Gadotti Faeeba
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Quero inicialmente cumprimentar os organizadores dessa Conferncia pela felicidade na escolha do tema "uma escola com muitas culturas: educao e identidade - um desafio global". A escolha no poderia ser melhor numa poca de globalizao da economia e das comunicaes, mas tambm numa poca de acirramento das contradies inter e intra povos e naes, poca do ressurgimento do racismo e de certo triunfo do individualismo. dentro desse cenrio da ps-modernidade que a escola precisa atuar, um cenrio que coloca novos desafios para ns, educadores. Podamos iniciar o debate com esta pergunta: que tipo de educao necessitam os homens e as mulheres dos prximos 20 anos, para viver este mundo to diverso? Certamente eles e elas necessitam de uma educao para a diversidade, necessitam de uma tica da diversidade e de uma cultura da diversidade. Uma sociedade multicultural deve educar o ser humano multicultural, capaz de ouvir, de prestar ateno ao diferente, respeit-lo. Neste novo cenrio da educao, ser preciso reconstruir o saber da escola e a formao do educador. No haver um papel cristalizado tanto para a escola quanto para o educador. Em vez da arrogncia de quem se julga dono do saber, o professor dever ser mais criativo e aprender com o aluConferncia proferida em 10 de maio de 1995 no Centro Experimental de Educao do Estado Dinamarqus em Copenhagen (Dinamarca).
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no e com o mundo. Numa poca de violncia, agressividade, o professor dever promover o entendimento com os diferentes, e a escola dever ser um espao de convivncia, onde os conflitos so trabalhados, no camuflados. Nesse contexto global h duas dimenses que podem ser logo destacadas: a) a dimenso interdisciplinar. O objetivo fundamental da interdisciplinaridade - um caminho para se chegar transdisciplinaridade - experimentar a vivncia de uma realidade global que se inscreve nas experincias cotidianas do aluno, do professor e do povo, e que na escola conservadora compartimentizada e fragmentada. Articular saber, conhecimento, vivncia, escola, comunidade, meio-ambiente etc. o objetivo da interdisciplinaridade que se traduz na prtica por um trabalho escolar coletivo e solidrio. b) a dimenso internacional. Para viver esse tempo presente, o professor precisa engajar as crianas para viver no mundo da diferena e da solidariedade entre diferentes. A escola precisa preparar o cidado para participar de uma sociedade planetria. A escola tem que ser local, como ponto de partida, mas tem que ser internacional e intercultural, como ponto de chegada. Os trs momentos do mtodo de Paulo Freire parecem contemplar essas duas dimenses: a) pela investigao temtica, aluno e professor buscam, no universo vocabular do aluno e da sociedade onde ele vive, as palavras e temas centrais de sua biografia; b) pela tematizao, codificando e decodificando esses temas, ambos buscam o seu significado social, tomando assim conscincia do mundo vivido; e c) pela problematizao buscam superar uma primeira viso mgica por uma viso crtica, partindo para a transformao do contexto vivido. Diante do problema do desinteresse de muitos de nossos alunos pelos contedos curriculares do nosso ensino, costuma-se responder com mtodos mais apropriados ou aumentando o tema de freqncia escola. Mas h outra viso do problema que a de adequar o tratamento dos contedos,
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problematizando-os e equacionando corretamente a relao entre a transmisso da cultura e o itinerrio educativo dos alunos. O currculo monocultural oficial representa, neste aspecto, um grande desafio. Ao contrrio, os resultados obtidos com currculos multiculturais, que levam em conta a cultura do aluno, so mais eficazes para despertar o interesse do aluno. Paulo Freire chama a essa cultura do aluno de "cultura popular". Outros educadores que tambm estudaram esse tema, como o educador francs Georges Snyders, a chama de "cultura primeira". Equacionar adequadamente ou no a relao entre identidade cultural e itinerrio educativo, sobretudo para as camadas populares, pode representar a grande diferena na extenso ou no da educao para todos e de qualidade, nos prximos anos. S uma educao multicultural pode dar conta dessa tarefa. A educao multicultural se prope a analisar criticamente os "curricula" monoculturais atuais e procura formar criticamente os professores, para que mudem suas atitudes diante dos alunos mais pobres e elaborem estratgias instrucionais prprias para a educao das camadas populares, procurando, antes de mais nada, compreend-las na totalidade de sua cultura e de sua viso de mundo. Por exemplo, na educao de jovens e adultos trabalhadores, uma estratgia de alfabetizao, numa concepo multicultural, deveria partir do relato da experincia de trabalho e de vida deles mesmos, isto , da biografia dos prprios educandos e no do desenho das letras que uma tcnica anticientfica. Essa estratgia foi aplicada com sucesso num programa de alfabetizao na cidade de So Paulo, no projeto MOVA-SP ( Movimento de Alfabetizao e de Ps-alfabetizao da Cidade de So Paulo), durante a gesto de Paulo Freire (1989-1991). Os jovens e adultos sentiram-se mais envolvidos no processo de alfabetizao, no momento em que perceberam a importncia que o professor dava vida deles. Como dizia um deles, ele tinha "vergonha" de contar sua vida porque a considerava um "fracasso". Atribua a ele mesmo esse fracasso e no a uma estrutura social e econmica inqua. Ao "contar" o que "fez na vida", ele podia assumi-la com mais confiana, compreend-la melhor, buscar as razes para uma "vida melhor". Se aprender lhe possibilitava "viver melhor", daria tudo de si para continuar aprendendo. Se a escola era isso, era tudo o que procurava. Sentia-se feliz em estar na escola, j que em tantos lugares de trabalho ele sempre era "envergonhado".
