Tia Zulmira e Eu PDF
Tia Zulmira e Eu PDF
Tia Zulmira e Eu PDF
Tia Zulmira e Eu
6. edio
Civilizao Brasileira
Ponte Preta, Stanislaw, 1923-1968.
P857t Tia Zulmira e eu [ilustraes de Jaguar. 6.ed.
Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975.
1. Crnicas brasileiras. I. Ttulo. II. Srie.
75-0370
CDD 869.93
CDU 869.0(81)-94
Obras de STANISLAW PONTE PRETA:
Tia Zulmira e eu; Primo Altamirando e elas; Rosamundo e os outros; Garoto
linha dura; Primeiro Festival de besteira que assola o Pas (Febeap 1);
Segundo festival de besteira que assola o Pas (Febeap 2); Na terra do
crioulo doido A mquina de fazer doido.
de SRGIO PORTO:
A casa demolida; As cariocas
Vinhetas de:
JAGUAR
Direitos desta edio reservados
EDITORA CIVILIZAO BRASILEIRA S.A.
Rua da Lapa, 120 12. andar
RIO DE JANEIRO RJ.
1975
Sumrio
Prefcio de Srgio Porto 5
Perfil de Tia Zulmira 7
Chateaes Sutis 13
Histria do Passarinho 15
A Moa que Foi a Paris 18
Beira-Mar 20
Somos Bons de Banho 22
A Arma do Crime 24
O Milagre 26
Mulher Para o Cotidiano 28
Ns, em Garrafa 30
A Arte de Presentear 32
Um Homem e Seu Complexo 34
O Seguro do Velho 36
O Cachorrinho de Dois Coraes 38
Seguros de Amor 40
Doaes Corporais 42
Os Brindes 44
O Velho Processo 46
A Vaca 48
O Dedo 50
A Menina que Suava em Cores 52
Do Inquirir os Querelantes 54
O Dia da Sinceridade 56
A Volta do Dia da Sinceridade 58
O Dia do Papai 60
Lio de Nudismo 62
O Homem da Pasta Preta 64
Vamos Acabar com Esta Folga 66
Razes de Ordem Tcnica 67
O Padre e o Busto 69
A Batalha do Leblon 71
O Noivo Organizado 74
O Pelado na Arte Plstica 76
"Queremos Ver Sangue" 78
Nos Alcantilados da Vida 80
Mentalidade de Carburador 82
Menininha Viciada 84
Caso do Marido Doido 86
O Homem que Virou Ele 89
O Passamento de "Bette Davis" 91
Triste... Muito Triste 93
Um Contista Sexy 95
Notcia de Jornal 97
Histria do Rio de Janeiro 99
O Homem, o Bonde e a Mulher 101
"Nossa Sociedade" 103
O Caso do Tatu 105
O Poliglota 107
A Papagaia 109
Mulher de Borracha 110
Mulheres Medicinais 112
Discos de Chocolate 114
Inferno Nacional 116
Colcho de Vaca 118
Ferro em Ferros 120
A Datilografa 121
Levantadores de Copo 123
O ndio 125
De Como Caar o Ratinho 127
Faquirismo e Provocao 129
Da Galanteria 131
Dos Sertes ao Matagal 133
Caju Amigo do Homem 137
Conto Policial 140
"Ao Morrer Sorrindo" 143
NOTA 6.
a
EDIO
Quando entrei pro Banco do Brasil faz muito tempo, me botaram
batendo mquina ordens de pagamento. Quem conferia minha torpe
datilografia era um sujeito grando e gozador chamado Srgio Porto. Anos
depois ele virou Stanislaw Ponte Preta e eu acabei virando ilustrador de
todos os livros dele. O que a vida! (parafraseando o nome de um bar em
Maratazes).
Infelizmente no tive tempo de curtir meu amigo; praticamente s nos
encontrvamos quando estava na hora de lanar um novo livro, e a ele me
chamava para fazer a capa e as vinhetas. "S levanto os olhos da Un-
derwoood (ou seria Olivetti?) semiporttil para pingar colrio", lamentava-
se.
Quando nio Silveira me chamou para fazer a capa e as ilustraes
desta nova edio de "Tia Zulmira", tive medo que as crnicas, que eram
publicadas na sua coluna diria, tivessem envelhecido. Mas no. Como os
sambas de Noel Rosa, ganharam, se enriqueceram com o tempo. Ningum
soube como eles, Noel e Stanislaw, captar o esprito popular carioca. Bom
Stanislaw! No viveu para ver sua profecia, feita em tom de molecagem, se
transformar em realidade, no festival de besteira que assola o pas. Numa
homenagem ao nosso amigo, resolvi ilustrar crnica por crnica de "Tia
Zulmira".
Jaguar
PREFCIO DE SRGIO PORTO
Quando os diretores da Editora do Autor me entregaram os
originais de "Tia Zulmira e Eu" para prefaciar, justificaram a
incumbncia dizendo que ningum melhor do que eu conhece a
obra e o autor. De fato, Stanislaw Ponte Preta foi criado junto
comigo e, praticamente, meu irmo de criao. Moramos na
mesma casa, tivemos a mesma infncia e muitas vezes comemos
no mesmo prato. Hoje, TIO entanto, embora vivendo ambos do
jornalismo, j no somos to ligados: raramente nos vemos,
poucos so os nossos gostos comuns e acredito que seria uma
temeridade da minha parte se continuasse companheiro
fraterno do irrequieto autor deste livro, nas suas andanas e
intemperanas por este mundo de Deus.
A EDITORA DO AUTOR foi a primeira a publicar os livros de Stanislaw Ponte Preta (N.
do E.)
Stanislaw surgiu na imprensa por uma contingncia da
prpria imprensa. Foi numa poca em que os cronistas
mundanos dominavam as pginas dos jornais, com suas colunas
cheias de neologismos e auto-suficincia. Antes disso
segundo suas prprias palavras s assinara promissrias.
Convidado, porm, para ser mais um cronista mundano, num
jornal que no se perdoava o fato de no ter, no seu corpo de
redatores, um inventor de palavras e expresses como piu-
piu", "champanhota", "fria louca", "bola branca", "flor azule
outras baboseiras, Stanislaw aceitou a incumbncia, com a
condio de no se ater aos vazios personagens do "caf-
society", estendendo sua coluna at outros setores, inclusive o
do "divertissement", que ele mais tarde classificaria como
"teatro rebolado".
Lembro-me perfeitamente dos preparativos de estria do
ento desconhecido Stanislaw. Achava que, acima de tudo,
devia ser petulante, para competir com os cronistas mundanos,
que no seu entender por mais importante que fosse a
notcia a publicar, falavam sempre de si mesmos antes de dar a
notcia. Coisas como "este colunista est seguramente
informado" ou "confirmando mais um furo deste colunista etc.
etc.
Stanislaw nesse setor foi incomparvel; ningum conseguiu
(e acredito que ningum conseguir) ultrapass-lo em auto-
importncia. E as expresses que criou acabaram ganhando
mundo, como o j citado "teatro rebolado", o "picadinho-
relations" e outras mais, sem contar o "bossa nova", que j
merece dicionrio.
Este "Tia Zulmira e Eu", que andei folheando, porque no
suporto uma leitura mais detida dos escritos do autor, talvez
porque me sinta comprometido com suas irreverncias afinal
fomos criados juntos um apanhado, com certo critrio de
seleo, das coisas que andou dizendo, das idias que andou
espalhando em vrios jornais e revistas do Rio. Sua Tia
Zulmira, senhora respeitvel que conheo e admiro, entra nele
"en passant". O autor, com sua irreverncia, no se peja de
comprometer a parenta em to levianos escritos.
Foi esta, alis, a razo do afastamento que hoje mantenho
de Stanislaw. O leitor h de por fora compreender Q
quanto comprometedora, para um jornalista modesto e que
tem esperanas de ser levado a srio, a companhia constante de
amigo to atrabilirio. E j aqui me apresso a terminar este
prefcio, temendo que ao l-lo o autor acrescente mais
uma pgina no fim do livro, para chamar o prefaciador de
cocoroca.
SRGIO PORTO
PERFIL DE TIA ZULMIRA
QUEM se d ao trabalho de ler o que escreve Stanislaw
Ponte Preta e quem me l apenas o lado alfabetizado da
humanidade por certo conhece Tia Zulmira, sbia senhora
que o cronista cita abundantemente em seus escritos. E a preo-
cupao dos leitores saber se essa Tia Zulmira existe mesmo.
Pouco se sabe a respeito dessa ex-condessa prussiana, ex-
vedete do "Follies Bergre" (coleguinha de Colette), cozinheira
da Coluna Prestes, mulher que deslumbrou a Europa com sua
beleza, encantou os sbios com a sua cincia e desde menina
mostrou-se personalidade de impressionante independncia,
tendo fugido de casa aos sete anos para aprender as primeiras
letras, pois na poca as mocinhas embora menos insipientes
do que hoje s comeavam a estudar aos 10 anos. Tia
Zulmira no resistiu ao nervosismo da espera e, como a
genialidade borbulhasse em seu crebro, deu no p.
Quando a revista "SR." recomendou uma entrevista
exclusiva com titia, conhecida em certas rodas como a "ermit
da Boca do Mato", cobriu as propostas de "Paris Match", de
"Life" e da "Revista do Rdio".
Esta a entrevista.
SENTADA em sua velha cadeira de balano presente do
primeiro marido Tia Zulmira tricotava casaquinhos para os
rfos de uma instituio nudista mantida por D. Luz Del
Fuego. E foi assim que a encontramos (isto , encontramos ti-
tia),. na tarde em que a visitamos, no seu velho casaro da Boca
do Mato.
Antiga correspondente do "Times" (1) na Jamaica, a
simptica macrbia dessas pessoas fceis de entrevistar
porque, pertencendo ao mtier, facilita o nosso trabalho,
respondendo com clareza e desdobrando por conta prpria as
perguntas, para dar mais colorido entrevista
(1) No confundir "Times" jornal ingls no plural, com "Time"
revista americana das menos singulares.
Sou natural do Rio mesmo explicou e isto eu digo
sem a inteno malvola de ofender os naturais da provncia. Fui
eu, alis, que fiz aquele verso no samba de Noel Rosa, verso
que diz: Modstia parte, meus senhores, eu sou da Vila.
E . Tia Zulmira mostra o seu registro de nascimento, feito
na parquia de Vila Isabel. Documento importante e valioso,
pois uma das testemunhas a prpria Princesa Isabel
(antigamente a "Redentora" e hoje nota de 50 cruzeiros). Ela
explica que sua me foi muito amiga da Princesa, tendo mesmo
aconselhado dita que assinasse a Lei urea (dizem que o
interesse dos moradores da Vila em libertar os escravos era
puramente musical. Queriam fundar a primeira escola de
samba).
Por que se mudou de Vila Isabel para a Boca do Mato?
indagamos.
Por dois motivos. O primeiro de ordem econmica, uma
vez que esta casa a nica coisa que me sobrou da herana de
papai e que Alcebades (
2
) no perdeu no jogo. O outro de
ordem esttica. Sa de Vila Isabel por causa daquele busto de
Noel Rosa que colocaram na Praa. de lascar!
(2) Oitavo marido de Tia Zulmira.
O que que tem o busto?
O que que tem? um busto horrvel. E se no fosse
uma falta de respeito ao capital colonizador, eu diria que um
busto mais disforme do que o de Jayne Mansfield.
Tentamos mudar de assunto, procurando novas facetas para a
entrevista, e ainda a entrevistada quem vai em frente,
mostrando um impressionante ecletismo. Fala de sua infncia,
depois conta casos da Europa, quando daqui saiu em 89, aps
impressionante espinafrao no Marechal Deodoro (
3
), que
proclamara a Repblica sem ao menos consult-la.
(3) Hoje bairro que explode.
No que Tia Zulmira fosse uma ferrenha monarquista. Pelo
contrrio: sempre implicou um pouco com a Imperatriz (achava
o Imperador um bom papo) e teria colaborado para o movimento
de 89, no fossem os militares da poca, quase to militares
como os de hoje.
Hoje estou afastada da poltica, meu amigo, embora,
devido mais a razes sentimentais, eu pertena ao PLC. (
4
)
(4) Partido Lambretista Conservador.
Fizemos um rpido retrospecto dos apontamentos at ali
fornecidos. A veneranda senhora sorri, diz que assim no vamos
conseguir contar sua vida em ordem cronolgica e vai
explicando outra vez, com muita pacincia: Nasci no dia 29 de
fevereiro (
5
) de 1872. Aprendi as primeiras letras numa escola
pblica de So Cristvo, na poca So Christovam e com
muitas vagas para quem quisesse aprender...
(5) Tia Zulmira bissexta.
O resto ns fomos anotando:
Mostrou desde logo um acentuado pendor para as artes,
encantando os mestres com as anotaes inteligentes que fazia
margem da cartilha. Completou seus estudos num convento
carmelita, onde aprendeu de graa, numa interessante troca de
ensinamentos com as freiras locais: enquanto estas lhe
ministravam lies de matrias constantes do curso ginasial, Tia
Zulmira lhes ministrava lies de liturgia. Mocinha, partiu para
a Europa, para aproveitar uma bolsa de estudos, ganha num
concurso de pernas; ento foi morar em Paris, dividindo o seu
tempo entre o "Follies Bergre" e a "Sorbonne". Nesta
Universidade, concedeu em ser mestra de Literatura Francesa,
proporcionando a glria a um dos seus mais diletos discpulos, o
qual ela chamava carinhosamente de Andrezinho.
Tia Zulmira suspende por momentos o relato de sua vida
para lembrar a figura de Andrezinho, que vocs conhecem
melhor pelo nome completo: Andr Gide.
Tia Zulmira prossegue explicando que, aos vinte e poucos
anos, casou-se pela primeira vez, unindo-se pelos laos
matrimoniais a Franois Aumert o Cruel. O casamento
terminou tragicamente, tendo Aumert morrido vtima de uma
exploso, quando auxiliava a esposa numa demonstrao de
radioatividade aplicada, que a mesma fazia para Mme. Curie.
A hoje encanecida senhora lamentou profundamente a
inpcia do marido para lidar com tubos de ensaio e, desgostosa,
mudou-se para Londres, aproveitando a deixa para disputar a
primeira travessia a nado do Canal da Mancha. Houve quem
desaprovasse essa deciso, dizendo que no ficava bem a uma
jovem de boa famlia se meter com o Canal da Mancha. A
resposta de Tia Zulmira at hoje lembrada.
O Canal da Mancha no pode manchar minha reputao.
Na minha terra, sim, tem um canal que mancha muito mais. (
6
)
(6) Mangue.
E ela acabou atravessando a Mancha mesmo, chegando em
terceiro,, devido forte cibra que a atacou nos ltimos 2 mil
metros. Fez um jacar na arrebentao da ltima onda e chegou
a Londres pra morar numa penso em Lambeth, onde viveu
quase pobre, apenas com os sustentos de uma cano que fez em
homenagem ao bairro. (
7
)
(7) The Lambeth Walk. (Existe uma verso de Haroldo Barbosa.)
Na penso, onde morava nossa entrevistada, vivia no quarto
ao lado o ento obscuro cientista Darwin, o com ela manteve um
rpido flerte. Proust (
8
), cronista mundano francs que esteve em
Londres na poca, chegou a anunciar um casamento provvel
entre Tia Zulmira e Darwin, mas os dois acabaram brigando por
causa de um macaco.
(8) Certa vez um cronista mundano, para valorizar suas prprias besteiras,
disse que Proust, antes de ser Proust, foi cronista mundano. Tia Zulmira gozou a
coisa, dizendo que Lincoln tambm foi lenhador e, depois dele, nenhum
outro lenhador conseguiu se eleger Presidente da Repblica.
Em 1913, onde estava eu? pergunta Tia Zulmira a si
mesma, olhando os longes com olhar vago.
Lembra-se que houve qualquer coisa importante em 1913 e,
de repente, se recorda. Em 13, atendendo a um convite de
Paderewski, passou uma temporada em Varsvia, dando
concertos de piano a quatro mos com o futuroso msico, que
deve a ela os ensinamentos de teoria musical.
Quando o primeiro conflito mundial estourou, ela estava em
Berlim e teria ficado retida na capital alem,, no fosse a
dedicao de um coleguinha (
9
), que lhe arranjou um passaporte
falso para atravessar a fronteira sua. Durante a I Grande
Guerra, a irrequieta senhora serviu aos aliados no Servio de
Contra-Espionagem, tornando-se a grande rival de Mata-Hari,
mulher que no suportava Zulmira e muito da fofoqueira
tentou indispor a distinta com diversos governos europeus.
Zulmira foi obrigada a casar-se com um diplomata neozelands
de nome Marah Andolas para deixar o Velho Mundo.
(9) Einstein.
interessante assinalar que este casamento, motivado por
interesse, acabou por se transformar em uma unio feliz. O casal
viveu dias esplendorosos em So Petersburgo, infelizmente
interrompidos por questes polticas. A revoluo russa de 17
acabou por envolver o bom Andolas. O marido de Tia Zulmira
foi fuzilado pelos comunistas de Lenine, somente porque
conservava o hbito fidalgo de usar monculo, sendo
confundido com a burguesia reacionria qu a revoluo
combatia. Morto Andolas,, Tia Zulmira deixou a Rssia
completamente viva, aps uma cena histrica com Stalin e
Trotsky, quando, dirigindo-se aos dois, exclamou pattica:
Vocs dois so to calhordas que vo acabar inimigos.
Dito isto, Zulmira virou as costas e partiu, levando consigo
apenas a roupa do corpo e o monculo do falecido. Chegou ao
Brasil pobre, mas digna, e a primeira coisa que fez foi empenhar
o monculo na Caixa Econmica, sendo o objeto, mais tarde,
arrematado em leilo pelo pai do hoje Embaixador Dcio de
Moura, que o ofertou ao filho, no dia em que este passou no
concurso para o Itamarati.
Zulmira estaria na misria se uma herana no viesse ter s
suas mos. O falecimento de seu bondoso pai Aristarco Ponte
Preta (o Audaz) , ocorrido em 1920, proporcionou-lhe a posse
do casaro da Boca do Mato, onde vive at hoje. Ali estabeleceu
ela o seu habitat, disposta a no mais voltar ao Velho Mundo,
plano que fracassaria dez anos depois.
Tendo arrebentado um cano da Capela Sistina, houve
infiltrao de gua numa das paredes e em nome da Arte
Zulmira embarcou novamente para a Europa, a fim de retocar a
pintura da dita. Como do conhecimento geral, ali no per-
mitida a entrada de mulheres, mas a sbia senhora, disfarada
em monge e com um pincel por debaixo da batina, conseguiu
penetrar no templo e refazer a obra de Miguel ngelo,
aproveitando o ensejo para aperfeioar o mestre. Este episdio,
to importante para a Histria das Artes, no chegou a ser
mencionado por Van Loon, no seu substancioso volume, porque,
inclusive, s est sendo revelado agora, nesta entrevista.
Nessa sua segunda passagem pela Europa, Tia Zulmira ainda
era uma coroa bem razovel e conheceu um sobrinho do Tzar
Nicolau, nobre que a revoluo russa obrigou a emigrar para
Paris e que, para viver, tocava balalaika num botequim de m
fama. Os dois se apaixonaram e foram viver no Caribe, onde
casaram pelo facilitrio. O sobrinho do Tzar, porm, no era
dado ao trabalho e Tia Zulmira foi obrigada a deix-lo, no sem
antes explicar que no nascera para botar gato no foguete de
ningum.
Voltou para o Rio, fez algumas reformas no casaro da Boca
do Mato e vive ali tranqilamente, com seus quase 90 anos,
prenhe de experincia e transbordante de saber. Vive
modestamente, com o lucro dos pastis que ela mesma faz e
manda por um de seus afilhados vender na estao do Mier. No
seu exlio voluntrio, est tranqila, recebendo suas visitinhas,
ora cientistas nucleares da Rssia, ora Ibrahim Sued, que ela
considera um dos maiores escritores da poca. (
10
)
(10) Aqui no ficamos bem certos se Tia Zulmira estava querendo gozar
Ibrahim, ou se estava querendo gozar a poca.
A velha dama pra um instante de tecer o seu croch,
oferece-nos um "Fidel Castro" (
11
) com gelo. uma excelente
senhora esta, que tem a cabea branca e o olhar vivo e
penetrante das pessoas geniais.
(11) Cuba Libre sem Coca-Cola.
CHATEAES SUTIS
NO dia em que forem publicadas as "Zulmirianas", isto , as
obras completas de Tia Zulmira, assim como tudo o que j se
escreveu sobre ela, mister levar em considerao as opinies
emitidas pela sbia senhora, durante a hora seguinte ao seu
breakfast l no casaro da Boca do Mato, ocasio em que a
nosso ver a sbia macrbia est mais brilhante.
Ainda ontem, aps receber a comunicao de que haveria
"me-benta" ao caf, atrao qual nunca nos furtamos,
estivemos presentes ao breakfast, comparecendo tambm o
insuportvel Mirinho, cujo chegava naquele momento (eram
oito da matina) de uma festinha ntima na casa de Mariazinha
Umas & Outras, hostess contumaz do Primo, que costuma
organizar semanalmente concorridas reunies de "Maconha
Danante".
Aps a frugal refeio, a experiente senhora citou algumas
coisas que a esto incomodando, ultimamente. Depois fez ver
que existem certas coisas que chateiam a gente de maneira to
sutil que, raramente, a gente d pelo motivo da chateao. No
so coisas como dor de dente, Oscar Bloch ou calo inflamado,
que estas so coisas s quais a gente se d chateao,
consciente de sua incmoda existncia.
So coisas sutis. E a ermit da Boca do Mato passou a citar:
"Cheiro de farmcia", "mulher gorda em garupa de lambreta",
"me batendo em filho pequeno e que ainda no tem
compreenso bastante para saber por que est apanhando",
"damas de profusas rotundidades posteriores vestidas de calas
compridas" etc. etc.
Tais coisas chateiam a gente, mas a gente s percebe que
elas esto chateando, muito depois de j estar chateada
explicou a velha.
E, como pedssemos a Tia Zulmira para continuar citando,
ela recusou o clice de "Correinha" que Mirinho oferecia,
pensou um pouquinho e lascou mais estas, algumas das quais ela
ouviu de outras pessoas entendidas no assunto:
"Sujeito vestido de rabe no mesmo elevador em que a gente
viaja", "declarao de autoridade carioca dizendo que o servio
de guas vai ficar normalizado", "velha de batom", "tango",
rdio do vizinho", "caminho-pipa parado em frente casa de
ministro", "televiso ligada na sala", "polticos dos dois lados",,
"conversa de estrangeiros, quando a gente no manja a lngua
deles" etc. etc.
E, antes de se levantar da mesa, Tia Zulmira pensou um
pouquinho e concluiu:
Outra coisa que me chateia muito triciclo na contramo.
HISTRIA DO PASSARINHO
O QUE vocs passaro a ler um lindo conto escrito por Tia
Zulmira, nossa veneranda parenta e conselheira. Trata-se de obra
para a literatura infantil, qual a sbia e experiente senhora vem
se dedicando agora, aps o convite para participar de um
concurso de histrias infantis promovido por um programa de
televiso. Cremos que no necessrio acrescentar que a boa
senhora tirou o primeiro lugar. Mas, passemos ao conto:
"Era uma vez uma mocinha muito bonita, que morava num
lugar chamado Copacabana. Era uma mocinha muito prendada e
com muito jeito para as coisas. Estudiosa e obediente,
freqentava sempre o programa de Csar de Alencar, ia ao
Bobs e adorava 'cuba-libre'. Lia muito e gostava, principal-
mente, da 'Revista do Rdio' e da 'Luta Democrtica'.
Todos elogiavam a beleza da mocinha. Ela tinha cara bonita,
olhos bonitos, pele bonita, corpo bonito, pernas bonitas, figura
bonita. Era toda bonita. Apesar disso, no era feliz, a mocinha.
Ela sonhava com uma coisa, desde pequena queria entrar
para o teatro. Sua me sempre dizia que no valia a pena, que
ela podia ser feliz de outra maneira, mas no adiantava. O sonho
da mocinha bonita era entrar para o teatro. S pensava nisso e
colecionava fotografias de Virgnia Lane, Sofia Loren, Nlia
Paula e Marilyn Monroe.
Um dia, a mocinha estava muito triste, porque no conseguia
ver realizado o seu ideal, quando um passarinho chegou perto
dela e perguntou:
Por que que voc est triste, mocinha? Voc to
bonita. No devia ser triste.
Eu estou triste porque quero entrar para o teatro e no
consigo respondeu a mocinha.
O passarinho riu muito e disse que,, se fosse s por isso, no
precisava ficar triste. Ele havia de dar um jeito. E de fato, no dia
seguinte, passou voando pela janela do quarto da mocinha e
deixou cair um bilhetinho que trazia no bico. Era um bilhetinho
que dizia: 'Fila 4, Poltrona 16.'
A mocinha foi e num instante conheceu o empresrio do
teatro que, ao v-la, se entusiasmou com sua beleza. Foi logo
contratada e, j nos primeiros ensaios, todos elogiavam seu
desembarao. Ela ensaiou muito mas no contou nada pra me
dela. Somente na noite de estria que, antes de sair, chegou
perto da me e contou tudo. A me ficou triste ao ver a filha
partir para o estrelato, mas ela estava to feliz que no a quis
contrariar.
E foi bom porque a sua filha fez sucesso. Foi muito
ovacionada; todo mundo aplaudiu. Ela voltou para casa
contentssima e, quando ia metendo a chave no porto, ouviu
uma voz dizer:
Meus parabns. Voc um sucesso.
A ela olhou pro lado espantada e viu o passarinho que a
ajudara, pousado numa grade. Ela notou que o passarinho
dissera aquilo em tom amargo e quis saber:
Passarinho, voc agora que est triste. Por qu?
Foi a que o passarinho explicou que no era passarinho no.
Era um prncipe encantado, que uma fada m transformara em
passarinho.
Oh, coitadinho! exclamou a mocinha que acabara de
estrear com tanto sucesso. O que que eu posso fazer por
voc?
