procura afetiva da pessoa.
Descobrir por conta o metal extremo é dar total vazão a essa relação contínua entre
música e subjetividade. Daí o extremo cuidado de Guga com seus cds. Para ele, sua
coleção vai muito além de um aglomerado de cds. Ela é o resultado de sua trajetória no
underground do metal extremo. Ai ele achou a música e essa descoberta o ajudou a se
achar. Professor de história e caçula entre seus quatro irmãos, Guga mora com os pais e
faz questão de sublinhar a importância material do metal em sua vida: “cara, eu trabalho
para bancar os ensaios e gravações da banda e os meus cds”.
Arroubo, impacto, significado. O metal extremo para os praticantes do
underground não é um produto alienável, uma “curtição” das horas vagas, um som
ambiente. Como muitos nos disseram, desta música um poder muito forte emana e
portanto, todo o cuidado em se aproximar dela. Se ela lhe tocar, se ela ultrapassar a
aparência e ressoar em sua essência, estará imbricado nela, estará entrelaçado nela e
assim, tudo que pode fazer é retribuir aquilo que ela lhe está dando pelo arroubo, pelo
impacto e pelo significado.
Em uma entrevista ao sítio eletrônico Metal Attack o músico Mantus, da já
inativa banda carioca de black metal Mysteriis, expressa de modo exemplar essa relação
que o praticante do underground tece com o metal extremo: “Eu costumo dizer que não
é a pessoa que escolhe tocar Black Metal, mas sim o Black Metal escolhe aqueles que
29
possuem o necessário para o representar”. Para Mantus é como se não houvesse outra
escolha ao apreciador de black metal a não ser praticá-lo. O contato com o estilo é como
um chamado. Se a pessoa responde é porque possui os atributos para representá-lo, ela
está apta a praticá-lo11. Esta representação, esta retribuição, dar-se-á por uma dedicação
ao black metal e ao seu espaço de existência, o underground.
Dissemos acima que o underground se constitui a partir de uma rejeição daquilo
que seus praticantes denominam mainstream. Essa aversão começa a ser construída
desde o momento no qual a pessoa entra no underground. Segundo seus praticantes,
como pudemos observar, a forma como eles escutam a música é diferente da forma
como ela seria escutada no mainstream. Enquanto aqui a música é um produto, lá é um
sentimento, enquanto lá ela está inextricavelmente conectada à pessoa, aqui ela está
descolada de qualquer afeto. Para os praticantes do underground o metal extremo é
virtude, é forte, uma verdade, e o metal mainstream é fingimento, é fraco, é falso. Não
seria um exagero afirmar que, para eles, se trata não só de formas diferentes de escutar
música, mas também de músicas de diferentes qualidades.
A diferença entre essas músicas, esses tipos de metal, opera o ingresso da pessoa
no underground. O fato de que seus praticantes explicam suas inserções no
underground por um arroubo afetivo que o metal extremo teria lhes causado nos parece
ser um dado de extrema importância para a pesquisa. Primeiro porque começamos a
vislumbrar uma característica central do underground, qual seja, um severo zelo na
transformação daquilo que lhe é estranho, externo, naquilo que lhe é próprio, interno. A
dinâmica constitutiva do espaço do underground parece tomar extremo cuidado em
como se dará seu metabolismo, em como aquilo que lhe é diferente torna-se semelhante.
Desse ponto de vista, o ingresso da pessoa é uma espécie de rito de iniciação no qual a
tarefa que o aspirante precisa cumprir é a transformação de sua escuta da música. Em
meio a infindável gama de estilos musicais presentes na urbe, dentro deste vasto
gradiente de músicas veiculadas nos mais diversos meios de comunicação, o aspirante
precisa descobrir o metal extremo e escutá-lo para além de uma música ambiente, como
um som afetivo, logo significativo. Se de fato essa significação se processou, dizem os
11
Agradeço a Claudia Azevedo por ter me indicado a leitura da entrevista citada. Em um de seus textos
(2007), ela também analisa a mesma entrevista, procurando refletir sobre a construção das fronteiras dos
múltiplos estilos de metal extremo no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro.
30
12
Aliás, essa é a palavra mesma que Mantus usa, na mesma entrevista já citada, para traçar sua
aproximação do black metal: “Black metal não foi uma escolha! Foi algo natural visto que a maioria das
bandas que me influenciaram tocam e pregam o estilo”.
13
Tradução livre de: “music has organizational properties”.
31
Cara, eu não venho aqui pra curtir, eu não venho aqui pra festar. É claro que eu quero
ver meus amigos, ouvir um som, tocar minhas músicas, beber, sair de casa, dar um
tempo do trampo, é claro que tudo isso é legal, é bom, é um prazer. Mas não é esse o
esquema do underground, pelo menos não é esse meu esquema com o underground.
Minha vontade aqui não é curtir, isso é conseqüência (...), o que eu quero é fazer o
underground e eu acho que todos aqui pensam ou deveriam pensar assim também. E no
fim das contas toda essa dedicação acaba sendo um grande prazer também. Um prazer
de me orgulhar em fazer algo que acredito.
resolveu fazer de seus estudos uma maneira de “lutar pelo underground”. Em certas
ocasiões, essa transformação de um possível defeito em virtude foi extremamente
benéfica para a pesquisa.
Maio de 2006. Show em São Paulo do Anathema, banda inglesa de doom metal.
Como era feriado, resolvi ir assistir o show, passar na galeria do rock e visitar alguns
conhecidos da cena metal paulista. Chego ao local do show, no Hangar 110,
acompanhado por alguns colegas. Estávamos todos muito animados com o evento.
Além de gostarmos muito da banda principal haveria quatro apresentações prévias de
bandas brasileiras, todas voltadas ao doom. Faltando algumas horas para o local abrir, o
bar logo a frente já estava repleto de homens e mulheres em preto, todos obviamente
presentes pelo show. Aconchegamo-nos em uma mesa, pedimos uma cerveja e
dissolvemo-nos no aglomerado negro, conversando e apreciando o som ambiente,
Candlemass, banda sueca unânime entre fãs de doom.
Entramos na casa de show e logo percebemos que algo não estava certo. Os
banheiros estavam lacrados e o bar não estava funcionando. Apesar da indignação e das
reclamações de vários presentes o primeiro show, de uma banda brasileira, começa.
Show rápido e tenso, a banda parece não conseguir desenvolver sua música. Tocam não
mais do que meia hora e, logo que deixam o palco, o organizador do evento fala ao
microfone que devido à “problemas técnicos” as outras bandas brasileiras não vão mais
tocar e o palco está sendo preparado para o Anathema. Estranho, ainda era cedo, a
acústica do recinto estava boa e não parecia haver nenhum problema com o
equipamento de palco. Não passou dez minutos desse primeiro comunicado quando o
organizador volta ao palco para anunciar aquilo que já se pressentia: a banda principal
não se apresentará por problemas da casa de show com a vigilância sanitária da capital
paulista. Após certo pandemônio generalizado, com alguns gritando “quero meu
dinheiro de volta” e outros lamentando apaixonadamente a perda do show, conseguimos
sair de dentro da casa, não sem antes trocar umas palavras com os próprios integrantes
do Anathema, também pegos de surpresa pelo cancelamento em cima da hora. De fato,
o problema todo era da casa para com a burocracia municipal. Mas a noite estava apenas
começando e o melhor que tínhamos a fazer era sentar em um bar, falar mal do Hangar
110, reforçar nosso apreço pelo metal e botar a conversa em dia.
Estávamos em seis pessoas na mesa, cinco homens e uma mulher, todos
morando em São Paulo menos eu. Como conhecia apenas um deles e estava conhecendo
os outros naquela noite não demorou muito para que a conversa rumasse para uma
34
Olha, não tenho tempo para isso, me desculpe. Mas posso te dizer uma coisa? Meu
interesse pelo metal negro não tem nada a ver com gosto. Não é só uma música, não é
só um gosto. É um destino que só a mim concerne. Espero que compreenda.
Sinceramente (...)
Novamente, é preciso ter em mente que tal postura é contrastante com a forma
que eles percebem o mainstream. Neste a música é apenas para ouvir, descolada de
35
qualquer outro significado que o prazer corpóreo, auditivo ou dançante. A relação que a
pessoa ai teria com a gravação, com o show, com os meios informativos, enfim, com
todas as práticas do mainstream, seria a de um consumidor passivo. Tudo que a pessoa
precisa fazer é pagar. Para ter sua música, sua “curtição”, ele não precisa montar o
show, escrever revistas ou ter sua própria banda. Daí sua passividade. Ele só recebe, não
faz. No mainstream, a música é apenas uma questão de gosto. Já no underground a
pessoa precisa ser um produtor ativo deste espaço. Ela precisa esforçar-se para mantê-
lo, ela precisa lutar por ele. Com efeito, já que ele não é uma questão de gosto, já que
praticá-lo é classificado pelos sues integrantes como um destino, então não basta apenas
estar lá em seus eventos. Como dizem seus praticantes, não basta “dar as caras” de vez
em quando. É preciso apoiar, é preciso fazer o underground.
Lembremos daquela definição inicial do underground: um conjunto de
atividades interessadas em produzir, circular, apresentar e escutar metal extremo no
Brasil. Consoante com essa definição, fazer o underground é se inserir de alguma
maneira nessas atividades. A pessoa estará fazendo isso, aos olhos e ouvidos de seus
praticantes, se participar de atividades que instalam e promovem a troca de metal
extremo.
14
Trampada, de trampo, uma corruptela de trabalho. Na descrição, a palavra indicava que as guitarras da
banda em questão eram virtuosas, com fraseados ao mesmo tempo velozes e cheios de notas.
15
O cd me custou doze reais. Valor de 2005.
37
play, de longa duração. É uma gravação de uma banda só, ou seja, não é nem um split,
uma gravação dividida por duas bandas, muito menos uma coletânea, uma compilação
de canções de várias bandas. Pela sua produção “bem feita”, com capa impressa em
papel couché e cd prensado industrialmente, difere também de um cd ou fita reh19, uma
gravação de um ensaio que a banda resolve lançar, e um cd ou fita demo, de
demonstração.
Esses tipos de gravação, todos utilizados pelas bandas, diferem quanto ao tempo
de duração, ao número de bandas participantes e principalmente quanto a sua produção.
Compreenderemos melhor essas diferenças balizando-as com uma descrição do cd do
Daimoth.
O Inquisition foi gravado, como indicado no diálogo transcrito acima e depois
confirmado pela banda, com o Pro Tools. A principal característica desta forma de
gravação digital, lançada inicialmente em 1989, é que ela permite uma produção caseira
da música. Ela não demanda um estúdio de gravação (apesar de ser também muito
utilizada por profissionais), não requer outras tecnologias além de um computador e um
microfone e, apesar de ser um tanto complexo seu manuseio, pode ser gerenciada por
um não especialista. Basta que a pessoa tenha paciência para aprender a usá-la
bisbilhotando-a20.
Foi dessa forma caseira que o Daimoth gravou o Inquisition. Literalmente. Em
entrevista concedida por e-mail ao pesquisador, eles21 dizem:
19
Reh de rehearsal, ensaio em inglês.
20
Essas informações foram retiradas do sítio eletrônico da companhia que produz o Pro Tools,
www.digidesign.com, e de uma conversa com Murilo Da Rós, produtor musical, músico e proprietário do
estúdio de gravação Clínica PRO Music em Curitiba. Nessa conversa Murilo também comentou sobre as
controvérsias emergidas entre músicos e produtores com o advento desta tecnologia. Segundo ele, a
principal revolução tecnológica deste programa, além de ser o primeiro a cumprir com os três processos
básicos da produção eletrônica da música (apreensão do som, mixagem e masterização), está na
possibilidade de gravar uma nota de cada vez para depois compilá-las em uma faixa só. O programa
corrigiria assim possíveis erros e deficiências de habilidade dos músicos. Apesar de estar sendo
largamente utilizado por profissionais e não profissionais da música, as possibilidades que o Pro Tools
oferece, segundo Murilo, permite que pessoas “sem talento e sem qualidade técnica” gravem e lancem
música.
21
As respostas foram assinadas pelo Daimoth. Nenhum integrante se identificou.
22
Guia é como as bandas chamam uma gravação com todos os instrumentos juntos das canções que serão
gravadas. No processo de gravação do cd em si cada instrumento é gravado separadamente e o músico
ouve a guia enquanto grava suas partes.
39
Notem a relação que a resposta faz. O Inquisition não é uma demo porque a
banda teve “muito cuidado no acabamento”. De fato, quando se compara o cd com uma
gravação considerada demo pela banda, percebe-se que Inquisition é tudo menos
“tosco”, adjetivo esse que Lalas, baixista do A Tribute to the Plague, usou em algumas
conversas que tivemos para classificar a qualidade da fita K-7 demo de sua banda:
A demo é muito tosca. A gravação foi ruim, a gente entrou no estúdio sem saber muito
bem o que ia fazer e como tínhamos pouca grana a gente teve dois dias pra gravar. E
ainda por cima copiamos as fitas em casa mesmo, no som de casa (...) é uma chiadera só
(...) mas valeu pra aprender.
A demo em questão, sem título, foi gravada e lançada em 1998. Contém duas
músicas num tempo total de doze minutos e quatorze segundos e foi gravada em
estúdio, analogicamente23 em uma mesa de oito canais. Apesar de não terem gostado do
resultado final da gravação a banda resolveu lançá-la, todavia timidamente:
A demo serviu mais para testar o som da banda, pra ouvir o que a gente tava compondo.
E como tinha uma moçada querendo ouvir o som fizemos umas cem cópias em casa
mesmo e vendemos nos shows, acho que por uns três reais (...).
23
Analógico, processo de gravação mecânico e não eletrônico. O som sai dos amplificadores direto para
uma fita master via microfone sem mediação de qualquer computador. A mixagem da fita, o processo de
equalização do volume de cada instrumento, pode ser feito tanto de modo analógico quanto digital. No
caso em questão, analógico.
40
brasileiro. As bandas financiam suas gravações por conta própria na grande maioria das
vezes.
Esse é o caso do Madrigal of Sorrow, segundo full length da banda curitibana
Sad Theory. Lançado em 2003, o cd possui onze canções e um vídeo. As gravações
aconteceram durante todo o ano de 2002 no estúdio Clínica PRO Music, em Curitiba, de
propriedade do já citado Murilo Da Rós. Pude acompanhar todo o processo de sua
feitura, desde os ensaios finais até o show de lançamento24.
Quando questiono porque o Madrigal é um full, Guga, o vocalista, me responde
que “as músicas se completam, uma chama a outra (...) do jeito que compomos não tem
como ouvir uma música só”. E Carlos, baixista, complementa: “é um cd completo
porque há um conceito que perpassa todas as músicas, um conceito trabalhado a partir
do livro de Baudelaire, As Flores do Mal”.
Olhando de fora o Madrigal of Sorrow não difere em nada de um cd da
Madonna ou do U2, por exemplo. Guardado em uma slipcase, o cd traz uma estampa de
flores verde e branca, as quais parecem ser extensões do desenho de um caule espinhoso
que ilustra a capa, denunciando o motivo baudelariano da produção. O encarte de onze
páginas começa com um poema de autoria do baixista da banda, evolui pelas letras das
canções entremeadas por fotos dos integrantes e mais desenhos de flores, terminando
em uma ficha técnica da gravação e nos agradecimentos. Os textos e as fotos estão
nítidos e, algo raro nas produções do underground, as canções possuem copyright25
identificado no encarte. O resultado da gravação, aqui também desempenhada através
do Pro Tools, é considerado tanto pelo produtor do disco, Murilo, quanto pela banda
como “muito bom”. Sem chiados e sem ruídos indesejáveis, para Guga as canções “têm
vida”. Este cd, como qualquer outro produto da indústria fonográfica, nada mais é do
que o cume de uma série de ações sincronizadas. No entanto, sua filiação underground
se descortina quando compreendemos a articulação dessas ações.
24
Todo esse processo durou dois anos, 2002 e 2003. Tanta convivência junto, além de fazer com que nos
tornássemos mais amigos do que já éramos antes, culminou com uma parceria entre o pesquisador e a
banda na composição de uma das canções da referida gravação, intitulada Blinding Sun.
25
Quando uma canção tem copyright, explica-me o guitarrista da banda, quer dizer que ela foi publicada
oficialmente. A banda manda para o órgão oficial que cuida desses trâmites, controlado pela escola de
música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, partitura e letra das canções, paga uma taxa e garante
os direitos de autoria sobre suas composições. De fato, a banda me cobrou uma taxa pela publicação da
letra que escrevi junto com eles. Aliás, a taxa que me cabia pagar, equivalente a minha parte de
composição no cd, era de 6,66 reais. O valor, significativo para um estilo de música que adora falar do
diabo, foi objeto de algumas brincadeiras entre nós.
41
A banda bancou a grande maioria das etapas de produção do cd. Quando não o
fez foi porque algum amigo de algum dos integrantes “deu uma força”. Totalizando
cinco mil reais, o custo da gravação, diárias do estúdio e mão de obra do produtor, foi
dividido entre os integrantes, mil duzentos e cinqüenta reais para cada um, pagos em
módicas parcelas durante todo o ano de 2002. As fotos do encarte foram feitas pelo
amigo Otávio, o qual, nos shows, também é ajudante de palco da banda. As artes do cd
e do encarte foram feitas pelo Juan II, irmão do guitarrista Juan I. O vídeo incluso no cd
também teve seus custos de produção pagos pela banda, a não ser a locação, sítio do
amigo Athos, também letrista de cinco canções, e o cachê da atriz Ana, a qual abriu mão
de seu pagamento em razão de ser o vídeo da banda do seu então namorado, o Guga.
Nos três casos apresentados, o financiamento das gravações foi custeado pelas
próprias bandas. É interessante notar que esse gasto, longe de ser um prejuízo, é
percebido pelas bandas como um dispêndio positivo. No discurso do Sad Theory, apesar
de enxergarem os custos da gravação como um mal necessário, não vêem outra forma
de produzir sua própria música: “fazer música própria no Brasil é assim mesmo, ou
você banca ou esqueça. Ninguém vai chegar pra você e bancar sua carreira”, comenta
Carlos. Guga complementa a resposta argumentado que “mesmo se alguém quisesse
bancar, algum empresário ou gravadora, teriam que deixar todo o processo nas nossas
mãos. Como isso não existe, sempre vão querer meter o dedo na sua música, deixa que a
gente banca por conta”.
O Sad Theory completava cinco anos de atividade na ocasião da gravação. Antes
dela, já haviam lançado uma demo e um primeiro full length. Todo esse trabalho prévio,
juntamente com os vários shows realizados por todo o país, emprestava à banda um
reconhecimento positivo entre os apreciadores de metal extremo no Brasil. Este gozo de
certa notoriedade levanta a possibilidade de acontecer com a banda aquilo que podemos
chamar de uma profissionalização, ou seja, de ter seu trabalho financiado por outros
atores e instituições da indústria fonográfica, como o empresário e a gravadora. No
entanto, se isso ocorresse, a banda diz que perderia aquilo que lhe é essencial, o controle
sobre sua música.
Para as bandas do underground do metal extremo brasileiro, profissionalização é
sinônimo de perda de controle sobre sua música. Não há possibilidade de fazer metal
extremo da maneira que querem, tendo o controle total da composição e da gravação, ao
mesmo tempo em que são financiados para tanto por outrem. O empresário ou a
gravadora invariavelmente demandaria alterações em algum desses processos, “meteria
42
A banda possui empresário ou teve ajuda para arcar com os custos da gravação?
Não e nem queremos. Nós aliamos nossas forças apenas com pessoas, selos e distros
que sejam totalmente underground. Desprezamos a fama e o lucro (doenças do
judaísmo e do cristianismo) e só queremos que os fiéis seguidores do underground
tenham acesso ao Inquisition.
26
Yuri não identifica a cidade, mas certamente é Sorocaba, cidade da banda Prophetic Age e de Juliano.
27
Muito provavelmente o “sobrenome” de Juliano é seu codinome como frontman da banda.
28
Todas essas informações foram coletadas tanto no show em Juiz de Fora quanto em alguns e-mails
posteriormente trocados com Yuri.
29
Debut: primeiro full length de uma banda. Se lançaram alguma gravação antes do seu debut foi uma
demo ou uma fita-reh.
44
lançamentos destes na suas regiões, Juiz de Fora, Minas Gerais, onde Yuri atualmente
mora, e Sorocaba, São Paulo, cidade onde habita Juliano. Nestas situações onde a
Nocturnal Age não é mais um selo, principal financiador e distribuidor de um
lançamento, ela é um distro30, distribuidor dos lançamentos de outros selos. Sendo
assim, Yuri entende que a Nocturnal Age Records pode ser considerada um selo e um
distro.
As diferenciações entre um selo e um distro ficam mais nítidas se as percebemos
na dinâmica da parceria entre a banda Daimoth, o Suicide Apology Records, ambos de
Recife, Pernambuco, e o Nocturnal Age Records, situado ao mesmo tempo em Juiz de
Fora e Sorocaba, no contexto de lançamento do Inquisition. A banda arcou com a
gravação, a Suicide prensou o cd e o vende no nordeste31 e a Nocturnal o vende no
sudeste. Logo, a Suicide é o selo, responsável pelo lançamento, e a Nocturnal seu distro
oficial no sudeste. Diferenciação essa estampada no próprio cd:
Os selos e os distros são os agentes externos aos quais, normalmente, uma banda
do underground se alia no intuito de fazer com que suas gravações circulem em um
perímetro o mais amplo possível. Incansáveis copiadores e sagazes vendedores, os selos
e os distros são espécies de links do underground. Clicando em seus ícones, tem-se
acesso a uma série de outras possíveis relações dentro deste espaço. Os selos e os
distros entendem que a matéria prima do seu negócio, a distribuição, muito mais do que
“boas bandas”, são os contatos.
30
Diminutivo de distribuidor. Vale lembrar que não encontrei gravadoras underground, ou seja,
instituições que financiam a gravação das bandas. Esta etapa da produção de um cd, como vimos, fica
totalmente a cargo das bandas.
31
A Suicide também oferece o cd em seu sítio eletrônico.
45
32
Prod de produção ou produtor. Os selos e distros geralmente são denominados, em seus “nomes
fantasias”, por prod ou records.
46
Verso do catálogo. Cada linha refere-se a uma gravação disponibilizada pela Mountain.
Maurício Noboro: “como não dava pra gravar disco em disco, grava em fita K-7
mesmo”. Mesmo atualmente, principalmente entre os apreciadores de black metal,
alguns praticantes gabam-se de ter “mais de quinhentas fitas K-7 só de material
underground33”. Foram justamente esses ávidos colecionadores de fitas os primeiros a
vendê-las por correio. Count Butcher, praticante de longa data residente em Blumenau,
Santa Catarina, contou-me que começou a vender fitas no final dos anos 80 porque:
(...) cara, eu já tinha tudo, todas as listas que mandavam eu já tinha tudo, mas a galera
não tinha o que eu tinha e ficavam pedindo pra que eu liberasse o material (...) ai eu
comecei a pedir uma ajuda no custo da fita. A galera mandava grana na carta mesmo e
eu mandava a fita pra eles.
33
Kahn-Harris defende que a prática de trocar fitas é comum no underground do metal extremo mundial
(2007, pp. 79-81).
34
Com “bandinhas melódicas” conde refere-se às bandas do metal mainstream, as quais, segundo ele,
“seriam mais voltadas à melodia do que ao peso”. Poser é um termo muito comum entre os fãs de metal
em geral. A palavra adjetiva alguém que se preocupa mais com a imagem, com as roupas, com o look do
que com a música e os sentimentos que ela proporcionaria. O poser só faz pose, diferentemente de seu
antônimo, o headbanger, que sente a música.
52
Esse pessoal que vende bandinha melódica tá sempre mandando catálogo, oferecendo
produto sem eu pedir (...) os caras fazem de tudo pra vender. Eu só compro deles
quando é lançamento de banda grande que vai vender muito ou banda clássica (...) Iron,
Black, Judas, essas bandas tem que ter sempre na loja. Quando é metal extremo
nacional ai é diferente (...) eu tenho que ir atrás e descobrir o que tá rolando e mesmo
assim muitos nem mandam (...) já tive que pedir pra moçada de banda falar com eles
que pode mandar que aqui é loja real.
Algumas bandas que gravaram e lançaram por conta própria suas gravações
deixam algumas cópias nas lojas de suas cidades para venda. Loja e banda chegam num
acordo quanto ao valor do produto e a porcentagem que ficará com a primeira e o cd vai
para a gôndola. Todavia, com os selos e distros é diferente. O interesse de comercializar
esses produtos deve partir do proprietário da loja, pois dificilmente um selo oferece seus
produtos por iniciativa própria. O que me surpreendeu na loja do Conde foi a grande
quantidade de produtos underground que raramente encontrava em outras lojas do país.
Foram necessários dez minutos de conversa para entender as razões dessa
especificidade: “cara, eu luto pelo underground faz vinte anos, brutalidade sonora é
minha vida e a minha loja é uma extensão disso tudo”. Conde mostrou interesse em
vender produtos underground e, o mais importante, foi aceito como vendedor desses
produtos justamente por fazer parte daquele circuito de contatos formulador deste
espaço. Ele é um praticante do underground assim como Juliano Sferatu, Edson e
Hioderman. Tão praticante que até codinome tem.
Os argumentos de Conde ressoam nos de Yuri. Indagado se a Nocturnal Age
vende seus produtos para lojas, responde que:
(...) a princípio sim. Mas primeiro, tem que ser loja de heavy metal. Segundo,
procuramos saber como funciona a loja, quais produtos ela vende. Terceiro, procuramos
referências sobre o proprietário, geralmente através de conhecidos que moram na cidade
da loja. Após termos essas informações decidimos se venderemos ou não. Loja grande,
estilo Saraiva, nem pensar, fora de questão.
está a Rock Animal que não vende produtos underground. Seu proprietário promoveu
shows de bandas consideradas mainstream pelos nossos informantes. Atrás do balcão
desta loja vemos uma foto do proprietário com os integrantes da banda norte-americana
Kiss, tirada em ocasião do seu show em São Paulo em 1999. Ora, ninguém representa
melhor o metal mainstream aos ouvidos dos praticantes do underground do metal
extremo brasileiro do que o Kiss e o também norte-americano Metallica.
Seria difícil traduzir as vendas do underground em números. Porém, sua
principal modalidade de comércio não é aquela feita por correio ou nas lojas
especializadas. São importantes, mas não se comparam com as vendas feitas nos shows.
A apresentação ao vivo das bandas é o principal momento deste espaço. Mais
adiante teremos melhores condições para tratar de tal centralidade. Por ora, podemos
visualizá-la na forma como a troca acontece no âmbito deste evento. A venda no show
não necessita das informações prévias que a venda por carta demanda. Ela também
desarma as possíveis desconfianças de um praticante do underground em vender seus
produtos para uma loja. Aos olhos de um praticante se você está no show é “natural”
que você tenha alguma conexão com as atividades e eventos do underground. Logo, as
trocas cuidadosas e desconfiadas das cartas e das lojas se transformam, no show, em
trocas despreocupadas e garantidas.
As mesas com produtos à venda fazem parte da paisagem de um show.
Verdadeiras feiras do underground, essas mesas são montadas pelos responsáveis dos
selos e distros ou por qualquer um que queira vender gravações, zines e camisetas.
Antes das apresentações começarem ou no intervalo de uma banda para a outra, o
público se amontoa nelas querendo ver o que o Edson trouxe dessa vez, qual é o novo
lançamento da Suicide Apology ou que vinil da Genocide Productions o Yuri trouxe.
Foram em conversas nessas mesas que soube da existência de Hioderman e de seu
complexo underground. Foi em uma delas que adquiri o cd do Daimoth e conheci Yuri
e seu Nocturnal Age Records, assim como Edson e seu Mountain distro/prod. Ficamos
sabendo de uma banda ou de um recente lançamento e conversamos com quem produz e
distribui essas gravações. Trocam-se, sobretudo, informações. Como esses shows não
acontecem todo dia e como sabemos que aquelas gravações são raras e difíceis de
encontrar, gastamos mais do que o previsto.
Durante o ano de 2002, os curitibanos do Sad Theory, além de gravar seu
segundo disco completo, fizeram alguns shows em cidades próximas. Um deles
aconteceu em Ponta Grossa, cento e cinqüenta quilômetros ao norte da capital
54
Onze horas da manhã de um sábado de sol e cá estamos na Van alugada indo para Ponta
Grossa. Além de mim, do motorista e da banda, acompanham-nos Raquel e Ester,
respectivamente namoradas do Juan e do Carlos, Athos, André, Otávio e Jaison, amigos
da banda. O evento vai ser numa casa de shows nova, comenta Guga em voz alta: “além
de nós tocam uma banda de Cascavel, outra de São Paulo e a banda do Roger”. Este
último, conhecido de Guga, foi quem convidou o Sad Theory.
Somos os primeiros a chegar. “O pessoal de Cascavel já tá chegando e os caras de São
Paulo chegam mais à noite” informa Roger. Tudo estava por fazer, desde a montagem
do palco até a organização do bar. O tradicional mutirão do show entra em cena.
Lá pelo fim da tarde chega “o pessoal de cascavel”. Além dos integrantes da banda, um
pequeno séqüito veio do oeste paranaense, também formado por namoradas e amigos.
Algumas horas depois “os caras de São Paulo” também aparecem com seus amigos e
namoradas.
Nenhuma das bandas está recebendo cachê pelos shows de logo mais. Roger,
organizador, garantiu equipamento de amplificação e bar livre para todas as bandas.
Elas, por sua vez, precisariam trazer instrumentos próprios e arcariam com o
deslocamento até Ponta Grossa (O Sad Theory dividiu os custos da Van com seus
amigos e namoradas). Mas em retribuição ao convite aceito, Roger ofereceu para todas
as caravanas um jantar em um rodízio de pizza.
Essa parte foi interessante, não pela pizza, mas pelas conversas entre os representantes
de cada cidade. Intensa troca de informações sobre as cenas locais, quem saiu de qual
banda, quem está gravando e quais shows vão rolar. Guga é sempre o melhor do Sad
Theory nesses momentos. Por isso ele é o encarregado de realizar a tradicional troca de
cds. Deu para cada banda um cd do ST e em troca recebeu os cds delas. Eu, como não
fazia parte dos oficiantes da caravana de Curitiba, a banda, comprei os cds dos
paulistanos e cascavelenses. A banda do Roger ainda não tinha gravado nada.
Durante o show todas as bandas colocaram seus cds à venda na sala de entrada da casa.
Não deu outra: tudo vendido. Conversando com Juan sobre o sucesso das vendas ele
diz: “é por isso que a gente toca de graça, não só pra vender cds (...) nesses shows fora
de Curitiba divulgamos a banda e abrimos chances de tocar em outras cidades. Os caras
de Cascavel acabaram de convidar a gente pra ir tocar lá daqui alguns meses”.
Por outro lado, como essas bandas chegam no dia da apresentação e vão embora
logo após o show acabar, o organizador oferece alimentação para as bandas. No show
em Ponta Grossa, o Sad Theory resolveu, durante o jantar, dar um cd para Roger
justamente por ter achado “muito legal” da parte dele oferecer aquele banquete de
pizzas para nós todos. Afinal, como defendeu Carlos, “ele não tem nenhuma obrigação
de pagar por isso aqui”.
Retribuições como essas não acontecem apenas nas relações da banda com o
organizador. Entre as bandas, há o costume de trocar gravações e se convidarem para
tocar em shows nas suas respectivas cidades. Podemos encontrar essas prestações e
contra-prestações até mesmo entre a banda e o grupo de amigos que os acompanha. A
divisão dos custos de deslocamento entre todos é retribuída pela banda por entrada livre
no show, algumas bebidas de graça e talvez o melhor, o agradecimento pelo “apoio”
feito no palco. No show de Ponta Grossa, por exemplo, Guga gritou algumas vezes, no
intervalo entre uma canção e outra, o nome de todos nós, dizendo que éramos “foda,
vocês são foda, valeu mesmo por toda a força”.
Financeiramente falando, certamente essas retribuições ocupam uma função
compensatória. Em um evento que demanda gastos expressivos e pouco retorno
financeiro, todos os implicados procuram aliviar as despesas uns dos outros. “Dão uma
força”, contribuindo o quanto podem e fazendo aquilo que está ao seu alcance.
Porém o equilíbrio das expensas não é a única função dessas retribuições. Juan
nos dá a chave para compreender o que mais elas articulam: “(...) divulgamos a banda e
abrimos chances (...)”.
Acima identificamos o underground como um sistema de circulação de pessoas
e produtos a nível nacional tanto formulado quanto estimulado pelos contatos. Ora,
esses contatos são desdobramentos dos encontros acontecidos nos shows. Esses eventos
são como as ilhas no Kula descrito por Malinowski (1983 [1922]). Grupos provindos de
diversas regiões do país se encontram para tocar e ouvir metal extremo underground.
Situação ideal no entendimento de Juan para divulgar sua banda. Divulgar, novamente,
no sentido forte deste verbo: vendendo gravações, firmando shows e acordos de
lançamento em outras regiões, apresentando suas composições ao vivo, em um termo,
mostrando que a banda está ativa e “batalhando” pelo seu devido lugar. A princípio,
quem está presente, seja músico ou público, está ali “batalhando” pelo underground.
Mas essa suposição precisa se transformar em uma confirmação. O encontro
precisa se transformar em contato. Daí a eficácia das retribuições. Recebendo e
56
A partir dos três itens anteriores podemos concluir que as etapas de gravação,
distribuição e venda da música, em conjunto, formam uma economia. Um sistema de
circulação de bens materiais produzidos por músicos, distribuídos por intermediários e
consumidos pelo público. Até ai, economia ordinária que se distingue muito pouco,
diriam os economistas, de outros modos de produção, como a atividade petrolífera ou a
de farinha de trigo, por exemplo. A não ser as especificidades que a manufatura requer,
o processo que nela resulta é idêntico nestas três economias, qual seja, a conformação
de um mercado a partir da produção, distribuição e consumo de um dado produto.
Não há nada de errado em definir o underground do metal extremo brasileiro
como um mercado. Seguramente ele pode ser interpretado como um coletivo
constituído por meio de relações de troca. Poderíamos até mesmo traçar as oscilações
das ofertas e demandas que o pressionam. Afinal, dentro dos limites do underground, e
em alguma medida estabelecendo suas demarcações, acontece um comércio.
Mas a imprecisão de tal definição advirá se adjetivarmos este comércio, esta
forma de troca, da mesma maneira que os economistas fazem. Pois comércio,
57
crescimento e lucro parecem ser sinônimos para esta doxa. Como argumenta Polanyi
(1980), a linguagem dos economistas estende a qualquer atividade de troca que suas
penas encontram os motivos quase instintivos do constante crescimento e de um lucro
sempre maior. Os economistas tendem a definir toda troca como troca capitalista.
De modo algum se pretende aqui apontar as “falácias” do capitalismo e muito
menos questionar epistemologia e método dos economistas. Mas, para sermos
meticulosos na descrição do nosso tema, precisamos reconhecer, de saída, que nem toda
troca envolvendo transações financeiras necessariamente é impelida por interesses de
crescimento e lucro. Como tão bem nos mostrou Mauss (2003), só compreenderemos o
significado das trocas se as percebemos em meio aos contextos nos quais se realizam.
De modo que, a partir do já exposto, podemos sim nos reportar a uma economia do
underground. Ela é o resultado de um processo baseado nas etapas de produção,
distribuição e venda. Os próprios praticantes reconhecem tal condição. Reconhecem tão
bem que eles mesmos enfatizam que o comércio underground não é um comércio como
qualquer outro.
Na quarta edição do Dark Gates zine, de Juiz de Fora, Minas Gerais, lemos na
entrevista dada por Brucolaques, membro da banda de black metal Saevus, da mesma
cidade, o seguinte trecho. Reproduzo partes da pergunta e da resposta:
(...) Existe uma preocupação de para quem e onde divulgar o material da banda?
