Livro Midiapsicologia Final Web

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2ª edição

Endereço
Conselho Federal de Psicologia
SRTVN, Quadra 702, Edifício Brasília Rádio Center, 4 andar, conjunto 4024 A.
CEP.: 70719-900

Site
www.pol.org.br
Mídia e Psicologia:
produção de subjetividade e coletividade
Organizadores
Ana Mercês Bahia Bock
José Novaes
Marcos Ribeiro Ferreira
Monalisa Nascimento Dos Santos Barros
Noeli Godoy
Ricardo Moretzsohn
Roseli Goffman
Vera Canabrava

Integrantes
Adilson Vaz Cabral Filho, Ana Bock, Ana Maria Nicolacci
Ana Mercês Bahia Bock, Ana Olmos
Andréia Mendes dos Santos, Berenice Mendes Bezerra
Celso Schröder, Cláudia de Abreu
Diva Lúcia Gautério Conde, Fernanda Bruno
Guilherme Canela, Gustavo Barreto
Gustavo Gindre, Heitor Reis
Henrique Antoun, James Arêas
Joel Rufino dos Santos, Joel Zito Araújo
José Arbex Jr, José Novaes
Luiz Alberto Sarz, Manuel Calvino
Mara Regina Chuairi da Silva, Marcos Dantas, Marcos Ferreira
Marcus Vinícius de Oliveira, Maria Aparecida da Silva Bento
Maria da Graça Gonçalves, Maria de Fátima Nassif
Maria Rita Kehl, Mauro Malin
Monalisa Barros, Noeli Godoy, Noemi Friske Momberger
Paulo Roberto Ceccarelli, Paulo Roberto Vaz
Pedrinho Guareschi, Rachel Moreno
Ricardo Moretzsohn, Ricardo Vieiralves de Castro
Roberto Menna Barreto, Rosa Pedro, Rosária Ilgenfritz Sperotto
Roseli Goffman, Vera Canabrava
Vera Malaguti Batista, Vito Giannotti

Mídia e Psicologia:
produção de subjetividade e coletividade
2009
Conselho Federal de Psicologia
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação,
para qualquer finalidade, sem autorização por escrito dos editores.

2ª Edição
Junho de 2009
Projeto Gráfico
Luana Melo
Diagramação
Erika Yoda e Fabrício Martins
Revisão
Luciana Melo e Bárbara de Castro

Liberdade de Expressão - Agência e Assessoria de Comunicação


[email protected]

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Conselho Federal de Psicologia


Mídia e psicologia : produção de subjetividade e coletividade. 2.ed. / Con-
selho Federal de Psicologia. – Brasília : Conselho Federal de Psicologia, 2009.
392 p.

ISBN 978-85-89208-15-4

1. Comunicação 2. Comunicação e tecnologia 3. Alienação 4. Subje-


tividade 5. Publicidade I. Título.

BF637.C45
Plenário promotor do evento

Conselho Federal de Psicologia


XIII Plenário
Gestão 2005 - 2007

Diretoria
Ana Mercês Bahia Bock
Presidente

Marcus Vinícius de Oliveira Silva


Vice-Presidente

Maria Christina Barbosa Veras


Secretária

André Isnard Leonardi


Tesoureiro

Conselheiros Efetivos
Acácia Aparecida Angeli dos Santos
Conselheiros Suplentes
Secretária Região Sudeste
Alexandra Ayach Anache
Adriana de Alencar Gomes Pinheiro Andréa dos Santos Nascimento
Secretária Região Nordeste Giovani Cantarelli
Ana Maria Pereira Lopes Maria de Fátima Lobo Boschi
Secretária Região Sul
Monalisa Nascimento dos Santos Barros
Odair Furtado
Iolete Ribeiro da Silva Rejane Maria Oliveira Cavalcanti
Secretária Região Norte Rodolfo Valentim Carvalho Nascimento
Nanci Soares de Carvalho
Secretária Região Centro-Oeste

Psicólogas Convidadas
Regina Helena de Freitas Campos
Deusdet do Carmo Martins
Vera Lúcia Giraldez Canabrava
Maria Luiza Moura Oliveira
Plenário responsável pela publicação

Conselho Federal de Psicologia


XIV Plenário
Gestão 2008 - 2010

Diretoria
Humberto Cota Verona
Presidente

Ana Maria Pereira Lopes


Vice-presidente

Clara Goldman Ribemboim


Secretária

André Isnard Leonardi


Tesoureiro

Conselheiros Efetivos
Elisa Zaneratto Rosa Conselheiros Suplentes
Secretário Região Sudeste Acácia Aparecida Angeli dos Santos
Andréa dos Santos Nascimento
Maria Christina Barbosa Veras
Anice Holanda Nunes Maia
Secretário Região Nordeste
Aparecida Rosângela Silveira
Deise Maria do Nascimento Cynthia R. Corrêa Araújo Ciarallo
Secretário Região Sul Henrique José Leal Ferreira Rodrigues
Iolete Ribeiro da Silva Jureuda Duarte Guerra
Secretário Região Norte Marcos Ratinecas
Maria da Graça Marchina Gonçalves
Alexandra Ayach Anache
Secretário Região Centro Oeste

Psicólogos Convidados
Aluízio Lopes de Brito
Roseli Goffman
Maria Luiza Moura Oliveira

6
Nota de apresentação
da segunda edição
Foi com imensa satisfação que o Conselho Federal de Psicologia decidiu
pela segunda edição – revista – do livro Mídia e Psicologia: produção de
subjetividade e coletividade.
Na mesma semana em que a primeira edição do livro foi lançada, durante
o Fórum Social Mundial realizado em janeiro de 2009 na cidade de Belém
(PA), o presidente Lula anunciou a realização da Conferência Nacional de
Comunicação, prevista para ocorrer de 1º a 3 de dezembro de 2009.
Resultado da pressão por parte da sociedade civil organizada, processo
do qual o Conselho Federal de Psicologia (CFP) participa ativamente, a
Conferência vai reunir representantes de movimentos e organizações
sociais, dos empresários e do governo para discutir questões relativas à
comunicação social no Brasil.
Neste novo cenário, fica reforçada a importância da segunda edição
deste livro que traz, nos debates transcritos, inúmeras indicações de como
se relacionam Psicologia e Comunicação.
O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia estão
preparando cinco teses que aprofundarão debates e propostas sobre o fim da
publicidade dirigida às crianças; o fim da publicidade de bebidas alcoólicas
e substâncias psicoativas; a exploração da imagem da mulher, crianças e
adolescentes na mídia; controle social da mídia e mídia e trânsito.
Que neste ano de muito trabalho e muitos desafios, esses materiais
possam contribuir para motivar e embasar a participação dos psicólogos
nas Conferências locais e na Conferência Nacional e também para mostrar
à sociedade que a Psicologia participa do movimento de construção de uma
comunicação democrática no Brasil.

XIV Plenário do Conselho Federal de Psicologia


Apresentação
As propostas da Democratização das Comunicações, e a subseqüente
reivindicação do Movimento social de univesalização dos meios, emergem
em um momento de grande velocidade da produção de tecnologia, em
que os laços sociais atravessam rapidamente novos fluxos, podendo
alienar, capturar e isolar ou, em contraponto, formar redes de atuação e
engajamento em causas coletivas.
Trazer esta discussão para o campo da Psicologia é propor um cenário de
pensamento que promova o entendimento do impacto que a convergência
tecnológica traz ao nosso cotidiano, na ausência de um marco regulatório que
crie parâmetros a este novo tempo, tendo como uma das graves conseqüências
a continuada concentração de propriedade dos meios de comunicação.
Neste momento em que especula a entrada no mercado de trabalho
brasileiro de rádio e TV, das grandes redes Internacionais de Telecomunicação,
nossa questão primeira é de que maneira estas transformações podem
influenciar na produção de subjetividade, sabendo que no Brasil, mais de
98% dos lares tem acesso a Rádio e TV. Migrando telefonia, dados, som e
vídeo para um mesmo suporte, quer computador ou celular, de que maneira
será afetado os modos de existir, a cidadania, a democracia?
Diante deste cenário, o Conselho Federal de Psicologia, junto ao
Conselho Regional de Psicologia – 5ª Região (Rio de Janeiro) e com o apoio
do Conselho Regional de Psicologia – 6ª Região (São Paulo), propuseram
discutir em um grande evento as questões da Mídia e da Psicologia. Além
de buscar mobilizar a categoria e demais segmentos da sociedade para esta
discussão, trazia em seu cerne a proposta de questionar e problematizar
a massificação produzida por essas mídias e os efeitos nas formas de
subjetividade e coletividade em nosso meio, engrossando a luta pela
democratização dos meios de comunicação.
O desafio estava lançado: de que forma poderíamos organizar um
seminário que articulasse Mídia e Psicologia, no Rio de Janeiro, com
data proposta para 28 a 30 de junho de 2007? Ora, formada a comissão
organizadora, composta por Ana Bock, José Novaes, Marcos Ferreira, Monalisa
Barros, Noeli Godoy, Ricardo Moretzsohn, Roseli Goffman e Vera Canabrava,
o passo seguinte foi encontrar um espaço físico que fosse propiciador do
tempo do pensamento. O desejo era que o lugar pudesse abrigar os nossos
anseios em colocar no cotidiano dos Psicólogos Brasileiros, não somente
o comum acesso as programações de Rádio e TV, mas, sobretudo a
pauta desta discussão. A proposta era de promover o questionamento
público sobre o extremo poder da mídia brasileira em sua concentração
de discursos únicos de menos de dez famílias, que dirigem e unificam
as notícias e entretenimento em poderosas redes nacionais, solicitando
e direcionando incessantemente os focos de atenção da sociedade
brasileira, levando ao paroxismo o senso comum desdobrado em uma
sensação de desertificação das diversidades de pensamento e de uma
imposição de uma falsa neutralidade ideológica.
A parceria com o Instituto de Psicologia da UFRJ, representada pelo
diretor Marcos Jardim, foi fundamental para o porte do evento, que ao chegar
às 600 inscrições, provocou aquelas reuniões com “boas” emergências, para
dar condições tecnológicas de viabilizar o acesso ao Seminário via Internet.
Conseguimos, inclusive, a transmissão simultânea do evento via Rádio
Comunitária, através da importante pareceria desenvolvida com a ABRAÇO
(Associação Brasileira de Rádios Comunitárias), a quem agradecemos o
lindo trabalho realizado, enriquecendo o Seminário. Igualmente impor­
tan­­te foi a participação da ABEP (Associação Brasileira de Ensino de
Psicologia) como notável colaboradora para  a realização exitosa do
evento. A inspiração necessária nasce também dos homenageados Daniel
Herz e Perseu Abramo que souberam estimular e vencer o tempo com as
propostas de discussões sobre as Políticas Públicas de Comunicação.
Nas andanças subseqüentes a este evento, em busca da construção de
uma Comunicação Social mais democrática em nosso país, são muitos os
encontros com aqueles parceiros, quer da organização, quer palestrantes,
quer participantes, sempre na luta pela Democratização das Comunicações
e pela Convocação da Primeira Conferência de Comunicação Social. Não
raro lembram-se deste evento e perguntam pelo texto, como proposta de
capacitação de Psicólogos e demais categorias profissionais neste temário,
que hoje, mais do que nunca, pauta as discussões dos Movimentos Sociais.
Mas, aí vai o trabalho, agradecendo a 13ª Plenária do CFP, responsável pela
formulação do Seminário Mídia e Psicologia: produção de subjetividade e
coletividade, ora em publicação, começando pela Carta do Rio de Janeiro,
construída coletivamente no evento.

XIII Plenário do Conselho Federal de Psicologia


Sumário

Abertura . .................................................................................................... 15
Monalisa Barros ..................................................................................................................... 17
Ana Mercês Bahia Bock ....................................................................................................... 19
José Novaes............................................................................................................................... 21
Marcos Ferreira ...................................................................................................................... 23

Mesa de Abertura ..................................................................................... 29


José Arbex Jr ........................................................................................................................... 31
Manuel Calvino ...................................................................................................................... 39

Mesa 1
A tecnologia das mídias: a relação dos sujeitos com os meios
tecnológicos de comunicação................................................................. 49
Gustavo Gindre ....................................................................................................................... 51
Rosa Pedro.................................................................................................................................59
Ana Maria Nicolacci................................................................................................................65

Mesa 2
A produção dos sujeitos: a tensão entre cidadania e alienação ..... 71
Diva Lúcia Gautério Conde ...................................................................................................73
Pedrinho Guareschi ................................................................................................................ 81
Henrique Antoun ....................................................................................................................89

Mesa 3
Mídia e produções de subjetividades: questões da cultura .............99
Luiz Alberto Sarz ................................................................................................................... 101
Fernanda Bruno ....................................................................................................................109
Marcus Vinícius de Oliveira ................................................................................................ 119
Mesa 4
Mídia e produções de subjetividade: o poder da mídia ..................131
Marcos Ferreira .................................................................................................................... 133
Vito Giannotti ........................................................................................................................141
Marcos Dantas....................................................................................................................... 149

Mesa 5
Mídia e produções de subjetividade: questões do racismo ........... 157
Maria Aparecida da Silva Bento ....................................................................................... 159
Joel Zito Araújo .................................................................................................................... 165
Joel Rufino dos Santos ........................................................................................................171

Mesa 6
Publicidade e a produção de subjetividade ....................................... 175
Noemi Friske Momberger .................................................................................................. 177
Rachel Moreno....................................................................................................................... 185
Roberto Menna Barreto ..................................................................................................... 195

Mesa 7
Mídia e produções de subjetividade: questões da violência ......... 209
Andréia Mendes dos Santos ...............................................................................................211
Vera Malaguti Batista ..........................................................................................................215
Paulo Roberto Vaz .................................................................................................................221

Mesa 8
Mídia e produções de subjetividade: questões da infância
e adolescência ........................................................................................................... 229
Guilherme Canela .................................................................................................................231
Ana Olmos ............................................................................................................................. 253

Mesa 9
Educação para a Mídia: Leitura Crítica .............................................. 269
Paulo Roberto Ceccarelli .....................................................................................................271
Rosária Ilgenfritz Sperotto ................................................................................................ 279
Mesa 10
A contribuição da psicologia para a mídia de resistência ............. 305
Heitor Reis ..............................................................................................................................307
Adilson Vaz Cabral Filho ......................................................................................................313

Mesa 11
A Produção de Sujeitos: A Tensão entre Ficção e Realidade . .........319
Berenice Mendes Bezerra . ..................................................................................................321
Maria de Fátima Nassif .................................................................................................... 325
James Arêas ......................................................................................................................... 333

Mesa 12
Ética e pensamento na mídia .............................................................. 345
Maria Rita Kehl .................................................................................................................... 347
Gustavo Barreto ................................................................................................................... 353
Mauro Malin.......................................................................................................................... 359

Mesa Final
Democratização da comunicação ......................................................... 363
Celso Schröder ..................................................................................................................... 365
Ricardo Vieiralves de Castro .............................................................................................. 373
Marcos Ferreira .....................................................................................................................381

Encerramento .......................................................................................... 385


José Novaes ........................................................................................................................... 387
Marcos Ferreira .................................................................................................................... 389
Ana Bock . ...............................................................................................................................391
Seminário Nacional Mídia e Psicologia:
Produção de Subjetividade e Coletividade

Abertura

15
Seminário Nacional Mídia e Psicologia:
Produção de Subjetividade e Coletividade

Monalisa Barros
Este evento é uma promoção do Conselho Federal de Psicologia,
do Conselho Regional de Psicologia da 5ª Região - Rio de Janeiro e
da Associação Brasileira de Ensino da Psicologia, e conta com o apoio
da Associação Brasileira de Imprensa, do Instituto de Psicologia, da
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da
Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária e do Fórum Nacional
de Democratização da Comunicação.
Inicia-se, neste momento, a cerimônia de abertura do Seminário
Nacional Mídia e Psicologia: Produção de Subjetividade e Coletividade.
Temos a honra de convidar para compor a mesa:
• Ana Mercês Bahia Bock, presidente do Conselho Federal de
Psicologia;
• José Novaes, conselheiro do Conselho Regional de Psicologia da
5ª Região e membro da comissão organizadora do Seminário;
• Marcos Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Ensino da
Psicologia - ABEP e representante do Fórum Nacional de Entidades
Nacionais da Psicologia Brasileira;
• Marcos Jardim, diretor do Instituto de Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro;
• Vera Canabrava, conselheira do Conselho Federal de Psicologia,
representante do FNDC e da Comissão Organizadora do
Seminário;
• Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.

17
Seminário Nacional Mídia e Psicologia:
Produção de Subjetividade e Coletividade

Ana Mercês Bahia Bock


É com muita satisfação que o Conselho Federal de Psicologia, aliado ao
Conselho Regional de Psicologia da 5ª Região, Rio de Janeiro, e à Associação
Brasileira de Ensino da Psicologia, abre este Seminário, que, para nós, vem
sendo sonhado, pensado e construído há muitos anos, isso porque os
Conselhos assumiram a luta pela construção de um novo projeto para a
profissão de psicólogo no Brasil, um projeto que envolve um compromisso
diferente dos psicólogos com as urgências e necessidades da sociedade
brasileira e que aborda várias temáticas que essa sociedade necessita e
tem procurado enfrentar e debater. Uma delas é a comunicação.
Para responder a essa necessidade, temos tido iniciativas que
envolvem nossa participação no Fórum Nacional pela Democratização
das Comunicações, na Campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a
Cidadania, no debate sobre a classificação indicativa da programação
televisa. Também temos atuado ativamente na busca da realização da
Conferência Nacional da Comunicação Social, que foi ampla, construída
desde a base para que toda a sociedade pudesse exercer o direito e ter a
possibilidade de tomar nas mãos algo que faz parte do seu cotidiano e cujas
decisões ficam muito distantes da população. Enfim, temos tido, nesse
campo, várias iniciativas e participações congregadas a outras instituições.
Mas, era urgente e necessária a construção do espaço para que os
psicólogos que se interessam e estudam a comunicação pudessem dialogar
e apresentar seus trabalhos, para que pudéssemos produzir a visibilidade
dessa contribuição da Psicologia para o campo da comunicação.
Sabemos, psicólogos em geral, que trabalham ou não com esse tema, o
quanto os meios de comunicação têm uma presença forte, intensa, na vida
de nossas crianças, jovens, adultos, idosos. Sabemos, portanto, o quanto é
importante pensarmos sobre a questão da comunicação quando falamos,
estudamos e passamos a compreender a construção da subjetividade. Essa
relação subjetividade e mídia está estabelecida, e os psicólogos, sendo
profissionais da subjetividade, têm-na estudado, mas pouco. Há muitos
anos a Psicologia contribui com o campo da comunicação. No entanto,
a leitura crítica dessa relação, a possibilidade de ampliar a compreensão

19
da sociedade sobre essa relação e a contribuição para uma educação que
enfrente a relação com a mídia são questões que têm sido pouco debatidas,
apesar de estudadas em alguns espaços de nossa profissão.
Então, era preciso reunir esses psicólogos, estimular aqueles que têm
interesse nesse campo para que se reunissem e apresentassem suas
contribuições. Precisávamos trazer para esse diálogo pessoas de outras
áreas que pudessem contribuir com seu conhecimento para ampliar a
nossa compreensão sobre o tema. E foi essa iniciativa que o CFP, o CRP-05
e a ABEP tomaram ao organizar este Seminário sobre Mídia e Psicologia.
E assim, entendendo que desempenhamos nossa obrigação social
ao contribuirmos com o debate sobre a comunicação no Brasil, que a
sociedade vem travando como um tema fundamental, o que é feito através
da contribuição de vários profissionais, é que a Psicologia, até então
tímida para também trazer sua contribuição para a reflexão, organiza este
Seminário para inaugurar um novo momento na relação de nossa profissão
com a comunicação. E, nestes poucos dias de trabalho, pretendemos
realizar debates sérios e profundos, pois, com a representação aqui presente,
tenho certeza que a Psicologia colocará na e para a sociedade o interesse
e o compromisso que os psicólogos passam a assumir publicamente de
contribuir com a melhoria da qualidade da nossa comunicação, da nossa
mídia, da informação recebida em nossas casas, trazendo sua leitura
específica do ponto de vista da produção de sujeitos e da subjetividade
com a contribuição das mais variadas linhas teóricas. Enfim, estamos
certos de que este Seminário é um marco importante.
Quero agradecer aos parceiros que, com o Conselho Federal,
organizaram este evento, agradecer a toda a equipe do Conselho Federal
da ABEP e do Conselho Regional, aos funcionários e conselheiros que se
envolveram na realização da atividade. As boas-vindas a vocês, que aqui
vieram dispostos a trazer suas experiências de trabalho e de pesquisa
como contribuição para o desenvolvimento do conhecimento e da’
contribuição profissional que os psicólogos dão a essa área.
Obrigada também àqueles que são de outras áreas profissionais,
jornalistas, sociólogos, antropólogos, artistas, que conosco construirão
este importante evento. Recebo a todos com alegria, desejando bom
trabalho para todos nós.

20
Seminário Nacional Mídia e Psicologia:
Produção de Subjetividade e Coletividade

José Novaes
Acredito que seja esta a primeira oportunidade que temos para
discutir, ampla e profundamente, o papel dos meios de comunicação
de massa na produção de subjetividade. O nome do evento é Mídia e
Psicologia: produção de subjetividade e coletividade. Essa expressão
“produção de subjetividade” foi cunhada recentemente na filosofia
francesa, e aponta o fato de que a subjetividade significa maneiras de
perceber, de representar, de reagir afetivamente e de agir no mundo,
o que antes o pensamento tradicional chamava de personalidade,
sujeito, pessoa; indivíduo. As subjetividades são produzidas socialmente
por máquinas, por’ fábricas, como se faz com os gêneros alimentícios
em geral, com o vestuário, os automóveis, com os bens necessários à
vida moderna. E, entre os aparelhos de produção de subjetividade,
um dos mais importantes é justamente a mídia. Este Seminário se
destina a debater o tema de como os meios de comunicação de massa
produzem indivíduos, pessoas, personalidades, sujeitos, enfim, o que
a filosofia francesa contemporânea chama de subjetividade, e como
esses instrumentos produzem subjetividades padronizadas, moldadas,
serializadas, conformistas, passivas, obedientes, disciplinadas; no entanto,
também podem ser usados para produzir subjetividades que escapem
a essa serialização, a essa padronização e representem singularidades,
pontos de fuga. Debateremos também como podemos usar o alto poder
tecnológico dos meios de comunicação para romper esse cerco, essa
fábrica de produção de subjetividades amorfas para que possam surgir
pessoas com espírito crítico a fim de mudar a sociedade no sentido da
democratização, do acesso de todos aos bens essenciais e aos próprios
meios de comunicação, tornando-a mais justa e humana.
Obrigado.

21
Seminário Nacional Mídia e Psicologia:
Produção de Subjetividade e Coletividade

Marcos Ferreira
Cristina Joly, Secretária do Fórum de Entidades Nacionais da
Psicologia Brasileira, que reúne 20 entidades nacionais de nossa área,
pediu que trouxesse um abraço a todos vocês. Ela não pôde estar aqui,
porque está em outro evento que a ABEP organizou em Campinas sobre
docência em Psicologia.
Como presidente da ABEP, gostaria de saudar vocês e contar um
pouco da enorme satisfação e, inclusive, da enorme emoção que significa
para nós a abertura deste evento. É preciso lembrar que este momento
se inscreve em uma tradição de 400 anos de existência. Desde que o
Cervantes publicou, em 1604, a primeira parte do livro Dom Quixote,
começou a ocorrer um processo de crítica, de reconhecimento e
reflexão sobre a influência dos meios de comunicação na subjetividade
humana. O surgimento da, figura de Dom Quixote a partir da vida de
um senhor chamado Dom Quijano é explicado por Cervantes através
das palavras da ama do Dom Quixote e de sua sobrinha, como uma
conseqüência do excesso da leitura dos livros de cavalaria. À época, os
livros reproduzidos pela prensa (em quantidade suficiente para serem
comercializados) eram parte de uma tecnologia recente. Pertencer a
essa tradição mostra o quão incrível é que, contando mais 400 anos de
inserção e relação dos seres humanos com tecnologias de comunicação
de massa, continuemos ainda com uma incógnita na vida social, que
é exatamente essa interferência dos meios de comunicação sobre a
constituição da subjetividade e da coletividade, como nós, da Psicologia,
estamos insistindo em dizer, talvez para alguns, contraditoriamente. Isso
é ainda mais impressionante se considerarmos que essas tecnologias não
pararam de surgir e, especialmente no último século, esse surgimento
ganhou uma velocidade espantosa.
Ao longo dos próximos dois dias, vamos poder estabelecer acordos
sobre as urgências da pesquisa, da reflexão e da intervenção profissional
nesse tema da comunicação. Entendemos ser urgente, necessário e

23
significativo reunir todos os esforços possíveis para deixar de lado a
tradição de pressupor a interferência dos meios de comunicação sobre
a subjetividade e sobre a coletividade, e passar a realizar estudos em
que isso possa ficar demonstrado. É preciso acessar e tornar disponível
o conhecimento sobre como e em que sentido isso acontece no Terceiro
Mundo, na América Latina, neste país. Pode ser que muito já tenha
sido estudado em outras partes do mundo. Alguns de nós lemos sobre
esse assunto e saímos repetindo o que lemos. Mas isso não resolve
para nós, porque seguramente a presença de um aparato tecnológico
de comunicação não terá o mesmo sentido na enorme diversidade das
condições de vida estabelecidas no Planeta.
O segundo elemento que queria frisar é que, para nós, na Psicologia
quando elegemos como prioridade trabalhar pela realização da
Conferência Nacional de Comunicação Social, estamos dizendo que
pensamos que a oferta de serviços de comunicação, de informação, deva
ser alvo de uma política informação, quer esteja relacionada a lazer, quer
tenha o objetivo de tornar comum em uma determinada comunidade
um tipo informação importante para que a cidadania atue, deve ser
considerada objeto de política pública.
Não é possível permitir que um tema tão essencial para a vida
contemporânea fique ao sabor do mercado, das iniciativas empresariais
e daqueles que são mais espertos para ocupar determinado espaço.
Não. É preciso estabelecer instâncias sociais visíveis e credíveis para o
acompanhamento desses processos, é preciso estabelecer mecanismos em
que essas instâncias possam organizar o debate e a manifestação social
sobre aquilo que elas desejam em um assunto de tão grande importância.
Sabemos que os serviços de comunicação precisam ser compreendidos
como similares à oferta de serviço de saúde, de saneamento, de água
potável. É preciso que essa água seja cuidada, tratada de uma forma que
não crie mais problemas do que soluções para quem necessite dela.
Então, são esses dois elementos que gostaria de trazer como presidente
da ABEP e membro da Comissão Organizadora deste evento. Para finalizar,
devo dizer que temos a expectativa de que, ao longo dos próximos dias,
vamos conseguir trocar informações e estabelecer redes de colaboração

24
entre os profissionais e os pesquisadores aqui reunidos. Queremos ajudar
a construir a perspectiva de que, em um futuro próximo, possamos, como
Psicologia, exercitar uma contribuição efetiva para o debate social sobre
o tema da comunicação e que possamos viver em um país se assenhore
desses processos de comunicação de modo a utilizá-los e a torná-lo
instrumentos de uma nação efetivamente voltada para os interesses de
seus cidadãos.
Muito obrigado.

25
Homenagens
Vamos passar agora a um momento de resgate histórico da construção
de uma perspectiva de interesse popular para o tratamento dos meios
de comunicação. Através da apresentação de um vídeo, queremos fazer
uma homenagem a duas pessoas que, infelizmente, não estão mais entre
nós, mas que, durante suas vidas, se dedicaram de maneira intensa e
ampla à luta pela democratização das comunicações em nosso país. São
eles Perseu Abramo e Daniel Herz.

Perseu Abramo
Autor de vários livros sobre este tema, dentre eles o livro Padrões
de Manipulação na Grande Imprensa (que está sendo distribuído a
todos vocês), no qual, com sua habilidade técnica e política, aponta as
formas como percebe a manipulação na oferta de informação para a
sociedade através da grande imprensa. Há dez anos não contamos com
a colaboração do Perseu, mas continuamos com seus livros e reflexões.

Daniel Hertz
Pessoa importantíssima na década de 80 para, a criação do Fórum
Nacional pela Democratização dos Meios de Comunicação (FNDC) e
na convocação dos psicólogos para o envolvimento direto na luta de
combate ao monopólio da informação e da comunicação no Brasil.
Perdemos o Daniel no ano de 2006.
Dessa maneira, queremos deixar aqui a homenagem da Psicologia
brasileira a esses dois trabalhadores que lutaram pela democratização
da comunicação no Brasil.

27
Mesa de Abertura

Coordenação
Marcos Ferreira

29
Mesa de Abertura

José Arbex Jr
Quero começar contando um fato que me estarreceu e me fez pensar
que a situação está bem pior do que imaginava. Fui, seis meses atrás,
convidado para um almoço com a alta direção do jornal O Estado de
São Paulo. Estavam lá jornalistas e editorialistas, dentre outros, porque,
naquele almoço, a nova embaixadora da Palestina no Brasil estava se
apresentando, e eles haviam convidado algumas pessoas da sociedade
civil. Em dado momento, um dos editorialistas do Estadão disse: “É óbvio
que nesta mesa todos concordamos que existe uma tragédia em relação
ao respeito aos direitos humanos no Oriente Médio. Creio que todos
aqui pensam a mesma coisa”. E eu disse a ele que talvez não. Ao que ele
me inquiriu, e eu respondi: “Por exemplo, em 1996, a então Secretária
de Estado do Bill Clinton, Madeleine Albright, deu uma entrevista
no programa Sixty Minutes, CBS News, um dos mais respeitáveis dos
Estados Unidos, e, em dado momento, o entrevistador disse a ela que,
desde 1990, quando houve o ataque a Bagdá, até hoje, o cerco imposto
pelos Estados Unidos e aliados e o boicote de produtos ao Iraque causou
a morte de pelo menos 500 mil mulheres e crianças. Atenção, quem
fez essa afirmação foi um jornalista da CBS News. Não é ninguém da
esquerda, ele não é de Cuba, nem da Venezuela. Não, ele é dos Estados
Unidos. E perguntou: “A senhora acha que valeu a pena?” Ao que ela
respondeu: “Lamento, mas foi necessário, porque estamos em guerra”,
Contei isso no almoço, e disse que não vi editorial algum do Estadão
chamando essa senhora de terrorista. E o rapaz do Estadão disse: “Mas
ela não é terrorista”. Está certo o que ela disse. O país está em guerra
e deve tomar medidas de guerra. Fiquei olhando para o moço e insisti:
“Está certo que 500 mil mulheres e crianças morram, como medida de
guerra?” Ele respondeu: “Claro que está”. Olhei para o jornalista que
falou sobre a concordância em relação à tragédia quanto aos direitos
humanos no Oriente Médio e disse: “Está vendo como não concordamos
no que diz respeito à avaliação sobre direitos humanos? Para vocês, está

31
certo matar 500 mil pessoas, sendo que o Iraque nunca declarou guerra
aos Estados Unidos”.
Isso revela um problema muito grave. Eu não falava com o dono do
jornal. Falava com um profissional jornalista. E aquilo que ele disse é
um horror, mas todos naquela mesa acharam normal o que ele dizia
e achavam que a sua posição era perfeitamente defensável. Tentando
entender um pouco esse mecanismo mental, tenho que me reportar
à primeira guerra do Golfo, em 1990, 1991, quando ocorreu a famosa
guerra cirúrgica, a guerra que não mata ‘ninguém. E hoje sabemos que
pelo menos 150 mil pessoas morreram na guerra que não mata ninguém,
ao longo de 40 dias. Somente nos primeiros sete dias, foi jogado sobre
Bagdá, em tonelagem de explosivos, o equivalente a uma bomba de
Hiroshima por dia, mas era uma guerra que não matava ninguém. E o
mundo “comprou” essa versão e aceitou o fato de não ter havido mortes
na Guerra do Golfo. O Bush pai saiu da Guerra do Golfo como o herói
que inventou a guerra sem mortes. E, se eu perguntar a vocês: “É possível
imaginar que uma cidade com 4.800 mil habitantes seja bombardeada 40
dias e 40 noites, jogue explosivos equivalentes a uma Hiroshima por dia
na primeira semana e se diga que ninguém morreu?” Todos responderão
que isso é impossível, mas todos acreditaram que não houve mortes. O
ponto é perguntar como e por que acreditamos nisso? Como a mídia
conseguiu vender à opinião pública uma versão absurda?
Entramos aqui em uma nova mitologia, construída ao longo dos anos
90 que explica essa subjetividade que vem sendo criada, muito perigosa,
que é o mito da guerra sem mortes, da guerra limpa, da guerra cirúrgica.
Ao longo dos anos 90, foram realizados vários ataques limpos, com armas
que não matam ninguém. Por exemplo, vocês devem ter lido que os
Estados Unidos jogaram sobre Kosovo uma bomba de grafite que paralisa
completamente as instalações elétricas. É uma bomba que, teoricamente,
não mata ninguém. Apenas provoca um pânico generalizado, a ruptura
da sociedade, uma hecatombe social sem limites, e deixa a sociedade
completamente indefesa e aberta aos ataques de forças convencionais.
Atualmente, usam outra bomba que não mata ninguém: a bomba de
decibéis. Ela solta um ruído superior a 170 decibéis, que, entre outras

32
coisas, estoura o tímpano das pessoas e produz cavidades nos corpos,
sem falar no pânico. Desde a época de Hitler, sabemos que os engenheiros
projetavam bombas que assobiavam no ar, porque o ruído que anuncia a
chegada da morte produz um pânico tão grande que, muitas vezes, pode
matar mais que a bomba propriamente dita.
Também há a bomba de luz, usada na Somália. Quando ela explode,
sua iluminação é tão intensa que cega as pessoas em um raio de muitos
quilômetros. É uma iluminação que possui a intensidade do Iaser.
Ainda há a bomba de lâminas de barbear, que emite milhares e
milhares de estilhaços afiados que penetram no corpo das pessoas, e
exigem que elas fiquem paralisadas, pois, a cada passo dado, a carne
vai sendo dilacerada, em um processo intensamente doloroso. Todos
ficam parados até as tropas convencionais ‘chegarem e prenderem ou
tomarem outras medidas.
E há as bombas de bombas, aquelas jogadas por Israel no sul do Líbano:
as bombas de fragmentação. São depositadas no solo e, ao explodirem,
soltam milhares de outras bombas menores para todos os lados, por fim,
há os robôs, que estão indo para as frentes de batalha.
Como disse, o marco zero disso tudo foi a Guerra do Golfo, em 1990,
quando, pela ‘primeira vez, a humanidade soube da existência da guerra
sem mortes. A pergunta é: “Qual é o processo mágico que faz com que os
Estados Unidos, hoje, neste minuto, soltem esse tipo de bomba em uma
localidade como Faluja, contra civis, mulheres e crianças, que morrem
às dezenas de milhares, e nós acreditamos que não está acontecendo
nada, fingimos acreditar que nada acontece e estamos contentes com
nossa ignorância sobre o que acontece? Que processo mágico é esse
que nos conduz à passividade, à indiferença, à cegueira diante de um
homicídio em larga escala que, na minha opinião, se equipara ao que
Hitler fazia na Alemanha?
Acredito, e essa é uma linha de interpretação discutível, extremamente
provocante, e, não por acaso, estamos falando de dois eventos simultâneos
e que têm a ver um com o outro: a guerra sem mortes e o lançamento
do livro O Fim da História, do Francis Fukuyama. Esse livro, na minha
opinião, foi muito mal compreendido. Francis Fukuyama não estava

33
delirando. Sabia muito bem o que estava dizendo e interpretava uma
linha de pensamento que se sedimentou como vitoriosa na Casa Branca
e que conseguiu formar uma matriz de raciocínio que se instaurou e se
universalizou a partir dos anos 90 e perdura até hoje. Quando Fukuyama
falou em fim da História, estava utilizando uma metáfora hegeliana
no sentido de que, em Hegel a História é um embate de idéias para
aperfeiçoar as sociedades de tal forma que cheguem a essa perfeição
coletivamente, ou seja, de maneira que o homem, positivamente
organizado em determinada forma institucional e jurídica, atinja uma
perfeição coletiva que Hegel acreditava ser o reencontro com o espírito
absoluto. Portanto, a História, para Hegel, era esse conflito de idéias até
se chegar a uma sociedade onde não mais houvesse esse conflito. O fim
da História era a chegada à sociedade perfeita, para Hegel, a sociedade
prussiana, o que o homem conseguiu de mais avançado em sua época
em termos de organização jurídica, política, burocrática.
Francis Fukuyama recuperou essa metáfora e disse: A crise do
socialismo, que, dentre outras coisas, provocou a queda do muro de
Berlim, mostrou que a batalha pelas idéias acabou. Está provado que
não existe sociedade mais perfeita que a capitalista. Acabou a batalha
pelas idéias. Ninguém mais é louco de propor o socialismo depois
da queda do muro de Berlim. O mercado é a sociedade perfeita. A
História acabou. E quem faz melhor a História? Quem faz melhor
o fim da História, a sociedade de mercado? Os centros capitalistas.
Desse ponto de vista, os centros capitalistas equivalem à perfeição
construída pela História ao longo de milênios. Jamais haverá nada mais
perfeito do que um centro capitalista. Fukuyama nunca negou que
existe uma periferia do capitalismo formada por aqueles condenados
porque não conseguem chegar ao fim da História. A periferia é o lixo.
Então, para aqueles que compartilham da realização do capitalismo
(o capitalismo globalizado, o mercado capitalista, o consumo, a troca
de idéias na internet, as viagens interoceânicas, o cartão de crédito,
o acesso a todas as benesses capitalistas acabou a História. E para
os que não conseguem fazer parte dessa sociedade perfeita, não há
lugar. Eles são anacrônicos.

34
Para utilizar uma figura construída pelo famoso Aldous Huxley no
livro Admirável Mundo Novo, é como se a sociedade globalizada fosse
os filhos Alfa e Beta, e o restante da sociedade, que não faz parte nem
de Alfa nem de Beta, fosse os que vivem nas reservas naturais, seres
humanos jogados à própria sorte, que ainda se produzem por contato
humano, trocam fluidos entre si, não têm acesso ao soma, e por aí vai. E
isso explica porque aceitamos que não tenha morrido pessoa alguma no
Golfo. Esses que morreram no Golfo são rebotalhos dos seres humanos,
não fazem parte da sociedade globalizada da qual nós fazemos parte.
Quando digo nós, refiro­-me a um estrato social que, no Brasil, corresponde
a, no máximo, 20% da população. Ou então, o que explica em grande
parte, também na minha opinião, a frase daquele pai do Rio de Janeiro
ao lamentar que o filho tenha sido preso porque bateu na empregada
doméstica “Mas é só uma criança”! Nessa frase, há mais do que o amor
de um pai pelo filho. Está explícita uma concepção de mundo. O rapaz,
coitado, que Jaz parte desse nosso mundo, globalizado, presentificado, um
mundo sem História, estava apenas brincando, portanto, o que estamos
vivendo, esses valores que a mídia propaga, a frase que o jornalista disse
no almoço do Estadão, essa indiferença com o sofrimento de milhões e
milhões de seres humanos bombardeados com bombas que não matam,
tudo faz parte de uma operação de guerra. Não é somente uma maneira
de fazer jornalismo no sentido técnico; faz parte de uma operação de
guerra para produzir uma cegueira orientada, orquestrada. Com isso, não
estou dizendo que todo dia de manhã exista uma reunião conspiratória
na redação de cada jornal para decidir o que será falsificado, dito de
maneira distorcida. Não se trata disso. Trata-se de uma lógica, de uma
matriz de pensamento, de um discurso que é de autocontentamento,
com um presente eternamente reproduzido, tecnologicamente agradável,
viável do ponto de vista dessa absoluta minoria que participa do mundo
globalizado, e que, não por acaso, o saudoso professor Milton Santos
chamava de mundo globalitário, que nos torna absolutamente cegos
para tudo aquilo que não faça parte desse mundo.
Naomi Klein, ativista da luta antiglobalização, utiliza uma figura
de linguagem, uma espécie de metáfora, dizendo que existe hoje uma

35
assimetria no sofrimento. Isso significa que, se uma bomba explodir no
centro de Londres e morrerem 50 pessoas, o mundo pára para lamentar
a morte dos 50 londrinos. Ninguém aqui apóia o atentado em Londres,
mas, e os 100 que morrem diariamente no Iraque? E os 150 mil que
morreram na primeira guerra do Golfo? E os mais de 200 mil que
morreram desde 2003, quando os Estados Unidos lá entraram? Quem
chora por essas pessoas? Lamentamos os 50 de Londres. E os iraquianos,
são lixo? E os palestinos? E os libaneses? E os afegãos? E ...? E...? São
invisíveis. Fazem parte desse outro mundo não globalizado. Estão fora.
Esse é um componente fundamental da maneira pela qual a subjetividade
vem sendo construída.
Quando ocorreu o atentado às Torres Gêmeas, participei de vários
programas sobre o assunto. Fiz isso porque estava cansado daquela
frase que me parece monstruosa, que é “foi o maior atentado terrorista
da História”. Na TV­ Cultura, por exemplo, o jornalista disse isso, e
perguntei a ele: Na sua opinião, o que aconteceu em Hiroshima e
Nagasaki foi o quê? Ou então, morrem 30 mil crianças por dia de fome
ou de doenças causadas pela fome, como subnutrição, epidemias,
baixa resistência do organismo. Tudo causado pela fome. Morrem 10
vezes mais crianças por dia do que no atentado do World Trade Center.
E qual é o maior atentado terrorista da História? E aqui reproduzo o
famoso diálogo entre George Soros e uma das grandes mulheres da
América Latina, talvez do mundo, a Hebe de Bonafini, a Madre de La
Plaza de Mayo, quando houve aquela ponte, por televisão, entre o
Fórum Mundial e o Fórum de Davos, e ela disse a ele: “Senhor Soros,
espero que o senhor, ao olhar-se no espelho todos os dias, não veja
sua face, mas veja a face das milhares e milhares de crianças que
morrem em conseqüência das políticas especulativas que o senhor
adota, e o sofrimento das mães dessas crianças, obrigadas a ver seus
filhos morrerem. O senhor é um monstro, e é por isso que o odiamos.
Mas, quando há um atentado contra o World Trade Center, repetimos
que foi o maior atentado terrorista da História, porque aqueles que
morreram fazem parte do mundo que está no topo da História. Esses
que morrem todos os dias de fome fazem parte daqueles que são

36
o anacronismo, o passado, aqueles que ainda estão no campo da
História, no campo da luta”.
Portanto, temos aqui um problema gravíssimo. Constrói-se uma
subjetividade absolutamente cega para um imenso conjunto de todos
aqueles valores consagrados pela “humanidade pré-histórica” e que hoje
não encontram mais acolhida, não fazem mais sentido. Então, hoje, Hugo
Chavez é um sujeito anacrônico, Fidel Castro é mais do que anacrônico,
qualquer pensador de esquerda está fora da História. É um contra-senso
em um mundo que não tem mais História.
Quem, de fato, conhece a identidade daquelas pessoas que vivem nos
morros do Rio de Janeiro? Eu, não. Conversei com o pessoal da Rocinha
depois do filme Cidade de Deus. Eles ficaram revoltados porque aquela
é uma estilização absolutamente irreal da realidade vivida, e é vendido
como se fosse realista, como se fosse um olhar humano sobre aquilo
que acontece no morro. Aquilo é pura plastificação holywoodiana. Ou
então, fazem como na novela O Rei do Gado. Vejam a coincidência. Há
um massacre em EI Dourado dos Carajás, em abril de 1996. Quatro ou
cinco meses depois, estréia na Rede Globo a novela O Rei do Gado, que
apresenta o MST ao Brasil. Na verdade, não é coincidência. O massacre
de EI Dourado abriu uma, chaga no cenário nacional, e a Rede Globo
tentou “colocar uma pomadinha” para cicatrizar a ferida e criar um MST
que não existe. Tenho uma certa convivência com o MST, e garanto a
vocês que nunca vi a Patrícia Pilar em nenhum assentamento. E também
jamais vi uma sem-terra casar com latifundiário e assim resolver um
conflito por terra, muito menos um latifundiário ceder gratuitamente
sua terra em nome do amor, da boa convivência com os trabalhadores
rurais. Inventaram um MST que não existe, um latifundiário que não
existe, uma solução impossível em um país que não existe. Mas as pessoas
que assistiram à novela têm certeza que o MST é a Patrícia Pilar.
E, para piorar, estamos em um país absolutamente selvagem no
que tange à possibilidade de impor qualquer restrição aos meios de
comunicação. Basta ver a atual polêmica com a classificação indicativa.
Os donos da mídia não aceitam que se toque em absolutamente nada
que possa indicar qualquer direito que tenha a sociedade civil naquilo

37
que acham que é sua liberdade absoluta de vender o lixo que produzem.
No Brasil, estamos lidando com coronéis, latifundiários do ar, os donos
das emissoras que não encontram espécie alguma de restrição por parte
do Estado ou da sociedade civil, o que torna a questão ainda mais grave,
porque transformam a sociedade brasileira em experimento, em um campo
de concentração sem qualquer pronunciamento da sociedade civil.
Finalizo utilizando uma “deixa” do Marcos Ferreira, que citou Cervantes.
Certa vez, ouvi um comentário, que acho que foi de Antônio Cândido:
“Por que, 400 anos depois, o Cervantes ainda é citado, reverenciado e
tido como o grande paradigma do romance?” E coloca: “O fato é que
Dom Quixote é louco como tal por uma única razão. Ele foi capaz de
sonhar com aquilo que existe de melhor no ser humano, e viveu até o
final de sua vida sem jamais deixar de acreditar que esse melhor pode
ser realizado. Ele realizou em sua vida aquilo que todos nós, no fundo,
gostaríamos de realizar, explorar o melhor de nós mesmos. Mas não o
fazemos porque temos medo de realizar nosso sonho. Dom Quixote é
nosso sonho realizado. E é isso que explica sua força”.