O passarinho ento contou o resto do encantamento. A fada
m fizera aquilo com ele s de maldade. Para ele voltar a ser
prncipe outra vez, era preciso que uma mocinha bonita e feliz o
levasse para sua casa e o colocasse debaixo do travesseiro No
dia seguinte o encanto findava.
Mas eu sou uma mocinha feliz. E foi voc mesmo,
passarinho, que disse que eu era bonita. Voc e todo mundo.
E dizendo isso, apanhou o passarinho e entrou em casa com
ele. Ajeitou-o bem, debaixo do travesseiro e, cansada que estava
das emoes do dia, adormeceu.
No outro dia de manh aconteceu tal e qual o passarinho
dissera. Quando a mocinha acordou havia um lindo rapaz
deitado a seu lado. Era o prncipe.
Esta, pelo menos, foi a histria que a mocinha contou pra
me dela, quando a velha a encontrou de manh, dormindo com
um fuzileiro naval. Que, alis, s no casou com a mocinha,
porque j tinha um compromisso em Botafogo."
A MOA QUE FOI A PARIS
ERA uma vez uma mocinha. No era dessas mocinhas de
culos no. Nem dessas que tm espinhas e as espinhas custam
mais a sair do rosto e por isso elas vo sendo sempre as
primeiras no colgio. Sim, porque estranha coincidncia
mocinha que tira primeiro na turma sempre espinhenta.
Mas, voltando mocinha desta histria. Ela no tinha
espinhas e nem usava culos, tambm no precisava desses
porta-seios que tm espuma de borracha para impressionar o
eleitorado. Ela era muito bem feitinha de corpo. To bem
feitinha que, um dia, sem que a famlia dela soubesse nem nada,
saiu premiada pra rainha de j nem me lembro mais o que, com
voto comprado.
Ela explicou depois que quem comprou os votos dela foi um
"amiguinho".
A mocinha usava saia balon, sabia danar rock e falava um
pouco de ingls (aprendido com oficiais de um porta-avies que
esteve aqui), mas o forte dela era ser society. Ia nesses lugares
bacanos, com deputados e gente bem, por causa de que ela era
um bocado querida dessa gente.
Por isso, foi uma surpresa para a famlia dela quando ela
resolveu deixar essas futilidades pra l e se dedicar arte. Quem
de artimanha nunca se d bem com arte a gente costuma
ouvir dizer. Mas com a mocinha, esta de que estamos falando,
parecia ser diferente.
Ela chegou em casa e comunicou:
Vou a Paris, aprender violino.
A famlia botou as mos na cabea (isto , o pai botou a mo
na cabea, a me botou a mo na cabea, o irmo mais velho
que j manjava as coisas botou a mo na cabea e diversas
tias botaram a mo nas respectivas cabeas). Mas no adiantou
nada, por causa de que ela manteve a coisa.
Quando quiseram saber onde ela ia arranjar dinheiro para a
viagem e o curso de violino, ela explicou que ningum precisava
se preocupar; o tal "amiguinho" que adorava violino ia
financiar tudo.
Ento ela foi a Paris. Por estranha coincidncia o amiguinho
foi tambm, dias depois, e ela voltou feliz da vida. No
aprendeu a tocar bulhufas
mas, em compensao, o filhinho que ela trouxe de l,
chama-se Violino. Numa homenagem.
BEIRA-MAR
POR que ser que tem gente que vive se metendo com o que
os outros esto fazendo? Pode haver coisa mais ingnua do que
um menininho brincando com areia, na beira da praia? No
pode, n? Pois estvamos ns deitados a doirar a pele para
endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decbito ventral
(no o sol, mas ns) a ler "Maravilhas da Biologia", do
coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada
se meteu com uma criana,, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho
j estava com um balde desses de matria plstica cheio de
areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que
que o menininho ia fazer com aquela areia.
O menininho fungou, o que muito natural, pois todo
menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia
jogar a areia num casal que estava numa barraca l adiante. E
apontou para a barraca.
Ns olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao
menininho. L, na barraca distante, a gente s conseguia ver
dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela
sombra, por trs da barraca. Eram dois pares, dizamos, um de
pernas femininas, o que se notava pela graa da linha, e outro
masculino, o que se notava pela abundante vegetao capilar, se
nos permitem o termo.
Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles
esto se abraando e se beijando-se muito explicou o
menininho, dando outra fungada.
O intrometido sorriu complacente e veio com lio de moral.
No faa isso, meu filho disse ele (e depois viemos a
saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a
mo pela cabea do garotinho e prosseguiu: Deixe o casal em
paz. Voc ainda pequeno e no entende dessas coisas, mas
muito feio ir jogar areia em cima dos outros.
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda
insistiu:
Deixa eu jogar neles.
O camarada fez meno de lhe tirar o balde da mo e foi
mais incisivo:
No senhor. Deixe o casal namorar em paz. No vai
jogar areia no.
O menininho ento deixou que ele esvaziasse o balde e disse:
T certo. Eu s ia jogar areia neles por causa do senhor.
Por minha causa? estranhou o chato. Mas que casal
aquele?
O homem eu no sei respondeu o menininho. Mas
a mulher a sua.
SOMOS BONS DE BANHO
SE fosse reportagem dessas revistas que ficam por a
batalhando pela exaltao do medocre, ainda no levaramos a
srio. Mas trata-se de mensrio norte-americano, dos mais
metidos a besta. Nele que est a reportagem sobre os costumes
da higiene entre os povos, reportagem que chega a sur-
preendentes (l pra eles, americanos) concluses. Segundo o que
juntaram as estatsticas, entre os povos ditos civilizados, apenas
os sul-americanos e assim mesmo no em todos os pases
desta Amrica possuem um balano de mais de 50 por cento
da populao que se d ao hbito do banho dirio.
Vejam vocs que bonitinho: o Brasil figura na coisa. A
gente, isto , metade da gente se d ao luxo do banho dirio,
num pas onde as cidades principais sofrem de permanente falta
dgua. No lindo?
Voc a, toma banho todo dia? Sentiu bem! A senhora l,
tambm se d ao ensaboado de 24 em 24? Perfeito, madame.
Alis, basta olhar para ver que a senhora t limpinha.
Mas h os que se fazem de "estrangeiros", isto , falcatruam
o banho dirio, prejudicando a estatstica a favor do Brasil. O
mensrio no diz se a gente tambm campeo mundial de
banho, mas faz referncias muito elogiosas ao povo brasileiro.
Logo se no tivesse essa turma a que faz que esqueceu de tomar
banho, ou certas pessoas preguiosas, que tomam o chamado de
assento, que diga-se a bem da verdade no banho dos
mais prdigos em remover impurezas; se no existisse essa
turma repetimos e mais outros que escondem sob o olor
forte das essncias a verdade odorfica do suor, o Brasil bem que
poderia guardar mais este honroso ttulo universal: Campeo
Mundial de Banho.
E isto, preciso que se frise mais uma vez, estatstica sria,
feita pelos norte-americanos, que, depois de chiclete e dlares,
tm adorao pelas estatsticas. Agora, uma outra coisa preciso
fazer sentir: no nos iludamos a respeito de to decantada
higiene. Afinal, higiene como mulher... quanto mais, melhor.
E tem muita gente pela a que no faz jus ao ttulo.
Nosso querido Primo Altamirando, por exemplo, arranjou
uma namorada que s vai ao banheiro para outros afazeres.
Banho com ela em suaves prestaes mensais. Mas o nefando
parente sutil. Noutro dia chegou l na casa dela com um
embrulhinho e disse: "Trouxe um presente para voc usar no
pescoo. Adivinhe o que ." E quando a coitada, na voz de ser
para usar no pescoo, disse que devia ser um colar, Mirinho deu
uma gargalhada e falou: "Errou, sua boba. um sabonete."
A ARMA DO CRIME
FOI em So Paulo. Aqui o jornal diz que Isaura Specca Pinto
registrou a queixa na Polcia, depois de ter recebido socorro
mdico. Fora atacada pelo seu amsio (em notcia de fato
policial o distinto sempre amsio e nunca amante. um truque
l dos coleguinhas). O amsio o vigia de obra Herculano de
Sousa Martins.
Para que vocs no fiquem imaginando que a gente inventa
essas coisas, vo aqui outros dados importantes. O casal vivia
(vai no passado porque a reconciliao vai ser difcil) na Rua
"L", nmero 4-B, em Vila Medeiros, jurisdio da 19.
a
De-
legacia.
Agora o caso. Foi assim: Herculano tinha l suas razes para
ofender Isaura com palavras de baixo calo (xingamento de
nome de me, provavelmente) e Isaura achava que no ficava
bem o amsio estar espinafrando assim seus antepassados. Vai
da palavro vai, palavro vem pegou a arma que estava
escondida debaixo da cama e agrediu Herculano. Este, mais
robusto pouquinha coisa, desarmou-a e passou a usar a arma
contra ela, e com tal apetite que Isaura foi parar no Hospital e
Herculano deu no p.
Mas, nas suas declaraes em Distrito, onde foi aberto
inqurito j relatado e enviado ao Frum, Isaura foi mais
explcita. Aqui est como saiu no jornal:
"Isaura acusa o seu amsio Herculano de t-la agredido a
golpes de urinol, no interior de sua residncia. Esclareceu que
quem empunhava o vaso noturno (bonito nome para uma valsa:
vaso noturno), a princpio, era ela. Mas Herculano, mais forte,
desarmou-a (diria melhor se dissesse 'desurinolizou-a') e passou
a desferir seguidos golpes, ferindo-a bastante."
Vejam vocs que coisa prosaica. E ainda h quem diga que
amantes vivem melhor que cnjuges. A senhora a, madame, j
imaginou se isto acontece com a senhora? J imaginou depois,
no Frum, o interrogatrio, com o Juiz empunhando a arma do
crime? Que coisa prosaica, no , dona?
Como disse? Com a senhora no haveria perigo? Por qu?
Debaixo da cama no"tem vaso no-
turno? Ah tem? J compreendemos, madame. Em cima da
cama que no costuma ter ningum.
Antes assim, dona. Melhor sozinha com o vaso noturno do
que mal acompanhada.
O MILAGRE
NAQUELA pequena cidade as romarias comearam quando
correu o boato do milagre. sempre assim. Comea com um
simples boato, mas logo o povo sofredor, coitadinho, e
pronto a acreditar em algo capaz de minorar sua perene
chateao passa a torcer para que o boato se transforme numa
realidade, para poder fazer do milagre a sua esperana.
Dizia-se que ali vivera um vigrio muito piedoso, homem
bom, tranqilo, amigo da gente simples, que fora em vida um
misto de sacerdote, conselheiro, mdico, financiador dos
necessitados e at advogado dos pobres, nas suas eternas
questes com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na
expresso do termo: fizera de sua vida um apostolado.
Um dia o vigrio morreu. Ficou a saudade morando com a
gente do lugar. E era em sinal de reconhecimento que
conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara. Era
um quartinho modesto, atrs da venda. Um catre (porque em
histrias assim a cama do personagem chama-se catre), uma
cadeira, um armrio tosco, alguns livros. O quarto do vigrio
ficou sendo uma espcie de monumento sua memria, j .que a
Prefeitura local no tinha verba para erguer sua esttua.
E foi quando um dia... ou melhor, uma noite, deu-se o
milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do
padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma
vela para ler seu brevirio, apareceu uma vela acesa.
Milagre!!! quiseram todos.
E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o filho
doente, logo se ajoelhou do lado de fora do quarto, junto
janela, e pediu pela criana. Ao chegar em casa, depois do
pedido conta-se a senhora encontrou o filho brincando,
fagueiro.
Milagre!!! repetiram todos. E o grito de "Milagre!!!"
reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no
ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo comearam
as romarias.
Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto
canto e ficava ali plantado, junto janela, aguardando a luz da
vela. Outros padres, coronis, at deputados, para oficializar o
milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em
que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela... a vela se
acendia e comeavam as oraes. Ricos e pobres, doentes e
saudveis, homens e mulheres, civis e militares caam de
joelhos, pedindo.
Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os
casos de doenas curadas, de heranas conseguidas, de triunfos
os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos
passaram tambm as romarias. Foi diminuindo a fama do mi-
lagre e ficou, apertas, mais folclore na lembrana do povo.
O lugarejo no mudou nada. Continua igualzinho como era,
e ainda existe, atrs da venda, o quarto que fora do padre.
Passamos outro dia por l. Entramos na venda e pedimos ao
portugus, seu dono, que vive h muitos anos atrs do balco, a
roubar no peso, que nos servisse uma cerveja. O portugus,
ento, berrou para um pretinho, que arrumava latas de goiabada
numa prateleira:
Milagre, sirva uma cerveja ao fregus! Achamos o
nome engraado. Qual o padrinho
que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o
portugus explicou que no, que o nome do pretinho era
Sebastio. Milagre era apelido.
E por qu? perguntamos.
Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do
padre.
MULHER PARA O COTIDIANO
QUEM pede conselho sobre mulher est positivamente
pedindo um conselho intil. Isto no foi descoberta nossa,
embora tivssemos chegado mesma concluso na segunda
namorada (sempre fomos muito precoce). A esta concluso, em
no sendo a pessoa completamente desligada da tomada, fcil
de se chegar, como fcil descobrir com o tempo que existem
mulheres que amam sem o menor sentimento de fidelidade,
mulheres que so fiis sem amar e, para complicar julgamentos,
nenhuma mulher igual com dois homens diferentes, nem ne-
nhum homem ama igual duas mulheres.
Assim, no sabemos por que tem gente que pede conselho
sobre mulher. Mas o f ato que tem gente que pede. Um distinto
escreve para a coluna "Da Correspondncia", mantida pelo
brilhante colunista Stanislaw Ponte Preta, e no somente
brilhante como tambm cheio de outras virtudes, pessoa que, por
coincidncia, a mesma que ora escreve estas mal traadas; um
distinto escreve repetimos para pedir inteiro anonimato
(embora coloque nome e endereo na carta, a ttulo de
confiana) e pedir tambm uma opinio sobre a mulher que ama,
que infiel e que diz ele , apesar disso, tem por ele muito
amor.
Noutro dia, um outro contou a mesma histria e na mesma
base do "o que devo de fazer". Explicamos a ele que mulher que
ama s trai por se sentir diminuda, por incerteza ou por no
confiar em si mesma diante do seu amor. Logo, a traidora mui-
to mais coitada do que o trado. Claro, existe muita sutileza
envolvendo a questo e preciso que o cavalheiro no seja burro
para poder morar no assunto.
Difcil dar conselho. Difcil e intil. Em todo caso, como o
leitor pediu, no custa nada ajudar, contando esta historinha:
Ontem, quando descemos garagem do prdio para tomar o
carro, mal entramos no mesmo, notamos que o desgraado no
pegava. Por mais que apertssemos o arranque, este virava,
virava e o carro neca. O porteiro um portugus com velei-
dades de mecnico ajudou no que pde. Levantamos o capo,
puxamos fios, limpamos velas... e nada. Afinal, depois de quase
duas horas de luta, o carro sem maiores explicaes
pegou. Nem por isto ficamos menos aborrecido, pois o enguio
nos fez perder diversos compromissos. Foi ento que, para nos
consolar, o portugus cocou a cabea e sentenciou: ", doutor.
Carro pra quem tem dois." Pois est a, amigo. Use esta
filosofia com mulher. Quando uma enguiar, voc vai na outra.
NS EM GARRAFA
VNHAMOS ladeira abaixo, comendo umas goiabinhas,
quando surgiu na nossa frente um cavalheiro bem-posto, a sorrir,
de braos abertos. Como somos bom fisionomista e reparamos
logo que o distinto no era pessoa da nossa intimidade, julgamos
tratar-se de um batedor de carteira.
Felizmente no era. Era um industrial. Deu o cartozinho e
passou a explicar por que cercara este valoroso escriba. Primeiro
explicou que a indstria dele era embriagante e, antes que
tivssemos qualquer atitude de espanto, esclareceu que fabricava
bebidas alcolicas.
De surpresa em surpresa disse que precisava de ns:
Para beber? perguntamos, j armando uma desculpa
em defesa do fgado.
Felizmente no era. O bem-posto cavalheiro, falante como
um animador de auditrio, afirmou que se quisssemos beber s
era um prazer oferecer a bebida, mas que vinha com outra
inteno. Sua firma vai lanar lia praa um conhaque nacional (e
ante a nossa cara de enjo botou vrgula na frase e jurou que no
cachaa vagabunda fingindo de conhaque no. conhaque no
duro).
Mas... a firma vai lanar um conhaque e o departamento de
promoes... vejam vocs, at pra vender essas coisas eles tm
departamento de promoes ... o tal departamento lembrou que
seria timo colocar o nome de Stanislaw Ponte Preta na
beberagem.
Ora que coisa! Tanto rodeio para no fim vir propor que
fssemos padrinho de conhaque nacional. Claro que no.
Mas ns pagamos insistiu o industrial.
Pagamos no. Pagariam. E no fariam mais do que a
obrigao dissemos ns, j a nos imaginar nas prateleiras dos
botecos desta Buracap, devidamente engarrafado.
Agora vejam se fica bonito. Uma personalidade marcante
como a nossa virar motivo de discusso em casa. A mulher
dizendo para o marido, que chegou meio sobre o alcantilado
para o jantar: "Chegou atrasado, no , cachorro? E ainda
chega com bafo de Stanislaw Ponte Preta."
Se isto proposta que se faa ao guia espiritual de milhares
de leitores universais! Como que amos ser respeitados depois
de concordar com a proposta? Estamos aqui a imaginar um pai a
dizer para a filha: "Voc a vergonha da famlia, est viciada
em Stanislaw Ponte Preta."
No, de jeito nenhum. Que horror teramos ao saber que um
pilantra qualquer poderia chegar no balco de um frege e berrar
para o taberneiro, em noite de frio: "Me d um Stanislaw a pra
me esquentar."
A ARTE DE PRESENTEAR
DISTINTA dama que se assina Helena Brazil, e que aos
depois acrescenta "conselheira de compras", escreve flor dos
Ponte Pretas para explicar que desconta pra Instituto atravs de
uma profisso bossa nova. Dona Helena , conforme est escrito
depois do nome, "conselheira de compras". Diz ela, em sua
carta:
"Poucos so os homens de negcios que realmente sabem
escolher artigos femininos para presentes (ela generaliza na base
do 'homens de negcios' , porque fica chato botar a expresso
'coronel de madame'). A verdade que somente trs entre cada
dez executivos tm o bom-gosto necessrio para determinar
cores e modelos que faro as presenteadas felizes com as
lembranas recebidas."
De fato, ns somos um executivo legal, mas tem uns
coronis pela a que so de amargar para dar presente a mulher.
Noutro dia, membra de nossa frota estava se queixando porque
um dos seus mais constantes galanteadores j enviou para sua
residncia quatro jacas de manga e fosse ela comer a
"lembrancinha", estaria at agora de cama.
Mas sigamos com a explicao de Dona Helena Brazil
conselheira de compras. Diz ela: "Para aqueles que no tm
tempo, nem geito de enfronhar-se na moda (aqui abrimos um
parntesis para explicar a vocs que o jeito de Dona Helena
com "G", embora os jeitosos,, de um modo geral, tenham jeito
com "J") h um mtodo infalvel de acertar sempre na escolha.
Quer saber? Muito simples : selecione uma boa casa de modas e
pea o nosso conselho desinteressado."
Quer dizer, vocs moraram na jogada, no? Aqueles que no
tm o "geito" para presentear mulher recebero conselhos
desinteressados de Dona Helena Brazil, que cobra no assunto.
Coronis curibocas, que esbanjam dinheiro sem impressionar
aquelas que desejam impressionar, podero, mesmo, recorrer
missivista. Um camarada desses broncos, que olham mulher e
pensam que a coisa vai simplesmente laando a boa com um
colar de prolas, muitas vezes se estrepa.
Seu Lucindo, nordestino que no Nordeste Coronel de
araque, da poltica, e aqui no Rio coronel mesmo, de
mulher, certa vez ouviu uma dama dizer que adorava sabonete
francs. Entrou numa perfumaria e mandou embrulhar vinte cai-
xotes de sabonete francs para presente. A moa est se
ensaboando at hoje, sem tempo para sair com seu Lucindo.
Consultando Dona Helena Brazil, estas mancadas esto por
fora. Os sem-"geito" no enviaro aparelhos de barba para suas
amadas, no vo ferir a suscetibilidade das moas com jacas de
manga, nem fazer como fez um senador do PSD, que mandou
um cavalo puro-sangue para uma show-girl que mora em
apartamento de quarto e sala.
Consultem, portanto, Dona Helena. Ns que no
precisamos, Dona Helena. A carta que a senhora enviou,
queremos crer, para os outros. Sim, porque quando queremos
presentear mulher ns nos enrolamos em papel celofane e
mandamos os Correios despachar-nos com frete a pagar para a
casa da felizarda.
UM HOMEM E SEU COMPLEXO
ERA um homem. Era um desses homens que no resistem;
pergunta: "Voc um homem ou um rato?" Dizemos que era
dos que no resistem porque, sem dvida, quando inquirido, no
saberia o que responder. E isto mais doloroso porque sua
dvida no era a de que no pudesse ser um homem, e sim* a de
que talvez no chegasse a ser um rato.
Sim, companheiros, o homem era um poo de complexos,
figurinha capaz de dar dor de cabea em aspirina, tipo que se
considerava to inferior que tinha vergonha de assinar o prprio
nome. E para isto tambm tinha uma explicao vivel: cha-
mava-se Eugnio e era incapaz na sua infinita modstia de
considerar o prprio "Eu", quanto mais ser simplesmente um
"Gnio".
Vai da, Eugnio ficou sendo Z. No era Z, com "Z" e "E",
mais um acento (ou assento? Botamos os dois, Osvaldo, para
que voc escolha o certo). Eugnio assinava s a letra "Z" na
certeza de que esta que lhe servia, por ser a ltima do alfabeto.
Tantos eram os complexos de "Z" que,, l um dia, algum
lhe deu dinheiro para consultar um psicanalista. Morem no
detalhe de algum lhe dar dinheiro. Tudo porque "Z" no andava
com cruzeiros no bolso, convencido de que, se assim o fizesse,
desvalorizaria ainda mais a nossa moeda.
Mas como ficou dito pagaram a consulta e "Z" foi ao
psicanalista. O mdico mandou que ele deitasse naquele diva
regulamentar e o paciente deu a primeira prova de seu estado de
esprito ao responder que se consultaria de p, pois no se sentia
com direito de ficar deitado, enquanto o outro trabalhava.
O psicanalista achou aquilo muito estranho, percebeu que
estava diante de um caso de complexo de inferioridade incurvel
e deu umas plulas. Mas deu sem nenhuma esperana porque
"Z" era to sincero em seus complexos que chegou a confessar
que s se sentia bem numa lata de lixo, ocasio em que pagou a
consulta e se atirou pela lixeira do edifcio, com um sorriso de
superioridade.
Mas mesmo o lixo tem seu valor,, embora a Limpeza Pblica
no saiba. "Z" foi piorando de tal forma que acabou achando que
nem como lixo prestava. E um dia deu-se o trgico e
amargo fim: seu complexo chegou ao mximo. Ia sair de casa e,
para colocar a gravata, foi at o espelho.
Qual no foi a sua surpresa? Chegou diante do espelho...
olhou... e no viu mais ningum.
O SEGURO DO VELHO
VOCS que nos lem sabem que em sociedade tudo se sabe.
No adianta o Medeiros Neto usar batina de padre, o Ibrahim
Sued usar caneta-tinteiro, o Augusto Schmidt escrever livro de
poesia, o Tenrio sorrir com cara de bonzinho, nada disso
adianta, porque em sociedade tudo se sabe.
Por exemplo, aqui est a notcia do que ocorreu em So
Paulo com o cidado de origem italiana Cario Magliani cujo,
coitado, pensou que pudesse falcatruar impunemente e imaginou
um golpe dos mais legais. Cario Magliani tinha um tio que
tambm era Cario Magliani, mas que estava pela bola 7. Homem
j velho, o Cario tio vinha sofrendo de diversos males, inclusive
cardacos.
Que fez Cario Magliani sobrinho, que era forte como um
touro? Pois fez um seguro de vida de alguns milhes, colocando
como beneficirio em caso de morte o tio em pandarecos.
Isto pensaro vocs no tem nada demais. Mas pensaro
vocs que so apressados. Cario Magliani pensou de outro jeito.
Mancomunado segundo se suspeita com um
empregado da companhia de seguros, aproveitou o fato de seu
nome e o nome do tio serem iguais, para rasurar o contrato de
seguro, invertendo a coisa. Isto , ele, que forte e saudvel,
passou a ser beneficirio do tio, que estava com o p na cova, s
aguardando um empurro amigo.
Foi um golpe fcil. Bastou mudar as datas de nascimento
porque, no mais, ambos os Carlos eram naturais de So Paulo,
eram residentes no mesmo local, tinham a mesma profisso,
enfim, estava tudo facilitado. Mas (a que est o chato), em
sociedade tudo se sabe. Agentes da companhia de seguros
descobriram a marmelada e esto processando o rapaz, coisa que
chegou ao conhecimento do tio. E este, coitado, que era cardaco
e castigado pelo tempo, no resistindo ao vexame do sobrinho
que criava, faleceu em dia da semana passada, em sua resi-
dncia.
Aparentemente, esta histria no tem nada demais.
Vigaristas h em toda parte, tentando os mais complicados
golpes. Ledo engano, companheiro, ledo
engano. Aqui a notcia diz que o velho morreu abalado com
o seguro que o sobrinho fez.
Eis portanto que, pela primeira vez na Histria, em vez do
seguro morrer de velho, foi o velho que morreu do seguro.
O CACHORRINHO DE DOIS CORAES
>
QUEM informa o Departamento de Clnica Operatria e
Cirurgia Experimental: operaram cinco cachorrinhos do tipo
street dog e todos eles, numa experincia coroada de xito,
passaram a viver com dois coraes. A operao feita pelos
soviticos, com tanta celeuma, acaba de ser feita aqui no Rio
tambm e quatro cachorrinhos um deles morreu vivem
perfeitamente com oito coraes.
Perfeitamente? h de estar Deus perguntando.
Perfeitamente, no. Um dos cachorrinhos com dois coraes
fugiu do canil e trota solto pelas ruas do Rio, pulsando seus dois
coraes e isto no bom para ele. Tivemos uma doce amada de
dois coraes e era de ver a angstia em que vivia, por no saber
conservar aquilo que a coisa mais linda numa mulher: o
sentimento da fidelidade.