Você acha que é possível conciliar a ideologia e postura da banda com uma
gravadora grande e capitalista, por exemplo? Ou preferem trabalhar com uma
gravadora menor, porém restrita a seus ideais como a South Satanic Terrorists?
Brucolaques: (...) Nós procuramos divulgar nossos materiais a pessoas que realmente
façam valer a pena ter os mesmos em mãos. Inclusive, quando negociamos com alguma
distribuidora a divulgação de nossos materiais em seu respectivo catálogo, temos a
preocupação em saber se os mesmos estão indo em boas mãos e se depois irão seguir
para boas mãos também. Quanto a assinar com um selo comercial, sem chance! Não
faria sentindo se assinássemos com um selo que representa tudo contra o que lutamos.
Os princípios do black metal estão distantes de vínculos direcionantes e mercantis (...).
que um valor em dinheiro será dado em troca por elas. Não é esse seu problema e sim
como e com quem isso será feito.
As “boas mãos” às quais o entrevistado se refere são aquelas dos responsáveis
pelos selos e distros tratados anteriormente. As pessoas para quem “realmente” vão
fazer valer a pena divulgar o material da banda são aqueles praticantes que efetivamente
demonstraram seu comprometimento e apoio para com as atividades da cena. Ou seja,
as pessoas e instituições para as quais a banda procura divulgar suas gravações são essas
do underground, única e exclusivamente. Já o comércio e o mercantilismo
“direcionantes” tão veementemente refutados seriam os modos de circulação do
mainstream, capitalista, direcionado exclusivamente ao lucro, o qual, como o
entrevistador levanta, é inconciliável com postura e ideal da banda.
Os agentes do underground demonstram um severo zelo quanto ao âmbito de
circulação de suas gravações. Pelos seus discursos, as gravações não podem ser
produzidas por “grandes” gravadoras assim como não podem ser comercializadas em
“grandes” lojas. O acesso a elas é restrito, apenas permitido aos “fiéis seguidores” do
underground.
É importante ressaltar que estamos tocando em ponto delicado da pesquisa. O
discurso dos praticantes é pavoneado, defendendo uma postura radicalmente hostil ao
“mercado” e ao “comércio”. Entrevistas como a de Brucolaques estão recheadas de
afirmações como a que transparece no trecho citado. Sente-se certa competição interna
entre eles, cada um tentando ser mais eloqüente e incisivo no extremismo com o qual
negam o “lucro” e a circulação irrestrita de suas gravações. Interna pois essas
afirmações, de fato, não são feitas em “grandes” revistas ou em meios de comunicação
massivos. São feitas de praticante para praticante, veiculadas em zines, conversas de
shows e nas apresentações das bandas, quando estão em poder do microfone. Além do
trecho citado, lembremos aqui dos dizeres dos integrantes do Daimoth, explicando que a
tiragem de quinhentas cópias do Inquisiton se deve as suas vontades de que o mesmo
seja apenas para os “fiéis seguidores” do underground e as condições que Yuri diz
demandar das lojas que querem vender as gravações da Nocturnal Age. O proprietário
precisa ter “referências”.
Podemos elencar uma série de fatos que expõem a favor dos praticantes,
confirmando que essas gravações circulam apenas no perímetro underground. Como
observado anteriormente, essas gravações são financiadas pelas próprias bandas. Não há
financiamento externo nas suas produções. E não adianta procurarmos suas gravações
59
nas populares lojas de departamento do nosso país. O Inquisiton não está à venda na
Saraiva e mesmo o “bem produzido” Madrigal of Sorrow do Sad Theory não está
disponível nas lojas Americanas. Essas lojas não possuem as “referências” exigidas
pelos praticantes. A própria quantia de cópias por si só já restringe o tamanho da
circulação dessas gravações. A tiragem, quando prensada industrialmente, dificilmente
passa de quinhentas cópias e quase nunca chega a mil. Existe até um prestígio na
comprovação de uma prensagem pequena. O selo de Brasília Genocide Productions, no
flyer de divulgação do full length da banda de death metal baiana Impetuous Rage, diz
que além do cd, lançou uma versão “para os maníacos”, em vinil e limitada a quinhentas
cópias numeradas à mão.
35
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica.
36
Uma ressalva. Os selos surgidos de lojas, como a Die Hard Records e a Multilation Records, são
pessoas jurídicas.
37
Cabe balizar essa restrição da circulação underground pela seguinte reflexão. Será que ela se manteve
restrita única e exclusivamente pela vontade de seus praticantes? Será que sua manutenção também não
resulta, pelo menos em parte, do fato de que o underground do metal extremo brasileiro nunca em sua
história teve sua produção almejada pelas “grandes” gravadoras e pelo “público de massa” aos quais são
tão avessos? Colocando de outro modo, será que eles suportariam a força da demanda externa? Contudo,
como não há dados empíricos para desenvolvermos tais questões, elas ficam apenas como reflexão
paralela.
61
declara com quem sua banda se filia: “(...) nós trabalharemos apenas com selos que
tenham honestidade e que possuam o real espírito underground”.
62
38
Para sermos condizentes com Sahlins, vale ressaltar que ele livra Marx desse erro. O alemão teria
percebido que a reprodução material é uma reprodução social mesmo mantendo a naturalidade do valor
de uso (a casa agrega valor por ser um abrigo). Daí a preferência de Sahlins por materialismo histórico ao
invés de marxismo.
63
A proposta de Sahlins vai bem além do que esse vago resumo indica. Mas não
nos interessa discutir o estatuto de sua teoria, suas lacunas e contribuições. Trouxemos
um movimento de sua argumentação à baila por entender que ele oferece uma
interessante dica de procedimento para continuarmos averiguando o underground do
metal extremo brasileiro. É sobretudo isso que nos interessa em Sahlins. Seu enfoque.
No capítulo anterior percebemos como as práticas de gravação, distribuição e
venda do underground, em conjunto, conformam um sistema de trocas com dimensões
econômicas. Gravações que são produzidas por músicos, distribuídas e vendidas por
intermediários e consumidas pelo público. Sistema com dimensões econômicas
singulares não só pelas peculiaridades dos bens aí circulantes mas pelas características
dessa circulação. Seus agentes não são tão diferenciados entre si. Dependendo do
contexto, um músico pode ser intermediário o qual, por sua vez, pode ser público. Seus
produtos não são financiados a não ser pelos seus produtores e para comercializá-los,
seja vendendo seja comprando, é preciso ter “referências”. Restringida em todas as
etapas de seu processo, a circulação underground procura manter uma autonomia
financeira e seu âmbito nos limites deste espaço.
Mas, como começamos a entrever no final do capítulo precedente, estas práticas
não serão compreendidas se mantivermos a descrição apenas no nível de seu
funcionamento. O discurso dos praticantes, utilizando o formato underground de
circulação como recurso, parece indicar que a realidade social deste espaço abrange
mais do que a formatação de um mercado de gravações. Colocando a questão à la
Sahlins, podemos dizer que parece haver mais do que bens sendo produzidos nesta
economia. Se a produção desses bens é sua ossatura, contudo, precisa de órgãos e
músculos para se sustentar e descargas elétricas para se locomover. Precisa, sobretudo,
de um espírito.
Nada de metáforas aqui. No trecho citado que termina o capítulo anterior, o
entrevistado deixa bem claro qual é a referência que seus possíveis parceiros precisam
possuir, o “real espírito underground”. Do que se trata este espírito? Como esse mana
anima a troca underground?
***
64
A existência de uma banda de black metal é (ou deve ser) ligada apenas às suas
ideologias e satisfação própria, pouco se importando com dinheiro e fama. Mas
talvez recentemente isso tenha dado lugar a busca pela promoção através da mídia
e pelo dinheiro. O que acha, enfim, da popularização e comercialização maciça do
estilo nos últimos tempos?
Doom-Rá - O nascimento de uma horda39 de Black Metal deve ser motivado
primordialmente por prazer de fazer algo que se identifique, por parte dos guerreiros a
que integram, por realizar seus ideais, forma de narrar seu ódio e náusea da sociedade
judaico-cristã, forma de honrar o conhecimento luciferino, narrar em seus hinos40 suas
práticas ocultas, suas visões pessoais sobre tudo, sobre a realidade de cada um...
Resumindo, Black Metal de verdade é a prática de Ideologia e Atitude, eu pessoalmente
penso assim, agora sobre as bandas que se dizem Black Metal, mas só estão na cena
para buscar fama, $$$, acho isso deprimente, o verdadeiro Black Metal é feito nos
subterrâneos, criptas do Necro-Underground, para satisfação própria, forma de honrar
seus demônios pessoais, como forma de combate as utopias tão achadas "normais" hoje
por muitos que antigamente defendiam uma postura mais séria, radical... O escroto é
que muitas dessas ditas bandas hoje mercenárias, posers, e que ainda assim são
chamadas de Black Metal, começam por muitas vezes dentro do Underground, onde
ficavam com discursos radicais anti isso, anti aquilo, "usando" zines, flyers, para firmar
seus nomes entre os maníacos hellbangers41, mas com tempo, mudam os discursos,
mudam os meios de divulgação, seguem modas ditas lá fora, por grandes selos, mudam
totalmente suas sonoridades por achar que assim ganharão a tão sonhada "fama", se
expõem em revistinhas de metaleiros (que divulgam juntos com merdas como White-
Metal, Un-Black42, Gothic, Merdas, Merdas...), tocam em festivais ao lado de bandas
cristãs, isso é deprimente... Penso que, se desde o início queriam apenas "fama", "$$$",
não deveriam ter surgido dentro do Underground, que fossem homens para assumirem
seus reais interesses dentro do Black Metal, e que se afastassem dos eventos dedicados
as verdadeiras hordas Black Metal (...).
39
Os apreciadores de black metal referem-se a bandas como hordas.
40
Assim como se referem a suas canções como hinos ou opus.
41
Hellbanger é um equivalente de headbanger entre os apreciadores de metal extremo. É pouco utilizado,
mas preferível ao pejorativo metaleiro.
42
White-metal e un-black metal são estilos de metal idênticos na sonoridade com o black metal, mas
totalmente diferentes nas letras. Enquanto o segundo trata do maléfico, os primeiros versam sobre o lado
benéfico do cristianismo. Como o entrevistado deixa claro, os praticantes desses estilos não apreciam a
sonoridade alheia.
65
produzido pelos mais diversos movimentos sociais, desde os aficionados por filmes de
ficção científica até as diferentes facções do partido comunista italiano, passando pelos
movimentos ecológicos e feministas dos anos sessenta. Segundo o mesmo autor, a
utilização dos zines por apreciadores de certos estilos de música se deve,
principalmente, ao movimento punk inglês irrompido no final dos anos setenta. Não
temos conhecimento de nenhuma pesquisa feita no Brasil especificamente sobre os
zines. Contudo, ele é tratado em pesquisas acerca dos punks nacionais, como em Caiafa
(1985) e Wendel Abramo (1994). É muito provável que os praticantes do underground
do metal extremo se basearam nos zines punks nacionais para fazerem os seus.
Os zines do underground do metal extremo brasileiro são revistas idealizadas,
editoradas, escritas, diagramadas, impressas e veiculadas pelos próprios praticantes,
muitas vezes uma pessoa só. Toda sua produção é caseira. Quando digitados no
computador, são nele diagramados, impressos em preto e branco, copiados em folhas
A4 e veiculados entre os praticantes, seja pela venda ou pela permuta por outros zines.
Quando batidos na máquina de escrever, seguem o mesmo processo a não ser pela
diagramação, que neste caso é feita pela colagem dos textos e fotos em folhas que
servirão como matriz de todas as cópias. Sua periodicidade é irregular e o tamanho da
tiragem de cada número depende da demanda, uma vez que seu editor o copia em
máquinas de xérox. Raramente passam de vinte números, normalmente se extinguindo
em dez edições.
Seria redundante fazer uma análise extensiva dos meios de produção,
distribuição e comercialização dos zines. Seguem os mesmos processos das gravações
averiguadas no primeiro capítulo e neles encontramos as mesmas características. Auto-
financiamento, restrição de sua distribuição ao âmbito do underground e
comercialização feita no show ou a partir de informações adquiridas nos shows.
Também são “informais”. Não possuem editoras, jornalistas responsáveis nem ISSN43.
Contudo, um exame dos zines traz maior nitidez a uma característica já
apresentada pelas gravações, qual seja, o âmbito nacional do underground. Por mais que
eles tenham suas sedes estabelecidas nas cidades onde moram seus idealizadores, todo
seu conteúdo é organizado por entrevistas com bandas e resenhas de shows e
lançamentos oriundos e realizados pelo Brasil todo. No número oito do Anaites zine,
por exemplo, Hioderman publicou entrevistas com bandas dos seguintes estados: Minas
43
International Standard Serial number. Número de série de padronização internacional que toda
publicação “formal”, livro ou periódico, geralmente possui.
66
Gerais, São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Ceará, Recife, Santa Catarina e até mesmo
com uma de Portugal.
Além de oferecer certo panorama do underground pelas entrevistas, os zines
ajudam a sedimentar o circuito nacional deste espaço trazendo em suas páginas finais
endereços de bandas, selos, distros e outros zines também. As quatro últimas páginas do
zine editado por Countess Death, Unholy Black Metal de Lages, Santa Catarina, contêm
endereços de “hordas” e zines do Brasil todo, inclusive do Anaites zine e do Uraeus:
Uma outra característica dos produtos underground que os zines nos ajudam a
compreender é sua pessoalidade. Eles carregam consigo algo de seus produtores.
O zine certamente cumpre uma função informativa. Ele transmite aos seus
leitores uma visão do underground em certos períodos de tempo, espécie de fotografia,
informando quais bandas estão na ativa e quem está lançando gravações. Oferece
endereços para contato de bandas, selos e distros assim como anúncios de apreciadores
procurando apreciadores e músicos procurando músicos. Alguns deles ainda trazem
históricos de bandas, pôsteres e traduções de letras. Mas a função informativa deste
67
O próprio teor das entrevistas está regulado de acordo com essa expansão das
“idéias, experiências e ideologia” dos seus donos e únicos “jornalistas”. Countess
Death, mulher, perguntou a todos os entrevistados o que achavam da inserção das
mulheres no underground. Já Bernardo, idealizador do Dark Gates zine de Juiz de Fora,
Minas Gerais, estimula em suas entrevistas discussões filosóficas acerca do material das
bandas em questão. Na quarta edição, ele faz a seguinte pergunta para os catarinenses
do Goatpenis:
Lord Chax e seu Fereal zine de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, estão
interessados em questionar seus entrevistados sobre as relações que bandas de black
metal teriam com o nacional-socialismo. Para os maranhenses do Ave Lúcifer, Lord
Chax pergunta:
Sabemos que o black metal tomou muitos rumos diferenciados, pois muitas hordas têm
abordado não somente o ocultismo em suas letras mas guerras, atrocidades e também
letras de cunho racista que algumas hordas de NSBM45 têm. Vossa pessoa concorda
com esses tipos de temáticas ou em sua opinião o black metal esta só para reverenciar o
pai da sabedoria e da luxúria, AVE LUCIFER REX?
44
Título da gravação lançada em 2004 pela banda.
45
NSBM: National socialism black metal. Black metal nacional socialismo.
68
entrevistas acabam com um efusivo agradecimento por parte deles, como o fez Baron of
the Dark Lands, baterista da mineira Agnus Negrae, na entrevista concedida ao Anaites
zine. A última pergunta de Hioderman termina assim: “(...)Irmão, creio por esta ser isso!
Agradeço o tempo cedido. Há algo mais que tu queiras acrescentar?”. E o “irmão”
acrescenta:
Nós que somos eternamente gratos, grande irmão Zartan46, pelo grande espaço cedido
em vosso profano pergaminho, hail Anaites e também pelo grande apoio que nos tem
concebido. Desejamos a ti glórias eternas em vossa negra jornada!!! Hail Darkness!
Hail Satan! Hail evil!
Publicar a entrevista de uma banda nas páginas do seu zine significa que seu
editor aprecia a banda em questão. Ele a “apóia” e é por isso que suas entrevistas estão
ali. Como afirma Bernardo do Dark Gates no editorial do quarto número: “gostaria de
ressaltar que todas as bandas entrevistadas possuem o meu apoio, caso contrário não
iriam estar nestas páginas”. Resultado deste apoio dado pelo zine é uma interessante
divulgação da banda a nível nacional. A banda sabe disso e retribui sua divulgação
divulgando o zine na sua região, seja fisicamente, vendendo ou simplesmente
repassando cópias, seja verbalmente, falando “bem” do zine, afirmando que ele é real.
A publicação de uma entrevista é mais uma das formas de sedimentar a transformação
de encontros fortuitos em alianças underground. Se traçarmos os contatos entre bandas
e editores de zines chegaremos novamente ao denominador comum dos encontros
underground, o show. Ambos se conheceram, ou conheceram alguém que os colocou
em contato, em algum show. Ademais, vale ressaltar que a publicação de uma entrevista
no zine, se não for resultado dessa troca de retribuições, é como forma de divulgação de
uma banda que o zineiro está lançando através de seu selo. Contudo, não há compra ou
venda de espaço nos zines que pesquisamos.
A pessoalidade do zine não significa que ele não possa ser vendido. Como
vimos, os praticantes do underground realizam sem problema algum a troca comercial.
Apesar de fazerem algum tipo de escambo, trocando zines por zines e gravações ou
estas por gravações e zines, acham plenamente legítimo o uso do dinheiro em suas
trocas. No entanto, os produtos underground são de uma alienabilidade específica.
Inseridos em uma circulação comunal, sua movimentação mantém a ligação com seu
produtor. O dinheiro é mais um favorecedor da troca do que um fim em si mesmo. Na
troca underground, o respeito pelo produtor é preeminente ao lucro.
46
Zartan é o codinome utilizado por Hioderman.
69
Com efeito, os produtos underground carregam consigo algo de pessoal dos seus
produtores. Eles são os “artefatos” de seus produtores, materializações de suas vontades
e transportadores de suas idéias, valores e mensagens. São suas criações. Nítido nos
zines, a pessoalidade dos produtos underground se escancara nas gravações.
As gravações são resultados dos esforços dos músicos. Financiaram seu
processo, entraram em contato com selos e distros para lançá-las e, sobretudo,
compuseram as canções ali contidas. A organização sonora inscrita no cd, magnetizada
nas fitas K-7 e traçada nos sulcos dos vinis foram criadas pelos músicos. Mesmo se
utilizando de mecanismos tecnológicos, mesmo que tenha sido subsidiada pelo dinheiro,
essa criação, segundo os músicos do metal extremo underground, não se define pelos
aparatos externos.
Para seus músicos, compor metal extremo é um processo de transformação das
suas subjetividades em forma de sons. Doom-Rá responde assim à Countess Death
sobre aquilo que o influencia no processo de composição: “o Uraeus não sofre
influências diretas em seus hinos”. Não são influenciados diretamente pois a matéria-
prima de sua música são seus “sentimentos”. Morte, membro da banda Night Eternal,
sendo indagado pela mesma pergunta, diz: “meus sentimentos, eu não me prendo a
nada, porque gosto de viver cada vez mais livre de tudo! Livre de dogmas e obrigações
(...)”. Os “sentimentos” destituídos de qualquer “dogma e obrigação” estão livres para
serem exteriorizados pelos músicos em forma de sons coligados.
“Sentimentos” entre aspas, pois se trata de uma leitura e uma valoração de uma
realidade tida como subjetiva. “Sentimento” como uma espécie de ponto convergente da
sensação e da intelecção. Daí o pulular de perguntas nos zines sobre a “ideologia” ou a
“mensagem” que as bandas querem passar. Discutem se o black metal feito por tal
banda é “luciferiano” ou “ocultista”, se o death metal daquela banda é um “espelho da
nossa sociedade” ou “um tapa na cara de Jeová”, se o splatter que esta banda faz é mais
“açougueiro” ou “porn”.
Por isso que, se quisermos aproximar o metal extremo underground brasileiro de
algum movimento artístico/filosófico, podemos defini-lo como romântico. Compor é
antes de tudo um trabalho do espírito livre e o produto desta composição estará marcado
por sua unicidade. As palavras de Edward Hanslick, musicólogo alemão o qual,
segundo Videira (2007), escreveu o livro síntese do pensamento romântico acerca da
música, não poderiam ser mais esclarecedoras:
70
A não ser pelo argumento de que nas relações entre as notas repousa o belo
musical47, os praticantes do underground endossariam as palavras de Hanslick sem
hesitações. Contudo, fariam um adendo atualizador. A consistência espiritual das
composições transborda os limites dos sons e se espalha nos meios transportadores
dessas composições, fazendo com que os cds, fitas K-7 e vinis também sejam vistos e
ouvidos como portadores dos “sentimentos” dos músicos que compuseram as canções ai
contidas.
Perscrutável é a obra de suas artes, imperscrutável os artistas que as fizeram.
Pode-se discutir as qualidades das gravações, avaliando sua produção e abordando a
“mensagem” que elas transmitem, mas não se averigua os espíritos que as compuseram.
São por demais amplos, livres de “dogmas e obrigações”. São únicos e nenhuma de suas
exteriorizações, nem mesmo a mais sublime delas, a música, os representa planamente.
Mesmo que ela seja entendida pelos músicos do metal extremo underground como uma
espécie de busca interior, maneira de auto-conhecimento, esquadrinhamento dos
recônditos de suas almas, há sempre uma sobra, um aquém-cultura indizível, intocável e
concernente só a eles mesmos.
Se, pelo lado da composição, salta aos olhos o romantismo do metal extremo
underground, pela forma como concebem a arte da música em si chama atenção como
se distanciam de uma visão da “arte pela arte”. Discordariam totalmente de uma
passagem de Hanslick disposta algumas páginas após aquelas nas quais estava o trecho
anteriormente citado:
Não é bem assim, diriam os praticantes. A música deve ser tecnicamente “bem”
feita. A composição deve ser “original” e a execução exímia. O músico precisa ter, ou
47
Pois, como já deu para notar através dos nomes das bandas, dos selos e dos codinomes utilizados, não é
exatamente uma idéia de belo que os praticantes têm em mente, ou de forma mais relativista, o belo deles
está mais à esquerda.
71
48
Robert Walser realizou sugestivo estudo acerca das influências da música que hoje se classifica como
clássica em composições de algumas bandas e músicos do heavy metal norte-americano (1993, pp. 57-
107). Segundo este estudo, os compositores do barroco, do romântico e do virtuosismo teriam maior
influência nas composições do heavy metal norte-americano. Bach, Wagner e Paganini antes de Vivaldi
ou Liszt. Apesar de não termos comparado partituras em nosso estudo, parece que é esse o caso também
do metal extremo underground brasileiro.
72
pode ser compreendida naquele sentido amplo e genérico: crenças, valores e ideais,
concernentes às mais diversas ordens, ao político, econômico, moral e religioso
principalmente. No entanto, metal extremo underground não é um partido político,
movimento social, ONG e muito menos uma igreja. É música. Trata-se de promover tais
éticas e morais através da composição, audição e apresentação de um tipo específico de
música.
O princípio primeiro a ser defendido pelos praticantes de tal arte, do qual poucos
deles discordariam, concerne às técnicas de se fazer música em sentido amplo. Ao
processo de composição, às conquistas e manutenções das harmonias, melodias e ritmos
e às formas de inscrever, distribuir e receber música. O underground em si, esta é a
“atitude” do “verdadeiro” metal extremo, onde a “ideologia” iniciática codificada nas
canções e apresentações é ele mesmo. Espaço produtor e produzido por música, restrito
e relativamente (para eles totalmente) autônomo, no qual o “ideal” prepondera sobre a
“fama e o lucro”. Ora, ideal não só da música “ideológica”, mas da instalação de um
sistema de trocas “ideológico”, não regido por motivações de lucro e de fama a maior
possível. O espírito underground nada mais é do que sua própria representação, ao
mesmo tempo produzindo as trocas ai realizadas e sendo produzido por essas mesmas
trocas. Troca-se com quem possui o verdadeiro espírito underground, e trocando entre
pares abre-se margem para ser possuído por este espírito. Espírito esse, nunca é demais
ressaltar, musical, espécie de rebento moderno de Apolo com Dionísio. Ao mesmo
tempo em que estabelece a apolínea harmonia do mesmo, dá condições de expressão de
uma dionisíaca estética da diferença49.
Neste sentido, metal extremo e underground se complementam. O primeiro se
completa sendo feito no segundo o qual, por sua vez, resolve-se em sua posição de
condicionante do primeiro. Todavia, complementos para os praticantes do underground.
Seria um tanto improvável pensar que este underground que estamos averiguando
existiria sem o metal extremo, mas este tipo de música certamente se expressa sem o
underground no Brasil. Mas para os praticantes o metal extremo que não é feito neste
49
Nada mais nietzscheniano do que encontrar uma relação positiva entre Apolo e Dionísio. O filósofo
alemão argumenta assim no seu O nascimento da tragédia: ‘A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio,
vincula-se nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens
e objetivos, entre a arte do figurador plástico, a apolínea, e a arte não-figurada da música, a de Dionísio:
ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e
incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição a
qual a palavra comum “arte” lançava aparentemente a ponte (...)’ (1999 [1872], p. 27).
73
espaço não é “de verdade”, eles não possuem o real espírito underground. Eles são
falsos.
50
Como, por exemplo, em Szendy, 2003.
51
Neste sentido, concordamos com Certeau que o consumo dos meios de comunicação não se limita a
realizar a recepção da mensagem produzida por um “outro lado”, dominante e quase conspirador. Quando
o underground “consome” tecnologias como o Pro-Tools ou quando revive o vinil como meio de
inscrição da gravação, ele não está recebendo tais tecnologias e as utilizando de acordo com os manuais
de uso que as acompanham e sim realizando uma outra produção, ‘(...) astuciosa, é dispersa, mas ao
mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos
próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante’
(CERTEAU, 1994, p. 39, grifo do autor).
74
UNDERGROUND MAINSTREAM
AMPLITUDE DA RESTRITA IRRESTRITA
CIRCULAÇÃO
MOTIVOS E IDEAIS E FAMA E LUCRO
OBJETIVOS ATITUDES
RELAÇÃO DO
PRODUTO COM A PESSOAL IMPESSOAL
PESSOA
VALORAÇÃO POSITIVA NEGATIVA
52
Trecho da entrevista dada por Lord Seremoth, guitarrista do Lord Satanael, a Countess Death publicada
no Unholy Black Metal zine.
76
53
Hellion e Rock Brigade são, respectivamente, desdobramentos de uma loja e uma revista especializadas
em heavy metal homônimas. Já o Evil Horde é desdobramento da banda Murder Rape.
77
selos deste espaço54. Mas a notoriedade alcançada por ambas teria feito com que
esquecessem de suas origens e se preocupassem mais com a manutenção dessa
notoriedade adquirida. Falsos.
Esses agentes classificados como falsos não reclamam uma filiação ao
underground. Mesmo as bandas brasileiras, na época em que estavam assinando seus
contratos, deixaram bem claro em entrevistas publicadas em revistas especializadas55
que não eram underground e que não davam importância para toda essa “história de que
somos falsos”. Ou seja, quando há certo consenso por parte dos praticantes de que essa
banda ou aquele selo não são underground, eles apontam especificamente quem é falso.
Eles dão nome aos bois, eles acusam.
Por outro lado, quando a falsidade é assunto interno ao próprio underground,
raramente identificam quem é falso. Seja em zines, seja em conversas, quase nunca
apontam de quem estão falando ou de qual selo ou distro estão tratando. A questão é
levantada de modo difuso, como no trecho da entrevista de Lord Seremoth para o
Unholy Black Metal Zine. Há bandas que estariam se utilizando do underground para se
“autopromoverem”, o metal extremo underground estaria “se abrindo”, “vermes”
estariam “infestando” a cena dessa ou daquela cidade. Tratam da questão como se o
underground estivesse na iminência de se dissolver por completo porque falsos estariam
se imiscuindo neste espaço e utilizando-o “para proveito próprio”. No entanto, não
ficamos sabendo quem seriam esses falsos.
É compreensível que seja assim. O falso não estaria se importando com a feitura
do “verdadeiro” metal extremo, ideal e pessoal, fim em si, genuíno apenas quando
qualificado como underground. A banda, o selo ou o distro falsos utilizariam das
relações underground para serem mais conhecidos e ganharem mais dinheiro com um
metal extremo que é “só música”. Ser falso significa negar o underground usurpando-o,
imiscuindo-se em seus contatos e sugando toda sua potencialidade relacional. Desse
modo, chamar alguém de falso pra valer56 é uma acusação muito forte. Traidor, o falso
deve ser expulso deste espaço pois não tem a honra de ser underground.
54
Algumas bandas do underground dizem que foram influenciadas (influência indireta, apenas musical
como dizem) por essas bandas, mas quando o fazem enfatizam que a influência se limita às primeiras
gravações, quando Krisiun e Sepultura ainda eram underground.
55
São inúmeras. Cito duas. Do Sepultura na Revista Bizz, agosto, 1990 e do Krisiun na Rock Brigade de
julho, 2006.
56
Chamar alguém de falso muitas vezes é a brincadeira preferida nas rodas de conversa em shows.
Caçoam um do outro se chamando mutuamente de falsos, contam um caso de falsidade de seus amigos e
riem muito disso tudo. Mas essa jocosidade com o falso só acontece entre amigos, quando estão certos
que não serão mal-entendidos pelo interlocutor, ou seja, que não serão levados a sério.
78
57
Essa forma de conceber a música como um espelho da subjetividade, arriscamo-nos a dizer, pode ser
estendida ao heavy metal em geral onde quer que ele se expresse. Essa característica fica clara quando a
banda começa a receber uma demanda maior pelas suas gravações e se vê na iminência da
profissionalização. Tanto Krisiun quanto Sepultura, nas referidas entrevistas, negam a vinculação
underground mas não o caráter afetivo de suas músicas. O Ocultan, banda que atualmente (2007) vem
recebendo forte reconhecimento internacional pelo seu black metal, defende o mesmo argumento em
entrevista à revista/zine A Obscura Arte número dez: “ideologia e radicalismo black metal não têm nada a
ver com a quantidade de cds que a banda vende”. A desvinculação da banda do underground parece
corresponder a uma desvinculação entre dois elementos que para os praticantes é essencial, metal extremo
enquanto ideologia e underground.
79
58
Tradução livre de: ‘(...) a continuous process of social life in which men reciprocally define objects in
terms of themselves and themselves in terms of objects’.
59
Vale enfatizar que Anderson formula o conceito de comunidades imaginadas para tratar única e
especificamente daquilo que define como ‘condição nacional’ (nation-ness) e, obviamente, existem
grandes diferenças entre este tema e o nosso. Contudo, a maneira como o autor formula tal conceito, ‘(...)
dentro de um espírito antropológico (...)’ (2008, p. 32), nos permite incorporá-lo sem grandes déficits
explicativos devido às diferenças dos objetos: comunidade porque, independentemente das desigualdades
internas, a nação e o underground são concebidos pelos seus membros como uma camaradagem
horizontal; imaginada porque, mesmo que todos os seus membros não se conheçam, guardam em suas
mentes uma imagem e em seus corpos um sentimento de comunhão mútua entre eles (op. cit). Nosso uso
de Anderson vai até ai.
81
então a sua escuta é também fundamental nesta produção. Se, por um lado, na troca,
efetua-se a regência deste tipo de música através da inscrição e distribuição, por outro,
na audição, se realiza a execução de seu significado. Essa comunidade musical
imaginada só terá vida se for realmente imaginada pelas pessoas que se vinculam, ou
almejam se vincular, a ela. E essa imaginação é silenciosamente executada na audição.
Uma orquestra na qual não há como traçar uma linha divisória entre regência e
execução. Na apreensão do underground do metal extremo nacional como um espaço de
música não podemos separar a feitura da audição, a regência da execução, a emissão da
recepção. Ambos os pólos são certamente específicos, mas intimamente
complementares. À produção do som corresponde uma produção de significado
realizada na escuta. Cabe então buscarmos uma apreensão dessa silenciosa execução do
metal extremo underground. Tentaremos escutar escutas.
***
60
Para os praticantes do underground do metal extremo, o passado sempre foi melhor do que os dias
atuais. Não é coincidência que daqueles que cursam a universidade e optaram pelas ciências humanas, a
radical maioria cursa história e um ou outro filosofia. Doom-Rá, um dos mais eloqüentes praticantes que
pude conhecer, cursou história. Aliás, certa vez comentei que era formado em ciências sociais para um
outro praticante estudante de história e prontamente ele disse: “blá, sociais é coisa de punk”.
83
***
61
Essa é a razão pela qual não adentramos em nosso tema pela questão juvenil. Apesar da grande maioria
dos praticantes ser classificada como jovem, o considerável número de pessoas com mais de trinta e cinco
anos presentes faz com que, de saída, desconsideremos qualquer recorte geracional para esta pesquisa.
84
trataremos especificamente das diferenças entre os estilos. Por ora, precisamos assinalar
como se compreende tais diferenças.
A história de como os praticantes chegaram a conhecer o metal extremo
normalmente é narrada da seguinte maneira. Eles apreciavam heavy metal em geral até
que algum amigo ou familiar próximo apresentou uma gravação de metal extremo que
os arrebatou. Não conseguiam parar de ouvi-la até o ponto em que começaram a
procurar outras gravações de metal extremo. Foram em lojas pesquisar ou perguntaram
para os mesmos amigos e familiares se tinham algo parecido com aquela primeira
gravação. Essa fascinação cresce a tal ponto que eles decidem ultrapassar a posição de
ouvintes e fazer algo por aquele estilo de música. Querem se aproximar dele de alguma
forma, tocando-o, ouvindo-o ao vivo, contatar outros fascinados e conhecê-lo ainda
mais. Esta vontade de se aproximar do metal extremo faz com que se insiram no
underground. Lembremos dos relatos de Maurício, Mauro e Cléverson apresentados no
primeiro capítulo.
Mas é a partir do momento em que começam a praticar o metal extremo
underground, eles mesmos o dizem, que seu verdadeiro aprendizado se inicia. Pois
quando ingressam no underground começam a perceber um outro tipo de metal
extremo. Claro, outro em relação ao mainstream. Ricardo, 22, capixaba radicado no Rio
de Janeiro e assíduo comparecente nos shows da capital fluminense, narra assim suas
impressões quando aportou no underground:
Essas bandas que fazem um som extremo mas lançam cds por gravadora grande foram
legais. Eu comecei por ai...Slayer, Venom, Cannibal...hoje em dia até aturo mas não
dá...é muito bonitinho, bem produzidinho, gravadinho e tal. Não dá conta, sacou? Fica
faltando alguma coisa...
Soam falsas...parece que é só pra vender, não dá. Brutalidade pra vender? Brutalidade
de verdade é crua, seca, tosca, entra na cabeça que nem tiro, BAM, e não tem como
escapar. Eu só ouço isso aqui, com o som dessa galera ai (estávamos conversando em
um show e nesse momento Ricardo aponta para a platéia), quando comecei a ver a
galera ao vivo não deu pra acreditar, quanto tempo eu perdi! Aqui que eu me liguei no
brutal de verdade mesmo, antes era só preparação.
Mas Joel, você diria que essas bandas estão fazendo metal extremo?
Eles dizem que estão né...podem até estar fazendo...pra eles, pra quem curte...mas olha
só, a questão não é se eles estão fazendo ou não metal extremo e sim porque estão
fazendo essa música. Eles fazem como uma profissão...o problema não é só ganhar
dinheiro com ela, mas a forma como você a encara, entende? Esses caras acham que
podem fazer da arte extrema uma função nas suas vidas enquanto pra mim ela é a minha
vida...são duas coisas muito diferentes, e quer saber? Você ouve isso na música
deles...tá lá, bem claro. Mas deixa estar, eles vão pagar por isso, não aqui, nessa vida,
mas vão pagar.