38
Mesa de Abertura

Manuel Calvino
Para mim, como psicólogo e comunicador social, o tema que nos
ocupa é especialmente problemático. Sinto como que é inevitável cair
em uma armadilha. Tenho que falar de algo de suma importância, o tema
da mídia, e tenho que fazê-lo do prisma da Psicologia. Lamentavelmente,
existe um abismo importante entre o desenvolvimento da Psicologia e a
Comunicação Social. E não por causa desta última. Então, faço algo que
acredito não seja por traição, e sim, por muito carinho e muito amor:
falar mal da Psicologia contexto desta com a mídia.
Quando ouço o Arbex falar, é impensável dizer que a Psicologia nada
tem a ver com as situações que ele relata: genocídio, engano mediático,
silêncios cúmplices e muito mais.
Ao contrário, a Psicologia aí está. Porém, não a Psicologia “academicista”
que fundamentalmente ensinamos nas universidades, não a Psicologia
que se pratica nos consultórios privados mas a Psicologia como um
conhecimento provavelmente popular, empírico, consensual, sem muito
artifício teórico, um conhecimento não produzido somente por alguém
que se intitula psicólogo. Mas é Psicologia. E, justamente hoje, não
podemos falar praticamente de nada em relação à mídia esquecendo
que, no centro do problema, está a Psicologia, e que essa Psicologia
acadêmica não está preparada, e provavelmente não quer estar, para
enfrentar com determinação esse problema, porque nós, Psicólogos,
quebramos a bússola.
Quando falamos dos socializadores da emergência da subjetividade,
falamos sempre da escola e da família. E a mídia? Jamais, quase nunca
para não ser injusto, está presente. Na verdade, hoje nossos filhos
recebem muito mais influência da mídia do que da própria família e da
escola. Regis Debray falou sobre isso quase vinte anos atrás: “Hoje – dizia
pensando na sociedade francesa – nossos filhos sabem, se representam,
têm uma atitude diante da vida mais por aquilo que apreendem da mídia
do que pelos ensinamentos e exemplos de pai e mãe. Até porque pai e

39
mãe estão chegando em casa às 10h, 11h da noite. E quando chegam,
o filho já assistiu várias horas de televisão e ficou tantas outras diante
do computador. Os nossos filhos hoje vivem entre telas. Telas que não
são ingênuas. Telas que os querem acomodar aos interesses das classes
e grupos dominantes. Telas que os diluem, os convertem em sujeitos de
outras subjetividades.
E a escola, o que faz hoje? Em que estamos pensando quando falamos
da escola? Na escola de investigações psicológicas acadêmicas fazemos
investigações preciosas sobre tudo, ou quase tudo, que “não é o mesmo,
mas é igual”: como deveriam ser os mestres, as escolas, os processos de
aprendizagem. Tudo perfeitinho. Mas isso tudo não existe fora de nossos
congressos, de nossos livros, de nossas reflexões. Concretamente, não
existe. Mas a mídia existe. E a criança aprende com ela.
Na verdade, creio que o tema da mídia é um tema de classe média
e classe média baixa. Quando olhamos o percentual de pessoas no
mundo que não têm televisor, computador, não têm nem eletricidade,
a situação se complica. Na verdade, a Psicologia sempre existiu, e
continua existindo, para a classe média “mais ou menos média”: a
classe meio estrangulada. É complicado quando ouvimos falar em 300
mil crianças mortas. São 10 mil pessoas que morrem todos os dias por
causa do cigarro, e mil meninos e jovens começam a fumar a cada dia.
É outro assassinato. E a publicidade, a mídia, continua dizendo que é
bom um cigarrinho. E nada acontece.
Nós, os cubanos, fizemos uma aprendizagem social importante.
Nos anos 60, aproximadamente, acreditávamos que se os russos
nos dessem apoio através de foguetes, poderíamos acabar com os
americanos. E os russos fizeram um pacto com os americanos, sem
que soubéssemos, e ficamos abandonados à própria sorte, sem os,
foguetes. Depois os soviéticos foram induzidos a destruir seu próprio
país, sua própria identidade, para se aproximar do mundo do consumo.
E nós ficamos sem 85% de nosso comércio. Acreditávamos que o
capitalismo estava morrendo e o socialismo em pleno crescimento.
Porém, não era assim. Aprendemos que o imperialismo, o capitalismo,

40
ainda não morreu. Quando Marx escreveu o Manifesto Comunista,
disse que o capitalismo havia criado seu “próprio coveiro. Mas o
coveiro atualmente está desempregado.
O capitalismo tomou conta do universo simbólico, domina os meios
de justificar, criar e construir “verdades” (falsas verdades) com mentiras.
O capitalismo em sua fase mais cínica e devastadora tem o mais forte
dos aliados: a mídia.
Então, digo que é bom trabalhar com a certeza de que um mundo
melhor é possível. Mas creio que, antes disso, é necessário pararmos de
construir um mundo tão ruim como este que estamos construindo. Sim,
é possível um novo mundo, mas ele irá nascer deste mundo. Não há
alternativa. E nos perguntamos: o que nós, psicólogos, podemos fazer?
Em Cuba, há pouco tempo, fizemos uma pesquisa com estudantes
entre 6 e 12 anos. Perguntamos às crianças: “Se chegar um marciano
em casa, após a escola, o que verá você fazendo? 82% dos meninos
responderam: “Vendo televisão.” “E mais tarde?”
“Veremos a novela” (brasileira, certamente). “E depois da novela?” “Um
filme” (americano, com muitos mortos), e assim por diante. “E depois?”
“Depois vamos dormir.” Acabou o dia. As crianças vivem dessa maneira. É
diferente, aqui no Brasil? Não. Em toda a América Latina, é assim. Não é
chauvinismo dizer que aqui é ainda pior do que o que sucede conosco.
A programação pode até ser produzida no país, mas o espírito dessa
programação, em sua maioria, é americano. Então, diante disso, temos
que pensar em fazer algumas coisas fundamentais:

1. Desenvolver um senso crítico ou uma cultura crítica do consu-


mo das mídias
Meu filho sabe como multiplicar uma operação decimal algébrica
e sumamente complexa, mas jamais a fará na vida, porque existe
calculadora. Mas ele não sabe consumir mídia. E vive em um mundo
midiático. Então, temos que criar uma cultura do consumo crítico da
mídia para que as pessoas saibam compreender, fazer uma leitura. A
novela brasileira continuará sendo exibida por muito tempo. E algumas

41
delas até são boas. A televisão continuará como está. Mas poderá
encontrar do outro lado de sua tela uma pessoa capacitada para a leitura
das propostas boas e ruins.

2. Democratizar a mídia
A democratização da mídia creio ser uma idéia um pouco enganosa,
porque democratizar a mídia, às vezes, se apresenta como uma proposta
separada do mundo. O problema não é não ser democrática; o problema
é a sociedade não ser democrática. A mídia reflete, multiplica, reforça a
falta de democracia no mundo. O problema é muito mais complicado:
chegar a uma democracia em que todos tenham as mesmas possibilidades
em uma sociedade em que nem todos têm as mesmas possibilidades
é um jogo com poucas perspectivas de realização. Então, democratizar
significa, entre outras coisas, aquilo de que não se gosta muito, dizer como
Hugo Chavez: “Isso aqui não!” e aí todos falam: “Isso não é democracia,
é autocracia. Democracia não é pensar sobre o que está acontecendo
conosco, com as pessoas, com a população jovem, com as crianças, e
tomar uma decisão responsável e prudente. Democracia é todos dizerem
o que querem”. Mentira! Temos que fazer uma leitura distinta coerente,
política, histórica, do que significa democratização.

3. Construir espaços de atuação


Em Cuba, em certos comércios, compra-se arroz onde está escrito
Made in USA; compra-se frango onde está escrito Made in USA. Tenho
um amigo que diz que o bloqueio somente existe na casa dele, pois lá
nada há com a etiqueta Made in USA.
Não se pode romper o bloqueio de frente. Há, inevitavelmente,
necessidade de entrar e fazer buraquinhos. Então, ir tirando, tirando,
cavando espaços e, algum dia, acontece o rompimento. Mas não é possível
um rompimento total. Na verdade, creio que, para a ruptura do bloqueio
de Cuba, quase tanto como os próprios cubanos, estão trabalhando os
grupos de solidariedade nos Estados Unidos. Daqui digo o seguinte: temos
uma mídia, que existe concretamente, e não podemos declarar que somos
inimigos frontais, você lá, e eu aqui. Temos que entrar e ir fazendo nosso

42
trabalho, encontrando formas, ganhando espaços. Temos que aprender que
há uma linguagem, um ofício, uma técnica. Arbex falava das bombas, e eu
pensava no que muitos cubanos pensam: “Não há uma bomba para matar
apenas o governo dos Estados Unidos?” Se existir, seguramente essas são
outras bombas. Temos que entrar, saber, conhecer e, desses espaços então,
criar uma maneira de atuar e ganhar espaços.
Por último, sempre dizemos que existe algo que jamais podemos
esquecer: a responsabilidade social, e, nesse sentido, trabalhamos
muito com a educação de um sujeito crítico. Arbex disse que os sujeitos
perderam a criticidade, se é que a tiveram alguma vez. Foi arrancada
a capacidade crítica dos cidadãos, e temos que trabalhar na educação
da criticidade, de uma crítica responsável, orientada, com representação
social, mas uma crítica que também tem que ser a crítica das mídias.
Assim como falamos sobre a necessidade de se ter um consumidor crítico
da cultura, também temos que criar um consumidor crítico das mídias.
Temos que favorecer o surgimento desse consumidor crítico das mídias.
Enfim, a Psicologia tem muita coisa a fazer. Estou absolutamente
convencido de que podemos parar (é uma metáfora, mas não metafórica)
de produzir conhecimento. Temos conhecimento suficiente. Precisamos
saber agora o que nós, psicólogos, vamos fazer com tanto conhecimento.
Paremos com tanta investigação para saber isso ou aquilo. Paremos.
Sabemos algo, então, devemos agir. É o momento. O momento é de
ação. - Não é do desenvolvimento da Psicologia como ciência, e sim do
desenvolvimento da Psicologia como profissão, como um ofício, como
um saber fazer. Essa é uma demanda para nós, para as universidades,
para os centros de formação. Há muitos anos já retiramos o pombo de
Skinner e o trocamos pelo pombo da comunidade, buscando trabalhar
não só da prática profissional do psicólogo. Sabemos muito. Sabemos
tanto que até se torna difícil, muitas vezes, entender tudo.
Por último, quero dizer que acredito que nós, psicólogas e psicólogos,
temos que entrar nessa frente de batalha reconhecendo que é uma frente
já ocupada, pois, atrás de muita coisa que se produz na mídia, estão
psicólogos, está uma Psicologia a serviço das mídias. E jamais podemos
esquecer: o problema não é a mídia. O problema é o que se faz com a

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mídia. O problema, hoje, são os donos da mídia, que decidem o que fazer.
Esse é o cerne da questão. Não podemos satanizar a mídia. Quem cria a
insanidade são aqueles que fazem a mídia. E tenhamos em mente o que
alguém disse uma vez: a diferença entre o deserto e um jardim não é a
água. É o homem.

O espetáculo midiático da subjetividade


A crescente presença das tecnologias de informação e de comunicação
em todas as esferas da vida social contemporânea, rearticulando
experiências sociais e possibilitando novas formas de interação social, é,
sem dúvida, um campo da maior importância que se abre na atualidade.
Muitas são as formas com que essas tecnologias participam de nossa
vida cotidiana, redesenhando limites que antes pareciam bastante
nítidos, tais como o público e o privado, o íntimo e o social.
Um aspecto que singulariza essas tecnologias é sua capacidade de
engendrar novas formas de sociabilidade, novas formas de ação social, e o
que nos interessa aqui mais proximamente, novas formas de produção de
si, novos processos de subjetivação. Além disso, tais tecnologias operam
em rede, ou seja, cada uma delas articula outras tantas, de modo que
dificilmente conseguiríamos delinear com precisão seus limites ou seus
“impactos” – elas invadem e pervadem nosso cotidiano, de tal modo que
falar em sociedade contemporânea ou em subjetividade contemporânea
é falar em tecnologia.
Nossa sociedade se tece com a tecnologia. Nós nos subjetivamos já
hibridados com a tecnologia. De modo provocativo, poder-se-ia dizer:
não há sociedade fora da tecnologia, não há sujeito fora da tecnologia.
A noção de redes sociotécnicas ou coletiva (LATOUR, 2000, 2001)
parece-nos bastante fértil para evidenciar essa mescla de sujeito,
sociedade e tecnologia. Envolve a idéia de vários nós e múltiplas relações
na produção das configurações sociais e subjetivas, buscando traduzir
a complexidade presente nessas relações. Na rede, cada elemento é
simultaneamente um ator (ou actante) – cuja atividade consiste em
fazer alianças com novos elementos – e uma rede – capaz de redefinir
e transformar seus componentes (PEDRO, 2003a). Os agentes sociais,

44
portanto, não estão “contidos” unicamente em corpos: um ator é uma
rede moldada por relações heterogêneas, ou seja, ele é um efeito de rede
que, por sua vez, participa e molda outras redes.
A partir daí, é possível afirmar que nossas formas contemporâneas de
socialização e de subjetivação são efeitos de redes, e precisam ser pensados
fora dos referenciais com que costumamos pensar tanto a sociedade como
os sujeitos. Ao invés de tomarmos o social como um tecido denso, capaz
de explicar certos fenômenos, e os sujeitos como seres naturalmente
dotados de uma “humanidade”, fundamento da alteridade em relação a
outros entes, a perspectiva das redes nos possibilita apreender sociedade
e subjetividade como produções, como efeitos que precisariam ser
“explicados”, ou antes, delineados, (PEDRO, 2003b).

De olho nas novas mídias: os novos sujeitos híbridos


Uma possibilidade interessante de visibilidade de tais produções pode
ser encontrado na exploração do modo como as novas tecnologias de
visibilidade, midiáticas, participam da configuração de nossa sociedade
e de nossos processos de subjetivação. Particularmente, referimo-nos às
chamadas “tecnologias do espetáculo”, aquelas que se singularizam por
promover a “espetacularização da vida cotidiana”, que não se restringem
às mídias de massa - como, por exemplo, em programas do tipo Big Brother
–, mas sobretudo as que emergem num domínio diferenciado, próprio às
novas tecnologias de comunicação e de informação, colocadas em cena
pelos weblogs, fotologs e webcams que se apresentam na internet, em
particular aqueles que expõem o espaço privado e a intimidade.
A maioria das pesquisas tem apontado a espetacularização da
intimidade propiciada por esses dispositivos, que aparece associada
a uma espécie de degradação da intimidade ou mesmo a uma forma
menos autêntica de subjetividade. Em outras palavras, o objetivo parece
ser o de identificar o impacto que tais tecnologias promovem nos sujeitos,
cujos contornos parecemos saber de antemão em oposição a essa
subjetividade inautêntica, superficial porque ancorada nas aparências,
pressupõe-se uma subjetividade interiorizada, dobrada sobre si mesma
que, no recolhimento de sua intimidade ou de sua privacidade, constitui

45
uma realidade autêntica e verdadeira. Enquanto no âmbito superficial da
aparência sempre é possível mascarar ou mentir espaço íntimo, interior
e privado, é tido como a morada mesma da verdade, de uma realidade
autêntica (BRUNO, PEDRO, 2004). Aliada a essa concepção de sujeito,
encontra-se uma consideração do espetáculo na sua forma puramente
negativa, em que degradação do ser assume a forma do aparecer. O
sujeito encontra-se assediado pelo mundo espetacularizado, sendo
levado a experimentar uma existência e uma vida “falsas”. Os meios de
comunicação de massa, em especial a televisão, encarnam de modo mais
visível e esmagador essa característica do espetáculo, “seqüestrando”
a vida do espectador e mantendo-o capturado e refém da imagem. O
pressuposto que articula essas duas considerações é que a sociedade e os
sujeitos, livres da dominação midiática e tecnológica, seriam capazes de
viver e de ser “realmente”, autenticamente (DEBORD, 1967). ­
No entanto, quando entram em cena as novas tecnologias de
comunicação, vemos emergir uma nova presença do espetáculo na vida
íntima e privada e uma nova constituição de subjetividade. O espetáculo
deixa de ser o que o sujeito contempla no “esquecimento” de sua vida
real para se tornar um dos modos como que ele se produz, produz sua
existência. A visibilidade passa a ser requerida pelo próprio sujeito, que
faz dela um aliado na exposição do que se costuma manter no âmbito
privado e íntimo, e nessa exposição ele legitima sua existência íntima e
cotidiana. Nesse contexto, a mediação técnica e a “articulação” próprias ao
espetáculo não representariam uma perda de realidade, mas antes um dos
modos pelos quais a realidade faz sua aparição para nós, humanos. Longe
de ser uma operação supérflua ou indigna, a realização do espetáculo
participa da própria tessitura do corpo social, e com ela compomos, dia a
dia, nossa subjetividade. Negar inteiramente a mediação ou o espetáculo
pode equivaler a negar nossas próprias formas de sociabilidade e de
subjetivação. As novas tecnologias midiáticas não se constituiriam, assim,
necessariamente, num dispositivo que leva ao esquecimento (do ser), mas
também “como um veículo que produz uma experiência, efetivamente
vivida pelos indivíduos, (...) o ambiente mesmo no interior, do qual
cotidianamente construímos, desconstruímos e reconstruímos nossas

46
vidas” (BRUNO, PEDRO, 2004, p. 29) o que nos leva a colocar questões
tais como: que experiência de si se encontra presente nessa forma de
visibilidade maximamente estendida do espetáculo contemporâneo?
Diríamos, ao menos provisoriamente, que parece estar se configurando
uma modalidade diferenciada de espetáculo e uma produção, também
diferenciada, de subjetividade: um espetáculo do comum e uma
subjetividade exteriorizada, onde as esferas de cuidado e controle de
si se fazem na exposição pública. Não se trata da exteriorização de uma
interioridade que, já tendo se constituído, decide se expor, mas antes
de uma subjetividade que se constitui no ato mesmo de se fazer visível
ao outro. Esvazia-se a distinção entre aparência e essência ou verdade,
pois a verdade é o que se produz no ato mesmo de se fazer aparecer.
Os dispositivos tecnológicos e midiáticos não podem ser entendidos
como elementos que, uma vez presentes no cenário contemporâneo,
engendrariam uma subjetividade menos verdadeira ou autêntica. Trata-se
de pensar que a subjetividade se constitui na mescla com tais dispositivos,
um efeito de rede, na qual nos agenciamos com as tecnologias para nos
produzir como sujeitos.

Considerações finais
O cenário que descrevemos parece configurar um mundo - o nosso
mundo contemporâneo- em que as novas modalidades tecnológicas
figuram como vetores de constituição social e subjetiva, no sentido de
que partilhamos com elas o modo como nos subjetivamos. Aspectos
como privacidade, intimidade e segurança aparecem partilhados por
humanos e não-humanos, o que nos permite retomar a idéia de que não
há sujeito ou sociedade sem tecnologia.
O mais interessante desta reflexão consiste em uma atenção
para que não naturalizemos esses dispositivos em nossa
contemporaneidade. Os híbridos que compomos com as tecnologias
têm resultado, como já bem apontavam Deleuze e Guattari em
suas considerações acerca da produção de subjetividade como
agenciamento maquínico, em estranhas misturas de enriquecimento
e empobrecimento, singularização e massificação, potencialização

47
e despotencialização da subjetividade. O decisivo é pensarmos que
nenhuma dessas possibilidades está dada de antemão.
Nesse sentido, vale uma vez mais ressaltar, não se trata de compreender
as tecnologias como algo que produz um “impacto” em nossas vidas - que
nos tornaria reféns de um certo modo de ser automatizado ou artificializado,
e ainda, o que consideramos mais radical, que a artificialidade das novas
tecnologias não nos desapropria necessariamente de nossa humanidade.
Retomando, uma vez mais, autores como Foucault, Deleuze e Guattari,
pensamos que a noção de “produção” – presente na idéia de “produção de
subjetividade” – já aponta a dimensão de artifício própria a uma concepção
que recusa a naturalidade do sujeito. Assim, a nossa potência inventiva ou
criativa não estaria em algum atributo capaz de nos opor, como humanos,
à artificialidade da tecnologia, mas justamente na potência aberta pelos
agenciamentos com que compomos nossos processos de subjetivação. E
a partir desses agenciamentos que poderíamos recuperar nossa própria
potência de artifício, de criação, e inventar com essas tecnologias outras
formas de ser e de compor com o mundo, outras formas de ser sujeito e
outras formas de fazer sociedade.

Referências Bibliográficas
BRUNO, F. & PEDRO. Entre aparecer e ser: tecnologia, espetáculo e subjetividade contemporânea
ln texto, 11 (2), p. 1-10, 2004 Artigo disponível no endereço eletrônico www.intexto.ufrgs.br/
n11/a-n11a9.html.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. 1967. Disponível na internet em http://www.terravista.
pt/ilhadoMel/1540/
LATOUR, B. Ciência em ação – como seguir cientistas e engenheiros mundo afora. SP: EDUSP,
2000.
____________. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos.
Bauru, SP: EDUSC, 2001.
PEDRO, R. As redes na atualidade: refletindo sobre a produção de conhecimento. In: D’Á VILA.
M. & PEBRO, R. (Org.). Tecendo o desenvolvimento. RJ: MAUAD, 2003a.
_____________. Reflexões sobre os processos de subjetivação na sociedade contemporânea.
In MACHADO, J. (Org.) Trabalho, economia e tecnologia – novas perspectivas para a sociedade
global. São Paulo: Tendenz/Práxis, 200 b.

48
A tecnologia das mídias: a relação dos sujeitos
com os meios tecnológicos de comunicação

Coordenação
Mara Regina Chuairi da Silva

49
A tecnologia das mídias: a relação dos sujeitos com os
meios tecnológicos de comunicação

Gustavo Gindre
Como não sou psicólogo, falarei de um novo lugar, o lugar de um
movimento organizado, ou que procura se organizar, em torno das
questões da comunicação. Faz tempo que discutimos esse conceito, e é
até bom começar discutindo aqui o conceito do direito à comunicação. A
construção desse grande movimento social, grande no sentido de abarcar
várias questões, foi baseada no direito à comunicação. É uma instituição
que se chama Intervozes, que é um coletivo de militantes do Brasil
inteiro que atua nessa área. Talvez alguns de vocês mesmo quem não é
da área, tenham tomado contato com o Intervozes, naquele momento
em que conseguimos, com o Ministério Público, retirar o João Cleber do
ar, por desrespeito aos direitos humanos. Foi ocupada, pela primeira vez
na história da televisão brasileira, a grade de uma emissora, por força de
uma decisão judicial, para discutir direitos humanos. Ficamos ali um mês
discutindo os direitos dos homossexuais, sem terra, sem teto, esporte,
educação, saúde, e foi um momento interessante.
Antes de eu entrar no que quero discutir, vou tratar de um subestado,
depois de um contexto. O subestado dessa minha fala é que comunicação
e cultura são direitos humanos inalienáveis, ou seja, a idéia de que, se
o ser humano é privado da sua capacidade de produzir cultura e de
intercambiar essa cultura, de estabelecer trocas com outros seres
humanos, de estabelecer processos comunicacionais, ele é privado da sua
própria humanidade. Esse é um dos elementos-chave que constituem
o ser humano. Acontece que, nos últimos séculos, e, com certeza, no
século XX, isso se tornou vertiginoso, e essa possibilidade de contato
com o outro não está mais só no estado interpessoal, mas é cada vez
mais, de modo preponderante, realizada através de mídias. Portanto, essa
capacidade de ter acesso aos meios de comunicação, não apenas de ter
acesso à informação, de ser informado, mas de ter acesso aos meios
de comunicação para poder utilizar esses meios de comunicação e se
comunicar, é, no século XX e no século XXI, com certeza, a expressão

51
de um direito humano. Portanto, essa é a idéia-chave que norteia esse
movimento social que procura se construir e garantir o acesso de todos
aos meios de comunicação para que possam não só receber informação
mas também produzir informação, sob pena de privar a humanidade da
sua própria humanidade, do exercício dessa humanidade.
Vou abordar duas questões: primeiro, entender um momento muito
particular do capitalismo do século XXI, que tem relação direta com
a expressão do direito humano à comunicação. O mercado é uma
construção bem anterior ao capitalismo. Havia mercado muito antes de
haver capitalismo. Qual é a característica central do capitalismo? Qual
é a novidade que o capitalismo apresenta em relação aos mercados, de
forma singular na história da humanidade? A crença de que todas as
relações humanas podem ser mediadas pelo mercado. Por exemplo, para
um indivíduo medieval, o mercado era uma esfera da vida. Ele fazia parte
do cotidiano, ele tinha inclusive o lugar físico das feiras, por exemplo,
mas nenhum homem medieval acreditava que todas as relações sociais
poderiam ser trazidas para o mercado. O capitalismo, pelo contrário, cria a
possibilidade de que tudo possa ser mediado pelo mercado. Assistir à luta
que nós temos assistido nos últimos 300 anos representa o alargamento
dessa compreensão de mercado, que foi se estendendo para esferas da
vida que depois ficavam intocadas. Por exemplo, a natureza e o trabalho
humano: no século XXI, assistimos a uma nova etapa desse processo de
alargamento dos mercados, que é a crença na possibilidade de que é
possível comparar bens inteligíveis, ou seja, aquilo que não é físico, não
é material, o conhecimento, como se fosse mercadoria. Isso que para nós
hoje já parece um pouco estranho, quando eu digo, por exemplo, que a
cor amarela do post-it e o berro do Tarzan são propriedades intelectuais
de alguém, isso pode soar um pouco estranho. Como alguém pode ser
proprietário de um tom de amarelo, de um berro do Tarzan? Pode ser que
os nossos filhos e netos achem isso perfeitamente normal, tão normal
como achamos hoje que o trabalho seja uma mercadoria. Se eles acharem
isso, quer dizer que nós perdemos essa batalha; caso contrário, teremos
conseguido frear o avanço do capitalismo sobre esse bem que é tão estranho
à lógica da própria mercadoria. O que constitui uma mercadoria? Algo que,

52
por ser finito, limitado, precisa ter estabelecido o seu valor de troca. Então,
por exemplo, se eu tenho este copo e vendo o copo para a Mara, fico sem
o copo. Portanto, preciso estabelecer um valor que compense o fato de
que vou ficar sem isso. Acontece que, se eu sei quanto foi o resultado do
jogo de futebol ontem e conto para ela, não esqueço isso. A informação é
um bem divisível ao infinito. Quanto mais eu partilho esse conhecimento
com os outros, mais ele cresce. Ele não diminui, ao contrário dos bens
materiais. Por isso, o capitalismo vem se defrontando com esse cenário
tão complexo para ele, para a sua própria lógica de escassez, de valor de
uso, valor de troca, que é um bem intangível. E a internet, esse espaço de
convergência das mídias, é hoje, com certeza, o foco desse embate, dessa
luta pela transformação do conhecimento em mercadoria.
Outro elemento desse contexto é entender a própria idéia de
convergência. Nós vivemos num momento, eu diria, em que quem define
isso melhor é uma pessoa, por incrível que pareça, ligada hoje ao Partido
Republicano dos Estados Unidos, George Gilbert, que escreveu um livro,
antes mesmo dessa explosão da internet, chamado Vida após a Televisão.
Eu não concordo com os pressupostos políticos que ele defende, mas ele
conceitua bem o fenômeno de migração de diversas mídias segmentadas,
ou seja, de ambientes de produção e de consumo segmentados, do
ambiente da produção sonora e do consumo, por exemplo, de discos, de cds
é um, do audiovisual é outro, da comunicação interpessoal, por exemplo,
através do telefone era outra, e isso começa a convergir. O substrato
dessa convergência é a digitalização, ou seja, é a transformação de toda a
informação em dígitos, em informação binária. É isso que permite a uma
mesma rede fazer trafegar, indistintamente, a foto da namorada ou do
namorado, um texto no word, um vídeo, um áudio. Do ponto de vista da
rede e dos aparelhos que produziram essa informação e que vão transmitir
essa informação, há apenas uma diferença de quantidade de bites entre
a foto da namorada, o texto do word ou uma música que vamos ouvir,
mas não há mais uma diferença qualitativa entre as diversas mídias.
Isso permite que todas essas mídias, portanto, passem a ser produzidas
e transmitidas a partir da mesma infra-estrutura tecnológica. Esse é o
cenário de convergência de mídias.

53
Esse cenário de convergência de mídias e esse ambiente de
privatização do conhecimento apresentam uma potência e um ato. E
é isso que vou abordar no tempo que me resta. Temos, por um lado, a
potência, no sentido bem aristotélico do termo, de uma mídia que é a
mais democrática expressão de arte que a humanidade já foi capaz de
produzir, que é a mídia digital, que, por natureza, é interativa, ou seja,
não sou mais um sujeito passivo, que apenas recebe conteúdo. Eu estou
numa posição de receber e transmitir o conteúdo. Essa é uma experiência
da internet, mas é uma experiência que vem se alargando para outras
mídias. Temos hoje, por exemplo, uma discussão que me parece central
para o futuro da comunicação do Brasil, que quase não tem sido feita:
será ou não interativa a TV digital aberta que o Brasil começa a transmitir
a partir de dezembro deste ano? Se deixarmos os radiofusores brasileiros
falassem, com certeza dirão que não será interativa. Costumo dizer que
os radiofusores pensam assim: “Interatividade um dia virá. Que bom que
não seja hoje”, porque isso, com certeza, abala a estrutura de negócios
que eles montaram ao longo de tantos anos. Mas é possível, hoje, com
tecnologia, inclusive brasileira, desenvolvida na Universidade Federal da
Paraíba, na Federal do Paraná, na UnB e outras, por exemplo, enviar e
receber e-mail pela TV, ter acesso a espaços como o criado pela Federal
do Paraná, um museu virtual, um espaço tridimensional, onde se cria
um avatar, se entra e se relaciona com esse ambiente à sua volta, e eles
construíram isso no ambiente educacional, ou seja, todas as mídias
que estavam até então segmentadas e partilhavam desse princípio de
unidirecionalidade começam a migrar em direção a esse cenário de
convergência e começam a se tornar cada vez mais bidirecionais e até
multidirecionais. Isso, com certeza, é a potência mais democratizante
que o cenário de mídia já viveu desde, talvez, a criação da escrita.
Mas isso não é tudo. E aí, faço aqui só um parêntese, acho que às vezes,
nos estudos teóricos que desenvolvemos, falta um pouco esse outro lado.
Se há uma explosão de interatividade, desse uso dialógico que essas mídias
permitem, por outro lado, essa mesma convergência permite o mais brutal
cenário de concentração empresarial no campo das comunicações a que
já assistimos, porque as empresas que só trabalham, por exemplo, em

54
áudio, em audiovisual, com texto, começam a ser engolidas por gigantes
que trabalham com todo esse cenário multimídia. Esses gigantes vão
se tornado cada vez maiores; o livro do George Gilbert, inclusive, que
acabou influenciando a legislação norte-americana, Telecommunication
Act, parte justamente dessa premissa: o futuro da comunicação será de
gigantes; ou os Estados Unidos criam as políticas para construir os seus
gigantes ou os gigantes europeus e japoneses virão aqui e nos engolirão.
Quando falo de gigante, falo, por exemplo, para citar uma experiência,
de uma empresa que, se fizesse um filme, faria pelos estúdios da Warner,
ou pela New Line; vai vender o CD desse filme pela Warner Music, vai
vender o roteiro desse filme pela Warner Books, vai passar esse filme nos
cinemas pela Warner Multiplex, vai exibir esses filmes pela TV a cabo pela
HBO, e depois de um tempo, pela TNT, vai dizer para todos assistirem esse
filme, porque esse filme é lindo e maravilhoso, por revistas como People,
Time, Life e outras 142 comunicações, ou pela CNN; depois esse filme
vai passar na rede cabos, para as pessoas poderem acessar a HBO pela
Time Warner Pay, que é a maior operadora de TV a cabo do mundo. Quem
quiser acessar esses filmes na internet, vai acessar pelo road runner, que
é o maior provedor de TV a cabo dos Estados Unidos, e vai acessar pelo
portal da América on-line, vai conversar pelo ICQ, vai ver esse conteúdo
multimídia pelo winamp, vai ver a revistinha em quadrinhos pela DC
Comics, que faz Batman, Super-homem e agora Heroes, vai assistir
aos desenhos animados exibidos na Cartoon Network, e por aí vai. Esse
conglomerado de mídia existe e chama-se America Online Time Warner.
Todos os principais acionistas da América Online Time Warner fazem os
DVDs, os televisores, os computadores, aparelhos que vamos comprar
para poder ter acesso a esses conteúdos. O mesmo cenário que aponta
uma potência democratizante aponta uma concentração da propriedade
avassaladora, e acaba até limitando a própria expressão dessa potência
democratizante. Então, vivemos uma linha em que a expressão de uma
potência democratizante e o ato da concentração podem, em algum
momento, acabar solapando essa própria potencialidade democrática.
Acho que deveríamos nos debruçar mais sobre esse elemento concentrador
que a própria convergência permite.

55
Nesse campo, três grandes batalhas estão no horizonte para
conseguirmos reforçar essa potência democrática e tentar barrar
esse elemento de concentração. Primeiro, a batalha dos conteúdos.
É preciso garantir que esses meios interativos sejam os mais diversos
possível nesse campo dos conteúdos, portanto, é preciso ter políticas
afirmativas da diversidade cultural. Uma das batalhas que acho mais
interessante, e que foi travada nos últimos anos, é a batalha iniciada
pela UNESCO, em 2005, quando ela aprovou uma convenção mundial
sobre a diversidade cultural, que se tornou um elemento central para
que alguns governos possam questionar o CATIS. Não sei se vocês sabem
como funciona a Organização Mundial do Comércio, mas há um acordo
que regula o comércio internacional de serviços. Pela lógica desse
acordo, em algum momento, no futuro, os países terão que abrir mão
de políticas que estimulem sua própria cultura, políticas, por exemplo,
para a produção audiovisual, políticas de estímulo ao teatro nacional
e políticas do patrimônio imaterial seriam consideradas práticas
comerciais indevidas. A UNESCO, no entanto fez aprovar uma outra
convenção que passa a dizer justamente o contrário. Então, hoje há
duas legislações completamente contraditórias, e isso é interessante,
porque a maior parte dos países é signatário das duas, o Brasil, inclusive.
E a convenção de diversidade da UNESCO diz o contrário. Diz que é
obrigação dos países estimular a produção de diversidades. Estimular
essa diversidade pode ocorrer inclusive nesse ambiente digital. O que
quero dizer com diversidade? Um exemplo concreto: o Brasil produz
hoje, por ano, 50 filmes de dramaturgia. Os Estados Unidos (Hollywood)
produzem 500. Mas a Índia produz 900. E o maior produtor audiovisual
do mundo é a Nigéria, que produz 2200 longas-metragens por ano.
Sabem quantos cinemas a Nigéria tem? Nenhum. Sabem quanta
gente vive de audiovisual, profissionalmente, na Nigéria? Um milhão
de pessoas. Na Nigéria, o audiovisual só não emprega mais que a
agricultura. Emprega mais, inclusive, que o petróleo, lembrando que a
Nigéria faz parte da OPEP. Como ela conseguiu fazer isso? Estimulando as
mídias alternativas dessa produção, estimulando, inclusive, a produção
de DVDs, de camelôs, tudo o que combatemos aqui, isso que o senso

56
comum da lógica industrial chamou de pirataria. Foi essa possibilidade
que fez explodir o audiovisual na Nigéria e que permite à Nigéria e à
Índia enfrentar esse cenário de concentração. É preciso, portanto, que
tenhamos políticas nesse sentido.
Outra grande batalha é muito pouco discutida, que é a batalha da
infra-estrutura. Dizemos que a internet é rápida, mas poucos sabem
que a infra-estrutura da internet é absolutamente concentrada. Há o
e-mail, o site, e esse e-mail e esse site e correspondem a números. Todos
têm um endereço, e esse endereço corresponde a uma interface que
os computadores usam, que é a interface dos nomes. Pois bem: todos
esses e-mails, esses nomes, são concentrados em uma única instituição
no mundo, que se chama AICA. É uma entidade privada, com sede na
Califórnia, que responde por toda a tecnologia, e tem que prestar contas
ao Departamento de Comércio norte-americano. O provedor-raiz de toda
a internet, de todos os nomes da internet, repousa hoje no Departamento
de Estado norte-americano. Então, toda essa infra-estrutura está na
mão das grandes redes de transmissão de dados, principalmente as
empresas de TV a cabo, e as empresas de telecomunicações começam
a se concentrar cada vez mais. Vou contar rapidamente um risco dessa
possibilidade de concentração, chamado Package Sniffers (farejadores de
pacote). Tudo que trafega na internet vai num pacotinho de dados. Nós
dividimos toda a nossa informação em pacotinhos e os enviamos. O que
os grandes nomes da infra-estrutura estão fazendo? Estão contratando
empresas que farejam terabites de pacotinhos por segundo, que geram
esses dados e identificam o que seu conteúdo. A Brasil Telecom, por
exemplo, que é a operadora do Centro-Oeste, começou a usar esses
farejadores de pacote para detectar quem usava skype, porque, se a
pessoa está usando skype, está deixando de usar o meu telefone, e perco
receita com essa pessoa. O que eu faço? Faço a conexão dele degradar,
pioro a conexão dele até que ele desista de usar o skype e volte a usar o
telefone. Essa é uma das matérias centrais de que trata hoje o congresso
norte-americano, e teremos outra batalha para enfrentar, que é a batalha
das redes. Significa que o dono da estrada passa a dizer que carro passa,
a que horas, e sob que condições o carro passa, ou não passa. Ora, quem

57
tiver essa possibilidade em um mundo de convergências, um mundo que
estamos construindo e enaltecendo, com a possibilidade de fazer com
que tudo convirja para redes interativas, se estamos empurrando esse
mundo para redes interativas, estamos criando um grande problema,
pois permitimos que essas redes interativas estejam nas mãos de
pouquíssimas empresas.
A batalha das interfaces, a batalha dos softwares: essa é uma
questão que diz respeito diretamente aos psicólogos. Alguns estudos
já demonstram isso de maneira bem pensante. O livro O Código revela
se dá como a construção de interfaces, ou seja, a possibilidade de
determinar ações entre máquinas e usuários e também a possibilidade
de determinar relações cognitivas: até onde posso, até onde não posso,
de que forma estabeleço minha cognição diante da máquina. Acontece
que a possibilidade de definir essas interfaces hoje é absolutamente
concentrada; por exemplo, a Microsoft detém mais de 90% dos sistemas
operacionais do mundo, ela assim definine os limites e as possibilidades
de cognição que todos os softwares exercerão a partir desse contexto.
Essas três batalhas, a da diversidade de conteúdos, a da polaridade da
cognição através das interfaces e a da neutralidade das infra-estruturas
parecem ser três questões fundamentais para que consigamos afirmar a
potência democratizante da internet e dessas mídias convergentes e deter
esse hábil concentrador de propriedades, de conteúdos, de significados e
de subjetividades que vem sendo construído ao longo dos anos.

58
A tecnologia das mídias: a relação dos sujeitos com os
meios tecnológicos de comunicação

Rosa Pedro

O Espetáculo Midiático da Subjetividade


A crescente presença das tecnologias de informação e de comunicação
(TICs) em todas as esferas da vida social contemporânea, rearticulando
experiências sociais e possibilitando novas formas de interação social é,
sem dúvida, um campo da maior importância que se abre na atualidade.
Muitas são as formas com que essas tecnologias participam de nossa
vida cotidiana, redesenhando limites que antes pareciam bastante
nítidos, tais como o público e o privado, o íntimo e o social, etc.
Um aspecto que singulariza essas tecnologias é sua capacidade de
engendrar novas formas de sociabilidade, novas formas de ação social e, o
que nos interessa aqui mais proximamente, novas formas de produção de
si, novos processos de subjetivação. Além disso, tais tecnologias operam
em rede, ou seja, cada uma delas articula outras tantas, de modo que
dificilmente conseguiríamos delinear com precisão seus limites ou seus
“impactos” – elas invadem e pervadem nosso cotidiano de tal modo, que
falar em sociedade contemporânea ou em subjetividade contemporânea
é falar em tecnologia. Nossa sociedade se tece com a tecnologia. Nós
nos subjetivamos já hibridados com a tecnologia. De modo provocativo,
poder-se-ia dizer: não há sociedade fora da tecnologia, não há sujeito
fora da tecnologia.
A noção de redes sociotécnicas ou coletivos (LATOUR, 2000; 2001)
parece-nos bastante fértil para evidenciar essa mescla de sujeito,
sociedade e tecnologia. Envolve a ideia de vários nós e múltiplas relações
na produção das configurações sociais e subjetivas, buscando traduzir
a complexidade presente nessas relações. Na rede, cada elemento é
simultaneamente um ator (ou actante) – cuja atividade consiste em
fazer alianças com novos elementos – e uma rede – capaz de redefinir
e de transformar seus componentes (PEDRO, 2003a). Os agentes sociais,
portanto, não estão “contidos” unicamente em corpos: um ator é uma

59
rede moldada por relações heterogêneas, ou seja, ele é um efeito de rede
que, por sua vez, participa e molda outras redes.
A partir daí, é possível afirmar que nossas formas contemporâneas
de socialização e de subjetivação são efeitos de redes e precisam ser
pensadas fora dos referenciais com que costumamos pensar tanto a
sociedade como os sujeitos. Ao invés de tomarmos o social como um
tecido denso, capaz de explicar certos fenômenos, e os sujeitos como
seres naturalmente dotados de uma “humanidade”, fundamento da
alteridade em relação a outros entes, a perspectiva das redes nos possibilita
apreender sociedade e subjetividade como produções, como efeitos
que precisariam ser “explicados”, ou antes, delineados, compreendidos
(PEDRO, 2003b).

