Os 10 Poemas Mais Famosos de Fernando Pessoa
Os 10 Poemas Mais Famosos de Fernando Pessoa
Os 10 Poemas Mais Famosos de Fernando Pessoa
Tabacaria
No sou nada. Nunca serei nada. No posso querer ser nada. parte isso, tenho
em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhes do mundo. que
ningum sabe quem ( E se soubessem quem , o que saberiam?), Dais para o
mistrio de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua
inacessvel a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa,Com o mistrio das coisas por baixo das pedras e dos
seres,Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens, Com o Destino a conduzir a carroa de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lcido, como se
estivesse para morrer, E no tivesse mais irmandade com as coisas Seno uma
despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de
um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabea, E uma
sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje
dividido entre a lealdade que devo Tabacaria do outro lado da rua, como
coisa real por fora, E sensao de que tudo sonho, como coisa real por
dentro.
Falhei em tudo.Como no fiz propsito nenhum, talvez tudo fosse nada. A
aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tm
sido campees em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes
irrespondivelmente parasita,Indesculpavelmente sujo.Eu, que tantas vezes no
tenho tido pacincia para tomar banho,Eu, que tantas vezes tenho sido ridculo,
absurdo, Que tenho enrolado os ps publicamente nos tapetes das etiquetas, Que
tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,Que tenho sofrido
enxovalhos e calado, Que quando no tenho calado, tenho sido mais ridculo
ainda; Eu, que tenho sido cmico s criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o
piscar de olhos dos moos de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras,
pedido emprestado [sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho
agachado Para fora da possibilidade do soco;Eu, que tenho sofrido a angstia
das pequenas coisas ridculas, Eu verifico que no tenho par nisto tudo neste
mundo.
Toda a gente que eu conheo e que fala comigo Nunca teve um ato ridculo,
nunca sofreu enxovalho, Nunca foi seno prncipe todos eles prncipes na
vida
Quem me dera ouvir de algum a voz humana Que confessasse no um pecado,
mas uma infmia; Que contasse, no uma violncia, mas uma cobardia! No, so
todos o Ideal, se os oio e me falam.Quem h neste largo mundo que me
confesse que uma vez foi vil? prncipes, meus irmos,
Arre, estou farto de semideuses! Onde que h gente no mundo?
Ento sou s eu que vil e errneo nesta terra?
Podero as mulheres no os terem amado, Podem ter sido trados mas
ridculos nunca!E eu, que tenho sido ridculo sem ter sido trado, Como posso
eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil,
literalmente vil,Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
O guardador de rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos, Mas como se os guardasse. Minha alma como
um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mo das Estaes A seguir e a
olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico
triste como um pr de solPara a nossa imaginao, Quando esfria no fundo da
plancie E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza sossego Porque natural e justa E o que deve estar na
alma Quando j pensa que existe E as mos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um rudo de chocalhos Para alm da curva da estrada, Os meus
pensamentos so contentes.S tenho pena de saber que eles so
contentes, Porque, se o no soubesse, Em vez de serem contentes e
tristes,Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar chuva Quando o vento cresce e parece que
chove mais.
No tenho ambies nem desejos Ser poeta no uma ambio minha a minha
maneira de estar sozinho.
E se desejo s vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para
andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
s porque sinto o que escrevo ao pr do sol, Ou quando uma nuvem passa a
mo por cima da luz E corre um silncio pela erva fora.