62
Segundo Wisnik (1989, p. 65), o trítono, um intervalo de três notas entre o fá e o si ou entre o dó e o fá
sustenido, provoca forte instabilidade na composição por ser um fraseado incompleto. O trítono é um
pedaço de uma oitava, ela sim, completa. Daí sua nomeação, cunhada no medieval, como diabolus in
musica.
86
heavy metal enquanto música, para não falar do preconceito que seus ouvintes sofrem63,
geralmente recebe de musicólogos e críticos de música. Só temos a lamentar que uma
análise tão sagaz do heavy metal e da obra de Stravinski deságüe em julgamento
estético, de ambos, tão canhestro.
Voltando, vale contarmos uma situação de campo que ilustra bem a importância
dessa familiaridade.
Durante a pesquisa re-incorporei ao meu cotidiano uma prática de quase todo
apreciador de heavy metal, passar tardes inteiras em lojas especializadas. Em toda
cidade que visitava, procurava passar horas e horas nas lojas, conversando com
vendedores e outros apreciadores. Em uma dessas tardes, em 2004 em São Paulo
capital, estava conversando com o vendedor quando uma moça entra na loja reclamando
que o cd que tinha ganhado de um amigo e que tinha sido comprado ali estava com o
“vocal estragado”. Era um cd do Cannibal Corpse. Eu e o vendedor nos olhamos e
compartilhamos de um estranhamento óbvio naquela situação. Não havia como o vocal
estar “estragado”. Ou o cd estava com problemas, e aí toda a banda vai soar “estragada”,
ou estava acontecendo algum mal entendido. Colocamos o cd pra rodar e nada de
errado. O vocal do George Corpsegrinder Fischer soava como sempre soou, mais
semelhante a um urro de um urso do que a uma voz humana. E a moça disse: “ouviram,
o vocal está estragado”. Sim, ouvimos, o estranhamento dela era outro totalmente
diferente do nosso. Ela sequer chegou a imaginar que alguém poderia cantar daquele
jeito. Ela estranhou o vocal gutural, um dos pilares estilísticos do metal extremo.
O relacionamento com o metal extremo prossegue ao longo do ingresso da
pessoa no underground, não mais como uma familiarização e sim como um
aprimoramento da escuta64. Mas, ao mesmo tempo em que há uma continuidade ao
nível de refinamento do saber acerca dos meandros do estilo, acontece uma ruptura no
registro do arranjo da escuta. Por mais “brutal” que o metal extremo mainstream possa
ser “não dá mais conta”. “Fica faltando alguma coisa”.
63
Sobre o preconceito que os apreciadores de heavy metal dizem sofrer, remeto o leitor à tese de Pedro
Alvim Leite Lopes (2006).
64
Este aprimoramento tende a variar de acordo com, novamente, o tempo de inserção da pessoa e com as
atividades que irá praticar. Um músico e um escritor de um zine com relativa longevidade podem
apresentar sagazes refinamentos da escuta. Aliás, quanto ao segundo, boa parte dos textos que produz são
críticas e comentários dos últimos lançamentos, publicados na seção de resenhas. O escritor de zine é o
equivalente underground ao crítico de arte. Não é por acaso que os reais “veteranos” são, na grande
maioria, músicos e zineiros. Já os responsáveis pelos selos e distros, promotores de shows e aqueles
poucos que são só público podem tanto dominar as nuanças estilísticas como se manterem em nível
relativamente genérico de aprimoramento da escuta, pois suas posições não demandam, necessariamente,
um apuro no julgamento estético do metal extremo.
87
65
Som embolado: quando os instrumentos não são discerníveis. Pode acontecer tanto ao vivo quanto em
uma gravação. O som embolado é o antônimo de um som coeso, quando os instrumentos parecem estar
em harmonia uns com os outros. No entanto, enquanto o embolado é creditado a problemas acústicos, o
som coeso é fruto de uma “boa” composição.
89
certamente em nível mais acanhado do que a escuta no show, também está regulada por
essa diferenciação mainstream e underground e guarda em potência a possibilidade de
executar no ouvinte a imaginação da comunidade underground66.
Portanto, para o caso do underground do metal extremo brasileiro concordamos
totalmente com Max Peter Baumann quando afirma que ‘(...) a realidade da escuta e da
audição não se encontra nem no sujeito nem no objeto, mas na atividade cíclica e no
fluxo dinâmico entre ambos67’ (1992, p. 123). O underground, esse fluxo dinâmico de
pessoas, palavras e objetos, completa sua atividade cíclica de produção da música
dotando seus praticantes com batutas para realizarem aquela silenciosa execução da
audição. Assim, ao mesmo tempo em que ele figura como uma “prótese auditiva”, a
instalação dessa máquina de fazer ouvir nos ouvidos e gravações completa a
conformação de sua realidade enquanto uma organização específica dos meios de
produção da música.
69
Apenas salientando: conhecemos a realidade do underground para além daquilo que seus praticantes
dizem que ele é. Já em relação ao mainstream nada sabemos para além do que estes mesmos praticantes
dizem que ele é. Portanto, nosso uso de Adorno e Horkheimer aqui é mais como uma legenda da
categoria mainstream do que uma análise de processos produtivos e reprodutivos da música.
92
ou a emissão. Não se trata de uma linha reta que começa na produção e termina no
consumo e sim um círculo no qual recepção e emissão são faces do mesmo fenômeno.
70
Tradução livre de: ‘(...) there is some essential human activity, music-making, which has been
colonized by commerce’.
71
Tradução livre de: ‘the industrialization of music cannot be understood as something which happens to
music, since it describes a process in which music itself is made – a process, that is, which fuses (and
confuses) capital, technical and musical arguments’.
93
modo como a música popular no século XX é feita, e cabe então analisá-lo em seus três
principais aportes: os efeitos das mudanças tecnológicas, as crises e afluências
econômicas da indústria fonográfica e o surgimento de uma nova função nas práticas
musicais, o profissional da música.
Já o comunicólogo espanhol Jesús Martin-Barbero (2003) entende que nos
estudos dos meios de comunicação massivos não há mais lugar para indagações que
resultam sempre em uma mesma constatação: a ideologia dominante manipula os
discursos através das mídias de massa. Não há mais como perceber os meios de
comunicação operando entre ‘emissores-dominantes’ e ‘receptores-dominados’, como
se entre esses dois pólos a mensagem circulante fosse apenas produtora de ideologia e
alienação, esvaziada de conflitos, contradições, resistências e lutas. O principal
problema nesse tipo de pesquisa, defende o autor, é tomar o processo total da
comunicação apenas pelo pólo emissor.
A partir dessa crítica, Martin-Barbero elabora sua proposta de estudo: ‘(...) re-
ver o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro pólo, o da recepção, o das
resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos’ (idem, p. 28).
Se o processo de comunicação for tomado a partir do pólo receptor, ou se preferirmos
do pólo consumidor, veremos então que as mídias são mais do que meios de
comunicação, são mediações, ou seja, operam transformações das mensagens no
processo mesmo de sua transmissão. Para o autor, isso seria perceptível nos usos das
mídias feitos pelos movimentos sociais latino-americanos (op. cit, pp. 225-269).
Eis aí dois autores preocupados com um mesmo tema social porém entrando
nele, literalmente, por lados opostos. Frith estende as implicações de Adorno e
Horkheimer para além deles mesmos na medida em que um saudosismo ressentido
análogo ao dos autores é apontado por ele como o impasse na compreensão da música
popular no século XX. A industrialização não só é fato como é berço da música popular
do século XX no ocidente. Tudo que podemos fazer é conviver com ela e tentar
compreendê-la. Sem reclamações. Martin-Barbero, por sua vez, entende que são
justamente reclamações que o pólo receptor está fazendo. Declaradamente inspirado por
Benjamin, o autor (op. cit, pp. 75-101) até concorda que a indústria cultural é um fato,
mas, de modo algum, isso implica uma planificação da comunicação. Pelo contrário. As
próprias técnicas de reprodução da arte dariam as condições de constantes re-
significações da mensagem, obviamente, recebida.
94
72
Tradução livre de: ‘(...), it is not for the sociologist to decide whether classical music is really the
embodiment of the highest strivings of the human soul, or whether blues is really the cry of pain of an
oppressed race, though such questions are the crucial matters for many musicians and listeners’.
95
magnéticas e digitais, são causas e efeitos, muitas vezes ambos ao mesmo tempo, dessas
manifestações sociais. Ou seja, a compreensão da música enquanto um tema social
demanda percebê-la enquanto uma construção, gerada em meio a alianças e conflitos
constituídos pelas e constituintes das diferentes formas de gravação, veiculação,
distribuição e escuta. Se essas técnicas ensejam desprezo ou júbilo pelo “mercado
fonográfico”; se elas acionam ou não controvérsias acerca da autenticidade da música;
se elas enfatizam a emissão ou a recepção, só poderemos saber após a etnografia.
Foi nesta afinação que tentamos compor nossa análise do underground do metal
extremo brasileiro. Não tanto por opção teórica mas também pelo que a etnografia
apresenta. Toda a crítica que seus praticantes fazem ao “mercado” da música
condensada naquilo que denominam mainstream, toda essa postura contra qualquer
meio massivo de produção e comunicação da música, de modo algum os coloca à
margem destes mesmos meios. Pelo contrário, os coloca frente a frente, em disputa
pelas formas com as quais irão utilizar esses meios. Contudo, nessa política das
produções do som, são em alguma medida vitoriosos. Conseguem manter suas formas
em operação, discretas, auto-sustentáveis e relativamente autônomas. É aqui que sua
crítica ou, para colocar de modo clássico, seus sistemas classificatórios, re-encontram
sua eficácia. As disposições e classificações acionadas pelas categorias underground e
mainstream regulam o funcionamento do sistema de trocas. Essas categorias lançam os
praticantes na disputa e, se observadas ao longo do conflito, garantem suas vitórias, a
manutenção da troca e do show. Vimos também pelos termos real e falso como essa
observação é importante para os praticantes. Antes de serem categorias propriamente
nominadoras de pessoas e bandas do underground, real e falso classificam modos de
representar este e se portar neste espaço. Fala-se menos dessas categorias do que se age
pelo que elas representam. Agência que exibe conhecimento das regras e modos de
funcionamento do underground e procura reconhecimento de que essas regras e modos
estão sendo acionados “do jeito certo”.
97
73
Importante guardar essa distinção, no caso do heavy metal, entre bibliografia acadêmica e não-
acadêmica. Este estilo musical é objeto de uma série de livros que não resultam de pesquisas feitas em
âmbito universitário. Porém, sem desconsiderar a qualidade desses livros, seria impossível, devido ao
grande número deles, incluí-los na revisão bibliográfica feita a seguir.
74
Originalmente publicado em 1984, o artigo Characterizing Rock Music Culture: the Case of Heavy
Metal foi republicado, com a inclusão de um pequeno pós-escrito, em 1993. A paginação citada
subseqüentemente se refere à segunda versão.
75
Ao longo de todo o texto o autor não define explicitamente quais são os critérios utilizados para
identificar uma gravadora como pequena e outra como grande. Porém ele nos dá pistas de que essas
denominações se referem a “fatia” do mercado que cada gravadora domina. Em dada altura do texto
(1993, p. 370) nos diz que as seis maiores gravadoras norte-americanas eram responsáveis, em 1979, por
86% dos discos lançados neste ano.
98
os responsáveis pelas pequenas sabiam que tipo de música poderia render grandes
lucros. Afinal, foram essas pequenas gravadoras que sedimentaram o rock, durante os
anos 60, na indústria fonográfica. Seus proprietários e responsáveis eram, eles mesmos,
músicos e promotores de shows que teriam percebido o potencial do rock para ser a
linha mestra da indústria fonográfica da época. Contudo, mesmo com o “sucesso” do
rock, suas gravadoras não conseguiram fazer frente ao poder econômico das grandes
gravadoras. Perderam seus negócios, mas ganharam empregos com ótimos salários.
Segundo Straw, o heavy metal é fruto desse contexto fonográfico. Lançadas pelas
grandes gravadoras da época, as primeiras bandas que poderiam ter sua música definida
como heavy metal foram montadas por essa ‘elite do rock’ (STRAW, 1993, p. 370),
oriunda das pequenas gravadoras dos anos 60. Músicos que sabiam como funcionava o
mercado da música, pessoas que estavam totalmente inseridas nas gravadoras lançaram
os primeiros discos de heavy metal e assim, segundo o autor, fundaram esse estilo de
música que viria a se tornar também um estilo de vida.
A perspectiva de Straw oferece interessante contraponto em relação a alguns
estudos, notadamente aqueles realizados no Centre for Contemporary Cultural Studies
de Birmingham durante a década de 7076, que viam grupos urbanos formados a partir de
estilos de música como fenômenos totalmente extra-institucionais. Como se o punk ou o
disco, por exemplo, tivessem emanado das ruas de Londres e Nova York, na ebulição da
condição juvenil que quer resistir a ‘cultura hegemônica’ dos seus pais, como
defenderam Hall e Jefferson (1976). Para Straw, mesmo que o heavy metal tenha se
tornado um estilo de vida já em meados da década de 70, estilo enquanto comunicação
de uma diferença distintiva como quer Hebdige (1979, pp. 100-127), não se pode
esquecer que ele é, sobretudo, resultado da conjunção de interesses financeiros da
indústria fonográfica com o interesse da “elite do rock” de então em se manter ativa no
negócio da música gravada. Ou seja, para Straw, a música produzida preconiza o modo
de vida heavy metal.
Entretanto, Straw, no pós-escrito incluído em seu artigo quando republicado
(1993, p. 381), faz uma ressalva quanto ao recorte histórico do seu texto: este diz
respeito tão somente à década de 70. Essa ressalva é significativa. É possível se reportar
76
Os estudos realizados sob a tutela do centro para estudos culturais contemporâneos de Birmingham, ou
CCCS, são os grandes responsáveis pela popularidade da categoria subcultura, outrora muito utilizada em
trabalhos preocupados em analisar grupos urbanos juvenis. Duas publicações deste centro de estudos se
destacam: a coletânea organizada por Stuart Hall e Tony Jefferson, intitulada Resistence Through Rituals:
Youth Cultures in Post-war Britain (1976) e o livro de Dick Hebdige, Subculture: the meaning of Style
(1979).
99
‘subgêneros’ do estilo (op. cit, pp. 57-107). Um fã pode até concordar com o argumento
que perpassa a musicologia de Walser, a idéia de que os guitarristas de heavy metal se
apropriam de certas características musicais daquilo que se convencionou denominar no
século XX de música clássica (op. cit, p. 58), mas pelas mesmas razões que o autor
aponta na introdução, este mesmo fã pode contestar a validade desse argumento para
todos os estilos de heavy metal.
No Brasil, os trabalhos acadêmicos que abordam o heavy metal não fogem ao
tratamento da diversidade. Tanto a dissertação de Janotti Jr (2004) quanto a tese de
Alvim Leite Lopes (2006) marcam, ao longo dos respectivos textos, a multiplicidade
dos tipos de metal abrigados sob o heavy metal em contexto nacional. Contudo, como o
recorte de ambos é espacial, o primeiro abordando a cena heavy metal soteropolitana
(2004, pp. 57-124) e o segundo o mundo artístico do heavy metal no Rio de Janeiro
(2006, pp. 2-28), os distintos estilos de metal são classificados como ‘subgêneros’,
como partes do todo social/musical heavy metal. Para o nosso argumento, é importante
assinalar que, para ambos os autores, as diferenças entre os estilos de metal não
desautorizam abordagens unívocas deste estilo de música quando o objeto é sua
manifestação dentro dos limites de uma cidade. As diferenças existem, elas são
importantes na visão nativa, porém não impedem uma análise comum. A musicóloga
Cláudia Azevedo (2007) segue, de certa maneira, a mesma linha argumentativa. Seu
artigo procura averiguar, a partir de um ponto de vista histórico, as construções das
diferenças e semelhanças musicais dos distintos ‘subgêneros’ de metal praticados no
Rio de Janeiro desde a década de 80. Porém, o heavy metal é mantido intacto. São
‘subgêneros’ de um gênero77.
Se, mesmo reconhecendo a diversidade do heavy metal, esses autores tratam-no
enquanto uma unívoca e relativamente coesa manifestação social/musical, outros
autores, entretanto, entenderam que as diferenças internas são tão cruciais na
compreensão da realidade deste fenômeno que, para eles, não é mais possível
empreender uma abordagem unívoca do heavy metal. É preciso se manter restrito a
manifestação de uma dessas diferenças.
77
Juntamente com a dissertação de Jorge Luiz Cunha Cardoso Filho (2006), esses são os três trabalhos
nacionais de fôlego sobre o heavy metal. Todavia não são os únicos. Jeder Janotti Jr, na condição de
professor da faculdade de comunicação da Universidade Federal da Bahia, orientou e vem orientando
trabalhos sobre o heavy metal. Alvim Leite Lopes, por sua vez, também cita na bibliografia da sua tese
(2006, p. 183) a monografia de graduação em comunicação social de Elisa Palha, a qual não tivemos a
oportunidade de ler. A produção acadêmica nacional sobre o heavy metal gira, assim, entre as áreas de
musicologia, comunicação social e ciências sociais.
101
heavy metal, para outras, essa multiplicidade expressa unidades particulares, não
suscetíveis de serem enquadradas por qualquer categoria mais ampla. Tal é o
distanciamento entre essas abordagens, espécie de imbróglio que se apresenta na
literatura acadêmica sobre o heavy metal.
Após esse breve resumo bibliográfico, não cabe concordar ou discordar das
análises expostas. Até mesmo porque cada uma ilumina facetas dessa manifestação
ampla e complexa que é o heavy metal, contribuindo assim na construção de desejada
perspectiva holista sobre ele. Mas, assim como cada uma dessas abordagens aponta para
a diversidade e se posiciona frente a ela, nós também detectamos no underground do
metal extremo nacional uma diversidade e, sendo assim, precisamos resolver como a
trataremos.
Os praticantes do underground do metal extremo nacional discutem
exaustivamente a história do heavy metal. Nos shows, nos zines, em bares, na rua e na
casa, eles expõem e debatem suas visões das continuidades e rupturas históricas deste
estilo de música. Exegetas, passam horas discorrendo sobre as diferenças estilísticas
entre os tipos de metal, estabelecendo limites e construindo abrangências. Concordamos
com Walser (1993) em que, no limite, cada praticante possui a sua interpretação das
semelhanças e diferenças acerca dos diversos estilos de heavy metal. Mas, para os
praticantes, o “legal” é debater essas interpretações, expô-las e ouvi-las, torná-las
públicas. As interpretações individuais, desse modo, são construídas nessas conversas e,
dependendo da sua qualidade e da persuasão com que são expostas, influenciarão outras
interpretações em subseqüentes conversas.
Ou seja, a mesma preocupação que encontramos na literatura acadêmica sobre o
heavy metal pauta o debate entre os praticantes do underground do metal extremo
nacional. A questão é interpretar e explicar as semelhanças e diferenças. A discussão do
underground é da mesma natureza que o imbróglio da literatura. Quais são as
particularidades de cada estilo e em qual medida essas particularidades podem ser
abarcadas por estilos mais abrangentes, universais, como o heavy metal e o metal
extremo. A diferença entre as discussões dos praticantes e a dos acadêmicos é que,
enquanto esses constroem uma representação sobre a realidade, aqueles constroem uma
representação da realidade que será, ela mesma, construtora da realidade do
underground78.
78
A literatura acadêmica sobre heavy metal é praticamente desconhecida pelos praticantes.
103
79
Estilo é uma das preocupações de Simmel que perpassam praticamente toda sua obra. A leitura aqui
proposta está baseada no último capítulo do seu Philosophie des Geldes, na tradução francesa (2007, pp.
545-569). Baseamo-nos também na extensa discussão sobre “estilo de vida” em Simmel feita por
Waizbort (2000, pp. 169-244).
104
(...) Um grande galpão dá espaço para as bandas se apresentarem e uma ampla área
externa dá espaço para venda de produtos em barraquinhas, mesas e bancos e até uma
área reservada para acampamento. O público é predominantemente masculino, numa
proporção de 70% de homens para 30% mulheres. A faixa etária média é mais velha do
que a esperada inicialmente por mim, variando aproximadamente de 20 até 45 anos. Os
membros antigos, presentes desde longa data neste meio social, e também os
organizadores do festival, tendiam a ficar mais pertos de si. No festival realizado em
2006 podiam-se ver barracas de acampamento de pessoas que viajaram de longe para
estarem presentes. Indivíduos com roupas de cirurgiões médicos, sujas de sangue falso,
podiam ser vistas circulando pelo ambiente desde pessoas vestidas de formas mais
“convencionais”, embora a cor preta fosse majoritariamente predominante no ambiente.
No galpão de dentro bandas se apresentavam enquanto um telão de fundo mostrava
trechos de filmes de alguns dos próprios participantes (op. cit, pp. 180-181).
O ROT teve início em 1990, formado por Mendigo e Marcelo, que, mesmo antes dessa
data, já estavam bem ativos no meio underground punk e metal, seja no envolvimento
com outras bandas e projetos ou fazendo fanzines, trocando tapes e mantendo contato
com pessoas ao redor do mundo. O caráter da banda desenvolveu-se a partir desse forte
envolvimento com o underground de um modo geral, embora o ROT dificilmente possa
ser enquadrado dentro dos padrões do metal ou do punk82.
80
Os apreciadores destes estilos dizem que existem grandes diferenças entre eles, não obstante,
entendemos que os três possam ser analisados em conjunto.
81
Myspace: sítio eletrônico de relacionamento da internet muito utilizado por bandas de todo o mundo
pelo fato de que é possível adicionar canções em suas páginas. Um interessante meio de divulgação livre
que não é juridicamente ilegal, como os programas de troca de arquivos digitais. Estaremos indicando os
endereços de myspace de todas as bandas comentadas neste capítulo que o possuam, para que o leitor que
tiver interesse tenha meios de ouvir as canções da banda.
82
www.myspace.com/rotgrindcore. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008.
107
83
www.myspace.com/anopsy. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008. A canção citada se encontra
para audição.
108
dos outros estilos consegue alcançar. A fita demo Scathologic paradise, dos
fortalezenses da Scatologic Madness Possession84, lançada em 2004, possui quinze
canções, enquanto a fita demo da curitibana Hate, título homônimo, trash metal,
lançada em 1998, possui quatro. Aliás, a banda cearense é adepta daquilo que chama de
“no fucking lyrics”, ou seja, suas canções não acompanham letras, mesmo havendo um
vocalista na formação da banda85. Só as bandas de gore/grind/splatter, no metal
extremo, aderem a este tipo de prática musical, certamente emprestada de bandas punk.
Assim como somente elas flertam com o humor. Por exemplo: o nome de uma banda de
Aracaju, Sergipe, Inrisório86, é um neologismo que brinca com a sigla I.N.R.I e com o
adjetivo irrisório. Tomando a sigla como representação de Jesus Cristo, a banda procura
transmitir a idéia de um Jesus patético, irrisório, pode-se dizer até ridículo. Essa idéia,
para os praticantes do underground do metal extremo, é cômica. Ela provoca risadas,
expressão essa que nenhuma banda dos outros estilos, quando estão se apresentando,
procura provocar87.
Humor, “no fucking lyrics”, canções curtas e bermudas são algumas das
particularidades que o gore/grind/splatter não compartilha com nenhum outro estilo de
metal extremo underground. Mas então como é que este estilo se aproxima dos outros?
O que faz com que o gore/grind/splatter, mesmo sendo tão peculiar para o
underground, mesmo que seja um estilo de metal tão punk, seja considerado pelos
praticantes do underground um estilo de metal extremo? O que ambos compartilham?
A banda Flesh Grinder de Joinville, Santa Catarina, pode nos ajudar a
compreender como o gore/grind/splatter se aproxima do metal extremo. Eles se
apresentam assim no seu myspace88:
84
www.myspace.com/scatologicmadnesspossession. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
85
A afirmação está na entrevista dada por Marcelo, baterista da banda, ao webzine Thundergod:
http://thundergodzine.com.br/entrevista_smp.htm. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008.
86
www.myspace.com/inrisorio. Acessado pela última vez no dia 13/03/2008.
87
Podemos dizer que existe uma evitação do riso no palco. Afora as bandas de gore/grind/splatter, em
nenhum show de metal extremo underground que assistimos vimos algum integrante de banda rir durante
a apresentação.
88
http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendID=48206176. Acessado
pela última vez em 13/03/2008. O texto citado abaixo se encontra no sítio eletrônico em inglês.
109
Ontem, por volta das 23h30, a Polícia Militar recebeu uma denúncia anônima e invadiu
uma casa localizada na rua Aquidaban, em Joinville-SC. De acordo com o denunciante,
os donos da casa são conhecidos por terem atitudes estranhas aos olhos dos vizinhos e,
nos últimos dias, o cheiro de carne em decomposição vindo do local estava
preocupando alguns dos outros moradores. Após a invasão, e para a surpresa dos
policiais, logo no quintal da casa foram encontrados restos do que pôde se supor serem
corpos humanos, em acelerado estado de putrefação, e ossos espalhados, no que parecia
ser uma espécie de laboratório de horrores. O cheiro dos cadáveres era insuportável e,
por toda parte, haviam membros dilacerados por instrumentos de corte e alguns com
marcas de dentes, o que levou a PM a suspeitar de canibalismo do mais violento. Dentro
da casa o horror não era menor. Alguns oficiais não conseguiram continuar ao ver
diversos corpos pendurados no teto, como em um abatedouro. Em uma mesa cirúrgica
no centro da sala, mais alguns corpos pareciam estar sendo dissecados, com órgão
empilhados em um jarro de vidro. O chão estava escorregadio por causa do sangue e
vermes. A PM encontrou os quatro responsáveis pelas atrocidades na cozinha, enquanto
analisavam um estômago apodrecido.
F.A.M.G., vulgo Necromaniak, R.A.M., vulgo Butcher, e D.R.H. vulgo Khil, foram
presos em flagrante e levados à delegacia. Em interrogatório, a PM descobriu que o
grupo, que se autodenomina Flesh Grinder, tem uma espécie de culto às coisas podres
de ordem patológica e vem atuando desde 1993. De acordo com eles, muito sangue e
nojeiras explícitas já foram espalhados e que sua fábrica de horrores irá continuar ainda
por muitos anos.
“Um culto às coisas podres de ordem patológica”. Nós não poderíamos ser mais
precisos na definição da temática abordada pelas bandas que fazem gore/grind/splatter.
Coisas podres, corpos humanos podres, abertos e escarafunchados não pela busca de
patologias mas porque estes “legistas” sofrem patologias. O gore/grind/splatter busca
uma representação explícita de tripas humanas em decomposição, de cabeças humanas
fisicamente divididas, de sangue coagulado. Seus músicos e apreciadores gostam de
brincar de serem legistas “loucos”, de serem “maníacos” pela morte, de serem
açougueiros. Daí eles comparecerem aos shows vestidos de médicos sujos de “sangue”
e daí a metáfora com o verbo em inglês grind para descrever a sonoridade do estilo.
Uma música que procura representar a trituração e a moedura da carne humana, assim
como o blues busca representar musicalmente o trem passando. Mas triturar e moer
carne humana todo legista faz. O músico gore/grind/splatter representa essas ações de
forma horrenda, “nojeiras explícitas”. O instituto médico legal imaginado pelos músicos
gore/grind/splatter se parece com, ou melhor, soa como uma “fábrica de horrores”.
Repugnante. É assim que o vocalista da banda curitibana Lymphatic Phlegm nos
descreveu89 como seu vocal deve soar: “repugnante, é como se eu estivesse vomitando”.
O corpo humano violentamente aberto e manuseado não só inspira metáforas da
música gore/grind/splatter como também estará estampado no material gráfico das
89
Nossa conversa aconteceu no intervalo de um show, em Curitiba, 2004.
110
bandas. O Intestinal vomit90 de Teresina, Piauí, divulgou sua biografia entre alguns
zines através do seguinte material:
90
www.myspace.com/intestinalvomitgore. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
91
www.myspace.com/ixsxoxyxf. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
92
A letra: Triple X of sixty nine/None performs this shit like mine/My violence for this position/Are
creating a whores’ extinction/My rock cock.../Chokes her brutally/My fist bashes.../The ass,
unrelentingly/My hand is all inside.../Splitting her assring.../Cum for her suffering/Fistifucked/She’s
puking all the.../Secretion of my dick.../Breathless is this chick/Facefucked (tradução livre: putaria no 69/
ninguém faz essa merda como eu/minha violência nessa posição/é levar a puta à extinção/meu pau é “do
rock”…/faz ela engasgar brutalmente/meu pulso golpeia…/seu cu duramente/toda minha mão está
dentro/rompendo seu “anel”.../gozando pelo seu sofrimento/comida pelo pulso/ela está vomitando toda
a.../secreção do meu pau.../essa “gata” está sem ar/ comi a cara dela).
93
Álbum, em vinil ou não, dividido por duas bandas. Neste caso é em vinil.
94
Não há informações no álbum sobre a cidade da banda.
111
95
Para Kristeva, essa identidade pode ser tanto a da vítima quanto a do próprio criminoso. Já o sistema
perturbado, certamente, é o sistema social. De qualquer forma, queremos manter nosso uso das idéias de
Kristeva quanto ao abjeto apenas nesse nível de conceituação: o abjeto, quando acionado, nos termos da
autora, quando manifestado, possui uma enorme força desagregadora. Daí o horror que ela causa. Ainda
mais quando sua manifestação é fruto de alguma vontade, de algum planejamento ou premeditação. Ai ela
é ‘ténébreuse (...), une haine qui sourit’ (op, cit). Para além dessa idéia, Kristeva conceitua a natureza da
abjeção como ‘reconnaissance du manque fondateur de tout être, sens, langage, désir’ (op, cit. p. 13), ou
seja, ela enquadra a abjeção em uma argumentação psicanalítica a qual preferimos não nos reportar.
112
O trash é vovô do metal extremo. O Motorhead já fazia esse som ríspido, bem lixão
mesmo, no final dos anos 70, mas isso que a gente conhece como trash metal surge lá
no começo dos anos 80, lá na Califórnia, com Slayer, Metallica, Exodus e o Testament.
Basicamente, essas bandas misturaram o heavy metal das bandas inglesas dessa época,
das quais a mais conhecida é o Iron Maiden, com o então recente punk/hardcore
californiano, que tava nascendo ali nas pistas de skate. Ai, o heavy metal, que até então
era aquela coisa melódica, limpa, com guitarras nítidas e vocais limpos, começou a ficar
mais sujo, mais distorcido nas guitarras e mais gritado nos vocais. Por isso que eu digo
que é o “vovô” da parada, o trash é a semente de toda a brutalidade que vem depois.
Não, de jeito nenhum. Trash é metal, é trash metal e não trashcore ou trash punk (...), o
punk é importante, fez com que o metal, pelo trash, perdesse o “nariz em pé” de
músicos virtuosos, o metal ficou mais rua com o punk, entende? Mais da galera mesmo
(...) mas mesmo assim, o trash é técnico, não tem nada daquela coisa de faça-você-
mesmo do punk, não tem nada de (cabelos) moicanos e (a proposta política da)
anarquia, trash é cabelo grande, calça preta colada e nenhuma ideologia além do som
pesado.
A visão de Mauro coloca o trash como um estilo de metal extremo que empresta
qualidades do punk, diferentemente daquilo que a banda Rot, de gore/grind/splatter,
diz. Enquanto esta última, mesmo reconhecendo ambos como matriz, não é nem punk
nem metal, o primeiro é metal com pitada de punk. O trash é “técnico” e não está
baseado no “faça-você-mesmo97” musical próprio do punk; seus músicos usam cabelos
96
Trash, e não thrash, é o termo de utilização mais comum entre os praticantes.
97
Ou como é conhecido entre os praticantes, do it yourself (DIY). A idéia, no registro musical, é que,
mesmo que a pessoa não saiba tocar algum instrumento, que ela forme uma banda e faça seus shows. Essa
idéia tornou-se uma espécie de filosofia punk quando extrapola o registro musical. Os zines resultam, no
registro da produção dos meios de comunicação, dessa filosofia. Toda etnografia do punk trata do DIY.
Remeto o leitor à Caiafa (1985) e Wendel Abramo (1994).
113
longos e não moicanos, calças pretas coladas ao corpo e não bermudas e se querem
divulgar alguma idéia, é aquela do “som pesado” e não a da anarquia, tão ligada no
imaginário urbano ao movimento punk. Se baseando nessa separação entre punk e
metal, Mauro traça uma genealogia do metal extremo fundada no trash, o “vovô” ou,
como os praticantes preferem, old school.
Walser não percebeu que, por mais que cada fã interprete a sua maneira a
história do heavy metal, certas interpretações são compartilhadas por boa parte dos fãs
e, o mais importante, essas interpretações recorrentes terão forte influência na realidade
social do heavy metal. Ora, a interpretação de Mauro é a mesma dos integrantes da
Violator98, banda de trash metal de Brasília, Distrito Federal. No texto de apresentação
do seu myspace, dizem que “a Violator foi formada no começo de 2002 por amigos que
não têm outras pretensões além de tocar o velho trash metal99” (grifo nosso). Mauro
terminou seus comentários sobre o trash metal dizendo que “(...) tocar o velho trash
metal hoje é honrar as raízes do metal extremo” (grifo nosso).
É importante contextualizarmos o discurso do trash. Independentemente se os
outros estilos de metal extremo são ou não “frutos” do trash, fato é que este estilo se
tornou datado entre os praticantes justamente pelo surgimento dos outros estilos. Frente
ao death, ao doom e ao black, o trash é, de fato, percebido como velho. Sendo assim, na
semântica dos estilos de metal extremo underground, acionar atualmente a identidade
trash “pura100” significa, necessariamente, se remeter ao passado do metal extremo.
Espécie de celebração dos “velhos tempos”, aliar-se à “velha escola” do metal “lixão”
demanda do praticante a incorporação em sua imagem de todos os elementos desse
passado.
98
www.myspace.com/viothrash. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
99
Texto original em inglês.
100
Pura no sentido de ser apenas trash, e não trash-death, como algumas definem seus estilos.
114
Calças pretas coladas ou calças jeans rasgadas, tênis branco e o “clássico” colete
jeans com patches101 costurados. A indumentária apresentada pela Violator figura no
imaginário do metal extremo underground como qualquer coisa de ancestral, como
qualquer coisa de trash metal.
A Violator celebra os velhos tempos até mesmo em suas canções. A letra da
canção Addicted to Mosh, contida no seu único cd full length, Chemical Assault,
lançado em 2006, marca todos os elementos que compõem o estilo trash em meio ao
underground nacional. A letra é uma metalinguagem sobre o trash, um “metatrash”:
Attack!
Thrashers return to this city/
To bring back all the insanity/
That has been lost through the time/
But now is time to remember/
Raise your fist and destroy your neck/
Against the stage/
A feeling inside drives you/
fuckin' mad/
Dive in the crowd and slam/
All around/
Adrenalin explodes. Take your life back/
101
Patches: pequenos pedaços de tecidos com nomes de bandas impressos ou bordados que os praticantes
costuram em suas roupas.
115
In the pit.
We Thrash to Live/
Addicted to Mosh/
We Bang ‘til Death/
With no remorse/
If mania boils in your blood/
Then you know it’s for real!
Thrash!
Tight pants, denims with patches/
Our way, the underground!
We are in league, and we won’t admit/
Anyone say it as a trend.
Começando por uma afirmação de que os thrashers estão de volta para trazer a
insanidade que foi perdida ao longo do tempo, a letra passa a narrar aquilo que seria
uma postura verdadeiramente trash no show. Levantar o pulso e destruir o pescoço na
frente do palco pelo chacoalhar da cabeça. Um sentimento te leva a loucura e você
começa a “dançar” o trash pelo mosh, subindo no palco e se jogando, ou
“mergulhando”, na galera e pelo slam, o “empurra-empurra” na frente do palco. Traga
sua vida de volta, a banda pede, para o pit, o “poço” na frente do palco onde toda essa
insanidade acontece. Em seguida, após uma estrofe na qual a banda lança mão de
imagens bastante utilizadas no metal extremo underground para descrever a importância
do estilo para seus praticantes, como vida e sangue, a letra pontua a vestimenta trash, a
idéia de união do underground e a negação da possibilidade de que este estilo se torne
uma moda. Eles não vão admitir que alguém diga isso. A última estrofe responde, por
assim dizer, porque o trash não é uma moda. O sentimento de união não se rompe e na
vivência do estilo não há outras intenções além do querer a batida trash para chacoalhar
a cabeça constantemente. Eles estão obcecados pelo espírito da velha escola.