De olho nas novas mídias: os novos sujeitos híbridos


Uma possibilidade interessante de visibilidade de tais produções
pode ser encontrada na exploração do modo como as novas tecnologias
de visibilidade – midiáticas – participam da configuração de nossa
sociedade e de nossos processos de subjetivação. Particularmente,
referimo-nos às chamadas “tecnologias do espetáculo”, aquelas que
se singularizam por promover a “espetacularização da vida cotidiana”,
que não se restringem às mídias de massa – como, por exemplo, em
programas do tipo Big Brother –, mas sobretudo as que emergem num
domínio diferenciado, próprio às novas tecnologias de comunicação e de
informação, colocadas em cena pelos weblogs, fotologs e webcams que
se apresentam na internete, em particular aqueles que expõem o espaço
privado e a intimidade.
A maioria das pesquisas tem apontado a espetacularização da
intimidade propiciada por esses dispositivos, que aparece associada a
uma espécie de degradação da intimidade ou mesmo a uma forma menos
autêntica de subjetividade. Em outras palavras, o objetivo parece ser o
de identificar o impacto que tais tecnologias promovem nos sujeitos,
cujos contornos parecemos saber de antemão. Pois, em oposição a essa
subjetividade inautêntica, superficial – porque ancorada nas aparências,
pressupõe-se uma subjetividade interiorizada, dobrada sobre si mesma

60
– que, no recolhimento de sua intimidade ou de sua privacidade,
constitui-se numa realidade autêntica e verdadeira. Enquanto no âmbito
superficial da aparência sempre é possível mascarar ou mentir, o espaço
íntimo, interior e privado é tido como a morada mesma da verdade, de
uma realidade autêntica (BRUNO & PEDRO, 2004).
Aliada a essa concepção de sujeito, encontra-se uma consideração
do espetáculo na sua forma puramente negativa, onde a degradação do
ser assume a forma do aparecer. O sujeito encontra-se assediado pelo
mundo espetacularizado, sendo levado a experimentar uma existência
e uma vida “falsas”. Os meios de comunicação em massa, em especial a
televisão, encarnam de modo mais visível e esmagador essa característica
do espetáculo, “sequestrando” a vida do espectador e mantendo-o
capturado e refém da imagem. O pressuposto que articula essas duas
considerações é que a sociedade e os sujeitos, livres da dominação
midiática e tecnológica, seriam capazes de viver e de ser “realmente”,
autenticamente (DEBORD, 1967).
No entanto, quando entram em cena as novas tecnologias de
comunicação, vemos emergir uma nova presença do espetáculo na vida
íntima e privada e uma nova constituição de subjetividade. O espetáculo
deixa de ser o que o sujeito contempla no “esquecimento” de sua vida real
para se tornar um dos modos como ele se produz, produz sua existência.
A visibilidade passa a ser requerida pelo próprio sujeito, que faz dela
um aliado na exposição do que se costuma manter no âmbito privado e
íntimo, e nessa exposição ele legitima sua existência íntima e cotidiana.
Nesse contexto, a mediação técnica e a “artificialização” próprias ao
espetáculo não representariam uma perda de realidade, mas antes um dos
modos pelos quais a realidade faz sua aparição para nós, humanos. Longe
de ser uma operação supérflua ou indigna, a realização do espetáculo
participa da própria tessitura do corpo social e com ela compomos, dia a
dia, nossa subjetividade. Negar inteiramente a mediação ou o espetáculo
pode equivaler a negar nossas próprias formas de sociabilidade e de
subjetivação. As novas tecnologias midiáticas não se constituiriam, assim,
necessariamente num dispositivo que leva ao esquecimento (do ser), mas
também “como um veículo que produz uma experiência, efetivamente

61
vivida pelos indivíduos, (...) o ambiente mesmo no interior do qual
cotidianamente construímos, desconstruímos e reconstruímos nossas
vidas” (BRUNO & PEDRO, 2004, p. 29). Isso nos leva a colocar questões,
tais como: Que experiência de si encontra-se presente nesta forma de
visibilidade maximamente estendida do espetáculo contemporâneo?
Diríamos, ao menos provisoriamente, que parece estar se configurando
uma modalidade diferenciada de espetáculo e uma produção – também
diferenciada – de subjetividade: um espetáculo do comum e uma
subjetividade exteriorizada, onde as esferas de cuidado e controle de
si se fazem na exposição pública. Não se trata da exteriorização de uma
interioridade que, já tendo se constituído, decide se expor, mas antes
de uma subjetividade que se constitui no ato mesmo de se fazer visível
ao outro. Esvazia-se a distinção entre aparência e essência, ou verdade,
pois a verdade é o que se produz no ato mesmo de se fazer aparecer.
Os dispositivos tecnológicos e midiáticos não podem ser entendidos
como elementos que, uma vez presentes no cenário contemporâneo,
engendrariam uma subjetividade menos verdadeira ou autêntica. Trata-se
de pensar que a subjetividade se constitui na mescla com tais dispositivos,
um efeito de rede, na qual nos agenciamos com as tecnologias para nos
produzir como sujeitos.

Considerações Finais
O cenário que vimos descrevendo parece configurar um mundo
– o nosso mundo contemporâneo – em que as novas modalidades
tecnológicas figuram como vetores de constituição social e subjetiva, no
sentido de que partilhamos com elas o modo como nos subjetivamos.
Aspectos como privacidade, intimidade, segurança, aparecem partilhados
por humanos e não humanos, o que nos permite retomar a ideia de que
não há sujeito ou sociedade sem tecnologia.
O mais interessante dessa reflexão consiste em uma atenção para
que não naturalizemos esses dispositivos em nossa contemporaneidade.
Os híbridos que compomos com as tecnologias têm resultado –
como já bem apontavam Deleuze e Guattari, em suas considerações
acerca da produção de subjetividade como agenciamento maquínico

62
– em estranhas misturas de enriquecimento e empobrecimento, de
singularização e massificação, de potencialização e despotencialização
da subjetividade. O decisivo é pensarmos que nenhuma dessas
possibilidades está dada de antemão.
Nesse sentido, vale uma vez mais ressaltar que não se trata de
compreender as tecnologias como algo que produz um “impacto”
em nossas vidas – que nos tornaria reféns de um certo modo de ser
automatizado ou artificializado. E ainda – o que consideramos mais
radical –, que a artificialidade das novas tecnologias não nos desapropria
necessariamente de nossa humanidade. Retomando, uma vez mais,
autores como Foucault, Deleuze e Guattari, pensamos que a noção
de “produção” – presente na ideia de “produção de subjetividade” – já
aponta para a dimensão de artifício própria da concepção que recusa
a naturalidade do sujeito. Assim, nossa potência inventiva ou criativa
não estaria em algum atributo capaz de nos opor, como humanos, à
artificialidade da tecnologia, mas justamente na potência aberta pelos
agenciamentos com que compomos nossos processos de subjetivação. É
a partir desses agenciamentos que poderíamos recuperar nossa própria
potência de artifício, de criação e inventar com essas tecnologias outras
formas de ser e de compor com o mundo. Outras formas de ser sujeito e
outras formas de fazer sociedade.

Referências
BRUNO, F. & PEDRO, R. Entre aparecer e ser: tecnologia, espetáculo e subjetividade contemporânea.
InTexto, 11 (2): 1-10, 2004. Disponível em: www.intexto.ufrgs.br/n11/an11a9. html. Acesso em: 8
de julho de 2009.
DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo. Contraponto,Rio de Janeiro, 1997 .
LATOUR, B. Ciência em ação – como seguir cientistas e engenheiros mundo afora. SP: Edusp,
2000.
___________ A esperança de Pandora: Ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru,
SP: Edusc. 2001.
PEDRO, R. As redes na atualidade: refletindo sobre a produção de conhecimento. In: D´ÁVILA, M.
& PEDRO, R. (Org). Tecendo o desenvolvimento. RJ: MAUAD. 2003.64

63
___________. Reflexões sobre os processos de subjetivação na sociedade contemporânea. In:
MACHADO, Jorge (Org.) Trabalho, Economia e Tecnologia – Novas perspectivas para a sociedade
global. São Paulo: Tendenz/Práxis. 2003.

64
A tecnologia das mídias: a relação dos sujeitos com os
meios tecnológicos de comunicação

Ana Maria Nicolacci da Costa

Gostaria de dar um título a minha apresentação, de modo a tornar seu


foco mais preciso. E esse título seria: Modernidade líquida, subjetividades
fluidas.
Comecemos por “modernidade líquida”, nomenclatura proposta por
Zygmunt Bauman. Acho que vocês já devem ter ouvido falar desse novo
estágio da modernidade, frequentemente contrastado com o estágio
anterior, visto como “sólido” e pesado. “Modernidade líquida” é uma das
formas de fazer menção à era contemporânea de que eu mais gosto,
porque transmite bem a ideia de fluidez e liquidez que caracterizam
praticamente tudo no mundo de hoje.
Outro conceito do qual gosto muito é o conceito de “sociedade
dos fluxos”, proposto por Manuel Castells. Por que? Porque se refere a
uma organização social também fluida, pois tem por base os meios de
telecomunicação digitais.
Tanto para Bauman quanto para Castells – bem como para muitos
outros –, a palavra de ordem do momento atual é a mobilidade. E fluxos
e líquidos certamente com ela se entrosam muito bem, porque indicam
movimento, circulação.
E por onde é que nós circulamos?
Obviamente, circulamos pelo velho e conhecido espaço físico, que tem
todas as limitações que conhecemos: fronteiras, obstáculos geográficos,
distâncias. Quando viajamos, temos de pegar avião, ônibus, carro, etc. A
movimentação física é um tema complexo nos dias de hoje, dado que
a mobilidade das populações mundiais não para de crescer, gerando
diversos tipos de problema.
Além disso, também viajamos pelo espaço inédito inaugurado pelas
novas mídias de telecomunicação digital. Esse é o espaço virtual, que só
passou a ser conhecido por nós, leigos, a partir da difusão da internete,
iniciada em 1995. É interessante que alguns artistas estejam tentando

65
dar visibilidade a esse espaço virtual – infelizmente, não posso falar
sobre isso, mas adoraria.
E o terceiro espaço pelo qual circulamos é um espaço de cuja
existência nem nos damos conta. É um espaço híbrido. É um misto de
espaço físico e virtual. Circular pela cidade falando ao celular é usar o
espaço híbrido.
Quais são os tipos de mobilidade que temos?
Em primeiro lugar, temos a mobilidade física (e aqui estamos falando
de longas distâncias), que os sofisticados meios de transporte tornam
possível. No Brasil, no momento, estamos enfrentando um problema
seriíssimo, gerado justamente por essa mobilidade física de tudo e de
todos: a crise aérea. Os preços caíram muito, as pessoas podem viajar, há
maior poder aquisitivo. A maior prosperidade, aliada à sofisticação e à
rapidez dos meios de transporte, acaba gerando esse efeito perverso.
Outro tipo de mobilidade de que dispomos é a mobilidade virtual.
Essa ultrapassa, demasiadamente, a nossa mobilidade física, dado que,
no mundo virtual, não enfrentamos obstáculos ou temos de superar
barreiras, contanto que a nossa conexão (via internete ou celular) esteja
funcionando. Se ela está funcionando, a mobilidade é infinita.
A esse respeito, quero apresentar duas declarações que me foram feitas
por alunas, com as quais fiquei muito impressionada. Um dia, eu estava
dando aula na graduação e uma de minhas alunas, que tinha tido um
grave problema de saúde, fez a seguinte e surpreendente afirmação: “O
computador me deu mobilidade”. Nessa mesma turma, havia outra jovem
que me fez outra afirmação igualmente inusitada: “A única coisa que eu
tenho de fixa na minha vida é o meu celular”. É quase possível montar
um curso sobre essas duas frases. E isso porque o computador que deu
mobilidade à primeira aluna era um computador de mesa, fixo. Já o celular,
que era a única coisa fixa na vida da segunda, todos sabemos, é móvel!
Vou tentar explicar melhor. Vocês sabem o que é um satélite de
telecomunicação geoestacionário? Desculpem, mas vou desiludir vocês.
Quando descobri, fiquei muito desiludida. Um dia, eu estava em Itaipava,
olhando o céu lindo, cheio de estrelas, com uma amiga que é da área de
telecomunicações. De repente, ela disse: “Olha lá um satélite”. Eu pensava

66
que fosse uma estrela cadente, mas não, era um satélite. Aí ela disse:
“Mas esse aí nós vemos porque não é geoestacionário. Há muitos outros
que são geoestacionários”. Então, perguntei a ela o que eram satélites
geoestacionários, e ela me explicou que são satélites cujas órbitas
acompanham a órbita da Terra. Então, do ponto de vista da Terra, eles
estão sempre parados. Não percebemos seu movimento, porque eles se
movimentam enquanto a Terra se movimenta. Agora, se vocês pensarem
sobre os celulares, perceberão que eles têm um movimento análogo em
relação a nós. Eles deveriam ser chamados de homoestacionários, porque
estão sempre conosco.
Quantos de vocês têm celulares aqui? Ou melhor, vou fazer a pergunta
de outra forma. Quem não está com o celular aqui? Três pessoas. Quem
está com o celular aqui, obviamente, está com ele na bolsa, ou no bolso,
ou na mão, ou na mochila, mas certamente está com o celular por
perto, e ele permanece por perto durante as 24 horas do dia. Nós não o
deixamos muito longe. Não são outras pessoas que atendem o celular,
somos sempre nós, pois o celular é um objeto pessoal.
Por isso achei muito interessante a afirmação da minha aluna de que
o celular era a única coisa fixa que tinha. Ela tinha razão: o celular se
tornou um objeto fixo. Ele é uma referência fixa e, para muitos jovens,
tornou-se uma referência fixa da própria identidade, porque o número
é uma identidade. É complicado, então, quando se muda de operadora,
porque é preciso avisar a todos os amigos que sua identidade mudou,
já que o número mudou. Essa é uma das razões pelas quais as pessoas
procuram não mudar de operadora. Mudam somente quando podem
transferir seus dados, o que ainda é recente no Brasil.
A essa altura, vocês devem estar se perguntando onde eu quero
chegar com tudo isso. Eu quero simplesmente dizer a vocês que essas
formas de mobilidade têm impactos dentro de nós. Elas acabam gerando
outra forma de mobilidade, uma forma que poderia ser chamada de
“mobilidade de ser”.
Para explicar, deixem-me voltar um pouquinho no tempo. Nos
primeiríssimos tempos das tecnologias digitais interativas – e aqui
estou falando mais especificamente da internete –, criou-se o hábito

67
de entrar na internete com vários nicks e a cada nick correspondia
uma persona, um personagem. Então, muitas pessoas criavam vários
personagens. Poderiam, por exemplo, ter cinco personagens associados
a cinco nicks diferentes. E cada nick, cada personagem desses, tinha
características completamente diferentes: gêneros diferentes, profissões
diferentes e assim por diante. Essas pessoas podiam entrar num canal
de IRC e abrir cinco janelas, que correspondiam a cinco identidades
diferentes, e passar de uma para outra conforme lhes aprouvesse. Isso
era o que se fazia no início. Naquela época, se dizia também que nós
vivemos num eterno presente, o que dava margem a especulações
patologizantes, pois alguns afirmavam que “a organização subjetiva
atual é esquizofrênica, visto que vivemos sempre no presente”. Do meu
ponto de vista, isso é uma bobagem enorme, é patologizar o que é novo
e não necessariamente patológico.
A mensagem que estou querendo passar nesta apresentação é a de
que a mobilidade à qual venho me referindo (em suas diversas formas) é
incorporada ao nosso próprio modo de existir, no qual as poucas coisas
estáveis são o movimento e a mudança. Hoje em dia, temos pouquíssimas
coisas estáveis, mas, certamente, o movimento e a mudança são estáveis.
Paradoxal, não? Como também é paradoxal ter como único objeto fixo
da vida um celular que é móvel.
Um bom exemplo dessa mobilidade, ou melhor, voltando ao título que
dei à minha palestra, fluidez, são os mutantes nicks do MSN. Eu já falei
um pouquinho a respeito da importância dos nicks nos primórdios da
internete, porque eram aquilo que dava estabilidade a um personagem,
a uma identidade. Você entrava num canal de chat, num canal de IRC,
e as pessoas o reconheciam pelo nick. Você não tinha uma aparência
física, nem nada no gênero. Você era um nick; então o nick era um dado
estável. Recentemente, no MSN, isso mudou. Eu me surpreendi quando,
há pouco tempo, vi as transcrições (nós estávamos fazendo uma pesquisa
e as alunas fizeram entrevistas on-line) de umas entrevistas. De repente,
me dei conta de que o nick hoje pode ser uma frase inteira. Vocês sabem
que no MSN, quando a pessoa dá um enter, aparece o nick antes da fala
da pessoa. Então era aquele nick quilométrico, e, de repente, a fala se

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reduzia a uma carinha sorridente. Pensei: o que está acontecendo? Aí fui
tentar entender. E vocês sabem o que está acontecendo, provavelmente.
Naquela caixinha em que vocês podem colocar o nick, as pessoas
começaram a colocar frases. Existe, inclusive, uma comunidade no orkut
sobre os nicks do MSN. Acho que se chama Os melhores e os piores nicks
do MSN ou alguma coisa do gênero. Entrei nessa comunidade (a dica me
foi dada por uma aluna) e encontrei os seguintes depoimentos:
- Nick é igual a cueca: troca-se todo dia (ou não).
- Meu nick de hoje é: é difícil definir o que se pode
constantemente modificar.
- Eu coloco meus nicks dependendo de como estou
me sentindo no momento ou de alguma coisa que
acho importante dizer aos meus amigos. Ou seja, depende
mtooooooo do meu dia.
O mais interessante é que, nessa nova configuração, alguns dos
usuários mantêm um nome constante. Por exemplo:
- Flávia: Saudade de meu amor, que ficou em BH.
- Bela: Arriscar-se é perder o teto por algum tempo.
Não se arriscar é perder a vida.
- Beta: Sou o que sou.
- Joca: Galera: o lanche foi sinistro. Tô lotado até
agora.
- Sinistro: Se você se decifra, ninguém te devora.
- Camila: Tô com dengue.
Outros, nem ao menos têm nome. Eles têm apenas uma frase que
modificam todo dia.
- Se o nada fosse o ser, não seria.
- Dodói.
- Euzita, que delícia.
- Provitas, provitas. Estudar, estudar, estudar.
- Não abre, que é vírus.
É fantástico observar isso. Não sou uma grande usuária do MSN,
então perguntei às minhas alunas como elas sabiam com quem estão
conversando. Aí elas me mostraram que, quando se passa o mouse pelo

69
nick da pessoa, aparece o e-mail desta. A identidade se tornou invisível,
e o que se tornou visível foi a mudança.
Bem, vou terminar com uma frase do Bauman, com quem comecei a
apresentação. Aliás, preciso dizer que não concordo com ele em gênero,
número e grau, mas ele fez uma afirmação, num livro já antigo (1997),
quando nada disso estava acontecendo, a internete estava na infância
e os celulares, que eclodiram mais tarde, estavam surgindo. Então, ele
dizia o seguinte: “O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer
a identidade se perder, mas evitar que ela se fixe.” Hoje em dia, os nicks
do MSN dão visibilidade a essa estratégia.

70
A produção dos sujeitos:
a tensão entre cidadania e alienação

Coordenação
Marcus Vinícius de Oliveira

71
A produção dos sujeitos:
a tensão entre cidadania e alienação

Diva Lúcia Gautério Conde


Eu quero começar agradecendo ao Conselho Federal de Psicologia
e ao Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro o convite para
participar deste I Seminário Mídia e Subjetividade. Ao promover este
encontro, o Sistema Conselho trouxe para si as questões postas pelas
lutas que vêm sendo travadas pelas entidades que fazem parte do
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação-FNDC. O Sistema
Conselhos tem afirmado para a Psicologia, neste país, e neste continente,
uma implicação que não recusa a dimensão política, social e cultural na
produção de sujeitos e das subjetividades humanas.
Minha apresentação vai na direção de pensar os significados e
sentidos que os termos produção de sujeitos, alienação e cidadania
assumem contemporaneamente sob o signo das mídias, em especial da
televisão. Falo, também, a partir da militância junto ao FNDC, durante
dois anos e meio, pelo CFP. Foi um tempo de muita aprendizagem, e é
onde me inspiro para iniciar a minha exposição.
Retomo uma pergunta feita por uma de minhas filhas, depois de uma
das tantas tele-reuniões do FNDC das quais participei. Ela me perguntou:
“Mãe, o que é, afinal, a democratização das comunicações?” E completou:
“Ninguém é obrigado a ver o que não quer ver. Se eu quiser, mudo de
canal ou desligo a televisão.” E continuou: “Eu vejo o programa X ou o
programa Y porque eu quero ver.” Essas colocações produziram em mim,
de imediato, uma grande perplexidade: como não se fazia naquela casa
de militante da luta pela democratização das comunicações a discussão
sobre este tema? Em um segundo momento, a perplexidade se direcionou
à educação formal da minha filha, constatando que ali também, nas
escolas e diversos cursos pelos quais ela passou, essa discussão não
se fazia, pelo menos a partir de uma posição mais crítica: finalmente,
o impacto pelo contato direto e tão próximo de mim com a matriz
do pensamento liberal, contra o qual as lutas pela democratização da
comunicação vêm sendo feitas.

73
A suposta liberdade de ação dos sujeitos sobre os artefatos, em seu nível
mais concreto, sobre os aparelhos, das diversas mídias, e por suposição,
de seus conteúdos, tem sido a matéria de sustentação dos grupos
econômicos e das forças sociais que são seus proprietários, ou daqueles
que detêm sua concessão. A suposição de autonomia dos sujeitos frente
aos artefatos midiáticos faz acreditar em uma relação de trocas com
igualdade de condições, com uma simetria de pares em diálogo que não é
verdadeira. Aprendi com o jornalista Daniel Herz, e demais companheiros
do FNDC, que o sentido de democratização das comunicações não diz
respeito à possibilidade do telespectador ligar ou desligar seu aparelho,
assistir a um determinado programa ou não. A democratização nas e
das comunicações decorreria da possibilidade de acesso, viabilizada
por autores e emissoras, de que tais atores–telespectadores entrassem
em contato com as diversas fontes de concepção do mundo, sejam
valores éticos, sejam estéticos, produzidos desde sempre por todos os
grupos humanos. Assegurar a multiplicidade, dar voz ao conjunto dos
interesses e demandas que circulam socialmente, seria caminhar no
processo de democratização na comunicação. Dessa forma, as mídias,
tal como chegaram ao século XXI, poderiam criar condições de reflexão,
de análise, de produção de conhecimento, de desenvolvimento do
pensamento crítico só possíveis a partir do contato com a diversidade.
Embora concessão do Estado, a gestão e o provimento de recursos para
o funcionamento produziu a apropriação dos meios de comunicação,
porque, tanto na esfera privada quanto na pública, produziu-se a certeza
da legitimidade da privatização dos interesses do condutor do processo,
que se dirige a partir de sua própria concepção de mundo, de seus
próprios objetivos, de seus próprios interesses.
Aparentemente, são dois os sujeitos em cena em um processo de
comunicação: o “autor” do programa e o telespectador. Entretanto,
a relação original, aquela na qual alguém emite e outro recebe uma
mensagem, foi radicalmente modificada. O emissor, um grupo econômico,
ou religioso, ou político, ou governamental, mantém um grupo de pessoas,
os diversos profissionais envolvidos, na produção de uma similaridade
discursiva, criando uma unidade, um estilo, uma personalidade, como se

74
fosse uma pessoa, aquele falante que se apresenta como se fosse o nosso
vizinho, um conhecido, ou alguém que sabe mais, a falar assertivamente
sobre seu tema. Já o “telespectador”, privado de pertencimento a
etnias, escolarizações diferenciadas, capacidades de compreensão,
conhecimentos prévios, crenças religiosas, foi transformado naquele que
deve receber, e gostar do que recebe: “O senhor(a) caro(a) telespectador”,
“Você aí, que está ligado na...”, “Você aí, menina”, ou o “Acorda, menina!”,
que todas as manhãs entram na casa de homens e mulheres brasileiras,
unificandos em um receptor. A emissora fala com muita intimidade com
cada um de nós, o que vai assegurar os índices desejáveis de sucesso/
audiência, atendendo os interesses dos patrocinadores.
Pode-se dizer que se tratam de dois sujeitos no sentido de autores
plenos de sua autonomia? A questão se coloca porque lá e cá temos
pessoas, seres humanos em atividade, aparentemente em comunicação.
Aqui me desvio um pouco dessa linha de pensamento e volto para a minha
ciência de formação, a Psicologia. A idéia de produção da subjetividade
humana, substituindo a psyché, transformada pela Psicologia a partir do
início do século XX em psiquismo, não sendo recente, é absolutamente
inovadora. Uma de suas fontes é constituída pelas formulações de
Vygotsky, que viveu na Rússia entre 1896 e 1934, e que nos vê como
seres capazes de conduzir com autonomia / autoria nossas vidas, capazes
de produzir “arranjos” pessoais que nos tornarão sujeitos singulares, a
partir do conjunto de elementos com os quais estivemos em contato
desde o nascimento. Aí, estão os afetos que recebemos, os cuidados, os
cheiros, os alimentos, as falas das pessoas que nos cercaram, os modos
de os adultos realizarem suas tarefas, as músicas, as cores, o mobiliário,
as paisagens, todos os sistemas simbólicos que compõem a cultura, o
momento histórico, político, econômico com os quais entramos em
contato ao nascer. O campo de relações afetivas e simbólicas que se forma
em torno de cada ser humano ao nascer assume a condição de origem e
fonte de todos os processos cognitivos, ou processos mentais superiores.
O desenvolvimento das capacidades humanas acontece num campo de
trocas entre o mundo interno e o mundo externo, e é necessariamente
um processo bilateral. Para o autor, as trocas interpessoais são a base dos

75
processos intrapessoais, sendo que todos os processos mentais superiores
decorrem das relações reais entre os seres humanos.
A perspectiva do materialismo histórico de que nos fala Vygotsky
é estendida à constituição da subjetividade, que, contingenciada
pelas possibilidades biológicas, ganha recursos de plasticidade até
então insuspeitados. “Uma operação que inicialmente representa uma
atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente...”
(Vygotsky, 1998; p.75). Para Vygotsky, a subjetividade humana decorre
de um contínuo processo de internalizações, que supõe uma série de
transformações. Uma das operações que inicialmente representam uma
atividade externa e que é reconstruída internamente é a associação
dos signos com as suas significações, como as palavras, no processo de
aquisição de linguagem, que todos nós já realizamos um dia.
Em uma edição russa de Psicologia e Pedagogia, Vygotsky disse que
estudar um fato completamente isolado do resto do mundo, desprovido
de suas inter-relações com os demais fenômenos, significa condenar a
priori o objeto de estudo a permanecer sem identificação.
As contribuições de Vygotsky sobre a aquisição e o desenvolvimento
das funções superiores, como a memória, a atenção, o pensamento,
a percepção, são da mais alta relevância para se entender o impacto
das mídias e de seus conteúdos como um dos elementos sociais ativos
na produção das subjetividades, nos valores sociais que transmitem, nos
modos de agir que difundem, na produção dos sujeitos contemporâneos.
Todos sabemos qual tem sido a experiência brasileira de relacionamento
com as TVs: mais televisores que refrigeradores, surpreendentemente,
em um país tropical como o nosso. Mais que uma relação de consumo,
estabeleceu-se uma relação familiar. Locutores, apresentadores, artistas
variados, celebridades, ganharam espaço na intimidade das famílias. Estão
presentes nos seus lares, e já constituem referências de sociabilidade.
Neste país, discute-se intensamente o cotidiano das novelas que
personificam os contatos humanos, deixados de lado principalmente
nos centros urbanos. Atores deixam de ser vistos profissionalmente e
incorporam os personagens, recebem conselhos, ofensas, e até agressões
físicas, como o caso dos atores que representaram um casal gay há cerca

76
de alguns anos, e foram vítimas de atitudes homofóbicas por parte de
um grupo de jovens. Muito recentemente, a atriz Camila Pitanga foi
indagada se, após o término de uma novela em que representa uma
profissional do sexo, incorporaria as vestimentas de sua personagem ao
seu guarda-roupas pessoal, deixando de lado as roupas comportadas
que costuma usar.
Não se discutem as questões educacionais, as pesquisas científicas,
as políticas públicas para a saúde, as políticas de gestão de trabalho, as
relações atuais com os trabalhos, as questões ambientais, os programas
de moradia, os projetos de sociedade, as dúvidas, as esperanças. Nenhum
desses elementos faz parte da programação de rotina que acessamos
nos canais de televisão.
Nós nos posicionamos sobre os fatos que cercam nossas vidas a partir
de como são veiculadas, apresentadas pela TV: tudo nos chega pré-
escolhido, com palavras definidas. Ao final do primeiro semestre de 2007,
uma ação policial no conjunto de favelas chamado Complexo do Alemão,
nesta cidade do Rio de Janeiro, no jornal da noite, um repórter anunciou:
“18 bandidos morreram”. No jornal seguinte, um pouco mais tarde, a
manchete era: “Morreram 18 pessoas. Pode ser ainda maior esse número.
E a polícia diz que são bandidos.” No dia seguinte: “18 morreram. Pelo
menos 12 são bandidos. Vai ser aberta uma investigação para saber quem
são os outros mortos.” Chama a atenção a associação inquestionável
de “bandido” e “ser morto”, em uma ação de morte produzida, assim
como a mudança na notícia, sem abrir mão da mensagem eleita como
principal: os mortos são bandidos.
Tomando a realidade local, a cidade do Rio de Janeiro, nenhuma
proposta ou oportunidade de interlocução, de intervenção sobre a
infindável seqüência de tiros a qualquer hora do dia, sobre a enormidade
de feridos a bala nas ruas, dentro das casas, sobre as cenas de pânico de
mães e crianças de todas as idades fugindo dos tiroteios, sobre os mortos
e suas famílias. É sem dúvida uma relação unilateral, em que as trocas
são definidas por índices de audiência, e em que um extenso corpo de
produção, a TV, fala, expressa sentimentos, opina, e alguém, o sujeito, o
cidadão, ouve e vê, respondendo pelo botão de ligar/desligar. As TVs não

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suscitam a produção de ações de solidariedade ou de repúdio àquilo que
elas próprias transmitem: as reflexões não são possíveis frente ao incessante
movimento de informações/mensagens que devem ser passadas.
Nesse quadro das relações das pessoas com esse produto, as TVs,
travestidas de colegas, conhecidos, autoridades, devem ser retomados os
temas de cidadania e alienação como grandes temas de reflexão sobre a
condição humana.
Raymond Williams (2007) afirma que alienação é uma palavra
bastante antiga, e tem circulado entre o Direito, a Filosofia, a Teoria
Social e a Psicologia com diferentes significados. Atravessando todos
esses significados e sentidos, um certo núcleo remete a separação,
estranhamento, afastamento, amplamente pregado para designar o modo
de funcionamento das relações de trabalho empregadas no capitalismo.
A alienação carrega uma conotação de empobrecimento, desqualificação,
perda. Alienante é se constituir com qualidade indesejável, e parece refletir
com precisão o quadro que se tem por parte do sujeito emissor.
Para Marilena Chauí, o campo democrático é constituído para a
ampliação e pelo reconhecimento dos direitos humanos. A cidadania se
define pela igual distância estabelecida entre uma situação de privilégios
e a carência dos benefícios a que se refere. Onde não há direitos, continua
Marilena Chauí, não há sujeitos. Onde não há reconhecimento de
sujeitos, estes são tratados como coisas. Chauí considera que a estrutura
oligárquica e autoritária da sociedade brasileira bloqueia a instituição do
Estado democrático e da cidadania.
As questões de alienação e cidadania não podem, portanto, estar
separadas do contexto que as precede como condição de existência, e
precisam ser recuperadas como forças mais ou menos intervenientes na
produção dos sujeitos contemporâneos. Trata-se então de recuperar a
idéia de sujeitos autônomos, responsáveis e comprometidos com suas
vidas e com as de seus pares, para além de uma natureza boa ou má,
ampliando-a para a construção de novas condições para as sociabilidades
humanas com a vida em meio a comunicações democratizadas. Essa
outra condição deve ser pactuada por todos os sujeitos, autores que se
assumem como gestores.

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Gostaria de finalizar esta exposição fazendo uma leitura que
encontrei na última página de Simulacro e Poder: uma Análise da Mídia
(2006), de Marilena Chauí. Ela fala sobre a violência que se instala nas
sociedades, em que a divisão de classes é em si a expressão da violência,
e sobre a qual as propostas de não-violência não passarão de mitos a
ocultar a permanência das condições de produção da violência. Chauí
comenta que apenas uma sociedade partilhada por autores da vida
em comum, que a pactuem como não-violenta, poderá passar uma
experiência de não-violência. Para ilustrar a solidariedade que constitui
tais laços sociais, ela lança mão das idéias de La Boétie, pensador que
nos escreve no século XVI:

“La Boétie afirma que é perfeitamente compreensível a


submissão de uma sociedade inteira a um poder estranho que a
domina pela força, mas que é aparentemente incompreensível
a sujeição a um poder que os homens poderiam derrubar, se
quisessem. Para compreender o paradoxo da servidão voluntária,
diz La Boétie, é preciso conceber o modo como o poder se
espalha pelo interior da sociedade. Na servidão voluntária,
a sujeição se deve ao fato de que cada um dos membros da
sociedade, em cada uma das suas atividades, em cada esfera
social, encarna e realiza o poder que parece existir apenas no
topo da sociedade. Assim, cada um dos membros da sociedade
se submete porque espera submeter os outros ao seu próprio
poder, por menor que ele seja. Há uma verdadeira reação em
cadeia dos poderes que se recusam e se difundem no interior
da sociedade e se soldam nos mínimos detalhes. Em outras
palavras, uma sociedade tiranizada serve voluntariamente ao
tirano, porque cada um, em seu lugar social, tiraniza quem
julga ser inferior. Assim, em vez de sociedades tiranizadas,
deve-se dizer que se trata de uma sociedade tirânica”.

O texto sobre La Boétie traz para a discussão sobre a produção de


sujeitos contemporâneos, a ascensão das responsabilidades individuais e

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sociais para a permanência do quadro que temos atualmente. Trata-se
então de considerar a produção de sujeitos contemporâneos, que ocorre
sob a prevalência das mídias, em especial da televisão, como imposição
a todos em não poder abrir mão de ser autor da sociedade em que vive,
exigindo uma constante análise da realidade, intervindo como autor das
condições presentes. Espero ter ficado claro o mal-estar ao qual me referi
no início desta fala: se há manifestações típicas do pensamento liberal,
a respeito da suposta liberdade de escolhas frente às tvs, circulando ao
meu lado, é preciso estar atenta à minha parcela de responsabilidade não
apenas para esta circunstância familiar, como ainda para o quanto tenho
contribuído para um efetivo processo crítico a respeito da democratização
da e na comunicação. Falo chamando a todos à reflexão sobre nossas
participações, e agradeço a atenção dos senhores.

Referências Bibliográficas
VYGOTSKY, L. S. Formação social da mente. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1998.
WILLIAMS, R. Palavras-chave. São Paulo: Ed. Boitempo, 2007
CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2006.
LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo:Ed. Brasiliense, 1999

80
A produção dos sujeitos:
a tensão entre cidadania e alienação

Pedrinho Guareschi
A mídia hoje é como o ar que respiramos, como a água para o
peixe. É a alma da nossa sociedade. O pesquisador John Thompson,
de Cambridge, criou uma expressão que está se tornando clássica,
com respeito a esse tema, que é a “midiação” da cultura do tempo, a
“midiação” da sociedade moderna.
Na verdade, esse termo “mídia”, ainda bastante amplo, em parte
significa os processos de produção, circulação e recepção de mensagens
e conteúdos informacionais nas diferentes plataformas e suportes
tecnológicos, o que inclui não somente a radiodifusão e a imprensa mas
também as atividades relacionadas aos serviços de telecomunicações e à
indústria cinematográfica. Tudo isso se constitui num mundo simbólico,
são as formas simbólicas.
Alguns estudiosos da ideologia a definem como o uso de formas
simbólicas para criar ou reproduzir relações de dominação. O tema que
nos foi proposto foi A tensão entre cidadania e alienação: a produção de
sujeitos. Procuro escolher as palavras, usa-las e partir dos conceitos que
são propostos no título. Estabeleceria, assim, três passos. O primeiro, seria
o que se entende por sujeito; depois, cidadania, e, por fim, a alienação.
Tudo isso dentro do eixo das tensões.

Que entendemos por sujeito


Não há nada que façamos que não tenha por detrás uma concepção
de ser humano. Agora, como boa notícia, a filosofia está voltando, e passa
a se perguntar sobre o ser humano. Nada se pode produzir sem que haja,
por detrás, uma concepção de ser humano. Quem sou eu e quem é aquele
que está ao meu lado? Por mais que se disfarce, essa é a pergunta que
perpassa a humanidade, porque, se vocês investigarem todos os filósofos,
os pensadores de todas as épocas da História, desde muito tempo antes de
Cristo até hoje, todos eles, sem exceção, se fizeram essa pergunta: “Quem
somos nós?” ou, dito com outras palavras: “Conhece-te a ti mesmo”.

81
É a pergunta que perpassa a humanidade, que é paradigmaticamente
representada pelo mito da Esfinge. A Esfinge é a grande pergunta, que
permanece entre nós há tanto tempo. Então, a partir dessa constatação,
afinal, de que sujeito estamos falando quando falamos de produção de
sujeitos? “Sujeito” é aquilo a que fazemos alguma referência, a pedra
fundamental, etimologicamente “o que está subjacente”.
Como eu entendo o sujeito? Há dois filósofos que me ajudam a
desvendar isso: um deles é o próprio Marx. Ele afirma que o sujeito, o ser
humano, é a soma total de suas relações, ou seja, toda relação que ele
estabelece vai construindo-o como sujeito, por isso ele vai mudando a
todo instante. Nós somos o receptáculo desses milhões de relações que
vamos estabelecendo. Um filósofo cartaginês, Agostinho de Hipona, do
século IV, deparou-se com o grande problema de definir o ser humano.
Foi ele quem fez a distinção entre o conceito de “indivíduo”, que seria
aquele que é um e que que tem tudo a ver com os outros, e “pessoa”,
que é relação, isto é, aquele que é um, mas não tem nada a ver com os
outros. O indivíduo é aquele que é um e que não tem nada a ver com os
outros, que é o pressuposto da filosofia liberal. Vivemos hoje sob a égide
do liberalismo, tem uma concepção absolutamente individualista do ser
humano. Se quisermos uma definição de liberalismo, é muito simples:
o liberalismo se define pelo fato de entender o ser humano como um
indivíduo. O liberalismo se define por isso. Para ele, o ser humano é um. Eu
sou eu, você é você. Cada um por si, ninguém por todos.
Totalmente diferente é a concepção de pessoa, relação. O que é relação,
relatio? É difícil definir relação. Relação é aquilo pelo qual uma coisa não
pode ser, se não existir outra, quer dizer, na definição do ser, existe o outro.
Carlos Rodrigues Brandão, discutindo essa questão, inventou o termo
“eutro”, eu-outro. E muitos caminharam nessa direção. A discussão de
sujeito que Foucault faz é semelhante. Eles empregam o termo sujeito, em
vez de pessoa. O sujeito é, então, o resultado de suas relações.
Produção de sujeitos: se eu entendo o sujeito como alguém que é
constituído pelas relações, não perco minha singularidade, continuo
sendo singular. Mas minha subjetividade são os milhões de relações que
eu estabeleci. Passei um mês com monges budistas na Tailândia, e um deles

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dizia que nós somos um ancoradouro, uma baía, onde chegam milhões de
naus. Algumas chegam e deixam toda sua carga em nós, outras passam ao
largo. Mas nossa subjetividade vai se constituir por essas “naus”, relações,
que chegam até nós. Isso não nos faz iguais, porque, no momento do
estabelecimento das relações, cada um de nós faz recortes diferentes, e
é com esses recortes que formamos a colcha de retalhos que é a nossa
subjetividade. É isso que se entende por subjetividade: uma colcha de
retalhos que é absolutamente singular, porque ninguém constrói uma
colcha de retalhos igual.
Nos últimos 30, 40 anos, surge um novo personagem dentro de casa:
a mídia. A mídia hoje é aquele outro personagem que estabelece relações
conosco. Estamos fazendo pesquisa em vilas populares de Porto Alegre e
tomamos consciência de um fato extraordinário, terrível, surpreendente.
A princípio duvidamos dos dados, retornamos para conferir e vimos que
era assim mesmo: uma criança nessas vilas passa, em média, nove horas
na frente da TV. Então, com esse novo personagem, nós vamos construindo
nossa subjetividade.

Cidadania
Que entendo por cidadania? Temos que remeter aos antigos gregos,
porque a Grécia teve uma formação social única. O que acontece na
Grécia é que se reúne um grupo de famílias em pé de igualdade. Não
era mais apenas o patricarca, o chefe da clã. Tinham, então, de se reunir
para decidir sobre o público. Eles se reuniam para conversar, na famosa
ágora. Discutiam para determinar onde passaria a rua, como se conseguir
água, quem iria para a guerra (em geral os escravos, claro). É verdade
que somente os homens se reuniam; crianças, mulheres e escravos não
tinham vez. Mas, atenção, aqui começa a cidadania: não eram todos
os que se reuniam na praça que recebiam o título de cidadão, e isso é
essencial para o nosso caso. Só recebia o título de cidadão quem falasse,
quem apresentasse seu projeto, dissesse sua opinião. Porque, qual é a
maravilha do ser humano? A maravilha do ser humano é que nós, além
de tudo, temos a capacidade de criar, de inventar, de projetar, e, à medida
que juntamos nossos projetos, temos mais garantia de poder construir

83
uma sociedade e de fazer isso de acordo com aquilo que queremos.
Então, só era cidadão quem participasse, quem mostrasse o seu projeto.
Daí vem a importância do orçamento participativo. Era cidadão aquele
que falava. Mas atenção, quanto à participação, pois podem surgir daqui
muitas falácias, e há muitos governos e pessoas públicas que faturam
alto com isso. Temos que distinguir ao menos três níveis de participação:
o de planejamento, o de execução e o de resultados. Da execução, todos
nós participamos, todos os que trabalham: é a população brasileira que
constrói essa nação. Quanto aos resultados, o Brasil é o vice-campeão
mundial de má distribuição de renda, isto é, nem todos recebem de
maneira justa. É a participação no planejamento que é a participação
que tem a ver com cidadania, porque é no planejamento que se decide
a participação na execução e nos resultados. É no planejamento que se
diz quem faz o quê (execução) e quem fica com o quê (os resultados).
E como se dá a participação no planejamento? Exatamente por meio
da fala, da comunicação, da expressão, da apresentação de um projeto.
Sem comunicação, sem essa participação por meio da comunicação, não
existe cidadania, muito menos democracia.

Alienação
E a questão da alienação? Nos últimos anos de sua vida, Betinho vivia
repetindo uma afirmação central: “O termômetro que mede a democracia
de uma sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na
comunicação”. Paulo Freire, em todo projeto que elaborava, dizia que, para
se conseguir alienar uma pessoa, subordiná-la, é preciso negar a ela a
possibilidade de ser, que se manifesta em dizer a palavra, manifestar sua
opinião, expressar seu pensamento. O original, o fantástico do ser humano
é dizer a palavra, apresentar sua opinião, expressar seu pensamento. É
nisso que o ser humano se explicita, se desdobra.
Queria ligar agora essa questão à mídia. Tendo em vista o conceito
de sujeito que vimos acima, pensando na cidadania como a participação
no projeto, no pensar, e vendo a alienação como a negação disso, como
fica a situação brasileira? Temos no Brasil uma situação, falando da mídia,
desastrosa. Pela Constituição brasileira, os meios de comunicação são um

84
serviço público. Que significa isso? Que esse meio não pode ter dono:
ele é apenas uma concessão temporária: TV por quinze anos e rádio por
10 anos. Fizemos um levantamento (livro Mídia e Democracia, Edipucrs,
Porto Alegre, 2006), e aí verificamos que 97% da população não sabe
disso. Acham que a Globo é do Roberto Marinho, que o SBT é do Sílvio
Santos, etc. Não. Os comunicadores têm uma concessão temporária para
prestar um serviço público. É uma concessão que é dada, supostamente,
porque eles teriam capacidade de executar esse serviço público. Isso tem
que ficar claro. Mas não é isso que está no imaginário popular. Vocês
imaginem uma campanha para cassar a concessão da Rede Globo. Seria
pior que na Venezuela. E eles estão ficando preocupados, porque o povo
está começando a perceber que os meios de comunicação são um serviço
público, e eles têm responsabilidade social.
Agora, qual é a tarefa da mídia? Se vocês consultarem a Constituição,
artigo 221, o primeiro princípio pelo qual a mídia deve se pautar é que ela
deve ser educativa. E o que é educação? Educar não é informar. Educar é
fazer a pergunta, é colocar o problema. O que mais me espanta é ver a
comparação das notícias no Brasil e, por exemplo, na BBC de Londres. A
média de tempo de uma notícia na BBC é de seis minutos e meio, porque
lá a notícia não é veiculada como aqui. É narrado o fato, e depois vem
uma discussão sobre o fato, uma investigação, onde se vêem os prós e
os contras, escutam-se opiniões variadas. Por isso os meios devem ser um
serviço público, para investigar todos os lados, todos os interessados, ouvir
aqueles que entendem do assunto, e não para dar a resposta, mas deixar
essa “problemataização” para que o telespectador forme sua opinião.
Essa é a educação problematizadora de Paulo Freire, a educação que faz a
pergunta, e não a que dá respostas. O curioso das respostas é que elas nos
são dadas a perguntas que nunca foram feitas. É por isso que o debate é
importante. Então, esse seria o trabalho da TV, e não o de impor as notícias.
No Brasil, a notícia dura, em média, trinta segundos.
Esta semana, a revista Carta Capital trouxe uma matéria de como
a mídia tratou os candidatos ao governo de São Paulo, com dados
estatísticos, etc. Vê-se ali uma enorme distorção entre o tempo dado a
um candidato ou a outro. Além disso, as notícias negativas, ou positivas,

85
sobre um e outro têm um percentual significativamente diferente. Então,
está começando, a partir da Academia, uma discussão sobre o que e como
devem ser os meios de comunicação. Se nós não enfrentamos os meios
de comunicação, dificilmente vamos chegar a ter democracia na nossa
sociedade. Por exemplo, quando trabalhamos a questão da Classificação
Indicativa, no Ministério da Justiça, houve uma reação fortíssima, inclusive
por parte da Globo, dizendo que era a família que tinha que decidir, que
isso era censura, etc. No fundo, tudo o que fere os interesses econômicos,
é censura para esses meios.
Vou terminar com mais uma denúncia. Essa questão de liberdade de
imprensa e censura é interessante. Eles estão usando uma representação
social de outra época para mostar a situação de hoje. A questão da
liberdade de imprensa surgiu numa época em que havia jornais de pequeno
porte, há 150, 200 anos, quando a mídia começava a questionar o poder
absoluto dos governantes. Então esses governos ditatoriais perseguiam a
imprensa, fechavam os pequenos jornais, perseguiam as pessoas, etc. Foi
a partir dessa situação que se começou a discutir a questão da liberdade
de imprensa e da censura. Mas hoje não se pode falar em liberdade de
imprensa e censura contra a Globo, por exemplo. Atualmente, no Brasil,
94% dos meios de comunicação estão nas mãos de nove famílias. Os
grandes conglomerados da mídia são hoje os “novos governantes”, o
“novo poder”, conglomerados que influenciam fortemente na política e
na economia. Essa é a nossa suposta democracia, essa é a nossa suposta
participação. Eu me pergunto: que liberdade existe aí? Que participação
existe, se apenas nove famílias decidem tudo o que vai ser dito? No Rio
Grande do Sul, há uma família que detém 84% de tudo do que é lido,
ouvido e falado pelo povo gaúcho. Então, se aquela família decide que
esse assunto não vai ao ar, não vai. A mídia constrói a realidade, constrói
com valores, e esses valores são a motivação da nossa vida e pautam
nossa discussão do cotidiano. Nas pesquisas que fazemos, vemos que
cerca de 80% de tudo o que o povo fala é pautado pela mídia. E além
disso, como vimos, é ela que ajuda a construir a nossa subjetividade.
Então, falar simplesmente hoje em liberdade de imprensa e em
censura é algo problemático, porque são grandes oligopólios econômicos,

86
políticos e também os da mídia que decidem. Dessa forma, não existe
questão de censura contra eles, pelo contrário: o povo é o grande
censurado. Quando começou a campanha Quem Financia a Baixaria é
contra a Cidadania, houve um editorial enorme no jornal Zero Hora que
dizia: “Espera-se que não sejam contra a liberdade de imprensa, que não
haja falso moralismo, etc”.
Enfim, o que eu quis contar para os meus colegas foi o que entendo
por sujeito, o fato de termos um novo personagem dentro de casa hoje,
de esse sujeito ficar falando com a mídia de 4 a 9 horas por dia, esse
sujeito que se constrói continuamente também pela mídia, que cria
nossa subjetividade. Quis falar do que entendo por cidadania, que leva o
sujeito a fazer aquilo que ele tem de mais fantástico, a sua criatividade,
e o contrário disso é a alienação. O Brasil precisa de uma organização
da sociedade civil, que Lisverstone chama de “quinto poder”, que já
está se manifestando em alguns espaços, e esse espaço é um exemplo
disso. Isso é fundamental para podermos falar em democracia. E, como
dizia nosso querido Betinho, “o termômetro que mede a democracia
de uma sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos
na comunicação”.
Lembramos a todos que este evento poderá ser prolongado,
continuado, a partir da rede que estabeleceremos com os e-mails dos
expositores. Este é apenas um encontro de partida. Não se encerra
aqui. Digo isso porque, como categoria, temos uma responsabilidade
social, temos uma preocupação com o nosso exercício profissional, e é
extremamente importante que consigamos sempre essas portas, que são
ricas para todos.