Aos cachorrinhos foi dado merecidamente o ttulo de maior
amigo do Homem, justamente por causa da sua impressionante
fidelidade ao dono. Muito antes de se inventar a "alta-
fidelidade", j a marca registrada da maior fbrica de discos e
vitrolas do mundo tinha por smbolo um cachorrinho fiel, que se
mantinha firme ao lado do fongrafo, ouvindo a voz do dono
com o deslumbramento de todos os cachorrinhos. A fidelidade
do co muito anterior alta-fidelidade das vitrolas.
O mundo inteiro sabe disso. Tanto que o disco, aqui, "A
Voz do Dono", na Inglaterra "His Master's Voice", na Frana
"La Voix de Son Maitre", na Itlia "La Voc dei Patrono".
Todo mundo sabe que o co a fidelidade em pessoa e d to
comovedoramente seu corao que enternece a todos, com sua
dedicao.
Mas... e o pobre cachorrinho que fugiu do Departamento
"de Cirurgia Experimental? Como vai poder viver fiel, como
poder viver co como todos os ces, se carrega no peito dois
coraes? No, o cachorrinho no como as amadas infiis, que
muitos perdoam por serem como so. Pobre cachorrinho de dois
coraes, se encontrar um dono e a ele se prender, por ser este
o seu fanal de co... Pobre cachorrinho, porque ter um cora-
o de sobra e h de dedic-lo a algum.
E, se assim for, que entregue seus dois coraes
a um s homem, a um s dono, para provar ao mundo que os
ces, mesmo com um corao sobrando, so muito mais dados
fidelidade do que as vitrolas, do que as mulheres, do que ns
todos.
pobre cachorrinho de dois coraes, que voc no fique
indeciso entre dois postes.
SEGUROS DE AMOR
DIZ que em Londres surgiu um camarada que est
revolucionando os processos usados pelos seguradores para
defender os interesses dos segurados. Trata-se de um ingls
(porque os ingleses, ainda que possa parecer incrvel, so muito
encontradios em Londres) chamado Arthur Harrison.
Namorados e noivos londrinos, temerosos de perderem o
amor das suas amadas, esto apelando para aplices de seguro
contra romances desfeitos. Se as levianas mooilas, que se
dizem suas, se apaixonarem por um pilantra qualquer no
Continente, ao sair da ilha para passear pelo resto da Europa, o
desprezado tem, como consolo, uma indenizao de mil libras
que, trocadas em midos, do mais ou menos umas 450
abboras maduras.
Diz que Mister Harrison tem feito bom negcio e at tabelou
o seguro de amor, pagando um preo mais alto pelas noivas e
namoradas que vo sozinhas Itlia, Frana e demais pases
latinos porque, conforme vocs sabem, ns latinos no
por estarmos nas nossas presenas no... mas ns latinos somos
fogo.
Oi ingleses fazem tal seguro, no sabemos se com o
conhecimento da noiva ou namorada e, se assim for, um caso
mais lamentvel ainda. Nossas amadas tm todo o direito de nos
trair, mais por vingana, claro, ao saberem que ns estamos
transacionando com o seu sentimento de fidelidade. Mas os
londrinos so londrinos, entendem? Ou no entendem, o que
melhor para vocs.
Quanto vale o amor de sua amada, voc a, companheiro?
Vale os 450 contos que paga o Mister Harrison? Como? O amor
de sua amada no tem preo? Muito bem respondido, irmo. V
sentar. Levou um 10 em amorologia. isto mesmo, no h
aplice que pague o amor de nossa amada, nem vai ser um
monte de dinheiro que secar nossas lgrimas, ao ver partir com
outro a nossa "segurada".
Diz muito mal dos noivos e namorados londrinos o xito de
Mister Harrison. Ns aqui e acreditamos que vocs tambm,
no rapaziada? se fizssemos um seguro desses, mesmo por
brincadeira, haveramos de receber o dinheiro desconsolados.
Ns somos assim. Quando Mister Harrison nos trouxesse o
dinheiro, compraramos um lindo presente e mandaramos para
ela com gosto amargo de "nunca mais" na boca.
Mas, cada um tem sua maneira de pensar. Perguntamos a
Primo Altamirando:
Se voc recebesse o seguro pela infidelidade de sua
amada, comprava um presente para ela?
No respondeu o abominvel parente comprava era
uma lambreta para mim.
DOAES CORPORAIS
EM minha opinio, cada pessoa devia ter dois coraes!
e com tal declarao, desceu no aeroporto de Londres o
Professor Wladimir Demikhov, cirurgio sovitico que se
prepara para enxertar em uma paciente de 20 anos de idade a
perna de uma mulher morta.
O Professor brbaro, nesse negcio de enxertar na base do
toma l, d c. Foi ele que fez o primeiro cachorrinho com dois
coraes, foi ele que inventou o primeiro cachorrinho com duas
cabeas e ele quem admite, para um futuro prximo, pessoas
com dois coraes, para que sejam melhor distribudos a funo
e o cansativo trabalho do chamado propulsor.
Est claro que o Professor Wladimir no pensa em fazer
monstros e quer colocar rgos duplos para casos especiais. Sua
cincia evolui para um lado verdadeiramente consagrador, qual
seja a de uma pessoa mutilada herdar de uma pessoa recm
falecida o pedao que lhe falta, seja perna, brao, olho ou nariz.
Isto, no entanto, no impediu que o abominvel Primo
Altamirando tenha escrito ao distinto sbio sovitico, pedindo
que lhe arranje uma mulher com quatro coxas.
Mas, voltemos ao Professor. Alm de achar que cada pessoa
deve ter dois coraes, Wladimir Demikhov assegura que tal
coisa no impossvel:
Sei que isto se afiguraria improvvel, mas as viagens
Lua tambm pareciam improvveis, no faz muito tempo
afirmou ele.
E diz que a humanidade ganhar muito, no dia em que uma
pessoa que tenha orelhas muito bem formadinhas puder deixar,
para um amigo de orelhas feias, seu par de pavilhes
auriculares. E que beleza no ser algum de perna sadia, ao
morrer, deixar de herana para um amigo aleijado a perna que
lhe falta. E os olhos dos que vem para os cegos de nascena,
um brao para quem s tem um, cabelo para os carecas, mos
para os manetas, dedos para os dedetas e assim sucessivamente,
cada um legando aquilo que j no lhe poderia ter valia para o
amigo to necessitado.
Que o sonho do sbio russo se transforme logo em realidade,
porque se for o caso de sermos convocados por Deus antes de
Ibrahim Sued, queremos deixar nossa cabea para ele usar no
tempo de vida que lhe sobrar, para uma completa reabilitao.
.
OS BRINDES
PRIMEIRO foi aquela loja de vender discos l de Porto
Alegre que, na nsia de passar adiante os LPs encalhados,
anunciou o oferecimento de um quilo de feijo para o
comprador de cada disco LP candidato eterno prateleira.
Assim, o povo, que andava doido atrs da semente de faseolcea
( feijo numa apresentao mais puxada para o cientfico...
queiram perdoar), no se incomodou de levar pra casa discos de
Pedro Raimundo, Mrio Mascarenhas, Dilu Melo etc. etc,
contanto que lhe entregassem, em mo, o seu saquinho de feijo.
Agora um contnuo de repartio que, desesperanado do
abono e na certeza de que difcil arranjar outro emprego nos
dias que correm, fez da carestia um bico e est ganhando seu
dinheirinho. O distinto levanta de madrugada, vai pra fila da
carne e aguarda a sua vez. Como dos primeiros na fila,
consegue um quilo razoavelmente medido, quilo de carne este
que leva para a repartio e rifa, na base de 10 pratas o
bilhetinho de 001 a 100. No fim da tarde, com os colegas todos
torcendo em volta, faz o sorteio. O premiado leva um quilo de
carne pra casa por 10 cruzeiros preo ao alcance de todas as
bolsas enquanto o contnuo-aougueiro-banqueiro fica com
uma abbora de mil, pelo expediente.
Bem diz Tia Zulmira prenhe de saber e transbordante de
experincia "quem se vira, se inspira". um fato. A loja de
discos aproveitou a falta de feijo para se livrar de discos
encalhados, o contnuo aproveita a "carnestia" (como to bem
apelidou Primo Altamirando a falta de carne), para ganhar um
pouco mais do que o salrio ralo.
E a coisa vai pegando, como Deus servido. Clubes da ZN
esto organizando "biriba" aos sbados, para os scios. Os
prmios l esto, para quem quiser ver. Ao vencedor, trs quilos
de fil mignon, ao segundo colocado, trs quilos de feijo ao ter-
ceiro, um quilo de feijo e outro de alcatra.
A ZS, por enquanto, vai se mantendo a fingir uma dignidade
guaia, organizando no Country Club e demais clubes gr-finos
seus concursos de "buraco", "biriba" ou "bridge", ofertando aos
vencedores inteis medalhas de ouro, prata ou bronze, que no
servem para alimentar mais do que a vaidade.
Mas isto por enquanto. Chegar o momento em que o
alimento do estmago falar mais alto do que o alimento da
vaidade, e a gr-finada larga pra l essa besteira de medalha e
adere aos prmios j em uso na Zona Norte da cidade
(residncia da saudade como quer o grande poeta urbano
Orestes Barbosa). E ns veremos no Country um pai industrial
torcendo para entrar um coringa no jogo da filha, para que ela
faa canastra e ganhe um florido buqu de couve-flor.
Sim, irmos, humnitas precisa comer, como diria o
coleguinha Brs Cubas: ao vencedor, as batatas.
O VELHO PROCESSO
DIZ que na Itlia est uma fofoca danada. Depois de tantos
anos, volta a Igreja a ser contra a cincia, achando que o
progresso desta uma ofensa ao Altssimo. uma briga velha,
que fez muito sbio da antigidade virar churrasco na mo do
padre. Agora por causa do cientista italiano que conseguiu
fecundar um vulo humano em tubo de ensaios.
A "Pretapress", num de seus despachos desta semana, j
noticiou o fato. O rgo do Vaticano "Osservatore delia
Domenica" espinafrou o cientista Dianeli Petrucci, que foi quem
conseguiu isolar o vulo e fazer nele uma inseminao
artificial, acusando o distinto de trair as Leis que o Criador
colocou na natureza em geral e no homem em particular, E com
grande sucesso acrescentamos ns, que nada temos com a
briga e estamos aqui somente para relatar. Se entramos na coisa
foi sem querer, como Pilatos no "Credo" ou Al Neto na im-
prensa.
Dianeli Petrucci, logo que foram publicadas as espinafraes
ao seu trabalho de laboratrio, onde, inclusive, dizia-se que o
embrio humano pode ter alma desde o momento de sua
concepo, concedeu entrevista aos jornalistas que foram ouvir
sua opinio a respeito das restries, todos doidos para uma
fofoca. O cientista decepcionou os reprteres, ao explicar que
no tomaria conhecimento de nada e continuaria o seu trabalho.
Agora, voc a, sente o drama, v! J tinham inventado a tal
de inseminao artificial, que era um desperdcio brbaro, e eis
que neste momento um sbio trabalha com afinco para firmar a
gerao de chocadeira, digna substituio da atual gerao
Mustaf, que tem pai e me mas ningum diz. Parecem todos de
chocadeira tambm.
O que nos consolou nisto tudo foi a opinio do abominvel
Primo Altamirando. O nefando parente um chato, mas tem um
certo equilbrio nas suas observaes. Quando lhe mostramos o
noticirio sobre o que est se passando na Itlia, ele leu com ar
desinteressado e depois perguntou:
Que que tem isso?
Que que tem? repetimos. Ora, Mirinho. A
humanidade preguiosa. Se esse italiano descobre um mtodo
de fabricar crianas em laboratrio, vai ser chato.
Altamirando deu uma gargalhada e nos acalmou com esta
oportuna observao: No seja trouxa, rapaz. Por mais eficaz
que seja o mtodo novo de fazer criana, a turma jamais
abandonar o processo antigo.
A VACA
NO foi muito longe no, foi na Avenida das Bandeiras
que ali beirando a variante. Personagem : Uma vaca! A dita
personagem vinha caminhando pela beira da Avenida das
Bandeiras, com aquela dignidade que s as vacas tm, quando
sbito resolveu atravessar para o outro lado. E vocs
sabem como vaca . Cismou e atravessou mesmo.
Vinha um caminho disparado e no teve tempo de frear. A
foi aquele acidente horrvel. O caminho pegou a vaca pelo
meio e encaapou-a legal, matando ali mesmo. O noticirio no
explica se a coitada ficou em decbito dorsal ou decbito
ventral, mas que morreu, l isso morreu.
O caminho deu no p e nem prestou ateno; caminho
mata gente e no pra, vai travar por causa de vaca! Aconteceu,
porm, o que ningum esperava. Um com desculpa da m
palavra pedestre que a tudo assistira, em vez de ficar na
moita e resolver o seu problema sozinho, saiu gritando pela a:
Tem uma vaca morta na estrada! Tem uma vaca morta na
estrada!
No grito, a turma ouviu e s pensou em ch-de-dentro,
alcatra, mocot, fil. Alguns, mais requintados, na voz de vaca
morta, passaram a entrever dobradinhas moda do Porto, iscas
de fgado lisboeta, rabada com polenta, fil Osvaldo Aranha
(ou mesmo fil ao outro... Chateaubriand). Enfim, foi aquela
ignorncia.
O povo muniu-se de facas, machadinhas, canivetes e at
tesouras de unhas para retalhar a falecida, na nsia de melhorar o
ragu. Os mais fortes conseguiram o lado bom da vaca, onde
mora o mignon. Os mais fracos, ainda que intimidados, pegaram
o miolo (miolo de vaca como o de cronista menor, no tem
muito proveito), outros franzinos levaram os rins, e assim por
diante.
Dizem tcnicos em talho que do boi s no se aproveita o
suspiro, porque at a sua vergonha serve para adubar canteiros.
Pois com a vaca atropelada foi pior.
Depois que acabou o pega, os que no tiveram vez chegaram
de mansinho e repartiram os ossos, porque uma sopa razovel,
hoje em dia", est custando mais caro do que prato feito
reforado em botequim de operrio.
Dizem que o Sindicato dos Urubus vai protestar junto ao Dr.
J. Karne e impetrar mandado de segurana.
O DEDO
FOI em So Paulo num nibus. Havia um dedo; alis, como
natural em coletivos, havia diversos dedos. Em coletivos,
comumente, acontece mo-boba, quanto mais dedo.
No. No era um dedo-bobo, nem pode ser comparado com
os demais dedos que viajavam no Santa ClaraPaissandu, da
Empresa Vila Paulista Ltda., porque estes estavam em seus
respectivos lugares, nas mos de seus donos, enquanto que o
dedo citado estava sozinho, no cho do nibus, apontando sabe
l Deus para onde.
Diro vocs: ento era um dedo-bobo. Mas ns, mais
ponderados pouquinha coisa, explicamos que no era bobo. Era
um dedo de responsabilidade, pois portava aliana.
Deu-se que o Senhor Leonel, motorista do veculo, j achara
chato quando um passageiro, que talvez fosse Primo
Altamirando (Mirinho foi a So Paulo visitar um traficante de
cocana, seu amigo), ao descer do nibus dissera: " meu...
deixaram um dedo aqui pra voc." Achara chato porque a piada
no tinha graa nenhuma.
Mas, pouco depois, um outro passageiro ia saindo, olhou
para baixo e viu o dedo. Estava no mesmo lugar que o
passageiro anterior indicara, apontando com outro dedo, l dele.
O passageiro, mais minucioso em suas pesquisas, em vez de
avisar ao motorista, abaixou-se e pegou o dedo.
Era um dedo casado com Dona Paula Yukiawone vai fazer
onze anos na prxima segunda-feira. Como, minha senhora?
Como que chegaram a esta concluso? Porque o dedo tinha
aliana, madame. Tinha aliana e, na aliana, estava escrito
"Paula Yukiawone 25-1-1949". Logo, elementar, my dear
Watson!
Agora, o que se faz com um dedo transviado (e aqui no vai
nenhuma insinuao de que o marido de Dona Paula seja
lambretista), ningum sabe. Carregaram-no para a Delegacia de
Homicdios, porque do dedo pra l no se conhece o dono. A
Polcia est na expectativa de que o dono direito do dedo ou
Dona Paula, que casou com o dedo e o resto que normalmente
acompanha um dedo, venha reclam-lo.
E, enquanto espera, no sabe o que fazer ou como agir. E
profundamente incmodo para a Polcia ficar olhando aquele
dedo que no aponta para lugar nenhum. Mas o jeito esperar,
porque no provvel que seguindo para o lugar que o dedo
aponta a Polcia encontre o dono.
A MENINA QUE SUAVA EM CORES
TNHAMOS escrito um bem documentado artigo sobre a
menina Vera Lcia, a tal mineirinha que sua colorido. 0 trabalho
era muito bem documentado e de grande importncia para o
estudo do fenmeno que ora preocupa a imprensa carioca e
deixa um pouco off side a cincia de um modo geral. Isto
porque, sendo um artigo de Stanislaw, j era obra de valor, valor
este que aumentava, ao levar-se em conta que somos um dos que
mais fizeram mulher suar pela a.
lgico que suor colorido para ns tambm bossa nova,
ainda que no sejamos supersticiosos a ponto de achar que Vera
Lcia milagrosa. Isto no. Que nos recordemos assim, a
grosso modo. s Primo Altamirando que, certa vez, comeou a
suar colorido. Alis, no era bem colorido. Ele comeou a suar
numa cor s: o preto mas Tia Zulmira, com um pouco de
gua e um pedao de sabo, acabou com o milagre.
Nosso artigo sobre o suor colorido de Vera Lcia chamava a
ateno dos leitores para a inveja que vinha causando em alguns
coleguinhas jornalistas, como o Timbaba por exemplo do
"Dirio Carioca", que escreveu uma poro de bobagens sobre o
que chamou de "literatura qumica", dizendo que Vera Lcia
suava por causa da reao de certos cidos etc. etc. E isto pura
inveja do coleguinha porque no existe ningum mais cido do
que o Dr. Jos Maria Alkmim e, que saibamos, nunca o ex-
Ministro da Fazenda suou em cores.
Dizamos tambm que Vera Lcia poderia ajudar na
recuperao do cruzeiro, valorizando a moeda no exterior, ao ser
exportada com seu suor em tecnicolor, para Hollywood, onde
faria um Metro-musical daqueles bem chatos, com Debbie
Reynolds, um irmo do Mrio Lanza e a orquestra do Ray
Coniff.
Mas nosso artigo no foi publicado, e mesmo assim surgiram
logo notcias pessimistas, atribuindo aos pais de Vera Lcia uma
chantagem. Veio um mdico para as manchetes dizendo que eles
que davam determinada droga pra moa beber e suar azul de
manh, verde ao entardecer e roxo de noite, com variaes
coloridas nas horas suplementares, insinuando que os pais de
Vera Lcia so cafiolas de suor.
Se assim , j no est mais aqui quem falou. Mesmo sendo
um cidado useiro e vezeiro em fazer mulher suar, Stanislaw se
abstm de opinar. Felizmente nosso artigo no foi publicado,
pois ia suscitar polmicas. Se o suor de Vera Lcia pr-
fabricado, j no existe mais a mstica em torno de sua
transpirao.
E pena, porque esta seria a segunda Vera Lcia a fazer
milagre, num curto espao de tempo. A outra a Vera Lcia da
Rdio Nacional, que conseguiu se eleger "Melhor Cantora de
1959", no suado concurso da "Revista do Rdio".
DO INQUIRIR OS QUERELANTES
NO, isso tambm j enveredar pelo perigoso terreno da
galhofa se que vocs me permitem usar esta expresso de
Tia Zulmira. Esse negcio de se arranjar uma comisso de
inqurito para apurar o que esto fazendo as comisses de
inqurito muito chato. Desculpem, mas vamos mais uma vez
usar a sbia parenta. A velha e experiente Tia Zulmira, quando
soube que se cogitou, de brincadeirinha, claro, de uma
comisso de inqurito para as comisses de inqurito da Cmara
sentenciou:
H um dado momento em que se deve confiar, pra no
piorar!
Ora, a velha fogo e sabe o que diz. Ensinou bailado a
Nijinsky, relatividade a Einstein, psicanlise a Freud,
automobilismo a Juan Fangio, foi tcnica de basquete dos
"Globe Trotters", deu aula de tourada a Domingun, explicou a
Charlie Chaplin como se faz cinema e, na rebarba, ainda
temperou a vacina para o Dr. Jonas Salk. Logo, no est a para
blablabl. Se ela diz que, num dado momento, mexer a panela
pior que deixar no fogo lento, porque esta a melhor maneira
de se proceder.
Vivida como , a excelente macrbia esteve a conversar
conosco sobre esse crculo vicioso que, s vezes, causa a
desconfiana excessiva. Lembrou ento o que aconteceu com os
pais de Primo Altamirando, menino que cedo foi viver com a tia,
porque o casal foi garra.
Deu-se contou-nos ela que Mirinho quando garoto j
prometia que um dia seria isto que hoje, razo pela qual seus
pais resolveram arranjar uma bab de toda confiana para vigiar
o agora abominvel parente. Contrataram uma bab inglesa (at
hoje ningum sabe explicar por que certos casais acham que
bab, pra ser de confiana, tem que ser inglesa)... mas
dizamos contrataram uma bab inglesa e estavam muito
satisfeitos, at o dia em que acharam que era preciso ver se a
bab era mesmo de confiana. Ento porque era um antigo
conhecido da famlia chamaram o velho Crisanto (j
falecido) para vigiar a bab.
Crisanto ia se desincumbindo satisfatoriamente do mister e
nada teria acontecido se Altamiro, pai de Altamirando, no
tivesse a idia de conversar com a mulher a respeito da misso
de Crisanto.
Quem lhes podia garantir que o distinto estava mesmo
vigiando a bab que vigiava Mirinho?
... ningum podia, pois ningum vigiava o homem. E foi
por isso que usando da velha teoria de quem quer vai, quem
no quer manda Altamiro, pai de Altamirando, passou a sair
para vigiar Crisanto, que vigiava a bab, que vigiava o menino.
Tudo ia muito bem, at o dia em que a me da criana
resolveu espiar pra ver se o marido estava mesmo controlando o
velho Crisanto. E qual no foi sua surpresa, ao descobrir
Crisanto ninando Mirinho e Altamiro ninando a bab!
... Tia Zulmira tem razo: num dado momento, deve-se
confiar, para no piorar!
O DIA DA SINCERIDADE
QUEM no tem o que fazer deu agora para inventar "dia".
Um vereador cujo nome esquecemos props a
oficializao do "Dia do Acidentado", explicando que, nesse dia,
todos iriam aos hospitais visitar os doentes passveis de visitas e
perturbar os doentes que no podem receber visitas. A idia, que
ao vereador deve ter parecido luminosa, no foi sequer levada a
srio pelos seus coleguinhas edis. Felizmente.
J nossa amiguinha Graciette Santana quer o "Dia da
Progenitora", como se j no bastasse o "Dia da Genitora", onde
as progenitoras j esto includas porque a condio primordial
para a mulher ser progenitora ser genitora anteriormente, deta-
lhe que queremos crer escapou Dona Graciette.
Lamentvel.
Outro que lanou "dia": Antnio Maria. Prenhe de boas
intenes, o Arcebispo do Sacha's quer o "Dia da
Reconciliao", conforme ele mesmo exps em bem traadas
linhas. Ser o dia em que cavalheiros mais ou menos em crise de
amizade com outros tantos cavalheiros faro as pazes em lugar
pblico; dia em que ferrenhos desafetos se abraaro para
legalizar o fim da briga etc. etc. E como bom demais para
abenoar os outros, o prprio inventor do "Dia da
Reconciliao" ir para o interior na data dos reencontros, para
no ter que fazer as pazes com ningum. Ele no confia nos
inimigos, infelizmente.
J a flor dos Ponte Pretas, que tambm se sentia meio jogado
fora, resolveu criar um diazinho, para ficar atualizado e no ser
passado para trs. Por isso mesmo imaginou o "Dia da
Sinceridade", dia que temos certeza contaria com a adeso
incondicional de todos, mesmo com a adeso do vereador, da
Irm Graciette da Emissora "Jesus Est Chamando" e do
Antnio Maria.
No "Dia da Sinceridade" aconteceriam coisas
surpreendentes. Voc ligava a televiso e veria uma garota-
propaganda com um sabonete na mo, dizendo que o dito no
faz espuma, tem um perfume muito do rebarbativo e o preo
extorsivo. Depois outros anncios sinceros, seguidos de
entrevistas sinceras, ocasio em que os arnaldos nogueiras do
vdeo anunciariam assim seus convidados: est aqui ao nosso
lado um dos maiores ficeleiros do PSD, que vai explicar a
negociata que fez ontem no Ministrio da Fazenda.
Os jornais tambm seriam sinceros, principalmente os da
imprensa sadia, cujos teriam um dia de reabilitao, pelo menos.
Jogadores de futebol fariam declaraes importantes, explicando
que detestam o clube a que pertencem, que faro tudo pela
vitria porque o bicho melhor quando vencem, mas que o
adversrio tem um time melhor e, por isso mesmo, vo tacar o
p no inimigo para intimid-lo. E acrescentaro: a chave essa,
o tcnico que se dane, pois quem vence jogo jogador e no
tcnico.
Revistas especializadas diriam o que acham de Emilinha,
contariam como fazem reportagem com Cauby; cronistas
mundanos falariam de suas listas de "dez mais" com completa
iseno de nimo; candidatos a eleies colocariam na rua faixas
com dizeres que espelhassem seus sentimentos cvicos e nos
petits comits, os que vivem nos riversides da vida, trocariam
idias entre si e sobre si, sem qualquer futuro ressentimento.
Nesse to saudvel "Dia da Sinceridade", por ns imaginado,
Stanislaw passaria despercebido e, para culminar a
comemorao, haveria discurso do Presidente na "Voz do
Brasil".
Credo!