102
Tradução livre: Ataque! Os thrashers voltaram à cidade/ Para trazer toda a insanidade/ Que foi perdida
ao longo do tempo/ Mas agora é hora de lembrar/ Levante seu pulso e destrua seu pescoço/ Na frente do
palco/ Um sentimento te leva/ A loucura/ Mergulhe na galera e se debata/ Por todos os lados/ Adrenalina
explode/ Traga sua vida de volta/ Ao poço. Tocar thrash é nossa vida/ Viciados no mosh/ Nós
chacoalhamos até a morte/ Sem remorsos/ Se o êxtase ferver em seu sangue/ Você sabe, é pra valer!
Thrash! Calças coladas e coletes com patches/ Do nosso jeito, underground! Nós estamos juntos e não
vamos admitir/ Ninguém dizendo que é moda. Sem separações e pretensões. Tudo que queremos é a
batida do thrashbanger/ Incontrolável chacoalhar de cabeça – Somos obcecados pelo espírito da velha
escola.
116
103
Tradução livre de ‘(...) concrete horrors of the real or possibly real world: the isolation and alienation
of individuals, the corruption of those in power, and the horrors done by people to one another and to the
environment’.
104
www.myspace.com/bywar. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
105
www.myspace.com/taurusofficial. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
106
www.myspace.com/blasthrash. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
107
A letra inteira: In a world built by greed/Politicians rules with fear/Bombs terrorize human
kind/Imminent annihilation/Brings our dreams to devastation/Victims of a Science of death. Burn, and
see, nature slaughtered/ Blasts/The whole world destroyed/The Fate of all living things will be leaded to
Extinction/Atomic Nightmare! Lunatics with the power/To erase all inhabitants/Desolation preserve an
empire/Widespread vast destruction/Can´t escape the toxic corrosion/Killing radiation overdose. Atomic
Nightmare! Darkness in the burning sky/The world comes to Demise/Human Race is
Terminated/Welcome to Nuclear Holocaust/Poison spreads everywhere/Hopes are reduced to
ashes/Toxic Waste infects our vein/Welcome to Nuclear Holocaust, now die! Marching Over Blood!
Atomic Nightmare! Chemical Attack/Atomic Nightmare! Nuclear Disaster/Atomic Nightmare!
Radioactive Dust/Atomic Nightmare! (A tradução livre: em um mundo erguido pela ganância/Políticos
governam pelo medo/Bombas terrorizam a espécie humana/Iminente aniquilação/Leva nossos sonhos à
117
Somos todos vítimas não porque a guerra nuclear, de fato, aconteceu, mas pela
iminência da aniquilação, por termos nossos sonhos, nossas vontades, nossos desejados
futuros devastados pela simples existência da bomba. Os responsáveis por este pesadelo
atômico são os gananciosos governantes que controlam pelo medo, financiadores dessa
ciência da morte.
A realidade de acordo com a representação trash é sempre essa. A violência, a
guerra, a bomba nuclear, a ciência sem limites, as catástrofes de um modo geral
aniquilam e devastam o meio ambiente e a esperança em um melhor futuro e em uma
convivência mais harmoniosa. O pesadelo prepondera sobre o sonho e a morte sobre a
vida. A narrativa aponta os responsáveis. Não tanto os “governantes” mas aquilo que os
impulsionam: a ganância, a obsessão e o egoísmo que os fazem sempre querer mais.
Como efeito, somos todos vítimas. Enlouquecemos, acordamos à noite suando frio, com
medo, e procuramos escapar dessa realidade nos viciando em entorpecentes os mais
diversos. O trash metal é um deles. Coloca-nos em êxtase, libera nossa adrenalina e nos
oferece um escape sujo deste mundo lixo. O trash é percebido pelos seus praticantes
como mais um entorpecente deste mundo entorpecido, como mais uma insanidade desse
mundo insano. Para os thrashers, se o mundo é um lixo, então que ele seja percebido
pelo ponto de vista da sarjeta.
O MUNDO É UM LIXO.
Capa do cd Chemical Assault da banda Violator, lançado em 2006. A cidade foi destruída,
a guerra nuclear está em curso e o thrasher, literalmente na sarjeta, está entorpecido.
119
108
www.orkut.com. O orkut, sítio eletrônico de relacionamento lançado na rede pelo google
(www.google.com), é muito utilizado pelos brasileiros, sabe-se lá por quais razões. Nele a pessoa pode se
tornar membro de comunidades, páginas temáticas criadas pelos próprios participantes do sítio, nas quais
é possível abrir tópicos onde se discute e se divulga questões relacionadas com o tema dela. É extensa a
quantidade de comunidades voltadas ao heavy metal em geral e ao metal extremo em particular.
109
www.orkut.com/Community.aspx?cmm=108635. Acessado pela última vez em 13/03/2008. É preciso
que o leitor tenha uma página pessoal no orkut para poder acessar as comunidades.
110
www.orkut.com/Community.aspx?cmm=21698127. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
120
decorrência do cancelamento do show de uma banda inglesa de doom, este estilo nos foi
definido por um dos presentes assim: “é como se A Bela e a Fera, que na verdade é um
conto dos irmãos Grimm que foi deturpado por Hollywood, fosse re-escrito por Goethe
ou mesmo Álvares de Azevedo”. Só um apreciador de doom definiria seu estilo
preferido dessa maneira, comparando-o com clássicos da literatura universal e
brasileira.
Essa postura de refinados está relacionada com a semelhança do doom com o
estilo dark ou gótico. Se o gore/grind/splatter e o trash guardam alguma relação com o
punk, o primeiro aceitando-a e o segundo negando-a, o doom, por sua vez, se aproxima
daquilo que Wendel Abramo (1994) chamou de estilo e prática urbana dark. Jovens, em
sua maioria universitários, vestidos em preto, com cabelos curtos com cortes
geométricos e rostos carregadamente maquiados, que se reuniam nas décadas de 80 e
90, em locais como a casa de shows Madame Satã, na capital paulistana, para ouvir
canções de bandas como as inglesas Joy Division, Siouxie and the Banshees, e The Cure
(idem, pp. 115-150). Os darks ou, como os apreciadores de doom do underground do
metal extremo preferem chamá-los, os góticos, apesar de terem como núcleo de suas
práticas a música, são, em sua grande maioria, jovens universitários (op, cit.)
interessados em artes em geral, notadamente literatura e arquitetura. Seus gostos na
literatura, dizem os praticantes do underground apreciadores do doom, vão de Byron,
Goethe, Poe, Baudelaire até os brasileiros Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos.
Na arquitetura, se mostram interessados na barroca e gótica européia bem como aquela
produzida pela escola alemã Bauhaus111. Além desses interesses artísticos, os góticos,
ainda de acordo com apreciadores do doom, apesar de serem pessoas solitárias, quando
em grupo gostam de passar a noite em cemitérios recitando poesias, bebendo vinho e até
mesmo fazendo sexo em cima das sepulturas112.
Essa descrição dos góticos de modo algum é pejorativa. O apreciador de doom
aponta para essas características na intenção de corroborar uma aproximação entre o
gótico e o seu estilo favorito. Antonio, 37 anos, se percebe como “um grande apreciador
111
Não é por acaso que uma das bandas mais apreciadas pelos góticos, a inglesa Bauhaus, leva o mesmo
nome da escola alemã de arquitetura.
112
Essa descrição dos gostos e costumes dos góticos de acordo com os apreciadores de doom do
underground é uma sumarização de uma série de informações coletadas em rodas de conversa em bares e
shows. Não foi possível comparar essas informações com alguma etnografia dos góticos no Brasil pois,
até onde sabemos, a única feita é a de Wendel Abramo (1994), a qual, contudo, se refere à década de 80.
Eis ai uma interessante proposta de etnografia: os góticos no Brasil.
121
de doom”. Foi ele quem fez a descrição deste estilo aproximando A Bela e a Fera de
Goethe e Álvares de Azevedo. Na mesma conversa ele afirmou:
O cara que gosta de doom, ou melhor, a pessoa que gosta de doom, porque tem muita
mulher que gosta também, pode até não ir em cemitério, ler poesia e ficar nessa onda
“deprê” do gótico, mas ninguém pode negar a influência do gótico no doom, de jeito
nenhum. O doom é quase que um Sister of Mercy (banda inglesa que os góticos gostam)
com guitarra distorcida. Aliás, o Paradise Lost (banda inglesa de doom metal) gravou
uma música do Sisters e, aliás, não é à toa que doom metal também é conhecido como
gothic metal.
O apreciador de doom quer que seu estilo preferido seja percebido como um
correlato do gótico. Com esta correlação, ele constrói sua distinção no underground. Ao
nível musical e lírico, estabelecendo uma genealogia do seu estilo diferente das dos
outros, mas também no registro pessoal, ou melhor, nos gostos além música. O
apreciador de doom gosta de ser percebido no underground como um praticante que lê
romances e poesias, costume esse que, independentemente se o praticante faz ou não,
não é utilizado como uma marcação do metal extremo em geral. Ele bebe vinho nos
shows ao invés de cerveja ou aguardente, as bebidas mais consumidas nestes eventos.
Enfim, o apreciador de doom quer ser percebido como um elegante, um refinado, um
gentleman do underground do metal extremo nacional.
Para os padrões do underground, os apreciadores de doom sempre estão muito
“bem” vestidos. O show, para ele, é um baile da gala. As calças de couro, pretas,
parecem ter sido encomendadas em alfaiates, tal é o ajuste delas nos seus corpos. As
botas pretas de couro, chegando aos joelhos, sempre lustradas. Cintos e braceletes com
tachas de ferro adornam os limites da sua camisa preta de mangas longas, também justa
ao corpo. O cabelo longo e liso. Suas damas de companhia também impecáveis. Saias
negras e longas combinadas com espartilhos negros de couro, adornados com tachas de
ferro na frente e um longo entrelaçado de cadarços atrás. Macacões de couro também
servem, justíssimos, complementados por botas ou sapatos de salto alto e cintos de
couro com tachas. Brincos e colares são utilizados por ambos, mas ele prefere um colar
prateado, geralmente com uma cruz invertida pendurada, e ela uma coleira de tachas de
ferro ou de seda preta. A maquiagem tenta embranquecer o rosto e enegrecer a periferia
dos olhos e nela, tinge também os lábios de vermelho ou roxo.
Mas a correlação com o gótico construída pelos apreciadores de doom somente
está no estilo, ou de forma mais precisa, na música, no vestuário e nos gostos artísticos
122
além música. A relação com os góticos enquanto um grupo urbano, enquanto uma
prática urbana, é de diferenciação e separação. Com a palavra, novamente, Antonio:
Essa coisa de pular muro do cemitério na madrugada e ficar recitando poesia (...), ai é
meio over, é demais, não acha? Eu não ando com esse pessoal, eu acho que chega a ser
pedante. Isso eu não faço, a galera do metal não faz, isso é coisa de quem quer se
mostrar (...), guarde seus sentimentos pra você, suas leituras pra você e quando você
quer botar isso pra fora, coloca na música e mostra na música.
Aqui sim temos uma descrição pejorativa dos góticos feita por um apreciador de
doom. Uma depreciação das ações que os góticos fariam e não dos gostos artísticos que
os góticos teriam. O apreciador de doom e o gótico, pela perspectiva do primeiro, não
“andam” juntos, eles não fazem parte do mesmo grupo, eles praticam, não obstante as
aproximações de gosto artístico e visual, diferentes práticas urbanas.
A razão da separação está na música. Para Antonio, o gótico expressa “seus
sentimentos e suas leituras” em atividades “pedantes” como a incursão noturna ao
cemitério. Tudo aquilo que o gótico estaria recebendo em termos de afeto com seu
envolvimento com literatura, música e arquitetura se transformaria em ações imaturas,
em uma ostentação despropositada, exemplificada por Antonio pela incursão ao
cemitério. Já o doom é música. Ele é feito não “para se mostrar” e sim para “botar para
fora os sentimentos e as leituras”. Para Antonio, como para qualquer praticante de metal
extremo, sua produção, tanto na composição quanto na escuta, é regida pela necessidade
interna da pessoa em extravasar “seus sentimentos” e não por pressões externas, seja lá
de qual ordem. Em relação ao gótico, o doom é comedido, sério e propositado porque é
música, podemos dizer, porque é metal extremo.
Fazendo essa separação sociológica com o gótico, assim como o trash faz com o
punk, o doom constrói sua entrada no centro do underground do metal extremo
brasileiro. Neste espaço não há incursões ao cemitério nem recitações de poesias. Pela
perspectiva dos apreciadores de doom, ai só se faz música e é para apresentar e ouvir
música que ingressam nele. Filiado ao espaço do underground, o doom assume
plenamente sua posição como um estilo de metal extremo. Aí sim, o doom ganha a
forma de doom metal.
A Bela e a Fera re-escrita por Goethe. Percebendo o doom metal em meio aos
outros estilos de metal extremo underground compreendemos como este estilo pode ser
descrito da maneira que Antonio fez. Aliás, descrição essa, em nossa opinião, astuta. O
título do conto dos irmãos Grimm se referiria aos vocais. As bandas de doom são as
123
únicas que se utilizam de dois vocalistas, um homem e uma mulher, como a capixaba
Evictus113. Nessa banda, enquanto o baixista Eduardo faz o vocal gutural, rouco,
semelhante aos vocais dos outros estilos de metal extremo, a soprano Fernanda114 faz
um vocal lírico, limpo, semelhante aos vocais femininos de uma ópera. Um dueto de
pólos opostos, do belo e do horror, assim como a imagem que o título do conto
transmite. Contudo, diferentemente do final do conto, onde a Bela e a Fera encontram
um no outro o amor, na temática das bandas doom esses pólos opostos nunca se
encontrariam. Eles sofreriam pois se perderam ad aeternum. Eis ai a pena de Goethe115,
o sofrimento triste e constante resultante da separação, a perda da unicidade tão peculiar
a certa literatura romântica116.
A BANDA EVICTUS
O motivo do sofrimento, sublinhado pela descrição de Antonio, de fato, é caro às
bandas de doom metal. O encontramos nos próprios nomes das bandas, como no da
carioca Avec tristesse117 e no da curitibana Eternal sorrow118. Uma tristeza, um eterno
infortúnio, uma melancolia que as bandas de doom metal procuram representar tanto na
música quanto nas letras das canções. Na primeira, ela é construída por meios do dueto
dos vocais, do uso dos teclados, raros nos outros estilos, e principalmente no tempo de
progressão da canção, lento e cadenciado em relação aos outros estilos de metal
extremo. As canções doom geralmente são as mais longas, chegando a contabilizar dez
113
www.myspace.com/evictus. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
114
Interessante notar que a vocalista da banda é caracterizada como soprano. Essa marcação lírica é
específica do doom em referência ao metal extremo. Aliás, os vocalistas raramente são marcados como
vocalistas nas bandas de metal extremo. No gore/grind/splatter ele é o “vômito”, no trash ele é o
“screams”, no death é o “garganta” e no black é o “vociferador”.
115
O Goethe de Werther, muito provavelmente, e não o Goethe do Wilhelm Meister.
116
Sobre a perda da unicidade como um tema do romantismo ver Duarte, 2004 e Cavalcanti, 2004.
117
www.myspace.com/avectristesse. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
118
www.myspace.com/eternalsorrowdoommetal. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
124
(The fact)
His flesh dilacerated with just
six years
Cowards flee in despair
of their own ignorance
Blinded by the social decay
and the certain of the impunity
That leaves a repugnant trace
of blood and pain
(The Fault)
We all are blamed
119
www.myspace.com/adagiodoommetal. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
120
www.myspace.com/tenebrysband. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
121
O assassinato do garoto João Hélio, para quem não se lembra, foi bastante veiculado nos meios
jornalísticos nacionais no começo de 2007. Ele morreu quando dois homens abordaram o carro da sua
família na intenção de roubá-lo. Os homens mandaram todos saírem do carro, mas quando a mãe foi
retirar o garoto do banco de trás, o cinto de segurança o prendeu. João Hélio chegou a descer, mas os
assaltantes arrancaram com o carro. Com o movimento a porta traseira do veículo se fechou, fazendo com
que o garoto ficasse preso pelo abdome. Os dois dirigiram alguns quilômetros com o garoto preso para
fora do carro.
125
122
A canção não foi lançada em nenhuma gravação, mas se encontra disponível no myspace da banda.
Sua tradução livre: (os fatos) Sua carne dilacerada com apenas/seis anos de idade. Covardes fogem em
desespero/de sua própria ignorância. Cegos pela decadência social/e com a certeza da impunidade/deixam
um repugnante traço de sangue e dor. (sua irmã, no funeral) Eu quero meu irmão/eu quero meu bebê de
volta/quero ouvir sua pequena voz/quero ir com ele/ eu vou estar com ele até o fim porque ele está
vivo/vou matar aqueles dois/eles levaram meu irmão. (a culpa) Somos todos culpados/pelo silêncio e
inércia/pelo horror sentido cotidianamente/e pelo esquecimento vindouro. Somos a cegueira provocada
pelo medo/o asfalto consumiu seu corpo/os pútridos políticos/somos o mal absoluto/e a insanidade.
123
www.myspace.com/scarletpeace. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
124
www.myspace.com/soulsad. Acessado pela última vez em 13/03/2008. Essas duas canções não foram
lançadas em nenhuma gravação, mas se encontram no sítio eletrônico citado.
126
tende a aludir nas letras das canções do seu cd Broken Dreams, de 2003, para a
“complexidade dos sentimentos humanos e das adversidades dos relacionamentos
afetivos”, como o texto de apresentação do seu myspace diz. As representações dessas
bandas podem até estar aludindo à dor da perda, porém esta não é o elemento expressivo
central daquelas.
Diferentemente do gore/grind/splatter e do trash, onde há uma maior coesão
estilística, não há um elemento expressivo que possa ser caracterizado como
paradigmático do doom metal. A linha mestra que distingue esse estilo de metal
extremo de seus congêneres está mais na maneira como os conteúdos da expressão são
dispostos, na forma, em um jogo de imagens que almeja imbricar a beleza no horror,
como a letra da canção Beautiful like Sadness, da banda Adágio, também inclusa no cd
já citado Romantic Serenades, exemplifica:
125
www.myspace.com/triarchy. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
126
Tradução livre: Eu vejo você, minha amada/eu trouxe flores para cobrir seu corpo/belas e frias
flores/frias como sua alma. As lágrimas que choro/doce lágrimas de amor. Sua beleza triste/bela como a
tristeza. Eu contemplo sua face/dentro de um caixão/pálida como luz da lua/lua que me entristece. Eu
vejo você, minha amada/eu trouxe flores para cobrir seu corpo/belas e frias flores/frias como sua alma.
Agora estou sozinho/sozinho para te encontrar/sozinho para chorar/sozinho para morrer com você.
127
Encontramos nessa letra várias imagens caras ao doom metal. A solidão, o rosto
pálido, o choro, a morte e mesmo a dor da perda, na medida em que a letra nada mais é
do que o retrato de um amante contemplando sua amada morta. Porém, essas imagens
alusivas ao sofrimento são adjetivadas pela beleza. São com belas e frias flores que o
amado cobre o corpo dela, são doces lágrimas que ele derrama sobre ela, sobre a amada
de uma beleza triste, tão bela quanto a tristeza. Na última estrofe, corolário do calvário
do amante, sozinho ele lamenta e sozinho prefere morrer para estar ao lado de sua
amada.
O enredo, por assim dizer, do estilo doom metal se distingue no underground do
metal extremo construindo as imagens de uma beleza horripilante e vice-versa, de um
horror belo. Neste sentido, temos no doom não tanto pólos opostos que nunca se
encontram, mas, antes, em mútua alusão. Sofrer pela perda é bonito e a beleza faz
sofrer. A dor é sã e a saúde é dolorida. A tristeza alegra e a alegria entristece.
Mas a particularidade do doom metal no underground é justamente aquilo que o
coloca no centro do metal extremo nacional. Essa mútua alusão entre beleza e horror é
também uma mútua contaminação da beleza pelo horror e vice-versa. Mais uma vez,
assim como nos dois estilos analisados anteriormente, temos no doom um estilo que se
pretende disruptivo tratando de imagens disruptivas.
127
Um outro motivo, como vimos no primeiro capítulo, são as necessárias relações que os praticantes
precisam ter com diversos agentes e instituições externos ao underground para lançarem suas gravações e
128
urbana é, em parte, montada em contrastes com outras práticas urbanas que seus
praticantes fazem a cada show, a cada gravação lançada e a cada exegese de seus estilos
preferidos.
Contudo, os praticantes que dizem ter como seu estilo preferido o death metal
não levantaram ligações extra metal extremo para o caracterizarem. Guga, vocalista da
banda curitibana de death metal Sad theory128, comentando o surgimento histórico deste
estilo129, diz que:
O death metal quando surgiu era uma radicalização do trash, mas isso lá atrás. O death
radicalizou tanto que hoje tá bem longe do trash. Eu acho que hoje o death metal é puro
metal extremo (...), é o mais rápido, o mais pesado e o mais agressivo.
A agressão está nas guitarras distorcidas em afinação baixa. O normal no death é afinar
um tom e meio ou mesmo dois tons abaixo. E com aquele som distorcido, que parece
que tá arranhando, o som fica agressivo. A velocidade tá na bateria com dois bumbos ou
pedal duplo rápido, o que a galera chama de blast beats. A rapidez ai é essencial pra
preencher os buracos deixados pelas guitarras. A harmonia entre guitarra e bateria está
no baixo, que é um instrumento de corda percussivo, acompanhando os bumbos da
bateria. No meio disso tudo o vocal gutural, rosnado, cavernoso mesmo. Quando esse
conjunto é bem feito, tua banda tem peso.
fazerem seus shows (indústrias de prensagem de cds e vinis, lojas de cds especializadas em heavy metal
em geral, bares e casas de shows).
128
www.myspace.com/sadtheory. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
129
Estes comentários foram feitos em uma conversa de bar tida com Guga e Danilo, guitarrista de death
metal, em Curitiba no ano de 2005.
130
www.myspace.com/bandainfernal. Acessado pela última vez em 13/08/2008. Vale indicar que desde
2006, Danilo trocou a guitarra pelo violino distorcido como seu instrumento de execução enquanto
membro da banda.
129
Quando Danilo fala em guitarras distorcidas, ele se refere aos efeitos sonoros
que os guitarristas de death metal se utilizam, geralmente produzidos por um pedal131. O
efeito preferido dos guitarristas de death metal é aquele que aumenta o volume do som
do instrumento distorcendo suas propriedades acústicas, tal como o turvamento que a
água causa na imagem de algum objeto quando imergido nela. Afinações “baixas” são
afinações abaixo da nota lá, padrão de afinação na música ocidental. Dois tons ou um
tom e meio abaixo seriam, respectivamente, afinação em fá e fá sustenido.
Os bumbos, por sua vez, são os instrumentos tocados pelo baterista com os pés.
Quando Danilo fala em bumbos duplos, ou pedais duplos132, está se referindo à
duplicação de batidas no bumbo como característica do death metal e, o mais
importante, o mais rápido possível. Não há variações ou fraseados. Não há melodias. A
intenção é bater no bumbo alternadamente, de forma constante, o mais rápido possível.
Essa técnica é aquela “que a galera chama de blast beats”, uma rajada de batidas no
bumbo. Importante lembrar que, por mais que Danilo não indique, os bateristas de death
metal se utilizam fartamente de outros instrumentos, como a caixa, os surdos e os
pratos.
O baixo, “instrumento de corda percussivo” de acordo com Danilo, funciona no
death metal como uma ligação entre percussão e guitarra. Prolongando a batida curta da
percussão e encurtando as notas longas das guitarras, o baixo harmonizaria a música das
bandas de death metal equalizando volume e tempo das notas, sonicamente distintas, da
percussão e da guitarra.
Finalmente o vocal “gutural”, qualificado assim por Danilo por ser uma técnica
de canto na qual a garganta prepondera sobre a boca. Nessa técnica, o vocalista encurta
a passagem de ar na sua garganta, adstringindo suas cordas vocais. Consequentemente,
sua capacidade de melodia, de cantar diferentes notas, é reduzido a praticamente zero.
Em contrapartida, o vocal nessa técnica sai distorcido, tal a distorção das guitarras.
Sendo assim, o vocal “gutural” é uma distorção monotonal, metal extremo de uma nota
131
O pedal é um aparelho de efeitos sonoros ligado a meio caminho entre o instrumento e a caixa
amplificadora. O som produzido pelo músico passa pelo pedal antes de sair pela caixa. Leva esse nome
por ficar aos pés do guitarrista, facilitando que ele troque os efeitos ao longo da apresentação pelo toque
dos pés. O pedal, sem dúvidas, é universal no metal extremo underground nacional. Não basta que o som
seja acusticamente elétrico, é preciso que ele seja eletronicamente distorcido.
132
Bumbos duplos são dois bumbos no kit da bateria. Pedais duplos é um bumbo só sendo batido por um
pedal com duas baquetas (na gíria dos músicos de metal extremo, dois “pirulitos”). Não confundir este
pedal com o pedal das guitarras.
130
só, em fá ou fá sustenido. Como disse Guga: “cara, a boca só serve pra sair o som e pra
mudar as palavras, a garganta faz tudo, quer dizer, fica tocando essa nota única”.
De fato, percebemos a exploração desses elementos musicais indicados por
Danilo em todas as bandas que se definiram como death metal vistas e ouvidas durante
a pesquisa. Assim como o julgamento que Danilo faz também foi percebido, tanto em
quem compõe quanto em quem ouve o death metal. As bandas que conseguiram
imbricar esses elementos em sua música eram consideradas “boas”, ou seja, são bandas
que fariam um death metal “rápido, pesado e agressivo” ou, em outra metáfora,
equivalente, “brutal”. As resenhas de gravações atestam este tipo de julgamento. No
Dark Gates zine, Bernardo resenha o segundo full lenght da banda Queiron de Capivari,
São Paulo, assim:
Depois de várias demo-tapes e seu merecido debut-cd (...), esses três cavaleiros do
apocalipse nos presenteiam com mais este trabalho, Templars Beholding Failures,
contendo 1 intro e 9 músicas, moldadas no mais puro brutal death metal. Marcelo,
Tiago e Daniel destilam todo seu ódio com técnica, velocidade e brutalidade. O melhor
é não destacar som algum, ponha o cd pra rolar e ouça-o do começo ao fim (...), são
quase 50 minutos de pura blasfêmia. Aos fãs do estilo, um convite para detonar com os
pescoços, aos de ouvidos delicados, sugiro distância, aos posers, cuidado...estamos
chegando! Congratulações à banda!
No entanto, o death metal é considerado por Guga como “puro” metal extremo
não por apresentar essas qualidades sônicas, mas por potencializá-las. Para Guga, o
death metal não é “rápido, pesado e agressivo”, é o “mais rápido, o mais pesado e o
mais agressivo” dos estilos de metal extremo, ou seja, uma “radicalização” musical de
um tipo de música denominada como extrema.
O metal extremo underground nacional significa para seu praticante,
independentemente do estilo, música “pesada e agressiva” composta por meio dos
elementos sônicos apontados por Danilo: guitarras distorcidas e em “baixa afinação”,
bumbo duplo, baixo “harmonizador” e vocal “gutural”. O julgamento estético do
underground procura pesar se uma dada banda conseguiu compor uma música “pesada
e agressiva” a partir destes elementos. De outro modo, compor uma música que não
apresente pelo menos um destes elementos certamente significa uma descaracterização
do metal extremo e muito provavelmente pode resultar em um afastamento dos seus
compositores do underground133. Poderíamos exemplificar o ponto com uma série de
133
A guitarra distorcida é o único elemento imprescindível. O vocal gutural e o bumbo duplo são
importantes, mas não utilizá-los não implica, necessariamente, em descaracterização do metal extremo,
como vimos no caso do doom metal. O baixo, por sua vez, pode ser utilizado como instrumento melódico
131
ao invés de percussivo. Teremos então um baixista com “técnica”, um virtuoso. Afora esses instrumentos,
os teclados aparecem em bandas de doom e black metal, com controvérsias, e instrumentos de sopro,
essencialmente melódicos, são evitados ao máximo. Novamente, vemos aqui, na política sonora do
underground, a primazia do pulso (ritmo) sobre o tom (melodia).
134
Rodolfo, nome verdadeiro, pediu para não divulgar o nome de sua banda, segundo ele “porque não sei
o que os outros caras da banda acham disso”.
132
contribuir na construção coletiva deste espaço e não como uma forma de auto-
promoção, tanto dele próprio como da sua banda:
Mas toda essa participação sua no underground não seria uma forma de promover a sua
banda? Toda essa troca de cartas, esse empenho em fazer um som legal, toda essa ajuda
que você dá pra galera, não é uma forma de se fazer mais conhecido, de vender mais
cds e fitas, de se promover no underground?
- pra ser conhecido no underground, tem que existir o underground (...), toda banda que
faz um trabalho sério pensa em sobreviver de música, pra mim quem diz que não é um
fingido, bando de falso, hipócrita (...), mas conseguir isso é muito difícil, no Brasil
quase impossível, então tem que rolar ajuda, mutirão mesmo, todo mundo ajudando
todo mundo, como uma comunidade. Eu quero me dar bem junto com todo mundo que
tá aqui pra valer, fazendo a coisa séria, pelo metal extremo, pela pancadaria135.
Para Rodolfo, não é preciso pedir mais união ao underground porque ele já está
unido, tão unido que já se cristalizou em uma comunidade. Uma comunidade, como
Rodolfo a percebe, que poderia ter como lema o mesmo dos mosqueteiros de Dumas, un
pour tous, tous pour un. Constituída a partir de um interesse pelo metal extremo,
contudo, para Rodolfo, ela é mais do que um grupo de pessoas que se reúnem
periodicamente para fazer, ouvir e apresentar esse tipo de música. A comunidade do
underground seria uma rede de solidariedade, baseada em uma igualdade e em uma
135
Noto que as respostas transcritas de Rodolfo foram lidas por ele após eu as ter redigido durante nossa
conversa. Ele fez questão de lê-las, mas não fez questão de alterações.
133
136
Ainda sobre este trabalho, foi uma grata surpresa encontrar em sua etnografia as mesmas opiniões que
Rodolfo tem acerca do underground nas vozes dos músicos e apreciadores de death metal em Akron.
Aliás, o principal participante da pesquisa de Berger, Dann, comenta sobre suas trocas de cartas com a já
inativa banda brasileira, carioca, Dorsal Atlântica (op. cit, p. 274). Temos nesta confluência de dados
entre esta pesquisa e a nossa mais um indício das conexões internacionais que o underground do metal
extremo engendra.
135
137
www.myspace.com/embalmedaliveband. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
138
www.myspace.com/chemicaldisasterband. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
139
www.myspace.com/sadesmetal. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
136
140
Originalidade e criatividade são dois valores muito bem quistos no underground, porém elas estão
regradas por essa demanda de encurtamento de referências e alusões e, claro, pelas regras sonoras e líricas
do metal extremo. Juan, guitarrista do Sad theory, em uma de nossas tantas conversas durante as
gravações do disco da banda, disse o seguinte a respeito da originalidade e criatividade no metal extremo
underground: “tem que ser tradicional de um jeito inovador, fazer mais do mesmo de um jeito diferente”.
Pelos dados da pesquisa, tendemos a concordar com ele, fazendo uma ressalva. São poucas as bandas que
conseguem executar esse tipo de criatividade e originalidade. De modo que a grande maioria só cumpre a
primeira metade desse programa, fazendo “mais do mesmo”.
141
No show a música prepondera sobre a letra. Porém, vale notar que mesmo nas fitas demo mais toscas,
as bandas fazem questão de trazer no encarte as letras de suas canções.
137
adicionando instrumentos de sopro por exemplo, ela arrisca não só sua filiação ao death
metal como também ao próprio underground.
De modo que a particularidade do death metal no underground está em uma
inversão da relação entre música e letra. A música legenda a letra, ela traduz em
melodias, harmonias e ritmos os adjetivos, substantivos e verbos, delineia em sons
ouvidos como violentos e agressivos, palavras de violência e agressão. Daí o metal da
morte ser considerado o estilo mais “puro” do metal extremo, o mais “agressivo e
brutal”, por todos os praticantes. Em uma prática urbana fundamentalmente musical, o
death metal seria a cristalização sonora dos valores e afetos que seus praticantes buscam
representar pela música. Pela sua perspectiva, o filho legítimo do metal extremo
cumpriu seu dever, exprimindo ritmos da virulência, expelindo melodias da agressão e
vomitando harmonias pelos intestinos delgados abertos. O death metal figura, assim,
como o corolário musical do underground do metal extremo nacional.
138
(...) só vejo falsidade ultimamente. Tirando algumas poucas hordas sérias e respeitáveis,
só vejo modistas, falsos que acham legal se vestir de preto, que acham que estão
assustando alguém. Ficam fazendo cara de mau e dizendo que são satanistas sem
nenhum fundamento ideológico (...), os valores se perderam, o cenário underground
está corrompido.
Lamentável. Prefiro não ocupar meu tempo pensando sobre bandas modistas, que
posam de fodões. Pessoas que não se encontraram, e que se moldam de acordo com
uma certa tendência não merecem sequer comentários. Eles próprios se encarregam de
se destruir.
Suas críticas recaem até mesmo sobre a cena belo-horizontina, onde estaria
acontecendo algumas “mesclas” do underground com estilos musicais execrados pela
banda:
(...) não compactuamos com idéias de um modismo eletrônico, new metal, dance, rave,
etc, que estão se mesclando ao movimento em Belo Horizonte, do qual queremos
apenas distância (...), saudamos aqueles belorizontinos (sic) que ainda mantém a chama
do eterno metal mineiro.
142
As bandas de black metal se percebem como as mais reais do underground, por razões que tentaremos
compreender neste item. Mas vale indicar aqui que, sendo as mais reais, são as mais preocupadas em
controlar a divulgação de sua música. Portanto, elas são as mais avessas à internet. Seus membros dizem
que a internet facilita o acesso às suas músicas e informações por pessoas “indesejáveis”, falsos e
modistas principalmente. Sendo assim, teremos poucos endereços de myspace das bandas desse estilo
para indicar ao leitor.
143
Cenário é utilizado pelos praticantes como um equivalente de underground, geralmente fazendo
referência ao âmbito nacional e/ou mundial. Cena, em contrapartida, faz referência ao underground local
de uma cidade e/ou região do país.
144
Apenas para não deixar dúvidas ao leitor. O codinome do músico inclui as reticências.
141
comportamento impostos por alguma nova tendência, “eletrônico, new metal, dance,
rave”, em detrimento da “eterna chama” do metal.
Temos aqui mais um exemplo daqueles modos de acusação que as categorias
real e falso engendram. A banda Mordor se colocando na posição de real, classifica
praticamente todo o underground nacional como falso, “vendido e modista”.
Obviamente, eles não compactuam com tal estado, eles são reais, são dignos de respeito
por manterem a “verdadeira chama acesa” junto com outras “poucas hordas sérias”. No
discurso do apreciador de black metal, esse não compactuar-se com a falsidade beira o
rompimento com o underground, como deixa claro, novamente, Doom-Rá. Em certa
altura da sua entrevista ao Dark Gates zine, quarta edição, o líder da Uraeus, expondo
como seriam suas maneiras de conviver com a “sociedade capitalista”, enviesa sua
resposta em direção a um tratamento da sua relação com a própria cena underground
local145:
Vivo sozinho já a uns 6 anos e sempre convivi apenas o suficiente com a sociedade
capitalista, apenas suguei o que eu queria dela, sempre mantive-me oculto, nunca sai
por ai entre leigos, falando as minhas idéias, me arrependi de me misturar com a dita
cena black metal local, deveria ter me ocultado, sempre tentei ser amigo de todos, só
levei punhalada, vejo que mesmo no black metal, os defeitos típicos do ser humano são
visíveis, como traição, inveja, fofoca, falsidade, o melhor então é conviver com nossos
demônios mais íntimos de nossas solitárias escuridões (...).