87
A produção dos sujeitos:
a tensão entre cidadania e alienação

Henrique Antoun1

A mídia e a reprodução social


Pegarei a contramão dos argumentos usados por boa parte da
esquerda, não só para causar certa tensão, mas porque, ao contrário do
que Maiakovsky dizia, a alegria do futuro é preciso arrancá-la do presente.
Acredito que essa seja a nossa questão para com a mídia, sobretudo hoje:
a alegria. Entretanto, essa questão pode ganhar uma perspectiva inusitada
se nós a traçarmos com tinta diferente do senso comum de esquerda. Em
vez de pensarmos uma mídia todo poderosa nos alienando e dominando
por completo, precisamos entender a luta sem trégua travada diariamente
entre a sociedade e o capital desde que a disciplina foi destruída como
dispositivo de poder nos anos 60. A partir dessa quebra, a sociedade foi
transformada em uma fábrica social, pois as mulheres e os jovens, assim
como as casas e as escolas, tornaram-se incapazes de aceitar como sua
a tarefa da reprodução das velhas subjetividades, quebrando a renovação
da demanda das mercadorias na sociedade.
Muitos não percebem o problema que foi a renovação da demanda nos
anos 60. Se você considera o capitalismo estruturalmente, esse problema
parece totalmente irrelevante, um mero problema de conjuntura. Mas
essa conjuntura - o sistema concreto de produção que funciona em
um determinado momento com as mercadorias produzidas por ele - é
a face real da estrutura capitalista. E esse sistema só vai funcionar se
as pessoas comprarem o que ele produz. Portanto, se, da noite para o
dia, as pessoas só quiserem o que as fábricas e indústrias não estiverem

1. Professor Associado da ECO – UFRJ (1998), coordenador do Grupo de Trabalho Comunicação


e Cibercultura da COMPÓS (2007) - Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação de
Comunicação e Secretário Executivo da ABCIBER (2007) - Associação Brasileira de Pesquisadores em
Cibercultura. Pesquisador do núcleo principal do Programa de Pós-Graduação de Comunicação da
UFRJ (2001), Doutor em Comunicação da UFRJ (1993), Mestre em Filosofia da PUC-RIO (1989), Bacharel
em Design da UERJ (1977), tem um Pós-Doutorado desenvolvido na Universidade de Toronto, no
McLuhan Program in Culture and Technology (2006). Desenvolve pesquisa sobre as transformações da
mediação social e os problemas do governo democrático na cibercultura, com bolsa de produtividade
do CNPq (2007), no CIBERIDEA – Núcleo de Pesquisa em Tecnologia, Cultura e Subjetividade.

89
produzindo, o sistema sofre um sério abalo adaptativo. Para a burguesia,
isso é um pesadelo: aquilo que ela produziu não está sendo comprado;
as pessoas preferem comprar o que ela se recusou a produzir. Se o que
as pessoas estão querendo casar com modos de viver que desprezem o
trabalho assalariado e não aceitem vender suas vidas para as fábricas,
agora o pesadelo tornou-se a realidade. Os anos 60 foram assim. Da
noite para o dia, as pessoas queriam Beatles, mini-saias, homens de
cabelos longos, mulheres de cabelos curtos, rock’n roll, experiências
psicodélicas, experimentações identitárias e várias outras coisas que a
indústria não estava oferecendo. Ela continuava produzindo coisas para
alimentar o mundo dos personagens das comédias românticas estreladas
por Rock Hudson e Doris Day. Por isso, vou tomar aqui a perspectiva de
que não temos, desde então, condições de ter uma fábrica produzindo
as mercadorias sem instalarmos a fabrica social. Não vou poder ficar
esmiuçando agora o que isso significa, mas, trocando em miúdos, numa
fábrica social, o importante é a própria produção dos modos de viver,
a própria produção de subjetividade. As outras mercadorias podem ser
produzidas sem problemas nessa sociedade se a questão da reprodução
das subjetividades for contornada. O problema vira a reprodução das
condições da própria produção, ou seja, o problema de convencer as
pessoas de que elas devem produzir seus grupos, suas atitudes, seus
comportamentos e seus modos de ser da maneira como eles eram antes
de elas existirem, da maneira como a produção social do capital espera
que eles sejam. Por isso devemos partir da premissa de uma fábrica social
plenamente instalada a partir de um dispositivo disciplinar quebrado.
O dispositivo da disciplina foi destruído nos anos 60 com golpes de sexo,
drogas e rock’n roll, foi quebrado pela recusa dos jovens e das mulheres
de reproduzir a sociedade em que viviam, foi enterrado pela aliança do
trabalho com as máquinas, nos movimentos artísticos e sociais dos anos
60 em diante, tornando a produção uma eterna refém do trabalho em
vez de fazer do trabalho um refém do capital e da produção.
A introdução das máquinas inteligentes na linha de produção permite
contornar esse problema sem resolvê-lo. A sociedade precisa virar uma
fábrica social que assume diretamente o problema da reprodução
social e da renovação da demanda para enfrentar o problema. A mídia

90
televisiva e a indústria do entretenimento vão ser transformadas em
dispositivos de reprodução subjetiva – aparelhos de captura dos modos
de viver. A espetacularização radical de todas as formas de existência se
faz a partir da produção de um cogito midiático como mecanismo de
subjetivação: contemplamos a transformação de nossas próprias vidas
em mercadorias e gozamos dessa visão.
A fábrica social começa com a emergência de uma grade reprodutiva
exprimida na grade televisiva, pois a partir de então, ao invés de o recalque
reprimir os comportamentos e atitudes indesejáveis, vai-se recolocar o
desejo sob a lei das circunstâncias, dentro dos limites de uma repetição
tipológica. A disciplina moldava os comportamentos, relegando os tipos
indesejáveis à destruição e ao fracasso. Agora cada desejo pode ser
controlado se circunscrito a um nicho de manifestação, e não há desejo
que não possa ser suscitado e desenvolvido através da modulação de
suas manifestações. Ao mesmo tempo, a totalidade dos desejos oferece
suas manifestações à contemplação em todo seu amplo espectro
representado através dos produtos da indústria do entretenimento.
Essa estratégia era uma tentativa de resposta ao projeto encetado
por certas áreas da contracultura, da esfera do entretenimento, que
haviam reassumido a tarefa dos libertinos sadianos. Mas em vez da
alcova, usavam o palco, a partir do qual deviam quebrar em duas ou
três horas a educação que a disciplina procurava construir ao longo
dos anos, usando golpes de sexo, drogas e rock’n roll. Sem dúvida, esse
prazo era muito mais exíguo do que as 24 horas dadas por Sade aos
seus libertinos para destruir os 15 anos de educação de Eugênia na
alcova de Madame Saint Ange.
Para o capital, foi necessário um tempo de espera explosivo até a
produção social conseguir fazer funcionar a fábrica social. Essa explosão
foi os anos 70, e teve sérias conseqüências para as formas de governo
da sociedade, porque nem a família, nem a escola estavam mais aptas
ou eram confiáveis para reproduzir a sociedade do capital, elas haviam
se tornado incapazes de gerar a miragem do país das maravilhas de que
o capital necessita para adquirir a vida das pessoas. Essas instituições
não reproduzem mais a mente social, elas estão imersas em traições,
conflitos de geração, divórcios, evasões, drogas e outras formas de

91
recusa. Logo, essa tarefa tem de ser assumida pelo próprio Estado
através da sociedade como um todo, pois, sendo uma sociedade sob
o domínio do capital, era preciso garantir um curso confiável para a
reprodução de seu futuro.
Seja o acontecimento mais enquadrado do Planeta, seja o mais
transgressivo, tudo deve encontrar certo modo de transcorrer no seio da
sociedade para que a continuidade da exploração não se veja ameaçada.
A expressão dos desejos deve encontrar a lei e o nicho que garantem a
continuidade de sua manifestação social. Tanto faz que você queira ser
uma noivinha, uma perua ou uma destruidora de lares - um cientista,
um vagabundo ou um guerrilheiro – desde que a sociedade possa
oferecer o roteiro e as mercadorias para o desempenho desses papéis.
A questão não é mais reprimir os desejos, a questão não é impedir que
alguma coisa se manifeste como nos tempos da disciplina. A questão é
dar uma lei e um sentido social para isso, fazer com que esses desejos
se exponham sob certas condições, direções e parâmetros passíveis de
serem fabricados e controlados pelas megaempresas.
Dentro dessa montagem da fábrica social, um dos elementos
primordiais é a criação da grade televisiva como uma grade reprodutiva.
Para tanto, era necessário promover uma grande cooptação daqueles
que comandam a criação do espetáculo no seio da própria mídia
irradiativa de massa. Só assim se poderia pôr fim à distância e à diferença
existentes entre os interesses jornalísticos ou artísticos dessas mídias e
os interesses empresariais e econômicos da indústria do entretenimento.
Editores, diretores, produtores e criadores foram transformados em
sócios do empreendimento. Quando eles não eram sócios, causavam
problemas, porque seus interesses eram diferentes dos da empresa, mas,
ao serem guindados para sócios da empresa, eles começam a lucrar ou
a ter prejuízo junto com ela. A partir de então, pensam duas vezes antes
de falar ou agir de modo a fazer a empresa sofrer o risco de prejuízo.
O prejuízo e o preconceito se equivalem e passam a reger a criação do
entretenimento, agora inteiramente guiado pelo instinto do bolso.
Tudo isso, então, parecia nos encaminhar para o total domínio
do neoliberalismo, que sempre é apontado no hoje apocalíptico ou
melancólico discurso da esquerda, o que não nos deixa perceber

92
os pequenos desvios inusitados que fazem com que as coisas não
sigam esse rumo. Tomemos o exemplo do surgimento de dois grandes
empreendimentos da esfera dos sistemas operacionais da computação,
separados por apenas 10 anos um do outro em termos de sua fundação.
Se, nos anos 80, de um grupo de 18 pessoas que funda uma pequena
empresa de software, no final vai prevalecer uma só, chamada Bill Gates,
que vai se tornar o homem mais rico do mundo, nos anos 90, vai haver
um acontecimento totalmente diferente deste que foi a fundação e a
evolução da empresa Microsoft. Um rapaz chamado Linus Torvalds vai
apresentar um programa em um fórum de discussão sobre software livre,
que vai ser o início do sistema operacional Linux e da força do movimento
de programação com fonte do programa aberta para a modificação do
público (open source).
Apesar do sucesso do Linux, Torvalds não se tornou um magnata;
é uma pessoa que tem muito prestígio, mas não tem destaque no
mundo da revista Forbes, onde Bill Gates pontifica. E, entre essas duas
subjetividades, uma do início dos anos 80 e outra do início dos anos 90,
alguma coisa está acontecendo que foge da grade televisiva, que foge da
grade reprodutiva, que foge do modelo irradiativo de mídia de massa. E
isso tem nome em termos midiáticos: a internet. Está ocorrendo a criação
da comunicação distribuída e das interfaces de comunicação coletiva
interativa. Nasce a possibilidade de se ter uma vida construída a partir
da entrada no uso desses meios. E, quando digo isso, digo também que,
a partir daí, começa-se a ter chances de constituir modos próprios de
viver e de resistir, ali onde só parecia existir dados, desertos e decepções,
ali onde é preciso mudar seu modo de se expressar, entrando sempre em
relações anônimas e pouco confiáveis dentro de grupos sem líder.
Esses novos serviços de comunicação fazem com que todo esse
agrupamento flutuante se torne, de algum modo, utilitário, operável,
funcional. Os grupos de discussão geram comunidades virtuais criadoras
de valores subjetivos. Esse meio possibilita, de repente, o aparecimento
de alguém como Linus Torvalds, que não deseja nem pensa como o Bill
Gates, que, em vez de tentar ganhar bilhões e fumar charutos na capa
da revista Forbes, acha muito melhor ficar discutindo com todo mundo
como seu programa vai ser desenvolvido e criar um movimento que vai

93
gerar algumas das grandes empresas que existem hoje, explorando esse
sistema aberto, o Linux, através de seus vários sabores diferentes.
Esse passo adiante que foi dado ao longo dos anos 80 com a criação
dos computadores pessoais e da rede interativa de comunicação
distribuída foi decisivo para luta do trabalho por autonomia em sua
relação com o capital. O trabalho, até então - até entrar em cena o
intelecto geral na infra-estrutura social - era toda essa estupidez
fatigante assumida depois pela automação, que vai destruir os velhos
empregos da disciplina e as velhas atividades disciplinares. Por um lado,
esses novos meios liberam uma ampla capacidade de trabalho para
uma atividade própria; por outro lado, eles instalam na infra-estrutura
social um intelecto geral que permite que o trabalho se auto-organize.
O sistema operacional Linux é um vasto somatório de empresas
diferenciadas, cada uma com suas próprias versões e suas próprias
maneiras de compor o sistema. Isso resulta em produtos muito mais
simpáticos aos usuários do que os códigos proprietários da Microsoft
ou de qualquer outra firma tradicional.
O sucesso desse movimento e de suas empresas significa que o
trabalho se tornou capaz de se organizar sem estar submetido ao
comando do capital. Isso não significa que o capital deve desaparecer
ou deixar de existir. Honestamente falando, se o capital deixasse de
existir, nós teríamos que retroceder de modo terrível. O capital só é
problema quando ele é a força dominante das relações de trabalho,
quando ele submete o trabalho. Mas certamente seria uma idiotice
acabar com a produção para o comércio, acabar com o capital, em
nome sabe-se lá de quê. Essa grande modernidade de um mundo
descapitalizado nos parece designar muito mais algo anterior às
próprias tribos. Na minha perspectiva, não há problema nisso, seja
no capital, seja no comércio. A questão é: quem comanda a relação?
Quem é autônomo na relação das forças entre o capital e o trabalho?
Quem dita as regras? Quem dá o rumo?
E o problema fábrica social? A partir do fim da disciplina no final
dos anos 80, com a queda dos regimes comunistas – os últimos redutos
da sociedade disciplinar – vai começar outra guerra: a guerra da
produção, reprodução ou transformação da sociedade. Nessa guerra -

94
cuja principal arma é a informação – nos deparamos com diferentes
modos de vida que possuem um florescimento fantástico no mundo.
Esse processo não parece poder ser detido neste momento. Ele se faz
através dessa profusão de investimentos em várias mídias alternativas,
em vários modos alternativos de se comunicar e viver. Essas variadas
formas alternativas de expressão são capitaneadas pela Internet, pelo
fato de a internet fazer com que se torne cada vez mais complicado e
difícil paralisar alguma iniciativa. Isso permite que outros desejos sejam
suscitados, outros projetos aconteçam e outras maneiras de viver possam
se efetuar na sociedade.
Dizem que a Renascença e a Modernidade começam quando Galileu
Galilei, durante uma missa, olhando para o teto da igreja e vendo o
castiçal balançar, teve a idéia da inércia. Poucos percebem que, para
isso acontecer, era necessário que já não houvesse mais importância
o discurso religioso ou a questão religiosa no seio da subjetividade
de um homem daquele tempo. Galileu só pode pensar em outra coisa
durante uma missa quando Deus não é mais absoluto, pois quando ele
o é, só pensamos nele durante a missa. O capital vai sofrer essa mesma
queda e rebaixamento ao longo dos anos 80, nessa passagem de uma
subjetividade Bill Gates para uma Linus Torvalds.
Eu me espantei muito quando cheguei ao Canadá e encontrei o que
achava ter deixado no Brasil. No Brasil, havia começado o noticiário do
escândalo da corrupção no governo que se unia ao endêmico noticiário
da violência incontrolável. Qual não foi mnha surpresa ao chegar a
Toronto, no Canadá - um dos lugares mais pacatos do mundo, onde
alguém pode deixar a porta aberta sem se preocupar em fechá-la -, e
encontrar a mesma pauta dominando os jornais: corrupção generalizada
no governo e violência incontrolável na sociedade. Lendo os jornais ou
vendo o noticiário, descobríamos que tudo estava terrível e o mundo
estava acabando. A pauta geral no Brasil ou no Canadá era a mesma.
Ela fazia parte da guerra de informação empreendida pelo governo
dos Estados Unidos em conluio com as elites conservadoras locais para
derrubar os governos indesejáveis.
Mas, no que diz respeito ao domínio absoluto dessa mídia irradiativa
de massa - e ela domina absoluta até o fim dos 80 -, embora não

95
seja mais absoluta, ela ainda tem uma grande força de influência. Ela
deixou de ser absoluta, porém, porque tem de enfrentar a internet. Ela
precisa dividir seu poder proprietário de massas com essa rede, que
cria novos serviços de comunicação em seu meio. Isso faz com que a
situação hoje mude de figura, em comparação com o poder da mídia
de massas dos anos 80.
Por exemplo, hoje, de um modo bastante difamador e talvez até
lisonjeiro, as grandes redes privadas de TV, como a Globo, tentam nos
convencer de que copiar uma programação ou um disco é um ato de
pirataria. Essa criminalização da cópia se dirige muito mais aos nossos
filhos ou netos. Eles tentam produzir medo e vergonha para a nova
geração com relação ao ato de cópia. Tentam deter a disseminação do
hábito de cópia e do sentimento de propriedade daquele que compra
um produto informacional.
Mas esses grupos da indústria proprietária de massa esbarram em
alguns sérios problemas. O primeiro é histórico e lógico. Os piratas eram
pessoas muito violentas: roubavam, matavam, estupravam e afundavam
navios, e não podem ser comparados ao idiota que copia um vinil. De
certa forma, os piratas estão sendo difamados quando os comparamos
ao pacífico copiador de vinil. O segundo é o confronto entre os diferentes
modelos de negócio que dividem o empresariado, pois, ao mesmo tempo
em que se berra contra qualquer ato de cópia como um terrível crime,
encontramos todos os instrumentos e incentivos para fazer isso em
todas as lojas. As lojas vendem, por exemplo, unidades para se copiar 20
discos ao mesmo tempo.
Então, estamos vivendo uma época em que não só não há hegemonia
sobre a reprodução social, não só não há hegemonia sobre o modo de
manter a continuidade da sociedade como também não há hegemonia
sobre a produção dos negócios, sobre quais deveriam ser os modos de
negociar ou sobre o que deve ou não ser negociado. Há uma luta no seio
do capital entre os jovens empresários ponto com, os empreendedores
dos negócios na web e os velhos dinossauros da indústria de massa,
proprietários de indústrias de direitos de cópia e propriedades intelectuais.
Temos hoje diferentes concepções do que pode ou não ser negociado, do
que deve ser o modelo de funcionamento do mundo dos negócios.

96
A fábrica social transforma as pessoas porque abre esse espaço de
disputa tanto por aquilo que é desejável quanto por aquilo que pode ser
apresentado como alternativa para a sociedade. Experimentamos uma
grande dilatação do universo do provável através do contato com o que
pode ou não ser aceito socialmente.
Uma das principais conseqüências da entrada em cena da automação
foi a liberação de um vasto tempo de trabalho que se tornou disponível
– seja de forma derrisória, seja de forma mais nobre – para a atividade.
O fato é que existe esse vasto tempo disponível, e, como disse Steve Jobs,
o problema da propriedade intelectual e do direito de cópia é que existe
uma quantidade enorme de pessoas inteligentes que podem usar esse
tempo. Esse é o problema da fábrica social desejada pelo capital, esse é
o problema da reprodução social capitalista, quando não se pode mais
amarrar disciplinarmente o trabalho e aliená-lo completamente em um
esforço brutal cujo limite é a fadiga.
Por um lado, temos os programadores sendo pagos para criar para
as empresas os algoritmos e os códigos de encriptação inventados
para proteger a propriedade intelectual. Entretanto, basta um garoto
apelidado de Muslix64 ficar “invocado” porque não conseguiu ver um
filme que comprou em seu XBOX para tudo desandar em um incontrolável
movimento de ruptura. Ele se reúne com um bando de hackers em um
fórum de discussão para avisar que vai quebrar a segurança do disco.
Um mês depois, ele publica no fórum do DOOM 9 o resultado de seu
bem sucedido empreendimento. Os hackers resolvem trabalhar juntos
para descobrir o número primo e gerar um programa criador de chaves
para quebrar a proteção de todos os discos. Ao fim de mais três meses
de trabalho, o programa está pronto: eles descobriram o número primo
e criaram o gerador de chaves. Com isso, a proteção dos discos de alta
definição do sistema Blu-Ray ou do HD-DVD foi destruída.
Depois de quebrar o código, vem a guerra divulgação do feito que
vai encontrar uma ampla receptividade na internet - através dos blogs,
fóruns e sites de relacionamento. A empresa criada para proteger
a chave de proteção entra em ação usando mandatos judiciais que
ameaçam os donos dos sites e os provedores com processos milionários
se a informação não for tirada da rede. Estes, apavorados, começam a

97
fechar, a expulsar e a banir. Mas isso de nada adianta. As moças tatuam o
número no umbigo, camisetas estampam o número proibido, um cantor
grava o número como uma canção e põe no Youtube.
Um episódio importante dessa guerra foi a revolta do Digg - uma
mídia para a edição coletiva das notícias dos blogs feitas pelos próprios
usuários. Se alguém encontrasse alguma coisa interessante na internet,
punha no Digg, e a votação fazia com que aquilo ganhasse mais ou
menos destaque. As próprias pessoas que freqüentavam o site eram
chamadas de consumidoras, usuárias e sócias do empreendimento, bem
dentro do espírito colaborativo da web 2.0. Mas quando um dos donos
da empresa recebeu a cartinha, resolveu não arriscar o seu negócio – sua
chance de ser o proprietário de uma empresa estimada em 10 bilhões de
dólares – e exerceu seu direito de propriedade, apagando a informação
e banindo os que insistiam em sua publicação. Ele se justificava dizendo
que a informação podia destruir a empresa. Mas aí começou uma
guerra: os sócios usaram seu poder de edição e criaram uma bomba
informática que transformava qualquer notícia no número proibido. Ao
fim do dia, o outro dono da empresa comprou a briga dos usuários e
publicou o número proibido no blog da empresa, junto a uma carta de
tons heróicos.
Então, hoje, a fábrica social significa essa luta indistinta que se
manifesta através das subjetividades. Em um curso dado em 1982,
Foucault explica porque para ele a subjetividade é muito mais poderosa
do que o diagrama de poder vigente e está para além do poder de
governar. Quando a moral social vigente é quebrada, os limites do poder
são iguais aos limites da subjetividade. Nessas condições, a subjetividade
está para além do poder, pois é ela a fonte e a força de qualquer poder,
apenas inibe ou autoriza a ação da população. A fábrica social tornou-
se a guerra das subjetividades em luta para promover as transformações
sociais de nosso tempo e as redes interativas de comunicação distribuídas
são as armas das populações nessa guerra.

98
Mídia e produções de subjetividades:
questões da cultura

Coordenação
José Novaes

99
Mídia e produções de subjetividades:
questões da cultura

Luiz Alberto Sarz

O bárbaro frente ao espelho


Provocações para um diálogo sobre a representação cultural do outro
nos meios de comunicação

Para EUS MALUF, o filósofo das estranhezas – professor dos


Institutos de Psicologia da UFRJ e de Arte e Comunicação
Social da UFF –, Robson Anchiamé – criador e editor da revista
literária Letra Livre – e o TEATRO POPULAR DA UNIÃO E OLHO
VIVO, que exercem forte influência sobre minha práxis.

Antes de começar a abordar o tema, e de certa maneira,já abordando,


quero lembrar uma questão e algumas pessoas. Em primeiro lugar,
lembrar que hoje, e isso está relacionado ao nosso debate, é o Dia
Internacional da Luta contra a Tortura, que é uma questão cultural. Em
segundo lugar, quero dizer que, para mim, esta é a casa do professor UED
MALUF, o filósofo da Teoria das Estranhezas, uma das pessoas cujas idéias
mais influência têm sobre minha práxis. Acho que esses dois pontos de
lembrança são fundamentais.
Minha apresentação será um tanto quanto abstrata, Não vim aqui
para captar o cotidiano, mas quero que vocês, quando estiverem ouvindo,
pensem no que estou dizendo, em aspectos como este: a primeira página
do jornal O Globo de hoje apresenta o inspetor Trovão, um cavalheiro que
se veste com um uniforme próprio, da polícia, fuma charuto enquanto
combate, foi formado na Swat e tem o sonho de ir ao Iraque, lutar contra
os iraquianos. É o novo Rambo brasileiro.
Também, enquanto eu estiver falando, quero que vocês pensem nos cinco
ou seis rapazes da Barra da Tijuca; investigações avançadas, fora aquelas
que a polícia anunciou, revelam que eles fazem parte de um grupo que
habitualmente espanca prostitutas, o que é um fato cultural, assim como o
espancamento de homossexuais e o racismo são questões culturais.

101
Não falarei de mídia. Não sei o que é mídia e nem percebo o que se
quer com o emprego do termo. É uma corruptela com sotaque anglo-
saxão da bonita e expressiva palavra latina media. O neologismo, além
do mais, reduz ao singular o que era plural em Latim e Inglês. Media são
os meios. É o plural. O singular é medium, mas não fica bem falar em
médium, porque médium recebe espíritos. Acontece, no entanto, que
o medium ao qual nos referimos também recebe espíritos. Cifra-se e
oculta-se a diversidade em troca de uma unicidade aparente.
Mas, não se assustem, não sou um estelionatário intelectual.
Embora reconhecidamente ignorante, considero-me apto a tratar das
coisas “enfiadas no saco” das media: comunicação social, comunicação
de massa, - comunicação interpessoal (seja presencial ou à distância),
comunicação virtual, meios eletrônicos, impressos, audiovisuais, veículos,
suportes e algo mais, bem como de suas relações com realidade. ­
Outro componente sensível em nossa conversa é o termo cultura. Até eu
penso saber o que é; porém, em discussões e debates, tenho quase sempre a
impressão de não estarmos nos entendendo, de que falamos de coisas sutil
ou fundamentalmente diferentes, mas com o mesmo nome.
Então, vou tentar esclarecer de onde parto para questionar os
aspectos culturais das relações entre a comunicação social e a produção
de subjetividades.
Recorro, pois, ao livro A Verdade Seduzida, de Muniz Sodré, para
considerar CULTURA COMO O MODO DE RELACIONAMENTO HUMANO
COM SEU REAL.
Sou antiquado. Amo as palavras, suas sonoridades, seus caráteres,
sentidos, significados e emoções. Coisas que fizeram diferentes autores,
entre eles os portugueses Fernando Pessoa, Jorge de Sena e o francês
Saint John Perse, afirmarem, de maneiras diversas, que nossa pátria é
nossa língua. Por isso, lembro, só para organizar meus pensamentos, sem
querer ensinar nada a ninguém, as raízes dos três termos fundamentais
do que pretendo venha a ser um diálogo.
Comunicação tem origem em munu (ofício público), que vem de
mei­(permutar). Ora, estaríamos falando, então, aqui, de uma permuta
pública de relacionamentos dos homens com as suas realidades,
através de diferentes meios ou media.

102
Mas é importante citar outros membros dessa numerosa família
(um verdadeiro clã). Destaco: COMUM, COMUNIDADE, COMUNHÃO,
COMUNALlSMO e até REMUNERAÇÃO. Esses e outros parentes de
comunicação estarão muito presentes por aqui, durante estes dias, com
todos os seus sentidos e tonalidades afetivas.
Outra palavra que está no centro da questão é subjetividade, filha de
uma família etimológica que registra 1.090 membros (fora outros que
são seus frutos, como sujeito). Curiosamente, o patriarca romano dessa
família, SUB, significava sobre, mas também no fundo de.
É interessante observar que esse sujeito do qual estamos falando,
nascido no ramo familiar de sujeitar, é o sujeitado, o submisso, que
somente se torna o ser que conhece, o indivíduo determinado, capaz
de ações, por intervenção dos filósofos.
Ou seja, estou enveredando pelo caminho de uma permuta pública de
relacionamentos dos homens com suas realidades, que produz modificações
de fundo em indivíduos submissos. Tais modificações contribuem para que
esses homens se tornem indivíduos que conhecem, capazes de ações, ou seja,
sujeitos no sentido filosófico. Mas eles continuam no seio da família lingüística,
bem próximos da raiz, passando de sob para sobre.
Cultura vem do verbo colere: habitar, cultivar. Coerente com o
pensamento que venho desenvolvendo, reconheço que esse sujeito,
mesmo que submisso, cultiva um relacionamento com a realidade
que o forma e transforma, e que a comunicação é parte essencial
nesse processo.
A questão não é o evento cultural; esse ponto específico no
espaço­-tempo, em geral subalterno, conjuntural, descartável; menos
ainda a manifestação ou o produto artísticos. Aliás, já quase não
se fala em obras, retirando-se a grandeza estética e travestindo de
mercadoria o resultado do fazer artístico ou intelectual. Reduz-se
a Arte ao essencialmente perecível, ao consumível, como conceito,
supondo ou querendo fazer supor que esses fragmentos do nada
não se entranham em nossos mosaicos corpos/mentes e destroem
nossas identidades. Finge-se que não atuam para manter o sujeito
assujeitado, abduzindo-o de seu rumo à condição de indivíduo que
conhece e é capaz de agir.

103
Jorge de Sena foi um grande poeta português, professor, que fugiu,
exilou-se de duas ditaduras, a salazarista, quando veio para o Brasil, no
final de 1959, e depois da ditadura brasileira, quando, em 1969, foi para
os Estados Unidos. E lá hoje existe um dos mais importantes centros de
estudos de idiomas e literatura do mundo, que tem especial dedicação à
literatura e à 1íngua portuguesa, o Instituto Jorge de Sena, que foi por
ele fundado na Universidade de Santa Bárbara. Poeta libertário, ele tem
um poema provavelmente escrito ainda no Brasil, porque, no começo,
fala em ma possível ida aos Estados Unidos. O poema se chama Em
Creta com o Minotauro, e diz assim:

Nascido em Portugal, de pais portugueses,


e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.

Colecionarei nacionalidades como camisas se despem,


se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria


de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha

II
O Minotauro compreender-me-á
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Parsifae, foi irmão de um verso de Racine,

104
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da “langue”.
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de
que se lixou.

Teseu, o herói e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,


riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á tomará café comigo,
enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.

III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras
informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.

IV
Com pátrias nos compram e nos vendem à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver
vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,

105
aromático e bemforte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,

verei escorrer-lhe do queixo de boi


até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e. quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos. imensamente
patrióticos.

V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei - de tomar em paz o meu café.

E foi exatamente a cultura grega, cujos heróis o poeta tão bem


descreveu, que nominou os bárbaros e, em conseqüência, a barbárie. A
expressão bárbaro (selvagem, rude), aplicava-se ao OUTRO, ao que não
falava grego, ao que não tinha seus hábitos e costumes. Culturas mais
antigas, refinadas e complexas, como as do Egito, da Mesopotâmia,
da Creta minóica, que se espalhavam pelas costas do Mediterrâneo e
pelo crescente fértil fossem camíticas, semíticas ou indo-européias,
eram denominadas bárbaras aqueles bandos tardios de corsários indo-
europeus que tudo arrasaram e destruíram, até que, depois de séculos
de saques e ocupação, construíram um extenso império, unificados pelo
conquistador macedônio, Alexandre, essencialmente um bárbaro, mas
que tivera como preceptor Aristóteles, referência principal “de toda essa
merda douta que nos cobre há séculos”, no dizer de Jorge de Sena.
A parceria entre do pai de Alexandre, Filipe II, com Aristóteles
resultou na “globalização” e “inclusão” das elites macedônias no

106
“Primeiro Mundo” de então. A conseqüência imediata foi a extensão
desses “benefícios” a uma ampla região, com a submissão de numerosas
culturas, imemoriais, e a implantação do modelo helênico, ao preço da
destruição dos registros de sua história e da ereção de monumentos e
padrões de comportamento alheios.
O bárbaro Alexandre foi o instrumento da expansão da cultura grega em
direção à África e à Ásia. Os romanos, em parte descendentes de exilados
troianos, capitaneados por Enéas, ampliaram sua influência a quase toda
a Europa e ao norte da África, já transformada em greco-romana. De lá,
celtas, visigodos, mouros, semitas, bascos e germânicos, entre outros, a
trouxeram para as Américas, ainda mais rarefeita e empobrecida.
Os antigos bárbaros, já tornados “civilizadores”, criaram novos bárbaros
ao se defrontarem com os outros. Essa história todos nós conhecemos. É
a nossa. Só que costumamos olhá-la e propagá-la do ponto de vista do
“civilizador”, o bárbaro europeu incluído na cultura greco-romana, que
se torna cada vez mais anglo-saxã, disfarçada de “global”, “mundial”,
“atual”, “contemporânea”.
Só que, agora, os bárbaros somos nós, sobretudo os descendentes
dos “civilizadores” europeus, dos habitantes originais do Continente e
dos escravos arrancados da África. Somos nós que estamos recebendo
espelhinhos eletrônicos trazidos pelos novos “civilizadores” e tentando
neles ver o nosso próprio reflexo. Mas, como nosso eu lá não está,
tratamos de convencer-nos de que é a nossa imagem que vemos – com
a ajuda prestimosa dos mais doutos e dos que têm o controle dos meios
de comunicação, sejam ou não seus donos.
Quem realiza e programa as obras artísticas e comunicacionais que
circulam majoritariamente em nossos países cresceu e se formou em uma
cultura etnocêntrica. E as políticas culturais e educacionais desenvolvidas
pelo atual governo, que teria vindo para mudar, continuam a mirar-se,
declaradamente, no espelho europeu e na visão de uma Europa, ou de
um Brasil, centralizado, hegemônico, homogêneo, de Primeiro Mundo.
As alternativas das esquerdas, governistas ou não, sofrem, em geral,
do mesmo mal: são ALTERNATIVAS DE PODER e assumem como positivo
um discurso acrítico em relação à INCLUSÃO, quer dizer, mantêm a visão
de que é necessário tomar o poder do Estado e nele incluir os marginais,

107
domesticando-os, adaptando-os a essa cultura que aí está há séculos
(não vou repetir, mais uma vez, o verso de Jorge de Sena), em lugar de
criar condições para que cada sujeitado possa se tornar sujeito filosófico
por meio do desenvolvimento autônomo do seu relacionamento com o
real. Simplificando: que cada um possa desenvolver sua própria cultura.
Ratificam o conceito de coletividade como meio salvador, salvacionista.
Faço uma ressalva: há segmentos libertários, principalmente
anarquistas, que têm buscado construir comunidades solidárias e criar
e difundir obras que contribuam para alterar radicalmente o quadro
em que vivemos, formado por sociedades e Estados cada vez mais
controladores e policiais, que aceitam e utilizam, em seu benefício, nossa
marcha irreversível para distintas transculturalidades.
As influências de culturas diversas são essenciais aos avanços de um povo,
de uma comunidade. Mas influências não devem ser confundidas com a
substituição de identidades. A história humana, e não apenas ela, tem mostrado
isso ricamente. Somos capazes de digerir e recriar o que incorporamos num
processo transcultural livre e insubmisso, mas, para isso, é fundamental que a
diversidade tenha espaço e tempo para manifestar-se livremente.
Na estratégia dominante, os meios de comunicação são essenciais
para garantir a hegemonia eurocêntrica (na versão anglo-saxã dos
EUA), embora aparentem manifestar e expressar o multiculturalismo das
populações incluídas. O enraizamento da dominação econômica não é
possível sem a abdução de identidades e a dominação cultural, verdade
conhecida e empregada há milênios. Nunca, no entanto, meios técnicos e
tecnológicos, frutos do desenvolvimento científico, foram tão propícios a
essa estratégia com tal economia de recursos e garantia de controle sobre
sua aplicação. Busca-se, em todos os campos, substituir a troca presencial
de saberes e emoções – transmissora e produtora de cultura e educação
autônomas – por simulacros limitados pelas próprias características dos
veículos e a linguagem dos meios. A relação interpessoal e local, essencial
ao ato cultural autônomo, vê-se restrita a pequenos grupos, sem espaço
nos eventos de mercado, medida do estético e da sabedoria para esse
“admirável mundo novo”, em que vale tudo e nem tudo vale.¹

1. Cf. Feyerabend. Contra o método: esboço de uma teoria anárquica da teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 9 (“O único principio que não inibe
o progresso é: tudo vale.”) e páginas 27, 34, 44, 290, 302 e 335.