A VOLTA DO DIA DA SINCERIDADE
VOCS queiram perdoar, sim? Queiram perdoar, mas vamos
continuar imaginando coisas sobre o "Dia da Sinceridade", cujo
bolamos em momento dos mais inspirados, escudados que
estvamos na certeza de que dias como o "Dia das
Progenitoras", "Dia da Reconciliao", "Dia do Papai" e outros
de some-nos no tinham a menor importncia do ponto de vista
cvico, e, sim, do ponto de vista comercial. Com aquela
disposio de que sempre nos munimos, quando se trata de
auxiliar o prximo a ter idias mais felizes, bolamos o "Dia da
Sinceridade", que no tem o mnimo cunho comercial e
muito pelo contrrio ajuda os leitores que aderirem a burilar
o carter, elemento da personalidade de cada um que segundo
Tia Zulmira est para a conscincia do indivduo assim como
a gomalina est para a cabeleira do Al Neto.
O "Dia da Sinceridade" lavar a alma de muita gente, mesmo
essa gente inibida que passa o dia mentindo para conservar os
honorrios, tais como garotas-propaganda, locutores de rdio,
ministros de Estado, vendedores ambulantes e cronistas munda-
nos. Isto para somente citarmos classes mais ou menos definidas
dentro do panorama da insinceridade nacional e por que no?
internacional.
No "Dia da Sinceridade", talvez para evitar futuros
aborrecimentos, no seria conveniente visitar parentes, mas seria
de boa monta entrar na Cmara dos Deputados e conversar um
pouco com o deputado em quem votamos. Seria de bom alvitre
tambm ligar o rdio para a Rdio Mundial e ouvir as pregaes
do Irmo Alziro Zarur.
Somos de opinio que um dia assim viria descomplexar (ou
ser extracomplexar? Verifique a, Osvaldo) diversas classes
trabalhadoras, como, por exemplo, a classe dos que vendem
calados. Isto um exemplo, conforme vocs podem notar,
trazido assim a esmo, s para melhor esclarecer a massa ignara.
Os vendedores de sapatos que, conforme to bem assinalou o
poeta Vincius de Moraes, parecem Madalenas arrependidas
pedindo perdo pelos sapatos, j que se ajoelham na frente do
fregus para experiment-los (no os fregueses, mas os sapatos),
vivem na insinceridade. No entanto, vitoriosa a idia do "Dia da
Sinceridade", mesmo em sua postura costumeira, e talvez por
causa dela, diriam para a dama elegante que insiste em comprar
o sapato de couro de camelo:
Madame, no vai nessa. Esse camelo nasceu cavalo. O
modelo uma fbrica de calos e o sapato entorta mais que boca
de cantor de tango.
A senhora compradora no se espantaria, pois era o dia
supracitado, e agradeceria com um sorriso, no sem antes botar
na mo do vendedor uma nota de duzentas pratas, aconselhando:
V a um dentista, nego. Daqui de cima que se tem uma
idia panormica de suas cries.
O vendedor faria uma reverncia, j de p, e antes que a
freguesa fosse embora, perguntaria risonho:
A senhora no quer examinar a nossa coleo de
ferraduras?
Grande dia, companheiros, o "Dia da Sinceridade".
DIA DO PAPAI
A JOVEM senhora, realmente muito bonita, estava na boca
de uns e outros. A Candinha j morara em seu assunto. Madame,
de fato, tinha sido educada no ambiente sadio do Vogue, fora
mais ou menos modelo de casa de modas e tinha at feito sua
experincia no chamado teatro rebolado.
Depois conheceu o otrio, alis, o marido, e casara. Tivera
um filhinho mais ou menos louro, embora o acima citado fosse
mais ou menos moreno. Na poca, Primo Altamirando muito
do mau carter chegou a comentar:
Tava l Mane Sinh. (1)
(1) Tava l Mane Sinh. Trecho da cano "Uma Casa de Caboclo",
que vem logo depois daquele pedao em que o cantor diz que numa casa de
caboclo um pouco, dois bom, trs demais. O terceiro, no verso, era
Mane Sinh.
O menino cresceu at ficar de bom tamanho, a distinta at
que andava mais pra calma do que pra assanhada, e o murmrio
foi diminuindo at parar. O marido no tomava conhecimento,
mesmo porque, conforme diz o ditado: "os maridos e os Dirios
Associados so os ltimos a saber".
Veio, ento, o "Dia do Papai". Chamaram o garoto, deram
um embrulho a ele (quem'deu foi a vov, coitada, sempre to
amiga de datas), e explicaram :
Isto um presente, porque hoje o "Dia do Papai". Voc
pega esse presente e guarda. Logo mais voc entrega ao seu pai.
O garoto, que adorava ouvir conversa, fez que sim com a
cabea e disse que tava legal, que depois entregava o presente ao
Papai. A av ainda deu um beijinho nele antes de sair, crente
que tudo ia acontecer como ela previa.
Depois veio o fim da tarde, a me do garoto a que tinha
sido at candidata a Rainha de um baile a chegou do
dentista, o marido dela chegou logo em seguida e a caiu a noite.
O menininho ento lembrou-se da recomendao da av.
Tinha que pegar o embrulho do presente e entregar ao Papai. Foi
l dentro, apanhou o embrulho no armrio, botou debaixo do
brao e saiu pra rua. Entrou na casa ao lado, tocou a campainha
e, quando o vizinho apareceu, entregou-lhe o embrulho.
LIO DE NUDISMO
NASCEU o primeiro menino nudista!
Deu-se que uma dama de pouca roupa, habitante da Ilha do
Sol, ilha onde reina a popular Luz Del Fuego, conheceu, no
mesmo local, um cavalheiro, chamado Ladrio Brito, que se
veste na Sem-Cal. A jovem, cujo nome Cleide, se apaixonou-
se (v a onde fica melhor colocado o oblquo, Osvaldo) pelo
Ladrio e, j vai pra mais de um ano, a dupla casou.
Agora noticiam os jornais vem de nascer o primeiro
menino nudista. Sim, porque, mesmo depois de casados, Ladrio
e Cleide continuaram firmes como scios do Clube Naturalista
do Brasil, com sede na acima citada Ilha do Sol.
A me do primeiro menino nudista quem d entrevista
imprensa saudvel, explicando que a criana, se tivesse nascido
menina, ia se chamar Lua mas felizmente nasceu menino e
ser batizado com o nome de Sol, coitadinho. De qualquer ma-
neira, Sol melhor do que Lua, pois tem luz prpria, ainda que
no seja Del Fuego.
Dona Cleide Brito est contentssima com o nascer do Sol e
j declarou que o seu jbilo enorme. To grande que at parece
que o Sol nasceu pra todos. Ela foi muito fotografada logo aps
o Nascente e os jornais abriram espao para dar um lugar ao Sol,
razo pela qual tambm apareceram nas reportagens diversas
fotos do menino.
Ns embora achando que nudismo como brincadeira,
isto , tem hora no podemos deixar de cumprimentar o casal
e muito principalmente a jovem me que deu. luz o Sol.
Apenas gostaramos de corrigir um equvoco de Dona Cleide, no
que tange sua declarao de que seu filho o primeiro menino
nudista nascido nesta cidade.
Para no cometer um erro, andamos mesmo a consultar
entendidos no assunto, acabando por recorrer Tia Zulmira,
como sempre fazemos em caso de dvida. Pedimos sbia
ermit da Boca do Mato para nos informar se no precipitao
de Dona Cleide reclamar para seu filho o ttulo de primeiro
menino nudista. A experiente parenta nem pestanejou para
responder que, de fato, h a um erro que a scia do Clube
Naturalista cometeu, com relao a prioridades nudistas do
garoto. E acrescentou, no sem antes meter um pouco de
malcia:
Salvo um ou outro cocoroca que j nasceu de touca, todo
menino, quando nasce, nudista.
O HOMEM DA PASTA PRETA
SOBRAANDO uma enorme pasta preta o homem chegou-
se para perto da nossa mesa e esperou que levantssemos a
cabea. Fingimos no dar pela sua presena, mas a situao foi
ficando meio velhaca e fomos obrigados a perguntar se desejava
alguma coisa. Ora se.
Bastou dar a deixa para ele explicar que era um emissrio do
saber, da cultura, da ilustrao. Representante dos mais famosos
editores, o homem de indisfarvel sotaque espanhol ps-se a
oferecer livros e mais livros, tudo a preos de ocasio, com
descontos formidveis, com facilidades de pagamento.
O senhor precisa aproveitar el momento que es oportuno.
Las livrarias fazem um desconto especial ahora.
Para ganhar tempo, perguntamos por que as livrarias esto
fazendo desconto especial agora. Ele, muito naturalmente,
explicou:
Junho!
No sabemos por que Balzac mais barato em junho e
jamais saberemos, pois o homem no de dar tempo para
pensar. Ali estava, sobre a mesa, toda a "Comdia Humana",
mais barata vista, com um pequeno acrscimo para as tais
suaves prestaes mensais.
Ficou absolutamente bestificado quando soube que Balzac
no interessava. E o Anatole France de bolso, tambm no? Mas
isso era desconcertante! Um cavalheiro com a nossa cultura,
com a nossa posio social... E perguntou:
O amigo, naturalmente, tiene su posicin dentro do caf-
society?
Jogamos na defesa.
Ele achou a resposta de um fino humor. Grande esprito. E
aproveitou para sapecar Ea de Queiroz, inteiramente revisto
pelo filho do prprio. Inclusive garantiu com notas muito
oportunas. Explicamos que j tnhamos o Ea l em casa. O Ea,
o Ramalho, o Camilo, o Fialho, o Antero Em matria de
literatura portuguesa, l em casa vamos bem.
Subiu a Pennsula Ibrica e abriu um folheto que
demonstrava e provava que nunca, em nenhum pas do mundo,
se fez, numa s edio um apanhado to completo da obra
de Cervantes. J impacientes, declaramos:
Cervantes d azia!
No sabemos se azia em espanhol diferente. O fato que
no entendeu. Fechou o folheto e abriu outro. Este elucidava os
interessados numa coleo enciclopdica. Eram vinte volumes
que condensavam curiosidades matemticas, as chamadas
maravilhas da natureza e outros alicerces do saber. O homem
que lesse com ateno a obra toda poderia fazer um figuro,
respondendo perguntas nos programas de televiso.
Um a um, fomos recusando poetas e prosadores, bigrafos e
historiadores, gramticos, metafsicos, astrnomos e astrlogos.
Da fina-flor da literatura, passou a meros catlogos. O senhor
tem disco? amante da pesca?
Quem nos dera ter amante!
Nem sequer sorriu. Gosta de fotografias? Quer aprender a
desenhar? Deseja ser mecnico de rdio em 20 lies? A arte da
decorao. O nosso corpo. O mar que nos cerca. A vida no
subsolo. No mundo das bactrias. A culinria de todo o mundo.
Nesta ltima oferta apelamos para o ofendido.
Imediatamente pediu desculpas. Realmente, um homem do
nosso trato no iria cozinhar nunca. Por fim, esgotado o estoque,
sentindo que no venderia coisa nenhuma, apelou pra
ignorncia. Olhou para os lados, certificou-se de que estvamos
a ss e segredou :
Tengo aqui umas coisas mui lindas. Para leitura ntima.
E mostrou um livro com mulher nua na capa. Nem assim...
VAMOS ACABAR COM ESTA FOLGA
O NEGCIO aconteceu num caf. Tinha uma poro de
sujeitos, sentados nesse caf, tomando umas e outras. Havia
brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemes, o diabo.
De repente, um alemo forte pra cachorro levantou e gritou
que no via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial,
motivada pela provocao e logo um turco, to forte como o
alemo, levantou-se de l e perguntou:
Isso comigo?
Pode ser com voc tambm respondeu o alemo.
A ento o turco avanou para o alemo e levou uma
traulitada to segura que caiu no cho. Vai da o alemo repetiu
que no havia homem ali dentro pra ele. Queimou-se ento um
portugus que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e no
conversou. Partiu para cima do alemo e no teve outra sorte.
Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.
O alemo limpou as mos, deu mais um gole no chope e fez
ver aos presentes que o que dizia era certo. No havia homem
para ele ali naquele caf. Levantou-se ento um ingls troncudo
pra cachorro e tambm entrou bem. E depois do ingls foi a vez
de um francs, depois um noruegus etc. etc. At que, l do
canto do caf, levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de
picardia para perguntar, como os outros:
Isso comigo?
O alemo voltou a dizer que podia ser. Ento o brasileiro deu
um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado
do alemo. Parou perto, balanou o corpo e... PIMBA! O alemo
deu-lhe uma porrada na- cabea com tanta fora que quase
desmonta o brasileiro.
Como, minha senhora? Qual o fim da histria? Pois a
histria termina a, madame. Termina a que prs brasileiros
perderem essa mania de pisar macio e pensar que so mais
malandros do que os outros.
RAZES DE ORDEM TCNICA
A Moa viajou no nibus em que viajava este que ora
batuca, intimorato e altivo, as teclas macias de sua Remington
semiporttil, todas recentemente azeitadas para novas
campanhas. No somos de viajar nesses incmodos coletivos.
Stanislaw uma vtima contumaz de txi e no teria se rebaixa-
do a fregus da Copanorte se no estivesse de caixa baixa.
Estvamos mais por baixo do que calcinha de nylon.
Mas dizamos a moa entrou e era o que se poderia
desejar em matria de mulher de qualidade superior. Tanto era,
que houve como que um minuto de silncio respeitoso, no
coletivo. Alis, minuto de silncio respeitoso, no. Seria mais
justo dizer, minuto de silncio para que todos os coleguinhas de
viagem pensassem em besteira.
Depois pouco a pouco todos nos acostumaramos sua
presena. Naquele momento, ela ainda fazia mais sucesso que
Vicente Celestino em Barra do Pira. Todos queriam lhe ceder o
lugar. Um velhote, mais ou menos sem dignidade, levantou-se
do banco e quis ser cavalheiro. Ela recusou com a altivez das
que tm noivo.
O velhote desistiu e sentou. Havia um bonito no nibus.
Como, minha senhora? Se o bonito ramos ns? No, senhora,
era outro. A senhora desculpe. Havia dois bonites: ns e o
outro. Foi o outro que se levantou e disse, com voz de locutor da
Rdio Nacional (programao matinal):
Queira sentar, senhorinha.
O senhorinha soou falso como border de companhia de
revistas musicais. Mas todos esperamos o xito do bacano. No
foi bem sucedido, porm. Ela sorriu agradecida e respondeu:
No se incomode.
Era difcil a gente no se incomodar com aquele monumento
ali na nossa frente, balanando no corredor do nibus. Depois,
foi saindo gente e os que estavam em p iam sentando. Mas,
antes, ofereciam a vez bonitona. Ela sorria, agradecia e
continuava em p.
Chegou o momento, porm, em que o nmero de lugares era
maior que o nmero de passageiros. Mesmo assim, ela ficou
firme, viajando de p.
Foi a que, com aquela timidez que o nosso maior sucesso
com mulher, pigarreamos legal e perguntamos distinta:
Voc no quer sentar? E ela respondeu:
No. E ns:
Por qu? E ela:
Furnculo.
O PADRE E O BUSTO
O NOME do padre William. William Graham. Este
padre vem de iniciar uma campanha na Inglaterra pela
moralizao dos costumes, depois de verificar, em Hyde Park,
os beijos que trocavam casais de jovens londrinos. O reverendo
Billy Graham, como mais conhecido, depois de andar
espiando, lana a campanha e presta declaraes imprensa,
colocando, como base para a reao, esta frase que os jornais
ingleses publicaram e a imprensa mundial repetiu: "Os jovens de
hoje sabem, na ponta da lngua, quem tem busto mais farto se
Gina Lollobrigida ou Jayne Mansfield mas desconhecem, por
outro lado, qualquer dos mandamentos da Lei de Deus."
Isto bastou para que jornais do Rio ouvissem outros tantos
padres, na esperana de colher mais protestos contra a
desmoralizao dos costumes. E no demorou muito para que o
pastor Valdemar Gomes Figueiredo, da Parquia de So Joo,
viesse pelas folhas informativas, ratificando a opinio de seu
colega Billy Graham, ao declarar:
Se ele ficou chocado ao ver os beijos dos fleumticos
ingleses, imagine s o que no lhe aconteceria se visse um baile
do High-Life, do Bola Preta ou,, ento, uma segunda-feira de
carnaval no Teatro Joo Caetano.
Como, minha senhora? Se o pastor foi ao Joo Caetano?
Provavelmente no, madame. Deve estar falando de ouvir dizer,
porque tem muita gente que no foi e sabe que o baile naquela
base. Mas nada disso importa, minha senhora. O que importa
explicar ao pastor que tudo uma questo de propaganda. J
uma vez -que foi num tempo recente o escultor Z Pedrosa
esclareceu, numa conferncia:
Os gregos no eram to gregos assim!
E, de fato, no eram. O que fez os gregos mais gregos, para a
nossa picardia, foi a propaganda. O pastor da parquia de So
Joo comete o mesmo engano, ao chamar os ingleses de
fleumticos porque e quem verificou tal fenmeno foi Tia
Zulmira, quando de recente estada em Londres h muito
tempo que os ingleses j no so mais to britnicos como quer
a publicidade.
Se a juventude de hoje desconhece (e acreditamos que haja
um pouco de exagero nesta afirmativa) qualquer mandamento da
Lei de Deus, porque a propaganda da Igreja arrefeceu um
pouco, neste sculo. Quem no anuncia se esconde costumam
dizer os que vivem da publicidade. E talvez tenham razo. A
publicidade impressionante que se faz dos bustos de Gina e
Jayne s pode levar ao conhecimento de todos a abundncia de
bustos das distintas. Mas isto no quer dizer que todos estejam
mais interessados na sua medida do que nos mandamentos da
Lei de Deus.
Isto, pelo menos, foi o que nos explicou a veneranda Tia
Zulmira. Ela leu as declaraes do padre, fez todas essas
ponderaes e terminou enviando para Londres o seguinte
telegrama:
"Padre Billy Graham Hyde Park Parish Church
possvel mocidade conhecer melhor busto Gina Lollobrigida
Jayne Mansfield (ponto) Lembrai-vos (vrgula) entretanto
(vrgula) mandamentos Lei de Deus no tm decote (ponto)"
A BATALHA DO LEBLON
FOI noitinha, a por volta das 20 horas, que a notcia correu
pelas esquinas do Leblon, ganhou amplitude, espalhou-se pelo
bairro e foi explodir como uma bomba na Delegacia de Polcia.
Os bichos do circo armado perto da pracinha tinham picado a
mula. Foi a que comeou a ignorncia. O delegado no estava,
claro. O comissrio tambm, lgico, e a coisa sobrou na mo
do prontido.
Chamem a Polcia berrou o infeliz.
Mas a Polcia somos ns advertiu um outro guarda.
Refeito da distrao, o prontido comeou a procurar seus
superiores para saber "como agir. A muito custo conseguiu
telefonar para um primo da noiva do comissrio e localizar o
distinto.
Peam uma patrulha do Exrcito recomendou o
Comissrio.
Pediu-se. Mas havia outras corporaes disponveis. E
apelou-se para o Corpo de Bombeiros, para a Polcia Militar,
Radiopatrulha e ningum at agora sabe explicar por que
um carro-socorro da Light.
Talvez seja para evitar curto-circuito no leo disse
um mulato magrela, com cara de gozador.
O elefante, segundo informaes de um soldado
desconhecido, seguira rumo praia. Elefante, ao que se
presume, no nada. Ou ser que nada? O povo dava palpites e,
como sempre, do povo saiu um mais bem informado pouquinha
coisa, para dizer que na frica nada sim, mas no era o caso
deste, cujo se chamava Bmbolo, e que nascera num outro circo
e nunca vira gua a no ser em balde.
J ento havia uma multido apreciando as manobras. A
praa era uma das trincheiras, o Jardim de Al era a retaguarda
das tropas. Pela rua principal no passaria nenhum bicho que
mata gente, salvo lotaes, mas estes tm licena pra matar.
Um homem de porte marcial, com muito mais estrelas do
que os outros, reclamava contra a demora do tanque. Sim, ele
requisitara um tanque-de-guerra e isto comeou a parecer
ridculo a uns tantos e emocionante para outros. A preta gorda,
que mal acabara de servir o jantar dos patres,, palpitou:
S ona tem umas quatro.
Mas o garoto que estava perto desmentiu, dizendo que estava
farto de ir quele circo e nunca vira ona nenhuma. Foi quando
chegou o tanque. No sabemos se vocs j repararam que
tanque-de-guerra no asfalto fica mais deslocado do que
digamos mulher nua dentro de um elevador do Ministrio da
Fazenda. O povo comeou a desconfiar, vendo o tanque
manobrando, que a coisa ia ser mais cmica do que trgica.
O tigre foi pra Praia do Pinto disse um crioulo.
Pra Praia do Pinto vai nis que semo teso retrucou seu
companheiro, que usava camisa de meia e touca.
Nessa altura apareceu correndo, l do outro lado da praa,
um soldado. Vinha acelerado e parou na frente do homem que
tinha mais estrelas do que os outros. Fez uma continncia legal e
avisou que no havia elefante na praia. Imediatamente recebeu
ordens de ir pelas casas avisando para que todo o mundo
trancasse as portas por causa dos lees.
Manda espiar primeiro se o leo j no entrou, seno
fogo na jacutinga, trancar porta com leo dentro gozou o
mulato.
O soldado explicou que no era preciso, porque no tinha
leo. Nem leo, nem tigre, nem ona. Apenas um "poptis".
Hipoptamo corrigiu o que tinha mais estrelas do que
os outros.
Ento j conhecido o inimigo comeeu o cerco ao
"poptis". Dos que estavam nas proximidades, poucos sabiam o
que era um hipoptamo. Uns diziam que era maior do que
elefante, outros diziam que era menor, mas muito mais feroz. E
nessa troca de impresses ficaram at que surgiu um outro
soldado que, vindo correndo em diagonal pela praa, bateu
continncia e disse pro de mais estrelas:
O "poptis" se rendeu-se.
Hipoptamo voltou a corrigir o chefe, deixando
passar a abundncia de pronomes.
Soube-se que, realmente, o hipoptamo fora localizado
dentro de um jardim, numa residncia gr--fina, comendo
girassis. E logo depois apareceu na esquina o dono do circo,
puxando um bicho que no era muito maior que um cachorro
dinamarqus e que o acompanhava de passo pachorrento.
Decepo geral, inclusive dos soldados, preparados para mais
uma batalha que, como tantas outras, no houve.
Ainda por cima o bicho come flor disse a preta gorda.
Come flor sim, uai! explicou o de touca Ento tu
no sabia que "poptis" veterinrio?
O NOIVO ORGANIZADO
ACONTECEU em So Paulo. Um camarada chamado Joo
Augusto de Melo, ao encontrar na rua sua ex-noiva Leonor
Conceio de Paula, abotoou a distinta e perguntou onde que
estavam os Cr$ 2192,00 que lhe devia. A ex-noiva, ainda que
inibida pela truculenta cobrana, respondeu que no devia coisa
nenhuma, muito menos 2 192 cruzeiros, que lembra preo de
palet da "Ducal".
No devo coisa nenhuma reclamou Conceio.
E Joo, que no estava disposto a discutir, tacou-lhe a mo
nas bochechas, bolacheando-a fartamente, at a interveno de
outros paulistas que passavam por perto e que, mesmo no
podendo parar, resolveram entrar para desapartar. A veio um
guarda (l em So Paulo tem guarda) e levou o casal de ex-
noivos para a delegacia. E ento a dvida foi esclarecida. O
rapaz informou ao comissrio que fora noivo de Conceio
durante trs anos. Durante o noivado tivera o cuidado de tomar
nota de todos os gastos que fizera com ela ou por causa dela. No
dia em que desmancharam o noivado, dividiu o total por dois e
se sentiu com direito a ser reembolsado na metade das despesas.
E para provar que era um sujeito organizado, mostrou
autoridade a cpia da carta que enviara a Conceio, carta esta,
que transcrevemos aqui, em seus trechos principais. Diz assim:
"Primeira vez que samos juntos 1 caf 1,50. Cinema
Alhambra 25,00. Cinema Dom Pedro (duas vezes) 30,00
Conduo, nas vezes que fui ver voc e gastei por sua causa
30,00. Uma vez que jantamos juntos logo que voc chegou do
interior 300,00. Duas vezes Cinema pera 50,00. Duas
vezes que paguei Cinzano no bar 20,00. Uma vez Cine
Anchieta 25,00. Uma vez Cinema Osis 30,00. Uma vez
que fomos juntos "Boite Asteca" 700,00. Gastos com
voc no Bar urea 280,00. Metade da despesa de txi (Baile
da Moca) 50,00. Um presente para sua me 16,00.
Dinheiro que lhe dei, quando voc foi ao Paran 100,00.
Trs pratos
30,00. Dias dos Namorados (uma blusa) 315,00.
Uma xcara que dei para voc 10,00. "Despesas" que fiz com
voc (no especificadas)
400,00. Total que voc me devo 2192,00. (ass): . Joo
Augusto de Melo, ex-noivo."
Esta a relao que est na cpia da carta que Joo cansou
de enviar a Conceio, sem que a dita se mancasse. E Joo (ex-
noivo, como ele mesmo se catalogou), deve ter ficado indignado
com o pouco caso de Conceio para saldar a dvida. Sim, por-
que Joo um "po-duro" desgraado. Em trs anos de namoro,
pagou Cinzano uma vez, deu de presente uma blusa, uma xcara
e trs pratos. Isto sem contar o presente de 16 mangos que deu
pra me l dela. Que diabo de presente teria sido esse, to preo
de queima total para entrega das chaves?
Joo no diz. No diz porque um ex-noivo discreto,
predicado que deixa antever naquela marotssima "Despesa"
(entre aspas) no especificada. Conceio no quis explicar ao
comissrio, qual era a "despesa" no especificada. Mas est na
cara, n Joo? Foi quarto de hotel suspeito e voc, mais "po-
duro" do que discreto, castigou na relao. E est com toda
razo. Pois se vocs foram juntos, por que que ela no vai
pagar tambm, ou no ? Cobra mesmo Joo. Cobra mesmo,
ex-noivo organizado.
.