145
Doom-Rá morou em várias cidades. A cena local a qual ele se refere nessa entrevista, provavelmente, é
a cena goianiense.
142
maneira que ele percebe seu estilo preferido do que sobre sua postura prática neste
espaço. Tal como em um teatro, a depreciação do underground é um “gancho”, uma
“deixa” para a construção da singularidade que o black metal guardaria frente aos seus
congêneres. Antes de romper com o cenário, o apreciador de black metal quer, com sua
crítica, delinear seu estilo e forçar o reconhecimento desse delineamento pelos outros
praticantes do underground.
Os membros do Mordor nos ajudam a perceber qual delineamento é esse. Na
mesma entrevista, esclarecendo qual seria o significado da banda para eles, dizem:
Seria demasiado complexo buscar um conceito que expressasse com exatidão o que
vem a ser o Mordor nessa terra. O Mordor é caos, guerra, destruição! É um elo entre
guerreiros que lutam pelo que pensam, e o fazem até a morte. É a manifestação de
nossas concepções sobre um universo de assuntos identificados (com) nosso “modus
vivendi”. É a nossa arma, o nosso escudo que sustentamos com força, garra e honra. É
onde depositamos todo nosso ódio e o transformamos em arte extrema, direcionando-a
aos hereges guerreiros que nos acompanham. É o reflexo de nosso orgulho em manter
viva a chama do underground nacional! Filosofia de vida extrema! Enfim, o Mordor
somos nós e nós somos o Mordor!!!
coletivo. Antes de uma luta pelo underground, a banda denota uma guerra do
underground. A banda Mordor é um elo de guerreiros que não está lutando pelo metal
extremo e sim pelo que pensam, ela é uma manifestação de assuntos que se identificam
com o “modus vivendi” dos seus integrantes. Uma guerra que não é só pela música, mas
que usa a música para guerrear. Uma guerra baseada no underground, mas que se
direciona para fora dele.
A banda paulistana Triumph, em entrevista à revista/zine A Obscura Arte,
décima edição, é bastante incisiva neste mesmo ponto. Questionados sobre como vêem
o estado atual do underground, partem para a constante crítica contumaz que toda banda
de black metal faz a ele: “o que vemos hoje em dia é o lado artístico muito em alta, tem
banda hoje querendo lançar seu cd e fazer shows e esquece todo o sentimento maior que
há no black metal”. Na frase seguinte, a banda esclarece qual é esse sentimento maior
do que o lado artístico que estaria por trás do estilo que tocam: “black metal é arte, mas
acima de tudo, é atitude e culto”.
Uma atitude, um culto ou, como muitos preferem, uma “ideologia”. O black
metal para seu apreciador seria mais do que um estilo de música, seria um estilo de vida,
um agregado de condutas e valores específicos, certamente baseados no metal extremo
underground, mas referidos para além dele. O black metal seria a radicalização da luta
empreendida neste e por este espaço, no sentido de que ele representa não só um tipo de
metal extremo mas, sobretudo, um estilo de vida extremo ou, como os membros da
Mordor preferem, “filosofia de vida extrema”.
Radicalização essa que, por um lado, se assemelha àquela percebida no death
metal, pois em ambos trata-se de ser “mais brutal e mais agressivo”. Enquanto o death
metal é a música “mais brutal e mais agressiva”, o black metal é a “ideologia mais
brutal e mais agressiva”. Porém, por outro, distinta. Enquanto a radicalização do death
metal é assimilada pelo underground como um todo, a do black metal tende a se manter
entre seus apreciadores. Se o death metal é o metal extremo mais “puro” do
underground, o black metal é julgado pelo seu apreciador como a vanguarda do metal
extremo. Consequentemente, ele, o apreciador, se julga como a elite do underground.
Ele se vê como o mais real dos reais, o defensor do underground. Ele se sente capaz de
apontar “típicos defeitos do ser humano” no estado atual da “lamentável” cena local,
pois o estado atual do seu estilo preferido é venturoso. O black metal transparece para
seu apreciador como uma vitória, como uma conquista, como a campanha mais exitosa
do underground. Ele e o black metal atingiram a perfeição. Desse modo, não há
144
surpresas na contumaz crítica que ele faz ao underground. Este sempre lhe parecerá
estar aquém do black metal. O underground sempre lhe parecerá falso.
Mas é preciso sublinhar: o discurso crítico, bem como suas ameaças de
rompimento, são formas de distinção do black metal dentro do underground. Mesmo
que o black metal não goze da mesma popularidade do death metal entre os praticantes,
ele não se sapara do underground. Suas bandas sobem aos mesmos palcos e nas mesmas
noites que sobem as bandas dos outros estilos. Dividem as páginas dos mesmos zines e
têm suas gravações lançadas e distribuídas pelos mesmos selos e distros.
Com esse discurso, o black metal quer forçar sua especificidade para todo o
underground. Ele quer fazer com que todos aceitem a sua “radicalização ideológica”
como o paradigma desta prática urbana. Tal como um profeta (personagem esse que as
bandas de black metal muitas vezes abordam em suas letras), o black metal diz ao
underground: “venhais comigo, sigais-me, pois sei qual é vosso destino”. Mas então,
qual é esse destino que o black metal diz estar reservado ao underground? Ou seja,
como é essa “ideologia”, essa “filosofia de vida extrema” que o apreciador de black
metal diz seguir e forçosamente propõe aos seus pares?
***
Black metal é satânico e puramente satânico. Tudo o que não for satânico não é black
metal, é outra forma de metal. Eu não consigo entender o porquê estas pessoas não
abrem os olhos, o black metal é assim auto-intitulado pelas letras e atitude e não por seu
som especificamente. O principal é isto. Black metal é satânico e puramente satânico
será.
Imolem os cordeiros celestiais, destruam suas casas, blasfemem muito, façam sua parte,
somos os lobos que comem a carne podre das ovelhas brancas, transpiramos o fedor do
satanismo em nosso sangue, levantaremos nossas espadas para destruir e dar de
oferenda ao pai Satã.
militares que se expressarão por meio da iconografia, das roupas, acessórios, gravações
e, principalmente, pelas letras e apresentações das bandas de black metal. O black metal
encampa sua guerra, cultua sua religião e doutrina suas máximas na articulação do seu
estilo, obviamente, em constante relação com seus congêneres do underground.
Lamentation, despair
And screams of pain
These are the smooth melodies
That your ears will be able to hear
Under the command of the Beast
146
A banda também não possui myspace, mas o leitor encontrará algumas de suas canções disponíveis
para audição neste sítio eletrônico: www.lastfm.com.br/music/Murder+Rape. Acessado pela última vez
em 13/03/2008.
148
SATAN
Lord of lords
The annihilator of ignorance
The indestructible warrior
May our battle
Be felt at the ends of the universe147.
O satanás que encontramos na letra não é aquele demônio grotesco que Bakhtin
(1993) percebe na obra de Rabelais e na cultura popular da Europa medieval: figura
bonachona que caçoa e é caçoada, instigadora do riso e dos prazeres carnais. O satanás
descrito pelo Murder rape é raivoso, odioso e senhor da destruição. Seus inimigos estão
muito bem precisados, o paraíso celestial, os corações puros, o nazareno e a virgem.
Todos eles sentirão a raiva do senhor dos senhores, Satã. Entrarão em desespero,
sentirão dor e lamentarão.
A letra nada mais é do que uma descrição do velho embate do mal contra o bem,
travado pelo diabo contra o divino. O interessante é que, pela posição do narrador na
letra, o diabo entra neste embate mais como um pai e inspirador do que exatamente um
combatente. Ele plantou a semente do sofrimento nesta terra. Talvez um general, pois
ele comandará a guerra a partir da qual ecoarão as doces melodias da lamentação, do
desespero e dos gritos de dor. De qualquer forma, no front estarão seus filhos, aqueles
que receberam sua benção. O narrador compõe o exército de satanás, ele é o fruto da
semente do sofrimento nesta terra, ele é o tormento do nazareno e a maldição da virgem.
Ele destruirá o paraíso celeste e dará essa oferenda ao pai Satã.
O narrador não só é a banda como também, podemos dizer, todo praticante de
black metal. Esse compartilhamento da narração se constrói, particularmente, nas duas
primeiras frases da terceira estrofe, onde a letra faz clara alusão à prática do estilo148.
Legiões marcham com suas faces pálidas sob a luz da lua. Ora, grupos se deslocam à
noite para participar, tocando e assistindo, dos shows das bandas de black metal, as
quais, invariavelmente, se apresentarão, todos os membros, com seus rostos pintados
147
…E o diabo retorna/cheio de raiva e ódio/lágrimas de sangue/rasgam e pingam do céu/finalmente, o
fim do paraíso celestial. Lamentação, desespero/e gritos de dor/Essas são as doces melodias/que suas
orelhas poderão escutar/sob o comando da Besta. Legiões marcham, faces pálidas/contrastam com a luz
opaca do luar/sofrimento foi plantado/no útero da terra. Hoje ele está presente/contaminando todos/ de
“coração puro”. Nós somos os filhos do sofrimento/amaldiçoados por Deus/mas abençoados pela Besta.
Nós somos o exército de Satã/nós somos o tormento do nazareno/a maldição da dita virgem/nós somos a
fúria da besta/SATÃ/senhor dos senhores/o aniquilador da ignorância/ o guerreiro indestrutível/que sua
batalha/seja sentida nos confins do universo.
148
Vale notar também que, em todos os shows que pudemos acompanhar do Murder rape durante a
pesquisa, foram mais de vinte, a banda sempre começava sua apresentação com esta canção.
149
com tinta branca e negra, o corpsepaint como é conhecida entre os praticantes tal
pintura:
Fotos do encarte do cd Evil Shall Burn Inside Me Forever, do Murder Rape. Acima, o
vociferador (vocalista) Nargothrond. Abaixo, o baixista e líder da banda Agathodemon.
150
149
Mais à frente, iremos tratar da profunda influência, não só no quesito corpsepaint, que as bandas
norueguesas de black metal do início dos anos noventa exercem nas bandas brasileiras (e muito
provavelmente no black metal praticado em qualquer país). Por ora, vale notar que o black metal
norueguês é tomado como o mais autêntico de todos, pois teria sido neste país que o estilo tomou a forma
que as bandas brasileiras procuram imitar atualmente.
150
Interessante notar que o Sarcófago surge bem antes das bandas norueguesas. Enquanto o boom nórdico
acontece por volta dos anos 1990 e 1991, a banda mineira já reclamava uma “ideologia” satânica em
1985. Aliás, em entrevista ao interessante livro que conta a história do underground black metal
norueguês, um zineiro deste país, em atividade naqueles anos, conta que foram os discos do Sarcófago os
maiores inspiradores daquilo que viria a ser o tão “respeitado e autêntico” black metal norueguês
(MOYNIHAN & SODERLIND, 1998, p. 36). Ou seja, podemos dizer que o black metal,
cronologicamente falando, é fruto da cultura popular brasileira.
151
armadura151. O cabelo, se não é longo, é inexistente. Botas pretas estilo militar, calças
pretas coladas ao corpo, camisetas pretas de bandas de black metal e jaquetas pretas de
couro são peças básicas, tanto para o homem quanto para a mulher. A variação pode ser,
para ele, a estampa camuflada, principalmente nas calças, e para ela, geralmente em
shows maiores, festivais underground, vestidos e espartilhos pretos são apropriados.
Essas peças são básicas, mesmo na condição de expectador. No entanto, na hora da
apresentação, a vestimenta do músico se adornará de maneira excessiva. Cintos com
tachas grandes de ferro ou cinturões de bala, adornos de couro nos braços e nas pernas
também com tachas de ferro ou, algo que só as bandas de black metal usam, com
grandes pregos, como estes que o vocalista Malleficarum, da banda brasiliense Vultos
vociferos, aparece usando no encarte do único cd da banda, Ao Eterno Abismo, lançado
em 2005:
151
Os praticantes que encontramos fora do contexto das apresentações também estavam usando as
mesmas peças que descreveremos neste parágrafo. Aqueles que não estavam, explicaram a ausência por
questões de “trabalho”.
152
claro sua filiação black metal apresentando a cruz católica invertida de modo evidente e
excessivo, como faz o tecladista Hysrucs Midgard, da banda carioca Unearthly, na sua
foto no encarte do cd Infernum – Prelude to a New Reign, lançado em 2002:
O uso desses elementos, dos braceletes com grandes pregos, da cruz invertida e
do corpsepaint, certamente operam na construção da particularidade do black metal no
underground. Eles marcam tanto o estilo quanto seu apreciador. Suas ostentações
pontuam a identidade do estilo, assim como filiam a pessoa a esta mesma identidade.
Máscaras que mascaram o indivíduo em uma identidade coletiva num ambiente que, por
mais englobante que seus limites possam ser, guarda em seu território uma diversidade
riquíssima.
Porém, para além do nível sociológico, a função contrastiva destes elementos
também envolve a marcação da “ideologia” satânica do black metal. O uso deles
comunica aquilo que os apreciadores do black metal enfatizam em suas entrevistas, qual
seja, a sobreposição da “ideologia” sobre a música. Ou melhor, uma vez que a
“ideologia” satânica é unicamente apresentada no estilo do black metal, o uso destes
elementos faz parte da montagem desta “ideologia”. Eles materializam nos corpos,
objetos e eventos do underground o culto ao satanismo que o metal negro quer celebrar.
Podemos tirar as aspas da ideologia, pois ela está aí, no estilo. Ela é o estilo do black
metal.
Se insistirmos um pouco mais no corpsepaint, podemos visualizar como o
satanismo se encarna, literalmente, no estilo do black metal. Talvez menos explícito do
que a cruz invertida, o corpsepaint, contudo, é uma máscara que, se por um lado
encobre a identidade do músico, por outro desvenda de modo surpreendente a
identidade deste estilo de metal extremo.
153
No black metal, o diabo é a figura central, mas não o tema central. O diabo é
como se fosse um carro abre-alas, dando o tom de uma narrativa que se multiplicará em
cada banda. Ele está lá, em seu trono, comandando e abençoando todos os seus
discípulos. Mas seu império é vasto, aglutinando mundos diversos, povoados por seres
aborrecíveis, hediondos e grotescos. O núcleo narrativo do black metal está em todo
este império do mal. Como fiéis trovadores, a maioria das suas composições glorificará
o rei, mas não deixarão de cantar e versar sobre os domínios homologados como parte
deste reino. O diabo abre um enredo baseado, de fato, na narração das variações deste
reino, um enredo que poderíamos intitular: Sob o Signo da Marca Negra – a guerra
contra o bem travada pelos horripilantes e raivosos paladinos do mal.
Logo após o carro abre-alas, seguindo as alas do niilismo e do ocultismo, entra o
carro da misantropia, e a banda brasiliense Vulturine certamente seria um de seus
152
Podemos até falar em uma des-possessão, na medida em que muitos músicos se referem ao show como
um momento de liberação, como um momento no qual eles podem ser aquilo que realmente são, livres
das pressões cotidianas do trabalho, da família e de qualquer outra atividade pelas quais são responsáveis.
155
Fazemos música para trazer discórdia, dor, tristeza, conflito, atos de violência, abuso de
drogas, terror, depravação, degradação da natureza, colapso universal e tudo aquilo que
concerne a aniquilação total da humanidade deste planeta fedorento...anti-cristo...anti-
humano.
Até poucos anos atrás, ainda falávamos dessa lorota patética de satanismo. Ainda
usávamos aquelas pinturas caricatas com preto e branco no rosto. Lentamente o
cérebro consegue perceber que nada é útil, tudo tem um fim e não há solução para
nada, então (...) a idéia do álbum é de que o melhor para a raça humana é que ela
desapareça e deixe pelo menos o mundo inorgânico em paz. Não vejo melhora para
esta desgraça evolutiva e simiesca, apenas a degradação de si mesmo. O processo de
“inhumanização” já está bem na nossa cara, a natureza já está começando a agir
contra os predadores humanóides, espero que mais e mais catástrofes venham e a
natureza faça o seu papel: reciclar a vida em cinzas.
A misantropia surge no black metal como mais uma das inúmeras ramificações
estilísticas, para eles ideológicas, pelas quais seu tema central, a guerra contra o bem, se
expressará. O Goatpenis, por exemplo, descartou as palavras satã e satanismo do seu
vocabulário apenas para colocar no mesmo lugar as palavras destruição e
aniquilamento, assim como trocou a palavra nazareno pela palavra vida e o corpsepaint
e os pregos pelo capuz militar e as “bombas”. O movimento do enredo continua o
157
mesmo, guerra contra o bem a partir de uma aceitação e proposição do mal. Eles estão
contra nós, de um jeito ou de outro.
Mas é preciso ter conhecimento para ser um verdadeiro black metal, é preciso
estudar a fundo as doutrinas e filosofias da ideologia por trás do black metal para ser
uma “horda respeitável”. Este é o argumento de uma outra prática do apreciador de
black metal, aquela que os praticantes chamam de luciferianismo. A doutrina de Lúcifer
se baseia em uma interpretação da passagem bíblica do anjo decaído, como nos
explicou, na mesma conversa de 2005, Joel, o músico gaúcho que não quis ter seu
codinome e banda identificados no segundo capítulo, um assumido luciferianista:
Lúcifer é considerado um decaído pois quis saber mais do que o cristianismo permitia.
Ele quis levantar o véu da doutrina cristã e, claro, os teólogos o condenaram ao inferno,
pois conhecimento para a igreja católica é uma heresia. Os oficiantes da igreja católica
são muito espertos em condenar o saber, pois eles sabem, no fundo, que sua igreja está
baseada em mentiras e falsidades. Qualquer um que ousar saber mais daquilo que ela
permite, perceberá sua hipocrisia.
O luciferianismo enfatiza uma opinião que todo praticante de black metal tem.
Para ele, a religião judaico-cristã é uma mentira, uma falsidade, uma doutrina de seres
fracos que, com medo do auto-conhecimento, se apóiam em uma religião onde todas
suas ações mundanas estariam subordinadas às vontades divinas. Geralmente, é difícil
encontrarmos opiniões mais precisas entre os praticantes acerca desta mentira que seria
a religião judaico-cristã. O discurso deles avança pouco ou quase nada para além desta
acusação de falsidade, de uma religião baseada na imagem e não “na verdade do
homem”, como diz Brucolaques, vocalista da mineira Saevus, em entrevista ao Dark
Gates zine: “(...) o cristianismo é, em essência, a negação da verdade do homem, ou
seja, a subtração dos reais valores primitivos do ser humano”. Às vezes, a acusação ao
cristianismo é ampliada para toda e qualquer religião, ou seja, qualquer forma de
religião seria, em última instância, uma “negação dos reais valores primitivos do ser
humano”.
Na esteira dessa crítica, a busca pelo saber, porém, implica na busca por
conhecimento muito específico. Não se trata de um saber acadêmico sobre a religião e
sim de se aprofundar mais ainda naquilo que tanto lhes interessa, a luz das trevas,
saberes e filosofias interpretadas por eles como maléficas. O saber que o luciferianismo
busca é um saber essencialmente demonológico.
Com efeito, discutirão acerca da igreja de satã, fundada em 1966 nos Estados
Unidos por Anton Szandor Lavey. Brucolaques, na mesma entrevista, diz que Lavey
158
última fala, o satanismo do black metal se traduz na máxima “o indivíduo como sua
própria divindade”, cabe então conhecer profundamente essa divindade através do
estudo de obras e práticas que reflitam seus “corações negros”.
Mas uma variação do luciferianismo, o paganismo, se transformará em uma forte
ramificação estilística do black metal do underground nacional, o pagan black metal.
Compreenderemos melhor do que se trata esta variação se voltarmos às bandas
nórdicas, principais inspiradoras do metal negro em geral, mas sobretudo o pagão, no
Brasil. Para tanto, usaremos o livro Lords of Chaos, escrito por dois jornalistas,
inteiramente voltado a um detalhamento histórico dos acontecimentos relacionados com
as bandas escandinavas, notadamente com as norueguesas.
Por volta do final dos anos oitenta, contam Moynihan e Soderlind (1998), um
punhado de bandas norueguesas começa a chamar a atenção do público internacional de
heavy metal devido ao tipo de música que faziam, até então pouco familiar aos ouvidos
do fã deste gênero, mas, sobretudo, em razão do visual dos membros, “extremo” para a
época, e pelas suas entrevistas, onde declaravam abertamente sua filiação ao satanismo.
Para essas bandas, a música era um meio de propagar e glorificar o mal representado
pelo diabo. O conjunto destes elementos, da música, do visual e das entrevistas, veio a
ser identificado pela comunidade internacional do heavy metal como black metal. No
entanto, até ai, nos contam os autores do livro, ninguém da imprensa especializada em
heavy metal tinha dado muita importância ao “extremismo” deste black metal (idem, pp.
33-44).
Já nos primeiros anos da década de noventa, essas bandas começaram a fazer
mais do que compor músicas em glorificação ao mal. Seus membros, que se auto-
intitulavam “círculo fechado”, começaram a se suicidar, a matar estranhos, a matar uns
aos outros e, principalmente, a queimar igrejas cristãs. Dois desses acontecimentos,
sempre segundo os autores, fizeram do black metal norueguês um tema “quente” para as
revistas especializadas em heavy metal do mundo todo, tanto pela natureza do
acontecimento em si, quanto pelo fato de que seu feitor, supostamente o mesmo em
ambos, foi preso, levado ao júri e condenado por um de seus atos.
Um dos patrimônios históricos da Noruega são suas igrejas católicas stave,
edifícios totalmente de madeira construídos durante a idade média, momento de
assimilação do catolicismo na península escandinava. O valor histórico dessas igrejas
estaria em sua arquitetura, uma mistura de motivos locais (a lá barco viking) com
motivos romanos. Até junho de 1992 havia trinta e duas igrejas desse tipo no país. Após
160
o dia seis desse mesmo mês, sobravam trinta e uma. Segundo os autores (op. cit, pp. 81-
108), todas as evidências levam a crer que Varg Vikernes153, único membro do Burzum,
banda atualmente muito cultuada entre os praticantes brasileiros, seria o responsável
pelo incêndio que transformou uma delas, que leva o nome de Fantoft, em um punhado
de cinzas.
Na primeira foto, a igreja stave Fantoft antes do incêndio. Na segunda, o que restou dela.
Pouco mais de um ano após este incêndio, por razões que os autores definem
como “problemas pessoais entre os dois” (op. cit, pp. 109-144), o mesmo Varg
assassina o principal responsável pelo crescimento e notoriedade do black metal
norueguês até então. Euronymous (codinome de Oystein Aarseth), abriu a primeira loja
especializada em heavy metal de Oslo, fundou o primeiro selo de metal extremo da
Noruega e tocava baixo em uma das principais bandas do boom norueguês, o Mayhem.
Na noite do dia dez de agosto de 1993, Varg vai até o apartamento de Euronymous e,
após uma discussão que ambos tiveram, o esfaqueia até a morte. Após algumas
semanas, Varg é preso, confessa o assassinato e é sentenciado a passar vinte e um anos
na prisão, o mesmo número de anos que ele já tinha vivido até então. O assassinato de
Euronymous marca, de certa maneira, o fim do boom do black metal norueguês e o
início do estouro deste estilo de metal extremo pelos undergrounds do mundo afora.
153
Codinome de Christian Vikernes. Varg, ou Vargr, em norueguês significa tanto lobo (o animal mais
evocado no black metal) quanto fora-da-lei.
161
154
Neste sentido, o livro Lords of Chaos poderia ser um interessante contraponto para os próprios
praticantes. Moyniham e Soderlind, por meio de extensa coleta de dados, mostram que, antes de ser uma
orquestração do mal, os “acontecimentos noruegueses” podem ser entendidos como uma orquestração da
mídia européia, em conjunto com os selos das bandas envolvidas, no intuito de transformar uma série de
suicídios, assassinatos e incêndios esparsos em um recurso de marketing para a venda do true norwegian
black metal mundo afora. No entanto, talvez por não ter sido vertido ao português ainda, ou mesmo por
desconhecimento da sua existência, o livro não é lido pelos praticantes. Não é esse tipo de conhecimento
que procuram.
155
O Burzum, banda de Varg Vikernes, é exemplar desse tipo de temática. Aliás, mesmo preso, Varg
continuou gravando e lançando discos da sua banda e, além disso, escreveu e publicou alguns livros
teológicos acerca da “autêntica” religião escandinava. Porém, em 2003, faltando dois meses para ganhar
sua condicional, Varg tenta fugir da cadeia, é pego, perde suas regalias e sua futura condicional.
156
www.myspace.com/miasthenia. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
163
práticas indígenas também lembrará a prática do próprio black metal. Afinal, qual é o
“deus inimigo” imolado na letra?
É significativo o fato de que o pagan black metal seja definido também como
folk metal. Essa ramificação estilística do black metal no Brasil procura reconstruir
ficcionalmente um mundo sul americano que teria sido perdido com o advento do
cristianismo, como na letra da Miasthenía, ou salientar as “autênticas” características
culturais de alguma região do país. É este tipo de metal folclórico que a banda
catarinense Austhral157 procura compor, dando atenção especial à incorporação de
ritmos musicais “sulistas” no seu black metal, como a própria banda explica no texto de
apresentação do seu myspace:
O Austhral é uma banda de Florianópolis que se intitula uma das únicas representantes
de um folk metal nacional autêntico. Com influências de ritmos sulistas tradicionais
como a música gaúcha, tango e música barroca, o Austhral conta histórias da sua terra
por meio do metal conceitual. Em sua formação sempre teve gaúchos, catarinenses e
paranaenses que têm ligações estreitas com a cultura da região. A sonoridade de suas
composições já foram comparadas com bandas como Finntroll, Thyrfing, Old Man’s
Child (bandas nórdicas), entre outras. Mas os músicos garantem que estas não são
influências diretas do seu trabalho.
157
www.myspace.com/austhral. Acessado pela última vez em 13/03/2008.
165
enfim, pela sua “perda”. Contudo, diferentemente dos estudos folclóricos, o black metal
nomeia este agente externo de maneira levemente modificada. A “perda” não foi
causada pelo mundo moderno e sim pelo “deus inimigo” dos portugueses e espanhóis.
O forçoso culto ao deus romano “soterrou” os “reais valores” da nossa terra, diz o
veredicto black metal.
Porém, mundo moderno e cristianismo não correspondem, no pensamento black
metal, a substâncias distintas. Pelo contrário. Por mais que o segundo termo seja o mais
utilizado, o cristianismo está classificado como o corolário de um mundo
contemporâneo baseado na “aparência” e na “imagem”, inteiramente desgostoso para o
black metal. Na esteira da religião que cultua “imagens”, seguem o lucro, a fama e as
modas passageiras. Para o black metal, este mundo é povoado por pessoas “fracas e
preguiçosas”, que não possuem princípios e não observam compromissos com seus
valores, que preferem transferir as necessárias decisões e ações de suas vidas para, no
plano moral, os desígnios divinos e, no plano prático, digamos assim, para a tecnologia.
Mundo moderno e cristianismo são termos que denotam um mesmo inimigo no
beligerante sistema classificatório black metal. O inimigo da “aparência” e da
“fraqueza”. Inusitada inversão essa que faz o black metal. A sensação de liberdade
sentida pelos praticantes quando acionam os eventos do underground em suas vidas é,
na verdade, a resolução de uma ânsia por regramento de suas condutas e uma vontade
de comprometimento com seus valores158.
A confluência do cristianismo com o mundo moderno, engendrada a partir desse
dualismo externo e interno, aparência e valores, aduba o brotamento da mais
controversa ramificação estilística do black metal, aquela denominada como national
socialism black metal, ou NSBM. Novamente, as bandas nórdicas serão as fundadoras
dessa aparentemente contraditória bricolagem estética, também presente no Brasil.
Conjuntamente com a acusação de que o cristianismo teria “soterrado” os
valores, crenças e costumes religiosos da Escandinávia pagã, as bandas de black metal
acusavam os Estados nórdicos de serem cúmplices dessa “perda”. Endossando o
cristianismo como a religião oficial, os Estados Nórdicos estariam fechando os olhos
158
Interessante notar que esse comprometimento se concretizará não só no plano moral, como fidelidade à
ideologia black metal, e no musical, como fidelidade ao underground, mas também no plano dos
relacionamentos afetivos dos praticantes. A prática do “ficar” tão comum entre os jovens brasileiros, essa
constante troca de parceiros sexuais, é quase inexistente no underground do metal extremo. Quase todos
namoram a longo tempo e sempre estão acompanhados de suas “musas” e “príncipes guerreiros” nos
shows. Vale notar ainda que o homossexualismo masculino é fortemente execrado e o feminino, às vezes
com contornos vampirescos, relativamente aceito, nos apresentando assim, certa dominação masculina no
que tange a construção dos gêneros nesta prática urbana.
166
para a “morte” da “autêntica” cultura escandinava. Mas essa leniência tinha suas razões,
diziam as bandas, pois os Estados-nação nórdicos estavam interessados em manter
dividida uma cultura “originalmente” unitária. O norte europeu como um todo, desde a
Alemanha até a Islândia, era, para as bandas, um só território dedicado a abrigar uma só
cultura, a Germânia, sempre qualificada pelos músicos como “naturalmente” hostil ao
estrangeiro. Desse ponto de vista, o incêndio da igreja Fantoft na Noruega, se
concordarmos com Moynihan e Soderlind que o culpado teria sido um músico de black
metal, foi um ataque tanto ao cristianismo quanto ao próprio Estado norueguês.
Incendiaram um só edifício e queimaram dois inimigos, a casa de deus e um símbolo
histórico altamente valorizado pelo Estado.
Mas o endossamento do cristianismo e a divisão territorial da Germânia eram as
pontas do “problema” com o Estado moderno. Sua natureza democrática também foi
arrolada como ponto de acusação pelas bandas de black metal. O Estado moderno é
massificado, elas diziam, seu poder decisório é “fraco”, pois ele está espraiado,
descentralizado. Além disso, privilegiando as questões econômicas, os Estados estariam
dando mais importância ao lucro financeiro, quando o “verdadeiro tesouro” dos seus
povos estava nas artes e nas religiões pagãs. A preeminência da economia sobre as
“práticas do espírito” fazia com que os Estados nórdicos abrissem as portas dos seus
países para estrangeiros indesejados pela ótica do praticante, principalmente “aquele
com mais dinheiro”, o judeu, fomentando assim uma indiferenciação, no limite uma
mistura, entre o forasteiro, “de cor” e o nativo, ariano159.
Ora, a ideologia do nacional socialismo alemão, adicionada com a maneira que
foi posta em prática por Hitler, se encaixava perfeitamente com este tipo de crítica ao
Estado moderno. No entanto, dois ajustes foram necessários para que o NS adjetivasse o
BM. Primeiro, as bandas nórdicas deixavam bem claro que, mesmo se apropriando de
uma ideologia política, elas não eram bandas políticas. Podemos dizer que elas não
poderiam se considerar bandas políticas, afinal, elas fazem arte, um cultivo do espírito e
dos valores, e política pertence à esfera do externo e da imagem. Sendo assim, se
tratava, elas diziam, de uma estética nacional socialista, muito apropriada para uma
prática urbana beligerante e satânica. Foi justamente este satanismo, por sua vez, que
demandou o segundo ajuste para a realização da confluência. Os praticantes
simplesmente se esqueceram do discurso cristão “do bem” do terceiro Reich em prol de
159
Estes dois últimos parágrafos resumem dois capítulos do livro de Moynihan e Soderlind (1998, pp.
145-214).
167
Uma segunda preocupação das bandas eram os possíveis problemas legais que
poderiam ter com uma apologia explícita do nacional socialismo. Por mais underground
que elas fossem, seus cds e cartazes de show circulavam pelas cidades e, em algum
momento, a ostentação de imagens do nacional socialismo nesses objetos poderia lhes
causar problemas com a justiça, especialmente na Alemanha, onde, de fato, aconteceu
com o Absurd160. Com efeito, o NS tinha mais um forte motivo para ser mascarado no
BM em formato pagão. Mascaramento esse que culminou na cunhagem de um outro
estilo muito próximo ao NSBM, war black metal, designação um tanto redundante em
nossa opinião. O que diferenciará estes dois estilos é a porcentagem, digamos assim, de
motivos nacional socialistas explícitos na imagem da banda.
É verdade que, no Brasil, algumas bandas se definem como NSBM, como a
carioca Nachtkult161 e a paulista Thornsland162. Trazem nas capas de suas gravações
fotos de soldados alemães lutando durante a segunda guerra e ornamentam seus
logotipos com suásticas. Elas não querem deixar dúvidas quanto sua ramificação dentro
do black metal:
160
Até 2005, os integrantes dessa banda eram procurados pela justiça alemã, acusados de apologia ao
nacional socialismo, como seu baterista explicou em entrevista à revista/zine A Obscura Arte, décima
edição. Em toda sua carreira, ainda em curso, realizaram apenas um show em solo alemão, intitulado
Kristallnacht, e suas gravações são lançadas por um selo polonês, onde não há leis anti-nacional
socialismo, sugestivamente nomeado como no colours records, www.no-colours-records.de. Acessado
pela última vez em 13/03/2008.
161
A banda não possui myspace, mas possui um sítio próprio: www.nachtkult.de.tc. Acessado pela última
vez em 13/03/2008.
162
Também sem myspace, mas com sítio próprio: www.thornsland.tk. Acessado pela última vez em
13/08/2008.
169
para o Brasil, mantém em sua agenda o ponto que, supostamente, seria o mais difícil de
conservar diante da realidade social brasileira, a superioridade biológica do ariano. A
manutenção desta “reivindicação” no Brasil, contudo, demandou a adição de um outro
tema: supuseram que a região sul, incluindo São Paulo, é predominantemente habitada
por arianos e, assim, luta-se pela separação destes quatro estados do resto do Brasil.
Em um primeiro momento, após constantes tentativas fracassadas de contatar as
bandas NSBM brasileiras, mesmo se utilizando da minha inserção como praticante do
underground, supomos que elas, as bandas, não quisessem ingressar na circulação de
gravações e eventos desta prática urbana, por motivos desconhecidos. No entanto, à
medida que começamos a seguir as repercussões do NSBM entre os apreciadores de
black metal em geral, percebemos que os representantes deste estilo não são bem vindos
no underground em razão de uma forte aversão ao seu item racial. O entrave está na
“raça pura”, como diz a banda carioca Escrófula, em entrevista ao Fereal zine:
War metal é um estilo muito bom, agora se é NS e nazista, ai acho uma tremenda
idiotice e uma total falta de cultura. Para eles obterem a raça pura no Brasil, o primeiro
passo teria que ser o suicídio deles mesmos, pois sendo brasileiros, já são impuros por
natureza. Será que esses caras não conseguem ver que no Brasil não existe nem nunca
vai existir raça pura?
Nós não somos nem um pouco patriotas, não tem como gostar de um país alienado por
carnaval e futebol, onde os políticos deitam e rolam em cima da massa e os clérigos
manipulam suas mentes. Mas o separatismo é incompatível com o black metal, essa é
nossa opinião. Não somos uma banda política e sim satanista.
163
Por exemplo: gostaram de saber que alguns soldados norte-americanos escutavam black metal
enquanto trocavam tiros nas ruas de Bagdá durante a derradeira invasão norte-americana do Iraque.
171
Anything approaching the change that came over his features I have never seen before, and hope
never to see again. Oh, I wasn’t touched. I was fascinated. It was as though a veil had been rent. I saw on
that ivory face the expression of somber pride, of ruthless power, of craven terror - of an intense and
hopeless despair. Did he live his life again in every detail of desire, temptation, and surrender during that
supreme moment of complete knowledge? He cried in a whisper at some image, at some vision, he cried
out twice, a cry that was no more than a breath - ‘The horror! The horror!”