108
Mídia e produções de subjetividades:
questões da cultura

Fernanda Bruno
Não sou uma especialista em mídia. Minha formação é híbrida, mas
passa, de fato, pela interseção entre a mídia e a Psicologia. Então, para
mim, é sempre agradável e prazeroso ver esses dois campos interagirem.
Já se falou aqui de cultura e Ocidente, de cultura e loucura. Focarei
minha fala mais na cultura e na mídia para, então, refletirmos sobre
a subjetividade contemporânea Também centralizarei a cultura
contemporânea e os formatos midiáticos mais atuais, tanto o que se
denomina cultura de massa, cuja rainha está na televisão, quanto o
âmbito das práticas que se dão no campo da internet, como weblogs,
fotologs, webcams, entre outros.
Decidi centralizar essa exposição mais na questão dos reality
Shows devido ao seu caráter absolutamente sintomático em relação
à cultura contemporânea e ao estado de coisas que dizem respeito
tanto à mídia quanto à subjetividade, e também para mostrar que,
de alguma maneira, o formato reality show aparece, e seu sentido
no cenário midiático deriva muito de certo diálogo, de certa tensão
com as novas mídias que estão surgindo e com as novas práticas que
surgirão no campo da internet.
Quero, ainda, fazer outra observação de contexto: trabalharemos
aqui com objetos infames, nada nobres, com práticas que vemos tanto
no âmbito da internet quanto do reality show, que apresentam vidas,
relatos, imagens e narrativas que são, por vezes, constrangedoras
para a nossa inteligência, para o que supomos seja mais elevado do
ponto de vista cultural, mas, ao mesmo tempo, acredito que esses
fenômenos midiáticos contêm uma ambigüidade que vale a pena
ser explorada. Tentarei manter a ambigüidade desses objetos em
minha fala.
Essa fala inicial foi apenas para situar o foco de minha exposição;
quero começar dizendo a vocês que o primeiro ponto a ressaltar tem a
ver com determinado momento da relação entre mídia e subjetividade

109
como é vivida hoje, que acho ser um momento particular de presença
de subjetividade na mídia. Esse momento particular encontra um de
seus indícios mais expressivos na crescente exposição de uma chamada
intimidade, de uma chamada vida privada ou privacidade no âmbito
dos meios de comunicação. E, no interior dessas práticas, encontramos
certa proliferação de narrativas autobiográficas, tanto na mídia de massa
(televisão) quanto no mercado editorial, no cinema documentário,
na internet, através de blogs confessionais, de fotologs, que colocam
imagens e cenas da vida cotidiana e da vida “privada”. Essa presença de
testemunhos, confissões, representações de cunho íntimo e pessoal na
cena midiática, essa ‘profusão de vidas quaisquer, vidas banais que não
têm nada de extraordinário, que não teriam nada de muito relevante
a contar e que expõem seus pequenos dramas pessoais, suas querelas
conjugais, suas mazelas psíquicas nesse universo, é algo que, no mínimo,
nos inquieta, porque todo esse registro, principalmente para quem vem
da Psicologia, que sabe bem que todo esse repertório da intimidade estava
desde a sua fundação, digamos assim, seu coroamento na modernidade,
restrito à esfera privada, à do segredo, a esfera da casa, dos consultórios
clínicos e psicanalíticos e agora migra para esse espaço midiático de uma
forma particular, porque as pessoas o fazem buscando uma autenticidade,
um reconhecimento, uma validade, uma dignidade, e supostamente esses
ambientes seriam privilegiados para garantir isso tudo.
Então, uma primeira característica a ressaltar nesse fenômeno
surpreendente, pois não foi previsto, foi algo que fez com que
repentinamente nos deparássemos com diários íntimos na internet,
com pessoas colocando câmeras em seu quarto, deixando-as
ligadas 24 h por dia a fim de mostrar todo o seu cotidiano. Em um
segundo momento, esse fenômeno acabou sendo apropriado por
uma linguagem televisiva, e surgiram e se proliferaram cada vez
mais esses novos formatos que têm como destaque o reality show.
Essas práticas, de alguma maneira, funcionam como uma espécie
de tecnologias do eu, que expressam não só certos modelos de
gestão da subjetividade mas também procedimentos (estou citando
Foucault) prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-

110
la ou transformá-la em função de certo número de fins, e isso graças
às relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si
por si. É claro que, nessa última parte, Foucault pensa na cultura
grega, a seguir, no desdobramento feito pelo cristianismo no âmbito
da relação consigo mesmo, e na modernidade, nas práticas que as
ciências humanas, dentre elas a Psicologia, instauram como técnicas
de si, técnicas de conhecimento e de transformação de si. É claro que,
atualmente, essa relação consigo mesmo que estou explorando nesse
âmbito midiático, especificamente, passa menos por uma relação de
conhecimento, menos por uma relação de domínio e mais por uma
relação de exposição, de exteriorização, de tomar-se visível ao outro.
É um trabalho sobre si mesmo que investe prioritariamente nesse
movimento de se, fazer visível ao outro, de ganhar visibilidade.
Na verdade, quero abordar a questão do reality show porque
esse é um termo que contém certa ambigüidade, pois é, ao mesmo
tempo, um show, um espetáculo, mas é um espetáculo que pretende
fazer ver ou instaurar o real, uma realidade. Então, é um show de
realidade. Nisso já há uma ambigüidade, uma tensão interessante a
ser trabalhada, na medida em que a cultura estabelece, com muita
clareza, contrariando toda uma tradição moderna (para dizer o
mínimo, para recuar o mínimo) o que é da ordem de uma realidade,
de uma representação mais fiel, mais documental de uma realidade,
e o que seria da ordem do espetáculo, da ficção. O reality show faz
esses dois domínios, esses dois formatos, conviverem, é apenas uma
linguagem narrativa, um modelo estético, mas também um modo
de a subjetividade se produzir, ser requisitada no âmbito dessas
linguagens, dessas narrativas e dessa estética.
Uma primeira característica desse formato ambíguo é a idéia
de que o signo de realidade, o que estará produzindo o efeito de
real nos reality shows, é a exposição dessa suposta intimidade, é a
possibilidade de uma observação total de uma intimidade. Então,
a intimidade é promovida, anunciada como signo de realidade e
de autenticidade daquela experiência, daquele universo, e essa
intimidade, curiosamente, é tão mais autêntica quanto mais puder

111
ser flagrada, observada, vista, colocada “nua” diante das câmeras. Há
dispositivos, então, de vigilância, como os usados pelo Big Brother, por
exemplo, que têm um dispositivo panóptico que supõe uma visão total
dos seus personagens, das pessoas que estão participando do jogo. A
idéia ali é de que a situação é real porque, primeiro, as pessoas estão
efetivamente participando daquela experiência. Há experiência, e,
ainda que as pessoas estejam encenando, atuando, jogando, são elas
que ali estão. Obviamente, há uma mistura imensa entre personagem
e pessoa, com um embaralhamento, mas são as próprias pessoas que
vivem aquela experiência, e essa experiência visa a desencadear a
exposição de uma intimidade que pode ser flagrada por qualquer um.
Então, isso funciona como signo de realidade.
Passando para a segunda característica que quero ressaltar, o
problema é que essa intimidade flagrada (como diz o Pedro Bial, vamos
exercer nosso direito de espiar a intimidade) é uma intimidade encenada,
e ela parece não ser estranha a um determinado olhar que trabalhava
com categorias, em que se fazia uma distinção entre o que é da ordem
da encenação, da ficção, do artifício, da aparência, e o que poderia ser
da ordem de uma verdade, de uma essência de um ser que não convive
com esse universo outro do artifício da aparência. Mas, no universo
do reality show, esses aspectos convivem tranqüilamente. Então, esse
modelo coloca em jogo não uma matriz representacional, ou seja, a
realidade ali dada, ali produzida, não uma realidade representada no
sentido de que não é um o fiel de uma realidade que pré-existe. A idéia de
representação tem a ver com a suposição de que você tem um real dado
e ele é reapresentado em outro universo, em outro formato. Então, é uma
imagem como representação, e existe aí um modelo representacional,
mas há a suposição de que o referente exista. Ali não há referente. É uma
realidade que está sendo engendrada, fabricada, produzida e decretada
pelo próprio dispositivo do jogo. Não há um fato anterior àquela realidade.
Então, ela não segue um modelo representacional, e as pessoas não
estão ali expressando o que são fora dali, quem elas verdadeiramente
são. Elas estão atuando, encenando uma determinada personalidade,
uma determinada autenticidade, um determinado caráter, que só faz

112
sentido naquele universo, tanto que percebemos que não há referência
alguma ao que se passa fora da casa. Não há exterioridade referida no
discurso dos reality shows, como também percebemos que quase não há
exterioridade referida nos weblogs, fotogs e outros blogs, mesmo quando
falam de fatos que ocorreram. Então, não é nem modelo de representação
e nem modelo da ficção, que trabalha com critérios de identificação
ligados à verossimilhança; também não é uma ficção, porque pretende
ser um show de realidade. Então, encena-se ali um modelo, constrói-se
um tipo de linguagem que trabalha com o embaralhamento entre o real
e o ficcional e com a idéia de auto-encenação. As pessoas são indivíduos
que encenam a si próprios, e isso supõe uma mudança muito grande
no estatuto dessa realidade e também no estatuto do espetáculo; no
estatuto da realidade porque, como eu disse, essa auto-encenação e
essa realidade só valem naquele universo. É real não porque aquilo é
verdadeiro, porque aquilo representa algo fora dali, mas é real porque é
ali fabricado, e sua validade é.dada naquele espaço.
Pensando nos modelos de identificação ou no lugar de expectador
que está envolvido, percebemos que existe uma mudança muito
significativa, pois, se compararmos o reality show com a mídia de
massa, percebemos o modelo da chamada televisão de variedades,
que era aquela que apresentava um novo mundo, um universo variado
de entretenimento e convidava à evasão, à migração para um outro
mundo. O que acontece no formato do reality show é que o expectador
é convidado a agir, a intervir, a participar, e, preferencialmente, a migrar
para o outro lado da tela, tornando-se ele mesmo ator de sua própria
vida, de seu próprio cotidiano. Os personagens dos reality shows
encarnam essa reversibilidade entre ser ator e expectador, no sentido
de que qualquer um, independentemente de suas habilidades, de suas
capacidades, de seus méritos, de seus talentos, podem estar numa
posição ou noutra. É claro que existe uma seleção, principalmente
no caso do Big Brother, que é absolutamente pensada, articulada,
com personagens escolhidos criteriosamente, mas, ao mesmo tempo,
existe um discurso, uma retórica que instaura uma espécie de novo
imaginário igualitário no sentido de que todos podem ser visíveis

113
e todos podem estar naquele universo. Pensamos também nos ta/k
shows, programas de auditório e outros, em que inúmeras pessoas,
independentemente de suas características mais ou menos especiais,
vão ali relatar dados de seu cotidiano, dados de sua vida íntima.
Então, a idéia é que a televisão investe cada vez mais no indivíduo
comum, no homem ordinário, nas vidas quaisquer que não têm
nada de especial e são convidadas a migrar para a tela. E o reality
show encarna esse formato. É claro que, como eu já disse, isso não é
completamente verdadeiro do ponto de vista de sua efetividade, mas
existe esse discurso.
Deriva daí um deslocamento: a idéia de que há noções (que
antes estavam nos fundamentos, digamos assim, da subjetividade,
de uma dada realidade, de uma determinada experiência), como
verdade, intimidade, real, que irão migrar desse território, daquilo
que não se revela, daquilo que não se mostra, que estão no fundo
ou no fundamento das coisas e do que há, e que passam a habitar
a superfície das imagens e dos efeitos. Então, hoje, o que se percebe
muito mais nesses domínios é um efeito de realidade, um efeito de
real, um efeito de verdade, um efeito de intimidade, notando que
essas categorias que antes estavam atreladas à interioridade, ao
segredo, àquilo que não se mostrava e não se revelava facilmente,
migram para a superfície da imagem e passam a ser experimentadas
e produzidas como efeito. Coloco, de antemão, que não quero
afirmar uma posição, não quero estabelecer uma hierarquia ou dizer
que a intimidade, quando recôndita, era mais nobre, interessante,
digna e verdadeira do que a intimidade como efeito. É claro que, se
aprofundarmos uma reflexão, inclusive sobre cultura, perceberemos
que a intimidade é sempre efeito de algo, de uma série de práticas,
de dimensões, mas experimentada por algo ligado ao segredo. Agora,
temos uma intimidade que migra para o território do efeito e quero
explorar isso não como negatividade, mas como característica
ambígua a ser pensada.
Qual é o estatuto dessa suposta intimidade? Ela ainda merece a
designação de intimidade ou não? Que subjetividade é essa, expressa e

114
produzida nesse contexto midiático? Quais são as relações entre o real
e o ficcional, entre o eu, a imagem e o olhar que estão presentes nesse
movimento em que o que está no âmbito da interioridade e dos fundamentos
migra para o âmbito dos efeitos e da superfície das imagens?
Tentando responder um pouco a essas questões, uso uma frase dita
na ocasião de comemoração de aniversário da Rede Globo, quando o
filho do Roberto Marinho disse que a Rede Globo tinha sido, por muito
tempo, uma fábrica de sonhos, mas que agora vivia um momento que
anunciava, obviamente, uma evolução das Organizações Globo, que
passariam a ser uma usina de realidade. Isso expressa muito bem a
passagem do modelo da evasão, que suscitava a crítica da alienação.
Então, promovo um novo mundo e alieno as consciências. Era a busca
de evasão que a televisão dita de variedades proporcionava, e o
processo motor da identificação era exatamente aquilo: ser um outro
mundo, um mundo diferente da realidade vivida pelos expectadores.
Ao se tornar uma usina de realidade, não mais haveria essa busca
da evasão, e sim, o que o Alain Ehrenberg, um sociólogo francês que
escreveu um livro sobre reality shows e drogas, O Indivíduo Incerto,
fala de uma busca realista que coloca em jogo um sentido de realidade
absolutamente diferente ou estranho aos nossos padrões habituais
nesse universo midiático. Ele afirma que surgiria, no lugar da televisão
de variedades, a televisão relacional, pois esta relaciona-se com o
expectador, que o convida a passar para o outro lado da tela, que
promove mecanismos de interatividade,’que coloca o expectador ou
para decidir o que vai acontecer ou para representar ali mesmo a sua
própria vida. Então, é um outro modelo em jogo, mas quero chamar
a atenção para o fato de que o estatuto dessa telerealidade não cabe
nem no modelo representacional, nem propriamente no modelo
ficcional, e instaura, assim, um sentido absolutamente perfomativo de
realidade, em que essa realidade é um efeito daquele dispositivo para
que fatos aconteçam. É um dispositivo de “exposição” da realidade. E,
lembrando, não há apenas os reality shows de confinamento. Há os
reality shows de intervenção, nos quais o dispositivo é, por exemplo,
ficar bonito, e então as pessoas passam por cirurgias plásticas e por

115
uma série de transformações corporais para atingirem seu objetivo de
ficarem belas. Há também dispositivos para ficar na moda, através dos
quais as pessoas vivem um processo de transformação. Então, o que
está em jogo é o sentido performativo de realidade que é engendrada
a partir do dispositivo e não a realidade de fora ali representada. Mas
ainda, há aí um outro motor de identificação com essa realidade
que explica muito pouco grande audiência dos rea/ity shows, que é
aquilo com o que se está identificando; é menos, em termos do efeito
do real, o conteúdo do que a própria maquinaria midiática como o
horizonte grande operador de transformação social, ou seja, aquilo
tem um efeito de realidade.
Há por parte tanto dos expectadores quanto dos participantes o
conhecimento tácito de que a realidade que ali está sendo encenada
é a própria realidade televisiva e midiática como totalidade, como o
horizonte social de ação, de transformação e de mudança.
A noção do efeito de real aparece em um texto do Roland Barthes,
que se chama Efeitos de Real, sobre o recurso da ficção literária
moderna. Ele cita Foubert, que fala de detalhes absolutamente
insignificantes na trama e no conteúdo da narrativa que eram apenas
testemunhos do real. Então, ele diz que o significado é expulso do
signo, e o significante é um índice da realidade. Ele diz apenas: nós
somos o real. Não há um conteúdo dado. Essa é a noção pensada
para produzir um efeito de real dentro da ficção. E da ficção literária
vem cada vez mais sendo retomada para pensar sobre as nossas
estratégias de produção de efeito de real em diversos domínios,
dentre eles, nos ambientes em que se supõe serem espetáculos de
realidade. E, nesse caso, o real é um efeito de real. No caso dos reality
shows, o efeito de real deve ser quase que tomado em sua dimensão
literal no sentido de que o real é efeito do dispositivo, então, por isso,
não pode ser verdadeiro. Não tem contra-prova. Não opera no regime
do verdadeiro e do falso.
Fazendo paralelo com esse movimento que acontece no âmbito
da subjetividade ou da dita intimidade que está sendo ali exposta, e
não somente nos reality shows mas também nos diários confessionais

116
na internet, nas webcans e nos fotologs, entre outras práticas de
exposição, a intimidade assume esse lugar de efeito; tem um sentido de
eu e de intimidade que não é tomado como a expressão ou a revelação
de um segredo anterior, de algo prévio que me inquietava, que me
atormentava ou que me constituía previamente. Nesses discursos, de
modo geral, não há referência ao passado, ao que se era, ao antes dali.
Os textos dos weblogs são absolutamente ancorados no presente, e é
uma intimidade que vai sendo efetivada, construída naquela narrativa,
no decorrer da narrativa, e muito alimentada pelos comentários feitos
pelos leitores. Então, mais uma vez, essa intimidade, um pouco sem
interioridade, é uma intimidade como efeito no sentido de que ela
também é autenticada no próprio ato de se mostrar. O que dá sua
autenticidade está relacionado ao processo de exposição, e não ao
processo de revelação de algo recôndito. A autenticidade aí não está
atrelada a um ser que não se revela facilmente, mas ao próprio ato de
se mostrar. Então, mais uma vez, esses movimentos, esses processos,
essas práticas, chamam a atenção para algo que não é nenhuma
novidade: a dimensão ficcional da própria realidade. Esse processo de
ficcionalização do real, da existência, do eu, pode ser bastante positivo,
mas, de modo geral, essa dimensão é, muitas vezes, colocada a serviço
de reprodução de padrões e de identitários de consumo midiático já
dados ou são ficções capazes apenas de inventar um eu absolutamente
privado, absolutamente individualizado, e não instituem coletivo
algum ou mundo comum nesse, ato. É claro que não há só isso. Vemos
também, no âmbito da internet ou dos movimentos que se chamam
colaborativos e tentam repensar, por exemplo, o domínio da autoria
que estão procurando criar, um outro formato de autoria mais coletiva.

117
Mídia e produções de subjetividades:
questões da cultura

Marcus Vinícius de Oliveira


É bastante inspirador tomar uma lufada de idéias tão candentes
como as que recebemos da parte do professor Luís Alberto. Suas
palavras têm para mim uma enorme ressonância, sobretudo quando
indago sobre os estudos largos, hoje tão pouco comerciais - isto é, pouco
vendáveis nos circuitos da ciência burocrárica e por isso geralmente
desprestigiados nas universidades - sobre a questão da modernidade
e da ocidentalização do mundo. Esses são fenômenos em relação aos
quais nos parece que a nossa “inteligência” não se preocupa, muito em
refletir. Por que, afinal, o peixe refletiria sobre a água do seu aquário?
Então, gosto muito desse pensamento que tenta pensar sobre o meio,
pensar sobre a água o próprio aquário como um problema, e não como
uma existência ou uma solução já dada.
Acho que sou um “não especialista” nesta Mesa, do ponto de vista
do trato especializado com o tema da mídia e cultura, na medida em
que meus estudos foram feitos na área da saúde coletiva e na área
da atenção a pessoas portadoras de transtorno mental, na reforma
psiquiátrica. Mas acredito que a possibilidade de estar aqui advenha
exatamente, por uma questão de natureza muito prática, diferente,
inclusive, do sofisticado pensamento que foi antes exposto, por trazer
uma questão muito comum, que me permitiria relatar e trocar idéias
aqui deste lugar, pois estamos trazendo pontos de vista para um
diálogo em torno das idéias sobre o tema da cultura, em que a mesma
se torna questão no cotidiano. No meu caso, lido cotidianamente com
as pessoas que ouvem vozes, que alucinam, que deliram e que colocam
problemas teóricos, mas, sobretudo práticos, para a ordem instituída, e
que algum modo interpelam a cultura.
Então, o ponto de alteridade em que posso ancorar aqui uma
reflexão sobre cultura é colocando em balanço algo das relações
entre cultura e loucura. Esse ponto de vista incide cotidianamente em
diversas mediações institucionais, sobre a vida de milhões de sujeitos

119
que estão colocados nesse pólo identificado como sendo o da loucura,
para centenas de milhões identificados com o lugar da cultura. E
também sobre a vida de alguns de nós, milhares de profissionais psi,
que temos como nosso encargo, no interior da cultura, manejar essas,
às vezes, estranhas e bizarras posições que, com a sua inquietação
prática, produz interrogações sobre a “natureza” da cultura.
Assim sendo, considerar a loucura como uma alteridade radical
em relação à cultura, considerar a loucura como a quebra do pacto
imaginável em torno do valor simbólico estabelecido como consenso
entre os sujeitos em uma determinada sociedade nos permite,
certamente, problematizar essa noção da vida instituída tal como
a vemos, desubstancializando esse conjunto de experiências que
sustentam as nossas identidades como sujeitos de uma certa época,
de um tempo histórico, de uma cidade, de um bairro. Aqui no Rio,
principalmente, ser do Leblon, do Botafogo, da Lapa pode fazer uma
grande diferença do ponto de vista do que os sujeitos imaginam acerca
do que seja ser carioca.
E, efetivamente, devemos considerar a perspectiva que nos traz
Cornelius Castoriadis - aquela que afirma ser invenção da sociedade
pensar que a cultura seja criação. Ele gosta de dizer criação ex nihilo ou
criação desde o nada, pura invenção. Ele se refere a um pagode chinês,
com todas as suas alegorias, e a uma igreja anglicana em sua austeridade
de símbolos, para dizer que na cultura tudo é uma questão de invenção
cultural, viabilizada pelos pactos simbólicos, invenção pura que não
pode encontrar qualquer referente fundamental e extra-histórico, seja
em Deus, na Natureza ou na razão, mas que resulta da pura criação
humana, construção simbólica arbitrária, que, em última instância, vai se
fundamentar num ponto de vista ético-político baseado na pura vontade
humana de inventar-se como uma sociedade determinada.
Nós instituímos a vida, como humanos que participamos de uma
determinada cultura, e a instituímos porque, de alguma forma, é
mais econômico viver nesse registro instituído, sob vários aspectos.
Esse dispositivo que temos aqui, por exemplo – sala de conferência,
palestrantes, público, microfone, silêncio dos ouvintes – sobre

120
outros olhares culturais, poderia parecer absolutamente absurdo e
incompreensível, apesar de nos parecer - para nós que fazemos parte
dessa cultura, absolutamente natural. É de certo modo mesmo absurdo
que pessoas se sentem em frente a outras e que fiquem passivamente
escutando como forma de produzir comunicação e pensamentos. Temos
outras culturas que nos diriam que, se quiséssemos produzir esse tipo
de efeitos uns nos outros, deveríamos andar juntos, viver juntos uma
parte de cotidiano, e então o que é sabido por um se tornaria sabido
pelos outros. Esse exemplo foi dado apenas para radicalizar um pouco o
caráter absolutamente arbitrário das “escolhas” culturais que fazemos
como uma sociedade específica e distinta de outras.
A loucura nos remete no cotidiano a essa provocação
desnaturalizadora e dissonante do consenso dos sentidos. A loucura,
de alguma forma, nos diz que os sentidos, os significados culturais
que pactuamos na rede simbólica da cultura, são absolutamente
arbitrários e que podem ser destituídos. Esses significados podem cair,
podem deixar de ordenar uma trama simbólica que nos aprisiona como
integrantes da cultura. E o que cada sujeito denuncia individualmente,
com o seu transbordamento psíquico que os coloca fora do pacto
simbólico e por isso tão distintos dos demais, tem grande alcance para
a problematização dos modos coletivos de articulação e construção
social e psíquica da “realidade”.
Considero que a loucura, mais do que uma interpelação de
natureza “médico-psiquiátrica, psicológica”, não nos remete a uma
interpelação de natureza antropológica. Ela pergunta, através do tema
da significação, a cultura, de que matéria a cultura se faz, e é por isso
que, ao longo da História, todas as culturas tiveram que inventar um
lugar para sustentar um diálogo com a loucura. Castoriadis nos afirma
que esse lugar inventado é sempre um lugar criado no plano do Logos
e no plano da Tecné, no plano de um Dizer que, ao dizer, incorpora uma
dimensão de ação humana. Nomear não é apenas atribuir signos a
coisas. Nomear é afirmar a possibilidade de esses signos existirem e de
como existirem, porquê e para quê. Exemplificamos: se eu caísse agora,
aqui, babando e tremendo, possivelmente vocês, a partir da inserção

121
cultural que têm, me diagnosticariam como um epilético. E, ao me
diagnosticar como epilético, estariam dizendo concomitantemente
da ação: “Chamem o médico ou levem-no para uma instituição de
saúde”. Mas, se eu, em vez disso, estivesse em uma comunidade baiana
que costumo freqüentar, possivelmente lá eles diriam: “E santo”! E,
em sendo santo, o chamamento seria a um pai de santo. Então, essas
são formas de dizer que, incluem, ao mesmo tempo, a possibilidade de
existência dessas coisas no mundo e as ações que lhe concernem.
De alguma forma, os episódios de surto psicótico, os episódios do
delírio são ilustrativos a partir da experiência dos indivíduos, dessa
queda do pacto da significação, da denúncia de que o pacto da
significação é um pacto absolutamente convencionado, arbitrário,
inventado. E talvez por isso a convivência social com a loucura seja
tão sintomática, os manicômios como – sua expressão paradigmática
e a convivência social com esses sujeitos, nesses momentos, seja tão
difícil para o nosso exercício psíquico, para o nosso exercício cultural,
para o nosso exercício simbólico, porque acreditamos que o estado
de “desorganização” desses sujeitos convocam, nesse momento, os
estratos não organizados que nos constituem a todos os sujeitos
sociais formatados psiquicamente e denunciam que essa pontinha
do iceberg de organização através dos sentidos, que nos mantém
articulados nessa rede cultural, é muito menos forte do que esse
universo magmático de desorganização que faz fronteira com essa
ponta organizada. Ela diz que os sentidos e as significações são
relativos culturalmente, são datados, são históricos, são invenções
compartilhadas socialmente sobre um fundo de matérias e
possibilidades ainda não cobertas pela nossa colonização simbólica.
Não há substância no sentido.
Esse pensamento parece-me útil, porque remete, em última
instância, à responsabilização de cada um no compartilhamento de
recursos culturais, no sentido bem amplo, agora, já que posso falar de
uma forma leiga, sem o compromisso com a obrigação disciplinar, já
que sou um bárbaro. Não sou dessa área, no sentido estrito, mas falo
das ressonâncias que a área nos traz.

122
Então, o primeiro ponto é dizer que acho que tenho aprendido
com as pessoas que ouvem vozes e com a possibilidade de essas
pessoas participarem da vida cultural, e que a vida cultural precisa
transformar-se para que todos possam caber nas suas mais diferentes
formas de expressão. Então, há uma missão que nos fala da radical
importância de construir um espaço que seja um local da diversidade
dos modos de compreender, dos modos de sentir, da ausência de
qualquer referente, em última instância, que sustente a superioridade
de uma experiência em relação à outra. E, quando superioridades
são afirmadas, é necessário que reconheçamos que se trata de um
pacto de natureza ético-política, escolha daqueles que estão vivendo
naquele momento, ao afirmarem ou deixarem de afirmar coisas, ao
confirmarem ou negarem modos de experiências.
Estamos permanentemente envolvidos nesse movimento de
confirmação diante da manchete do jornal, diante do episódio do
garoto que foi arrastado por sete quilômetros. A questão se deu
nos primeiros cem metros. Depois disso, é nossa sensibilidade que é
construída em um discurso emocionado, que aparece na televisão e é
tão forte e nos faz identificar tanto com o fato que nos mobiliza e nos
torna cegos a toda outra possibilidade de interpretar a experiência que
acontece naquele lugar.
De alguma maneira, a convivência com o campo da reflexão sobre
as relações entre loucura e cultura me ajuda também a pensar como
efetivamente os lugares são estabelecidos ao longo da História. Temos
um conjunto de pensadores que têm nos ajudado no processo de
desubstancialização e desconstrução das instituições que até outrora,
há 30, 40 anos, nos pareciam absolutamente estáveis, perenes e
fundamentais, que têm desmistificado uma concepção funcionalista da
existência das instituições e que nos responsabilizam pelas necessidades
que produzimos e que depois essas instituições vêm satisfazer, que
naturalizam a criação de certas necessidades.
Estou me referindo, por exemplo, ao magnífico e bem estudado caso
da criação do dispositivo psiquiátrico e do dispositivo manicomial no
interior da modernidade nos últimos 200 anos, uma invenção cultural

123
com a qual passamos a conviver até muito recentemente, quando foi
colocado em questão e encetado um processo de investimentos para
a desconstrução ideológica, política, teórica, prática e técnica desse
dispositivo manicomial.
Esse caso é bonito, porque a invenção da psiquiatria e o dispositivo
manicomial são emblemáticos do nosso projeto, do projeto civilizatório
deste Ocidente, desta modernidade, desta tradição e de uma certa direção
de organização do que acaba sendo o espaço das definições maiores de
como os homens produzem e distribuem os excedentes ou os resultados
da produção, o que, em última instância, poderia ser, para este debate,
uma reflexão importante sobre o fato de que o grande monstro continua
sendo o capitalismo, mesmo que achemos que não haja mais recurso
simbólico para tratar da contestação. Esse, no entanto, é um problema
do limite do socialismo real, um problema do esgotamento do nosso
repertório de pensamento político no campo da utopia.
Mas, estudar as relações na sociedade pela institucionalização
das relações com a loucura no interior do capitalismo da sociedade
ocidental moderna é muito elucidativo de como essa sociedade opera
e de como se produzem as institucionalizações e como, de alguma
forma, essas institucionalizações respondem a certos imaginários
sociais que construímos sobre nós mesmos como imaginários do que
são os sujeitos ocidentais modernos.
Um parênteses. Sempre me embaraço quando, em sala de aula,
digo “nós, os ocidentais”. Tenho dificuldades com isso, e me pergunto:
até que ponto essa posição periférica, tupiniquim, afro-descendente,
pode se reivindicar como afiliada a algo que, como tradição, remonta
a Aristóteles, para se constituir na mais feroz história de dominação
cultural, como a estabelecida pela Europa em relação ao mundo? Por
que como periferia colonizada, seguimos nos identificando com a
matriz cultural da violência e da denominação selvagem dessa tradição
eurocêntrica e prestando contas aos seus cânones? Tenho problemas
essa com essa reflexão.
Estudar a institucionalização das relações da loucura no interior
da sociedade é estudar como a cultura se produz como forma de

124
anestesiamento para a alteridade radical que a loucura significa
para a cultura, porque cultura é ordem, cultura é a tentativa de
estabelecimento da apropriação simbólica do mundo através de um
certo ordenamento imediato das operações de nomeação e ação
que fazemos, e constitui a possibilidade de viver no social. Por outro
lado, há essa noção de construção cultural, dessa relação da cultura
como histórica, como datada, como própria, como referida, e a
psiquiatria pode ser considerada como uma instituição culturalmente
referida, não como uma bênção da iluminação, mas apenas como um
conhecimento referido historicamente, meramente um modo cultural
de institucionalizar determinadas relações com a loucura.
Isso nos permite, de alguma maneira, nós que somos militantes
antimanicomiais e que usamos o confronto entre a naturalização
da cultura com essa idéia de que a instituição é histórica e datada,
propor outras versões e outras institucionalizações da vida. Isso é
muito útil, porque revela a plasticidade da cultura diante da disposição
ético-política; informamos que, através da luta cultural, podemos
transformar o pacto cultural. Somos militantes da opinião e queremos
ganhar corações e mentes. Estamos, agora, inventando que os loucos
voltarão a viver na sociedade. E as pessoas estão acreditando, pasmem,
na nossa invenção.
Lá atrás, no passado, inventamos que os loucos deveriam ficar
encarcerados, e agora estamos inventando que devem viver em
sociedade. “Você, que inventou a tristeza, agora tenha a fineza de a
desinventar”. De alguma forma, nossos saberes técnicos, profissionais,
psiquiátricos, psicológicos, produzem efeitos na cultura e produzem
cultura. Psicologia, psiquiatria, psicanálise também são cultura, também
produzem cultura, também produzem efeitos na institucionalização do
mundo, nos modos de ver, de perceber, de sentir; de se relacionar. E,
portanto, nós, que inventamos a tristeza, agora estamos tendo a fineza
de desinventá-la.
Então, é possível que o mesmo campo de discurso que instaurou o
dispositivo da psiquiatria excludente do louco, agora instaure o dispositivo
da convivência, da inclusão social. Isso é transformação cultural, e isso é

125
política, transformação na e da cultura. E as pessoas estão acreditando
nisso, até porque esse discurso da diversidade, esse discurso que se
expressa no lema do Fórum Social Mundial, Um mundo onde caibam
todos os mundos – lema que – vem de uma consigna extraída do
Movimento Zapatista, que tem tentado repensar as relações, os modos
de viver experiências políticas – encontra hoje – grande repercussão
ética, porque essa mesma civilização, no ponto em que podemos localizar
como a “banalização do mal”, já respondeu, em algum momento da sua
história recente, a essa pergunta de uma forma diversa.
Nossa cultura ocidental guarda em si a experiência de afirmar que
nem todos devem viver ao mesmo tempo. O extermínio dos judeus, o
holocausto, é uma resposta dessa cultura, é uma resposta estético-
ético-política para lidar com a questão da diversidade, ao afirmar que
nem todos têm que viver mesmo tempo, que aqueles que não são
suficientemente belos, segundo nossa concepção estética, podem ser
“apagados” pode ser passada uma borracha, em sua existência, como
faz um desenhista que está fazendo um quadro e, ao não gostar de
certos traços que desenhou, usa a borracha e apaga aqueles traços que
lhe parecem feios ou em desacordo com o desenho.
Nossa cultura ocidental moderna, judaico-cristã, greco-romana,
enfim, como queiramos adjetivar esse conjunto de valores que nos
unifica e nos dá identidade cultural como sujeitos do presente, já
afirmou que talvez nem todos tenham que viver ao mesmo tempo.
Vivemos hoje, ainda, a repercussão do horror em relação à indagação
desse conflito: todos têm o direito de viver ao mesmo tempo ou é
possível que alguns possam não existir para que outros existam mais
plenamente?
Hoje há uma espécie de radicalização dessa questão. Eu diria que
essa é a questão dramatizada nas manchetes dos jornais, e, de alguma
forma, nos induz a apresentá-la como a mais central e conflitiva da
nossa humanidade contemporânea: é possível que todos coexistam ao
mesmo tempo, todos devem ter o direito de existir ao mesmo tempo,
todos devem ter o direito de existir nas mesmas condições e ao mesmo
tempo? Esse é o dilema fundamental, a angústia fundamental de nossa

126
humanidade contemporânea, e é muito interessante para nós quando,
no cotidiano, lidamos com os sujeitos que escutam vozes; são esses
os dilemas que temos que operar em um registro muito prático de
certas microrredes relacionais com as quais trabalhamos, no sentido
de produzir a expansão da possibilidade da existência na cultura
hegemônica de um mundo diverso de ser, do ponto de vista psíquico.
E quero dizer que é muito bom saber que a cultura é uma invenção
plástica, porque isso traz para cada um de nós a possibilidade de operar
nessa cultura, e nos faz, sim, sujeitos de escolha, da definição do nosso estilo
da existência de cada um, e a cotidianidade de nossa presença na cultura ao
fazer escolhas ético-políticas deve ser objeto de reflexão; isso, obviamente,
envolve o campo que nos traz aqui, que é a mídia e seus efeitos.
Ontem foi abordada a forma como consumimos a informação. Quis
trazer (não para chocá-los, mas para pensarmos) a questão de uma
criança ser arrastada por sete quilômetros amarrada por um cinto de
segurança, quando o carro da sua mãe era dirigido por assaltantes.
.Isso, quando explorado ad nauseum pela mídia, causa um poderoso
efeito identificátorio com o sofrimento prolongado do corpo arrastado
por sete quilômetros. O caso é que não existia mais criança! 100, 200
metros depois, não existia mais criança, mas apenas um corpo morto
que já não experimentava mais nada. Mas, por que nos fixamos nessa
identificação por sete quilômetros? Isso é muito poderoso como efeito
que nos move, nos cega para qualquer outro tipo de idéia. Ficamos
fixados em uma dimensão identificatória, e esses efeitos, acredito, são
reproduzidos permanentemente.
Por último, quero dizer a vocês que essa experiência das relações da
loucura com a cultura, essa mirada antropológica que problematiza a
questão da existência da cultura e das instituições criadas no seu interior,
parte de dispositivos médico-psicológicos, interpreta esses dispositivos
como suspeitosos, como as conversas produzidas para a ocasião, para o
tempo histórico, para dar conta de certos modos de ser.
E isso nos possibilita também pensar uma via de saída, porque,
efetivamente, tem sido na construção que chamo de artesanal, na
construção de cada situação, das microrrelações, que se verifica não

127
ser impossível que a cultura estabeleça um outro modo de relação
com essa experiência da loucura, considerando-a um componente que
se movimenta, que traz repercussões interpretativas em seu registro
de diferença. Assim, tem sido possível produzir para muitos sujeitos
a possibilidade de sua presença no mundo utilizando-se exatamente
dos chamados recursos culturais, e, fazendo um recorte mais estreito,
falo do espaço instituído na reflexão do espaço da cultura, de
manifestações artísticas, de manifestações envolvidas, inclusive, com
o tema da comunicação.
Relato, a título de exemplo, um caso ocorrido num hospital
psiquiátrico que assessorei no processo de desativação, onde havia
uma moça absolutamente catatônica. Esse estabelecimento abriu um
espaço de rádio-difusão interna, com alto-falantes, com microfones, em
um pequeno estúdio. Víamos aquilo como uma forma interessante de
ampliar a convivência e a expressão dos internos. Em certa circunstância,
essa paciente, de uma forma muda, seguiu o grupo até o estúdio e os
profissionais questionavam a vontade manifestada pela moça de ir com
o grupo que ia fazer uma modulação de falas dentro desse estúdio. E,
para surpresa de todos,essa pessoa de catatônica imóvel e silenciosa
por semanas a fio se transformou diante do microfone e desandou a
falar. Durante semanas, ela só falava lá, diante do microfone, até se
acostumar de novo a falar com as pessoas.
Como um simples microfone pode transformar as pessoas! Aqui,
por exemplo, nos transforma em pessoas mais sábias do que somos,
mais inteligentes e consistentes do que somos. Os microfones são
muito poderosos. No caso dessa moça, o efeito foi curiosíssimo.
Ainda estamos estudando esse caso do ponto de vista psiquiátrico,
psicológico, psicanalítico e de todas as demais correntes, pois nada
explicaria porque alguém com um registro passa para outro tão
automaticamente diante de um mero microfone.
E muitos têm sido os experimentos que a luta antimanicomial têm
utilizado envolvendo os recursos da mídia e da cultura. Aqui mesmo, -
na UFRJ -, temos a TV Pinel como um experimento desse tipo. Tivemos a
rádio Tam-Tam, pioneira em Santos/SP, e hoje temos pontos de cultura

128
patrocinados pela política cultural oficial. O Ministério da Cultura avisa:
os loucos também podem participar da produção cultural, da produção
de imagens, formas e expressões. E quem já assistiu os programas da TV
Pinel, e de outras iniciativas similares, inclusive os estudiosos oficiais
do tema, sabe disso. Há uma certa interpelação estética, interpelação
acerca de como os meios podem ser usados e subvertidos criando
uma linguagem nova, a produção de uma certa ordem estranha, mas
atraente, instigante, uma ordem de expressão instigante.
E isso, mais uma vez, permite pensar que tudo é uma questão de
uso, tudo é uma questão do que fazemos com o que temos, tudo é
uma questão da ordem de responsabilidade no cotidiano de cada um
de nós, e as opções que fazemos são efetivamente definidoras do que
vivemos como sociedade, do que vivemos como cultura, dos consensos
que vamos produzindo. Portanto, quis dizer a vocês que ninguém é
irresponsável por tudo o que está acontecendo ao mesmo tempo e
agora no planeta. Somos todos responsáveis por reiterar as instituições
ou transformá-las em outras. O grande desafio continua sendo como
encontrar uma via de entendimento nessa diversidade que o Fórum
Social Mundial tende a representar como tentativa de criar um espaço
plural para todas as vozes da utopia. A utopia não morreu, a utopia
não acabou. A utopia está um pouco bêbada, mas talvez esta seja uma
boa ocasião para pensarmos algo diferente daquilo do que até agora
fizemos, dos modos como estamos convivendo e o que produzimos
com nossas lutas.

129
Mídia e produções de subjetividade:
o poder da mídia

Coordenação
Roseli Goffman

131
Mídia e produções de subjetividade:
o poder da mídia

Marcos Ferreira
Preciso dizer que a minha intenção ao fazer este debate é muito
definida: tentar encontrar parceiros, encontrar pessoas na Psicologia,
em especial, e é claro também nas outras áreas, que se interessem em
se empenhar para produzir uma visão, por parte da Psicologia, que
contribua para o processo de debate social sobre a mídia, pessoas
que tenham interesse em colocar um tempo de militância na luta
pela democratização, pessoas que queiram participar de um grupo de
psicólogos, de estudantes, de profesores e de pesquisadores de Psicologia,
que se dediquem a produzir pesquisa e a atuar, politicamente, nesse
processo. Para encontrar pessoas assim, vou precisar mostrar a enorme
importância dos meios de comunicação nos nossos dias. Por isso, vou
tentar convencê-Ios de que a mídia não tem poder nenhum.
Para participar desta mesa, eu preciso radicalizar uma certa visão,
para poder fazer frente aos outros expositores, senão não iria nem
adiantar falar.
Um dos expositores disse que a mídia tem todo o poder no que diz
respeito a influenciar as pessoas;o outro expositor diz que ela tem um
poder limitado: vou completar o gradiente de possibilidades, e, para
isso, vou delimitar meu espaço de debate dizendo que ela não tem
poder algum.
Vou informar a vocês de que trago comigo um pressuposto: todo
meio de comunicação tem um elemento alienante intrínseco à sua
existência. Neste momento em que estamos nesta sala, há pessoas
que, para assistirem a esta mesa estão sofrendo um tipo de mediação
tecnológica, ou seja, há um meio entre este falante e os alguns dos
meus ouvintes. Esses ouvintes (que estão na sala ao lado, assistindo à
mesa por televisão em circuito fechado) evidentemente, estão pensando,
produzindo pensamento, mas há algo entre nós, que é este equipamento
preto, que se chama câmera, que capta essa mensagem e a conduz por
um fio que vai até lá na sala onde eles se encontram. É claro que se pode

133
dizer que este é um meio, já que não estamos em contato direto, eu não
posso perceber suas reações nem eles podem perceber quais as reações
das pessoas que estão na mesma sala que eu podem estar produzindo
em mim, quando faço a apresentação.
Eu vou lembrar que muitos de nós já chamamos esse conjunto de câmara,
mais fio, mais aparelho de TV, de meio morto. Por que meio morto?
Porque ele não produz um pensamento. Ele é somente um veículo
para um pensamento que não é seu, mas é preciso lembrar que ele não
é tão morto. O cinegrafista Cláudio pode, enquanto falo, mostrar algum
companheiro de mesa bocejando, o outro companheiro dormindo, e, dessa
forma, ele já está contando mais aquilo que ele tem vontade de comunicar
do que aquilo que eu pretenda dizer a vocês. O aparato operado por alguém
que não é quem está enviando a mensagem ganha um caráter de meio vivo.
E, nesse contínuo, há os meios vivíssimos que foram muito bem descritos
pelos meus dois antecessores, que mostraram como são vivos esses meios
no sentido de que eles não estão ali para contar o que está acontecendo,
mas para moldar uma certa visão daquilo que está acontecendo.
Claro, é importante dizer que isso, de ser um meio vivo ou morto, não é
uma questão de sim ou não. Ocorre uma variação entre as possibilidades
de interferência de um meio sobre o que seus receptores vão pensar. O
meio de comunicação pode ganhar alguma vida e querer ser o gerador
da mensagem, e não só um meio para que a mensagem saia de um
ponto e chegue a outro. Essa possibilidade de o meio ganhar vida está
“inversamente relacionada” com a produção de comunicação direta
entre as pessoas. Conforme se reduzam as possibilidades de contato
direto entre os seres humanos que estão buscando se comunicar, maior
a possibilidade de que os meios ganhem vida e espaço de interferência
sobre as formas de ver e pensar a realidade.
Daí o pressuposto que havia anunciado de que existe um caráter
alienante intrínseco à existência do meio de comunicação, já que
ele pressupõe uma redução da possibilidade de contato direto entre
as pessoas. Esse caráter alienante é tanto mais forte conforme esse
meio seja mais vivo, tanto menos forte quanto mais morto ele seja.
Mas, havendo meio, esse elemento alienante aparece. Um aparelho

134
telefônico, por exemplo, é um meio de comunicação, e pode, a meu
ver, ser considerado um aparelho que tende a ser morto, à medida
em que ele tem menos interferência na qualificação da mensagem
transmitida através dele. Entretanto, sabemos, desde menino, da enorme
possibilidade de manipulação da visão dos fatos e da disposição das
pessoas que ele permite. Talvez um exemplo maximo dessa vitalidade do
telefone facilitar uma distorção da percepção, seja o desses seqüestros
simulados em que pessoas passam mal mesmo sabendo que não têm os
filhos que estariam gritando por sofrer mãos de algum seqüestrador.
Então, o que pode acontecer se os meios têm um caráter alienante?
Pode acontecer de passarmos a pensar que, então, não tem jeito, não há o
que fazer com a mídia, porque ela é intrinsecamente alienante. Então, ela
não tem como passar a produzir cidadania. Então, estamos condenados
a estar subjugados pelos meios de comunicação. (É freqüente que as
pessoas reajam a essas colocações com assertivas de que essa visão não
deixa saída, que ela impede o movimento coisas assim).
Pode ser que essa falta de saída seja verdadeira, se quem pretenda
enfrentar os meios quiser aceitar a dependência dos próprios meios para
fazer a resistência. Isso é mais ou menos como pedir ajuda ao rio para
construir uma ponte ou um dique. De minha parte, estou entre aqueles
que sempre acharam que não adiantava trocar o Roberto Marinho
pelo Brizola (essa comparação era feita no tempo em que o Brizola era
governador do Rio). Havia quem acreditasse que se isso acontecesse, os
problemas da manipulação das informações e da alienaçao da audiência
estariam resolvidos. Vale dizer, que passaríamos a ser todos engajados,
a falar a verdade, já que a mídia não iria mais enganar os cidadãos.
Não adiantava fazer isso, porque esse não é um problema do Roberto
Marinho. (Cito o Brizola só porque houve um momento em que a Rede
Globo decidiu que não colocaria o governador do Rio de Janeiro na tela.
Houve um tempo enorme sem publicação de notícias sobre ele, porque
alguém haveria dado ordens para que não fossem publicadas notícias
relativas ao governador).
Não adiantaria quase nada dizer que iríamos colocar uma pessoa
confiável para a sociedade para dirigir a Rede Globo. Enquanto uma

135
empresa tiver a possibilidade de administrar 75% das verbas publicitárias
do país e investir todo esse dinheiro na manutenção de um certo poder
de penetração, teremos a intensificação do processo de alienação pelo
acesso que ela tem de oferecer os conteúdos, as informações, etc. dando
a tudo isso o contorno que lhe interesse.
O que eu gostaria de alertar é que, normalmente, o caráter alienante é
presumido. Muitas vezes ele não é demonstrado. Quase não há pesquisa
sobre a vida concreta para demonstrar isso, nem mesmo na escola
mais referida quando se trata da crítica ao poder da mídia. É incomum
encontrar pesquisas que demonstrem esse caráter alienante, tampouco
temos pesquisas que demonstrem o poder absoluto da mídia sobre a
formação das opiniões. Há muitas pesquisas que pressupõem uma
visão ou outra. Há o caso das pesquisas estadunidenses, por exemplo,
que pressupõem uma capacidade da pesquisa de estabelecer uma
agenda social, a conhecida teoria da Agenda Setting. Mas, devo dizer
que desconheço alguma tradição de investigação que vise verificar onde
surgiu um grupo que se reúne em torno de alguma visão de mundo,
e relacione isso com aquilo que é emitido na mídia. Depois, fazer um
estudo para entender o que de fato está sendo veiculado na mídia, e ver
como a opinião desse grupo evoluiu ao longo do tempo. O que acontece
mais frequentemente é que pressupomos um grande poder da mídia, e,
evidentemente, se acreditarmos nisso, corremos o risco de desenvolver a
capacidade de ver aquilo em que acreditamos.
Pois esse acordo sobre o poder da mídia é quase ilimitado. Tomemos
como exemplo o caso das eleições presidenciais de 2006. Ali, a despeito
de um consenso entre os grandes meios de comunicação (com exceção
da revista Carta Capital) em atacar o candidato Lula, sua candidatura se
fortalecia a cada semana. Era evidente o tipo de irritação de jornalistas
com a indiferença dos eleitores em relação àquilo que diziam os meios
de comunicação pois, algumas pessoas que fazem pesquisa sobre
comunicação e que tomaram essa situação para exame, afirmaram que
o surgimento ou fortalecimento da comunicação por meio da internet
tinha sido o grande canal de resistência ao poder da grande mídia. Isto
é, a força dos meios de comunicação é tão grande que, para poder