O PELADO NA ARTE PLSTICA
O PAPA Joo XXIII decidiu que sero (se j no foram)
vestidos os anjos de mrmore da baslica vaticana. Os jornais
europeus que vivem a citar Stanislaw fazem muitos
comentrios a respeito e alguns deles estranham a medida,
dando outros detalhes sobre como sero "vestidos" os anjos.
Dizem que Sua Santidade ordenou que fossem "vestidos" com
reboco.
Tia Zulmira na sua infinita sapincia garante-nos que
no a primeira vez que um Papa manda vestir os nus. Em 1555
(o Brasil, portanto, era um garoto) Paulo IV mandou pintar
roupinhas no "ltimo Julgamento", de Miguel ngelo, trabalho
que foi feito pelo alfaiate-pintor Ricciarelli. Em 1595, o Cardeal
Farnse mandou "disfarar" a esttua da Justia (uma Justia
nua como a verdade, lgico) que existia (e ainda existe) no
mausolu do Papa Paulo III. E Tia Zulmira garante que Pio IX,
mais recentemente, se contentou em adornar com folhas de
zinco os mrmores "imodestos" do Vaticano.
Conta ainda a prendada senhora que, depois que puseram
folhinhas de parreira de zinco nos anjos do Palcio, em dias de
vento, as folhinhas balanavam e os anjos faziam uma
barulheira danada.
Eis, portanto, que o Papa Joo XXIII, na sua infinita
bondade, no foi indito, mas um seguidor. E isto quem diz no
aqui o bestalho, mas a clebre Tia Zulmira.
Alis, Stanislaw lembra que no de hoje que existe essa
controvrsia a respeito de nus. A censura no mundo inteiro
sempre implicou com os nus. No teatro rebolado, por exemplo, o
nu permitido desde que a mulher fique esttica no palco.
Mexeu, multou! Agora, no nos perguntem por qu.
Na verdade, mulher despida no arte... artimanha. Pelo
menos num palco do teatro rebolado. Na moldura de uma cama
como costuma dizer o poeta, no arte... artifcio. E na
moldura de um quadro, mulher nua, ou mesmo homem (que nos
perdoem a citao de mau-gosto), ou ainda anjo, s deixa de ser
arte quando prevarica o artista.
A Igreja, no entanto, reconhecendo a arte e o artista, por
mais artista que seja o distinto, no
acredita em respeito ao belo. A humanidade cheia de
truques e est sempre de olho. Quem v anjo e pensa maldades
est muito mais pro lado da Colnia Juliano Moreira do que pro
lado do Vaticano. O Papa, no entanto, no quis saber disso. E
mandou castigar reboco em tudo que foi anjo da Baslica de So
Pedro. Fez bem, uai!
Stanislaw sempre se lembra de um gr-fino novo-rico que
comprou uma poro de quadros de mulher nua, porque ouviu
dizer que "o nu" era chique. Comprou e espalhou pelas paredes
de sua imensa sala de visitas.
Mas certa vez quando estvamos s ns dois ali,
tomando um penltimo, confessou:
Eu s comprei esses quadros porque minha mulher me
chateou e todos esses calhordas que vm aos nossos coquetis
vivem elogiando. Mas, para lhe dizer a verdade, desde que eles
esto pendurados na parede, eu me sinto um pouco vivendo em
penso alegre.
Era um dos poucos granfas que era sincero. To sincero que
jamais se referiu aos quadros para cham-los de "nus". Sempre
que se referia a eles, chamava-os de pelados.
QUEREMOS VER SANGUE"
SIM, companheiros, o direito da gente se divertir sagrado e
devia, inclusive, figurar na Constituio. verdade que, mesmo
com garantias constitucionais, a diverso de cada um no estaria
assegurada. A Constituio prev, mas nem sempre garante.
Veja-se por exemplo, o Ttulo V, captulo primeiro, artigo 145,
pargrafo nico da chamada Carta Magna. Foi Tia Zulmira que
nos chamou a ateno para ele. E l est:
"O trabalho obrigao social e a todos assegurado o
direito de um trabalho que possibilite existncia digna."
Leram bem? Pois Tia Zulmira tambm leu e chegou
concluso de que existem centenas de pessoas
anticonstitucionais pela a. Segundo a veneranda senhora, basta
abrir a porta de uma boite s 4 da matina que a gente v um
monto de gr--fino badalando l dentro; assim como basta
olhar a praia num dia de sol que a gente percebe centenas de
pessoas que, deitadas na areia de barriga pra cima, no pensam
em levantar e ir at o palcio, reclamar do Executivo o direito de
trabalhar que o tal artigo 145 da Constituio lhes garante.
A veneranda senhora estava um pouco revoltada com essa
gente, mas explicamos a ela que so todos amigos do Governo e
que ficam sem trabalhar para no prejudicar o Executivo e
obrig-lo a ser constitucional em tudo.
Mas voltemos ao divertimento, que coisa mais amena.
Dizamos que, mais do que um direito, o divertimento uma
necessidade e essa premncia em esquecer os indefectveis
aborrecimentos de todos os dias que cria os mais estranhos
processos de distrao.
Stanislaw homem de muito saber, mas confessa que no
sabe se o divertimento varia em relao mentalidade do
indivduo. Se assim , dois velhinhos que conhecemos destroem
todas as teses a esse respeito. Cidados pacatssimos, desses que
no se revoltam nem assistindo o programa de televiso do Jaci
Campos, eles se divertem com... crimes.
Diariamente compram nas bancas quantos jornais
sensacionalistas estejam venda e vo para casa ler e comentar.
de v-los, companheiros, sentadinhos nas poltronas da sala, a
falar sobre crimes.
Cada manchete um prato novo: "Atirou-se para a morte a
jovem infelicitada" e o que leu exclama: "Bacana!"
Olha este aqui mostra o outro, sem conter a excitao
e l alto: "Lavou com sangue a honra da amsia"... ba!
E l vo, de desgraa em desgraa, saboreando o noticirio:
"Achado macabro na Barra da Tijuca"; "Ingeriu lisol em forte
dose"; "Esfaqueou o vizinho por causa da cachorra"; "O tarado
de Parada de Lucas outra vez em evidncia"; "A meretriz
anavalhou o martimo"; "Furtou o cego e espancou o paraltico";
"A vedeta cortou outra vez os pulsos".
Tudo isso para eles muito divertido. Sabem de todos os
crimes e desgraas, torcem pela captura ou evaso deste ou
daquele criminoso e tm idias prprias sobre as ocorrncias
policiais, criticando entre si a ao das delegacias. E esto de tal
forma acostumados leitura da "Luta Democrtica" que, noutro
dia, quando a netinha de um deles perguntou o que vinha a ser
formicida, o av respondeu:
Formicida um preparado timo para matar domsticas.
NOS ALCANTILADOS DA VIDA
NESTA cidade onde o Chefe do Servio de Engarrafamento
de Trnsito faz o possvel para que todos conservem a direita,
muito perigoso dirigir alcoolizado. Dir a a senhora que ainda
h pouco recebeu telefonema da costureira e mandou dizer que
tinha ido almoar com titia, que dirigir alcoolizado em qualquer
cidade perigoso.
De fato, a distinta tem razo. Mas, acontece que aqui, dirigir
de qualquer maneira, com a cara cheia ou no perigoso;
logo, dirigir alcoolizado mais perigoso do que nos outros
lugares. Ns temos chofer particular e no precisamos nos preo-
cupar com isso, mas como somos guia espiritual de vocs
no custa dar alguns conselhos.
Gomo, minha senhora? quem o nosso chofer particular?
um sujeito malcriado que s vendo. Chama-se Motorista de
Praa. Mas... dizamos, dirigir com presso de cachaa ou
similares muito rebarbativo, razo pela qual temos que render
homenagem queles que, em saindo do botequim meio sobre o
baratinado, deixam seus respectivos carros onde estiverem e
tomam um txi que, se dirigido por bbedo, problema da
Inspetoria e o passageiro morre sem qualquer responsabilidade.
J vimos muito playboy sair do "Sacha's" caneado e meter
uma segunda no MG, crente que est impressionando a turba. J
vimos tambm muito sujeito dito srio entrar pelo cano graas
mesma mania. Por isso ficamos muito impressionados ontem,
quando o nosso coleguinha entornador de usque Adolfo
Gusmo nos contou a histria do gr-fino, seu amigo, que foi
boite com o filho e, sada, entrou no carro com o rapaz e
perguntou:
Voc no acha que ns estamos muito triscados para
dirigir?
O filho achou que no, que, se fossem devagar, no havia
perigo. O pai concordou logo, os dois entraram no carro e
saram em frente. No tinham corrido um quilmetro, quando o
pai disse pro filho:
Meu filho, se voc continuar correndo assim eu salto.
O filho, ento, fez ver ao pai que seria uma temeridade
saltar.
Por qu? perguntou o g-fino.
Porque quem est dirigindo o senhor respondeu o
playboy.
MENTALIDADE DE CARBURADOR
ESTAVA a pracinha posta em sossego, com as criancinhas
brincando na grama, raros casais em colquios, aproveitando o
buclico (lembra nome de remdio antigo. .. duas gotas de
buclico para sua asma) recanto. Havia um sorveteiro de um
lado e um pipoqueiro do outro, ambos vendendo regularmente
as respectivas mercadorias. No bar, que ficava em frente praa,
um garom servia cafs espordicos. Era, pois, um anoitecer
tranqilo, calmo, acalentador.
Foi nessa altura dos acontecimentos que apareceu o
lambretista de bluso de couro e culos de aviador. Parou a
lambreta em frente ao bar, mas no parou o motor. Pelo
contrrio. Acelerou violentamente, fazendo bastante barulho
para impressionar as domsticas. Depois desligou a mquina,
saltou meio sobre o gacho empinado e deu dois passos para
melhor admirar sua incmoda propriedade.
O sorriso que espalhou em volta, para os que ficaram
parados, com raiva, era um sorriso de superioridade muito do
Marlon Brando. Comeou a andar novamente em direo ao bar,
enquanto ia tirando as luvas de couro que s Deus sabe por
que os lambretistas usam.
No bar deu um assovio para chamar o garom. Era um
autntico carburator boy, a olhar para todos com ar de desprezo
e profunda superioridade. Bebeu de um trago o conhaque
vagabundo (como os cawboys fora de moda) e voltou solene
para a calada, onde um monte regular de garotas e debilides
espiava a lambreta. Abriu caminho entre eles com os cotovelos e
tornou a montar.
Podia ligar a mquina e sair, mas no era ele homem capaz
de resistir tentao de botar mais um pouquinho de banca.
Sentado na lambreta, fingiu que consertava um parafuso. Depois
calou outra vez as luvas lentamente, como um cirurgio beira
de uma operao importante. E a ligou outra vez o motor e
acelerou ao mximo. Toda a pracinha sentiu estremecer o solo.
Mais uma olhada para a direita, outra para a esquerda e saiu
como uma blide, jogando fumaa na cara da gente.
Na esquina vinha um lotao. O lambretista tentou
manobrar, mas o lotao foi mais ligeiro, atirando-o longe. E ao
v-lo no meio da rua, com escoriaes generalizadas, todos
respiraram com alvio. que, hoje em dia, o castigo anda de
lotao.
MENININHA VICIADA
FOI noutro dia, num convescote patrocinado por conhecido
doador de sangue desta praa (existem duas espcies de
doadores de sangue: os que tm conta no Banco do mesmo
nome e os que do coquetel. Exemplo: Jorginho Guinle doador
de sangue tipo B). Enfim, foi na residncia de um tipo B. Nossa
televiso, graas a Deus, enguiara mas sabem como so os
ossos do ofcio tnhamos que assistir a um programa muito
do calhorda, s porque uma membra da nossa frota telefonara
dizendo que trabalhava nele. Ns no tnhamos nada com isso,
pois no cobramos taxa sobre os cachs das nossas protegidas.
Mas que era estria e a moa fez a flor dos Ponte Pretas
prometer que assistiria. Palavra empenhada, palavra cumprida
costuma ser o nosso lema, quando no aparece uma outra
enxutinha no caminho da razo, lgico.
Onde estvamos ? Ah... sim! Ento a televiso enguiou e
no apareceu nenhuma outra mulher. O jeito era cumprir a
palavra e assistir ao programa. Por isso, telefonamos para um
amigo que reside no mesmo prdio que ns e perguntamos se
podamos subir (ele dois mais acima) para usar da sua
televiso:
Prazer imenso, amigo! berrou ele do outro lado do fio,
numa prova cabal de que estava triscado pelo lcool.
Ento subimos. Ele nos recebeu de copinho na mo e
explicou que a visita no seria apenas para ver televiso.
Imagine que ia dar um coquetel dentro de minutos. As mooilas
em flor estavam prestes a chegar e ficariam encantadas de
encontrar ali aquela surpresa: o maior expert em mulheres, em
carne e osso (mais carne que osso).
Fizemos ver que estvamos com a barba por fazer, que a
camisa estava respingada de pasta de dente, que o intento era s
ver o programa e voltar ao tugrio. Mas qual. Ele argumentou
que Humphrey Bogart tambm era displicente e nunca dormiu
sozinho.
E tanto insistiu que, depois de ver o vexame da nossa
protegida, ficamos para os salgadinhos.
Que tipo de damas teremos aqui? indagou Stan.
Senhoras condescendentes, figurinhas ainda no inauguradas ou
manicuras?
Figurinhas ainda no inauguradas respondeu o
anfitrio.
E de fato. Pouco depois comeavam a chegar mooilas assim
como diremos "entreaberto boto, entrefechada rosa"
(obrigado, Joaquim Maria). Chegavam coloridas de carmim,
sorriam para fotgrafos imaginrios e sentavam com aquele cui-
dado das que querem deixar aparecer a angua.
Foi ento que percebemos o quanto esto intoxicadas de
entrevistas essas mocinhas de hoje. Pois imaginem vocs que
s para puxar conversa perguntamos a uma delas:
O que que voc faz, meu bem? E ela, ajeitando-se na
cadeira:
Estudo culinria, adoro "Nuit de Nol", a minha cor
predileta o verde. Leio muito, minha leitura preferida a
Sagan, vou praia e acho Teresa Sousa Campos a mulher mais
elegante que eu j vi.
E antes mesmo que pudssemos pronunciar uma slaba,
perguntou:
Quando que vai sair?
CASO DO MARIDO DOIDO
QUANDO a mulher entrou em casa, vinda de um
cabeleireiro que no tivera tempo de atend-la, foi para
surpreender o marido em flagrante... com a empregada. Era uma
empregada nova (no emprego e na idade), admitida dias antes
para o servio de copeirar e nunca est claro de cooperar.
Assim, surpreendida em afazeres que no eram os seus, a
empregada soltou um grito. Foi ela a primeira pessoa ali naquela
sala a dar com a recm chegada (e, pior que recm chegada...
patroa) parada na porta de entrada. O grito era um misto de
espanto e terror e to alto saiu, que o marido deu um pulo e caiu
em p, no meio do tapete, com uma perna s. A outra perna
ficou no ar, suspensa, como que a aguardar os acontecimentos.
A cena durou uns cinco segundos, se tanto. Depois a copeira
correu l para dentro e os dois marido e mulher
continuaram parados: ele ainda numa perna s, de olhos
vidrados, sem mover um msculo. Aparentemente no
respirava, sequer.
A primeira palavra que a mulher disse foi "francamente". A
segunda foi "cretino". O "francamente" era num tom entre
enojado e raivoso. E mais no disse porque o marido mexia-se,
afinal. Trocou a perna que estava no ar pela que estava no cho e
saiu pulando num p s. Deu uma volta completa na sala e se
dirigiu para a porta do corredor, rumo ao elevador.
A mulher ainda esperou que ele voltasse, mas quando
percebeu a demora precipitou-se pelas escadas abaixo, j
prevendo o que aconteceria. Ao chegar ao porto, ele j estava l
do outro lado da rua nuzinho, como Deus o fizera, sempre a
pular como um saci.
Enlouqueceu, de certo. Tido e havido, h mais de dez anos,
como um marido exemplar, ao ser surpreendido em flagrante
com a empregada, o choque fora demasiado grande para ele... e
enlouquecera. Claro que enlouquecera. L ia ele a pular, em
direo praa. Agora gritava a plenos pulmes:
Cauby! Cauby! Cauby!
S doido mesmo. Ele detestava Cauby.
Em seguida mudou de grito. Passou a berrar:
Flamengo, Flamengo, Flamengo.
A mulher sabia que ele era Vasco e pensou consigo mesma
que felizmente no havia ningum na rua, com exceo de um
gari que at h pouco varria os buracos da calada e agora
encostara a vassoura no muro e pusera as mos nas cadeiras para
melhor apreciar aquele estranho rubro-negro.
A mulher tentara em vo traz-lo de volta para casa. Ele se
desprendia de suas mos e cada vez pulava mais alto. Somente o
estribilho que mudara. Agora gritava:
o maior! o maior! o maior!
A mulher no sabia quem era o "maior", se Cauby ou o
Flamengo. Detalhe de resto sem importncia, diante da
idia de que dentro em breve chegariam outras pessoas, atradas
pelos gritos. Tinha que lev-lo de volta urgentemente. Apelou
para o gari mas este no estava muito propenso a se meter com
doido.
Que que o senhor est fazendo a parado? perguntou
a mulher para o gari.
Nem o gari sabia o que estava fazendo na rua. Mesmo assim
por hbito respondeu que sua funo era de lixeiro. E a
mulher, que trazia viva na mente a cena da sala, comentou:
Este homem no deixa de ser lixo tambm. Graas a esta
observao, o gari recolheu-o.
Agora vinha mais calmo. J caminhava direito e o acesso de
loucura parecia ter passado, quando, no elevador, seguro pela
mulher direita e pelo gari esquerda, comeou a recitar
Shakespeare em francs. Embora nu, segurava uma tnica
imaginria e se dizia Marco Antnio:
Ctait le plus noble Romain d'eux tous. Sa vie fut noble,
et les divers lments taient si bien mls en lui que Ia nature
pouvait se lever, et dire 1'univers entier: "Celui-l tait un
homme!"
Finalmente a mulher, o gari e Marco Antnio chegaram ao
seu destino. A primeira deu uma gorjeta ao segundo e carregou
o Imperador para o quarto, Imperador que j no era Marco
Antnio pois, contrariando a Histria Universal, fora substitudo
por Csar, a murmurar em tom de lamento:
Et tu Brutus! Et tu Brutus!
E a dizer estas trs palavras ficou,, at a chegada dos
parentes. Todos, um por um, tentaram conversar com ele sem
nada conseguir. Depois foi chamado um psiquiatra, o nico que
se fez ouvir e que, ao sair do quarto, aconselhou um ms de
repouso num sanatrio para doentes nervosos.
O marido foi, calado e triste. Um ms e pouco depois estava
de volta, com a recomendao expressa dos mdicos para que,
de modo nenhum, comentassem com ele o caso da empregada.
E, neste instante, deitado na cama, o marido, aparentemente
distrado, pensa nos acontecimentos dos ltimos tempos. No h
dvida de que representara bem o seu papel de louco. At os
mdicos foram na conversa. Mas, pouco a pouco, sua ateno
desviada para os movimentos da nova copeira que
inocentemente espana os mveis. J ia cham-la suavemente
pelo nome quando se lembrou que a mulher sara para ir ao
cabeleireiro e bem podia voltar antes da hora, caso no fosse
atendida. Mesmo assim chamou a copeira e esta, quando j
vinha vindo, recebeu ordem para trazer um caf.
Quando ela saiu do quarto, respirou fundo e pensou:
Ser que eu fiquei maluco mesmo?
O HOMEM QUE VIROU ELE
TEMOS um amigo cigarra... At a tudo normal, como
dizem os anormais. Mas que esse amigo cigarra, no seu
prprio entender, prevaricou. E prevaricou no violento.
Imaginem vocs que, bastou que a "outra" (vejam vocs que
monstro de cigarra, chama a esposa de "a outra")... bastou que "a
outra" subisse para Petrpolis para ele alugar quarto num hotel
muito bonzinho que tem portaria compreensiva.
Vocs esto seguindo o nosso raciocnio? Pois vamos em
frente: de posse da chave do novo lar sumiu da residncia oficial
e foi vida, se organizando em outras curriolas, muito sobre o
animado, esquecido que mulher esposa mulher bem infor-
mada, no somente pelo muito que investiga (com honrosas
excees), como tambm pelo muito de informativas que so as
pessoas amigas, cujas gostam de ver fogo na giranda do
doutor.
Ainda esto nos acompanhando? Muito bem. Sigamos: a
mulher soube, talvez antes que ele, do caso com a mariposa do
luxo e do prazer como diria o poeta... Sabem como , marido
como boi solto, que se lambe todo. Com quarto em hotel con-
descendente, com a mulher em Petrpolis, choveu mooila...
Uma noite no "Hi-Fi", outra no "Drink", uma ida Barra da
Tijuca no carro de outro cigarra, para a clssica intoxicao com
camaro, e l se foi ele a simpatizar mais com esta do que com
aquela at que... pimba ficou de cacho.
Como, minha senhora? O que vem a ser "ficar de cacho"?
ficar sob o signo da amigao. A senhora desculpe, mas a forma
grosseira de expresso foi para esclarecer melhor.
Um homem de cacho com mulher em Petrpolis no vai em
casa nem para trocar de roupa. D uma nica passada no lar,
apanha um bolo de camisas, outro tanto de meias, pega o terno
claro para quando no chover e o azul-marinho para quando
chover e esquece de mudar a gua do canrio.
Tudo num txi, parte feroz para o hotel mais camarada
pouquinha coisa. Vanja vai, vanja vem, esquece at de subir
para Petrpolis no fim-de-semana. Isto imperdovel mesmo no
pior dos cigarras e, no entanto, aconteceu com esse nosso amigo.
Resultado: passou o Carnaval, veio a poca do colgio das
crianas e "a outra" se despencou serra abaixo, sabendo de tudo,
inclusive com uma capa da revista "Mundo Ilustrado", onde ele
aparece de braos abertos para a objetiva, fantasiado de baiana
rica.
Agora ele se despediu da mariposa do luxo e do prazer
(jurou-nos que era um encanto de moa e no aceitou nem as
duas notas de mil que ofereceu para calar a saudade), pagou o
hotel de porteirinho cego e retornou ao lar.
Voc no imagina o vexame. L ningum fala comigo.
O canrio morreu de sede, ou de fome... sei l. O cachorro,
aquele desgraado, que eu curei de bronquite, est me
esnobando. Quando eu passo ele no levanta nem o focinho.
Limita-se a abrir um olho... um olho de reprovao que me d
calafrios. Minha filha est muda.
E sua mulher? indagamos.
Essa me chama de ele.
Chama de qu?
De ele. Se o almoo est na mesa, ela diz pra empregada:
"avise a ele". Se o telefone toca, a prpria empregada que
atende e diz pra minha mulher: " para ele". Virei "ele" em
minha prpria casa.
Coitado do nosso amigo. Badalou muito. Agora agente.
Nisto de conseqncias, estamos com Tia Zulmira, quando
disse: "Passarinho que come pedra, sabe o que advm".
'
O PASSAMENTO DE "BETTE DAVIS
GILBERTO Milfont e Lcio Alves so cantores, o que
ningum ignora, nem mesmo os que nasceram para conjugar o
verbo ignorar. Mas quando param de cantar s pensam em
cavalo de corrida. Vai da, no somente apostam nos cavalinhos
da Gvea, como nos cavalinhos de Cidade Jardim, dada a
condio de contratados da TV Record, de So Paulo, onde vo
semanalmente.
Pois noutro dia Gilberto Milfont estava no aeroporto, pronto
a embarcar para So Paulo, quando o microfone anunciou o seu
nome. Foi Gilberto saber o que era e era telefone. Gilberto
atendeu:
Al, Gilberto? Lcio Alves. Assim que voc chegar
em So Paulo, v l na Record, pea dez contos ao Blota Jnior
em meu nome e jogue na gua Bette Davis, no quinto preo.
Mas s jogue se pagar 25 pratas, seno no interessa.
Mas Lcio... tentou explicar Milfont, embora Lcio
j tivesse desligado.
Desligou tambm e embarcou. Chegando em So Paulo,
Gilberto seguiu direto para a Record, a fim de procurar o
diretor-artstico Blota Jnior, que alis no to artstico assim
como pensa o prprio. Chegou, explicou, e Blota, que desses
que depois do almoo palita os dentes com um lado s do palito,
pra economizar o outro lado pra depois da jantar, fez cara de
choro e disse que s tinha 5 contos. Estava quase na hora de
correr o 5. preo e ento o Gilberto Milfont aceitou os cinco e
se sacudiu pro Jquei.
Chegou bem na hora da ltima apregoao. Bette Davis era a
favorita e estava cotada a 23. Lcio dissera que menos de 25 no
valia a pena. E ento Gilberto guardou o dinheiro e foi ver o
preo correr. O diabo que, assim que chegou junto da cerca,
reparou no placar e viu que a cotao subira pra 26 e no dava
mais tempo de jogar.
O Lcio me come vivo se essa tal de Bette Davis ganha o
preo pensou Milfont. Ele deve estar no Rio torcendo mais
que nariz de gr-fino, quando fala com pobre.
O jeito era torcer contra. O preo saiu e Bette Davis pulou 10
corpos na frente dos outros e saiu disparada. Giberto, encostado
na cerca, rezava pra Bette Davis mancar e quanto mais ele
rezava mais Bette Davis corria. Na entrada da curva ela vinha
com 15 corpos e Gilberto torcia tanto que a camisa estava
ensopada de suor.
Pra, desgraada dizia ele, entre dentes.
E Bette Davis pareceu ouvir. Na reta final comeou a correr
menos. Oito corpos, sete, cinco, dois e todo o lote passou por
Bette Davis com Gilberto todo torcido. E a gua veio parando,
veio parando e parou bem na frente de Gilberto. O jquei saltou
para examinar Bette Davis mas no teve tempo. Ela deu uma
tremedeira rpida e caiu na pista. Estava morta.
Gilberto Milfont saiu dali e telefonou pro Rio. Lcio atendeu
do lado de c e perguntou:
Como ? Deu Bette Davis? E Gilberto, na maior
dignidade:
Por sua causa eu acabo de matar uma das maiores atrizes
do cinema americano.