I blew the candle out and left the cabin. The pilgrims were dining in the mess-room, and I took
my place opposite the manager, who lifted his eyes to give me a questioning glance, which I successfully
ignored. He leaned back, serene, with that peculiar smile of his sealing the unexpressed depths of his
meanness. A continuous shower of small flies streamed upon the lamp, upon the cloth, upon our hands
and faces. Suddenly the manager’s boy put his insolent black head in the doorway, and said in a tone of
scathing contempt – “Mistah Kurtz - he dead”.
Joseph Conrad
um senhor da destruição absoluta, um austero pai que abençoa seus filhos antes de
mandá-los para a “batalha final” contra o nazareno. A própria morte, que em muitas
cosmologias religiosas detém posição fundamental na redenção do fiel e na purificação
da alma, é estilizada como o aniquilamento irreparável, aprisionando o ser humano e
resgatando apenas a “natureza inorgânica” das garras dessa “lastimável evolução
simiesca”. A morte é impura no black metal. As crenças e costumes religiosos
ameríndios são “escavados” para servirem de atentados contra o cristianismo “do bem”
e as suásticas, antes de corroborarem uma filiação política ao nacional socialismo,
encarregam-se de reforçar uma imagem de violência desmesurada que o nazismo
conteria, senão em certo imaginário comum, certamente no imaginário dos praticantes.
No estilo do black metal, não se trata de elementos de rompimento mas, para eles, do
rompimento mesmo. Não se trata de perspectivas sobre a violência mas, para eles, da
violência em si. Não se trata de partes maléficas e sim do todo maléfico.
O black metal não só atinge o ápice do horror do metal extremo como também,
dentre seus congêneres, é aquele que mais explicita a luta do underground em seus
motivos. Primeiro ele a radicaliza, levando-a de uma luta pela manutenção desta prática
urbana enquanto um espaço de produção musical, para o nível de uma guerra contra o
bem e, porque não, para eles, contra o mundo. O black metal estiliza essa guerra em
cada elemento narrativo de seu estilo. Nas suas roupas, nas suas fotos, nas suas capas,
nas suas canções, nos nomes e nas faces dos seus músicos, o black metal está se
arregimentando para uma batalha. Beligerância ofensiva. O black metal, como ficou
claro no desenho que a banda Vulturine nos mandou, está contra eu e você, contra todos
nós. Além disso, e o mais importante, a radicalização da luta que o black metal promove
se completa quando ela é afirmada pelos seus praticantes como uma ideologia, um
culto, uma “filosofia de vida extrema”. À guerra contra o bem a partir da aceitação e
proposição do mal, o praticante confere o estatuto de uma moral e uma ética, um
princípio no qual ele diz acreditar e diz regrar sua conduta a partir deste. Pode-se
afirmar, é verdade, que todos os estilos de metal extremo underground são percebidos
como uma paixão, ou mesmo como um valor, que não se limite à música. O metal
extremo é algo que o praticante diz “não conseguir viver sem”, “está no sangue”, é uma
“atitude de vida” sem substitutos e equivalentes. Não se limita à música, porém, esta
“atitude” não se descola da, nem se sobrepõe à, música. Ambas vão juntas. Já na
retórica do apreciador de black metal, a música é posicionada como um meio para a
expressão daquilo que realmente lhe importa, a “filosofia de vida”. Apenas ele
174
reclamará seu estilo preferido como algo mais do que um estilo musical, como uma
espécie de regente de suas idéias e diretor de seus atos.
Propomos, então, embarcar na retórica do black metal de maneira heurística. Sob
a roupagem do mal, a ideologia black metal exemplifica a própria ideologia
underground. Se alcançamos o cérebro com o “virtuoso e puro” death metal, chegamos
ao coração do underground do metal extremo nacional com o “negro, impuro e envolto
em trevas” black metal. Sendo assim, um outro coração pode nos guiar pelos caminhos
da sua retórica. Um coração mais antigo, contudo, mergulhado nas mesmas trevas.
O crítico literário Lionel Trilling (1972) considera que o Coração das Trevas de
Joseph Conrad, publicado pela primeira vez na Europa em 1899, ‘(...) sumariza toda a
radical crítica da civilização européia feita pela literatura desde o momento da sua
publicação164’ (idem, p. 99). Narrada a partir da voz de Marlow, a novela conta a
história do encontro deste marinheiro inglês, que foi trabalhar para uma companhia de
comércio belga no Congo, com um peculiar funcionário desta mesma companhia, Kurtz,
enviado ao país africano para ser um dos agentes de primeira classe da extração e coleta
de marfim, principal atividade comercial da empresa. Logo no começo do livro, quando
Marlow, descansando com seus colegas no convés do navio onde trabalha, ancorado no
estuário do rio Tâmisa, começa a narrar sua aventura no Congo, ficamos sabendo que o
encontro exerceu grande impacto no marinheiro. Marlow nutre grande admiração, até
mesmo lealdade, pela figura de Kurtz, um homem que o fascinou tanto pelo que era,
quanto pelo que fez.
Marlow não conheceu Kurtz de primeira. Quando chega ao país africano de
posse belga, o marinheiro é obrigado a esperar alguns meses no posto central da
companhia por peças de reposição para o navio que iria capitanear ao longo do rio
Congo, trazendo marfim dos postos de coleta localizados no interior do país. Na
convivência com os agentes da companhia, Marlow começa a ouvir falar deste tal de
Kurtz, às vezes bem, sendo descrito como um verdadeiro defensor da empresa européia
na África, às vezes não tão bem assim, sendo acusado de empregar métodos incomuns
para extrair dos nativos a maior quantidade de marfim possível. De todo modo, Marlow
começa a se interessar pela figura de Kurtz, um homem a quem, de acordo com os
relatos dos agentes, o melhor da Europa contribuiu na sua formação. É um amador das
belas artes, pintor e músico. Também escreve, publicou artigos em jornais e periódicos
164
Tradução livre de: ‘(...) it contains in sum the whole of the radical critique of European civilization
that has been made by literature in the years since its publication’.
175
trevas165’ (1972, p. 101). Não se trata de altruísmo, nem de nobreza e virtude, muito
menos sinceridade, essa verdade para outrem. Trata-se de autenticidade, a verdade para
si. A gesta de Kurtz, para Marlow, foi ter tocado, ou procurado tocar, aquilo que lhe é
íntimo, profundamente íntimo, que o diferencia de todos e que a civilização tende a
recalcar. Enfim, Kurtz saiu em busca da realidade que lhe fazia um indivíduo. Ela só
poderia estar para além dos papéis, da falsidade, que a sociedade lhe outorga. Eis por
que Trilling considera o livro de Conrad um resumo da crítica que a literatura durante o
século XX fará à civilização européia. Sendo a Europa sinônimo de civilização, criticar
a segunda equivale a criticar a primeira.
Essa sinonímia, espécie de justaposição entre Europa do século XIX e a idéia de
civilização, é crucial para compreendermos, no entender de Trilling, os contornos da
crítica que o Coração das Trevas resumiria. Em nenhuma passagem do livro, nos diz o
crítico literário norte-americano, Conrad dá margem para uma completa negação dos
ideais europeus do século XIX. Pelo contrário. Marlow acreditaria sem pestanejar que o
projeto europeu ‘(...) pode e, de fato, realiza seus objetivos anunciados166 (...)’ (idem, p.
102), contudo, os realiza sob a égide de uma nação particular, a Inglaterra, sua pátria e a
pátria que o polonês Conrad resolveu adotar e servir, também como marinheiro. Neste
sentido, a brutalidade que Marlow confere aos agentes coloniais estaria se remetendo,
na verdade, à Bélgica e por extensão, a toda nação européia que não soube imitar os
‘bons e justos’ atos ingleses na sua empreitada colonialista. Lembremos também que,
para Trilling, a ‘regressão à verdade do homem’ que Kurtz teria empreendido não
corresponde a uma redenção moral no sentido europeu. Kurtz não teria ‘(...) purgado de
si mesmo qualquer vício europeu, nem mesmo a ganância167’ (op. cit, p. 101). Ele
colonizou, ele procurou encarar o mundo racionalmente, sem encontrar em sua
governança entidades metafísicas e sem encontrar em suas causas e efeitos, espíritos e
fantasmas. Ele encarou o mundo como um universo lógico, passível de ser apreendido
pela experiência sensória, inteligível pela ciência empiricamente orientada e
representável, belamente representável, pelas belas artes. Portanto, os aportes do
colonialismo e do iluminismo estariam sendo, digamos, endossados no livro de Conrad.
165
Tradução livre de: ‘(...) hero of the spirit whom (...), by his regression to savagery (…), had reached as
far down beneath the constructs of civilization as it was possible to go, to the irreducible truth of man, the
innermost core of his nature, his heart of darkness’.
166
Tradução livre de: ‘(...) can and does fulfill its announced purposes (...)’.
167
Tradução livre de: ‘(...) purged himself of none of the European vices, not even greed’.
178
Mas o endosso viria com uma nota de ratificação ao todo que os ideais e projetos
europeus do XIX em conjunto constituiriam, aquele representado pela idéia de
civilização. Kurtz tentou empreender à risca esta idéia. Ele tentou ser um homem
civilizado, mas esta civilização lhe angustiou. Ele tentou edificá-la, mas ela o
desmoronou. No seu íntimo, um profundo mal estar com esta civilização o tomou.
Como nos Versos Íntimos de Augusto dos Anjos, o beijo que ele deu nela foi a véspera
de um escarro. Ele a afagou, fazendo-se de exemplo civilizatório a ser seguido, e ela o
apedrejou, nunca provendo a ansiada felicidade. Ele fez dela seu destino, se sacrificou
por ela, e com isso se perdeu, perdeu seu íntimo de vista, perdeu sua integridade
pessoal, mais precisamente, perdeu a totalidade da sua pessoa a qual, sua ‘viagem de
regressão à selvageria’, teria como porto. Marlow, a voz narrativa à qual o crítico
literário norte-americano certamente não chamaria de medíocre, teria compreendido
através de Kurtz que a verdade do ser humano não será iluminada pela busca incessante
por um remate desta civilização. Ou, colocando a crítica em sentido construtivo,
Marlow teria percebido que o sabor amargo do veneno das trevas tem nuanças
adocicadas. Empreender um escape desta civilização certamente acarretará dor e
sofrimento, mas pode também desaguar em uma redenção verdadeira, a re-descoberta
de si. Pode-se alcançar o coração das trevas, a intimidade, colocando o coração em
trevas, sofrendo e lutando. Marlow talvez não tenha coragem para tanto (medíocre?),
mas sem dúvidas respeita quem a teve.
Se concordarmos com a maneira pela qual Trilling interpreta e contextualiza este
desconcertante livro de Conrad, podemos arrolá-lo, junto com Luiz Fernando Dias
Duarte (2004), na reação romântica que tanto marcou as manifestações e discussões
intelectuais, científicas, políticas e artísticas na Europa desde o século XVIII. Reação à
instauração da ‘(...) dimensão moderna da nossa cultura’, da qual ‘(...) seus mais
ardentes defensores foram chamados justamente de iluministas, por acreditarem na
derrota e no extermínio da sombra que teria obscurecido até então a “marcha da
humanidade”’ (idem, pp. 6-7). Pois bem, por ser uma novela, uma obra que se pretende
artística e não filosófica, seria despropositado procurar no Coração das Trevas uma
reação ponto a ponto ao iluminismo, ou, se preferirmos, ao mundo moderno. Todavia, a
interpretação da gesta de Kurtz que nos oferece Trilling, permite-nos perceber no livro
de Conrad aquele elemento que Duarte qualifica como o nódulo da reação romântica, a
denúncia da perda da totalidade. Sendo o universalismo e o individualismo, por sua vez,
cruciais no iluminismo, conhecimentos e/ou ideologias que enfatizam as partes
179
articuladoras de um todo, a reação romântica, nos diz o autor, denunciaria a perda que
esta fragmentação causaria, ‘perda sobretudo do sentido específico que a co-presença
dos elementos na totalidade acarretaria’ (op. cit, p. 8). Ou seja, a denúncia romântica
estaria defendendo, em contraposição ao iluminismo, que o todo se constitui em algo
mais do que a soma das partes. Essa totalidade para além das partes, nos diz Duarte, foi
encontrada pelos filósofos alemães, principais formuladores do romantismo, em vários
níveis. No conceito de uma totalidade cultural, nas categorias de ‘originalidade’ e
‘primordial’ na idéia de ‘vida’ e, particularmente importante para nosso argumento, na
de ‘espírito’ (op. cit, pp. 8-9), esta noção de que, para além da matéria, haveria um
‘espírito’ não só animando, mas, sobretudo, garantindo a existência individual e
coletiva. Este espírito poderia até estar se manifestando nas partes que o compõem,
porém, reagiram os românticos, a sua qualidade última, a sua natureza, é, por definição,
indecomponível.
Também é apropriado chamar atenção para uma outra dimensão da reação
romântica apontada por Duarte, a da diferença, ‘(...) a ênfase no caráter não igualitário,
hierárquico, propriamente distinto ou específico, dos entes entre si’ (op. cit, pp. 9-10).
Em contraposição clara e direta à ideologia da igualdade, teríamos aqui não só a
marcação da totalidade, mas também da sua especificidade, certamente comparável,
mas, em última instância, não igualável168.
Estas dimensões da reação romântica podem ser localizadas no Coração das
Trevas na maneira como Conrad se utiliza da idéia de natureza. A África “primitiva,
bucólica e praticamente intocada”, não só servirá como cenário, mas também será
estrategicamente imbuída por Conrad de um protagonismo no desenrolar da novela.
Ora, Kurtz empreende uma viagem pela natureza na busca pela sua natureza. Ao se
tornar o líder de uma tribo no coração da floresta, Kurtz regride ao coração selvagem. A
natureza é meio e fim na gesta de Kurtz. Ao mesmo tempo cenário e personagem, causa
e efeito do desenrolar da trama, a natureza é um fundamental elemento narrativo no
Coração das Trevas, denotando um anseio pelo retorno ao atávico momento da
168
Contudo, o próprio método da comparação, tão utilizado na antropologia, seria problematizado por
esta marcação da diferença, principalmente, pelo fato de que ela demandaria do método comparativo, a
inclusão da historicidade dos elementos comparados. Lembremos da celeuma de Boas com o responsável
pela organização da disposição das coleções etnológicas nos museus norte-americanos, Otis Mason.
Enquanto este queria dispor as coleções de acordo com os objetos (uma flauta Navaho ao lado de uma
flauta Tinglit, por exemplo), Boas, alemão, pedia que elas fossem dispostas de acordo com a tribo da qual
os objetos são produtos (uma flauta Navaho ficaria ao lado de um chocalho Navaho, por exemplo). Sobre
o ponto ver Boas, 1999.
180
sempre famigerado estado atual da nação169. Porém, não podemos recortar da sua
“pesquisa folclórica” a virulência ao cristianismo, sua vontade de mal-dizer o bem. Não
podemos esquecer que a negritude do black metal é de outra natureza.
As bandas que se definem como propriamente satânicas também estão à procura
de uma totalidade não fragmentada. Mas, ao invés da totalidade cultural, elas buscam
uma totalidade pessoal. Com efeito, quando as bandas explicam do que se trata este
assumido satanismo, procuram deixar claro que não se trata de uma crença em uma
entidade divina, tal como, para elas, os cristãos concebem seus ídolos. A banda Mordor
chega a diferenciar um satanismo “tradicional” e outro “moderno”. No primeiro, como
disseram em entrevista ao Anaites zine, satanás surge enquanto “(...) uma entidade real,
uma divindade, e não compactuamos com tal crença”. Eles compactuam com o
satanismo “moderno”, através do qual “(...) buscamos ser nossos próprios deuses”. Eis o
elemento propositivo do mal absoluto estilizado pelas bandas de black metal que
acentuam o satanismo em suas identidades no underground. Sob a roupagem do mal,
surge uma proposição de auto-desenvolvimento afetivo e intelectual que não se curvaria
a nenhuma ideologia (além do black metal), a nenhuma instituição (além do
underground) e a ninguém, além deles mesmos. Ser um satanista pelo black metal
significa ser um indivíduo, eles prefeririam um guerreiro, autônomo, que parte em uma
constante busca, eles prefeririam guerra, por si mesmo. Brucolaques, da mineira Saevus,
resume claramente essa busca ao Dark Gates zine:
O satanista é aquele que segue seus próprios códigos, destruindo padrões pré-
estabelecidos para a criação de seus próprios padrões, criados por si para si, visando
construir algo mais verdadeiro em sua vida, buscando a evolução para atingir a
perfeição. Eu penso que para o satanista ser “sua própria divindade”, ele precisa de
conhecimento, sabedoria e auto-desenvolvimento, caso contrário, ele ficará na auto-
ilusão.
169
A música caipira e sertaneja, tal como surgem no trabalho de Elizete dos Santos (2005), e os
lançamentos da gravadora Marcus Pereira, como nos mostra João Sautchuk (2005), são exemplos.
182
para caracterizar a idéia de um total controle que o praticante satanista possuiria sobre si
mesmo.
Talhadura de si com buris próprios, a busca pela totalidade pessoal do black
metal eleva o ser que a engendra, o faz ser melhor não apenas para si, mas em relação
aos outros indivíduos que não a fazem. De fato, o praticante de black metal apreciador
dessa idéia se sente não só diferente, mas superior. Super-homem, melhor-homem-do-
que-o-outro170. Novamente com a palavra, Brucolaques, na mesma entrevista:
O progresso de uma nova era só será possível com o extermínio de todos os fracos e
submissos, permanecendo seres espiritualmente superiores, estabelecendo-se assim uma
humanidade forte e consciente. O ser humano poderia ser perfeito, mas preferiu escolher
um caminho inútil que o afasta de seus instintos e o condena a rastejar diante de deuses
impotentes. A derrota destes será inevitável!
170
Não é por acaso que alguma leitura da filosofia de Nietzsche terá grande saída entre essas bandas.
Uma leitura muito parecida com a que o nazismo alemão fez do filósofo seu conterrâneo, utilizando-o
como legitimador de sua eugenia anti-semita, com a anuência de sua irmã, Elizabeth Vöster-Nietzsche (a
qual, de fato, entregou a bengala do irmão a Hitler, em 1932, ato simbólico de transmissão da missão que
o filósofo teria cunhado ao “homem de ação”). Contudo, deixemos de lado o espinhoso debate que
procura esclarecer se a leitura nazista do filósofo seria ou não seria uma “deturpação” de suas idéias.
171
Aliás, muitas das fotos ilustrativas das gravações mostram os músicos na “floresta negra”, como se
fossem “animais selvagens noturnos” (talvez venha dessa revalorização da natureza como crítica a cidade,
183
a evocação tão comum da figura do lobo no black metal norueguês, às vezes também celebrada no
brasileiro, como em certas imagens do Murder rape. Vale lembrar a dupla significação da palavra varg ou
vargr em norueguês, utilizada como codinome por Varg Vikernes: lobo e fora-da-lei). Outro dado
interessante, neste sentido, é o hobby de muitos apreciadores: acamparem nos parques nacionais do país,
onde ficariam “longes da falsidade das cidades”. Doom-Rá diz ir com freqüência aos parques nacionais ao
redor de Goiânia e eu mesmo acompanhei alguns músicos curitibanos em acampamentos no cânion do
Guartelá, noroeste do Paraná.
172
E filme. Ele inspirou a produção do Apocalypse Now de Coppola. Aliás, as conexões românticas da
novela de conrad são belamente indicadas por Coppola quando, na seqüência que abre o filme, ele a
sonoriza com a sinfonia Cavalgada das Valkírias, do compositor romântico Wagner.
184
5 – TREVAS NA CIDADE
A busca sombria por uma totalidade estilizada pelo metal extremo só será
percebida como verdadeira pelos praticantes se for empreendida no âmbito do
underground. Esta é uma das depreensões que podemos fazer a partir da etnografia das
construções dos estilos. As imagens perturbadoras da perturbação serão menos
perturbadoras se circularem naquilo que chamam de mainstream, na “grande mídia”. Ou
seja, a construção dos estilos está totalmente informada pelas condições de produção
musical que o underground organiza. Daí nos referirmos a este espaço, no segundo
capítulo, como uma “prótese auditiva” que será, ao longo da participação, instalada na
percepção do praticante. O underground tem a capacidade de aumentar as qualidades
musicais definidoras do metal extremo, peso, velocidade e agressão, e de deixar este
tipo de música “mais sujo e menos limpo”, “mais rítmico e menos melódico”, “mais cru
(adjetivo muito utilizado pelas bandas) e menos cozido”.
O inverso também procede. O underground só será verdadeiro se for metal
extremo. Como vimos, nas suas relações horizontais com as diversas práticas urbanas
organizadas a partir de um tipo de música, com os diversos undergrounds que existem
país afora, nossos praticantes julgam depreciativamente qualquer manifestação não-
metal extremo. Com efeito, o underground punk é “muito político”, o gótico “quer se
mostrar” e o da música eletrônica é para pessoas “fracas e preguiçosas, que fazem
música apertando botão e não se esforçando para dominar as técnicas de um
instrumento”. Diplomacia megalomaníaca. O “melhor” underground é aquele que
abriga a mais “verdadeira” das músicas, o metal extremo.
Metal extremo só é extremo se for underground, e underground só é
underground se for metal extremo. Temos, então, uma homologia entre a prática urbana
e sua música. Underground e metal extremo, se denotando reciprocamente, constroem
uma linguagem de comum acordo. Assim fazendo, constituindo uma prática urbana pela
música e cantando nessa a prática urbana, a linguagem do underground do metal
extremo brasileiro referencia um terceiro elemento, a autenticidade, uma verdade que
não poderia ser alcançada por nenhum outro tipo de música e em nenhuma outra esfera
social.
Importante esclarecermos do que se trata essa autenticidade e, para tanto,
novamente, o livro Sincerity and Authenticity de Lionel Trilling (1972) é um sugestivo
186
recurso. Segundo Richard Handler (1986, p. 2), neste ensaio o crítico literário norte-
americano empreende uma análise hermenêutica de obras literárias e filosóficas a fim de
interpretar culturalmente as noções de ‘sinceridade’ e ‘autenticidade’. Para Trilling,
estes dois termos representam elementos fundamentais da ‘vida moral’ ocidental, pelo
menos, desde a renascença européia (1972, pp. 2-7).
A chave da interpretação de Trilling, justamente aquilo que faz esta obra de
crítica literária ser aprazível para as ciências sociais, está na relação entre indivíduo e
sociedade (podemos até arriscar e dizer que sua interpretação oferece uma forma de
pensar o surgimento das noções de indivíduo e sociedade). A partir do século XVII,
Trilling defende que uma franqueza nas relações sociais ou, como ele mesmo coloca,
uma sinceridade enquanto ‘uma ausência de dissimulação ou atuação ou fingimento173’
(idem, p. 13) na esfera pública, começou a ser valorizada em alguns países europeus.
Uma maneira de se apresentar para o outro, ser sincero é ocupar os papéis sociais da
maneira mais honesta. Formulando de outro modo, ser sincero é se preocupar com a
maneira pela qual o outro nos percebe. Para Trilling, o que está em jogo na noção de
sinceridade não é ‘quem você pensa que é’, mas sim ‘como você é pensado’. Sendo
assim, o autor entende que a valorização da sinceridade na Europa a partir do XVII,
além de refletir uma ‘(...) revisão dos modos tradicionais de organização comunal que
ensejou o surgimento da entidade que figura nas mentes dos homens sob o nome de
sociedade174’ (op. cit, p. 26), permite pensar também que, sob sua prevalência, a noção
de indivíduo era inseparável da noção de sociedade. Mesmo que o pêndulo dobre para o
lado da segunda, ambos se realizam em consonância, sem qualquer atrito.
Com a noção de autenticidade irrompida em meados do XIX, Trilling entende
que o pêndulo dobra para o lado do indivíduo. Ser autêntico é descobrir quem você é
independentemente das posições e funções sociais, é ter ‘um sentimento de ser175’ (op.
cit, p. 92) que não precisa corresponder à maneira pela qual o outro nos percebe. A
preocupação da autenticidade está na descoberta de um ser para si, de um self, de um
indivíduo que, descobrindo sua natureza, se sustenta existencialmente por si mesmo,
como bem lembrou Richard Handler (1986, p. 3), comparando a noção de autenticidade
em Trilling com a noção de natureza em Cassirer. Ao surgimento da noção de
autenticidade, aí sim, Trilling conecta uma separação entre indivíduo e sociedade, ou
173
Tradução livre de: ‘the absence of dissimulation or feigning or pretence’.
174
Tradução livre de: ‘(...) revision of traditional modes of communal organization which gave rise to the
entity that now figures in men’s minds under the name of society’.
175
Tradução livre de: ‘a sentiment of being’.
187
melhor, entre indivíduo e papéis sociais. Pois a descoberta do ser para si é a descoberta
do verdadeiro ser, o qual se realiza, sempre, insatisfatoriamente nos papéis sociais que
ocupa, ou melhor, encena. Deste ponto de vista, a sociedade pode ser percebida como
incompleta, em perspectiva branda, ou mesmo falsa, em acepções mais incisivas, como
é, para o autor, o Coração das Trevas. O ensaio de Trilling corresponde às suas
palestras proferidas em Harvard na primavera de 1970. Para ele, os ocidentais nessa
época ainda ‘viviam moralmente’ sob a ânsia da autenticidade irrompida no XIX.
O underground do metal extremo parece buscar uma autenticidade similar a esta
formulada por Trilling. O indivíduo dono de si, pelo metal extremo como gênero
musical, e a comunidade autêntica, pelo underground como forma de prática urbana.
Não se trataria de um papel social a ser encenado, de constrangimentos a serem
suportados. O underground seria o espaço social no qual o praticante pode dar vazão a
quem ele realmente é, onde sua subjetividade verdadeira se sincronizaria com a
objetividade das relações sociais.
A maneira como os praticantes se referem ao underground atesta a valoração
desta prática urbana como a “mais verdadeira” das atividades que eles executam. Em
conversa tida por programa digital de troca de mensagens instantâneas (MSN) em 2006,
o baixista e vocalista Moisés Grinder, da banda baiana de death metal Incrust, se referiu
a sua inserção no underground assim:
Pra mim, não ganhar grana com o death metal não é razão pra parar de fazer música e
sumir da cena, como tantos falsos fazem. Sabe por quê? (nova mensagem) Porque eu
ganho muito mais do que grana na cena, ganho o prazer que meu trabalho não dá, toco
minha música, minha essência, que ninguém nessa cidade entende...na cena eu sou
quem eu quero ser (nova mensagem) não preciso ficar obedecendo gente que me irrita
só porque eles tão com a grana (nova mensagem) é um saco isso, na verdade...pra
sobreviver, tenho que compactuar com toda essa alienação do trabalho e tal, tenho que
viver nessa cidade alienada pela festa que não acaba nunca. Mas ainda bem que existe a
cena forte e unida de Salvador...aí eu sou quem eu sou.
Onde não se é “alienado”, onde a “grana” não prevalece sobre o “prazer”, onde
“eu sou quem eu sou”. O underground se configura para seus praticantes como uma
comunidade muito parecida com aquela gemeinschaft de Tönnies (1944) e Simmel176
(2007), sobrepujada pela gesselschaft, a sociedade moderna impessoal na qual as
relações sociais são, para Tönnies (1944), instrumentais e não espontâneas, para Simmel
176
Sobre as semelhanças entre as abordagens de Tönnies e Simmel no que tange a transformação da
comunidade em sociedade, da gemeinschaft em gesselschaft, ver Vandenberghe, 2001, pp. 84-85.
188
(...) olha pro mundo de hoje, guerra, ódio, briga, é só desunião, separação (...), ficam
falando que estamos na era de aquário, essa conversa furada de hippie que tá tudo numa
paz (...), eu só vejo individualismo e egoísmo, todo mundo querendo tirar o seu e foda-
se o outro (...) não, aqui não, aqui nós trabalhamos em conjunto, essa é a mágica do
metal, eu nunca vi a pessoa antes mas se ela tá pra valer no underground terá minha
ajuda (...)
177
No que tange particularmente a obra de Simmel (2007), a argumentação dos praticantes acerca da
sociedade moderna ecoa e muito a maneira com a qual o autor formulava esta gesselschaft. Pois, para
Simmel (idem), esta nada mais é do que a objetificação de formas de relação social específicas em
sistemas auto-regulados e auto-referenciados. A relação entre os indivíduos nessas esferas é, sempre,
mediatizada pelo dinheiro, por sua vez, também uma objetificação do valor e do símbolo. Dessa maneira,
para Simmel (op. cit) a sociedade moderna não só se caracteriza pela separação entre cultura objetiva e
cultura subjetiva, mas também por um conflito entre ambas as esferas engendrado no indivíduo. Em razão
do conflito entre executar as tarefas na sociedade com a ânsia de ser quem realmente se é, Simmel (1988)
argumentará que a sociedade moderna é trágica. Vandenberghe (2001, p. 103) dirá que, para Simmel, a
gesselschaft é, por definição, inautêntica.
189
***
178
Sobre as diferenças entre a operação classificatória, distintiva e simétrica, e a operação valorativa,
hierárquica e assimétrica, ver Duarte, 1986.
190
179
Utilizamos a noção de ‘visões de mundo’ a partir de Velho (1981). Podemos dizer também que o
binômio underground/mainstream pode ser apreendido a partir dos conceitos de ‘ethos e visão de mundo’
de Geertz (1989, pp. 93-103) e mesmo de ‘ethos e eidos’ de Bateson (1965). Apesar das diferenças entre
esses autores, suas conceituações são válidas para o nosso caso na medida em que todas enfatizam que,
entre uma maneira de conduta e uma forma de apreender o mundo simbolicamente, antes de haver uma
relação de causa e feito, ambas se articulam mutuamente.
191
(...) com o deslocamento do grande comércio e da classe média para áreas situadas
longe dos prédios decadentes e da confusão das regiões centrais, o aluguel das lojas e
galerias antigas caiu muito, o que permitiu que pequenos empreendedores, como das
lojas de discos, pudessem alugar pontos comerciais nessas áreas (op. cit, p. 59).
artístico’ dizem sentir ‘intensa discriminação’ (idem, p. 2) por parte dos não-adeptos.
Partindo deste apontamento, Pedro Alvim levanta questão interessante: como que um
‘mundo artístico’ tão pujante na cidade como o do heavy metal, celeiro de inúmeras
bandas, especialização de inúmeras lojas, estilo celebrado em todas as edições do maior
festival de música do país, o Rock in Rio, é objeto de forte rejeição? O que faz do heavy
metal no Rio de Janeiro ser um ‘mundo artístico’ tão praticado e, ao mesmo tempo, tão
estigmatizado?
Se entendemos seu argumento, Alvim defende que a discriminação advém tanto
da maneira que a ‘temática e a estética’ do heavy metal são construídas quanto da forma
pela qual essa construção é percebida pelos não-adeptos:
(...) a temática e a estética do heavy metal, em parte sobre símbolos sagrados (Geertz,
1978:144) ícones do domínio cosmológico do “mal” no pensamento religioso de
diversas tradições, sobretudo a cristã, converteriam esses símbolos tidos como dados
(Wagner, 1981) em convenções artísticas (construídas), primeiro esvaziando-os de seu
poder “tabu” de coerção (Geertz, 1978:144, 149) e medo, em seguida questionando e/ou
complexificando a bipartição cosmológica estanque de bem versus mal (alterando assim
ethos e visão de mundo via símbolos sagrados – Geertz, 1978), o que termina gerando
as reações de demonização e acusações atribuindo poderes “maléficos” ao gênero e a
seus fãs por parte de não adeptos (2004, p. 2).
rua Ceará, mesmo endereço da Vila Mimosa, famoso ponto de prostituição do Rio de
Janeiro, ou nas cidades metropolitanas, como em Duque de Caxias e Belford Roxo.
Pensando a partir da descrição de Alvim, podemos dizer que o heavy metal no
Rio de Janeiro se realiza enquanto uma prática urbana, e não apenas como uma música a
ser consumida, longe da zona sul, região símbolo da normalidade carioca em algum
senso comum, tanto da própria cidade quanto do país todo. Por este ponto de vista, o
heavy metal enquanto prática pode ser aproximado do crime, do baixo meretrício e da
pobreza, e distanciado da praia, dos “cartões postais” da cidade e do samba. Se, como
Janotti aponta, o heavy metal em Salvador encontra no axé, ‘marca registrada’ da
cidade, sua oposição, esta será dada no Rio pela “carioquice” estereotipada da zona sul.
Ou seja, pelo seu distanciamento das ‘marcas registradas’ de cidades metonímias
do Brasil e pela sua aproximação com práticas percebidas como desviantes da
normalidade, o heavy metal em nosso país dá margens para ser apreendido, tanto pelo
apreciador, quanto pelo detrator, a partir de dualidades dicotômicas tais como colorido-
monocromático, bonito-feio, alegre-triste, normal-anômalo, centro-periferia ou até
mesmo dominante-dominado.
Denunciando sua herança roqueira, o heavy metal em geral, seja no Brasil seja
em outros países, sempre incomodou padrões normais de comportamento. Tomando a
liberdade de discorrer a partir de algum senso comum sobre esse estilo musical, pode-se
dizer que a presença em um show, mesmo das bandas mais consagradas na indústria
fonográfica, sempre tem um gostinho de transgressão para o fã. O jovem adolescente se
vê longe dos constrangimentos da família e da escola, “livre” para dar seus primeiros
goles de cerveja e baforar seus primeiros cigarros, flertar e, assim, sentir-se mais
homem, mais mulher, mais adulto. Já este, tem a chance de “lembrar de seus velhos
tempos” da adolescência, tirar a poeira das roupas de couro, se esquecer do paletó e do
tailleur e, pelo menos por uma noite, “ir à loucura” ao som dos seus ídolos de outrora.
Além disso, se o rock incomodou por sua conotação sexual na década de 50 (lembremos
das censuras na televisão aos rebolados de Elvis “the pelvis” Presley) e pelo seu
engajamento político de esquerda nas décadas de 60 e 70 (todos os movimentos
contestatórios dessas décadas, dos hippies, dos jovens, das mulheres e dos negros, por
exemplo, fizeram do rock sua trilha sonora), o heavy metal perturbará principalmente o
normal religioso, elencando como principais motivos do seu estilo, a magia, a morte e,
194
sobretudo, o diabo. Se o rock nutriu uma sympathy for the devil180, o heavy metal
encarna o diabo de tal maneira a ponto de cantar, na gravação que muitos fãs e críticos
consideram sua estréia fonográfica, my name is Lucifer, please take my hand181. Todo
esse incômodo que o heavy metal provoca, é importante salientar, é estimulado tanto
pelos seus apreciadores quanto pelos seus detratores. O heavy metal sempre sofreu
acusações das mais variadas estirpes. As detrações mais incisivas, como não poderia
deixar de ser, ocorreram nos Estados Unidos, como a formação do PMRC182 em 1985 e
a acusação de que a banda Marilyn Manson teria influenciado, pela sua música, os
jovens Dylan Klebold e Eric Harris a entrar em sua escola, em 1999, no estado do
Colorado, fortemente armados e atirando em qualquer coisa que se mexia, até acabar
sua munição com um atirando no outro, como haviam planejado na véspera183.
As análises de Janotti e Alvim mostram muito bem como essa característica
opositora/transgressora do heavy metal se realiza no tecido urbano, tanto territorial
quanto relacional, de duas capitais brasileiras. Em nossa leitura, a qualidade destes
trabalhos está em apontar o quão complexo é a formação do espaço do heavy metal na
cidade. Janotti (op. cit) nos mostra como essa oposição não pode ser pensada enquanto
uma separação e Alvim (op. cit) nos esclarece que essa “discriminação” opera tanto no
apreciador quanto no detrator. Além disso, ambas as análises em conjunto também nos
fazem pensar que, no Brasil, o heavy metal possa conter algo de “anti-brasilidade” ou de
uma “outra brasilidade”, não contemplada pelos ritmos e identidades detentores da
“marca registrada” de cidades metonímias do nosso país184. Sendo assim, o heavy metal
180
Famosa canção da inglesa Rolling Stones, contida no disco Beggars Banquet, de 1968.