136
diminuir o seu poder, é preciso que apareça outro meio de comunicação
para fazer frente a eles.
O que para mim é muito claro é que precisamos encontrar uma outra
forma de superar esse problema da relação com os meios de comunicação.
Mas como é que vamos nos contrapor a esse poder da mídia? Os padres
é que sempre acham que existe alguma coisa boa em tudo. Podemos
aderir a essa Iógica e achar que é possível usar a mídia para produzir
democracia e cidadania. Se concordarmos, mesmo provisoriamente, com
o fato de que a mídia tem um caráter intrinsecamente alienante, como é
que vamos usar a mídia para poder produzir cidadania? Fica impossível,
não tem saída. Se, ao usar um meio de comunicação, estou usando um
meio de alienação, não vou poder induzir o contrário da alienação com
aquele meio. Aqui chegaríamos a dar razão para aqueles ouvintes que
desde o começo desconfiaram que essa tese do caráter alienante dos
meios iria nos levar para um beco sem saída.
Pois é nesse momento que vamos precisar resgatar a primeira tese
que anunciei, aquela que afirmava a falta de poder da mídia. E preciso
que nos demos conta de que há um elemento fundamental que anula
o poder da mídia, que baixa a zero sua capacidade de influência sobre
a visão de mundo de uma pessoa, pois a grande arma contra o poder
de qualquer meio de comunicação é a boa e velha conversa, a conversa
com um interlocutor que consideremos medianamente válido. O diálogo
direto entre duas pessoas pode arrasar o trabalho da mídia. Uma pessoa
que olha nos olhos da outra pode destruir o efeito de meses seguidos de
informação veiculada por meio da imprensa.
Mas qual conversa? Qualquer conversa? Tenho vivido isso de modo
muito forte. Dou uma entrevista para uma revista, e a pessoa destaca o
poder da mídia. Pergunto estão a esse entrevistador: “você não acha que
as conversas diretas promovem a anulação desse poder?”e do meio da
conversa para o fim, a própria entrevista se transforma em um exemplo
dessa capacidade do contato entre seres humanos, porque a pessoa
começa a duvidar do que pensava no começo da entrevista. E isso muitas
vezes acontece de forma mediada por um telefone. Então, uma pessoa que
nunca vi, com quem não tenho contato, não sei quem é, numa conversa,

137
começa a colocar em dúvida o que para ela era absolutamente seguro,
o que ela estudou, o que ela leu nos livros, o que ela vê seguidamente
na mídia, que é sempre essa reafirmação do enorme poder enorme na
mídia. Senhores, o rei está nu. Não há nada, e estou afirmando assim
para provocar o debate, não há nada na mídia que resista a um diálogo
direto entre dois, três, quatro, dez seres humanos.
Talvez o grande poder da mídia seja sua capacidade de ocupar o tempo
das pessoas. Gostei da idéia que foi apresentada antes aqui. O grande
poder da mídia deve ser esse, porque, ao ocupar tanto as nossas vidas, ela
reduz drasticamente a nossa possibilidade de contato direto com outros
seres humanos. E, nesse caso, convém tomar como exemplo a própria
mídia televisiva, porque ela tem um elemento especial: a televisão tem
um caráter poderoso no sentido de dificultar o contato entre as pessoas.
Pode ser verdade que, quando o rádio foi lançado como aparato para
comercialização, as pessoas se sentavam e ficavam ouvindo, às vezes
olhando para o rádio. Mas logo ele deixou de ser alvo de observação.
Quando o rádio toca música, a pessoa não fica parada, necessariamente,
ao lado para escutar. Já a televisão não permite esse compartilhamento
da atenção. Quase não se leva a vida adiante vendo televisão. Quando
se vê televisão, deve-se parar e olhar para ela. Não se conversa de forma
continuada com ninguém. Pode-se fazer um comentário, mas não é uma
troca continuada de informação, de reflexão, com alguém, porque deve-
se olhar para a televisão; ela ocupa o seu tempo e a sua atenção.
Claro, há muitos outros elementos pouco considerados nesse
processo de debate, mas que podem ser muito importantes. O próprio
caráter dos aparatos tecnológicos, a forma como se organizam tanto
a disposição da casa quanto a habilitação das pessoas para o uso dos
aparatos tecnológicos de comunicação precisam ser alvo de atenção.
Se você tem um microondas dentro de casa, você ensina à pessoa que
trabalha com você ou aos seus filhos a usar essa tecnologia. O aparato
tecnológico a televisão, no máximo, ensinamos a apertar um botão e a
sentar na frente do aparelho, e não ensinamos mais nada. Não dizemos:
cuidado há um perigo aqui ou “se você utilizar isto de forma errada
isso pode causar dano”. Não dizemos que pode existir perigo no uso da

138
televisão. Pelo contrário, a televisão é tida como auto-instrutiva. É um
aparato tecnológico que é ligado ali na frente, e a criança vai ver como
funciona aquilo.
Agora, pode ser que o principal que vai acontecer com essa criança é
que ela vá passar um enorme tempo de sua vida sentada, sem conversar
com você, com o pai ou a mãe, com os irmãos ou com os amigos, sem
subir em árvore, sem carregar pedra, sem carregar madeira, sem jogar
pedra no vizinho, quer dizer, sem fazer o que lhe dê uma impressão de
realidade, de materialidade da vida. Bom, lugar de criança é em cima da
árvore, não na frente da televisão.
Então, se é verdade que uma conversa pode anular o poder da mídia,
vou fazer agora minha terceira afirmação, que é decorrência das duas
primeiras: onde houver tecido social forte, o poder da mídia tenderá a
uma redução dramática. Por que? Porque onde há tecido social forte, os
temas que a mídia divulga serão processados nesse tecido social. Tecido
social forte significa que há conversa, há interação com os vizinhos. Os
vizinhos são preciosos. Por mais aborrecidos que eles sejam, por mais
grosseiros, ele continuam sendo preciosos. Por pior que eles sejam,
eles são bons, porque pode-se conversar com eles, ver como é que eles
reagem, saber o que eles leram, como é que eles percebem os fatos.
Então, pode-se trocar informações. Num tecido social forte, onde eu
tenha relações de vizinhança, onde participo da associação do bairro,
participo do meu sindicato, participo de um partido político, participo
da minha categoria profissional, o que seja, todas essas relações vão se
somando e permitindo que o tecido social tenha um poder fortíssimo
para reduzir o poder da mídia.
Já não se trata de dizer que não haja poder na mídia na nossa
sociedade hoje. Não é que não haja poder na mídia, é que o poder da
mídia que existe hoje na nossa sociedade também precisa ser matizado.
Não é verdade que ele seja indiscriminado, universal, absoluto, mas
esse poder sofre redução não porque dizemos, simplesmente, que
daqui para a frente seremos espertos. Ele sofre redução a medida que
as pessoas, os grupos da sociedade estabelece relações fortes no seu
interior, relações entre os seres humanos, entre as pessoas que estão

139
ali. E aí, nessa hora, inclusive, e vou concluir com essa idéia, o meio de
comunicação pode voltar a ser meio. Podemos deixar de exigir dele tanto
conhecimento, capacidade e autonomia e podemos dizer: “câmera, fica
sendo só câmera; TV, fica sendo só TV; rádio, fica sendo só rádio”. Ou
ainda melhor: câmera, TV e rádio, eu vou submeter vocês aos interesses
e controle sociais. Esse é o caso, ‘por’ exemplo, das rádios comunitárias,
dos meios de comunicação que servem a grupos que estão em busca
da melhoria da sua condição de vida. Então, esses grupo usam o meio
num processo de construção, e o meio se transforma em uma extensão
de um processo de construção, e não uma finalidade em si, ”como
parece acontecer em muitas situações na nossa sociedade hoje“, em
que o meio acaba ganhando o reforço da sua capacidade de alienação,
o poder excessivo na configuração das posições. Nessas situações, o
caráter alienante dos meios pode ser atenuado pelos próprios seres
humanos que o utilizam.
Para terminar, devo lembrar que, se os meios de comunicação
fossem assim extensamente poderosos, nem vocês estariam aqui, nem
nós da mesa estaríamos apresentando essas idéias, porque os meios
de comunicação não nos levam a esse debate. Pelo contrário, eles nos
afastam desse tipo de conversa. Eles nos levam para o outro lado. Quem
viu no jornal uma matéria sobre este evento? Quem ouviu no rádio? Eu
vi meia dúzia de entrevistas sobre este evento, em cidades pequenas, no
interior de Minas, mas nenhuma emissora da Globo, embora tenham
sido procuradas, nenhuma se interessou por publicar alguma coisa sobre
este evento. Então, interpreto o fato de vocês estarem aqui como uma
fragilização do poder da mídia, na medida em que ela nos levaria para
outro lugar, para outra forma de discutir a vida.

140
Mídia e produções de subjetividade:
o poder da mídia

Vito Giannotti
Gostei muito do título desta Mesa, Mídia e Produção de Subjetividades:
O Poder da Mídia, porque essa discussão sobre o poder da mídia aparece
todo dia, no meu café da manhã. É uma briga entre mim e minha mulher, a
jornalista Claudia Santiago, porque eu defendo a idéia de que a mídia tem
um poder enorme, e ela relativiza mais esse poder. Minha companheira,
um pouco mais sensata do que eu, sempre briga comigo, porque, na visão
dela, dou um poder excessivo à mídia e não deixo nenhuma liberdade de
opção fora dela. Não existiria o livre arbítrio, na minha visão.
Se nós estivéssemos num teste de múltipla escolha sobre o poder da
mídia, se é absoluto, fortíssimo, relativo ou quase absoluto, eu, querendo
ser moderado, diria que é quase absoluto, quer dizer, perto do absoluto.
Há pessoas que acham que é relativo, ou seja, que a mídia tem poder,
mas não é tanto assim, pois as pessoas pensam, mas, na minha opinião,
elas pensam o que a mídia quer que pensem.
Vejamos um exemplo. 40 anos atrás, o mundo estava empesteado de
fumaça de cigarro. Não tenho nada contra cigarro, mas, vou falar do
fato que, há 30, 40 anos, o mundo inteiro fumava. No filme Casablanca,
há momentos em que parece que a película do filme está com defeito.
Não se enxerga quase nada. Mas não é um defeito da película, é que
não se enxerga quase nada mesmo. Os dois protagonistas principais
estão num bar mal iluminado, bebendo, fumando, soltando uma
baforada atrás da outra. Quase não se enxerga os atores. É fumaça o
tempo todo. Foi a época em que quase o mundo todo passou a fumar.
Quem disse que o ser humano seria um fumante? Se Hollywood não
tivesse existido, não existiria, no mundo, esta epidemia de fumantes. É
esse o poder da mídia.
Outro exemplo. Durante os anos mais duros da a ditadura militar, entre
1969 e 1973, qual era o poder da mídia? Eu digo que quase absoluto.
Vivia-se o poder absoluto, total, das forças armadas, o poder dos
torturadores que assassinavam os militantes de esquerda. Em 69, 70, 71,

141
centenas de militantes contra a ditadura, entre os quais eu, tentávamos
dizer aos companheiros com os quais trabalhávamos nas fábricas, que
estávamos numa ditadura, que havia mortos, presos, assassinados,
torturados. Mas ninguém nos ouvia, ninguém se interessava. Quem é
que conseguia anestesiar totalmente o povo naquele momento? Era
o clima de oba-oba, do sonho do tal “Brasil Grande” embalado com
as musiquinhas Para a frente Brasil, Brasil, eu te amo ou o Hino da
Seleção (e quem não gosta da seleção?). Rádios e TVs tocavam essas
músicas constantemente. Além disso, havia todas as propagandas feitas
no cinema, e mais ainda pela TV e Rádio Globo dizendo que estava
tudo às mil maravilhas, que o Brasil estava perfeito. E o povo ficava
tranqüilo. Tranqüilo porque, economicamente, era a época do chamado
milagre econômico, era uma época de muito emprego. Eu, que na época
era ferramenteiro, me lembro que arrumava emprego até por telefone.
Os salários eram arrochados, mas era fácil arrumar emprego. Então o
marido arranjava emprego para a mulher, e o filho, de 13, 14 anos. Havia
uma propaganda de que o Brasil era uma maravilha, mesmo com a
ditadura, as mortes, as torturas. Nesse ponto, o poder da mídia, o poder
da propaganda era quase absoluto, na minha visão.
Só que existem fatos na História que relativizam esse poder absoluto
da propaganda, da mídia. A crise do petróleo, em 1973, por exemplo,
mudou o olhar do povo brasileiro. Em 74, 75, o tal milagre começou a
fazer água, começou a se esvaziar, e aquele clima de adesão à ditadura
mudou completamente. A OAB, que em 64 invocava o golpe, já em 75,
em São Paulo, no Largo São Francisco, lê o famoso Manifesto pela Volta
do Estado de Direito, isto é, pelo fim da ditadura. Estava mudando o
clima de adesão à ditadura. Mas esse clima não mudaria se não tivesse
estourado a chamada crise do petróleo.
Em 2006, toda a mídia, sem assumir, porque sempre faz questão de
aparecer como imparcial, apoiou o candidato Alckmin. A única exceção
foi a revista Carta Capital, que assumiu seu apoio ao candidato Lula.
Então por que o candidato de toda a mídia não ganhou, se ela é tão
poderosa quanto penso? Não ganhou, porque há fatos históricos que
relativizam o seu poder.

142
Houve o fato concreto de que para muitos, através de programas como
o Bolsa Escola, o Bolsa Família e o aumento do poder de compra do salário
mínimo, a vida teve uma pequena melhora. O povo do bolsa-escola, o povo
que começou a comer e a ganhar um pouco mais, acabou votando no
Lula. Essa mídia foi derrotada pelos fatos, como aconteceu na ditadura. O
poder da propaganda foi relativizado e anulado pelos fatos históricos. Isso
prova que o poder da mídia, embora muito grande, não é absoluto.
Há um fato que prova que o poder da mídia é enorme e capaz de
enganar milhões e bilhões de pessoas. Estamos em 2003. Os Estados
Unidos resolvem invadir, bombardear, acabar, destruir e matar 300, 400
mil pessoas no Iraque. O mundo todo “bebeu” as notícias das agências
norte-americanas e apoiou a invasão do Iraque. Claro que nem todo
mundo apoiou. Houve manifestações de mais de um milhão de pessoas,
na Alemanha, na Espanha, na Itália, na Inglaterra. Aqui no Brasil,
conseguimos juntar cerca de 500 pessoas contra o bombardeio, contra
a destruição do Iraque. Mas o grosso do mundo estava com Bush. Ou
melhor, com a CNN, com a Fox e companhia.
Tenho uma irmã na Itália. Liguei para ela num domingo, um pouco
antes de estourar a guerra, no final de fevereiro de 2003. Perguntei
como estava a situação lá. Ela respondeu: “Ih, tá difícil.” “Mas o que
aconteceu? Tem algum problema?” “Não, está muito ruim.” “Mas
quem se machucou, quem morreu? Você está doente?” “Não. Saddam
Hussein”, respondeu ela. Minha irmã estava lá com um medo terrível de
Saddam Hussein. Ainda não havia estourado a invasão americana. Eu,
pelo telefone, tentei tranqüilizá-la: “Que Saddam Hussein, que nada.”
“É, mas ele tem bomba.” “Que bomba, que nada”, eu insistia. “Tem, sim.
Tem bomba atômica, química e bacteriológica. Nós vimos tudo na TV.
Aí no Brasil, não viram, não?” “E você acreditou?” Saddam Hussein não
tinha bomba atômica, nem bomba química, nem bomba bacteriológica.
Quem criou Sadam Hussein? Que realmente criou o Saddam Hussein
foi o Bush, para poder invadir o Iraque. Bom, mas minha irmã não sabia
nada disso, nem meus irmãos, nem os cunhados, nem os concunhados.
Eles não sabiam disso, e achavam que o Bush iria lá para implantar a
democracia. Isso por quê? É o poder da mídia, quase, quase absoluto.

143
Querem outro exemplo desse poder quase absoluto da mídia? Estamos,
aqui no Brasil, na época das privatizações, de 1990 a 1999.Aconteceram
quase todas as grandes privatizações: CSN, Telebrás, Vale do Rio Doce. A
Vale do Rio Doce foi vendida por 3 bilhões e 400 mil reais. Sabem quanto
o atual presidente da Vale disse que valia a empresa? 100 milhões. Isso é
mentira, valia muito mais. Só o depósito de ouro de Eldorado dos Carajás
valia 150 bilhões de dólares. Mas ele disse que valia 100 milhões, e ela
foi vendida por 3 bilhões e 400. E o povo? O povo estava anestesiado por
dez anos de Boris Casoy, Alexandre Garcia, William Bonner e Arnaldo
Jabor que repetiam cem vezes por dia que tudo o que é público não
funciona, tudo o que é do Estado não funciona, que se deve privatizar,
etc. E quem fez essa operação de lavagem cerebral das pessoas? A
mídia. Este é o seu poder. Imaginem o que significa a Globo mostrar
uma manifestação na Avenida Paulista, em frente à Fiesp, paga pelos
empresários, de 3.000 metalúrgicos de São Paulo, que arrastavam um
elefante de quatro metros de altura. Era uma das tantas manifestações
da Força Sindical a favor do projeto neoliberal. Vem o repórter da Globo
e pergunta ao chefe da Força: “O que é esse elefante?” E o paladino da
Fiesp, Luiz Antônio Medeiros, responde tranqüilamente: “Esse elefante é
o Estado brasileiro. Como assim? O Estado brasileiro é um paquiderme, é
ineficiente, não funciona. Nada que é estatal funciona. Esse é o Estado.
Olha aqui esse elefante. É igualzinho.”
E assim, o povo brasileiro, em 96, 97, 98, estava a favor da privatização,
tenho certeza absoluta. Eu diria que 90% era a favor, sim, da privatização,
por causa de um sistema de propaganda, de chantagem, de ameaça de
perder o emprego e de mil outras artimanhas. Boris Casoy mostrava
todo dia casos de ineficiência do Estado e repetia, com ar muito sério:
“isso é uma vergonha”. Depois vinha o Alexandre Garcia, apavorando o
povo, dizendo que era preciso salvar o Brasil, isto é, precisava privatizar
tudo. A privatização passou a ser uma idéia hegemônica. Isso é o
poder da mídia.
Como se constrói a hegemonia? Como se garante a hegemonia? Essa
é uma questão importante para o Conselho Federal de Psicologia. Esse é
o tema central desta Mesa: Mídia e Psicologia.

144
Como é que se consegue ganhar o coração, a mente de milhões de pessoas
numa determinada direção política? Isso é hegemonia: a direção política da
sociedade. Na visão de Gramsci, o conceito de hegemonia é mais amplo
que só direção política. Para Gramsci, hegemonia implica a direção cultural
e moral da sociedade, ou seja, é uma visão de mundo, uma perspectiva de
mundo e uma ação conseqüente, uma nova prática cultural e moral.
Na sociedade de hoje, a direção moral e cultural é dada pelo
neoliberalismo. Essa visão exerce, desde a década de 1980, um domínio
quase absoluto sobre a vida e a visão das pessoas. A hegemonia político-
ideológica no Brasil, na França, na Itália, na Inglaterra, nos Estados
Unidos, etc., é do neoliberalismo. E como é que eles garantem essa
hegemonia? Qual é o papel da Psicologia? Como é que eles conseguem
que psicologicamente as pessoas aceitem isso? Como se ganha o coração
e a mente das pessoas?
Na minha visão, é por meio da mídia. Esse é o grande instrumento.
Gramsci afirma que a hegemonia tem duas bases: o consenso e a força. O
consenso é a coesão dos pensamentos, das vontades. A força é a força de
leis, a força do exército, a força da Justiça, e isso tudo implica coerção. A
hegemonia se garante por consenso, que é ganhar o coração e a mente
das pessoas, e, com a força, com instituições capazes de fazer com que
aquela conquista, aquela vitória, aquela visão, se consolide, se estruture
e vire poder.
E como se consegue isso? Por meio dos instrumentos, “aparelhos”
como são chamados por Gramsci. E o grande aparelho do convencimento,
hoje, é a mídia.
Nós, evidentemente, que não somos neoliberais, queremos outra
hegemonia. Como vamos conseguir? Como vamos fazer uma disputa
contra-hegemônica na sociedade? Como vamos travar isso? Não se trata
de fazer uma revolução armada. Essa, hoje, é uma discussão estéril. Nós
temos que ganhar milhões de cabeças, temos que ganhar os corações
das pessoas, e através de aparelhos privados de hegemonia. Depois a
revolução seguirá seu rumo.
O que é um jornal? Temos, por exemplo, o jornal dos trabalhadores
da Universidade, que é um aparelho privado de hegemonia. O que é

145
uma estação de rádio? O que é um programa de televisão? Um aparelho
privado de hegemonia, privado, porque não é público, nem estatal.
Não é que estes garantam a hegemonia. Eles são instrumentos para se
conseguir a hegemonia.
Queria dar outros exemplos de hegemonia ligados à comunicação.
Aqui no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, na entrada do New York City
Center, que tem a famosa Estátua da Liberdade. Essa é só o “tira-gosto”
inicial do que existe lá dentro. Tudo, lá, está escrito na língua do país da
tal estátua. Quando se procura pipoca, o que se acha? Popcorn. Aquela
Estátua da Liberdade é um aparelho privado de hegemonia. Liberdade é
viver nos Estados Unidos, vamos embora para Miami! Morte ao Iraque
e ao Saddam Hussein!”. Em Santa Catarina, há uma fábrica de tecidos,
a Havan, em cujo pátio há uma Estátua da Liberdade de 25 metros: o
mesmo na fábrica do mesmo nome, em Curitiba. Sim, 25 metros de
estátua no pátio de uma fábrica. O que tem a ver? Está lá, um gigantesco
“aparelho” da hegemonia norte-americana.
E o Big Brother, minha gente, é o que? Quem é que tem aqui uma
filha com idade entre 14 e 18 anos? O que vocês dizem para essas filhas?
Que têm que estudar, têm que trabalhar, têm que ser dignas, têm que ter
personalidade, não é isso? E o que diz o Big Brother? Como é que se ganha a
vida? É só tirar a roupa. Para quê estudar? Que besteira fazer faculdade! Para
quê? É só abrir as pernas, e pronto. A querida filhinha que em casa assiste ao
Big Brother, qual lição recebe da Globo? O que esta babá eletrônica manda
dizer está claro: “Que besteira é essa de estudar, trabalhar? Olha a Siri, como
se deu bem! Está pelada em todas as revistas. É isso que dá futuro!”
Esse é o poder da mídia. Coisa que não existia 100 anos atrás, quando
a influência sobre as novas gerações era determinada pela família, pela
escola, pelas igrejas e pelos partidos. Hoje, quem constrói o consenso é a
mídia. É assim que se constrói a hegemonia.
Em fevereiro de 2007, fui escalado para assistir a novela Páginas da
Vida. É uma loucura aquilo lá. Na véspera, no Rio de Janeiro, havia morrido
aquele menino, o João Hélio. Foi um ato bárbaro. O que aconteceu? O
crime aconteceu no dia 6 de fevereiro. No dia 8, a Globo mostrou na
novela três freiras sentadas, conversando e tomando café. Aí chega uma

146
freira toda assustada, com o jornal, obviamente O Globo, e diz: “Irmãs,
olhem. Aconteceu uma coisa muito bárbara. Uma barbárie.” Ela abre o
jornal e fica mais de um minuto mostrando a manchete principal do
jornal: “Barbárie contra a infância”. Aí as freiras se ajoelham, rezam um
pai-nosso contra aquele ato de barbárie. Soube que milhares de pessoas
se ajoelharam e rezaram junto com as freirinhas? . Nada contra rezar o
“pai-nosso”. Mas, pergunto, para que foi colocada aquela cena com as
freirinhas rezando? Porque a Globo está na campanha pela redução da
idade penal e pela pena de morte. Essa é a disputa ideológica.
E quando uns jovens da sociedade “bem” de Brasília resolveram se
divertir e puseram fogo no índio Galdino? Era o Dia do Índio. Aquele
índio pataxó, que era da Bahia, o que fazia lá em Brasília, dormindo
debaixo do ponto de ônibus? Passam quatro rapazes, todos brancos,
claro, filhos de desembargador, de juiz, promotor, deputado, todos bem
nascidos, bem criados, e dizem: “Olha, um mendigo. O que vamos fazer
com ele? Vamos comprar álcool.” Eles saíram para comprar álcool. Quer
dizer, não foi um instinto. Eles foram comprar álcool para queimar o
índio. Foram lá, cobriram-no de álcool e o incendiaram. O Globo colocou
alguma manchete tipo a do João Helio? A Globo colocou quantas
freirinhas rezando o pai-nosso? Nenhuma. E quando a polícia mata
uns 30 moradores, aqui no Complexo do Alemão? E os 21 moradores de
Queimados, que foram chacinados para vingar um policial morto pelo
tráfico? Dessas 21 pessoas, duas tinham alguma passagem pela polícia.
Normal. Em qualquer lugar, sobre 21, há duas pessoas que já tiveram
alguma passagem pela polícia. E O Globo colocou “barbárie” na sua
manchete? E as freirinhas? Se para João Helio foram 3, para os 21 de
Queimados deveriam ser 21 X 3 = 63. Sim, na novela das 8, deveriam
aparecer 63 freirinhas rezando o Pai-nosso e a Ave Maria. Mas não
apareceram. Por quê?
Um último exemplo: a novela Senhora do Destino. Último capítulo.
58 milhões de brasileiros iriam assistir. E eu tive que ser um deles. Sentei,
pronto para analisar; inteligentemente, peguei papel, caneta, pronto para
observar tudo. Assisti ao capítulo e não achei nada de estranho. Nada de
especial. Só não entendia o porquê de se mostrar um acampamento do

147
MST. Se eu não entendi, 56 dos 58 milhões que assistiram também não
entenderam nada. Aquele último capítulo é fatal para dar a idéia de que
o MST é um bando de violentos, assassinos, matadores, vagabundos, um
lugar ideal para se fazer um seqüestro. Logo em seguida, o comparsa
da Nazaré queria o resgate da menina; então, ela pega um pedaço de
pau, bate na cabeça do comparsa que queria o dinheiro do resgate e
ele morre. Onde foi que ele morreu? No acampamento do MST. Assim,
tranquilamente. É isso mesmo, o lugar ideal para se levar uma pessoa
seqüestrada é lá, no acampamento do MST. Lugar ideal para matar
alguém a pauladas é lá, no MST. Ótimo capítulo. Um final assistido
por 58 milhões de pessoas para dizer que o MST é violento! Isso é a
mídia empresarial. Isso é a mídia comercial. É assim que ela condiciona
corações e mentes.

148
Mídia e produções de subjetividade:
o poder da mídia

Marcos Dantas
Sempre gosto de lembrar alguns fatos históricos, hoje em dia um
tanto esquecidos. No início do século XIX, o que era a imprensa? Aquilo
que se denominava imprensa não passava de panfleto político. Era uma
imprensa da esfera pública, ligada aos movimentos políticos da época,
alguns mais radicais, outros mais conservadores, feita em jornaizinhos
de quatro páginas, jornaizinhos de opinião, sem nenhuma notícia,
destinada a influenciar os leitores. Circulações eram pequenas, 2 mil,
3 mil, 4 mil exemplares. Circulavam de mão em mão, custavam alguns
centavos. Eram lidos pela parcela da população que tinha presença,
participação na política.
Em meados do século XIX, do lado de cá do Atlântico, os Estados Unidos
da América começam a nascer como potência capitalista, começam
a contar com cidades muito populosas e com uma já muito grande
população trabalhadora. Nesse cenário, nasce um jornal chamado The
New York Sun. Esse jornal, em poucas semanas, alcança a extraordinária
circulação de 30 mil exemplares. Trazia notícias, trazia palavras cruzadas,
trazia informações, meio verdadeiras, meio falsas, não raro bizarras, que
encontrou uma população ávida para ler temas sem compromissos,
temas divertidos, uma população que queria encontrar um objeto de
leitura para o seu tempo de lazer, o seu tempo livre, algo que tivesse a
ver, realmente, com o descansar, com o ócio, com o lazer.
A população já estava cansada daquele discurso político: “Vamos fazer
ou não fazer a revolução”, “Vamos ser conservadores”, “Vamos ser liberais”.
Ela queria alguma coisa para se divertir. Esse jornal praticamente deu
início à história da imprensa contemporânea. Descobriu a fórmula e,
depois dele, começaram a aparecer, tanto nos Estados Unidos quanto na
Europa, muitos outros jornais de grande circulação, algo despolitizado,
que estariam na origem disto que hoje chamamos imprensa de massa.
Passam a funcionar como uma grande indústria, voltada, como qualquer
outra, para acumular capital.

149
Outra história que precisa ser recuperada é a do rádio. Quando foi
inventado, no início do século XX, não se sabia muito bem o que fazer com
ele. Os meios de comunicação, naquela época a telegrafia e a telefonia,
eram usados basicamente pelos homens de negócios. Não eram usados
pela família, não eram usados nas casas. Eram usados pelos banqueiros,
pelos empresários, para tornar mais rápida a comunicação para fechar
negócios. E o rádio também deveria ser usado para isso. Mas o rádio
tinha um grande defeito: o que se falava pelo rádio, todos ouviam. Fazer
negócio com todos ouvindo é um tanto complicado. Então o mercado,
usemos este termo, não sabia muito bem o que fazer com o rádio.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a produção de equipamentos
e sistemas de radiofonia explodiu, pois eram muito usados para a
comunicação no front, comunicação nas batalhas. Depois da guerra,
as indústrias precisaram ocupar a capacidade instalada de produção e
colocaram no mercado civil os componentes e equipamentos. Só então
as pessoas passaram a usar o rádio, mas de forma livre e divertida.
Em 1927, existiam 6 milhões de radioamadores nos Estados Unidos,
isto é, 6 milhões de pessoas que tinham poder não só de escutar, mas
também de falar. Então, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht escreveu
um livreto chamado Teoria do Rádio, no qual sugeria a formação de
um serviço público de radiodifusão, ao qual todas as pessoas teriam
acesso de forma organizada, dotando-se todas elas de um aparelho para
falar e escutar em suas casas. Depois de quase cem anos, hoje, com o
desenvolvimento tecnológico que atingimos, talvez eu estivesse fazendo
esta palestra para vocês da minha própria casa.
É claro que um processo desses criaria vários problemas. Vocês podem
imaginar que uma rádio assim poderia, por exemplo, ter impedido
a ascensão ao poder de facínoras como Hitler. Ele começaria a falar
pelo rádio e, na mesma hora, alguém iria contestá-lo, iria polemizar.
Essa rádio transformaria toda a sociedade em uma grande assembleia
política. Por isso mesmo, nesta hora, em todos os países, o rádio foi
estatizado: na Alemanha, no Reino Unido, nos Estados Unidos, na
França, na União Soviética, no Japão, em todo o mundo, por decreto ou
por leis parlamentares, o acesso ao espectro de frequência foi limitado

150
a quem o Estado concedesse esse acesso. E, com exceção dos Estados
Unidos, em todo o mundo capitalista avançado, o Estado monopolizou
o próprio rádio.
Na ponta da recepção, as indústrias acharam muito interessante
vender aparelhos de rádio prontinhos para se ouvir. E as pessoas acharam
ótimo, porque era muito mais simples: era só mexer um botão e poder-
se-ia ir lavar louça, ler um livro, ir para a cama, e deixar aquela caixinha
de música seguir tocando. Rapidamente desapareceram os milhões
de radioamadores e, em todos os países, começou a se estabelecer
um serviço de radiodifusão unidirecional, um sistema no qual poucos
falavam e todos ouviam.
Nos Estados Unidos, surge uma rádio comercial. Por que surgiu uma
rádio comercial? Porque havia um mercado para pagar a publicidade no
rádio. E havia pessoas que queriam escutar rádio como entretenimento,
ouvir o rádio-teatro, ouvir uma hora de música (aquele jazz americano
dos anos 30), ouvir as transmissões do boxe ou do futebol americano.
Essas pessoas compravam rádio. Se essas pessoas não gostassem
disso, elas não teriam comprado um rádio. Se elas compravam, se elas
gastavam dinheiro, era porque aquilo significava algo para elas. Aquela
novela, aquela música que era tocada, aquele noticiário, do jeito que
eram feitos, tinham alguma relação com a vida delas.
Dito isso, venhamos para o Brasil de hoje. Não sei quantos aqui –
embora acredite que a maioria – têm televisão a cabo em casa. Cerca
de 4 milhões de brasileiros hoje assinam a TV a cabo. A TV a cabo, nós
sabemos, tem cerca de 70 canais: canal de história, de documentário, de
animais domésticos, de notícias, de cinema, e de muito mais. No entanto,
70% dos assinantes de TV a cabo, no Brasil, assistem à Globo, à Record, à
Bandeirantes, ao SBT. Pagam R$100 por mês para assistir a uma televisão
pela qual não precisariam pagar nada. Pagam porque o sinal dessa
televisão chega muito mal a boa parte das nossas casas. O espectador
quer ter um sinal melhor, tem uma renda sobrando, logo paga.
A televisão está presente em 90% dos lares brasileiros e 78% da
população que tem televisão assiste a novelas. Esse indicador é mais ou
menos similar em todas as classes: A, B, C e D. Todos assistem a novelas.

151
Todas as classes. O patrão e a empregada. Sou um dos poucos que não
assistem. Então, alguma relação existe entre a novela e a sociedade, entre
a televisão e a sociedade.
Aí inventaram a internete. Que bom, agora teremos democracia!
Agora, vamos poder falar o que quisermos. Boa parte das pessoas aqui,
com certeza, tem orkut. Pergunto: As pessoas usam esse instrumental
fantástico para discutir os problemas da sociedade, para construir uma
nova sociedade, para debater alguma coisa? Ninguém é obrigado ali a
nada, ninguém está submetido a nenhum monopólio. No entanto, a
quantidade de lixo que existe na rede é muito grande. Nós poderíamos
fazer muitas coisas, mas o que vemos é uma quantidade enorme de
brincadeiras, de jogos, de ideias tolas, de conversas de botequim, e tudo
em um português horroroso, ainda por cima.
Os mais velhos devem estar lembrados, mas os mais novos daqui
ainda não eram nascidos: quando se fez a campanha das Diretas Já, a
Globo veiculou uma notícia, dizendo que havia 1 milhão de pessoas em
São Paulo num show de música. Essa história é famosa. Na verdade, era
um comício. Não dava para dizer que era um show de música. A Globo
caiu no ridículo, foi pressionada pela sociedade, até seus jornalistas
disseram “Não dá!”, as pessoas foram lá para a porta da Globo, pressionar,
e a emissora teve de mudar sua linha de noticiário. Sim, o noticiário
da Globo funciona, mas só se está minimamente em sintonia com a
sociedade. Quando não, ela é obrigada a mudar. Ou se arrisca a perder,
como aconteceu nas últimas eleições presidenciais.
Até o final dos anos 80, havia na Europa cerca de 34 estações de
televisão. Há cerca de 34 países na Europa, e cada qual tinha seu próprio
monopólio estatal de televisão. Começou todo um processo, não dá para
entrar em detalhes aqui, e hoje existem na Europa cerca de 800 canais
de televisão. Tenho certeza de que são canais comerciais, são canais
sustentados por publicidade paga e, em boa parte, por assinaturas. Mas
estão tendo sucesso. O número de canais cresceu de 34 para 800, e o
mercado das estatais encolheu. O que o público quer?
Por que abordo esses fatos? Agora passo para o campo mais teórico,
mais na minha área para lembrar algumas questões que costumamos

152
discutir em teorias da comunicação. A primeira, conhecida e famosa, é
a Escola de Frankfurt.
A Escola de Frankfurt fez um estudo brilhante sobre a indústria
cultural, exatamente aquela indústria dos tempos áureos do rádio.
Adorno, Horkheimer e seus contemporâneos perceberam que os
trabalhadores daquele tempo, milhões e milhões de americanos daquela
época, empregados em alguma fábrica chapliniana (todos aqui já viram
Os tempos modernos, de Chaplin), ou naqueles escritórios em que se devia
ficar horas, horas e horas datilografando, pois não existia computador,
esses milhões e milhões de trabalhadores que trabalhavam oito horas por
dia, tinham oito horas para dormir e oito horas de tempo livre. O que eles
iriam fazer no seu tempo livre? Eles iriam criar, discutir política, criticar
o capitalismo, pintar, fazer teatro? Se eles fossem criar ou fazer política,
não voltariam para trabalhar no dia seguinte. Alguns, que eventualmente
faziam isso, acabavam malucos, bêbados ou mudavam de profissão.
Mas, se a pessoa precisava, naquela época, de tempo livre para se
refazer e voltar ao trabalho no dia seguinte, ela precisaria também
de um produto mais ou menos pronto para ocupar esse seu tempo
livre, de um produto sobre o qual ela não precisasse pensar muito, que
ela pudesse absorver fácil. Esta era uma demanda daquela massa de
milhões de trabalhadores. Por isto fez sucesso, porque correspondia a
uma realidade social. Aqueles meios que surgiram naquela época, como
rádio e cinema, produziram aquela cultura porque ela correspondia
a uma determinada necessidade social. E as pessoas que produziam
esses meios, o jornalista, o repórter, o cineasta, o roteirista, também
nasceram naquela sociedade, compartilhavam de seus valores, haviam
estudado junto com seus futuros ouvintes ou espectadores ou leitores
em alguma escola pública de alguma cidade estadunidense. Depois,
um foi ser frentista num posto de gasolina, e o outro foi ser radialista
na rádio da cidade. Os valores são os mesmos. Cada um cresce e tem
suas oportunidades: uns vão mais longe, outros se acomodam, mas os
valores são os mesmos. Então, aquele que optou por ser radialista passa
a transmitir aqueles valores comuns a toda a sociedade e faz sucesso
por isso, porque diz o que o ouvinte quer ouvir.

153
Gosto muito das ideias de um corpo de teóricos, quase todos
lá nos Estados Unidos, mas nem todos americanos, reunidos no que
se denominou Escola de Palo Alto. Um de seus pesquisadores, Paul
Watzlawick, afirmou: “Ninguém pode nada comunicar.” Digamos, aqui eu
estou falando. Mas cada um de vocês, por um olhar, por um movimento
de cabeça, pela posição de mãos ou de corpo, por um bocejo ou um
discreto sorriso, cada um de vocês está, a cada instante, me dizendo,
também, se concorda ou discorda, entendeu ou não entendeu, gostou
ou não gostou.
Vocês são tão emissores quanto eu. Só se consegue enviar uma
mensagem, seja por que meio for, se do outro lado existe outro polo,
que eu não gosto de chamar de receptor, porque receptor dá uma visão
apassivada, outro polo que é capaz de captar a mensagem e traduzi-la
nos seus próprios referenciais, aceitá-la, rejeitá-la. Quando se consegue
equalizar esses polos, aí se fecha o circuito da comunicação. Se não se
consegue equalizar esses polos, não haverá comunicação.
Temos uma rede de TV que consegue atingir 50%, 60% da audiência.
Claro que, de alguma forma, ela está captando melhor os polos receptores,
e está conseguindo equalizar a comunicação. Há de haver essa relação
imediata de quem fala com quem escuta, entre os polos da comunicação.
Hoje, a internete nos permite até comunicar melhor, porque permite a
todos ser participantes da comunicação, de alguma maneira.
Mas, convenhamos, em tudo isso parece existir um polo muito forte.
Quem detém esse polo muito forte? Os profissionais dos meios de
comunicação.
Há um conceito que, confesso, me inquieta. A mídia, a mídia, a mídia.
De repente, a mídia se tornou uma entidade, é vista como o sujeito.
Não. A mídia não existe. Existem as pessoas concretas que a produzem,
as pessoas que estão nas redações, com suas relações de poder, suas
disputas de poder, seus interesses de ascensão material e simbólica.
Para entendermos isso, outro teórico importante é Pierre Bourdieu. A
mídia não existe. Na sociedade em que nós vivemos, capitalista, aqueles
que, por razões pessoais, por personalidade, por competência técnica, por
uma série de qualidades, optam por ser artistas, jornalistas ou radialistas,

154
entram numa estrutura, num campo de poder, e vão jogar as regras do
jogo para se reproduzir e crescer nesse campo. E todas as vezes que eu
digo “a mídia”, eu estou absolvendo todos eles.
Posso escolher não ser do campo; posso fazer essa opção, ainda que
pagando caro por isso. Quem está lá, optou por estar lá, por escrever
o que escreve, por representar o que representa. A mídia tem muitos
nomes e sobrenomes, não somente os das famílias proprietárias, mas,
sobretudo, muito mais importante, os de seus alegres funcionários. O
fato é que, na sociedade em que vivemos, a grande maioria, até por
necessidade de sobrevivência e pelo prazer, pelas recompensas, ou
materiais, ou espirituais, ou políticas, ou simbólicas, entra no jogo. E, de
muitas maneiras, reproduz as regras do campo, explícitas ou implícitas.
A partir daí, esse processo de reprodução do campo gera uma
estrutura endógena de poder, que se articula com outras estruturas de
poder na sociedade, e só se sustenta na medida em que consegue unir
essas outras estruturas de poder dentro de um jogo, que é o jogo da
sociedade capitalista.
Vivemos numa sociedade muito miserável, sabemos disso, numa
sociedade de tal maneira miserável que a grande ambição hoje de nossa
pobreza é: se meu bebê for menino, tomara que ele seja jogador de
futebol; se for menina, tomara que ela seja capa da Playboy, porque é a
chance mínima de redenção do pai e da mãe. Mas não é a mídia quem
faz isso, é uma sociedade extremamente miserável. Nos Estados Unidos,
na Coreia, no Japão, na Inglaterra, na França, na Alemanha, não se vê
isso. Existem, claro, aqueles que, por opção pessoal, vão seguir essas
carreiras. Há muitos, mas não se vê isso como ambição generalizada de
ascensão social. Ou eu sou mulher nua, ou sou jogador de futebol. Nos
países capitalistas centrais, a sociedade oferece muitas oportunidades a
seu povo, e a escola pública oferece outras. No metrô de Paris, no metrô
de Londres, é fácil perceber quanta gente lê. Aqui no Brasil, ninguém
lê. Então, vamos melhorar nossa escola pública, nosso serviço de saúde,
vamos melhorar a sociedade que estamos construindo.
É possível mudar isso? Claro que é, mas é possível mudar isso na
medida em que começarmos a enfrentar problemas reais e saibamos

155
dizer: “Olha, isso aqui é uma parcela, é a turma que está lá, trabalhando
nos meios de comunicação, mas esses meios de comunicação são
parte da sociedade que nós temos.” Só mudam se mudarmos esta
mesma sociedade.

156
Mídia e produções de subjetividade:
questões do racismo

Coordenação
Ana Bock

157
Mídia e produções de subjetividade:
questões do racismo

Maria Aparecida da Silva Bento


Eu gostaria de começar dizendo que, se se observa a militância
do movimento negro, ou a própria mídia, nos principais textos dos
intelectuais do movimento negro, mídia é o nosso grande centro de
preocupações. Não apenas os intelectuais, mas as diferentes vertentes,
os jovens, as pessoas que participam de diferentes atividades ligadas ao
movimento negro, têm, no seu discurso, nos seus escritos, a preocupação
com a questão da mídia. E isso não foi diferente para mim. Quando
escrevi, com Iray Carone, o livro Psicologia Social do Racismo[1], esse
tema da mídia, que associei muito a branquitude, a identidade racial, foi
fundamental para mim.
Gostaria de começar trazendo dois casos que exemplificam como
isso tem sido importante para o movimento. Importantes organizações,
como o Geledés – Instituto da Mulher negra[2], por exemplo, uma das
mais antigas, eu acho, organizações de movimento de mulheres, e aqui
no caso de mulheres negras, tem uma das mais importantes ações
contra a TV Globo pela maneira como os negros aparecem nas novelas
da emissora. Assim como o Geledés, dando outro exemplo, o CEERT[3], que
é uma organização da qual faço parte, entrou também com uma ação
contra a TV Record e a Rede Mulher pela maneira como eles tratam as
religiões de matriz africana nos seus programas, pela maneira como se
referem às religiões, aos templos, aos religiosos.
Entendemos que eles incitam o preconceito ao demonizarem as religiões
de matriz africana, no caso o candomblé e a umbanda. Sempre discutimos,
entramos com ações em todas as instâncias, o que mostra que existe um

1] Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil / Iray Carone,
Maria Aparecida Silva Bento (organizadoras). – Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

2] Geledés – Instituto da Mulher Negra, fundada em 1988. Site: www.geledes.org.br.

3] CEERT – Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades. Desde 1990 realiza pesquisas
e intervenção focalizadas na valorização da diversidade e na superação de todas as formas de
discriminação no trabalho, nos serviços públicos e no acesso à Justiça. Site: www.ceert.org.br.