TRISTE... MUITO TRISTE
SIM, companheiros, muito triste um pai educar uma filha
para corte, costura e o chamado trivial que vai do pregar boto
ao fazer feijo, e depois, quando a filha fica pronta vira Elegante
Bangu. triste mesmo!
Mas no se deve negar aos homens o direito do vexame. .
triste um pai criar um filho dentro das linhas que obedecem aos
princpios da sagrada burguesia, pagando-lhe o colgio,
alimentando-o para que um dia possa trabalhar e descontar para
o IPASE e depois, quando o filho fica pronto, mete uma
cabeleira loura e sai fotografia dele nos jornais, "travestido" em
Rainha Morna.
No menos verdade, no entanto, que triste, muito triste
me devota fazer sacrifcio para vestir e calar filha rf de pai,
dando duro em emprego modesto, gastando com economia o
montepio do falecido e depois, quando a filha fica mais ou
menos o nmero que a gente usa, sai por a arranjando voto para
ser Rainha sabe-se l de que trono.
Inegvel, contudo, que a tristeza paira sobre o semblante
do pai que no saiu de casa "naquele dia" por amor ao garoto, a
quem orgulhosamente deu de tudo e depois, quando o filho se
sentiu capaz de certas coisas, ver esse filho desfilando na passa-
rela no Joo Caetano, no baile aquele.
E por que faltar com a verdade, fingindo ignorar o quanto
triste para me extremada ver a filha ir encorpando, encorpando
e fugindo ao seu controle, at o momento em que l uma
noite volta para casa dizendo que ele casado e no h mais
nada a fazer?
Como triste tambm uma famlia do Norte, que sofre com
o agreste da regio e a proliferao exagerada de filhos, criar as
crianas com o sacrifcio da fome e, um dia, o mais velho dos
filhos embarcar para a capital s para ser cronista mundano.
triste sim, muito triste.
Alis, triste, sem dvida, moa que se diz bem, que detesta
certas intimidades com as chamadas mariposas da noite,
freqentar o "Sacha o ano inteiro e depois, quando chega
fevereiro, meter um maio legal no corpo e ir pro baile carnava-
lesco dizendo que est fantasiada.
Sim, companheiros, tudo isso muito triste pra ns, porque
os citados no desconfiam nunca. Para eles as bestas so as do
apocalipse, se que j ouviram alguma vez falar em apocalipse.
No, companheiros, eles no desconfiam nunca. Tanto no
desconfiam que noutro dia ouvimos uma moa dizer para
um rapaz que a convidara para ir comer galeto na sua lambreta:
Que que voc est pensando? Eu no sou uma qualquer.
Eu sou bailarina do "Bolero" ouviu?
UM CONTISTA SEXY
A SEDE de revistas que, de uns tempos para c, vinha
entortando a mentalidade de mocinhas suscetveis de minhoca
na cabea deve estar saciada. Tem revistinha pra cachorro nas
bancas. E cada uma com nome mais bonito: "Querida",
"Seduo", "Intimidade", "Capricho", "Stimo Cu", "Destino",
e
por a a fora. As tais fotonovelas, em que esto sendo usados
gals frustrados do cinema nacional (no menos frustrado, ol),
so brbaras. A mocinha pobre, o rapaz namora uma granfa.
No fim a granfa entra bem e na ltima fotografia a mocinha
pobre est pendurada no beijo do gal frustrado.
Tem um monte de mocinhas que no perde uma dessas
revistas editadas pelos maiores sexy relations da imprensa
autctone. L a fotonovela (l, no. Espia, porque histria em
quadrinho com fotografias) de cima a baixo e fica tinindo. Os
contos tambm so timos, mas tm uma ilustrao s. Ou
uma cara de mulher desesperada, ou um beijo diablico, que
encima o ttulo do conto. O ttulo tambm legal: "Eu amava o
meu primo", "Minha vida era Geraldo", "Casei-me com um
hipcrita", "Fuga para o encanto" e outros que tais.
Como, minha senhora? Quem so os autores? Varia muito,
madame. Geralmente so nomes de "escritoras" americanas:
Nancy Gilbert, Dothy Longfellow, May Taylor. Mas tudo de
araque. Os autores so "ns mesmo" como diz o Al Neto. Isto
, rapaziada daqui mesmo, que escreve a coisa como se tivesse
acontecido em Las Vegas, Califrnia ou Londres, mas tudo foi
imaginado e datilografado noite, num modesto apartamento do
Mier. E o conto, vendido razo de uma abbora, quando
muito, sempre ajuda a faturar a quinzena.
Stanislaw tem um amigo que especialista em contos de
amor para as revistas dos sexy relations. Ele faz o mesmo conto
sempre, mas tem o cuidado de mudar os nomes dos personagens
e dos lugares onde acontecem os beijos ou as bolachas, assim
como o ttulo, naturalmente. Depois assina Lillian Clark, ou
Jane Underwood, ou mesmo Joan L. Macmillan e vai vender na
redao. Sempre d pro feijo.
Agora, bom mesmo escolher ttulo para fotonovela ou para
os contos de amor. Ele telefona e pergunta :
Stan, que tal "Aconteceu nas Bermudas"?
Fraco respondemos.
E depois queremos saber quais foram as modificaes
introduzidas no conto. Ele explica que tudo naquela base e
ento propomos:
Que tal "Beijo de fogo em noite de frio"? A, ou o
"escritor" exulta do lado de l, ou responde enftico:
Esse nome eu j usei ontem.
E assim vamos vendo as possibilidades, at que chega o
ttulo ideal. Mas o que foi timo mesmo foi quando na
semana passada um sexy relations mandou perguntar se
Stanislaw no queria escrever alguns contos no referido estilo,
com o pseudnimo de Brigitte Sagan. E antes que recusssemos,
prometeu dez abobrinhas por cada imbecilidade.
Aceitamos. Somos atualmente o entorta-dor de
mentalidade feminina mais bem pago da imprensa sexy.
NOTCIA DE JORNAL
QUEM descobriu, perdida no noticirio policial de um
matutino, a intensa poesia contida no bilhete do suicida? Creio
que foi Manuel Bandeira. Sim, se a memria no falha (e, meu
Deus, ela est comeando a falhar), foi o poeta Bandeira. Ele
que tem o dom da poesia mais forte. Claro, todos ns somos
poetas em potencial, amando a poesia no vo de um pssaro, na
comovente curva de um joelho feminino, no pr do sol, na
chuva que cai no mar. Mas ns somos os pequenos poetas, os
que sentimos a poesia, sua mensagem de encantamento, sem
capacidade bastante para transmitir ao amigo, amada, ao
companheiro aquilo que nos encantou.
Ento Deus fez o poeta maior, aquele que tem o dom de
transmitir por meio de palavras toda e qualquer poesia, seja ela
plstica, audvel, rtmica; sentimento ou dor.
"A poesia espontnea" disse um dia Pedro Cavalinho, o
tmido esteta, enquanto descamos de madrugada uma rua
molhada de orvalho e um galo branco cantou num muro
prximo. Um muro que o limo pintara de verde.
E mesmo. To espontnea, que estava no bilhete do
suicida. Um minuto- antes de botar formicida no copo de cerveja
e beber, ele rabiscou, com sua letra incerta, num pedao de
papel: "Morri do mal de amor. Avisem minha me. Ela mora na
Ladeira da Alegria, sem nmero."
Manuel Bandeira, poeta maior, nem precisou transformar
num poema as palavras do morto. Leu a notcia em meio s
notas policiais do matutino e notou logo o que podem as
palavras. O homem humilde, que fora a vida inteira um
espectador da poesia das coisas, no ltimo instante, sem a menor
inteno, se fez poeta tambm. E deixou sobre a mesa suja de
um botequim, entre um copo de formicida e uma garrafa de
cerveja, a sua derradeira mensagem a sua primeira mensagem
potica.
Num matutino de ontem, num desses matutinos que se
empenham na publicidade do crime, havia a seguinte notcia:
"Joo Jos Gualberto, vulgo "Sorriso", foi preso na madrugada
de ontem, no Beco da Felicidade, por ter assaltado a Casa
Garson, de onde roubara um lote de discos."
Pobre redator, o autor da nota. Perdido no meio de
telegramas, barulho de mquinas, campainha de telefones, nem
sequer notou a poesia que passou pela sua desarrumada mesa de
trabalho, e que estava contida no simples noticirio de polcia.
Bem me disse Pedro Cavalinho, o tmido esteta, naquela
madrugada: "A maior inimiga da poesia a vulgaridade."
Distrado na rotina de um trabalho ingrato, esse reprter de
polcia soube que um homem que atende pelo vulgo de "Sorriso"
roubara discos numa loja e fora preso naquele beco sujo que fica
entre a Presidente Vargas e a Praa da Repblica e que se chama
da Felicidade. Fosse o reprter menos vulgar e teria escrito:
"O Sorriso roubou a msica e acabou preso no Beco da
Felicidade."
HISTRIA DO RIO DE JANEIRO
A COISA comeou no sculo XVI, pouco depois que Pedro
lvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou
a confuso, isto , encontrou o Brasil. At a no havia Rio de
Janeiro.
Depois, em 1512 segundo o testemunho ocular de Brcio
de Abreu , rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da
barra descobriram uma baa muito bonita e, distrados que
estavam, no perceberam que era baa. Pensaram que era um rio
e, como fosse janeiro, apelidaram a baa de Rio de Janeiro. Eis,
portanto, que o Rio j comeou errado.
Passaram-se os anos, os portugueses no deram muita bola
pra descoberta, e vieram uns franceses intrusos e se alojaram na
baa. Foi ento que os portugueses abriram os olhos e, ao mesmo
tempo, abriram fogo contra o invasor, chefiados por um des-
temido cavalheiro que atendia pelo nome de Estcio de S (onde
mais tarde se fundaria a primeira escola de samba, mas isso foi
depois). Estcio era sobrinho de Mem de S, ex-governador-
geral, e primo de Salvador de S, que mais tarde viria a governar
a cidade. interessante notar que, muito tempo depois, quem
descer pela Rua Mem de S vai dar na Rua Salvador de S que,
por sua vez, passa pelo Largo do Estcio, tambm de S.
Quando os comandados de Estcio de S iniciaram a batalha
contra os franceses, a coisa foi dura e s se resolveu numa
derradeira batalha travada na Praia de Uruumirim. Para vencer
tiveram que suar a camisa e por isso que, mais tarde, a Praia de
Uruumirim ficou sendo a Praia do Flamengo, o clebre
Flamengo, que, por tradio, sua a camisa at hoje. Isso
aconteceu a pelo ano de 1567 e estava fundada a cidade do Rio
de Janeiro, a mesma que viria a ser, em 1763, capital do vice-
reinado, e depois capital da Repblica dos Estados Unidos do
Brasil.
A cidade foi construda sobre alagadios e a brava gente, que
a construiu, secou to bem os alagadios que at hoje est
faltando gua. Quando, em 1763, foi considerada capital do
vice-reinado, a cidade tinha somente 30 mil habitantes natos e
mais. naturalmente, o Brcio de Abreu, que no nasceu
aqui, mas em Paris, de onde veio ainda pequenino no vapor
"Provence".
Da por diante o Rio de Janeiro foi crescendo, foi crescendo,
foi crescendo e... pimba!... estourou. E, como tudo que estoura,
abriu buraco pra todo lado.
Tal , em resumo, a Histria do Rio de Janeiro, que foi
descoberto por portugueses navegadores e que portugueses do
comrcio atacadista da Rua Acre querem levar para Portugal.
Da o velho ditado de Tia Zulmira: "Cabral descobriu o Brasil e
Manoel quer carregar."
No , como o leitor mais arguto pouquinha coisa pde
perceber, uma Histria to brilhante assim, como pretedem as
letras dos sambas apoteticos.
O HOMEM, O BONDE E A MULHER
CADA um d o golpe que quer. Uns ainda se escudam no
manjadssimo sero no escritrio; outros preferem telefonar
dizendo que chegou um amigo do interior; h os que s arranjam
uma desculpa na hora de chegar. Desta ou daquela maneira,
maridos retardatrios tm seus respectivos estilos, de acordo
com as respectivas esposas.
As esposas, por sua vez, acreditam ou no; fingem acreditar
ou no, e por conta prpria tm suas maneiras de verificar
se o que o marido contou ao chegar era verdade. Nunca , mas...
no custa nada admitir a hiptese, pois hiptese existe para ser
admitida.
Stanislaw tem um amigo que mora numa praa, cuja tem
muitas rvores onde dormem muitos pardais. Para chegar em
casa tem que passar pela praa e, quando chega depois que os
passarinhos acordaram, a mulher controla a hora em que ele
entrou pelo sujo que os passarinhos fizeram na roupa dele. Por
isso o nosso amigo tem horror a passarinho.
No sabemos se vocs leram a notcia de um bonde que
perdeu a direo e entrou numa casa, na madrugada de 22
passada. Nessa mesma noite, cavalheiro de nossas relaes
cujo nome impossvel escrever aqui, pois no somos cronista
mundano que nasceu para incrementar o desquite saiu pela a,
desgarrado de casa, local para onde telefonou por volta de 7 da
noitinha, avisando que ia conveno do PSD (ele na hora
esqueceu que votara no Jnio).
Calado o regresso, pelo menos no seu entender, tomou
umas e outras e telefonou mais uma vez, agora para uma
desajustada em disponibilidade amorosa, que, quando se
encontra em estado de "jogada fora", sai com ele. Meteram um
buteco legal, espalharam muita brasa e, quando os leiteiros j ti-
nham recolhido as carrocinhas, ele chegou em casa. Eram 4 e l
vai perdigoto.
Tirou a roupa e deitou, como bom pessedista, fingindo que
vinha da conveno, embora o bafo. A mulher, no dia seguinte,
no lhe dirigiu a palavra e ele, para confraternizar, puxou
conversa de todo jeito, acabando por pegar o jornal e comear a
ler.
Ao passar os olhos na coluna de polcia, deu com o
cabealho:
"De madrugada bonde entra em casa." Virou-se para a
mulher, para tentar mais uma vez a pacificao, e disse:
Ouve s, querida, que notcia curiosa. E leu: "De
madrugada bonde entra em casa."
A mulher olhou-o com desprezo e comentou apenas:
Aposto como entrou mais cedo do que voc.
"NOSSA SOCIEDADE"
FAZ muitos anos que nos deram de presente "Nossa
Sociedade", trabalho caprichado e caprichoso de senhoras que se
dedicaram a organizar uma espcie de catlogo, muito bem
apresentado, com a relao das pessoas "bem" do nosso Brasil
amado, predominando nessa relao gente "bem" do Rio e gente
"bem" de So Paulo. Faz muito tempo, mesmo, que nos deram
de presente o "Nossa Sociedade". Foi h bem uns dez anos,
tanto que a primeira edio.
Tudo se resume em dar a ficha da pessoa "bem", catalogada
entre "solteiros", "casados" e "solteiras", daqui ou dali. Por
exemplo: no setor das "solteiras" podemos encontrar:
Mariazinha Pereira filha de Joo Pereira e de Dona Maria
Pereira __Residncia: Rua Mata Cavalo, 35 Casa de Ve-
raneio: Avenida das Accias, 25 (Petrpolis) Telefones:
Residncia: 34-2020. Veraneio: 0012. Tudo muito legalzinho.
Se Dona Mariazinha Pereira trabalhasse, tinha o telefone e nome
do patro. E se Mariazinha Pereira fosse casada, estaria na lista
dos "casados", junto com o nome do marido, mas constando
tambm seu antigo nome de solteira. H ainda uma lista
diplomtica extra.
Agora vimos numa vitrina de livraria society (dessas livrarias
metidas a francesa, que vendo muito bagulho com capa
encadernada, mas onde a gente de vez em quando acha
uma preciosidade que as outras livrarias no tm), vimos, repeti-
mos, a mais recente edio do livro "Nossa Sociedade". uma
edio alguns anos (quase dez) mais nova do que a que nos
mandaram, mas est to desatualizada quanto aquela.
Comparando as duas edies que pudemos notar o trabalho
impressionante que devem ter as senhoras que organizam o
livro, para poder atualizar a gente "bem". Vocs podem pensar
que estamos exagerando, mas no estamos no. Muito camarada
que era "casado" na primeira edio passou a "solteiro" na
segunda, para ser novamente "casado" na terceira ou na quarta
edio.
Nosso society no cultiva com escala razovel a tradio da
residncia e, por isto, um fulano podre de chique, que morava
num palacete da Rua
So Clemente (l.
a
edio), habita um apartamento da
Avenida Atlntica (3.
a
edio). 0 elegante de 1950, que tinha
moradia em Petrpolis com piscina e tudo, um teso em 1954,
j no tendo, portanto, a casa de veraneio, vendida antes de sair
a segunda edio, para pagar suas firulas excessivas.
E na lista dos "casados", onde as casadas aparecem com o
nome de solteira ao lado do respectivo marido, que reside a
grande dificuldade de atualizao do livro. Gente "bem" muda
muito e Mme. Fulano de Tal j no mais, porque voltou pra
lista das "solteiras", ou ento est na lista dos "casados" ... mas
com outro.
muito difcil manter atualizado o livro "Nossa Sociedade.
Aconselhamos aos interessados a, anualmente, jogar fora a
edio antiga e comprar a nova. E mesmo a nova, quando
consultada, que o seja com cautela.
O CASO DO TATU
ERA um tatu. Nada mais que um tatu, bichinho que rivaliza
com a Prefeitura na arte de esburacar. Um tatu segundo a
cincia nome comum a diversas espcies de mamferos da
famlia dos Dasipoddeos mas este de que falamos, embora
dasipoddeo, no tinha famlia. Fora adotado pelo cavalheiro de
cala cinzenta e unhas idem, cara de debilide e camisa de meia,
com as tradicionais cores do Flamengo. Alis, diga-se a bem da
verdade, no podamos saber se ele era torcedor dos rubro-
negros. O fato de envergar a camisa do Flamengo no quer dizer
que o camarada seja rubro-negro, conforme cansou de provar o
beque Tomires, em furadas comprometedoras para o clube da
Gvea, quando era titular do time.
Mas dizamos era um tatu. O dono do tatu usava-o
para chamar a ateno sobre si mesmo. Assim como Luz Del
Fuego usa cobra, Barreto Pinto usa cueca e Salvador Dali usa
bigode, o camarada usava o tatu para se fazer notado.
Aos poucos foi chegando gente. Primeiro um garoto com
uniforme de estafeta. Parou e perguntou que bicho era. Era tatu..
Depois uma mulata gorda, que vinha em companhia de uma
branquinha (mais de inanio que de raa). As duas pararam
tambm e ficaram olhando o tatu. S o tatu que no dava bola
pra ningum. Talvez no fosse um tatu-bola.
O grupo, pouco depois, j era bem seleto. Havia mais dois
estafetas, um sujeito com pinta de contnuo de escritrio,
diversas senhoras de variadas camadas sociais, dois ou trs
senhores de pasta, outros tantos sem pasta, uma mulatinha que
fazia quase tanto sucesso quanto o tatu (dadas as suas harmo-
niosas linhas) e mais gente de somenos.
O tatu fuava a calada um pouco humilhado, talvez por
perceber que calada no coisa que tatu possa esburacar. A
Prefeitura tem exclusividade. Ia e vinha num raio de dois metros
e tanto, restringido pela cordinha que o camarada de camisa do
Flamengo prendera no seu rabo.
Que bicho este? perguntou a mulata que fazia
sucesso.
Cinco ou seis que estavam de olho nela responderam
pressurosos:
Tatu.
Ela fez um "ahhh" de espanto e coqueteria que lhe ficou
muito bem. Um moleque tentou cotucar o tatu com a ponta de
uma vara. O dono estrilou. No seria um estrilo convicto se no
recebesse a adeso da mulata gorda que se fazia acompanhar da
branquinha esqueltica.
Falta de religio. Cotucar o tatu. Alguns aprovaram.
Outros resolveram ficar contra o dono. Por que um tatu na
esquina da Avenida Rio Branco com Visconde de Inhama? O
bichinho podia morrer. Quem sabe no comia h horas? As
hipteses cresciam, enquanto crescia o movimento pr-tatu.
Quando maior era o grupo, mais numeroso o contingente de
curiosos, o dono do tatu puxou-o pela cordinha, agarrou-o e o
colocou dentro de uma gaiola. O tatu no se chateou; ao
contrrio da mulata gorda, lder tatusta no local.
Sem dar ateno a ela o dono do tatu armou uma mesinha
precria na calada, colocou sobre ela estranhos vidrinhos e
diversos pedacinhos de uma coisa indefinida e que depois ficou
esclarecido que eram calos. Pigarreou e meteu l:
Senhoras e senhores, nenhum de ns est livre de possuir
um calo. por isso que eu lhes apresento este maravilhoso
preparado que o maior inimigo das calosidades, mesmo as
mais renitentes.
O grupo foi se desfazendo, o dono do tatu ficou falando
sozinho. O senhor de pasta que saiu caminhando nossa frente
ia meio capengando. Devia ter calo e, no entanto, perdera a
excelente oportunidade de comprar o "maravilhoso preparado
que o maior inimigo das calosidades".
O POLIGLOTA
VOCS desculpem, mas ns num genta! Ns num genta e
preciso desabafar, inscrevendo mais uma vez aqui aquela frase
que a posteridade j reclama com folgada antecedncia: "Ah,
Ibrahim, Ibrahim... se no fosse voc, o que seria de mim?"
Vocs leram o que escreveu o rapaz? No leram? A que
est. Ficam perdendo tempo a ler Gide, Rilke e outros
debilides, depois perdem as maiores jias literrias do famoso
escritor lbano-carioca. Imaginem vocs que Ibrahim agora
em viagem pela Europa, para desmentir definitivamente a
mxima "quem viaja aprende" vem de publicar uma notinha
das mais importantes.
Diz o mestre de Jeff Thomas, o inspirador de Pouchard, que
andou conversando com o Duque de Windsor. Para castigar um
pouco de modstia no seu escrito, o famoso "dramaturco"
explicou que no conversou em portugus, o que, alis, deve ser
verdade, pois o Duque fala um pouquinho de portugus, mas
Ibrahim no.
A conversa foi num misto de espanhol, ingls e francs.
Quem conta o prprio Ibrahim: usando um pouco do meu
modesto espanhol, do meu ingls e do meu francs, consegui
explicar ao Duque de Windsor o que Braslia. Vejam vocs
que pretenso! Explicar a um ingls o que ponto facultativo j
um negcio considerado impossvel pelos brasileiros que
dominam perfeitamente o idioma de Henry Wadsworth
Longfellow, quanto mais explicar em mau ingls, mau francs e
mau espanhol o que vem a ser Braslia.
Braslia, como explicar Braslia a um ingls? Mesmo um
ingls que saiba o portugus direitinho? tarefa mais rdua do
que marcar o Garrincha com um calo no dedo (no dedo do
marcador e no do Garrincha, of course). Como que o Ibrahim,
incapaz de entender-se com qualquer plebeu, em qualquer
lngua, pde explicar ao nobre e sofisticado Duque de Windsor o
que Braslia?
Dizem nossos olheiros especializados que estiveram
apreciando a conversa dos dois, que ambos pareciam ndios de
fita em srie, cada um soltando sons guturais para o outro, numa
troca estranha de sons ininteligveis, onde s se compreendia a
pala-
vra Braslia. Houve um momento em que Ibrahim afirmou:
Braslia es Ia ville brsilienne who est the capital of
Brazil.
O Duque de Windsor arregalou os olhos e no agentou.
Virou-se para a Duquesa que estava ao seu lado e afirmou:
Ill be a circus monkey if this cocoroca is not the famous
Ibrahim Sued.
A PAPAGAIA
ERA uma vez uma papagaia... ou antes, era uma vez uma
senhora que vivia sozinha, era muito catlica e no tinha bicho
nenhum em casa. Como era uma senhora solteirona, ficava at
um pouco puxado para o tarado o fato dela no se dedicar a um
bicho. aqui que entra a papagaia.
Um dia a senhora solteirona sem nenhum bicho em casa foi
visitar uma famlia conhecida. Chegou l, viu uma papagaia
num poleiro, cantarolando. "Que bonito papagaio" ela disse.
"No papagaio. papagaia" disseram para a senhora. E,
como tivesse se interessado muito, a famlia ofereceu a papagaia
a ela.
T na cara que a senhora solteirona sem nenhum bicho em
casa adorou o oferecimento e carregou a papagaia para casa.
Mas a que foi chato. A papagaia era levadssima. Mal chegou
sua nova casa, comeou a dizer palavres homricos, a citar
trechos completos da ltima pea do Nelson Rodrigues, a recitar
o dilogo de "La Dolce Vita" e a dizer coisas horrveis sobre
seus desejos incontidos.
A senhora ficou horrorizada e j ia mandar a papagaia
embora quando chegou um vizinho para visitar. Soube do drama
e disse: "No h de ser nada. Eu tenho l em casa dois papagaios
comportadssimos. To comportados que passam o dia rezando.
Eu boto a papagaia perto dos dois e pode ser que ela se manque
e fique igual a eles." A senhora agradeceu muito e a papagaia
foi.
O vizinho colocou a papagaia num poleiro entre os dois
papagaios. Assim que ela se viu na parede, comeou a engrossar
outra vez. Foi a que um dos papagaios abriu um olho e ficou
observando. Quando ficou convencido de que a papagaia era
mesmo da p virada, catucou o outro que continuava rezando e
disse:
Pare de rezar, companheiro, que, ou muito me engano, ou
nossas preces acabam de ser atendidas.
MULHER DE BORRACHA
QUEM nos informa a novidade a Agncia Ansa nossa
subsidiria no interior em telegrama vindo de Nova Iorque.
Diz que o "Collector's Ex-changing Bulletin", revista que circula
muito entre os que tm mania de fazer colees, seja coleo de
caixa de fsforos, moedas antigas ou retrato de mulher... de
mulher... como diremos?... de mulher vontade, vem de
publicar um anncio (a srio) que fez muito sucesso e est
surtindo efeito surpreendente. Sim, porque, assim como o
"Collector's Ex-changing Bulletin" publicou a coisa a srio, os
leitores tambm leram o anncio com muita seriedade e muitos
deles tomaram providncias para adquirir o artigo anunciado.