181
A frase está na canção N.I.B, contida no disco homônimo da inglesa Black Sabbath, lançado em uma
sexta-feira, 13 de fevereiro de 1971.
182
Parents Music Resource Center. O Centro de apoio musical dos pais é uma comissão do senado
federal norte-americano idealizado por Tipper Gore em 1985, esposa do então senador Al Gore. Essa
comissão fez audições públicas com boa parte dos músicos de heavy metal, punk e pop, com a intenção
de “esclarecer dúvidas” acerca das letras de algumas das suas canções. Como resultado, a comissão
conseguiu aprovar um sistema de classificação da música vendida neste país e elegeu quinze canções
consideradas inapropriadas para os jovens yankees, “as quinze fétidas” (filthy fifteen) como ficou
conhecida a lista lançada em 1985. Das quinze, nove são canções de heavy metal mas, infelizmente,
perdemos o topo da lista para o Prince, com sua Darling Nikki, canção que estimulava, segundo a
comissão, masturbação. Sobre a atuação da PMRC em relação ao heavy metal, ver Weinstein, 2000, pp.
265-270.
183
Ver Larkin, 2007. Também remeto o leitor ao documentário de Micheal Moore sobre os
acontecimentos que ficaram conhecidos como o “massacre de Columbine”. No seu Tiros em Columbine,
lançado em 2002, ele faz uma entrevista com o líder da banda Marilyn Manson.
184
Na verdade, tomando o heavy metal como um todo, ele parece ter uma relação ambígua em relação a
certos ritmos e identidades tidos como genuinamente brasileiros. Se, por um lado, a mineira Sepultura se
utiliza do berimbau e de cantos dos índios Xavante no seu álbum Roots (1996), celebrando assim, de certa
maneira, um Brasil culturalmente miscigenado, bem ao tom de Gilberto Freire (2002 [1933]), por outro,
as bandas de metal extremo underground fazem uma severa crítica ao Brasil “alegre e harmônico”,
195
no Brasil não seria só opositor e transgressor, mas também menor, em nossas palavras,
underground. Contudo, são apenas especulações. Fato é que estes trabalhos, além de
fornecerem belos exemplos de inserções urbanas por oposições, nos mostram que, não
obstante todo o constrangimento e dificuldade, a ‘cena’, o ‘mundo artístico’, a prática
urbana do heavy metal floresce, e floresce pujante, no Brasil. Para um fã (e ambos os
autores também deixam claro em seus textos que são fãs), nada mais gratificante.
Mas, como já indicado anteriormente, ambos os trabalhos tratam do heavy metal
em geral. Tanto Janotti quanto Alvim abordam o heavy metal como um só gênero e uma
só prática urbana. O underground do metal extremo nacional, por sua vez, é uma das
divisões internas do heavy metal. Seus praticantes soteropolitanos provavelmente
freqüentam as mesmas lojas especializadas que os fãs da ‘cena’ de Salvador
freqüentam, assim como os praticantes cariocas vão se divertir na rua Ceará, esse point
do ‘mundo do heavy metal’ no Rio de Janeiro. Contudo, para além desses cruzamentos,
o underground se constitui enquanto uma prática urbana específica se distanciando do
heavy metal em geral, daquilo que seus praticantes definem como heavy metal
mainstream. Na verdade, a primeira instância da luta pelo underground parece começar
aí, dentro das ‘cenas’ e ‘mundos artísticos’ desse tipo de música que, por mais que
contenha algo de opositor e transgressor, também está solidamente inserido no lucrativo
mercado da produção fonográfica185. Em um show de death metal, em 2003, Curitiba,
ouvimos o seguinte comentário de um presente:
Se a pessoa curte mesmo a música, se tem o metal no sangue, ela não pode ficar na sua
casa ouvindo seus cds. Ela tem que ir lá no show das bandas daqui. Tem que mostrar a
cara. Pô, você vê um monte de carinha andando por ai com camiseta de banda gringa,
que gasta uma grana preta em cd gringo, mas na hora do show das bandas de Curitiba,
que fazem um trabalho por amor a música, que ralam sem grana, sem lugar pra ensaiar,
pra tocar, aparece 100, 200 pessoas. O metaleiro tem que virar headbanger.
marcando em suas entrevistas a alienação pela qual o “futebol e o carnaval” seriam responsáveis. Ou seja,
e essa é a ambigüidade, parece que o heavy metal nacional às vezes reclama uma designação de estilo
popular, como se fosse uma sonoridade que emana das raízes culturais brasileiras, e em outras se
aproxima do pop, de uma música transnacional que em nada espelha a cultura local.
185
Tão inserido que o heavy metal é uma espécie de menina dos olhos de algumas gravadoras devido à
lealdade dos fãs para com suas bandas favoritas. O heavy metal pode vender pouco, mas vende sempre,
não só os lançamentos, mas também o catálogo. Bandas como Metallica, Iron Maiden e Black Sabbath,
medalhões do estilo, já venderam ao longo de suas carreiras, dezenas de milhões de cópias das suas
gravações. Menina dos olhos que fica mais brilhante ainda com as fortes quedas de vendagens que a
pirataria digital vem causando à indústria fonográfica. A lealdade do fã de heavy metal, assim como sua
preocupação com a “boa” qualidade do som da cópia, faz com que ele ostente as menores porcentagens
de música ilegalmente adquirida pela internet. Alguns dados estatísticos sobre a música digital que
especificam os downloads por gênero musical, podem ser achados nos seguintes sítios: no Brasil,
www.abpd.org.br e, no mundo, www.ifpi.org (acessados pela última vez em 15/06/2008).
196
“sujo” em uma verdadeira celebração estética da “sujeira”. Se a cidade não os quer, eles
tampouco querem a cidade e, se ela quer os rebaixar, eles parecem aceitar de bom grado
ser rebaixados. No caso do underground do metal extremo nacional, fica difícil afirmar
quem rejeita e discrimina quem, se é o adepto ou o não-adepto. Pois aí, é como se
houvesse uma glória em ser rebaixado, é como se houvesse um trono a ser conquistado
quando se é considerado vil.
Mas a principal diferenciação entre o underground do metal extremo nacional
em relação as ‘cenas’ e ‘mundos’ do heavy metal tal como analisados por Janotti e
Alvim, é seu transbordamento dos limites de uma única cidade. Para usar um dos
conceitos de Magnani (2002), pode-se dizer que o underground é um ‘circuito’
brasileiro de metal extremo que passa por diversas cidades do país, tanto capitais, como
Rio de Janeiro e Salvador, quanto centros regionais, como Joinville, Teófilo Otoni e
Jundiaí. Um ‘circuito’ que, por não se resumir aos contornos de uma cidade, não pode
ser qualificado como efêmero. Como bem salienta Magnani, ele tem “(...) existência
objetiva e observável: pode ser levantado, descrito e localizado” (idem, p. 24). O
underground passa por Curitiba, mas não fica apenas nela, assim como passa pelo Rio
de Janeiro, mas também não fica só aí. O underground passa por São Paulo mas, apesar
de se demorar um pouco mais, também não fica ai. Passa também por Belo Horizonte,
aliás, podemos dizer que em boa medida seus movimentos começaram na capital
mineira, com a “extrema ideologia satânica” do Sarcófago sendo propagada nos idos de
1985. Mas o underground na terra mãe também não fica. Ele passa. Ele vai até
Fortaleza, entra no computador do Hioderman em forma de entrevistas e sai diagramado
em forma de Anaites zine, o qual chegará à caixa postal da Countess Death, em Lages,
Santa Catarina, saindo de lá pelo Unholy Black Metal zine, como um endereço indicado
no meio de tantos outros endereços de zines, selos, distros e bandas. Ele será gravado,
pelo Pro-tools, na casa do baterista do Daimoth, em Recife. Equalizado e mixado, sairá
em forma de cd direto para Juiz de Fora, para as mãos de Yuri que, por sua vez, vende
um dos exemplares para um curitibano em passagem pela sua cidade com fins de
pesquisa. De Minas, o underground sai junto com Yuri e sua horda Blasphemical
Procreation e vem “blasfemar” nos palcos do clube Mackenzie, Méier, Rio de Janeiro.
Pelas cidades do Brasil, o underground passa e por estas passagens, ele se faz.
Feito de passagens, o underground do metal extremo é uma circulação de
informações, objetos e pessoas operante a nível nacional. Observá-lo apenas dentro dos
limites de uma cidade, além de possibilitar uma confusão entre ele e o ‘mundo artístico’
198
ou a ‘cena’ do heavy metal, pode nos fazer perder de vista que tal amplitude de
circulação define o underground como uma prática social e musical. Observando-o em
uma cidade, podemos avistar apenas um momento dessa passagem, quando, de fato, o
espaço do underground a extravasa, ou melhor, sendo condizente com sua terminologia,
quer se por “embaixo” dela. É daí que queremos notá-lo.
The kula is thus an extremely big and complex institution, both in its
geographical extent, and in the manifoldness of its component pursuits. It welds
together a considerable number of tribes, and it embraces a vast complex of activities,
interconnected, and playing into one another, so as to form one organic whole.
Malinowski, 1983 (1922), p. 83.
O Kula, tal como descrito por Malinowski, oferece uma imagem sugestiva para
visualizarmos o caráter da circulação do underground. Assim como essa “complexa
instituição social” trobriandesa, o underground é um composto social formado na
confluência de diversas atividades que são realizadas por grupos que vivem
geograficamente distantes uns dos outros. Se, no Kula, temos tribos circulando por ilhas
a fim de trocar conchas, no underground, temos grupos locais, se preferirmos ‘cenas’ e
‘mundos artísticos’, circulando pelas cidades com o interesse de trocar metal extremo.
Vimos nos dois primeiros capítulos como essas circulações e trocas acontecem.
Seguimos os passos das gravações, observando como são feitas, distribuídas e vendidas,
assim como seguimos a produção dos zines, focando a importância que as informações
veiculadas por eles têm na organização de uma circulação circunscrita e relativamente
autônoma.
Contudo, para o praticante, este circuito por si só não corresponde ipsis litteris
ao underground ou, para continuar pensando junto com Malinowski, sua representação
como um ‘todo orgânico’ que forma esta prática urbana é mais uma síntese sociológica
nossa do que uma nítida percepção deles186. Com isso, não queremos dizer que os
186
Vale ressaltar que, na seqüência do trecho citado, é justamente uma diferenciação entre análise
sociológica e pensamento nativo que Malinowski esboça: ‘Yet it must be remembered that what appears
to us an extensive, complicated, and yet well ordered institution is the outcome of ever so many doings
and pursuits, carried on by savages, who (...) have no knowledge of the total outline of any of their social
structure. (…) The integration of all the details observed, the achievement of a sociological synthesis of
all the various, relevant symptoms, is the task of the ethnographer’ (idem, pp. 83-84). Em que pese a total
impossibilidade de auto-percepção que o autor confere ao conhecimento nativo, que soa tão datada aos
199
praticantes não sabem o que estão fazendo quando mandam seus zines e gravações para
outros estados. Sabem muito bem que estão, assim, cremos que deixamos isso claro,
“lutando pela chama do underground”. Porém, para eles, o circuito só terá significado
se ele confluir para o e emanar do show. Para o praticante, o underground como um
‘todo orgânico’ só é vivenciado neste evento. Pensando junto com eles, é no show que a
“chama do underground” é acessa e é no show que ela brilhará com a maior
intensidade.
***
(...) quando eu aprecio material (fita-demo, CD, LP) de hordas que não conheço, tento
compreender se há alguma verdadeira ideologia no artefato, através dos hinos e das
fotos (...), mas é no show que a horda tem a chance de interpretar a idéia defendida em
vossos hinos e entrevistas, é no show onde se descobre que algumas hordas de black
metal só tocam black metal e outras vivem o black metal.
nossos ouvidos, estamos fazendo a mesma diferenciação para o caso do underground do metal extremo
nacional.
200
187
DaMatta, 1990 (1979); Douglas, 2002 (1966); Gluckman, 1963; Leach, 1972; Radcliffe-Brown, 1973;
Tambiah, 1985; Turner, 1969.
201
188
O trecho inteiro do caderno de campo no qual descrevo esse show encontra-se no Anexo II.
189
Se essa era a motivação da banda Necrotério para organizar o show, todavia, inúmeras podem ser as
razões de um show como esse. O aniversário de um dos integrantes, o nascimento de um filho de alguém
do “pessoal” ou mesmo a páscoa (data preferida dos shows de black metal, a sexta-feira, quando cristo
morre, e não o domingo, quando ele ressuscita) podem motivar a organização de um show.
203
Espírito Santo, e Juiz de Fora, no sudeste mineiro, São Paulo capital com as diversas
cidades do interior paulista, como Campinas, Jundiaí, Piracicaba e mesmo com cidades
mais distantes, como Bauru e São José do Rio Preto, Fortaleza com Teresina, Natal e
São Luis do Maranhão, Salvador com o interior baiano, assim como Recife com
Campina Grande e o resto do interior pernambucano, todas essas “pernas” são muito
mais movimentadas do que, por exemplo, Porto Alegre e Fortaleza ou Brasília e
Florianópolis. Movimentação em mão dupla, tanto das cidades pequenas em direção as
maiores, quanto das segundas para as primeiras. Contudo, vale ressaltar, isso não
descaracteriza a amplitude nacional do underground, uma vez que a maior
movimentação desses eixos se aplica somente ao deslocamento de pessoas. Os objetos e
informações movimentam-se velozmente pelo Brasil todo por correio e, quando alguma
gravação ou zine não chega a uma dada cidade por carta, são trazidas pelas pessoas que
já o receberam, justamente, pelas movimentações mais curtas que os shows engendram.
Bandas arranjadas, o organizador precisa agora decidir onde o show acontecerá.
Casas de shows preparadas para receber grande quantidade de público, mais de mil
pessoas, geralmente localizadas em regiões da cidade reconhecidas como pontos de
divertimento noturno, são, de saída, descartadas, tanto pela visibilidade que elas dão aos
eventos ai alocados, quanto pelo preço do aluguel que cobram. A preferência do
underground recairá sobre bares e espaços os mais diversos, como clubes e associações
de moradores, geralmente localizados nos centros velhos da cidade ou em bairros
distantes do centro, na “periferia”. A partir do show de Curitiba, podemos entender
como se dá a negociação do organizador com o proprietário do local quando o evento é
realizado em um bar. O Lino’s, já inativo, desde a década de 80 abrigou shows de punk,
psychobilly (estilo formado na confluência entre o punk e o rockabilly) e metal extremo.
A convivência com o proprietário do local durante esses vinte anos sempre foi amistosa.
Seu Lino pedia 20% da entrada para o bar, um real no caso do show organizado pelo
Necrotério, mais a garantia de que o público consumiria sua bebida. Para seu Lino, uma
boa maneira de manter seu bar movimentado, um boteco de esquina vazio em dias sem
shows. Para os praticantes, valores acessíveis para utilizar um espaço que, por mais que
não ofereça a mínima qualidade acústica, é ideal para um evento underground. Afastado
dos locais de “agito” noturno da capital paranaense, cravado no centro histórico da
cidade, bem perto de pontos de prostituição, o Lino’s sempre estava meio sujo, com o
feltro da mesa de sinuca rasgado e freqüentado por mendigos, prostitutas e travestis
atrás de uma pinga barata. O Lino’s era tosco, a meia-luz, bem ao gosto underground.
204
Ter sido uma referência espacial por mais de vinte anos para diversos
undergrounds faz do Lino’s uma exceção. A regra, em qualquer cidade, é um constante
atrito entre praticantes e proprietários dos bares. Este pode pedir uma porcentagem do
valor de entrada maior do que o valor que aqueles acham justo e assim, a parceria não se
efetiva. Também pode acontecer que, julgando que o consumo de bebidas não foi
lucrativo durante o show, o proprietário fecha suas portas para o underground realizar
em seu bar outros eventos. Sempre há também a possibilidade de que o proprietário não
se anime com a idéia de ter seu local utilizado por “satanistas e pervertidos”. Certa vez,
durante um show em Vila Velha, Espírito Santo, 2006, quando o vocalista da banda
Catacumba iniciou o show gritando “satanás está aqui conosco”, o proprietário do bar
subiu no palco e obrigou que a banda parasse de tocar imediatamente, causando certo
tumulto entre o público. Ou, em outra ocasião, Campinas 2002, o impacto causado no
dono do John’s bar pelo strip-tease de uma “vampira”, que finalizou a apresentação da
banda soteropolitana Mystifier, foi de tal ordem que ele proibiu a realização das outras
duas apresentações que ainda estavam para acontecer naquela noite. A essas ações dos
proprietários, os praticantes reagem adulterando o número de pagantes, levando bebidas
das suas casas e até mesmo promovendo “quebra-quebras” dentro do bar, como de fato
ocorreu em Vila Velha. Esses constantes atritos fazem com que o underground não só
circule pelo país, como também pelo próprio espaço das cidades, procurando um
proprietário que aceite abrigar os shows em seu bar, algum seu Lino que não veja
problemas em cruzes invertidas e “vampiras” nuas e que tenha em seu estoque uma
pinga oferecida a preços módicos.
Não é exagero afirmar que boa parte dos shows underground é organizada em
moldes semelhantes à maneira que foi o show no Lino’s. Como efeito de uma
organização gerenciada fundamentalmente na base da “conversa” e do “contato”, esses
shows se caracterizam pela falta de garantia que se realizem tal como foram planejados.
No dia do show, as bandas podem aparecer ou não e os locais podem estar disponíveis
ou não. De modo que, como o underground é um sistema de trocas, os praticantes
confiam na efetividade das suas “conversas” e “contatos” por entenderem que faltar aos
compromissos acordados significa desrespeitar a própria maneira de dar, receber e
retribuir desta prática urbana. Não comparecer ao show, como banda ou mesmo como
público, demonstra falta de comprometimento, “falsidade” até, colocando em risco,
assim, suas inserções no underground. Pode-se dizer, então, que o constrangimento que
esse sistema de prestações e contra-prestações provoca nos praticantes é forte, afinal, as
205
bandas, na maioria das vezes, aparecem e o “pessoal” está por lá. Só não é tão forte
assim, compreensivelmente, com os proprietários dos bares, alheios aos mecanismos
articuladores do underground.
190
O trecho inteiro do caderno de campo no qual descrevo esse show também se encontra no Anexo II.
206
naquilo que é um dos principais objetivos deles, lucrar com os eventos que realizam191.
Portanto, para garantir que tudo dê “certo”, as bandas convidadas, além de terem seus
custos arcados pela organização, recebem cachês e assinam contratos nos quais multas
rescisórias estão estipuladas. A insegurança quanto à realização do show organizado
pelas “conversas e contatos”, tão presente nos shows underground, é assim, com os
contratos e os pagamentos, amainada.
Eis aí um dos únicos agentes que consegue lucrar no underground e, ao mesmo
tempo, ser “bem” visto pelos praticantes, o promotor de eventos. Se os shows que
organiza têm “boas” qualidades acústicas, se ele promove a apresentação de bandas que
nunca tinham tocado na sua cidade e cobra pelo ingresso um preço relativamente
barato192, o praticante só terá respeito por ele. O lucro de modo algum coloca em xeque
sua reputação. Afinal, dado todo o trabalho que teve em organizar o evento, o praticante
entende que nada mais é justo do que ele ganhar para tanto. Além disso, o promotor de
eventos profissional não é um agente externo ao underground. Antes, ele é um
praticante que percebeu a possibilidade de, para colocar de modo simples, unir o útil ao
agradável. Espécie de empreendedor do underground, ele soube encontrar uma forma
de organizar “bem” o principal evento desta prática urbana, o qual ele certamente terá
grande prazer em participar, mas que também se transformará em um meio de
subsistência. Por isso que o capital financeiro que ele movimenta e os contratos que
assina, antes de substituírem os “contatos e as conversas”, os complementa.
A lista de bandas convidadas para tocar no Aliança Negra foi totalmente
montada a partir dos “contatos e conversas” que movimentam o circuito underground
no eixo Juiz de Fora - Rio de Janeiro. Vejamos: o promotor de eventos que trouxe a
banda alemã para o Brasil é de Minas, Belo Horizonte. O contato que Yuri D’Ávila
tinha com este promotor fez com que ele, agora não só um responsável por selo, mas
também promotor, trouxesse o Grafenstein para tocar em sua cidade, Juiz de Fora, no
show onde suas bandas também tocariam, Sepulcro e Blasphemical Procreation. Não
custa nada, pensou Yuri, avisar seus contatos no Rio, o pessoal do Rio Metal Works,
sobre a possibilidade de levar a banda alemã para tocar na capital fluminense um ou
dois dias depois do show de Juiz de Fora. Além de reforçar suas ligações com o Rio de
Janeiro como promotor e responsável por selo, Yuri também viu nesse aviso uma ótima
191
Lucro que vem essencialmente dos ingressos. Não há patrocínio de qualquer empresa em shows
underground.
192
Doze reais (2007) foi o preço do ingresso para o Aliança Negra.
208
chance para pegar carona com a banda alemã e arranjar mais uma apresentação para
suas bandas na cidade que mantém relações tão estreitas com a sua. Para o pessoal do
Rio, ótima chance para realizar um “evento como o underground carioca nunca tinha
visto antes”. Mais alguns convites a banda cariocas e o cast do Aliança Negra estava
pronto. Fechado o contrato com o clube Mackenzie pelo aluguel do seu espaço e
equipamentos reservados com as agências de eventos, agora é partir para a divulgação.
O show underground é divulgado por aquele velhíssimo meio de comunicação
que podemos chamar de boca-a-boca. O organizador fala sobre os shows para os seus
colegas os quais, por sua vez, falam para seus conhecidos e, assim, as informações
acerca do lugar, horário e bandas que tocam na noite são conhecidas por quem quer
saber dessas informações. Esse foi o único meio de divulgação do show no Lino’s e
esse é, sem dúvidas, o meio mais veloz, mais eficiente e consequentemente, o mais
utilizado para divulgar um show underground. Muitas vezes, o boca-a-boca é
complementado pela confecção e distribuição de flyers (ou, como os cariocas dizem,
filipetas) e cartazes, como aconteceu no Aliança Negra. Eles são deixados para
distribuição nos e colados nas paredes dos locais mais freqüentados pelos praticantes,
basicamente bares e lojas especializadas em heavy metal. Os cartazes podem também
ser pregados em muros e postes localizados em ruas centrais das cidades. Contudo, na
prática, esses meios impressos de divulgação servem mais para lembrar o praticante do
show sobre o qual ele já tinha sabido através de algum conhecido seu193. Além destes,
um show underground pode ainda ser divulgado pelas rádios rock do país, não como
uma inserção no horário comercial, mas como um lembrete dado pelo locutor anfitrião
do programa heavy metal, geralmente veiculado nas madrugadas. Se os lembretes feitos
pelo rádio são raros e em termos de divulgação, muito pouco eficientes, na televisão,
por onde, atualmente, não é veiculado nenhum programa de heavy metal no país, são
inexistentes. Ou seja, os mesmos “contatos e conversas” que estão na base da
organização dos shows, são também os meios pelos quais os shows são divulgados. Se o
underground não extravasa sua rede de relações em nenhum momento da sua
circulação, não seria diferente no momento da divulgação do seu principal evento.
193
Os cartazes terão uma importância divulgadora maior com o advento da internet. Mesmo que muitos
praticantes, principalmente os apreciadores de black metal, sejam avessos a “teia mundial”, por ela ser
“aberta demais”, as artes digitalizadas dos meios impressos são amplamente divulgadas nos sítios
eletrônicos do underground do metal extremo. Todavia, temos os “contatos e conversas” modelando a
comunicação underground na internet também, pois os endereços desses sítios, mesmo que, a princípio,
possam ser acessados por qualquer um, só são divulgados entre os praticantes.
209
No show, essa pessoalidade é gritante (será que eu não percebia isso tão
nitidamente em Curitiba por, justamente, conhecer todo mundo?). Parece que
todos se conhecem, ficam trocando de roda de conversa a toda hora, falam sobre
tudo, mas principalmente sobre metal extremo. As próprias piadas são
relacionadas ao underground. Aparece uma menina vestida em trajes vampirescos,
com um espartilho de látex justíssimo, saia negra de couro que desce rente ao seu
corpo, botas vermelhas de salto alto e, o melhor, uma mecha grisalha no começo do
seu cabelo longo, liso e negro, e uns cinco ou seis que conversavam em roda
brincam: “caraca, saca a Mortícia, tá real hoje”, “ai, sinistro, a Mortícia vai
blasfemar muito hoje”. Levando à boca um cigarro, manchando-o com seu batom
negro, ela responde, com um leve sorriso no rosto: “meu homem, ele, Belzebu, me
espera”, e todos, “Mortícia” inclusa, desfazendo toda sua pose de Marilyn Monroe
do mal, riem muito. E o Grind Stressor, de fato, “conhece geral”. O cara passou dos
quarenta e, durante o evento, parece uma criança hiper-ativa de cinco. Não pára
de ir pra lá e pra cá, dessa roda para aquela roda, sempre falando e gesticulando
muito, contando suas histórias para quem ainda não as ouviu e relembrando de
outras com colegas “das antigas”.
Assim como não seria diferente ao longo do evento. Antes, durante e depois das
apresentações das bandas, os “contatos” são vivenciados face-a-face e estimulados nas
conversas, sem aspas, das rodas. Os organizadores finalmente se encontram, se
atualizam mutuamente com as informações sobre os shows que vão acontecer nas suas
cidades e com outras, um tanto supérfluas para se transmitir em uma ligação de telefone
ou por carta, como a saída de tal pessoa dessa banda e a entrada daquela em outra. Os
responsáveis por selos e distros fecham seus acordos com integrantes de bandas com os
quais vinham se comunicando anteriormente. Os zineiros, além de trocarem seus
“artefatos” entre si, fecham acordos para futuramente fazer, ou fazem no local mesmo,
novas entrevistas com integrantes de bandas para os próximos números. Sem esquecer
das conversas sem fins práticos, coloquemos assim, por onde os “veteranos reais”
constroem suas imagens de “veteranos reais” e acusam outros “veteranos reais” de
“falsos”, por onde se fazem piadas sobre os amigos e por onde se constroem as
aproximações e diferenças dos estilos de metal extremo, elaborando analogias entre e
traçando as histórias do death, doom, trash, gore e black metal. Qualquer show
underground propicia esses momentos de feira nos quais produtos são comercializados
e trocados, acordos são firmados e informações, fundamentais e banais, são
transmitidas.
Dessa maneira, pode-se dizer que o show, desde sua organização até sua
vivência, é o momento no qual a rede de comunicação pessoal e circunscrita, matéria-
210
***
211
194
Dando maior peso a esta falta de demanda, assinalemos que as duas bandas do underground do metal
extremo nacional que foram alvo de demandas externas, Sepultura e Krisiun, aceitaram satisfatoriamente
o maior apelo a sua música e assinaram contratos com gravadoras profissionais.
195
Dando maior peso a essa vontade, assinalemos que Sepultura e Krisiun, a partir do momento em que
começaram a ficar conhecidas para fora do underground, foram classificadas aí como “falsas”, como
bandas do mainstream.
212
***
metal extremo underground conseguirá dramatizar a negação se não a fizer por meio de
um metal extremo “pesado, agressivo e brutal”.
Um argumento da filósofa norte-americana Suzanne Langer (1942) pode nos
ajudar a elucidar a função narrativa da música no show. Segundo Langer,
196
Tradução livre de: “If music has any significance, it is semantic, not symptomatic. Its ‘meaning’ is
evidently not that of a stimulus to evoke emotions, nor that of a signal to announce them; if it has an
emotional content, it ‘has’ it in the same sense that language ‘has’ its conceptual content – symbolically.
It is not usually derived from affects nor intended for them; but we may say, with certain reservations,
that it is about them. Music is not the cause or cure of feelings, but their logical expression”.
197
Sobre a filosofia da música de Langer em relação à tradição filosófica alemã sobre essa arte, ver
Sheperd & Wicke, 1997 e Videira, 2007.
198
Tradução livre de: ‘(...) music makes time audible’.
217
maldade e a agressão serão escutadas nessa música por ela estar sendo feita em oposição
aos afetos e valores considerados mainstream199. É precisamente a denotação dessa
oposição à ‘vida afetiva’ do mainstream que a música dramatiza no show. Apoiada por
elementos cênicos200, toda essa negação do bem, do corpo são e da mente sã, da alegria
e da vida, não só é escutada como é vivenciada pelos praticantes juntos.
Aqui está a “força” do show, como os praticantes falam. Por piores que sejam as
qualidades acústicas do recinto e dos amplificadores, como usualmente são, ressoará do
palco, em alto volume, aquele som que eles tanto amam, que chamam de metal extremo
“pesado e agressivo”, de “brutalidade em forma de som”. Com seus corpos agarram
esses sons totalmente. Os digerem se abraçando e chacoalhando a cabeça para frente e
para trás juntos, se arremessando uns nos outros ou mesmo ficando parados, de braços
cruzados, comentando as particularidades musicais da banda que se apresenta. Ouvem
juntos, vivem juntos a música que os aproxima, que os liga e os assemelha. Neste
sentido, a avaliação “boa” da música que está sendo apresentada, de certa maneira, já
está garantida. Pois, a avaliação estética da música tocada no show está envolta por este
movimento de produção de um ambiente comunal pelo som. Tudo concorre para tanto.
As pessoas estão lá, o volume está no “talo”, é noite e estão afastados dos seus papéis
sociais encenados no mainstream. À banda cabe “descer o braço” nos instrumentos e
fazer aquilo que ensaiou a semana toda: sua música. O resultado desses elementos em
conjunto é aquilo que os praticantes chamam de “força” do show: viver o underground
sem restrições e celebrar a perturbação do “mundo” sem contradições.
Portanto, não é sem razão que os praticantes se referem ao show como uma
celebração. Este momento é outro, diferente das vidas ordinárias que levam além do
underground e diferente mesmo em relação às outras atividades desta prática urbana.
Seu caráter extraordinário se encontra justamente naquilo que DaMatta (1979) aponta
como uma das qualidades do ritual, o deslocamento de perspectivas em relação ao
cotidiano, espécie de instalação momentânea de um outro tempo201. Pois, nas
199
O musicólogo Ronald Bogue (2004) argumenta que essa oposição se expressa no próprio plano das
técnicas e práticas musicais do metal extremo, quando seus músicos procuram compor se distanciando de
conformações muito utilizadas da música popular.
200
Na escuta fora do show, a música será apoiada pelas letras e iconografias das gravações.
201
Tal deslocamento de perspectivas que o ritual faria em relação ao ordinário proposto por DaMatta,
arma aquela tipologia dos rituais brasileiros que o autor trabalhará: carnaval como inversão, paradas
militares como reforço e procissões como neutralização. Não pretendemos arrolar o show em qualquer
um desses tipos, apesar de que ele poderia ser visto como uma inversão. Retemos apenas esse sugestivo
movimento de deslocamento e instalação de outro tempo que a teoria do ritual de DaMatta, seguindo os
passos de Durkheim (1996 [1912])) e Evans-Pritchard (2004 [1976]), oferece.
218
apresentações, quem conta o tempo não é o relógio. É uma baqueta, uma palheta e uma
garganta. No show, é tempo de underground, é tempo de música.
Cartaz digitalizado do show quinta celebração das negras legiões de guerra, realizado em
Teresina, Piauí, em 2005.
Uma música que os faz viajar no tempo, para sermos mais precisos. Por meio
dela, vivenciam um instante atávico de totalidade, quando o mainstream ainda não tinha
se lançado no curso irreversível da multiplicação. Uma música que os faz viajar para
dentro de si mesmos e, junto com ela, trazer lá de dentro aquele ser “verdadeiro”, cheio
de valores e princípios. Uma música que, ouvida por muitos ao mesmo instante, instala,
por algumas dezenas de minutos, a eternidade da comunidade solidária do metal
extremo brasileiro. Dramatizando a negação, a música permite que os praticantes
saboreiem, por uma noite, a vitória sobre o mainstream. Em um mesmo movimento,
219
rompendo para fora e unindo para dentro, a música apresenta o underground como um
todo para o praticante. Para falar junto com eles, ela é a brasa que mantém a “chama do
underground acesa”.
***
202
Ainda pensando a partir de Hertz, no underground do metal extremo se esboça, literalmente, uma
preeminência da mão esquerda. É quase uma regra social, independentemente se o praticante é canhoto ou
não, que se apertem as mãos esquerdas no momento de cumprimento. Comecei perceber isso quando fui
cumprimentar Agathodemon, baixista do Murder Rape, estendendo a mão direita e ele virou sua mão
esquerda para me cumprimentar. Ele é destro, qualquer show da sua banda atesta. Mas cumprimenta com
a esquerda. A partir deste ocorrido, comecei a cumprimentar os praticantes com a mão esquerda e não
seria exagero dizer que essa postura desarmava, de saída, algumas desconfianças com minha pessoa que o
praticante poderia ter.
220
parece ter acontecido nos países nórdicos, notadamente Noruega203. Contudo, no Brasil,
como um coletivo, esta prática urbana faz música. Uma música plena de significados
subjetivos, sociais e morais para quem a faz, uma música que é causa e condição de uma
maneira de ser concernente aos seus músicos e apreciadores. O underground do metal
extremo no Brasil é uma “filosofia de vida extrema”, mas composta e veiculada pela
música. O elo dessas pessoas não é a religião, a família, a escola, o trabalho ou o
esporte. É a prática de um gênero musical.
É isso que os praticantes reclamam quando colocam a “ideologia” no primeiro
degrau de importância. Dizendo que o metal extremo underground é uma “filosofia de
vida extrema”, antes de significar certa funcionalidade da música para se buscar outros
fins, os praticantes estão afirmando que a música que eles fazem não pode ser
compreendida como uma mera fruição estética, como uma arte contemplativa que serve
unicamente à abstração, à reflexão ou ao deleite dos ouvidos. Não. Essa é a maneira que
o mainstream ouve música. Eles entendem que ouvem metal extremo com seus corpos,
eles fazem dessa música uma relação social. Compondo e ouvindo metal extremo no
underground, eles engendram maneiras de sentir, de ser, de se mover e de pensar, eles
se animam e saem da apatia, esse “problema” que os praticantes detectam na pessoa do
mainstream. Pois a pessoa “preguiçosa e fraca” que relega a ação social às máquinas e a
fonte da sua vontade ao divino, também é a pessoa que “ouve a música com o cérebro”.
Eles não, eles são artesãos que fazem dos seus instrumentos, apêndices dos seus corpos,
dos seus corpos, a fonte de suas vontades e das suas vísceras, fazem ouvidos.
Por entenderem que superaram a apatia tão presente neste mundo
“cristão/democrático/capitalista”, eles se vêem como seres autênticos. Eles acharam
seus “verdadeiros” selves se afastando dos “falsos fluxos centrais”. Eles se acharam em
um “sub-mundo” onde concebem o fluxo do tempo como menos civilizatório e
fragmentado, mais atávico e total, sincronizado com seus “verdadeiros” ser para si.
Neste sentido, podemos comparar o underground do metal extremo com o movimento
punk, tal como Caiafa (1985) os percebe. Para a autora, se é que a entendemos, o punk
desafia maneiras de ser, estar e de agir “normais” acelerando seus exercícios de ser,
estar e agir: “no exercício de suas estratégias, acionam uma velocidade que ultrapassa os
203
Aliás, que ainda acontecem. Países como Polônia e Ucrânia assistiram em 2006 e 2007,
respectivamente, queimas de igrejas históricas realizadas por pessoas ligadas ao black metal. No Brasil,
ao que sabemos, o único fato semelhante foi a depredação de uma igreja em Criciúma, em 2003, pelos
membros do Murder Rape. Eles foram presos na mesma noite do ocorrido e respondem, até o momento,
2008, processo judicial por vandalismo.