159
espaço para atuarmos. Quando iniciamos a ação, foi exatamente sobre o
fato de a televisão estar produzindo uma subjetividade racista, de a televisão
estar produzindo o preconceito. Isso tinha um objetivo muito claro:
aumentar a agressão às religiões de matrizes africanas, às pessoas, aumentar
a rejeição às crianças que fazem parte dessas religiões, enfim, todo um
aprofundamento dos processos de preconceito e discriminação, e a mídia
era um elemento, um veículo fundamental para isso. E, com estas ações,
conseguimos direito de resposta em várias instâncias, ou seja, conseguimos
um espaço, no horário nobre para dar resposta a estas expressões de
preconceito. Escolhemos responder através de uma bela campanha,
Liberdade de crença e religião trouxe ministros de diferentes religiões para
se manifestarem e fizemos um belíssimo programa, mas ainda não foi ao ar,
pois a ação está ainda no Superior Tribunal Federal. Mas vamos confiar que
tudo vai dar certo, e vamos ter um tempo na televisão para mandar uma
mensagem que fomente uma cultura de respeito à diversidade e da paz.
 Essa é a primeira preocupação que é considerada importante.
Otavio Ianni, um importante intelectual, dizia que o branco inventa
o negro, e quer embutir esse negro nos outros brancos e nos próprios
negros. E isso é muito verdadeiro. Nesse livro, Psicologia Social do
Racismo, uma autora, Sonia Maria, relata casos de meninas negras
atendidas no Hospital das Clínicas, de São Paulo, que tinham grande
dificuldade em aceitar o seu tipo de cabelo, e não só o cabelo, mas
também seu pertencimento racial, mas era em relação ao cabelo que
o problema aparecia com mais força. E isso foi abordado em um artigo
que três psicólogas escreveram. Então, foram seis anos em que essas
psicólogas observaram a dificuldade que as meninas negras tinham com
a sua aparência, com seu cabelo. É um “defeito de fabricação” do mundo
negro, das meninas negras, que não conseguem sentir-se bem com seus
cabelos? Não. Não é disso que estamos falando. Então, que influência,
que impacto tem, por exemplo, quando se passa da Xuxa para a Angélica,
da Angélica para a Eliana, que são absolutamente loiras? Que impacto
isso tem sobre as meninas que não são loirinhas?
Primeiro, temos que pensar como essa formação de subjetividade se
concretiza no cotidiano. De um lado, temos um processo extremamente

160
racista, como, por exemplo, no caso das paquitas, em que aquelas que
não tinham a cor do cabelo da apresentadora tinham que tingir os
cabelos. Quando pensamos em mídia e subjetividade, estamos falando
de narcisismo na sua versão mais cruel, e vocês já devem ter visto muitas
matérias de jornal nesse sentido; então, se, de repente, você quer ser
dançarina de programa de tv, tem o cabelo claro, mas não tão claro quanto
o da apresentadora, então você vai mudar a cor do seu cabelo para fazer
parte do grupo? Percebemos assim, o quanto essa questão de mídia e
subjetividade tem de narcisismo, de se colocar como modelo universal,
como modelo de beleza, modelo de competência, e o quanto isso causa
impacto nos que estão recebendo a mensagem. Não causa impacto só
nas crianças negras, as que vão se sentir mal, mas também em muitas
crianças brancas. O impacto sobre as crianças brancas é que elas estão
sendo reafirmadas na sua auto-estima. Acho isso muito difícil, quando
trabalhamos mídia, subjetividade e racismo, porque, se trabalhamos
com pessoas da esquerda, progressistas, elas têm muita dificuldade de
compreender isso, porque estamos tocando em uma outra dimensão. É
difícil para uma pessoa branca, muito freqüentemente, ainda que passe
dificuldades, compreender como o impacto dessa mídia é diferente na
par a minha filha e para a filha dela, ambas assistindo à mesma televisão.
A minha e a sua filha, em frente ao mesmo vídeo, assistindo aos mesmos
programas, as nossas duas filhas têm o mesmo tipo de boneca, as nossas
duas filhas têm o mesmo tipo de cabeça, só que os nossos filhos querem
namorar as meninas parecidas com as que estão lá na televisão. Então,
acho que, nesta foto em que a minha filha se sente mal, a filha da minha
amiga está bem colocada. Mesmo que minha amiga seja muito pobre,
uma companheira branca, loira, pobre, que mora num barraco ao lado do
meu, a sua filha começa a assistir televisão e se sente bem, mas a minha
filha se sente mal. E tenho dificuldade de discutir isso com minha amiga
branca, loira. Trago esse tema para o nosso campo da Psicologia, para as
nossas companheiras psicólogas.
Então, o que poderíamos chamar de esquerda, de pessoas que estão
aqui, batalhando, e vimos isso na discussão com a mídia, em São Paulo,
quando demos entrada à ação contra a TV Record, que as pessoas tinham

161
uma grande dificuldade em reconhecer que tinham um problema muito
grave e muito específico na área das relações raciais.
Há outra questão muito importante quando pensamos em
subjetividade, e que deveríamos objetivar: quando se pensa em uma
pessoa (aqui comecei falando de pessoas brancas, de repente, alimentando
o segmento branco que inventou o branco e o negro que vemos todos
os dias nas novelas), ela inventa, a partir da sua subjetividade, o branco
e o negro a que assistimos (quando conseguimos assistir aos negros)
nas novelas. E esse negro inventado é o negro bandido, ou subalterno,
ou que não tem família na novela, um negro que tem pouca voz, etc. Em
qual nicho está esse negro? Em qual nicho está esse branco? Essa é uma
questão importante.
Mas temos que pensar ainda em outras coisas, como, por exemplo, em
uma mídia como a de São Paulo. Há um forte movimento em São Paulo,
muito ligado à Folha de São Paulo. O que nós queríamos? Queríamos um
debate real sobre cotas. Não havia sido feito esse debate. O que tínhamos?
Todos os articulistas da Folha de São Paulo são brancos que defendem as
cotas. É outra mensagem, não? Quando foram abertas novas possibilidades,
novas contratações de articulistas para a Folha de São Paulo, teve início um
movimento que cresceu cada vez mais. Algumas pessoas (e eu estive junto),
chegaram a ter uma reunião com a coordenação da equipe da Folha de
São Paulo, levamos currículos de articulistas que poderiam fazer um debate
real sobre as cotas, posições favoráveis e posições desfavoráveis. E o que
conseguimos? Nenhum articulista de verdade, porque ali existe uma outra
questão da formação da subjetividade: há um grupo que contrata, que
tem interesses, e que precisa que esses interesses sejam permanentemente
defendidos. É um grupo que não quer mudanças. É a elite que dirige todas
essas instituições, e ela não quer mudanças. Então, uma voz contra as cotas
não é bem vista. E não é só uma voz contra as cotas. O que chamamos a
atenção na questão de mídia e subjetividade é que as principais pesquisas
que temos hoje, se entrarmos na internet, sobre o desempenho dos cotistas,
é que nenhuma pesquisa trouxe, até hoje, desempenho inferior dos cotistas
em relação aos outros alunos, e a maioria das pesquisas informa que as
cotas são aprovadas pela maior parte da população.

162
Esse tipo de produção de subjetividade é boa para que os jovens negros,
que estão aí batalhando pelas cotas, vejam que a população é favorável
às cotas, sim, mas isso não é noticiado pelos jornais. E qual é o impacto
desse fato nos jovens brancos e nos jovens negros, quando se tem uma
mídia que critica e passa o tempo inteiro afirmando o quanto às cotas
são um caminho errado, um caminho inadequado? Hoje mesmo lia os
jornais, antes de vir para cá, e todos eles repetem que, nos Estados Unidos,
as cotas raciais nas universidades agora são proibidas. Nunca se discutiu
cotas raciais nos Estados Unidos no cotidiano dos canais de TV. Hoje a
notícia foi de um jornal para o outro, e, com certeza, será vista à noite
no Jornal Nacional. E só aparece esse lado. Então, devemos pensar sobre
isso também como parte da formação de subjetividade, que interessa a
quem nos vê e a quem não vemos, interessa ao grupo, às corporações, às
universidades, enfim, aquele apoio social que não vemos.
Há uma dimensão, quando falamos de cotas, que considero
importante, que é a discriminação por interesse. Existe a discriminação
por preconceito, que não entendemos, “será que negros e brancos são
iguais?”, e a discriminação por interesse, que é uma linha das mais
importantes e à qual precisamos prestar atenção. Esta é a discriminação
que visa à manutenção de privilégios, ou seja, é a discriminação que não
está baseada exatamente numa rejeição ao perfil do negro ou ao perfil
indígena, mas promove a defesa de um interesse: não é que eu não goste
de estar com os negros: eu gosto, sou madrinha, vou aos fins de semana
à escola de samba, gosto da negrada, mas quero manter o meu grupo
num lugar de privilégio. Acho essa linha de pesquisa interessante, e pode
ser trabalhada na questão de mídia e subjetividade.
Há uma dimensão da nossa subjetividade que vai sempre estar
fortalecida: a auto-estima. O grupo que controla a mídia forma bodes
expiatórios, e eles se tornam os culpados pelos problemas sociais. Em
São Paulo, quando houve pessoas que arrastavam mala de dinheiro e que
apareceram com dinheiro na cueca, e eram todos brancos, porém tivemos
o problema do PCC no mesmo período, e a polícia saiu matando; 70% das
pessoas que morreram eram negras. Como se trata de direitos humanos,
tivemos acesso a essas informações. Mas aqueles que arrastaram malas

163
de dinheiro não eram jovens negros. Então, é assim que se formam bodes
expiatórios, para os quais dirigimos a agressividade  que não podemos
dirigir para os grandes bandidos.
Para finalizar, gostaria de trazer o estudo de um rapaz,  Paulo Vinícius,
porque penso que ele reforça muito do que temos visto ultimamente. Ele
trabalhou com 729 campanhas publicitárias ao longo do tempo. É um
grupo de sete pessoas, e ele vai dizer que os poucos negros que aparecem
nas campanhas publicitárias não usam a fala, não têm família, não
aparecem sozinhos, mas apenas formam o quadro de diversidade racial,
e confirmam idéias de diversidade racial. Ele discute o quão contundente
é o impacto, não só físico, mas emocional, afetivo, espiritual, desse tipo
de imaginário, e ressalta que devemos evitar a banalização, que tem um
forte impacto, tanto nos homens brancos quanto nos homens negros, e
reafirma o ideal de uns, que é o ideal de supremacia, e exclui outros.
Nós herdamos uma subjetividade. Somos herdeiros e subsidiários
de uma subjetividade que nos antecede. Trazemos essa mensagem,
atualizamos essa mensagem e a passamos para os nossos filhos. Temos
que pensar o quanto reproduzimos isso e o quanto podemos ser agentes
de mudança nessa corrente que reforça as desigualdades raciais no
nosso país.

164
Mídia e produções de subjetividade:
questões do racismo

Joel Zito Araújo


Gostaria de iniciar a minha exposição com um histórico sobre o
papel da mídia, e não somente sobre o seu papel agora, na produção
de subjetividade ou na internalização do racismo. Penso que a mídia,
especialmente na América Latina e no Brasil, historicamente, cresceu
junto a algo muito especial para esta, discussão que foi a construção
da nossa identidade nacional. Então, se pensamos só na atualidade,
perdemos um pouco a profundidade dessa discussão. Então, vou começar
por aí, depois passo ao presente.
Para o Brasil, um momento fundamental na construção da idéia de
ser brasileiro, dos elementos fundamentais da cultura brasileira, veio no
período do Estado Novo, a partir da década de 30. Antes dos anos 30, já
havia jornal. Mas é exatamente ao mesmo tempo dessa construção de
uma nova idéia de nação que vai aparecer a primeira mídia de massa,
o rádio, que vai ser fundamental na difusão dessa idéia. Isso não só
aconteceu no Brasil como também no México, na Argentina e em diversos
lugares do mundo. Naquele mesmo momento, um dos intelectuais que
se destacaram nessa discussão do “quem somos nós”, foi Gilberto Freire.
Nesse mesmo momento, quando esses territórios estavam produzindo
várias subjetividades de certa forma, desvinculadas de um imaginário, de
uma subjetividade anterior, colonial, daqueles que viveram aqui, que era
uma subjetividade ligada a Portugal, ligada ao império-colônia, é que
essa mídia de massa vai começar a construir o nosso imaginário singular,
fundamentalmente por meio da difusão de produtos culturais: a difusão
do samba, o papel do futebol, do jeitinho brasileiro, e por aí afora.
Eu gostaria de fazer uma pequena observação: acho que a mídia em
geral, em todo o mundo, não é a inventora de novos conteúdos culturais,
novas visões culturais, mas ela é uma enorme caixa de ressonância dessas
visões. Quem inventou, quem consolidou o “o que é ser brasileiro” foi um
grupo de intelectuais, pensadores, artistas, desde o fim da colônia, mas a
mídia tornou essas idéias extremamente populares. Inicialmente, nos anos

165
30, surgiu o rádio; a partir dos anos 40, o cinema, principalmente naquela
época, era de fato uma mídia de massa no Brasil. Quem é da minha
geração sabe muito bem o que significava ir ao cinema: íamos àquelas
enormes salas de cinema para reunir-nos àquelas centenas de pessoas,
era uma reunião familiar e coletiva ao mesmo tempo, e as pessoas iam
bem arrumadas ao cinema. Íamos à missa para olhar as meninas, e íamos
ao cinema para encontrá-las. Então, nos anos 40, o cinema constituía
esse espaço de construção da subjetividade, e é nessa época que ela vai
começar a surgir de uma forma impactante, a se fortalecer.
No período do Brasil colônia, era decisão das elites brasileiras, e
também decisão do Estado, que a vocação natural do Brasil era ser um
país branco, que o ideal para o Brasil era ser como os países europeus,
branco. Então, no Brasil, a modernidade e o futuro brasileiros estariam
vinculados ao fortalecimento das nossas características européias.
Tudo isso apareceu como discurso no passado colonial, e foi
especialmente enfatizado no período da abolição da escravatura. E é o
que está na base da política do Estado brasileiro, de substituição de mão
de obra escrava por brancos europeus com a promoção de campanhas
migratórias na Itália, Espanha e Alemanha. Isso foi incorporado pela
mídia, portanto, essa é a história racial de nossa mídia, e agora já começo
a falar da mídia audiovisual, que passou a ser uma enorme difusora e
propulsora dessa estética. Ela começa, cada vez mais, a defender um
padrão ariano na escolha de galãs e mocinhas, mesmo que o arianismo
hitlerista tenha sido derrotado na Segunda Guerra Mundial. Mas foi
exatamente a mídia audiovisual do Brasil, primeiro o cinema, depois a
televisão, não só do Brasil, da América Latina, do Terceiro Mundo, que
fortaleceu essa idéia da superioridade de uma raça sobre a outra, não
por meio de um discurso político, mas por meio de imagens. E é por
isso que nós todos internalizamos que o belo é o branco. Quanto mais
ariano for o branco, se for ela, vai virar a rainha dos baixinhos, que é o
caso da Xuxa, e, quanto mais negro, mais feio, mais marginalizado, mais
associado a representações negativas e de inferioridade racial.
Então, a mídia reforçou essas idéias que já estavam presentes desde o
período da escravidão, só que reforçou por meio de um discurso estético,

166
um discurso de imagens. Transformou em imagens o que era um discurso
oral e político. Ela começou a alimentar, de uma forma que causava muito
mais impacto dentro da nossa subjetividade, esse tipo de imaginário. É
por isso que, após esse período de cinema de massa, dos anos 40 aos 60,
os anos 70 são os anos de esvaziamento das salas de cinema, os anos
da redução das salas de cinema no Brasil, pois nós tínhamos mais de
três mil salas de cinema no início dos anos 70, no Brasil, e, no início do
século XXI, tínhamos metade desse número. Atualmente, temos 2.000
salas de cinema. Então estamos em um novo ciclo, é o período em que
a televisão se torna cada vez mais popular, mais massiva, em que nas
favelas brasileiras, se compra primeiro a televisão e depois a geladeira.
O grande problema hoje é que internalizamos a ideologia do
branqueamento. Isso é visto por todos nós como um fato absolutamente
natural. É por isso que nunca questionamos os privilégios da branquitude
e as desvantagens da negritude, de ser negro. Vocês já discutiram entre
vocês, abertamente, o quanto é bom ser branco? E quanto mais ariano,
melhor. O quanto é bom ter cabelos louros e olhos claros? Vocês já
tiveram essa discussão alguma vez? Vocês já tiveram uma discussão
sobre o quanto é ruim ser negro? Não. Ninguém teve, mas todos vocês já
sentiram isso em algum momento da vida, com certeza.
Os produtores de mídia, que não são os principais responsáveis pela
produção de novos conteúdos, do ponto de vista cultural, são e sempre
foram profundos reprodutores das idéias dominantes. Todos eles, hoje,
apesar de toda a pressão das pessoas que estão à frente dos afro-
descendentes, que não estão satisfeitos, que estão se mobilizando contra
a existência desse imaginário, recusam a mudança.
Quando eu me referia à vantagem de ser branco e à desvantagem
de ser negro, eu complementaria dizendo que a primeira vantagem que
tivemos, historicamente, por sermos negros, no Brasil, foi a política de
cotas. Foi o primeiro momento de vantagem social por ser negro. No
entanto, nesse momento, é exatamente na mídia que vai se criar uma
linha de frente, uma linha de ação contra esse privilégio, esse primeiro
momento em que a sociedade brasileira reconhece que tem uma
profunda desigualdade e que temos de ter políticas compensatórias.

167
Nesse momento, o jovem negro vai ter uma vantagem diante do jovem
branco, uma vantagem para superar todas as desvantagens sociais que
historicamente foram adquiridas, para superar a desvantagem de não
ter nascido num contexto em que pudesse ter recebido instrução, a
desvantagem de ter nascido numa família em que todos tiveram que
trabalhar, em um contexto em que a escola pública era ruim, etc.
Então, acho que esse é o grande problema que temos para refletir
neste momento. Para mim, esse é o estágio mais avançado da discussão.
Temos, neste momento, de começar a pensar sobre quais são as vantagens
de ser branco no Brasil e quais são as vantagens de ser negro no Brasil.
Enquanto nós, brasileiros, não fizermos essa discussão, não formos
honestos diante desse tipo de problema, não superaremos a nossa
subjetividade colonial e racista, profundamente deformada.
Se formos parar para pensar, não é só a criança negra que sofre
num contexto social em que predomina a ideologia do branqueamento,
porque o espelho que é colocado diante dela diz: “Você é feio, você
pertence a uma raça inferior, você é a imagem da pobreza, você está
destinado à subalternidade”, e também existe a situação da criança
indígena. Mas colocam um espelho para a criança branca, que nasce
com características arianas, e dizem: “Você é lindo, você é superior, você é
predestinado”. Essa criança vai crescer diante de uma idéia destocida de
hiper-representação de si mesmo diante dos outros seres humanos.
O primeiro filho de um amigo meu judeu, casado com uma judia,
uma mulher loira, branquinha, de olhos claros, etc, daquelas que não
têm melanina, nasceu com os cabelos pretos. Ele é branco, mas de
pele levemente morena, com cabelos pretos, tem melanina no corpo.
O primeiro filho deles nasceu igual a ele. Quando este garoto tinha três
anos, nasceu o irmão. Essa criança foi uma criança feliz, sem problemas,
até os três anos de idade. Quando nasce o irmão parecido com a mãe,
olhos azuis, cabelos loiros, branquinho, de repente, o irmão mais velho
começa a manifestar uma enorme hostilidade em relação ao irmão mais
novo. No início, o casal fez a tradicional discussão da psicanálise, ou seja,
levaram o menino ao psicólogo, discutiram o fato de poder ser complexo
de Édipo, pode ser isso ou aquilo. Mas, só que depois é que perceberam

168
as origens do ressentimento do filho mais velho quando iam com os dois
para espaços públicos. Diferentemente de quando o mais velho era filho
único, agora entravam no shopping e as pessoas ignoravam totalmente
o mais velho, e só davam atenção para o mais novo. E diziam, em relação
ao mais novo: “Olha que menino lindo, que cabelos dourados, olha a cor
dos olhos dele, parece um anjinho”. Então o irmão mais velho começou
a manifestar uma profunda hostilidade com o outro. Dois brancos, um
de cabelo escuro e de pele levemente morena começou a apresentar
hostilidade com o outro porque, socialmente, começou a perceber as
vantagens do outro sobre ele. E não era porque o outro era três anos mais
novo, mas sim, porque o outro havia nascido como um ariano puro.
Então é essa a nossa sociedade. É essa a subjetividade que herdamos.
É essa a subjetividade que está na mente de qualquer um aqui, que
mesmo não entendendo a sua mistura racial, sabe que, quanto mais
branco, melhor. É essa subjetividade que nós não enfrentamos, não
superamos, e em que, no debate social, hoje, a mídia exerce um papel
fundamental, que é o de nos fazer ignorar isso, para manter o tabu
brasileiro de discutir a questão racial, para manter o tabu brasileiro de não
discutir, entre nós, qual é a vantagem de ser branco e qual é a vantagem
de ser negro. Só no momento em que chegarmos a essa discussão é
que vamos ter consciência das diferenças sociais para poder enfrentar
o racismo. Reconstruamos nosso imaginário, nossa subjetividade,
porque o nosso imaginário está, na verdade, profundamente doente. A
psicóloga Maria Aparecida já disse, e não vou repetir, o que representa,
para uma sociedade, ter todas as apresentadoras infantis com aspecto
físico ariano. Não parece curioso que uma sociedade ache natural que
todos os apresentadores televisivos sejam arianos ou quase? Não parece
curioso que qualquer revista de televisão, que todo ano publica os mais
belos, invariavelmente escolha os mais belos entre aqueles com olhos
claros e cabelos loiros? Quem é um dos deuses da televisão atual? Fábio
Assunção, ou tantos outros. A beleza do Fábio Assunção diante da mídia
é inconteste. Ou Gisele Bündchen na publicidade.
Então, eu diria que esse é o grande desafio para todos nós, é o grande
desafio interdisciplinar, o desafio dos psicólogos. Aquelas teorias de

169
quando eu estudei Psicologia, lá pelos anos 70, não tratam disso. Tratam
de muitos temas, mas não abordam essa doença profunda da nossa
sociedade ainda colonizada mentalmente, que é fator de sofrimento
para muitas pessoas. A título de memória, quero lembrar a Izildinha,
uma psicanalista paulista, que me dizia: “Joel, o que mais me causou
impacto foi quando comecei a atender homens negros de classe média,
foi perceber que todos tinham a sensação de estar no lugar errado,
todos viviam o pânico de uma queda iminente”. Há, portanto, ainda um
universo muito grande para se discutir.

170
Mídia e produções de subjetividade:
questões do racismo

Joel Rufino dos Santos


Para tentar contribuir com esse debate, e em vista do curto tempo
que temos, talvez seja melhor eu me fixar na segunda parte do título
da Mesa (mídia e produções de subjetividade: questões do racismo).
Acho que a primeira questão do racismo é a própria definição de
racismo. O que é exatamente racismo? É preciso distinguir o racismo dos
fenômenos aparentados com ele, fazer distinção entre conceitos que se
parecem, e, exatamente porque se parecem, precisam ser diferenciados.
Para começar, preconceito racial não é exatamente racismo, embora
possamos usá-los como sinônimos. O preconceito racial, como qualquer
preconceito, é um produto da ignorância, da falta de informação, do
interesse econômico, político, seja lá o que for, mas não é exatamente
racismo. O preconceito racial é mais ou menos universal. Desde que
começou a se produzir, a se elaborar essa idéia de raça, há preconceito
racial. No nosso país, com mais razão, é que ela se alastra, e não tem só
a ver com classe, não. Preconceito racial é isto: uma idéia pré-concebida
do outro que pode aparecer, inclusive, sob a forma não-racial. Tenho um
amigo de infância que há anos me disse que não gosta de capixaba. Ele
não gosta de capixaba, mas não havia nenhuma razão plausível para não
gostar de capixaba. Ele não gosta. Morei muito tempo em São Paulo,
tinha um colega que não gostava de japonês. Não havia nenhuma razão
para ele não gostar de japonês. É dessa forma pueril que muitas pessoas
desenvolvem seu preconceito racial.
A discriminação racial é outro fenômeno aparentado com o racismo.
No caso do Brasil - embora haja uma tradição oculta em nossa história
social de discriminação racial – ela sempre existiu. O que caracterizou
a discriminação racial aqui foi a promiscuidade entre negros, brancos
e índios, ao contrário dos países em que houve discriminação todo o
tempo, como os Estados Unidos, por exemplo – e, paradoxalmente, mais
próximos da democracia racial que o Brasil. Discriminação racial é, assim,
outro fenômeno aparentado, mas que ainda não é o racismo.

171
Racismo, então, seria uma forma de dominação histórica, que,
como toda forma de dominação, precisa ser anexada, conectada, a
outras formas de dominação, como a dominação do homem sobre a
mulher, a do rico sobre o pobre, a do instruído sobre o não instruído,
a do letrado com relação ao analfabeto, e assim por diante. É uma
forma de dominação histórica, e o que torna difícil separar o racismo
dessas outras formas aparentadas é que o racismo se baseia num
embate falso que vai ficando cada vez mais claro. A falsidade, em
forma de paradoxo, é o seguinte: não há raça, mas há racismo. Não
é um fenômeno fácil de compreender e, o mais freqüente, é senso
comum confundir racismo com preconceito racial, discriminação
racial, e assim por diante. Não há raça, mas há racismo.
Na verdade, é um paradoxo aparente, porque, quando se considera
o fato de modo mais aprofundado, se vê que o racismo é uma forma
de dominação histórica, social, baseada na falsa idéia da existência de
raças. E, interessante, a falsa idéia da existência de raças tanto serve à
abominação racista, à expressão dessa abominação, quanto tem servido,
em parte, à luta contra o racismo. Poderíamos até falar, se quiséssemos
uma precisão maior do termo, em “multiracismo” e “racialismo”. Essa
crença cega, o racialismo, validou a dominação no Brasil, e valida
também a luta dos negros organizados contra o racismo.
Se não chegarmos a alguma conclusão por aí, pelo menos convido
vocês a reconhecerem que é uma questão complexa, que não se resolve
num confronto simples. Em suma, o que é o racismo? A história das
relações raciais no Brasil é a própria história do Brasil. A Aparecida
lembrou uma passagem do Otavio Ianni, que disse, mais de uma vez,
exatamente isso que estou repetindo para vocês. Quem fizer a história
das relações raciais, fará a História do Brasil. Por quê? Porque a história
do Brasil é a História da dominação de uns sobre outros através da
instrumentalização da idéia de raça – e, obviamente, de outras idéias
(falsas ou verdadeiras) que compõem a nossa subjetividade.
Por que, no Brasil, essa história das relações raciais é tão importante
assim, a ponto de se identificar com a própria história do País? Porque é
a que se formou na sociedade, ao longo de 500 anos, em que os brancos

172
dominavam, eram senhores por definição, e os negros eram dominados,
escravos trabalhadores por definição. Entre eles, ficavam mestiços e
indígenas na condição de servos. Assim se formou a sociedade brasileira:
uns, por definição (os brancos) acima dos outros por definição (os
negros). É isso que torna a sociedade brasileira uma sociedade racista.
Aqui não se trata apenas de preconceito, nem apenas de discriminação,
mas de racismo. É o caso modelar de uma sociedade racista. É assim
que a história, tal como é, se apresenta. Esse é o problema que temos a
resolver, um dos problemas nacionais que temos a resolver: o problema
da dominação racial, o do racismo.
Uma terceira questão do racismo é a do movimento negro. Muitas
pessoas acham que o movimento negro não deveria existir ou que faz
proposições, propostas políticas e ideológicas, totalmente descabidas, seja
lá quais forem seus motivos. Inclusive, ultimamente, como já se comprovou
cientificamente, que raças não existem, há o medo de que o movimento
negro faça propostas racistas. Na verdade, nesse aparente contra-senso,
reside a questão. Não há raças, sem dúvida, mas o movimento negro nada
mais é que um movimento social organizado em luta contra essa forma
peculiar de dominação que é o racismo. E, obviamente, o movimento
negro faz sentido, porque é de longa duração. Os historiadores só se
interessam pelos fatos que duram muito. O que é de curta duração, é
deixado de lado. O movimento negro, no entanto, é de longa duração,
tem aproximadamente 100 anos. Só isso já o torna um fato histórico
importante. Suas postulações são, pois, legítimas. Por exemplo: quando o
movimento propôs o sistema de cotas no serviço público, na universidade,
etc., não propôs nada inusitado, arbitrário, mas algo resultante de quase
100 anos de luta. A própria existência do movimento negro comprova a
existência do racismo. Se existe o movimento negro há mais de 100 anos,
é porque o racismo caracteriza a sociedade brasileira.
Vou fechar essas reflexões enfatizando esse último aspecto. O
movimento negro é a luta organizada, quase centenária, de longa
duração, portanto, contra o racismo. Foi sempre um movimento de
muitas facções, muitas vertentes. Na República Velha (1898 a 1930),
já havia facções dentro dele. Na fase seguinte (a partir de 1930),

173
uma parte dos seus integrantes se tornou integralista, parafascista,
tendente ao fascismo, e outra parte, por outro lado, tendeu ao
comunismo, ao marxismo, ao socialismo, etc. Penso que poderíamos
agrupar todas essas tendências, ou vertentes, em dois grupos, para
simplificar a história recente do movimento. (Qualquer tentativa
de agrupar tendências é uma simplificação, mas ouso fazer isso em
nome do entendimento sumário).
De um lado, ficam todos aqueles que pensam ser possível enfrentar
o racismo de forma isolada, como o principal problema da sociedade
brasileira, em alguns casos, até como único problema a resolver na
sociedade brasileira. De outro, aqueles que pensam ser a luta contra o
racismo uma luta sistêmica, contra o sistema social do qual o racismo
é uma forma peculiar, histórica, de dominação. Em outras palavras,
de um lado estão aqueles que acham possível liquidar o racismo,
construindo uma sociedade igualitária de negros e brancos dentro do
sistema econômico-social dominante. Para simplificar, vamos chamar
esse sistema de civilização capitalista. Para os outros, os que vêem
o racismo como fenômeno sistêmico, só através da liquidação dessa
moderna civilização capitalista seria possível liquidar o racismo. São
duas maneiras básicas, fundamentais, que aparecem no debate das
mais variadas questões da atualidade brasileira.
Por exemplo, na questão da mídia, que eu não teria tempo de
desenvolver aqui, tal a sua grandeza: quando se discute a questão da
mídia no Brasil, pode-se pensar o seguinte: estou discutindo o fato de
o negro estar ou não estar na mídia, de não aparecer em publicidade,
em cartazes, na televisão, etc. Penso que essa perspectiva é enganosa.
Qualquer tentativa de mudar a aparência da mídia sem mudar o fato
essencial da mídia atual - a sociedade do espetáculo – está fadada
ao fracasso. Há, portanto, aí, duas estratégias de enfrentamento da
discriminação por meio da mídia. O que é a mídia? A mídia é um aspecto
natural da vida ou é uma forma de reprodução do sistema capitalista?
Enfim, temos aí duas maneiras de ver o mesmo fenômeno.

174
Publicidade e a produção de subjetividade

Coordenação
Ricardo Moretzsohn

175
Publicidade e a produção de subjetividade

Noemi Friske Momberger


Falarei sobre a publicidade direcionada às crianças e aos adolescentes.
Provavelmente, os que estão aqui presentes e têm filhos já passaram
pela mesma situação pela qual passei. Fiquei extremamente revoltada
quando percebi a forte influência que a publicidade estava exercendo
sobre o meu filho, à época com menos de 5 anos. Ao assistir televisão,
ele dizia: “Mãe, compre isso para mim”, “Mãe, eu quero...”, querendo
possuir os produtos anunciados pela publicidade na televisão. Às
vezes os produtos nem eram adequados à idade dele, e ele pedia
insistentemente. Ao verificar essa forte influência que a publicidade
exercia sobre ele, comecei a pensar na viabilidade de uma lei que
proibisse aquela situação. Naquela época, eu ainda estudava Direito,
no ano 2000. Então, resolvi estudar a publicidade.
Um exemplo de publicidade: McLanche Feliz Planeta Dog, I Love Dog,
em que as crianças, para receberem diferentes cachorrinhos, precisavam
adquirir o McLanche Feliz. É a indução ao consumo. Não é possível
adquirir separadamente o lanche do bichinho ou vice-versa.
Outro exemplo: próximo ao Dia das Crianças, estava sendo veiculado
outro comercial, que dizia: “Chegou a vez dos baixinhos sonharem alto”,
querendo dizer que podem sonhar alto e adquirir todos os produtos
anunciados, como se isso fosse possível para todas as crianças.
O que é publicidade? A publicidade é encontrada em toda parte.
Crianças, jovens e adultos são bombardeados e influenciados pela
publicidade, que é usada para vender materiais escolares, brinquedos,
roupas infantis e juvenis, revistas, etc.
Qual é o objetivo da publicidade? Estimular o consumidor a adquirir
os produtos ou serviços anunciados, utilizando técnicas de persuasão,
despertando necessidades e o desejo de satisfazê-las através da aquisição
dos produtos. O objetivo maior dos anunciantes publicitários é o lucro.
Mariângela Momo afirma que a mídia promove não apenas o consumo
de bens materiais mas também o consumo de idéias, de tipos de vida, de
posições de sujeitos desejáveis, de formas de ser e de agir.

177
Vejam um exemplo, que saiu recentemente no jornal, que diz: “Seja
uma boneca você também, e concorra a uma coleção de cinco bonecas
Bratz. As 10 meninas que tiverem a maquiagem, o cabelo e a roupa mais
parecidos com a de uma das bonecas Bratz serão as vencedoras”. E já
aparecem as meninas vestidas como as bonecas.
Quando realizei todo esse estudo, verifiquei que a Constituição
Federal diz: “Compete privativamente à União legislar sobre propaganda
comercial”. Aliás, esse termo é inadequado, deveria ser publicidade, e
não propaganda.
Então, por que podemos afirmar que não seria censura proibir a
publicidade ou regulamentar a publicidade? Porque está previsto na
Constituição. A publicidade é considerada um serviço, uma atividade
econômica, uma produção de empresa, e não livre uma manifestação
de opinião e pensamento, portanto, pode ser regulamentada, e,
se a publicidade dirigida às crianças é proibida, não é censura, é
regulamentação de uma atividade econômica. Então, com base na
previsão da Constituição Federal, foi criado o Código de Defesa do
Consumidor, que trata da publicidade abusiva e enganosa. O Artigo 37
diz: “É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva”. Especifica o que
é publicidade enganosa e diz, no parágrafo segundo: “É abusiva, dentre
outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite
a violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência
de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais
ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma
prejudicial ou perigosa à saúde ou segurança”. Essa é a idéia que eu
gostaria de enfatizar. É proibida, mas não explicita o que seria essa
deficiência de julgamento e experiência da criança.
Cláudia Lima Marques define assim: “A publicidade abusiva é,
em resumo, a publicidade anti-ética, que fere a vulnerabilidade
do consumidor, que fere valores sociais básicos, que fere a própria
sociedade como um todo”. Ela diz isso, mas isso ainda não é suficiente
em relação às crianças.
O motivo de preocupação no que diz respeito à publicidade se deve aos
efeitos que a televisão exerce sobre as crianças, o papel penetrante que

178
a mídia desempenha na vida das crianças. Uma pesquisa realizada nos
Estados Unidos revela que crianças de seis meses já manifestam interesse
pela televisão, devido à tela colorida e ágil. Crianças de dois anos e meio
já assistem televisão regularmente, crianças com idade entre dois e onze
anos assistem em média 28 horas de televisão por semana. Isso daria uma
média de quatro horas de televisão por dia, e crianças cujos pais não têm
condições de controlá-las, assistem muito mais do que isso. Atualmente, já
há estudos comprovando que as crianças assistem televisão mais do que 28
horas semanais.
Um estudo realizado nos Estados Unidos sobre a publicidade dirigida
às crianças relatou que mais de 15% do tempo da programação destinada
às crianças consiste em publicidade. A pesquisa realizada falava em 30
mil comerciais por ano; hoje já se fala que as crianças estão expostas a
40 mil comerciais anuais.
A preocupação relacionada à publicidade dirigida ao público infantil é
relativa aos efeitos das mensagens sobre o comportamento das crianças.
Os estudos demonstram que a publicidade realmente influencia o
comportamento de crianças e adolescentes, principalmente no que se
refere ao uso de tabaco e ao consumo de bebidas alcoólicas. Atualmente,
já está proibida a veiculação do uso do fumo na televisão. Ainda há o
problema das bebidas alcoólicas. Um estudo de Maria Lucrécia Zavaschi,
de Porto Alegre, revela que “o enfoque incansável da televisão sobre o
consumo, tanto dentro dos programas quanto através do interminável
desfile de comerciais, promove valores e propriedade”. Ela afirmou isso
com base em diversas notícias veiculadas, que relatavam que adolescentes
assassinavam outros por causa de pares de tênis de marcas famosas,
importadas. Recentemente, aconteceu mais um caso de um rapaz preso
e condenado, porque havia assassinado um adolescente para roubar o
seu tênis importado. Esse seria um dos aspectos negativos da publicidade
dirigida às crianças.
Além disso, as pesquisas apontam ainda o grande poder de influência
que os personagens e heróis de desenhos animados desempenham sobre o
psiquismo infantil. As crianças tendem a imitá-los e copiá-los. Querem ser
iguais ao seu herói, iguais ao apresentador do programa, e, infelizmente,

179
no mundo moderno, a televisão se tornou a babá das crianças. Mesmo
que os pais estejam em casa, ficam ocupados com outras atividades,
e se sentem felizes se as crianças ficam em frente à TV, quietas, e não
correndo na rua à mercê de outros perigos. Então, precisamos pressionar
as autoridades para que seja melhorada a qualidade da programação.
Não basta dizer que é fácil pegar o controle remoto e trocar de canal,
pois a maioria dos pais está fora de casa e não consegue estar presente
para acompanhar o que os filhos estão assistindo, tanto em termos de
programas em si quanto no que diz respeito à publicidade.
Dentre os países que adotaram sérias restrições, está a Suécia, que
proibiu toda e qualquer publicidade dirigida às crianças menores de 12
anos, baseada nos estudos do sociólogo Erling Bjurström que diz que,
aos três e quatro anos de idade, as crianças começam a distinguir um
programa de um comercial, mas somente entre os seis e oito anos uma
grande parte consegue fazer essa distinção. Somente aos dez anos a
maioria das crianças possui a capacidade de ter uma posição crítica em
relação à publicidade ou distinguir corretamente o objetivo de persuasão
ao consumo, e somente aos 12 anos todas as crianças conseguem ter
a capacidade de discernimento. Portanto, essa foi a razão pela qual a
Suécia proibiu toda e qualquer publicidade dirigida às crianças em horário
anterior às 21 horas. Após esse horário, toda e qualquer publicidade deve
ser dirigida aos pais.
Essa posição da Suécia é fundamentada no argumento de que
a criança, como grupo-alvo da publicidade na televisão, deve ser
protegida por uma questão de ética e moralidade, uma questão que diz
respeito às necessidades das crianças na sociedade, com os seguintes
questionamentos:
- Quem necessita da publicidade para as crianças?
As crianças, os pais, os proprietários de canais de televisão, os artistas,
os personagens, os fabricantes de produtos?
Quem é beneficiado por essa publicidade dirigida às crianças e
adolescentes?
E ainda, quais as necessidades, e de quem, deveriam ser colocadas em
primeiro lugar?

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Esses são os questionamentos que sempre deveríamos fazer
para verificar se a publicidade é ou não abusiva. É preciso haver um
questionamento sobre a necessidade da criança ter todos os produtos
anunciados na TV.
No que se refere à legislação em outros países, a Suécia, então, proibiu
totalmente toda publicidade dirigida às crianças menores de 12 anos
em horário anterior às 21 horas, e, após esse horário, deve ser sempre
dirigida aos adultos.
Na Alemanha, programa infantil algum pode ser interrompido por
publicidade, por causa da influência que apresentadores e personagens
exercem sobre as crianças. Inclusive, personagens de desenhos animados
não podem ser utilizados para realizar comerciais. A Bélgica também
proibiu, cinco minutos antes e após a programação, a veiculação de
comerciais de produtos infantis, e, na Holanda, também não podem ser
interrompidos por comerciais os programas para crianças menores de 12
anos. A Grécia proibiu somente a publicidade de brinquedos na televisão,
no horário de 7h às 22h, e a Noruega também proibiu a publicidade, bem
como comerciais vinculados ao programa.
Áustria, Portugal e Luxemburgo proibiram todo e qualquer tipo de
publicidade na escola. Aqui vemos inclusive máquinas para vender
refrigerantes dentro das escolas.
O Canadá não proíbe a publicidade, mas determina que não pode
haver mais que oito minutos de publicidade por hora em programas
infantis. Quebec, província do Canadá, possui uma legislação bem rigorosa,
semelhante à da Suécia. É proibida toda e qualquer publicidade dirigida a
menores de 13 anos. Nos Estados Unidos, não é proibida a publicidade. Há
apenas a regulamentação de tempo, que é de 10 minutos e 30 segundos
por hora. Nos finais de semana, esse tempo chega a 12 minutos por hora.
Aqui no Brasil, o tempo é superior a 15 minutos, mas agora começa
uma movimentação para regulamentar e diminuir esse tempo, em reforço
ao artigo 37, que diz que ser proibida a publicidade que se aproveita
da deficiência de experiência de julgamento da criança, mas a lei não
é cumprida. A publicidade continua na televisão e em todos os outros
meios de comunicação.

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O CONAR, Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária,
com as novas regras em vigor desde setembro de 2006, diz o seguinte:
“Nenhum anúncio se dirigirá pelo imperativo ao consumo diretamente à
criança. É proibido usar a expressão ‘faça como eu’”. Essa regulamentação
minimiza muito pouco os efeitos adversos da publicidade.
Na Alemanha, cultos religiosos e programas infantis não podem ser
interrompidos por publicidade e nem deve a publicidade influenciar o
programa, o conteúdo da redação.
O Reino Unido tem uma auto-regulamentação que restringe muito a
publicidade dirigida às crianças. A publicidade não pode ser apresentada
por personalidades ou personagens de desenho animado, que inclui
marionetes ou fantoches que aparecem em programas de televisão. Ela
não pode ser transmitida antes das 21 horas. Toda e qualquer publicidade
deve ser examinada e classificada de acordo com a faixa etária, avaliando-
se sua adequação e os danos mentais e morais que possam causar .
Aqui no Brasil, não há legislação alguma proibindo o uso de
apresentadores e artistas. Infelizmente, temos as mais diversas
apresentadoras de programas infantis, que se valem de sua influência
sobre as crianças para apresentarem publicidade a fim de vender,
inclusive seus próprios produtos.
A Espanha também proíbe apresentadores de programas na
publicidade para não confundir as crianças sobre a natureza comercial.
Pessoas famosas, personagens de televisão, vivos ou animados, não
podem fazer anúncio algum.
A Suécia, como já disse, proibiu todo e qualquer tipo de publicidade
que anteceda os programas infantis. Isso se refere a qualquer tipo de
produto, seja adulto ou infantil. No Canadá, também é assim.
Quanto ao lucro, o Sítio do Pica-pau Amarelo, por exemplo, ao estrear,
em 2001, já tinha 90 itens licenciados pela Globo Marcas, que tem o
domínio comercial sobre vários brinquedos com o nome do programa,
desde bonecas dos personagens até baldinhos com pás para brincar na
areia. A emissora fabrica bonecos para crianças menores e diferentes tipos
de brinquedos para as diversas faixas etárias. A Globo Marcas também
costuma lançar guloseimas com o nome de seus programas, além de

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álbuns e fichários para colecionar figurinhas de diferentes programas e
desenhos infantis.
A Pantera Cor de Rosa também vende muitos produtos. O personagem
foi licenciado para 20 grandes fabricantes, que espalham no mercado
mundial mais de 200 linhas de produtos.
E uma notícia: “Um processo coletivo milionário de consumidores
americanos poderá abrir um antecedente delicado para o marketing
global. Pais irados estão indo à Justiça contra a empresa que produz o Bob
Esponja, alegando que usar o desenho animado para vender produtos a
crianças é fazer lavagem cerebral. Esse tipo de marketing é covardia, pois
os baixinhos não percebem a diferença entre o desenho e o comercial.
O debate tem pano para a manga e, provavelmente, lá também poderão
vencer as restrições”.
Em relação aos valores sociais, na Espanha, os anunciantes devem
reconhecer a natureza imitativa das crianças, devendo, portanto,
extremar os cuidados para não fazer com que a violência seja atrativa ou
apresentá-la como método aceitável para atingir os objetivos.
No Canadá, a publicidade não deve insinuar que possuir ou usar um
produto torna as crianças superiores ou que sem eles serão expostas ao
ridículo ou ao desprezo. No Chile sucede o mesmo.
No Brasil, o Código de Auto-Regulamentação Publicitária diz: “Não
se deve impor a noção de que o consumo do produto proporcione
superioridade ou, na sua falta, inferioridade”.
Exemplo de um comercial de folder de uma livraria de Porto Alegre:
uma criança chorando, com seu skate na mão. O texto diz: “Já que
você tem que voltar, que volte com a Globo”. O valor social violado é a
escola, que deveria ser colocada como lugar interessante, onde a criança
aprende, tem uma parte de sua formação, e convive com outras crianças.
O folder implicitamente diz que a escola é ruim, e, já que se tem que
voltar a ela, pelo menos se pode comprar produtos da Globo, porque
assim a criança será um pouco mais feliz. Isso seria totalmente proibido
em outros países.
Outro exemplo, agora sobre a superioridade: “Quem é esperto volta às
aulas com a “Schmitt”, outra livraria.