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A diversidade cultural a riqueza da humanidade. Para cumprir sua tarefa humanista, a escola precisa mostrar aos alunos que existem outras culturas alm da sua. A autonomia da escola no significa isolamento, fechamento numa cultura particular. Escola autnoma significa escola curiosa, ousada, buscando dialogar com todas as culturas e concepes de mundo. Pluralismo no significa ecletismo, um conjunto amorfo de retalhos culturais. Pluralismo significa sobretudo dilogo com todas as culturas, a partir de uma cultura que se abre s demais. A escola no deve apenas transmitir conhecimento, mas tambm preocupar-se com a formao global dos alunos, numa viso onde o conhecer e o intervir no real se encontrem. Mas, para isso, preciso saber trabalhar com as diferenas, isto , preciso reconhec-las, no camufl-las, e aceitar que para me conhecer, preciso conhecer o outro. Partindo desse princpio antropolgico, muitas aes prticas podem ser desenvolvidas, desde j, para a construo de uma escola pluralista e competente, que articule a diversidade cultural dos alunos com seus prprios itinerrios educativos: a) pode-se fortalecer grupos que trabalham com currculos multiculturais, impulsionando o movimento emergente de valorizao das diferentes culturas; b) pode-se incentivar as escolas para que faam mudanas nos seus currculos, incluindo temas como: direitos humanos, educao para a paz, educao ambiental, discriminao racial e cultura popular; c) pode-se recuperar os cdigos lingsticos das prprias comunidades desde o processo de alfabetizao, como meio de fortalecer a auto-estima; enfim, d) pode-se promover a autonomia da escola na elaborao de seus currculos, pois, s com autonomia a escola pode fazer as mudanas desejadas. Tudo isso factvel desde j. possvel e necessrio. As conseqncias desse enfoque para o ensino so enormes. Trata-se de estabelecer metodologias que permitam converter as contribuies tico-culturais em contedos educativos, portanto, fazer parte da proposta educativa global de cada escola. Evidentemente, o professor, de qualquer disciplina, precisa ter conhecimentos antropolgicos e culturais mnimos e ter um olhar para perceber as diferenas tico-culturais; portanto, precisa reeducar o seu olhar
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para a interculturalidade; precisa descobrir elementos culturais externos que revitalizem a sua prpria cultura. Mas isso no mais problemtico hoje. Basta abrir os olhos para a realidade, escutar, ouvir. O mundo est se tornando mestio. no contexto deste mundo mestio que devemos colocar a questo da identidade. O que identidade e, em particular, o que identidade sciocultural? Primeiramente, deveramos falar de identidade tnico-cultural, pois ao falarmos de identidade de uma cultura temos que localiz-la num determinado tempo e espao e no interior de um grupo tnico. Por sua vez, essa identidade estaria articulada a uma identidade nacional, determinada tambm historicamente. Afirmar uma identidade tnico-cultural afirmar uma certa originalidade, uma diferena e, ao mesmo tempo, uma semelhana. Idntico aquele que perfeitamente igual. Na identidade existe uma relao de igualdade que cimenta um grupo, igualdade vlida para todos os que a ele pertencem. Porm, a identidade se define em relao a algo que lhe exterior, diferente. Vivemos hoje uma exploso das diferenas: tnicas, sexuais, culturais, nacionais, etc. que coloca a questo do resgate da identidade. Na verdade, identidade a resposta que damos pergunta: quem somos ns? No nosso caso, de brasileiros, somos uma mistura de afroamericanos, ndios e brancos. Mas s isso? O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade dizia que "nenhum Brasil existe" e se perguntava: "e acaso existem os brasileiros?" O que genuinamente nosso? O que pode constituir-se numa identidade nossa? Por outro lado, a identidade scio-cultural seria um conceito incuo se tendesse a fixar padres culturais para apenas "preserv-los". A cultura dinmica e, no contato com outras culturas, ela se transforma. Por isso, prefervel falar-se em "identidades culturais" e no "identidade cultural", para evidenciar, desde logo, a pluralidade e o dinamismo da identidade cultural. Hoje quase impossvel reconhecer uma cultura que no esteja em ntima interdependncia de outras. Como podemos articular a diversidade cultural com itinerrios educativos que se direcionem para a eqidade. SuRev. FAEEBA, Salvador, n 4, jul./dez. 1995