Como, minha senhora? Que que est no anncio? Pois no,
era justamente o que amos contar agora. A senhora endireita a
esse decote, que isto j no mais decote, deboche, e preste
ateno. O anncio diz assim:
"Para homens solitrios, tmidos e incapazes de escolher uma
companheira ou de abordar na rua uma jovem qualquer, esta
uma grande novidade. Queiram enviar 2,50 dlares pelo
reembolso postal que, dentro de poucos dias, recebero em sua
casa uma mulher de borracha, de dimenses normais, macia e
perfeitamente inquebrvel."
Como, madame? A senhora no gostou do anncio? Ns
tambm no, porque no somos da equipe dos tmidos e
modstia parte se for preciso meter o ronco pra cima de
"uma jovem qualquer" (conforme est no anncio), a senhora
pode ficar certa que a distinta ser devidamente roncada. Mas
houve quem se interessasse, pois a notcia explica que houve.
Tem muita gente que prefere uma mulher inquebrvel a por
exemplo uma mulher inquebrantvel.
Depois, madame, observe a malcia do anunciante. Diz que
de borracha macia. Convenhamos que mulher macia mais do
gosto da maioria do que mulher encaroada. E sendo de
borracha talvez possa ser esquentada em banho-maria. Ou
talvez fique clida empregando-se o tradicional mtodo usado
para o chamado saco quente. Estas consideraes devem ter sido
tomadas em conta pelos que responderam prontamente ao
anncio, fazendo centenas de encomendas.
De todas as vantagens propaladas, alis, ns s no fazemos
f naquela que diz que a mulher "de dimenses normais". A
senhora sabe como ? Isto de tamanho varia muito. Que o digam
as casas de modas que fabricam vestidos de meia confeco. E
h o gosto pessoal tambm.
, madame, a mulher de borracha para os tmidos um bom
negcio para o comprador e um grande negcio para o
fabricante. E a senhora pode ficar certa de uma coisa: esta
humanidade anda to torta, que bem capaz de um camarada
com mulher de borracha em casa se apaixonar pela mulher de
borracha do vizinho.
MULHERES MEDICINAIS
TURCO, vocs sabem como , turco chato pra mulher.
Foram os turcos que inventaram ou, pelo menos, que
conservaram aquilo que Primo Altamirando chama de proporo
racional, isto , muitas mulheres para um homem s. E foi
justamente o Ex-presidente da Assemblia Nacional Turca
Refik Koraltan que entrou numa fria danada, por causa de
mulher.
Koraltan, que conta atualmente 71 anos, foi acusado de ter
mandado vir da Alemanha para a Turquia uma jovem de 25
anos, correndo as despesas da viagem como se fosse
equipamento mdico. Isto deu um bode danado, porque a
oposio poltica caiu em cima dele, dizendo que mulher nunca
foi equipamento mdico. Ele, coitado, com a mulher em casa,
explicou que houve um mal-entendido. Importara, realmente,
equipamento mdico para sua esposa, que estava doente e
aproveitara para mandar vir uma enfermeira. Da a confuso.
Mas os inimigos de Koraltan no foram nessa, pois a mulher
dele j morreu e a enfermeira continua l, o que nos parece
bastante razovel. Primeiro porque no se joga uma alemzinha
de 25 anos fora; segundo, porque, se a mulher dele queimou
todo o pavio, at bom que fique l o que sobrou dos
medicamentos, para que o vivo se recupere.
Depois, esse negcio de acusarem o "importador" sob a
alegao de que mulher no equipamento mdico besteira.
Mulher sempre fez parte da teraputica em muitos casos
medicinais. Tem doenas at que, se o mdico no receitar
mulher, o camarada penetra pela tubulao todinho. De mais a
mais remdio ao alcance de todas as bolsas, de fcil aplicao,
pois no se vende em embalagens de luxo (claro que estamos
nos referindo ao produto popular e no ao outro, que produto
de perfumaria e no de farmcia). de uso racional, prtico,
no dependendo sua aplicao de gotas ou pastilhas, pois o
remdio de aplicao local, com uma nica observao na
bula: agite antes de usar.
Por tudo isso, estamos do lado de Koraltan. E no venham
com a conversa de que estamos sofismando no, porque o
negcio igual tambm para os homens. Homem
medicamento de grande eficcia em muitos casos. Quantas e
quantas vezes j vimos o facultativo receitar homem, de acordo
com a bula, para doenas de senhoras.
DISCOS DE CHOCOLATE
TODO Natal eles inventam as maiores miserinhas, pra Papai
Noel dar pra gente. justo, a turma tem que badalar muito para
conquistar a preferncia pblica. Mas desta vez houve
prevaricao, imaginem s o que os holandeses inventaram:
discos de chocolate.
Diz que brbaro e a aceitao to grande que, no demora
muito, o mundo inteiro estar conhecendo a novidade. Trata-se
de um chocolate duro como cabea de cronista menor, em cuja
massa podem ser gravados sons com a mesma facilidade e com
o mesmo sucesso obtido na vinilite dos discos modernos.
Agora, t na cara, o chocolate no durvel. Alis, isto at
bom, porque tem muita gente que v chocolate e fica que nem
aqui o cronista de vocs, quando v mulher. Assim, depois de
dez ou doze audies do disco de chocolate, o mesmo pode ser
comido pelos gulosos, pois no toca mais. E isto resolve o
problema daqueles que ficariam, entre o doce e a melodia, sem
vontade de acabar com o disco e doidos para mastigar o coitado.
Nada disso, porm, importa. O que nos parece de maior
importncia o fato da notcia prever para breve W aceitao,
nos outros mercados, dos discos fabricados na Holanda. No
Brasil, por exemplo.
Voc' a;., sente o drama. Discos comveis de Ansio Silva.
Que coisa perigosa. Deus queira que no haja influncia do
intrprete no chocolate, coisa j de si muito indigesta de to
quente que . Um disco de Ansio Silva, comido sem receita
mdica, pode deixar o comilo cheio de pipoca.
E no somente de Ansio. Se, realmente, o chocolate sofrer
influncia do cantor gravado no disco, recomendamos j aos
gordos absterem-se de comer discos de Leny Eversong, que
devem engordar mais que talharim com cerveja preta. Ou comer,
outrossim, as gravaes de Francisco Carlos, Emilinha Borba e
demais cantores do gnero, todos indigestos pela prpria
natureza.
Imaginem s se o chocolate ficar impregnado (alm de
gravado) com o jeito dos cantores. J estamos at sentindo o
drama. O camarada no telefone dizendo pra namorada:
No, meu bem, vamos cancelar nosso encontro de hoje.
Mas por qu?
Sei l. Comi um disco de Cauby... estou me sentindo to
esquisito!
INFERNO NACIONAL
A HISTORINHA abaixo transcrita surgiu no folclore de
Belo Horizonte e foi contada l, numa verso poltica. No o
nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclrico,
sem maiores rodeios.
Diz que era uma vez um camarada que abotoou o palet. Em
vida o falecido foi muito dado falcatrua, chegou a ser
candidato a vereador pelo PTB, foi diretor de instituto de
previdncia, foi amigo do Tenrio, enfim... ao morrer nem
conversou: foi direto para o Inferno. Em l chegando, pediu au-
dincia a Satans e perguntou:
Qual o lance aqui?
Satans explicou que o Inferno estava dividido em diversos
departamentos, cada um administrado por um pas, mas o
falecido no precisava ficar no departamento administrado pelo
seu pas de origem. Podia ficar no departamento do pas que es-
colhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satans que ia" dar uma
voltinha para escolher o seu departamento.
Est claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o
Departamento dos Estados Unidos, achando que l devia ser
mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a
eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e
perguntou como era o regime ali.
Quinhentas chibatadas pela manh, depois passar duas
horas num forno de 200 graus. Na parte da tarde: ficar numa
geladeira de cem graus abaixo de zero at as 3 horas, e voltar ao
forno de 200 graus.
O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um
departamento menos rigoroso. Esteve no da Rssia, no do Japo,
no da Frana, mas era tudo a mesma coisa. Foi a que lhe
informaram que tudo era igual: a diviso em departamento era
apenas para facilitar o servio no Inferno, mas em todo lugar o
regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manh, forno
de 200 graus durante o dia e geladeira de 100 graus abaixo de
zero, pela tarde.
O falecido j caminhava desconsolado por uma rua infernal,
quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou
que a fila entrada era maior do que a dos outros
departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe
por debaixo do angu." Entrou na fila e comeou a chatear o ca-
marada da frente, perguntando por que a fila era maior e os
enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que no
ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de
chamarem a ateno, disse baixinho:
Fica na moita, e no espalha no. O forno daqui est
quebrado e a geladeira anda meio enguiada. No d mais de 35
graus por dia.
E as quinhentas chibatadas? perguntou o falecido.
Ah... o sujeito encarregado desse servio vem aqui de
manh, assina o ponto e cai fora.
COLCHO DE VACA
VOC a, sabia que vaca tem um sentimento cheio de
sutilidades? Agora, sente o drama, v. Vaca tambm gosta de
boa vida, de ser bem tratada, merecer o seu elogiozinho, como
qualquer pessoa vaidosa ou precisada do chamado calor
humano. Claro que, no caso da vaca, melhor seria dizer calor
bovino. Mas no se aplica a expresso. Nada se aplica porque
vaca gosta de calor bovino (alis ela deve gostar mais de calor
taurino do que de calor bovino) mas muito exigente tambm
em relao ao calor humano.
Quem disse isso no foi Freud, no seu substancioso manual.
Quem disse foram os discpulos atuais do Segismundo... Como,
minha senhora? Se o primeiro nome de Freud era Segismundo?
E era, no somente o seu primeiro nome como tambm o seu
primeiro complexo. Mas prosseguindo psicanalistas
modernos descobriram que vaca um bicho muito sutil e muito
vaidoso, sendo que este segundo sentimento qualquer um manja:
basta reparar no rebolado pretensioso de todas as vacas, quando
caminham.
Quanto sutileza das vacas, foram estudos mais apurados
que levaram os psicanalistas certeza de que vaca bem tratada
mais gentil. A gente tem que puxar saco de vaca, para ela dar
mais leite. Antigamente pensava-se que, para vaca dar leite,
bastava puxar suas tetas (l dela), mas agora j se sabe que
tambm preciso puxar saco.
Diz o criador holands Van Diesen, num livro sobre
pecuria: "Aquele que criar suas vacas em desconforto ter
prejuzo. A vaca melhora sempre sua produo de leite, quando
cuidada com mais carinho e deferncia."
E foi para aumentar a deferncia para com as vacas que os
pecuaristas europeus passaram a usar colcho de espuma de
borracha nos estbulos. As vacas que dormem em colcho de
espuma ficam muito mais prdigas do que as outras, s quais se
d um msero catre de palhas secas para repousar.
Os vendedores de colches de espuma de borracha para
vacas afirmam que os animais gostam e se acostumam de tal
forma nova Comodidade que,
depois de certo tempo, passam a zelar pela limpeza dos seus
leitos.
Enfim, o que eles querem dizer que vaca tratada com boa
educao tambm fica bem educada e, depois de um certo
tempo, j no faz mais pipi na cama.
FERRO EM FERROS
SIM, companheiros: ferro em Ferros! Aqui essa a notcia,
retirada do jornal tal qual foi publicada: "As moas da cidade de
Ferros (MG), situada no corao de uma das zonas mais ricas de
minrio de Minas Gerais, iniciaram uma greve: a greve do flerte,
que consiste em no aceitar como namorados, no perodo de
frias, os rapazes que as trocam, durante o ano letivo, pelas
estudantes que vm de fora. A greve das moas de Ferros
(cidade atualmente com 20 mil habitantes) consiste em no
aceitar convites para festas, cinemas ou passeios no jardim (fora
o mais importante, naturalmente; e, naturalmente, o parntesis
por nossa conta), em represlia ao fato de os rapazes da
localidade trocarem-nas sistematicamente, de abril a novembro,
pela moas que se matriculam na Escola Normal da cidade."
Ta no que d os ferristas (ou ser ferrenhos, ou mesmo
ferreiros, Osvaldo? Verifica a) gostarem de novidades. Podiam
maneirar com as mocinhas locais. Mas no: chegam as
normalistas, mocinhas de fora e portanto mais propensas
confraternizao, e eles aderem, deixando as beldades locais no
frigorfico, at as frias.
Agora as ferristas, sem a concorrncia das condescendentes
rivais, endureceram o jogo, feridas que esto no seu amor-
prprio pelo desprezo que dura todo o ano letivo. Resultado: os
rapazes de Ferros vo ficar numa abstinncia brbara de mulher:
de janeiro a maro. Trs meses sem mulher, companheiros. Ser
que eles agentam? Se fosse conosco estvamos mais jururu que
um galo de terreiro olhando o cercado das frangas.
Mas foi bem-feito. Quem mandou ferirem o amor-prprio
das moas de Ferros? Vocs desculpem, sim? Mas era
inevitvel. Est na cara que Primo Altamirando, quando leu a
notcia no jornal, trocadilhou inexorvel: "Quem em Ferros fere,
em Ferros ser ferido."
A DACTILGRAFA
AMIGO nosso, que sofre de sinceridade alcolica, depois do
terceiro contou aqui pra este pobre escravo do padro ouro, que
batuca esta intimorata Remington semiporttil enquanto o sol l
fora assovia coi pra gente, o que aconteceu no seu escritrio,
esta semana. E contou sem o menor remorso.
Deu-se que sua secretria, senhora respeitabilssima, que era
sua auxiliar direta h muitos anos, cometeu a temeridade de
casar e largar o emprego, no momento em que a maioria das
mulheres est largando o marido pra arranjar emprego. Mas a
secretria quis, disse que ia e no houve jeito.
Ou melhor, o jeito foi botar um anncio no jornal, na base do
"precisa-se de secretria". Diz o amigo que essa coisa de existir
muita gente procurando emprego bafo de boca, porque
somente depois do quinto dia que apareceram duas candidatas.
Apareceram quase ao mesmo tempo, explicaram por que
vinham e ficaram sentadinhas na sala de espera, aguardando a
vez. Diz ainda o amigo que, l de dentro, sem ser visto, ele
examinou bem as duas, principalmente a segunda.
A primeira, segundo sua descrio, era dessas magras e de
culos, que sofrem de utilidade, sabem fazer tudo, tm pele ruim
e cara de quem nunca tirou menos de 10 no colgio. Pela pinta,
segundo sua prpria expresso, era uma mulher invicta.
A segunda... Bem, a segunda tinha aquela cor de pele que a
gente mandaria pintar no carro, se assim pudesse ser feito. Tinha
olhar 45, corpo que a forma universal e aquele ar inocente das
que nunca foram inocentes.
A primeira era estengrafa, arquivista, falava ingls, francs
e espanhol. Era dactilgrafa, taqugrafa e tinha cursos de um
modo geral. Mas ele no quis saber nada disso. Quando ela
entrou na sala limitou-se a dizer que a vaga infelizmente
j estava preenchida.
Ento, depois que a bruxa foi embora, mandou entrar a
certinha que, num bambolear ameno e compassado, entrou,
sentou numa cadeira prxima e deixou um joelho de fora, ao
cruzar as pernas. Ele pigarreou e explicou que a vaga era dela. A
moa agradeceu muito e foi obrigada a confessar que aquele era
o seu primeiro emprego, que no tinha experincia nenhuma. E,
ante a deciso dele, murmurou aveludadamente que s batia a
mquina de escrever com dois dedos. Mesmo assim ficou no
emprego.
Quando terminou de contar, perguntamos o que dissera,
quando a boa confessou que s batia a mquina com dois dedos.
Eu perguntei pra ela assim: Pra que tanto dedo, minha
filha? E fomos tomar um lanche.
LEVANTADORES DE COPO
ERAM quatro e estavam ali j ia pra algum tempo,
entornando seu uisquinho. No cometeramos a leviandade de
dizer que era um usque honesto porque por usque e mulher
quem bota a mo no fogo est arriscado a ser apelidado de
maneta. E sabem como , bebida batizada sobe mais que carne,
na COFAP. Os quatro, por conseguinte, estavam meio triscados.
A conversa no era novidade. Aquela conversa mesmo, de
bbedo, de lngua grossa. Um cantarolava um samba, o outro
soltava um palavro dizendo que o samba era ruim. Vinha uma
discusso inconseqente, os outros dois separavam, e voltavam
a encher os copos.
A a discusso ficava mais acalorada, at que entrasse uma
mulher no bar. Logo as quatro vozes, dos quatro bbedos,
arrefeciam. No h nada melhor para diminuir tom de voz, em
conversa de bbedo, do que entrada de mulher no bar. Mas, mal
a distinta se incorporava aos mveis e utenslios do ambiente,
tornavam conversa em voz alta.
Foi ficando mais tarde, eles foram ficando mais bbedos.
Ento veio o enfermeiro (desculpem, mas garom de bar "de
bbedo muito mais enfermeiro do que garom). Trouxe a nota,
explicou direitinho por que era quanto era etc. etc, e, depois de
conservar nos lbios aquele sorriso esttico de todos os que
ouvem espinafrao de bbedo e levam a coisa por conta das
alcalinas, agradeceu a gorjeta, abriu a porta e deixou aquele
cambaleante quarteto ganhar a rua.
Os quatro, ali no sereno, respiraram fundo, para limpar os
pulmes da fumaa do bar e foram seguindo calada abaixo,
rumo a suas residncias. Eram casados os quatro entornados que
ali iam. Mas a bebida era muita para que qualquer um deles se
preocupasse com a possibilidade de futuras espinafraes
daquela que um dia em plena clareza de seus atos
inscreveram como esposa naquele livro negro que tem em todo
cartrio que se preze.
Afinal chegaram. Pararam em frente a uma casa e um deles,
depois de errar vrias vezes, conseguiu apertar o boto da
campainha. Uma senhora sonolenta abriu a porta e foi logo
entrando de sola.
Bonito papel! Quase trs da madrugada e os senhores
completamente bbedos, no ?
Foi a que um dos bbedos pediu:
Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de ns
quatro o seu marido que os outros trs querem ir para casa.
O NDIO
CONTOU como que foi. Disse que de repente
resolveu se fantasiar, coisa que no fazia h anos. Podia optar
por duas fantasias: a de rabe ou a de ndio, que so as mais
fceis de se fazer a domiclio. rabe sabem como a
gente faz at com toalha escrito "Bom Dia". Amarra uma de
rosto*na cabea e enrola outra de banho no corpo. Por baixo:
cueca. Nos ps: sandlia. No fica um rabe rico, mas j d pro
consumo.
ndio ainda mais fcil. Faz-se com uma toalha s, bem
colorida. Enrola-se a dita na cintura, com short por baixo. Na
cabea coloca-se o que antes foi o espanador.
Contou que foi de ndio porque em casa tinha dois
espanadores. No ficou um ndio legal, desses que o John
Wayne mata aos potes, em cinemascope. Mas tambm no
chegava a ser desses ndios mondrongos que tiravam retrato com
o Dr. Juscelino.
Se tivesse sado de rabe no teria apanhado a vizinha,
distinta que vinha cercando desde setembro, quando ela se
mudara para o 201. E continuou contando. ndio de culos
tambm j era debochar demais da realidade. Assim, ao sair pela
a, deixou os culos na mesinha de cabeceira. Andou pela Ave-
nida, viu as tais sociedades carnavalescas e depois entrou num
bar para lavar a caveira.
Quando voltou para casa estava ziguezagueando. Bebera de
com fora e entrou no edifcio balanando. E coitado sem
culos, no enxergava direito. Subiu no elevador, saltou no
segundo e foi se encostando pelas paredes do corredor. Tava um
ndio desses que quer apito.
Que que tem tudo isso a ver com a vizinha? Sem culos
tornou a explicar em vez de
entrar no 202 (seu apartamento), viu a porta do 201 aberta e
foi entrando de ndio e tudo.
Era o apartamento da vizinha?
Era.
E ela?
No comeo no quis. Mas acabou entrando pra minha
tribo.
DE COMO CAAR O RATINHO
OS JORNAIS da oposio continuam implicando com o que
chamam de "ciclo zoolgico" do Palcio Guanabara, depois que
l se instalou o governo de Carlos Frederico Werneck De. Aqui
estamos a ler um matutino que reprova a existncia de alguns
passarinhos nas gaiolas penduradas nas varandas do palcio,
porque os ditos passarinhos fazem "fi-fiu" para as funcionrias
que transitam pelo local. No achamos que isto seja feio. O
papai aqui no passarinho nem nada, mas j fez muito "fi-fiu"
para funcionrias. Em alguns casos inclusive houve
adeso.
Mas as folhas da oposio no perdoam. O "Dirio Carioca"
informa que o "ciclo zoolgico" aumentou com o aparecimento
de um ratinho cujo cada vez que corre pelo assoalho do
Guanabara obriga a um monte de funcionrias a subir nas
cadeiras e levantarem a saia. "Ratinho legal" diria Primo
Altamirando, nosso abominvel parente.
J Tia Zulmira, senhora de uma retido de carter
impressionante, quando soube que h funcionria se dando ao
feio vcio do strip-tease amador, s por causa do ratinho, ficou
indignada e telefonou para o Palcio Guanabara, chamando o
administrador. Assim que este atendeu, ela perguntou se j
descobriram o buraco do ratinho. O administrador entendeu mal.
Tia Zulmira explicou que era o buraco onde o ratinho mora.
Diante da resposta afirmativa, a sbia senhora ensinou um
meio infalvel de apanhar o ratinho, para que termine de uma
vez por todas esse negcio de funcionrias em cima dos mveis
fazendo strip-tease de graa.
Vocs comprem uma lata grande de caviar explicou a
sbia ermit da Boca do Mato. Mas comprem caviar do bom:
Romanoff, de preferncia. Todo dia de manh um funcionrio
do palcio pega uma torradinha, bota um pouco de caviar em
cima, e enfia no buraquinho onde o ratinho mora.
Durante quanto tempo? perguntou o administrador do
Guanabara.
Durante 29 dias informou Tia Zuzu. Todos os dias,
mesma hora, coloquem uma torradinha com caviar em cima,
no buraco onde mora o ratinho. Quando chegar o trigsimo dia,
o encarregado desse servio deve apanhar um martelo e ficar ao
lado do buraquinho. Depois enfia no buraquinho a torradinha
sem o caviar. Quando o ratinho puser a cabea pra fora e
perguntar: "Mas que negcio esse? S a torradinha? Cad o
caviar?" o funcionrio d-lhe uma traulitada na cabea e est
consumada a "Operao Ratinho".
FAQUIRISMO E PROVOCAO
OS mais assduos (leitores, naturalmente) devem estar
lembrados do que escrevemos no dia em que Silki o Pele da
Fome entrou novamente numa urna de vidro para tentar
recuperar para o Brasil o recorde da dita, ora nas mos, ou
melhor, no estmago do francs Burmah. Escrevemos na
ocasio que o grande inimigo desse Didi da inanio seriam as
provocaes do pblico, um pblico que pagava para chatear o
faquir.
J da ltima vez que Silki bateu o recorde, a coisa tinha
acontecido. Inimigos da fome pagavam entrada para ver o
faquir, chegavam junto urna de vidro munidos de pastis,
empadinhas e outras guloseimas, e ficavam comendo na frente
dele, para ver o bicho que clava. O faquir resolveu temporaria-
mente o problema fechando os olhos, para no ver. Surgiu,
porm, um torturador requintado que comia a empadinha e
cuspia o caroo em cima da urna, com toda a fora. Ora, sendo a
urna de vidro, o caroo ao bater fazia tiliiiiiimmmm... obrigando
o coitado a abrir os olhos de susto.
Agora a provocao foi maior. Silki pretendia ficar
mastigando vento 108 dias temporada que lhe traria o recorde
de volta mas abandonou a urna com 36 dias, vtima de um
ataque de nervos e a conselho de seu mdico assistente, que o
retirou fora ajudado pelo delegado de Costumes e Diverses.
Silki no queria sair, mas seus nervos estavam em tal estado,
que foi obrigado a ceder e se internar numa Casa de Sade, onde
ainda se encontra.
O secretrio do faquir falou imprensa e contou, revoltado:
Muitas pessoas, ao visit-lo, exibiam pratos variados e
apetitosos, como galinha assada, empadas, doces etc. E o pior
que, pela madrugada, l chegavam mulheres trajando roupas es-
candalosas, algumas at exibindo certas partes do corpo. Silki
no agentou.
Vejam vocs que baianada! O secretrio no explicou pra
imprensa quais as partes do corpo que as elegantes exibiam, mas
isto no importa. Mulher quando boa qualquer parte
serve, conforme costuma dizer nosso nefando primo Mirinho
o crpula. Tambm no explicou qual das abstinncias provocou
o estado de nervos de Silki.
A gente, porm, tira as concluses. Da outra vez ele bateu o
recorde mesmo com a provocao de exibies gastronmicas.
Desta vez que comeou a novidade de mulher ir provoc-lo.
Portanto, dos seus jejuns, ele deve ter sucumbido ao segundo.
DA GALANTERIA
DIZEM pela a que a Histria se repete. Como os cmicos de
teatro rebolado, a Histria se repete. No setor da galanteria, por
exemplo, a Histria no desmente essa teoria. O que foi
involuo num tempo passa a evoluo noutro tempo, para
voltar a ser involuo numa poca adiante. H muitos anos atrs
o marechal Lott no era nem escoteiro o homem tratava a
mulher com uma deferncia de puxa-saco.
Era at chato. Antes, no entanto, isto , na Pr-Histria,
segundo nos contou o Brcio de Abreu, mulher s saa da
caverna (naquele tempo no havia Lei do Inquilinato ainda, pois
ningum tinha casa: era tudo caverneiro) pra passear com o ma-
rido numa conduo: cabelo. Sim, o marido agarrava a distinta
pelos cabelos e saa puxando pelos caminhos.
Tempos mais amenos cultivaram a galanteria. Teve at um
cara que, ao ver a lama se interpondo no caminho de uma dama,
tirou a capa brocada que levava aos ombros e atirou no cho,
para que ela passasse por cima sem sujar os ps. Isto foi o m-
ximo em charme que a Histria recolheu. S no citamos o
galante personagem pelo nome porque hoje estamos de memria
fraca e empenhamos a Enciclopdia Britnica.