Ode martima
Sozinho, no cais deserto, a esta manh de Vero, Olho pr lado da barra, olho
pr Indefinido, Olho e contenta-me ver, Pequeno, negro e claro, um paquete
entrando. Vem muito longe, ntido, clssico sua maneira.Deixa no ar distante
atrs de si a orla v do seu fumo. Vem entrando, e a manh entra com ele, e no
rio, Aqui, acol, acorda a vida martima,Erguem-se velas, avanam
rebocadores, Surgem barcos pequenos detrs dos navios que esto no porto.H
uma vaga brisa. Mas a minhalma est com o que vejo menos. Com o paquete
que entra, Porque ele est com a Distncia, com a Manh, Com o sentido
martimo desta Hora, Com a doura dolorosa que sobe em mim como uma
nusea,Como um comear a enjoar, mas no esprito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independncia de alma, E dentro de
mim um volante comea a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manh na barra Trazem aos meus olhos consigo O
mistrio alegre e triste de quem chega e parte. Trazem memrias de cais
afastados e doutros momentos Doutro modo da mesma humanidade noutros
pontos. Todo o atracar, todo o largar de navio, sinto-o em mim como o meu
sangue - Inconscientemente simblico, terrivelmenteAmeaador de
significaes metafsicas Que perturbam em mim quem eu fui
Ah, todo o cais uma saudade de pedra!E quando o navio larga do cais E se
repara de repente que se abriu um espao Entre o cais e o navio, Vem-me, no
sei porqu, uma angstia recente, Uma nvoa de sentimentos de tristeza Que
brilha ao sol das minhas angstias relvadas Como a primeira janela onde a
madrugada bate, E me envolve com uma recordao duma outra pessoa Que
fosse misteriosamente minha.
Autopsicografia
O poeta um fingidor. Finge to completamente Que chega a fingir que dor A
dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, No as duas que ele
teve,Mas s a que eles no tm.
E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razo, Esse comboio de corda Que
se chama corao.
Aniversrio
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ningum
estava morto. Na casa antiga, at eu fazer anos era uma tradio de h sculos, E
a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religio qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande sade de
no perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a famlia, E de no ter
as esperanas que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanas, j
no sabia ter esperanas. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da
vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de corao e parentesco. O
que fui de seres de meia-provncia, O que fui de amarem-me e eu ser
menino, O que fui ai, meu Deus!, o que s hoje sei que fui A que
distncia! (Nem o acho) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado
nas paredes O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme atravs
das minhas lgrimas),O que eu sou hoje terem vendido a casa, terem
morrido todos, estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fsforo frio
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos Que meu amor, como uma
pessoa, esse tempo!Desejo fsico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma
viagem metafsica e carnal,Com uma dualidade de eu para mim Comer o
passado como po de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Pressgio
O amor, quando se revela, No se sabe revelar. Sabe bem olhar pra ela, Mas no
lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente No sabe o que h de dizer. Fala: parece que
mente Cala: parece esquecer
Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe
bastasse Pra saber que a esto a amar!
Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem
fala, Fica s, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe O que no lhe ouso contar, J no terei que falar-
lhe Porque lhe estou a falar
No sei quantas almas tenho
No sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me
estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, s tenho alma. Quem tem alma
no tem calma.Quem v s o que v, Quem sente no quem ,
Atento ao que sou e vejo,Torno-me eles e no eu. Cada meu sonho ou desejo
do que nasce e no meu. Sou minha prpria paisagem;Assisto minha
passagem,Diverso, mbil e s, No sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendoComo pginas, meu ser. O que segue no prevendo, O
que passou a esquecer. Noto margem do que li O que julguei que senti. Releio e
digo: Fui eu? Deus sabe, porque o escreveu.
Todas as cartas de amor
Todas as cartas de amor so Ridculas. No seriam cartas de amor se no
fossem Ridculas.
Tambm escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridculas.
As cartas de amor, se h amor, Tm de ser Ridculas.
Mas, afinal, S as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor que
so Ridculas.
Quem me dera no tempo em que escreviaSem dar por isso Cartas de
amor Ridculas.
A verdade que hojeAs minhas memrias Dessas cartas de amor que
so Ridculas.
(Todas as palavras esdrxulas, Como os sentimentos esdrxulos, So
naturalmente Ridculas.)
O cego e a guitarra
O rudo vrio da rua Passa alto por mim que sigo. Vejo: cada coisa sua Oio:
cada som consigo.
Sou como a praia a que invadeUm mar que torna a descer. Ah, nisto tudo a
verdade s eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o rudo. No, no ajusto nada Ao meu conceito
perdido Como uma flor na estrada.
Cheguei janela Porque ouvi cantar. um cego e a guitarra Que esto a chorar.
Ambos fazem pena, So uma coisa s Que anda pelo mundo A fazer ter d.
Eu tambm sou um cego Cantando na estrada, A estrada maior E no peo
nada.