222
limiares da percepção” (op. cit, p. 142). Daí seu caráter de nômades. Eles aparecem para
desaparecer e vice-versa: “porque os punks trabalham mesmo esse interstício absoluto
da iminência pela aceleração que imprimem a tudo de que lançam mão. O punk se
realiza aí, no súbito dessa tensão” (op. cit). O punk aparece, mas quando se tenta flagrá-
lo, ele não está mais lá. Este é o desafio punk, agir em uma espécie de overground. Em
constante movimento veloz, não oferecer possibilidades de definições do que fazem,
não se deixar representar. Para a autora, este movimento punk lhe pareceu de tal
maneira contundente que sua própria escrita, a princípio uma tarefa de definição, ela
mesma reconhece, precisou ser um tanto quanto punk: “E também os contornos que foi
preciso fazer enquanto eles me provocavam a pensar levaram-me a evitar a luz de uma
explicação sem mistérios, e a aceitar que fosse noite também na escritura” (idem, p.
143).
No underground do metal extremo, o tempo foi freado, o tempo foi retornado até
alcançar a totalidade de uma comunidade solidária na qual todos os membros, mesmo
que não se conheçam, imaginam uma comunhão a partir de uma oposição básica. Ora,
nada mais sedentário do que uma comunidade de metal extremamente pesado que quer
parar o tempo. Mas se, ao invés de acelerar, o underground freia, é nessa mesma
manipulação do tempo e/ou do movimento que o punk faz, que ele concentra aquilo que
podemos também definir como um desafio ao seu inimigo, o mainstream. Na verdade,
um desafio de negação. O underground quer se separar do contexto que o circunda. Ele
não encara, ele foge para o “sub-mundo” e daí “luta” com seu inimigo. As relações
circunscritas e pessoais por onde ele se realiza, sendo percebidas pelos praticantes como
um contrário das relações mainstream, permite que essa “luta” seja vivenciada, contudo,
de certa maneira, latente. Sua contundência, quando ela atinge a possibilidade de ser
vivenciada como uma vitória, acontece nas apresentações das bandas.
Mas, ao mesmo tempo em que confiam na eficácia das suas campanhas, os
guerreiros do underground sabem que quando as luzes acenderem e o sol raiar, as armas
serão depostas e o conflito cessará. Dormirão e, como provavelmente o dia seguinte será
um sábado ou domingo, acordarão para terminar as tarefas dos seus trabalhos não
cumpridas durante a semana. Levarão seus filhos e seus cachorros ao parque. Ligarão
para seus pais e almoçarão na casa dos seus avós. Voltarão a viver seus papéis no
mainstream até o próximo final de semana, quando dramatizarão, mais uma vez, aquilo
que Roudinesco (2007) chama de ‘parte obscura de nós mesmos’.
223
POSFÁCIO
Para salir del sueño en el que estoy, por decir así, enredado, debo hacer fuerza con
todo mi cuerpo, porque es todo mi cuerpo el que está enredado en él.
Juan José Saer
Deve ter sido com cinco ou seis anos, quando minha mãe me deixava com uma
babá rockeira enquanto ia trabalhar, a Rose, fã de Janis Joplin e Jimi Hendrix, que
gostava de “brincar de show” comigo. Vestia-me com roupas rasgadas, colocava uns
óculos escuros no meu rosto e imaginávamos ser rockstars tocando para uma multidão a
tarde toda. A Rose sabia criar um clima de rock tão bem que apelidou as reclamações do
morador do andar de baixo de censura, a velha inimiga dos rockeiros. Não tenho
certeza. Talvez foi com uns sete anos, quando, por falta de dinheiro, fomos morar no
pensionato da minha vó, em Londrina. Um dos hóspedes, o Lee, me deu um disco do
Whitesnake, tenho ele em minhas mãos agora, o qual escutei, literalmente, por uns dois
meses seguidos, até o momento em que ganhei um outro disco dele, do AC/DC. Não sei
ao certo. Talvez começou com a minha mãe mesmo que, apesar de não tocar nenhum
instrumento, era grande apreciadora de música, de Elis Regina (meu nome, se tivesse
nascido uma menina) à Rolling Stones. Ela sempre estimulou minha inclinação pela arte
do som em geral, me matriculando em aulas de canto e me dando discos e revistas sobre
música, e pelo rock em si, deixando meus cabelos crescerem quando eu tinha uns oito
anos, por exemplo. Decisão corajosa. Em Londrina, na década de 80, ter um filho de
oito anos com os cabelos chegando ao meio das costas era quase um ato de vandalismo
e, obviamente, a vândala era ela e não eu.
É, foi tudo isso, e algo mais que não sei explicar, que fez com que a música
pesada se enredasse em meu corpo desde a infância. Minha memória não consegue
avistar um momento, uma época da minha vida na qual ela não esteja presente. Eu
sempre a quis perto, e os adultos que cuidavam de mim sempre deixaram ela se
aproximar. Havia certo excesso, mas a música pesada não chegava a ser um vício, algo
que me fizesse pular certos procedimentos comuns de um menino de classe média baixa
morando no interior do Paraná na década de 80. Fora os cabelos longos e a estatura um
tanto acima da média dos meus colegas, tive uma infância passível de ser considerada
“normal”. Uma infância com uma trilha sonora que alegrava e acalmava, que dava
material para brincadeiras e para amizades, enfim, uma infância com uma paixão. Se
224
Eu, com um ano e meio, ao lado do meu chocalho preferido, a caixa de som.
heavy metal” para mim, ela, jornalista “moderninha”, sempre com seu ideal de uma
educação liberal, deixava a minha relação com a música pesada seguir nos seus próprios
termos. Até dava uma mãozinha para a relação continuar fértil. Eu tinha doze anos
nessa época e, no meu aniversário, ganhei dela minha jaqueta de couro. Pronto, agora
sim eu era um verdadeiro “metaleiro”.
Mas ainda não era o suficiente. O reconhecimento da minha identidade
“metaleira” pelos meus conhecidos não bastou. Eu queria mais heavy metal, mais peso,
mais volume, mais força, eu queria ver até onde essa relação poderia ir. Ela foi fundo
com os shows. Ah, como eram legais os primeiros shows. Saber que haviam outras
pessoas no mundo como eu, ouvir aquele som ao vivo, com meus ídolos bem perto. As
filas imensas não desanimavam e as esperas intermináveis não cansavam, nenhum sol
escaldante e nenhuma chuva fria, nada tirava o gosto doce daqueles momentos. Lembro
de um show em particular, do Sepultura, em 1994, quando choveu torrencialmente
durante a apresentação ocorrida a céu-aberto. Show? Aquilo foi um batizado. Dali em
diante não havia mais volta. Urrando e “se quebrando” com mais de trinta e cinco mil
pessoas, sob uma tempestade, ao som do Sepultura, me transformou em alguém que eu
ainda não conhecia muito bem. Para ser mais exato, dissipou alguém de mim. Junto com
meu par de tênis e minha camiseta do Ramones, lá na pedreira (pedreira Paulo
Leminski, local onde aconteceu o show) ficaram minhas dúvidas e hesitações. O alguém
que sobrou queria mais heavy metal ainda. Na verdade, esse alguém queria ser o heavy
metal.
Foi então que comecei a freqüentar os shows da cena local de heavy metal, as
apresentações de bandas brasileiras das quais pouco se lia nas revistas e quase nada se
ouvia falar nas rádios. Descobri a existência dessas apresentações junto com meu primo
Carlos, quase um irmão que, quatro anos mais velho do que eu, com seu ingresso no
curso de letras, estava conhecendo os músicos de heavy metal da cidade na
universidade. Recém chegado de Londrina, meu primo teve seu catolicismo descascado
pelas ciências humanas, e assim, músico como seu pai, começou a curtir música pesada
e a querer tocá-la com seus novos amigos. Eu acabei entrando no vácuo dessa inserção
dele nas relações metálicas curitibanas e, em pouco tempo, já tinha criado certa
autonomia no grupo. Em poucos meses eu passei da posição de primo do Carlos à de
Leozão. Eu era, agora, com quatorze anos, reconhecido como um freqüentador do
underground da música pesada na minha cidade.
226
Bem pesada, vale notar. Não se tratava mais do heavy metal bem assentado na
indústria fonográfica, tipo Iron Maiden e Black Sabbath. Nem o Sepultura eu gostava
mais. Foi nessa época que comecei a ouvir metal extremo, música muito rápida e muito
grave a qual, de certa maneira, correspondia a minha incessante busca pelo limite que a
minha relação com a música pesada poderia ter. O metal extremo aplacou minha ânsia,
minha sede pelo limite. Em geral, nunca gostei de metades, de meio-termos, e o metal
extremo preencheu totalmente minha paixão pela música. Soma-se a isso o fato de que
essa plenitude aconteceu não como um consumo de música, mas em meio a um grupo
de pessoas que estavam fazendo esse tipo de música. O meu tempo livre era gasto
totalmente nos ensaios da “galera”, nas tardes em frente à Jukebox, loja de discos da
cidade, e nas festas de fim de semana na casa de alguém do grupo. Como esse grupo
não se limitava a Curitiba, quando me era possível ainda viajava para outras cidades,
principalmente em Santa Catarina, para encontrar outra “galera” amiga ou para assistir o
show de alguma banda da qual tinha ouvido a fita demo e gostado muito.
Subjetivamente, o impacto dessa forte interação metálica me fez sentir que, sim, eu
estava sendo heavy metal, eu estava realizando aquela já ancestral paixão pela música.
Mas ainda faltava o passo mais importante: fazer esse tipo de música.
Contudo, quando minha constante presença no underground dava a entender que
a entrada em alguma banda, como vocalista, era iminente, fui obrigado a romper minhas
relações metálicas no Brasil. Eu estava com quinze anos, minha mãe havia falecido dois
anos antes e, como filho único criado de certa maneira distante do pai204, estava difícil
de agüentar a “barra pesada” da perda, principalmente porque minha vó, então com
setenta e sete anos, já morando em Curitiba, estava sofrendo muito com a perda da cria
mais nova de sua prole de seis filhos. Retrospectivamente, acho que, mesmo tendo já
tendo alguma maturidade afetiva, eu não estava suportando tal contexto lúgubre e
desolador. Vivia irritadiço e, devo confessar, “perdido”. Sabendo que minha vó teria no
meu primo e na minha tia um suporte, escapei, fugi por meio de um intercâmbio nos
Estados Unidos.
Mas o destino conspirava, os “deuses do metal” intervieram, obviamente, em
favor deles. Explico: nesses intercâmbios culturais, o jovem escolhe o país, mas não
204
Apesar de nunca terem se casado, meus pais tentaram morar juntos algumas vezes durante minha
infância, sempre sem sucesso. Eu acabava ficando com minha mãe e, como meu pai era cinegrafista,
sempre estava se mudando atrás de uma produtora ou rede de televisão que pagasse melhor. Contudo,
nunca se ausentou da sua “função paterna”. Por telefone, me proibiu de fazer a tão desejada tatuagem de
quatro demônios dilacerando um padre, quando eu tinha dez anos, coisa que minha mãe, liberal demais,
deixaria.
227
escolhe a cidade para onde vai. Esta é decidida na medida em que as vagas nas escolas
vão surgindo e qual agência, de diversos países, está na vez para receber tal vaga.
Escolhido os E.U.A, era muito provável que eu fosse estudar em alguma cidadezinha de
algum estado rural, tipo Idaho ou Arkansas. Afinal, a política do intercâmbio para este
país aconselha não mandar os jovens para estados “agitados”, como Nova Iorque ou
Flórida. Muito bem. Onde eu fui parar? No estado mais metal dos Estados Unidos, na
sua cidade mais metal, Califórnia, Los Angeles. Não sendo o caso de adentrar
pormenorizadamente na minha estada, vale sublinhar dois efeitos que ela teve em mim.
Primeiro, quando os norte-americanos me diziam que eu era “estranho” por ser
brasileiro e, ao mesmo tempo, branco, fui levado a compreender que ser branco aqui e
ser branco lá se tratava de coisas diferentes e, assim, a semente do interesse pela
antropologia foi plantada. Segundo, sim, eu me acalmei e consegui “achar-me” morando
por um ano longe de um contexto familiar pesado e dolorido, mas, de modo algum
fiquei longe da música pesada. Pelo contrário. Os shows em quase todo fim de semana,
as dúzias de cds e fitas do metal extremo norte-americano e uma convivência tão intensa
com o underground de lá quanto o daqui, fizeram com que eu voltasse sedento por mais
pancadaria musical. Eu não iria sossegar totalmente até subir em um palco, vestido em
couro preto, pra urrar toda a minha paixão pela música pesada.
Em 1997, com menos de dois meses no Brasil, eu já estava ensaiando como
vocalista de uma banda205 que se propunha a fazer um doom metal, estilo cadenciado,
explorador da verve melancólica do heavy metal. Já nos primeiros encontros, nós cinco
achamos que a banda tinha “química”. Os guitarristas apareciam com idéias de
melodias, o baterista e o baixista logo encaixavam o ritmo e, por fim, eu achava uma
textura vocal e uma letra para as composições. Em alguns meses, tínhamos cinco
canções prontas, número ideal para fazer nossa estréia nos palcos. Apresentação
arranjada com um conhecido pra dali umas duas semanas, tocaríamos em um show com
mais quatro bandas. Espera interminável. Lembro que dormi muito mal nesses dias, não
tinha fome nem atenção nas aulas do meu segundo ano do segundo grau. No dia do
show, eu literalmente tremia, não de medo, mas de ansiedade. Este era o dia em que a
minha relação com a música pesada seria testada, eu estaria colocando a prova minha
aptidão como um “verdadeiro” headbanger (o “metaleiro” já tinha ficado pra trás, junto
com a música pesada da indústria fonográfica).
205
Omito o nome da banda, ainda ativa, a pedidos do seu único membro original remanescente.
228
Manuel Bandeira; eu estava indo a museus e teatros; no cinema, outros filmes além do
Exorcista e do Bebê de Rosemary estavam chamando minha atenção; eu estava
pensando em entrar para o curso de ciências sociais para entender melhor as diferenças,
enquanto no underground era sempre mais do mesmo, era sempre mais e mais metal
extremo. Minha paixão por essa música ainda era forte, mas certo sufoco travou minha
glote, o underground não descia mais, ficava engasgado. É óbvio, o meu vocal não
encaixava mais na proposta da banda porque eu não encaixava mais naquela proposta de
vida. Eu queria mais ainda, mais do que o underground podia me dar. Por essa época,
com dezenove anos, eu já podia me considerar um veterano do metal extremo
underground. Estava na hora de sair de cena e aposentar o diabo albino.
Em 2001, de fato, entrei para o curso de ciências sociais na UFPR e, querendo
encontrar maneiras de me afastar do underground, impregnei-me com tudo aquilo que
estava presente no cotidiano de um aluno desse curso. Imbuído de boa dose de
ingenuidade, entro para o movimento estudantil, tanto no centro acadêmico do curso
quanto no diretório da universidade. Porém, irritado com a postura de “esquerda festiva”
do movimento, não demorou seis meses para eu me afastar dos “estudantes
profissionais” e me aproximar dos livros. Já no segundo semestre do curso eu consigo
uma bolsa de iniciação científica e começo a me dedicar “pra valer” às aulas. Todas
elas. Até o momento da monografia, apesar de ter entrado no curso para estudar
antropologia, a ciência política e a sociologia me interessavam tanto quanto. Minha
primeira bolsa de iniciação era com um professor de política clássica e a segunda, com
uma professora feminista (ela fazia questão de deixar isso bem claro) de sociologia do
gênero.
Entrementes, devo confessar que, apesar de estar gostando muito do curso,
aquele senso comum de “vamos mudar o mundo e ao mesmo tempo ser felizes e sem
preconceitos” que pairava no ar das conversas dos alunos de modo algum me apetecia.
Eu não conseguia tragar esse clima lânguido, aberto e democrático dos nossos
encontros. Assim como tentei me requebrar ao som do forró, do maracatu e do samba
que animavam nossas festas, mas meu corpo só tinha aprendido a chacoalhar a cabeça
para frente e para trás ou a se arremessar violentamente ao encontro de um outro.
Enfim, todas as categorias que operam nas relações dos alunos de ciências sociais me
eram estranhas. O underground do metal extremo tinha me ensinado a repudiá-las. E
claro, eu acusava e eles me acusavam. O apelido de diabo albino deu lugar aos de
“reaça”, “mão forte (do Estado)” e até mesmo “polícia”...“iihh, lá vem o polícia”, meus
230
largar o curso faltando pouco para terminá-lo e meu sossego não viria se eu não
assentasse a relação com o underground. Foi nesse contexto que eu decido estudar na
minha monografia de conclusão de curso, pela antropologia, o underground do metal
extremo em Curitiba.
Talvez o leitor possa estar achando que eu fui estudar o underground na
monografia de graduação unicamente por questões subjetivas. Não é bem assim. Meus
maiores interesses durante o curso foram a antropologia urbana, naquilo que tange a
construção espacial e relacional das identidades coletivas na urbe, e a antropologia da
música, no aporte da questão dos afetos e significados transmitidos pelos sons. O
underground do metal extremo, pensava eu, poderia ser tema privilegiado para discutir
ambas as questões em uma monografia só. Mas não há como negar que aquele plano da
pesquisa que Roberto DaMatta, no seu clássico texto sobre o “anthropological blues”,
chama de pessoal ou existencial (1978, p. 25) teria forte influência no andamento do
meu trabalho. Por mais intelectualmente preparado que eu estivesse para a empreitada e
por mais insights que eu tivesse para formular o underground enquanto um tema
antropológico, nada poderia conter minha radical familiaridade com ele, nada poderia
me imunizar da avalanche de sentimentos e lembranças ambivalentes, dos prazeres e
ódios que a pesquisa prestes a ser iniciada provocaria. Na verdade, sendo a minha
intenção elaborar algum texto que pudesse ser considerado antropológico, eu precisava
suscitar em mim o “anthropological blues”, essa transformação emocional que nos
coloca a meio caminho entre o que está sendo estudado e os meios pelos quais estamos
estudando. Para tanto, minha pesquisa teria que ter, necessariamente, algum contorno de
terapia. Uma terapia que analisasse minha relação com ambos os termos do caminho.
Afinal, eu estava encarando tanto o underground quanto a antropologia de modo
sintomático. Aquele me irritava por eu ter avaliado que ele se arraigava em mim para
além do plano consciente; esta, por sua vez, como causa e efeito de tantas dúvidas que
eu tinha acerca da possibilidade de vir a ser um antropólogo, enfrentava imperialistas,
beligerantes e autoritários mecanismos de defesa. Enfim, a pesquisa precisaria compor
em mim alguma melodia mais suave, pois, nos momentos precedentes a ela, minha
carne não criava nenhuma antropologia e muitíssimo menos blues.
E lá fui eu, de caderno e caneta nas mãos, voltar ao underground, agora
fantasiado de campo. Voltei a freqüentar os shows, a ler os zines e a ouvir as gravações,
assim como reatei minhas relações com o “pessoal”. Ia aos bares beber com eles,
passava tardes inteiras nas lojas de discos e roupas de metal da cidade conversando com
232
eles, trocar cartas com o “pessoal” de fora voltei a fazer e até mesmo, de vez em
quando, indo às suas cidades revê-los e assistir aos seus shows. Embebi-me de
underground uma vez mais. Contudo, antes de estranhá-lo, estranhei a mim mesmo
naquela situação, tentando estudá-lo. Pois, se a transformação do familiar em exótico
começa com a adoção de uma outra atitude de conhecimento para com aquilo que se
quer des-familiarizar, então eu calculei que precisava achar tais atitudes e testá-las no
campo. Quanta ingenuidade! Eu achava que essas atitudes eram práticas, materiais, por
assim dizer, e a minha volta ao underground começou a beirar a comicidade. Uma das
estratégias que adotei para construir algum distanciamento foi a de ir aos shows de
bermuda e camiseta branca, simplesmente o vestuário mais execrado pelos praticantes,
sempre em calças, jaquetas e coletes pretos. Eu era um ponto branco em um mar negro.
No momento em que mais precisava de discrição, consegui virar alvo de piada por
várias noites. Parecia que tinha uma placa de néon em cima da minha cabeça, na qual
piscava em letras maiúsculas: idiota, idiota, idiota.
Se não era cômico, era trágico. Com o objetivo de “coletar as representações
acerca do fenômeno que seus atores possuem”, marquei várias entrevistas com o
“pessoal”, com pessoas com quem, alguns anos atrás, tocávamos juntos, que riam e
choravam junto comigo, que iam à minha casa e eu ia à deles, com pessoas que eu
convivi, na acepção mais plena que esse verbo possa ter. Antes de elas acontecerem, eu
já sabia que as entrevistas não seriam nem um pouco formais. Mas eu não pensava que
elas aconteceriam do jeito que todas aconteceram: começavam em um café, no
finalzinho da tarde, e acabavam em mesas de boteco, no raiar do sol, depois de ter
passado um longo desfile de lembranças nostálgicas pelas nossas mentes, prontamente
verbalizadas e resgatadas do passado com a ajuda de muito álcool e cigarro. Não tinha
como evitar, e pra ser sincero eu nem queria, o desfecho saudosista e etílico que minhas
“entrevistas” tiveram. Porém, no dia seguinte, junto com a ressaca batia o
arrependimento, ou melhor, eu me punia com o seguinte flagelo: “e o estranhamento,
senhor Leozão, estava aonde?”. Em dias de castigos mais brandos, o açoite chicoteava
assim: “cadê seu senso de responsabilidade?”. Então, tal como o poeta Gregório de
Matos, expoente do barroco baiano do século XVII, que passava suas noites em casas
de meretrício de Salvador e amanhecia na frente da igreja para confessar seus pecados
ao padre, eu procurava minha orientadora, professora Selma Baptista, dizendo: “eu não
sirvo para isso, eu não sei estranhar”. Ela ria, tentava me acalmar dizendo que eu estava
“viajando”, que não era por aí, querendo transformar instantaneamente uma paixão em
233
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a ver
com uma aparência factual, ou com um ar de elegância conceitual, do que com sua
capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente
penetrado numa outra forma de vida (ou, se você preferir, de terem sido penetrados por
ela) – de realmente haverem, de um modo ou de outro, “estado lá”. E é aí, ao nos
convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu, que entra a escrita (2002 [1988],
p. 15).
um road movie está no fim que revela a transformação que a viagem causou nos
personagens, então no road movie antropológico a graça está no texto, quando o
personagem, agora também roteirista, revelando a transformação pela qual passou ao
leitor, completa, finalmente, a sua transformação. O fim revelador do nosso road movie
é o texto, obviamente para quem o “assiste”, mas, sobretudo, para quem o protagonizou
e o roteirizou.
De qualquer modo, se não apreciam minha analogia com os filmes, foi como um
fim que encarei a escrita da monografia. Um fim que não parava de abrir começos. Não
seria um exagero dizer que a cada parágrafo que escrevia, uma nova maneira de
desenrolar o underground pelas palavras se apresentava. A cada tentativa de enquadrá-
lo no verbo, ele extravasava pelo verbo, escapulia do texto mancomunado com as
mesmas palavras com as quais tentava prendê-lo, como que dizendo, “eu não estou só
aí”. Que força ambivalente as palavras têm, eu pensava. Ao mesmo tempo em que elas
me ajudavam a estancar esse “fluxo constante”, para usar uma das definições de Simmel
para vida, elas me mostravam que esse fluxo é muito mais ágil, veloz e múltiplo do que
eu pensava. As palavras eram o meio pelo qual procurava concertar uma imagem das
experiências e relações que tive no underground, mas também o meio pelo qual essas
experiências e relações eram desconcertadas. Uma imagem de modo algum passiva. O
reflexo que o texto oferecia, exigia reflexão. Foi dessa maneira, eu brincando de pega-
pega e o underground brincando de esconde-esconde, no pátio do texto, que eu ia
entrevendo uma outra forma de perceber esse amigo íntimo.
Em uma de suas raras entrevistas, o poeta mato-grossense Manoel de Barros diz
que uma das principais funções da poesia é o ‘(...) arejamento das palavras, inventando
para elas novos relacionamentos, para que os idiomas não morram a morte por
fórmulas, por lugares comuns’. Mas logo depois ele esclarece que essa função, antes de
ser resultado de um altruísmo do poeta que se doa pela renovação constante da sua
língua mãe, é uma conseqüência de uma necessidade íntima do artista:
Sou pela metade sempre, ou menos da metade. A outra metade tenho que desforrar nas
palavras. Ficar montando em versos, pedacinhos de mim, ressentidos, caídos por aí,
para que tudo afinal não se disperse. Um esforço para ficar inteiro é que é essa atividade
poética. Minha poesia é hoje e foi sempre uma catação de eus perdidos e ofendidos.
Sinto quase orgasmo nessa tarefa de refazer-me. Pegar certas palavras já muito usadas,
como as velhas prostitutas, decaídas, sujas de sangue e esterco – pegar essas palavras e
arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da
morte por clichê. Não tenho outro gosto maior do que descobrir para algumas palavras
relações dessuetas e até anômalas (1990, p 308).
236
Foi por ter tido uma experiência análoga a esta descrita por Manoel de Barros,
que defino a escrita da monografia como arrebatadora. A tentativa de montar um texto
antropológico sobre o underground correspondeu a uma re-montagem de mim mesmo,
demandou uma ‘catação de eus perdidos’ os quais, trazidos à palavra, pediam a
construção de ‘relações dessuetas e até anômalas’, de percepções do underground não
familiares, impensadas antes da escrita. Sendo assim, muito mais do que ter voltado a
interagir no underground, ter escrito sobre ele transformou minha maneira de encará-lo,
mais ainda, transformando minha maneira de sê-lo, transformou minha maneira de ser.
Com o prazer do refazer-me que a escrita trouxe ainda latejando, eu avaliei que não
seria uma má idéia fazer mais disso, continuar praticando esse ofício até o ponto em que
eu possa chamá-lo de profissão.
Bom, mas esse relato é do ponto de vista de quem viveu a escrita da monografia
de graduação. Tenho certeza que quem a leu dificilmente compreendeu essa
transformação. No máximo, o texto confuso, hesitante e em muitas passagens reificador,
permitia entrever os esboços de alguns eixos investigativos do underground do metal
extremo os quais, se melhor explorados, poderiam se mostrar férteis em uma
antropologia urbana e em uma antropologia da música. Creio que foi esse o tom dos
comentários das duas argüidoras da minha banca de defesa, Sandra Stoll e Ana Luisa
Fayet Sallas. Sim, elas gostaram do texto e acharam que, para uma monografia de
graduação, ele cumpria com os requisitos necessários. Mas também disseram que parte
do seu conteúdo, aquele no qual tentava apresentar uma história do rock no Brasil e do
heavy metal em Curitiba, era descartável, pois, além de não ter conexão alguma com o
tema da monografia, parecia mais jornalismo do que antropologia. Quanto à etnografia
do underground em si, disseram que ela poderia ser mais “densa” e que as análises
poderiam estar mais vinculadas ao material etnográfico. Ou seja, demandaram aquilo
que geralmente se pede de um estudante de antropologia um tanto obcecado com teoria:
“esqueça os modelos e descreva, descreva mais e melhor, você vai ver que é neste
trabalho de descrição que a teoria se faz ou se concatena”. De qualquer modo, depois
das etapas masoquistas do ritual de defesa, me disseram que o texto estava muito bom e
que eu deveria continuar estudando esse tema no mestrado, para “cozinhá-lo mais”. Pois
é, eu entrei na sala onde a defesa aconteceu certo da vontade de prosseguir meus estudos
em antropologia. Porém, mais certo ainda de que eu poderia estudar na dissertação tudo
menos o underground. O processo da monografia tinha sido intenso demais para
continuar com ele. Além do mais, pensava eu, uma monografia de graduação sobre o
237
underground do metal extremo até passa, mas uma dissertação? Será que valeria a
pena? Como eu queria sair de Curitiba para o mestrado, ainda me perguntava: onde?
Quem pode orientar esse trabalho? Estudar o underground de novo? Será?
Bom, dado que esse relato fecha minha dissertação sobre o underground do
metal extremo no Brasil, orientada pela professora Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti, apresentada como parte do meu mestrado no programa de pós-graduação em
sociologia e antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, creio que o leitor
presuma quais foram minhas respostas para as indagações do último parágrafo.
O que apresento nesta dissertação é o mais recente desdobramento dessas
minhas experiências de underground e antropologia. Com certeza, o percurso mais
difícil de cumprir em todos os aspectos. Acredito que a elaboração da dissertação
sacramentou o desenredamento do underground e da antropologia do meu corpo. A
afirmação pode soar estranha depois de todo esse relato subjetivo e passional. Mas
entendo que, como a frase do escritor argentino Juan José Saer - que serve de epígrafe a
este posfácio - aponta, eu não os encaro mais como sonhos, no sentido de abordá-los
com hesitações, obsessões ou mesmo esperanças desmedidas. Eu não os tomo mais
como os únicos objetos responsáveis pelas minhas realizações pessoais. Com a feitura
da dissertação, eu acho que percebi quais são os pontos de cruzamento dos meus
interesses com a antropologia e com o underground. Contudo, pontos, partes se tocando
e não todos se englobando. Enfim, eu acho, é sempre bom salientar a incerteza da
afirmação, eu acho que encontrei certas divisões entre mim, o underground e a
antropologia. Daí a dificuldade em realizar a dissertação: ‘para sair do sonho em que
estou, por assim dizer, enredado, devo fazer força com todo o meu corpo, porque é todo
o meu corpo que está enredado nele’.
Não se trata de um distanciamento completo. Não quero dizer que, de agora em
diante, estou livre deles, ou ainda, de agora em diante estarei me afastando deles. Pelo
contrário. Se não são mais sonhos apaixonados, são realidades apaixonantes com as
quais quero continuar me enredando, agora de maneira menos sintomática, espero eu, de
maneira menos extrema. Sendo assim, apesar de estar precisando de um pouco de
distância momentânea dos livros e do teclado, alguma dose de antropologia logo, logo
vou querer. E o underground do metal extremo? Será que é possível ter uma relação
homeopática com algo que se define pelo extremismo? Estou tentando, mas devo
confessar que ter escrito essa dissertação acendeu a vontade de ressuscitar o diabo
albino.
238
Eu, o diabo albino e a jaqueta de couro, presente de aniversário de doze anos, em algum
palco do sul do país, em 1999.
239
estranheza que alguns olhares dos sócios do clube denunciavam, não houve qualquer
atrito entre nós e eles. Talvez eles já estejam acostumados com a “invasão”. O clube
Mackenzie, já há alguns anos, recebe shows do underground do metal extremo carioca.
Seu salão social, o recinto onde foi montado o palco principal do evento, apesar de ficar
devendo em sua acústica, tem plena capacidade para abrigar um palco de médias
proporções e um público de mil pessoas confortavelmente.
A escolha do clube Mackenzie, por si só, já mostra que o show de hoje não é
como qualquer show underground. O evento foi “bem” produzido. O lugar é adequado
para a magnitude do evento, os equipamentos de palco alugados, tanto os
amplificadores quanto as luzes e a própria estrutura do palco, são confiáveis e toda a
mão de obra para operá-los durante as apresentações é profissional. Uma agência de
eventos foi contratada. Tamanha organização não é comum nos shows underground,
geralmente realizados sob condições tecnológicas precárias e organizados na
“conversa”, ou seja, naquele velho sistema do “eu convido sua banda pra tocar daqui a
dois meses e você diz que sim”. Se a banda vai aparecer ou não, se o local estará ou não
disponível no dia do evento, também acordado na “conversa”, só sabemos no dia do
show. Lembro como se fosse ontem do dia quando minha banda teve que zanzar por
Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, atrás de um boteco pra tocar, pois o bar
previamente contatado estava realizando um forró na noite acordada. Isso foi em 1997 e
eu achei tudo isso “engraçado”. É compreensível. Afinal, os músicos oferecem ao
proprietário do local, em troca do espaço, parte da renda da entrada e, claro, a garantia
de uma “boa” noite de vendas de bebida. Ambas as moedas dificilmente se concretizam.
As bandas “passam a perna” no número de pagantes e a galera vem com seus bolsos
cheios de garrafas de pinga e vodka, aquelas vendidas em garrafas de plástico. E
adicione-se a isso a possível aversão do proprietário do local quando vê um bando de
pessoas vestidas em negro, com cara de poucos amigos, ostentando imagens de diabos
nas camisetas e cruzes invertidas nos colares. Deve ser por isso que o underground
raramente estabelece referências territoriais nas cidades. A regra é o zanzar por aí em
busca de um lugar para tocar.
Mas hoje não. Hoje temos alguém por trás de toda essa “boa” organização,
observando contratos previamente assinados, cuidando da qualidade acústica das
apresentações e pressionando as bandas para que entrem no palco na hora marcada. Que
impressionante! Ler no flyer que o show começa às 14:00 e realmente, ele começa às
14:00. Não tive a oportunidade de conversar com os responsáveis pelo evento, o pessoal
do Rio Metal Works, do Rato do Rio e da fashion (agências promotoras de eventos do
underground carioca), mas meus parabéns. O que vocês conseguiram fazer hoje, pela
bagatela de doze reais por pessoa, é de se louvar.
Contudo, se na organização temos um inusitado profissionalismo, a dinâmica da
divulgação prévia do show, assim como a interação durante o evento, é totalmente
pessoal. Eu fiquei sabendo do evento porque tinha ido a outro show no mesmo clube
alguns meses atrás, Grind e Claudia souberam por amigos. Não havia cartazes
espalhados pela cidade, nem anúncios nas rádios e tevês, nem mesmo um cartaz na
única loja especializada em heavy metal da zona sul, a Hard’n Heavy, com uma loja no
Flamengo e outra filial em Ipanema. Ou seja, mesmo que o evento se diferencie pelo
tamanho e pela organização, ainda se encontra sob a maneira underground de ser notado
na cidade. Só sabe dele quem já sabe do underground. Estou começando a achar que
esse underground é quase uma maçonaria.
No show, essa pessoalidade é gritante (será que eu não percebia isso tão
nitidamente em Curitiba por, justamente, conhecer todo mundo?). Parece que todos se
conhecem, ficam trocando de roda de conversa a toda hora, falam sobre tudo, mas
242
Abaixo, uma lista das bandas participantes da pesquisa. Indicamos sua proveniência,
estilo auto-declarado, status atual (2008) da banda e uma de suas gravações (listar suas
discografias completas daria uma dissertação por si só). Este glossário serve também
como discografia utilizada na dissertação. Sendo assim, vale lembrar que não indicamos
as gravadoras, pois todas as gravações são lançadas de maneira independente.
AVEC TRISTESSE – Rio de Janeiro/RJ, doom metal. Ativa. How Innocence Dies,
CD 2004.
ETERNAL SORROW – Curitiba/PR, doom metal. Ativa. The Way of Regret, 1998.
EVICTUS – Vila Velha/ES, doom metal. Ativa. CD demo sem título, 2006.
FECIFECTUM – São Paulo/SP, black metal. Ativa. K7 ensaio sem título, 2003.
I SHIT ON YOUR FACE – Vitória/Vila Velha/ES, gore grind porn metal. Ativa.
Anal Barbeque, CD 2005.
MORDOR – Teófilo Otoni/MG, black metal. Ativa. The Remembrances of the Dark
Age, K7 2003.
MURDER RAPE – Curitiba/PR, black metal. Ativa. Evil Shall Burn Inside Me
Forever, CD 2001.
SADES – Salvador/BA, doom death metal. Ativa. Final Destination, K7 demo 2006.
SCARLET PEACE – Aracaju/SE, doom metal. Ativa. Into the Mind’s Labyrinth,
CD 2004.
URAEUS – Goiânia/GO, black metal. Ativa. Profanas Jornadas Para Almas Negras,
K7 2004.
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