Mas dizamos a Histria se repete e o que foi
galanteria ontem descortesia hoje. Atualmente homem no est
dando muita bola pra mulher, no setor da educao no. Talvez
porque as mulheres de hoje so mais badalativas e concorrem
com eles em tudo, o fato que o negcio ficou "mano a mano" e
mulher tem que disputar na raa com o homem tudo aquilo que
desejar.
Quem no se conforma com isso Tia Zulmira, senhora que
foi broto de outros tempos e que no se adapta ao rebolado atual.
Tanto que s fizemos este longo intrito para contar o episdio
vivido pela sbia macrbia da Boca do Mato, dentro de um
nibus.
A velha foi obrigada a deixar momentaneamente o seu retiro
para fazer umas comprinhas no Centro. Para tanto tomou um
nibus e, velha como est, viu-se na contingncia de viajar em
p, porque nenhum dos marmanjos refestelados nos bancos se
dignou ceder o lugar. Vendo que nenhum tinha educao, Tia
Zuzu apelou para o patriotismo deles. Tirou uma bandeirinha do
Brasil do bolso e comeou a cantar: "Ouviram do Ipiranga as
margens plcidas..."
Pois nem assim! Ningum se levantou.
DOS SERTES AO MATAGAL
SOMENTE porque tem uma bicicleta o camarada no
necessariamente um ciclista. Do mesmo modo o camarada pode
ter uma cuca e no ser sambista, um telefone e no ser
telefonista, uma batuta e no ser maestro, uma mulher e no ser
casado. J com este nosso personagem de hoje, a coisa foi di-
ferente: tirou uma mquina de escrever na rifa e resolveu ser
escritor.
Como, minha senhora? Se a rifa foi da parquia de So Judas
Tadeu, dirigida pelo Padre Gis, aquele que diz que o referido
santo to rubro-negro que costuma suar a camisa nmero 12
quando o Flamengo est jogando? No senhora. A rifa foi
promoo de um amigo que precisava operar a av. E fique
quieta, madame, porque ns vamos contar a histria toda.
Deu-se que ele ficou com um bilhete da rifa: o nmero 312,
centena do burro. Quando a coisa correu, saiu premiado e
ganhou a mquina de escrever. No era l muito nova; pelo
contrrio, faltava a letra "Q" mas, felizmente, tinha a letra "K" e
quem escrevesse podia apelar, escrevendo mais ou menos assim:
"Kue linda tarde, kerida disse Kuincas ao entrar no
kuioskue."
Mas isto so detalhes. O importante kue, digo, que a
mquina saiu premiada para ele e, num rasgo de impensado
romantismo, resolveu ser escritor. At ento vivia dos seus
proventos de aviador mas, entusiasmado pela presena daquela
Underwood enferrujada, largou tudo pela nova profisso:
"Nunca mais serei aviador!" berrou na solido do quarto.
O que, madame? Se ele largou a Aeronutica? No, dona.
Ele era aviador de receita, numa farmcia do bairro. E pare de
chatear, seno no conto a histria.
Sim, seria um escritor! Mas de qu? Escritor propriamente
dito, o nico que consegue viver disso no Brasil (por causa das
tradues pro estrangeiro) o Jorge Amado. Outros escritores,
por mais escritores que fossem, enriqueciam os editores. E se
fosse escritor de contos policiais? Ah... boa idia.
Mas no Brasil difcil, por causa da concorrncia dos
americanos do norte. Em cada trs escritores americanos, oito
escrevem contos policiais. O nico escritor brasileiro no gnero
o Lus Coelho, mas este ganha dinheiro aos potes, no Foro de
So Paulo. um grande advogado e por isso que se d s
veleidades de Conan Doyle do Anhangaba. Talvez um escritor
mais simples: de crnicas mundanas. Sim, cronista mundano.
Olhou-se no espelho e ficou encabulado. Tal como todos os
cronistas mundanos, no tinha cara de cronista mundano.
A deciso veio de repente. Lembrou-se que, na vspera,
durante o bate-papo no caf, algum tinha dito que o ltimo
filme de Z Trindade "O Empacotador de Fumaa" tinha
dado 10 milhes de renda na cadeia do Lus Severiano.
O que, dona? Se o Lus Severiano est em cana? Ainda no,
minha senhora. Por que haveria de estar? O filme tinha dado dez
milhes na cadeia, mas cadeia de cinemas do referido cidado.
Ora, se um filme cocoroca como aquele (ele assistira ao filme no
Cine Rian, com uma mo na perna da namorada e outra na sua
cocando pulga) tinha dado aquele dinheiro todo, imaginem um
filme bem planejado, com um escrito inteligente, como aquele
de "O Cangaceiro", que o Lima Barreto fez?
. Ia ser escritor de cinema. Faria um argumento com
dilogos srios, usando como tema algo bem brasileiro. No
usaria cangaceiro porque, de uns tempos para c, cangaceiro a
mesma coisa que cowboy s que o chapu de couro e a aba
pra cima.
Durante uns trs meses no fez outra coisa seno escrever e
rasgar o que estava escrito. No desanimou por causa disso. Pelo
contrrio: quanto mais escrevia, mais sentia que seria capaz de
escrever um argumento que seria a redeno do cinema
nacional. E, de tanto tentar, acabou encontrando a idia genial:
faria uma adaptao perfeita de "Os Sertes", de Euclides da
Cunha. Era a grande epopia brasileira, na qual poderiam ser
includos grandes nmeros do nosso folclore, poderiam ser apro-
veitados os mais srios intrpretes e ainda sobraria margem para
dilogos soberbos. Isto sem contar as possibilidades imensas da
histria como linguagem cinematogrfica e os recursos
fotogrficos que se poderiam usufruir das cenas imaginadas.
Duraram quase dois anos as suas viglias, batucando a velha
mquina, na adaptao da grande obra literria de Euclides da
Cunha em obra supinamente cinematogrfica. Suas economias,
do tempo em que ainda era aviador (de receitas), j tinham ido
pra cucuia. Devia quase 50 contos nos tamboretes da praa,
pequenos bancos que se do ao feio vcio da agiotagem. Mas
no desistiu. Depois de tanta luta, viu um dia o trabalho pronto.
Estava tinindo.
O primeiro produtor que procurou foi o Eurides Ramos, que
recusou a proposta. Bem-feito, quem mandou cair nas mos de
Eurides? Foi pro j citado Severiano, mas este tambm recusou
porque estava com 16 fitas do Oscarito prontas para serem lan-
adas. Procurou aquela turma de So Paulo, que quis
transformar os morros de So Bernardo do Campo em Beverly
Hills, e penetrou pela tubulao. Nada.
Foi a que soube de um italiano recm-chegado. Como todo
italiano recm-chegado que no nobre, este era cineasta. J
tinha interessado um outro italiano (este h muito chegado e
nobre, alm de industrial) a financiar um filme.
O nosso abnegado amigo botou a papelada debaixo do brao
e foi discutir o assunto com o "cineasta". Foi uma luta dura, na
qual capitulou e acabou entrando pelos Canudos, que nem
Euclides da Cunha. O "cineasta" j tinha contratado o Alberto
Ruschel para fazer o mocinho e o Milton Ribeiro para
representar o bandido.
Aqui onde voc botou um nmero folclrico, fica melhor
a gente incluir uma marchinha que a Emilinha Borba vai cantar
e vai ser um estouro props o cineasta. E no adiantava dizer
que no. A Emilinha, realmente, defenderia melhor o capital do
industrial que, por sinal, achou o argumento timo, mas ficou
meio chateado porque o mocinho no tinha um amigo. Mandou
modificar este detalhe e contratou o Grande Otelo.
Enfim, foram introduzidas pequenas modificaes no
entrecho. Coisa de somenos, que no dava para atrapalhar
muito. As lutas dos sertanejos foram devidamente adaptadas
para uma briga na boite, cena que s aparecia no fim da fita,
para dar mais sustana ao grande final. E o ttulo, para que o tal
Euclides da Cunha no viesse depois reclamar direitos autorais,
tambm foi mudado. Em vez de "Os Sertes", passou a ser
"Mulheres no Matagal". Vai estrear breve.
Como, minha senhora? O que foi que aconteceu com o
grande escritor? Ora, dona. Teve que topar tudo para pagar o
que devia. No, senhora... no est mais escrevendo. Voltou a
ser aviador. Est funcionando na Farmcia Santa Teresinha,
aberta dia e noite.
CAJU AMIGO DO HOMEM
O CAJU, fruta brasileira que aqui j encontrou o Almirante
Pedro lvares Cabral hoje esttua nos jardins do Russel e
anteriormente descobridor do Brasil , foi batizado (no
Cabral, mas o caju) pelos ndios tupis. Acreditavam os silvcolas
que o referido fruto nascesse de cabea pra baixo, impresso
esta causada pelo caroo (castanha) que o caju ostenta na sua
parte de baixo. Mas isso besteira porque, pensando bem, no
somente o caju, mas todo mundo nasce de cabea pra baixo. De
como o caju se transformou em amigo do homem,
principalmente do homem que bebe e, particularmente, do
homem casado, coisa que Stanislaw, grande socilogo
frugvoro (salvo seja), explica nas linhas subseqentes.
Sabemos que certos entreguistas vo dizer que este estudo
sobre a brasilidade do caju bobagem, mas o que se h de
fazer? Como dizia Hoffmann, "a inveja a sombra da glria".
Mas voltemos ao saboroso fruto, cuja ndoa de amargar e,
quando pega na roupa da gente, s sai na safra seguinte, segundo
nos revelou o compositor Lus Antnio, que militar e
Flamengo, sendo portanto duplamente supersticioso. De
qualquer maneira, a ndoa deixada pelo caju mancha tanto a
roupa da gente quanto por exemplo aquele baile do Joo
Caetano mancha a reputao de rapaz solteiro.
Saboroso, carnudo e prdigo em caldo, o caju em matria
de serventia s perde para o boi, animal domstico de grande
utilidade e do qual o homem s no aproveita o suspiro, porque
o resto do chifre ao estrume j est tudo industrializado.
Da castanha do caju se aproveita o caroo para nos fazer beber
mais, colocando-o picadinho e terrivelmente salgado, em
pratinhos sutis sobre a mesa do bar. Tambm da castanha se
aproveita a tradicional e laxativa cozinha baiana. Vatap
(principalmente) e outros pratos de menor prestgio levam a sua
castanhazinha moda, para alegria daqueles que se perdem pela
boca, sem dar vez aos intestinos. Ainda desse caroo
responsvel pela mancada dos silvcolas acima citada se faz
um magnfico piro, usado em pratos de bacano, como a galinha
normanda e o pato Califrnia, embora nem na Normandia
nem na Califrnia haja caju, o que prova a versatilidade de sua
castanha. A prpria polpa da fruta ora em estudo til, pois
famlias menos favorecidas do litoral nordestino comem-na
ensopada, sempre que lhes falta a mandioca, a batata ou a
cenoura, tubrculos mais apropriados para um PFR (Prato Feito
Reforado). O caju pode ser ainda servido em calda, frito,
cozido ou liquefeito, sendo que, no ltimo caso, j no mais
caju: cajuada, mas nem por isto perde a personalidade.
Costuma-se dizer que o cachorro o melhor amigo do
homem, mas a afirmativa um pouco precipitada. Ningum bota
caju no quintal para tomar conta da casa, mas h muitas coisas
que cachorro no tem e que sobram no caju. Afinal de contas, o
cachorro no tem castanha, no saboroso e, na hora do
refresco, ningum espreme um cachorro para fazer uma
suculenta cachorrada. E tem mais: dizem que quando o dono
bbedo o cachorro sem--vergonha, adeso que no recomenda
o co. J o caju, ao contrrio, o melhor amigo do homem... do
homem que bebe e acima de tudo do homem casado.
H tempos, certo cavalheiro desta praa, cansado de ser
espinafrado em casa pela distinta cnjuge, quando chegava com
bafo de ona por ter tomado umas e outras nessas tendinhas pela
a, tratou de se dedicar busca daquilo que tirasse definitiva-
mente o cheiro de bebida da boca de um castigador de alcalinas.
Comeou claro pelos inventos americanos, como plulas
de clorofila, chiclete, drops e outras bobagens de grande
aceitao no mercado e de nenhuma eficincia como tira-bafo.
J na iminncia de desistir, esse abnegado da cincia, certa
noite, antes de ir para casa caneado, passou na casa de um
conhecido para entregar uma encomenda. E este, na base da
gentileza, ofereceu uma cajuada. Como estivesse com sede, o
coleguinha de Pasteur aceitou refresco e, em seguida, foi pro
holocausto, digo, foi pra casa. E qual no foi a sua surpresa
quando, ao chegar e beijar a megera, digo, a esposa,, ouviu da
boca desta o elogio: "Sim senhor, assim que eu gosto. Voc
hoje no est cheirando a bebida"
O pesquisador, tal como o j referido Almirante Cabral ao
descobrir a gente, descobriu a frmula do. engana esposa por
acaso. Submeteu o caldo de caju aos mais severos testes que
nem os americanos fazem com foguete, em Canaveral e deu
sempre certo, ao contrrio dos foguetes. Chegou a bochechar
com "Olho D'gua", que cachaa de persistente aroma,
mastigando um caju em seguida e indo para casa, onde, num
rasgo de confiana no progresso da cincia, soprava o nariz da
mulher, sem que esta sequer percebesse bulhufas. Homem reco-
nhecido, inventou a expresso hoje universal: caju amigo.
Podamos ainda enumerar indefinidamente outras vantagens
do caju, mas vamos parar por aqui, pois ele uma riqueza do
Brasil e depois que os contrabandistas do caf foram pilhados
bem possvel que os vivaldinos, sempre dispostos a dar
belisco em fumaa, se voltem para o caju e passem a
contrabande-lo.
CONTO POLICIAL
TIA Zulmira agora deu pra isso: virou uma espcie de
Agatha Christie da Boca do Mato e resolveu escrever contos
policiais. T na cara que a sbia parenta tem, sobre sua
coleguinha citada, a vantagem de no ser inglesa metida a nobre,
que gente mais mascarada do que por exemplo dono de
armazm de secos e molhados, quando o Vasco campeo. De
mais a mais, a cultura da experiente macrbia tal que compar-
la a uma simples Agatha Christie at falta de respeito. Deus
nos livre de ela vir a saber que seu sobrinho fez a comparao.
Ficaria to magoada que poucas possibilidades teramos de
freqentar o suculento breakfast de sua aprazvel manso, pelo
menos no correr deste resto de 1961, tempo bastante para
arrefecer seu amuo.
Mas deixemos de conjeturar possibilidades e firmemos o
assunto no terreno frtil dos acontecimentos. A velha resolveu
escrever contos policiais e, ainda ontem, durante a farta
distribuio de "me--benta" que ela fez ao caf, roubamos um
desses contos que por sua vez, confessa ela, foi roubado de uma
idia do coleguinha panamenho Roque Laurenza.
Tal como em filme de Hitchcock, em geral chatssimos,
ningum pode entrar na sala de projeo depois do conto
comeado. que Tia Zulmira de uma sutileza brbara e o
conto para ser entendido precisa de duas coisas: que o
leitor seja atento e, de preferncia, que no seja dbil mental.
"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta
se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os
papis que estavam sobre a mesa. Atrs do vento entrou um
homem horrvel, com cara de macaco, orelhas grandes e cabe-
ludas. Seu olhar era de faminto e sua expresso era a de um
louco. Imenso, deu dois passos em direo ao .dono da casa e,
estendendo a mo enorme, disse com voz rouca: Eu quero
comer.
O escritor, que estava escrevendo em sua pequena mquina
porttil, levantou-se apavorado e caiu no cho, fulminado por
um ataque cardaco. Aquele que entrara to abruptamente, ficou
indeciso no meio da sala, sem saber se pisava no tapete
imaculadamente limpo com seus sapatos cambaios e sujos de
barro, se. socorria o outro ou se dava o fora. Acabou optando
pela ltima hiptese: atravessou a sala, apanhou um prato cheio
de sanduches, que estava ao lado da mquina de escrever, e saiu
correndo, sem ter o cuidado de fechar a porta.
No dia seguinte, pela manh, a empregada encontrou o
cadver do escritor e chamou a Polcia. Pouco tinha declarar.
Ao comissrio Jeff Thomas (famoso na localidade por jamais ter
descoberto nenhum criminoso), explicou que chegara pela
manh, para o servio, e encontrara o patro morto. Trabalhava
para ele havia mais de um ano e pouco sabia a seu respeito. Era
escritor de contos de terror, que uma empresa americana editava
com xito. Sofria do corao e era um homem excntrico.
Morava sozinho naquela casa afastada da cidade e s recebia, de
raro em raro, a visita do editor ou do mdico, que o examinava
regularmente. No parecia ter inimigos, mas estava sempre com
ar soturno, como a imaginar os personagens de seus contos mis-
teriosos.
Jeff Thomas botou o cachimbo apagado no bolso (nunca
fumava; usava cachimbo porque ouvira dizer que todo policial
ingls usa cachimbo), agradeceu empregada os
esclarecimentos prestados, que, por sinal, no esclareciam nada,
e pegou o laudo mdico que o legista acabara de assinar. L
estava: morte natural (colapso cardaco). Jeff sentiu que o caso
estava encerrado. Embora estivesse certo de que algum entrara
naquela sala antes da empregada. O tapete sujo de lama (fora
limpo na vspera, segundo a empregada), a porta escancarada,
mesmo com o frio que fizera na noite anterior, o
desaparecimento de um prato cheio de sanduches, que a
empregada garantiu que colocara ao lado da mquina do escritor
tudo isso lhe dava a certeza de que, naquele caso, havia um
mistrio qualquer.
Jeff gostava de ser detetive, mas no gostava de se chatear.
O homem morrera do corao, no havia suspeitos, logo o
melhor era mandar o corpo para o necrotrio e avisar a famlia.
Deu esta ordem aos seus auxiliares e apenas por desencargo
de conscincia apanhou o papel que estava na mquina de
escrever, para juntar ao relatrio que seria obrigado a fazer.
Eram as ltimas palavras escritas pelo escritor falecido. Jeff leu
e no deu qualquer importncia. Era, por certo, o incio de mais
uma histria de terror e comeava assim:
"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta
se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os
papis que estavam sobre a mesa. Atrs do vento entrou um
homem horrvel, com cara de macaco, orelhas grandes e
cabeludas. Seu olhar era de faminto e sua expresso era a de um
louco. Imenso, deu dois passos em direo ao dono da casa e,
estendendo a mo enorme, disse com voz rouca: Eu quero
comer."
"AO MORRER SORRINDO
"MORREU, acabou-se" ledo engano. Morreu, comea o
problema, porque j no h mais lugar onde enterrar o falecido.
"Vocs desculpem tratar de um assunto to funesto, mas que,
de uns tempos para c, no o sentimos, to macabro assim,
graas a um amigo que agente funerrio. Foi ele quem,
acostumado ao trato das cerimnias fnebres, acabou nos
convencendo de que, tirante a famlia do morto, ningum tem
nada a perder quando um cidado abotoa o palet pela ltima
vez. Pelo contrrio, ser agente funerrio um alto negcio.
Tudo comeou na praia, em Santos. Estvamos na
companhia desse amigo, esquentando ao sol, quando apareceu
um cadver boiando sobre as ondas. O pessoal foi todo pra beira
do mar espiar e ele, de repente, disse como quem fala para si
mesmo: "Tomara que a corrente no leve para So Vicente."
Estranhamos aquele desejo e ele ento explicou que existiam
duas agncias funerrias em Santos: a dele e a de um rival.
Como a clientela no visse com bons olhos a concorrncia entre
os dois, nem fosse hbito familiar abrir concorrncia para
enterrar ningum, tinham resolvido dividir a cidade em dois
campos:
Quem morre do lado de l dele, quem morre do lado de
c meu esclareceu.
Aquele fregus, que boiava nas ondas, se viesse a dar praia
ali, era dele. Mas se a corrente o levasse para So Vicente,
perdia o negcio, pois a jurisdio era do rival. Da o seu desejo
de que as ondas trouxessem logo para a areia aquele que boiava
l fora da arrebentao.
Olhava para o cadver sem placidez nem ganncia, como um
quitandeiro olha as verduras, um pianista, o piano ou um
joalheiro, as jias. Era o seu negcio que boiava ali perto.
Esse agente funerrio de Santos, nosso amigo, homem jovial
e excelente companheiro em qualquer circunstncia, alguns anos
depois chegava ao pice da carreira, quando o Governo do
Estado nomeou-o para dirigir o SFC (Servio Fnebre da
Capital), autarquia que se responsabiliza pelos enterros em So
Paulo. Estava aqui o distinto caando na selva paulista,
amoitado num bar, esperando a caa passar, quando o' antigo
agente funerrio nos encontrou.
Explicou sua condio de diretor autrquico, explicou que l
em So Paulo no como no Rio, onde os servios funerrios
pertencem, sem concorrncia, Santa Casa, explicou mais uma
poro de coisas e, depois, convidou a gente para fazer uma
visita ao SFC. Como a caa no passasse, aceitamos o convite e
visitamos fartamente o dito servio.
Ele se mostrou excelente cicerone, levando a visita s
diversas salas, demonstrando por que o caixo de peroba
melhor do que o caixo de pinho e mostrando os melhoramentos
introduzidos, tais como caixo de terceira forradinho de
capiton, travesseiro com recheio de capim cheiroso, para
caixes de primeira etc. etc. Isto sem contar com os truques que
sua experincia lhe ensinara. Por exemplo: quando morre um
poltico eminente, o nmero de puxa-sacos que quer ajudar a
levar caixo enorme e, neste caso, em vez das clssicas alas
douradas trs esquerda, trs direita, como manda o
figurino o caixo deve ter um varal de cada lado, pra caber
mais mo de puxa, na hora do embarque.
Quando assumi a direo deste servio, isto aqui era uma
lstima. Os castiais estavam caindo aos pedaos. Veja os
castiais novos, que adquiri. Uma beleza, no so? E, com
sinceridade na voz: Agora j pode um Matarazzo, um
Almeida Prado, um Lara Resende morrer sem susto, que
estamos aptos a servi-los.
Faz muito tempo que no vemos o nosso amigo, hoje
prspero. Certa vez nos contou que comeara o negcio graas a
um vizinho que era coxo, desencarnara e fora vtima da
precipitao de outro agente funerrio. Quando esse agente foi
medir o fregus para encomendar o caixo, j o encontrou na
sala, em cima da mesa, coberto por um lenol. Sem a devida
experincia, o agente no perguntou pra famlia se o falecido era
coxo. Resultado: mediu do alto da testa ponta do p, pela
perna mais curta e, quando o caixo chegou, no satisfazia s
medidas do fregus.
Foram comprar outro caixo para enterrar o vizinho, e ele,
que tinha uma tia velha j mais pra l do que pra c, mediu a
parenta disfaradamente verificando que ela cabia dentro do
caixo recusado. Adquiriu a pea por preo de ocasio e
guardou na garagem. Um ms depois a tia embarcava nele.
Desse episdio ficou-lhe o gosto pelo negcio. Mas como
dizamos, j vai pra algum tempo que no o vemos. A ltima
vez foi aqui no Rio, durante o velrio de conhecido artista. Ele
compareceu como visita. Nada tinha a ver com o servio de
bordo, mas nem por isso deixou de criticar certas deficincias.
Ao sair contou que mais por carinho do que por necessidade
ainda mantinha a agncia funerria de Santos, que tinha um
nome dos mais convidativos: "Nossa Casa".
Falar nisso, voc poderia fazer um jingle de propaganda
para mim? perguntou.
E, ao perceber nosso espanto, explicou que estava fazendo
uma grande remarcao no estoque e precisava anunciar a
liquidao. E tanto chateou que fizemos o jingle. No sabemos
se tocou no rdio, mas ainda nos lembramos bem: a msica era
aquela da canozinha de Teresinha de Jesus, de uma queda foi
ao cho etc. etc. A letra era assim:
Funerria "Nossa Casa" Tem caixo de ala dourada
Adquira um hoje mesmo Por um preo camarada.
Se vocs esto pensando que existe exagero de nossa parte,
ao descrever o trato jovial que nosso amigo tem, para com as
coisas fnebres, esto muito enganados. Ele no o nico,
inclusive. Em Recife, recentemente, a Prefeitura negou a um
agente funerrio o nome de "Ao Morrer Sorrindo", para sua casa
de vender pijama de madeira. E aqui mesmo no Rio, h pouco
tempo, um cavalheiro botava o seguinte anncio, em "O Globo":
"Sepultura Perptua Cedo direitos de uma, na parte plana do
Cemitrio So Joo Batista, por Cr$ 1 600 000,00, ou troco por
apartamento de sala, 2 quartos, na Zona Sul. Favor ligar para 22-
0387 ou procurar informaes na Avenida Rio Branco 173
sala 1306."
Isto prova que, em algum lugar do Rio, h um camarada que
prefere viver melhor a ter conforto depois da morte. ,
companheiros, o Rio cresceu tanto que morrer agora um
problema. O camarada do anncio est pouco se incomodando
com o que possa lhe acontecer depois de pisar no prego e es-
vaziar de todo. Quer seu apartamentinho de dois quartos na
Zona Sul, que no a residncia ideal, mas sempre melhor do
que morar em penso, para poder descansar no meio dos
bacanos, depois de devidamente empacotado.
O Rio cresceu repetimos e cresceu pra todo lado e pra
cima tambm. Principalmente pra cima. Este detalhe que deve
ter dado a idia ao arquiteto Wladimir Alves de Sousa, para
resolver o problema dos cemitrios cariocas. O Governador, que
ultimamente tem perseguido os demasiadamente vivos, est
preocupado com os demasiadamente mortos; to mortos que no
tm onde cair idem. E aqui parece que encontra a soluo.
Leiam a notcia, tal e qual saiu no jornal:
"A construo de edifcios de 15 andares, com todos os
requisitos de higiene, para instalao de sepulturas e ossrios,
foi proposta ao Governador pelo arquiteto Wladimir Alves de
Sousa. O arquiteto acha que seu plano de cemitrios verticais,
apresentado junto com grficos, croquis e mapas, ser a soluo
para o problema de espao nos cemitrios do Estado."
Voc a, que carioca, sente o drama, v! Talvez seja voc o
defunto que vai inaugurar a coisa. Ser a primeira vez na
Histria que uma pessoa, depois de morta, enterrada para
cima.