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ponho que no existe condio de reconhecer a diferena se no se parte da aceitao da alteridade e da igualdade, porque, para me conhecer necessito conhecer o outro como parceiro. A identidade supe uma relao de igualdade e diferena, que pode ser antagnica ou no. S h dilogo e parceria quando a diferena no antagnica. O dilogo uma relao de unidade de contrrios no-antagnicos. Entre antagnicos h o conflito. O tema da relao entre a diversidade cultural e os itinerrios educativos j foi tratado por educadores como Paulo Freire e, na Frana, Georges Snyders. Cada um, a seu modo, aponta para uma pedagogia com base no respeito identidade cultural do educando. interessante notar as semelhanas e diferenas na viso do mesmo problema por esses dois eminentes educadores. Paulo Freire constri a sua pedagogia - o seu "mtodo" como conhecido - num itinerrio que vai da cultura popular cultura erudita e letrada, passando pela formao da conscincia crtica, articulando a primeira com a segunda. O pensamento de Paulo Freire tem suas razes mais profundas no debate poltico-cultural brasileiro do final dos anos 50. Tratava-se do debate em torno da construo de uma identidade nacional baseada no desenvolvimento poltico, social e econmico que, segundo ele, passava pela tomada de conscincia da realidade nacional. Esse processo no poderia dar-se sem uma transformao na estrutura do ensino e da extenso da educao para todos. Um projeto de emancipao e construo de uma nova nao brasileira passava pela assuno de suas caractersticas de nao latino-americana e terceiro-mundista, ao contrrio do que as elites dominantes pensavam, que era criar, no Brasil, uma "nova Europa" ou uma "nova Amrica". Da Paulo Freire insistir na questo da "invaso cultural", da "dependncia" e da "conscincia alienada". Denunciando essa "realidade nacional" Paulo Freire estava anunciando, dialeticamente, o seu fim e inaugurando, entre ns, um vigoroso movimento em torno de um pensamento pedaggico autnomo. Paulo Freire reintroduz a reflexo sobre o social no pensamento educacional brasileiro, comprometendo-se com os ideais de uma democracia radical. Cultura popular, segundo ele, sinnimo de "conscientizao", ou seja, de tomada de conscincia da realidade nacional para transform-la e criar novas formas de relaes sociais e polticas; significa conscincia de direitos, possibilidade de criar novos direitos e capacidade de defend-los
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contra o autoritarismo, a violncia e o arbtrio. Enfim, para Paulo Freire, cultura popular significa cultura da cidadania. J a pedagogia de Georges Snyders pretende operar uma ruptura e uma continuidade entre a cultura primeira - cuja modalidade mais evidente a cultura de massa - e a cultura elaborada, prpria da escola, a escola, entendida como o lugar do sistemtico e do progressivo, mas tambm o lugar da alegria. Como Paulo Freire, Snyders no desvaloriza a cultura de massa, mas mostra o quanto ela insuficiente. A cultura primeira promete muito, mas cumpre pouco. Ela necessita de um prolongamento na cultura elaborada. A cultura elaborada pode, melhor que a cultura primeira, atingir a satisfao prometida pela cultura primeira. A cultura de nosso tempo a cultura de massa. A sua grande fora est no fato de ela nos unir instantaneamente a todo o mundo, embora de forma fugaz. Porm, a cultura de massa, na forma como veiculada, retira o que h de melhor, de original, na cultura popular e a devolve ao povo sob a forma de receitas e preceitos. uma cultura que apresenta o produto, mas no mostra o processo de como se chega a esse produto. Por isso, uma cultura de consumo. Apesar disso, a escola que negasse a cultura de massa estaria contribuindo para com o fracasso escolar das crianas das camadas populares, frente s crianas das elites. A escola que tira a criana desse ambiente de bombardeamento constante dos meios de comunicao de massa e a transporta para um local enfadonho, que no utiliza a sua linguagem e no satisfaz os seus desejos, fracassa na sua tarefa primeira que despertar o desejo de aprender e desenvolver a capacidade de continuar aprendendo. A escola precisa fazer a sntese entre continuidade e ruptura, como diz Snyders, em relao cultura de massa, se quiser respeitar a identidade cultural das crianas populares. O imediato, a cultura primeira, deve ser um apelo em direo ao elaborado. A cultura elaborada no necessariamente representa algo superior para as necessidades vitais de todos os indivduos. Depende do contexto histrico em que eles vivem. Pode at destruir sua identidade por uma espcie de "esquecimento" ou rejeio da cultura primeira. Ela pode representar a alienao pura, o "discurso do outro", na expresso de Cornelius Castoriadis. Hospedado dentro de mim, o outro acaba falando por mim. o caso, por
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exemplo, do drama que hoje enfrentam algumas comunidades indgenas no Brasil. Acabam no sendo nem ndios e nem brancos, nem ocidentais e nem brasileiros. A escola dos brancos pode destruir a identidade indgena. Sendo o contato com o branco inevitvel, o que estamos fazendo hoje - como fizemos em So Paulo na nica aldeia guarani existente na capital - criar escolas bilinges. J existem 600 dessas escolas no Brasil. Elas tem por objetivo preservar e fortalecer a organizao social, a cultura, os costumes, as lnguas, crenas e tradies das comunidades indgenas. Mas os meios de comunicao de massa no so a nica fonte do saber dos "menos qualificados", como se costuma dizer na Frana. H uma outra fonte "mais qualificada": o saber do trabalhador que se constri e se desenvolve no trabalho, isto , no ato de produo. um saber primeiro, mas tambm, muitas vezes, extremamente elaborado. sobretudo um saber "em ato" que se exprime pela oralidade e, o mais das vezes, se reduz esfera da pura execuo do trabalho. Por isso, os trabalhadores no tm interesse em desenvolver o seu saber se ele no for reconhecido como poder, isto , se o seu saber no puder interferir na concepo e na tomada de deciso. Os anos 90 caracterizam-se por um pensamento ps-marxista e psmoderno, o questionamento das teses socialistas ortodoxas e burocrticas e a afirmao da subjetividade que se expressa por meio de movimentos sociais de ndole distinta, mais preocupados com questes imediatas do que com uma utopia distante, como pensvamos nos anos 60. De fato, estamos vivendo um tempo de crise da utopia. Afirm-la novamente se constitui, para ns, num ato pedaggico essencial na construo da educao do futuro. H os que acreditam que o socialismo morreu, que a utopia morreu, que a luta de classes desapareceu. Mas no foi bem o socialismo que morreu e triunfou o capitalismo. O que foi derrotada foi uma certa moldura do socialismo: a moldura autoritria. E isso representa um grande avano. Os neo-liberais e neo-conservadores sustentam tambm que a ideologia acabou, que nada mais ideolgico. Esse discurso no torna velhos os nossos sonhos de liberdade e no deixa de ser menos justa a luta contra o autoritarismo. Isso apenas nos obriga a compreend-lo melhor em suas mltiplas manifestaes. Ns dizamos que uma educao no autoritria deveria respeitar o aluno. Hoje temos mais clareza sobre esse princpio quando as teorias da educao multicultural enfatizam ainda mais a necessidade de os educadores
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atentarem para as diferenas de cor, classe, raa, sexo etc. Dizamos que o respeito diferena era uma idia muito cara educao popular. Hoje percebemos com mais clareza que a diferena no deve ser apenas respeitada. Ela a riqueza da humanidade, base de uma filosofia do dilogo. Enfim, no pode estar superada uma pedagogia do oprimido enquanto existirem oprimidos. No pode estar superada a luta de classes enquanto existirem privilgios de classe. certo, algumas coisas mudaram. Algumas para melhor e outras para pior. Continuo percebendo, em todos os lugares por onde passo, que h uma enorme vontade de saber e de aprender dos jovens educadores de hoje e desejo de enfrentar coletivamente a luta pela libertao que continua tarefa permanente. Isso no deve ser diferente na Dinamarca. NOTA 1. O professor Moacir Gadotti escreveu, entre outras obras: Escola cidad (1992), Histria das idias pedaggicas (1993) e Pedagogia da Prxis (1994).
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