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Aqui no Brasil, o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária,
do CONAR, diz o seguinte: “Ao utilizar personagens do universo infantil,
os apresentadores de programas dirigidos a esse público-alvo devem
fazê-lo apenas nos intervalos comerciais”. Estão sugerindo, mas como
o Código de Auto-Regulamentação Publicitária não possui força de lei,
nada se pode fazer contra os anunciantes que não quiserem se submeter
às regras do CONAR.
Na questão brinquedos, temos o exemplo de uma notícia em que
é totalmente infringido o princípio da identificação da publicidade
que afirma que ela somente pode se dar nos intervalos comerciais. A
publicidade da fabricante dos brinquedos Estrela teve 440 inserções
durante o programa da Eliana até o mês de dezembro de 2001 para
anunciar as novidades para o Natal. Eliana fazia merchandising o tempo
todo durante seu programa, quando a publicidade deveria ser feita
somente nos intervalos do programa.
Quanto ao preço dos produtos, no Reino Unido, produtos caros não
podem ser anunciados para crianças. Há uma distinção entre o que é
barato, caro e muito caro. O produto barato é inferior a 25 libras, e,
acima de 40 libras, é considerado muito caro.
Fazendo uma comparação com o Produto Interno Bruto brasileiro, o
produto barato não deveria custar mais do que 9,72% do salário mínimo.
Só para citar um exemplo, em 2002, houve o lançamento de celulares
temáticos para crianças cujo valor era de R$382,00, muito superior ao
valor do salário mínimo na época.

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Publicidade e a produção de subjetividade

Rachel Moreno
No Brasil, uma televisão comercial depende fundamentalmente do
deus audiência, porque, afinal de contas, para se sustentar, tem que vender
espaços e ter as condições necessárias para sustentar sua programação.

O que significa esse deus audiência?


Significa que a televisão vende, para quem quiser pagar a preço de
ouro, a garantia de 30 segundos de nosso olhar. Para conseguir essa
audiência, pois ela precisa disso, aparentemente acaba apostando em
alguns princípios básicos. Quem me garante que as pessoas irão olhar
galvanizadas para um programa o tempo todo?
Os princípios básicos acabam sendo sangue, sexo e sonho.
Sangue, através da violência também inserida na programação, no
conteúdo da televisão. As pessoas sentam, arregalam os olhos e ficam
lá até o fim;
Quando falamos de sonho, precisamos focar alguém, e o foco acaba
se direcionando mais às mulheres, porque elas são responsáveis por 80%
das decisões de consumo deste país. Não sou somente eu que privilegia o
direcionamento às mulheres; os anúncios e comerciais também o fazem. As
mulheres decidem que marca de cueca compram para o marido, que fralda
compram para o neném, que comida compram para todos, que cosméticos
compram para si mesmas. Tudo isso soma 80% das decisões de consumo.
E o que a propaganda diz a ela? O mesmo que tem dito numa
sociedade de consumo, ou seja – tenha, compre e seja feliz – ligando as
três coisas.
A propaganda diz também às mulheres que hoje não basta ser atualizada
no mundo moderno, não basta se realizar através da maternidade, não
basta se realizar enquanto profissional, não basta se realizar enquanto
cidadã, militando, fazendo, acontecendo, tomando conta. É preciso, além
disso tudo, ser bela, charmosa, atualizada, e ter absolutamente o melhor,
porque senão tudo o que você construiu não é relevante, não é suficiente.
Deve-se exercer tudo com muito charme e muito glamour.

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Sabemos que toda apreensão da realidade é necessariamente uma
reconstrução subjetiva do real. É a minha própria representação do real.
O mundo é aquilo que nos afeta. Nós nos expomos de uma maneira
seletiva e fragmentada, e, obviamente, dependendo do ponto de vista
do qual vemos e nos expomos, temos percepções diferentes de mundo.
Se o vemos de cima de um foguete, o vemos de um jeito, se vemos o
mundo dentro de um carro veloz, o vemos de outro jeito, e, se andamos
a pé ou de bicicleta em uma trilha, obviamente perceberemos outros
detalhes. O mundo que cada qual percebe é absolutamente diferente,
e a percepção acaba sendo a atribuição de sentido aos fenômenos, que
associa o real e o conhecimento anterior. Exige, portanto, exposição,
atenção e percepção.
Como se da esse processo de subjetivação? Na verdade, ficamos
entre dois pontos que nos acolhem: o primeiro ponto é o particular,
e o segundo é o pertencimento. Sempre tentamos criar um discurso
individual. Afinal de contas, à medida que o tempo passa, queremos
mesmo nos individualizar, queremos mostrar: eu penso, sou diferente,
sou eu mesmo, e não outro. Então, meu discurso é individual, é único,
e há a busca da particularização. Mas, por outro lado, todo discurso e
todo processo de subjetivação também passa pelo eu social. Penso da
mesma forma que o grupo social ao qual me referencio e que busca
uma discriminação e um pertencimento global. Afinal, penso como a
esquerda ou a direita, como as mulheres ou os homens. Tenho que me
basear constantemente nesses dois pólos.
No pólo do social, há a opinião pública. O senso comum afirma que
a opinião pública é a somatória das opiniões individuais, e as opiniões
individuais existem antes das coletivas. Por isso, quando alguém faz uma
pesquisa de opinião, entrevista pessoas individualmente. A soma, as
médias, as tendências, acabam sendo classificadas como a opinião pública.
Partindo do individual, chega-se ao coletivo. Mas, na verdade, para nós,
não é bem isso, quando temos um olhar um pouco mais aprofundado. A
opinião pública é a causa, é determinante, é o fator e é a matéria prima
para a opinião individual. Ela é anterior com relação ao sujeito, pois este
nasce em um mundo no qual a opinião pública já está formada, está num

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ambiente social no qual tenho que me inserir, aprendendo a linguagem,
a produção social e todos os pactos socialmente estabelecidos. Portanto,
o homem socializado é uma condição de sua subjetividade.
A consciência é um aprendizado simbólico, semiótico, e até mesmo
social. Devo saber ler, de todas as formas, todas as linguagens para poder
aí me situar. Tenho que ter a capacidade de articular os símbolos sociais
determinados pela organização social em um ambiente no qual tenho
uma polifonia discursiva. Há vários discursos, e tenho que aprender a
me situar entre todos eles. E a influência acaba se manifestando no
meu repertório e na minha inserção social. Portanto, temos aqui que a
opinião pública é causa determinante.
Freud também coloca a opinião pública como anterior à individual.
Com a consciência-ego, – a repressão do princípio do prazer e a
civilização condicionando o princípio da realidade, acabo exercendo
minha capacidade adaptativa, que permite a melhor adaptação possível
entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. O princípio de
realidade acaba me sendo dado pelos outros.
Temos uma série de outros pensadores que falaram a respeito.
Foucault coloca o poder, a questão do discurso oficial, como um aspecto
mais difuso, mais “solto”. Não é exatamente algo que o soberano tenha,
concentre, mas, que, na verdade, está espalhado, e que não somente
reprime como também produz efeitos de verdade e de saber que
constituem verdades, práticas e subjetividades.
E aí entra a propaganda, a mídia, as imagens geradas, inclusive pela
publicidade, isso porque a ordem institucional se mantém de duas
maneiras: pela força e pela ideologia, e, dentro da ideologia, temos
inúmeras questões que podemos elencar, entre as quais a última e mais
moderna: a mídia e a propaganda.
A propaganda está ligada ao consumo. E como a propaganda atua?
Como nos movimenta? Como nos conquista? Como nos captura?
A propaganda não cria necessidade, afirmam os publicitários, em sua
defesa, mas apropria-se de algum fluxo nômade, que desterritorializa,
ressignifica e acaba nos apresentando uma tendência que, pelo fato de
estar amplificada em uma mídia, ganha um sabor de verdade inconteste,

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de verdade socialmente aceita, e que se amplia em função e em
conseqüência disso.
Acontece que essa visão que nos é colocada em termos de propaganda
determina também uma série de outros aspectos. Ela determina nossa
auto-estima. Vivo num mundo em que, para ser, tenho que ter; para
ser melhor, tenho que ter o melhor, e para ser absolutamente diferente,
tenho que ter as coisas melhores e as coisas mais diferentes; se não
as tenho, minha auto-estima acaba sendo diminuída em função disso.
Então, por exemplo, se não se tem uma Brastemp em casa, deve-se ter
outro produto. Posso ter minha máquina de lavar, mas não importa, ela
não é uma Brastemp. Minha auto-estima já ficou menorzinha.
E, se não tenho coisa alguma, então sou excluído. Lembro-me do
menino que quase foi preso porque roubou um Danoninho. O guarda
comunitário conseguiu salvá-lo e colocou-o no Espaço Criança
Esperança. E perguntou ao menino: “Você foi roubar um Danoninho e
ia para a Febem por causa disso?!” O menino respondeu: “Tio, eu queria
saber que gosto ele tem!”
Ou então, trabalho e trabalho, o dia inteiro, o mês inteiro, e quero ter
um tênis de grife, porque, se meu tênis não for de grife, serei um cidadão
qualquer, não serei um cidadão digno de reconhecimento.
Além desse aspecto de exclusão social, a propaganda acaba nos incutindo
também, particularmente nos últimos tempos, o medo do envelhecimento e
da morte. Nossa cultura não discute muito a morte. Mas o envelhecimento...
talvez em tempos clássicos, na Grécia, fosse sinal de sabedoria. Talvez entre
nossos índios, antigamente, e talvez ainda hoje, se não tiverem tanto contato
conosco, o envelhecimento acabe sendo ainda uma referência de sapiência
e uma referência importante. Hoje, em nossa sociedade, a velhice representa
a decadência. O envelhecimento é decadência. O modelo apresentado todo
o tempo é o da adolescente, da jovem. Passou dessa idade, vem o medo de
envelhecer e o medo da morte.
De vez em quando, aparentemente, temos alguns segmentos mais
incluídos e outros segmentos menos incluídos.
Os negros, por exemplo, até pouco tempo atrás, se queixavam de não se
verem, não se reconhecerem na propaganda. Ultimamente, começamos

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a ver alguns negros em alguns comerciais, e essa pretensa inclusão da
diversidade também tem um significado, que é capturado de uma outra
forma, que raramente tem a ver com objetivos sociais mais amplos.
Toda propaganda nos é sempre apresentada um pouco como a
felicidade. Ao termos acesso a determinado objeto, seremos mais felizes.
Todos parecem estar terrivelmente preocupados com nossa felicidade. Na
verdade, desde que os modelos políticos de projeto liberal e de projeto
socialista de bem-estar social, que prometiam felicidade para todos,
acabaram, de alguma forma, falidos, é como se o mundo da comunicação,
da mídia, da propaganda, assumisse essa incumbência e nos prometesse,
então, uma felicidade mais ao nosso alcance, que pudesse ser mais
rapidamente e mais facilmente atingida. E vinculada ao individualismo,
ao mercado e à liberdade. Somos livres para consumir, para usufruir.
Então, como a mídia e como a propaganda, mais especificamente,
fazem para nos mover em direção aos seus objetivos?
Primeiro, eles não inventam, mas capturam esses novos fluxos e os
decodificam. Segundo, ao perceber um comportamento novo – como
cortar camiseta com a tesoura, de um jeito qualquer – a propaganda
está atenta às novas tendências. Depois de se detectar a tendência,
discute-se bastante, trabalha-se muito o projeto. A propaganda pesquisa
e pesquisa. As pesquisas adequam, refinam, discutem com as pessoas
os seus valores, modelos, sonhos, fantasias, e fornecem subsídios para
a criação da propaganda a partir desses dados. Em seguida há o pré-
teste da propaganda. É isso mesmo? Emocionou, sensibilizou, causou
impacto? Houve entendimento?
São feitas novas adequações. Depois disso, a propaganda vai para
o ar e acontece um pós-teste. Você gostou? O que você lembrou? Não
lembrou daquilo? Então é sinal de que é preciso mudar alguma coisa, e
há o acompanhamento da evolução do produto, ou seja, a propaganda
não inventa, mas utiliza uma série de armas, sendo a pesquisa uma
delas. O marketing, no qual a pesquisa está inserida, de forma geral, tem
várias outras formas de refinar esse processo. O marketing estabelece
o conceito diferencial do produto a ser vendido e a distribuição, o
que é importante, as vendas, a comunicação comercial, a embalagem,

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que, por si só, não seduz. Há algum tempo, o BNDES estava fazendo
financiamento para empresas pequenas a fim de que elas também
pudessem melhorar suas embalagens, pois, afinal, quando andamos e
vemos uma embalagem diferente, ficamos curiosos, paramos, olhamos e
a levamos para casa. Aumenta a probabilidade de levarmos um produto
do qual talvez nem precisássemos, porque a embalagem traz uma
novidade. E ainda há brindes, preços e ofertas. Tudo é cuidadosamente
estudado de modo a nos seduzir.
Com tudo isso, é criada uma imagem que acaba introjetada em
termos de “essa imagem é socialmente valorizada”. Essa imagem me
diz que isso pode, isso é bom, isso é desejado. E essa interiorização, por
outro lado, faz também com que eu considere aquilo um padrão. Vejo
a Gisele Bündchen e quero ser igual a ela. Estou muito longe da Gisele
Bündchen, todas nós estamos, particularmente a mulher brasileira, que
é composta das matrizes européia, africana e indígena. Como a mistura
dessas três raças, dessas três etnias, desses três tipos de pessoas, poderia
resultar numa Gisele Bündchen? E nós interiorizamos esse modelo
e interiorizamos a infelicidade. A televisão diz que é possível, desde
que eu tome “banho de loja”, faça regime de emagrecimento, coloque
silicone para mais ou faça cirurgia plástica para menos, operação de
estômago, tintura de cabelo e uma série interminável de mudanças.
Tenho um modelo introjetado impossível de ser alcançado, tenho uma
consciência infeliz, mas tenho a oferta de todo um mundo maravilhoso
que vai me permitir chegar mais perto daquilo que é apresentado
como ideal. E compro, compro, compro. Claro que não chego lá. O que
importa é que eu compre.
Quando vou um pouco mais adiante, preciso pensar em outras
conseqüências. Há pouco tempo, estava vendo um programa que dizia
que uma moça colocou mais silicone nos seios, e eles haviam ficado
firmes e bonitos. Ninguém cita o problema na coluna que, algum tempo
após, isso provoca; ninguém fala das conseqüências se a cirurgia for
malsucedida. Mas, isso causa impacto em termos de saúde pública e de
custos. Alguns países têm se mobilizado contra isso. O Brasil começa a se
mobilizar quando começa a questionar, por exemplo, o fato de artistas

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fazerem propaganda de cerveja, mas, se considerarmos o todo, veremos
que eles nos prometem felicidade e grandeza, e isso simplesmente vende,
e seguimos em frente.
Mas, vende o quê? Queria mostrar um anúncio que foi criticado
na Espanha, em primeiro lugar, e depois na Itália. Ao ser criticado na
Espanha, seus criadores diziam que estavam tentando recriar o jogo
da sedução e ressaltar a beleza de suas coleções. Mais tarde, diziam
que havia críticas ao anúncio, na Espanha, porque esse era um país
atrasado, pois uma foto artística não tem nada a ver com um fato real.
Por outro lado, quem questionava dizia que as mulheres têm que viver
livres da ameaça de violência e precisam de tudo, menos de imagens
como aquelas. E a propaganda, na Espanha, foi proibida. Algum tempo
depois, a Itália também entrou com um processo contra a mesma
propaganda, que também acabou sendo proibida naquele país.
Vejam o anúncio: um homem segura a mulher pelos pulsos, e outros
homens, ao redor, estão simplesmente olhando. A reprodução do
mecanismo de sedução, do jogo de sedução, segundo seus criadores,
estimula o estupro, segundo quem acusou e retirou o anúncio do ar. O
que temos aqui é que parece ser bonito ser estuprada. Se for estuprada
com essa saia preta, então, é charmoso. Que valor isso passa? Que
impacto causa nas mulheres? Esse é um modelo recente, um extremo.
Mas temos um outro modelo de gente, que começa, cada vez mais,
a perceber nosso discurso de crítica em relação a esse tipo de situação.
Vejam esse anúncio, criado para a internet, que acabou sendo premiado
no Festival de Propaganda de Cannes (apresentação do comercial).
Esse anúncio foi premiado, fizeram brincadeiras com ele, reproduziram-
no com crianças; dizia: “Se ela fosse mais loirinha, se fosse mais cheia,
se fosse mais magrinha”. Cada era menina mostrada em algum detalhe, e
ela dizia que gostaria de ser um pouco diferente do que era. E é isso que
a propaganda causa em nós.

Em que contexto esse trabalho se realiza?


Com o fim do taylorismo, temos agora o trabalho terceirizado,
individualizado, distante, isolado. É difícil organizar uma resistência.

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Mas, por outro lado, aumenta a necessidade estender o controle – a
colonização de corpos e mentes.
Com a sociedade do consumo, em sua fase de globalização do
capitalismo, com o surgimento dos monopólios e oligopólios, faz-se
presente a necessidade pasteurizar gostos, culturas e consumos.
Nesse sentido, temos o domínio da mídia, que trata da ocupação
do nosso tempo de lazer e do espaço de informação. Uma mídia
interessada em nossa felicidade. Uma felicidade que, não-alcançada
ou sequer alcançável, se transforma na ditadura do gozo – breve,
passageiro, que consigo teoricamente através das fórmulas e receitas
ali mostradas.
A mídia me bombardeia com modelos de beleza e felicidade. E sempre
no ângulo que lhe convém – modelos e valores de mulheres para os
homens, e das mulheres para si mesmas.

As mulheres – um case
Vamos adotar as mulheres como exemplo e paradigma. Onde estão
elas? Em que mídia?
Nos jornais e revistas “sérias”, elas aparecem só para vender (na
capa) ou em alguma rara matéria interna – como se não fossem 52%
da população, como se não estivessem inseridas em todos os segmentos
sociais, como se não tivessem atuação social, cultural, política.
Aparecem bastante nas revistas específicas – revistas para os homens e
nas revistas para as mulheres. E aparecem também nas rádios e nas TVs...
A sua presença é abundante na mídia televisiva, sempre focada de
modo similar.

Ausente nos espaços ditos “sérios”


• (aparecem em apenas 18% das notícias dos tele-jornais;
• Enquanto apresentadoras (que são formadoras de opinião),
aparecem apenas e sempre jovens – enquanto os cabelos grisalhos
dos homens denotam maturidade e experiência, as mulheres
apresentadoras, se envelhecerem, simplesmente são trocadas por
outras mais jovens;

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• Raríssimas vezes aparecem como “especialistas”.
Abundantes enquanto musas, quando são utilizadas para anunciar,
vender, e são praticamente “oferecidas de brinde”, com os produtos
que anunciam.

Pura seleção
A influência desse padrão na formação da subjetividade é marcante
– a “janela para o mundo”, onde o que passa, é socialmente sancionada,
mostra modelos, valores, jeitos de ser. A seleção dos fatos, a versão que
deles é dada, a qualificação do movimento, faz o resto.
A mulher, na mídia, é também e tão-somente pura emoção.
A mulher, na TV, não pensa – “sente”, “acha”, chora, se emociona.
O seu mundinho, o seu mundo privado, se amplifica, se socializa, num
ritmo, tempo e espaço que o torna vizinho e real – a novela, onde se
vêem papéis, valores e fins.
Em outros espaços, ela “enfeita” – é o caso da “mulher-samambaia”,
no espaço da revista semanal na TV.
Finalmente, a criminalização ou ridicularização do movimento e de
suas demandas – quer se trate das mulheres campesinas, da “Marcha
das Margaridas”, das datas e manifestações do calendário feminista, da
discussão sobre o aborto, etc.
Faltam as demandas sociais e políticas das mulheres. Falta a
problemática e a realidade atual, falta a diversidade e falta o contraditório,
enquanto visão de mundo.
E assim se busca manter e sujeitar mais uma geração de mulheres
aos modelos, padrões e valores que o poder da mídia exerce a serviço do
sistema, do qual é parte e estrela.

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Publicidade e a produção de subjetividade

Roberto Menna Barreto


Cultivo, há anos, interesse muito especial por esse tema: a publicidade
como geradora de subjetividade. Por tudo o que coletei, acredito
poder oferecer alguns enfoques capazes de contribuir para o melhor
entendimento dessa relação, desse fenômeno.
Ocorre-me, de saída, o preceito de Aristóteles: “Para entendermos
algo, devemos observar o início do seu desenvolvimento”.
Na verdade, o início desse fenômeno – a produção de subjetividade
pela publicidade – é relativamente recente.
A publicidade – vale dizer, a propaganda comercial – surgiu em meados
do século XIX, e, durante mais de um século, foi essencialmente objetiva.
Poderia, aqui e ali, mostrar-se espirituosa, sugestiva, criativa, mas seu esforço
central era sempre o de levar o consumidor a conhecer objetivamente, às
vezes minuciosamente, o produto que estava vendendo.
Esse foco começou a se deslocar a partir da Segunda Guerra Mundial
– justamente a época em que não havia muitos produtos para serem
vendidos. Exemplo memorável dessa mudança foi uma inédita campanha
da Ford, então totalmente envolvida no esforço de guerra, com sua
produção de carros de passeio estagnada, sem automóvel algum para
vender. Mesmo assim, investiu milhões, durante a guerra, veiculando
anúncios com uma única frase: Há um Ford no seu futuro. A ilustração
consistia no nome Ford dentro de uma bola de cristal. Não se via carro
algum em tais peças. Unicamente a incitação de uma esperança...
É exemplo emblemático de como a propaganda comercial começou a
arar, e cada vez mais profundamente, o campo da subjetividade.
Há um livro que recomendo a vocês, um clássico da década de 60: A Nova
Técnica de Convencer, de Vance Packard. O autor demonstra fartamente
que, a partir dessa época, os sabonetes deixaram de vender limpeza (para a
qual sempre foram fabricados), e passaram a vender beleza. Os automóveis
deixaram de vender transporte, e passaram a vender prestígio. Os seguros
deixaram de vender garantia de indenização, ou de compensação eventual,
e passaram a vender tranqüilidade moral e prova de amor. Ervilhas em lata

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deixaram de vender, bem, ervilhas, e passaram a vender aprovação familiar.
Eletrodomésticos, reformas da cozinha e planos de férias passaram a ser
vendidos como elementos imprescindíveis de harmonia conjugal. E até
macarronadas, de preparo instantâneo, chegaram ao cúmulo de serem
vendidas embaladas na promessa, a esposas insatisfeitas, de alguma
retribuição sexual da parte de seus maridos, entediados pela monotonia
do cardápio e da vida conjugal...
Essa tendência tornou-se rapidamente dominante, e todos nós aqui
lembramo-nos, sem dúvida, de certa marca de cigarros no Brasil, que
oferecia apenas sucesso, ficar anos e anos vendendo – e vendendo
muito bem.
Note-se que, nas últimas décadas, esse processo de “desobjetivação”
da publicidade acentuou-se drasticamente, e agora por novas razões.
Como já notado por argutos observadores, tornou-se supérfluo, em
virtude da cartelização crescente da produção, celebrar, em detalhe,
produto algum em particular – tão só seu fabricante. O redator da
moderna agência de propaganda vende alegria, felicidade, auto-estima,
glória, drama, excitação e, com essas emoções, algum artigo de alguma
empresa. Mas cada vez mais esse artigo é a própria empresa, cada vez
mais as grandes empresas estão fazendo propaganda de si mesmas,
às vezes mal mencionando o que vendem, simplificação que lhes é
suficiente em face da pouca opção do mercado. Assim, a tendência
na propaganda comercial, em contraste com o que acontecia há meio
século, é no sentido de dizer tão pouco quanto possível sobre o que há
de substancial e característico nos artigos que anuncia. Seu investimento
concentra-se não mais nas particularidades reais do produto, ou nas
eventuais vantagens objetivas que ele oferece, mas sim, 1) nas fantasias
glamorosas, sugestões e sonhos que ele pode inspirar, 2) na solidez,
prestígio e força institucional da empresa que o fabrica.
Desta forma, abre-se um leque planetário de necessidades e recursos
para a criação e a exploração da subjetividade. Em contrapartida, do outro
lado do balcão, no universo consumidor, a publicidade (juntamente a outros
trunfos da comunicação de massa), passou, de algum modo, a monopolizar
o imaginário da vida concreta. De fato, a subjetividade foi comprada.

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E como, genericamente, a publicidade operaria essa “produção da
subjetividade”?
Comecemos por notar que a obsessão da publicidade é pelo
perfeccionismo. Seus cenários são idealmente perfeitos. Não há hipótese
de intromissão de qualquer traço de imprevisibilidade realista nas
cenas, como por exemplo – ante a visão de uma lasanha deslumbrante,
conquistada com os ingredientes incomparáveis do anunciante –
notarmos uma formiguinha andando pela toalha (o que, na realidade,
pode ocorrer nos lares mais limpos). É impensável que possa haver
minúscula unha quebrada nas deusas que posam para nossos anúncios,
sequer uma mínima gota de suor.
Toda a publicidade gira, assim, em torno de um cenário de perfeição, e
essa perfeição é colocada como viável, possível, acessível ao consumidor,
sob a condição implícita de sua adesão a alguma idéia, ou de sua
aceitação a algum produto.
Assim, dentro dessa cosmovisão de perfeição, é que, muitas vezes,
irão ocorrer os minidramas publicitários. Instaura-se, sim, uma carência,
e logo em seguida (às vezes como um passe de mágica), sua supressão.
Número imenso de comerciais de TV (excetuados os reminders
institucionais do anunciante, ou a histeria de varejo) obedece a essa
mecânica: tensão e alívio de tensão. Há “algo” errado (imperfeito), mas
vem o Produto e redime a situação. O Produto restaura o ideal da vida
imaculada e reintegra o indivíduo na perfeição. Ou, em outras palavras:
há problemas, mas tudo acaba bem. Tudo acaba bem em termos de
vida conjugal, tudo acaba bem em termos de vida amorosa, tudo acaba
bem em termos de vida profissional, tudo acaba bem em termos de
relacionamentos, de educação, etc. Contanto que...
Desse modo, num esforço tipicamente aculturador, chovem sobre
nós, continuamente, os drops da redenção e da idealização perfeita. É
um processo sutil e intensivo, a nos envolver e seduzir com variados e
multicoloridos exemplos de sucesso, amor, aprovação, realização, regozijo,
prazer – apanágios de uma humanidade feliz e hipotética, resguardada
pelos estoques da onipresente chantagem mercantil: o lazer numa praia
tornou-se subproduto de um cartão de crédito; a confraternização entre

197
adolescentes somente ocorreria em torno de uma cerveja específica; o
amor maternal prende-se à preferência por determinada margarina ou
sobremesa vitaminada; a eterna aventura romântica resulta não mais
da atração entre as partes, mas do tal carro novo por parte dele, ou do
tratamento cosmético certo por parte dela; o sucesso de um profissional
criativo e dinâmico acontece por obra da marca precisa de computador,
ou de lâmina de barbear, ou de relógio suíço, ou do terno ou sapatos
anunciados; a harmonia conjugal passou a ser dádiva da revolucionária
lavadora, do plano de viagem financiado, da cozinha reformada com
a cerâmica líder, da tinta de parede inexcedível, dos metais sanitários
comoventes ou das lingüiças e patês em promoção; mesmo uma divertida
e improdutiva pescaria com os netos depende do plano de saúde que
está por trás, enquanto a paquera entre jovens, sem mais outra razão
para ocorrer desde que o mundo é mundo, gravita agora ao redor de um
refrigerante, ou celular, ou saco de guloseimas, ou sandálias de borracha,
ou aparelho de som, ou câmera digital, ou roupa esporte, ou aromatizante
bucal, ou chocolate crocante, e até mesmo o deslumbramento do parto
e da lactação, ou a tranqüila intimidade familiar, ou as emoções de os
pais verem os filhos crescer naturalmente condicionam-se à existência
de conta no banco “que vela por você”. Toda a vivência humana, em
essência espontânea e gratuita, flui agora atrelada ao mercantilismo
mais imediato.
Mas a vida “fetichizada” cobra um preço. Há farto material que permite
afirmar que esse mundo “feliz”, perfeito, que se apresenta como viável
através da propaganda comercial, cria (ou pode criar), um “mercado” eivado
de infelicidades ou frustrações. Em certos casos, aliás, a própria ordem dos
fatores se inverte: já não é mais o Produto seguido pela felicidade causada
pelo Produto; pode bem ser a infelicidade causada pela ausência dele. Há uns
versinhos de Millôr Fernandes, de que gosto muito, e que cito de memória:

“Minha amada me deixou


e até hoje não sei
que perfume, xampú, desodorante
eu não usei”.

198
Trata-se aqui, é óbvio, de uma paródia, uma amostra grátis da relação
mercantilizada que se sedimenta no subconsciente de tantas pessoas. E
não apenas no Brasil: a mercantilização subjetiva, como a globalização,
cobriu o Planeta.
Sim, isso tudo, sem dúvida, tem um preço. Penso, inclusive, seguindo
uma escala de gravidade progressiva, que a infelicidade do jovem namorado
rejeitado por não dispor dos produtos corretos (nos versinhos de Millôr) seja,
afinal, da mesma natureza da de outro jovem, definitivamente apartado das
possibilidades sociais, e com perfil psicopático, que lubrifica um revólver
enquanto assiste, em seu pardieiro, nos comerciais do horário nobre, a
glorificação incessante e ostensiva de tudo o que ele não pode ter.
O livro que recomendei a vocês, A Nova Técnica de Convencer, destaca
a observação de famoso diretor de arte de agência de propaganda de
Nova Iorque, no início da década de 60: “Os Estados Unidos estão se
tornando grandes pela promoção do descontentamento”.
De fato, a propaganda comercial, na produção de uma
subjetividade viciada pelos objetivos infinitos do consumo, promove
o descontentamento, a incompletude. Ângelo Gaiarsa notou: “A
propaganda é a técnica de disseminar o descontentamento e acirrar
os conflitos”. Celso Furtado, em seu livro Criatividade e Dependência,
chama a atenção para o fato de que tal fenômeno não ocorre apenas
no Brasil; sem dúvida, o problema no Brasil apresenta aspectos agudos,
mas, nos Estados Unidos e na Europa, as conseqüências da perversão
do imaginário humano pela injunção maciça do consumo também é
forte. Furtado afirma, literalmente, que, “em países com alta oferta de
meios de consumo, tem se provado que ¼ da população precisa de
atendimento psiquiátrico”.
Em Nova Iorque – como relatou certa vez o jornalista Paulo Francis,
que lá residia – pesquisa governamental destinada a localizar parcelas
da população indicadas para atendimento psiquiátrico preventivo, com
vista à diminuição da taxa de surtos e crimes, teve de ser abortada, tal o
tamanho do “mercado” que começou a levantar.
Então, permitam-me repetir: há evidências de que esse mundo
“feliz”, onírico, perfeito, gerado, como obra subjetiva, pela massificação

199
publicitária, (e que se oferece como viável, mas apenas para os capazes de
atender à demanda infinita de produtos idealizados), cria, ou pode criar,
um imenso target group eivado de limitações psicológicas e infelicidade.
E vêm-me à mente quatro vertentes para esse mesmo resultado:
1 - A primeira, acabei de mencionar: a incompletude. De modo
geral, a ideologia publicitária cria o descontentamento a partir
da evidência de que ninguém consegue corresponder às fantasias
comportamentais que são “vendidas”, juntamente a algum artigo.
Através das campanhas, são oferecidos modelos de sucesso
profissional, afetivo, romântico, conjugal, educacional, não apenas
futilmente idealizados, como também comprometidos com uma
avalanche de necessidades de compras, substituições, reformas,
aquisições, investimentos, modismos – impossível de serem
atendidos por qualquer orçamento familiar normal.
2 – Penso que a publicidade crie também a passividade. Marx
apontava, ainda no século XIX: “Coisas úteis em demasia produzem
pessoas inúteis em demasia”. Reportagem recente em Veja tratou
de um segmento expressivo da juventude de classe média brasileira
que não quer bulhufas com esforços na vida. “Manja”, sim, de
computador, bem como de equipamentos eletrônicos de lazer, mas
não ajuda nada em casa, sequer limpa o próprio quarto. Gasta
tudo o que pode em produtos anunciados. Não é difícil supor
que tais “inúteis” sejam subproduto dessa almofada de conforto
infinito, continuamente oferecida pelos meios de comunicação,
através da publicidade.
3 - Outro ponto é o que eu chamaria a mímica da droga. Não falo
de casos marginais. Refiro-me à publicidade em grande volume, a
normal, que está dentro da lei. Ela promove a excelência das emoções
alucinadas! Assistamos a um comercial de refrigerante, de guaraná:
bebidas açucaradas como essas nem de longe podem entregar o
“efeito” que vendem. O mesmo ideal psicodélico apresenta-se em
comerciais de celular, de motos, de tênis. Existe a valorização do
delírio, a valorização do êxtase, a ética do no limits. E, por oposição
implícita, o desprezo pela ponderação, pelo equilíbrio emocional,

200
pela sobriedade, pela responsabilidade madura, e outras caretices.
4 - Última vertente é a perturbadora hipótese de abertura à
criminalidade, que também já mencionei. Julgo – e não sou o
único – que a propaganda comercial induz, de algum modo, a
minoria psiquiatricamente deformada dos estratos mais carentes da
população a pegar uma arma e vir reivindicar, na marra, um naco da
abundância que lhe é, noite e dia, esfregada na cara pelos comerciais
de TV – sem que ela possa comprar. Imaginemos um jovem favelado,
sem qualquer perspectiva social, vivendo no meio de ratazanas, jovem
inundado de testosterona, e que assiste todas as noites aquelas
menininhas adoráveis e seminuas abraçarem e beijarem rapazes felizes
“que têm tudo”. Têm isso, têm aquilo, e as coisas boas acontecem –
inclusive alegres romances e sexo à farta – porque aqueles rapazes
TÊM. Para esse degredado das orgias do consumo, a cena, que se
renova implacavelmente todas as noites, é tantalizante, humilhante,
encurraladora. Talvez se torne um a mais a, de repente, se arrojar, de
arma em punho, na tarefa desesperada de TER!
Imagino poder provar isso (em contraprova) da seguinte maneira: já
visitei por três vezes a Índia, e, como é mais que notório, a pobreza lá
é acachapante, impossível de ser descrita. Brasileiro algum viu, em seu
próprio país, cenas de miséria comparável. De fato, favela brasileira é
uma Beverly Hills, comparada a uma favela em Mumbai ou Calcutá. No
entanto, há uma diferença inacreditável (para brasileiros): a favela indiana
não oferece perigo algum! Você entra e sai de lá como entra e sai de um
jardim botânico, sem risco algum de assalto, seqüestro, homicídio, sequer
de injúria ou provocação. Bem, a Índia (pelo menos até a última vez que
estive lá, em 1990) desconhece comerciais de TV. Sim, lá a religião é muito
forte – mas a religião também é forte no Brasil. É que, na Índia, não há
aquele fator de encurralamento, de acinte, aquele suplício de a pessoa
miserável se ver ininterruptamente tripudiada pela “abundância injusta”.
Quando passo por uma favela brasileira, causa-me medo unicamente a
visão do paliteiro de antenas de TV espetadas em seus telhados. Graças a
elas, penso que o “descontentamento”, para uma minoria, eclode em algo
psicopático. Estou oferecendo apenas um dado de reflexão.

201
Tenhamos em mente, além disso, o fato de a grande propaganda
comercial, a propaganda universal de consumo, ser, sim, ideológica. É um
Leviatã tão ideológico quanto as suas co-irmãs – a grande propaganda
nazista e a grande propaganda soviética – só que de natureza
diferente. A nazista e a soviética representavam, afinal, a expressão de
um capitalismo hoje arcaico, o capitalismo de produção, enquanto a
propaganda comercial, muito mais avançada historicamente, representa
o capitalismo de consumo. É um derivativo qualitativamente bastante
diferente, mas, tanto quanto as outras, intrinsecamente ideológico e
(sorridentemente) autoritário.
Para aqueles que tiverem mais interesse sobre essa abordagem,
recomendaria dois ensaios em meu último livro Deixa eu Falar (Summus
Editorial, 2006): um deles chama-se Agência de Propaganda e as
Engrenagens da História. O outro é intitulado O Muro de Berlim como
Anti-marketing e Comunicação.
Deixem-me falar sobre esse último.
Ele trata de algo precisamente relacionado ao tema da presente Mesa
Redonda.
Defendo a idéia de que o principal fator (não o único) para a
derrubada do Muro de Berlim foi exatamente a subjetividade produzida
pela publicidade – e em dose muito superior à que jamais foi observada
na História.
De fato, a polaridade entre as duas Alemanhas, também no campo
da comunicação, acabou por constituir, a meu ver, autêntico laboratório
experimental, ao vivo, quanto a vários aspectos do fenômeno que
estamos comentando.
Acho muito discutível o que se propaga no Ocidente quanto ao fato
de os alemães orientais, submetidos a um austero e restritivo regime
comunista, estarem loucos por liberdade, loucos por disporem de
partidos políticos diferenciados, loucos por terem direito a discussões
abrangentes e dialéticas, e por livre expressão.
Relativizemos, por favor, essas afirmações. Como massa, o que os alemães
orientais realmente queriam era Produto! Como massa, sentiam-se, eles
também, encurralados – de vez que captavam em Berlim oriental (comunista)

202
toda a propaganda comercial das emissoras de TV de Berlim ocidental
(capitalista), empenhada em vender uma cornucópia de artigos de consumo
que eles, orientais, estavam impossibilitados de comprar! O Muro, construído
pelos comunistas, em 1961, no intuito de reter recursos humanos, tornou-se
a fronteira da maior demanda reprimida de todos os tempos!
Para tentar anular tal “promoção do descontentamento”, o governo
comunista proibia, como previsível, a seus cidadãos, captar as estações
capitalistas – mas quase todo mundo, no setor, as captava. Morei em Berlim
ocidental em 1987 (dois anos antes da queda do Muro), e testemunhei,
em Berlim oriental, serviço prestado por rádio-técnicos autônomos,
especializados em instalar antenas para sintonizar as emissoras do setor
ocidental. Embora discreta, a ação estava longe de ser ultra-secreto.
Muitas vezes conversávamos, minha mulher e eu, com aposentados
do setor comunista que tinham o direito de vir ao setor ocidental – e eles
só falavam, obsessivamente, do consumo exuberante do lado ocidental.
Repetiam, referindo-se às deslumbrantes vitrines da Kurfürstendamm:
“Foi disso que os comunistas nos privaram.”
Havia distorções incríveis. A pessoas da Alemanha oriental
transformavam em ícones os produtos ocidentais que viam anunciados
na televisão. Mas, notem bem, exclusivamente os anunciados. Era a
predominância ostensiva da subjetividade sobre a necessidade objetiva.
Por exemplo: praticamente todo mundo, no setor comunista, dizia ansiar
por um sabão em pó melhor (uma carência inegável: o congênere local
era uma paçoca difícil de lidar). Então, atendendo a essa encomenda,
se alguém levasse a um amigo, no setor comunista, um sabão em pó
mais ecológico, que protegesse mais o meio ambiente, a tendência era o
outro não aceitar, e achar estar sendo enganado. Somente eram aceitos
produtos anunciados: no caso, Omo ou Persil. Tênis tinha que ser Adidas
ou Nike, canetas, Parker, e assim por diante. Enfim, como disse, somente
tinham validade produtos anunciados na televisão – o que comprova a
supremacia ostensiva do imaginário sobre qualquer necessidade real.
Depois da queda do Muro, multidões de berlinenses orientais
inundavam todos os dias o setor ocidental, loucos por consumo. Uma
rede de televisão alemã, a NDR (Nord Deutscher Rundfunk) fez extensivo

203
documentário, veiculado apenas em 1999: em inumeráveis entrevistas,
tais visitantes somente falavam em comprar as mesmas coisas que os
ocidentais, porque, nas palavras de uma senhora de meia idade, “só assim
sinto que tenho os mesmos direitos da outra metade do país”. O repórter
pergunta a um jovem o que a unificação alemã representa para ele, que
responde, meio sem jeito: “Comprar um carro novo”. Tudo, tudo, a versar
sobre consumo. Não se ouvia, dessa massa, qualquer abordagem sobre
cultura, sobre liberdade sindical ou jornalística, sobre o novo impasse
histórico alemão, sequer sobre política. O painel de todas as discussões,
discursos, comentários, planejamentos, era sempre o consumo – na
verdade, a subjetividade do consumo (por parte de um povo, notem
bem, que gozava do mais alto padrão de vida de todo o leste europeu,
e, sem dúvida, há anos perfeitamente abastecido em suas necessidades
objetivas básicas), Subjetividade que, no caso, como ficou mais que
evidente, funcionou inclusive como elemento de conscientização de
uma Pátria comum, e ideário de identificação nacional.
Daí eu defender a tese de que, assim como foi o catolicismo, através de
João Paulo II, o principal fator ideológico para a derrubada do comunismo
na Polônia, foi a propaganda comercial – isto é, a subjetividade insuflada
no setor comunista, durante 28 anos, pela publicidade das emissoras de
TV alemãs capitalistas – o principal fator ideológico para a derrubada do
Muro de Berlim – e, por extensão, para a unificação alemã.
Há mais um ângulo dessa questão toda que talvez seja indispensável
lembrar: essa “formação da subjetividade”, ao redor do Planeta, é maciçamente
financiada. Consome certamente mais que o custo de todos os programas
espaciais, e a de todas as pesquisas científicas em vigor na Terra.
Quando escrevia o livro que mencionei, em setembro de 2005, fiz
um cálculo para obter pelo menos um relance sobre a quanto monta a
publicidade que gera essa subjetividade toda. O custo de um minuto no
Jornal Nacional da Rede Globo, em cobertura nacional, era, na época,
de R$ 583 mil; sabemos que um único minuto em televisão equivale,
em termos de resultados, a zero: qualquer comercial, para ter chance de
causar algum efeito, precisa ser veiculado dezenas e dezenas de vezes. Se
acrescentarmos o custo da produção de um bom filme, chegamos a um

204
total arredondado de R$ 1.180 mil, sempre para um único minuto, notem
bem. Tal importância, pela média do CDI daquele ano (1,74%), renderia
mensalmente, a seu feliz possuidor, para o resto da vida, importância
mais de 68 vezes superior ao salário mínimo vigente na época no País.
Todos esses números são, claro, perfeitamente legais, e mesmo
públicos. Não estou denunciando “verbas secretas”. Contudo, penso ser
muito útil termos em mente a ordem de grandeza do sacrifício financeiro
em que altruístas anunciantes arcam o ano inteiro, generosamente,
apenas para nos orientar sobre o que nos serve, e nos fornecer modelos
de comportamento para viver melhor.
***
Vou encerrar mudando um pouco a direção desta palestra.
Não gosto de parecer estar apresentando uma “denúncia” da
propaganda comercial. Penso que o problema é mais amplo, e
fundamentalmente sistêmico, transacional.
Em geral, publicitários realmente criadores tendem a desprezar ou
a denunciar a publicidade. Muito peculiarmente, o publicitário mais
inovador e bem sucedido que me foi dado conhecer, nos últimos tempos,
o fotógrafo italiano Oliviero Toscani (cujas campanhas triplicaram as
vendas da Benetton em muitos países), lançou recentemente um livro
intitulado A Publicidade é um Cadáver que nos Sorri.
Admiro Toscani, mas não gosto de seu enfoque. Estou convicto de
que, nesse assunto, não cabe “denúncia” alguma – porque o problema
é transacional, e cada um de nós participa dele individualmente,
complementarmente. Somos peça constitutiva de sua realidade última.
Nos Estados Unidos, há estudos mostrando que o americano, em
média, fica 4h30 por dia na televisão e assiste 45 mil comerciais por ano.
Seria tentador falarmos de um “massacre” psicológico ou uma “lavagem
cerebral” em prol do consumismo, mas, por favor – pergunto – qual a
responsabilidade pessoal, para a efetivação do tal “massacre”, desse
indivíduo médio que, por vontade própria, se aboleta em uma poltrona,
e se entrega 4h30 por dia ao que lhe oferece a telinha?
Penso que o que está no centro da questão – com vista não a libelos,
mas a alguma superação PRÁTICA - é a responsabilidade pessoal de

205
cada um de nós. Uma analogia: parece razoavelmente estabelecida a
relação entre cigarro e câncer. Mesmo assim, tenho real orgulho pelo
fato de a Justiça de meu país recusar invariavelmente (ao contrário
do que ocorre em muitas outras nações, a começar pelos Estados
Unidos) pedidos de indenização por parte de fumantes cancerosos.
Nesse caso, os fabricantes de cigarros têm toda a razão: sua produção
e comercialização são perfeitamente legais e as informações já foram
todas dadas. Fuma quem quer. (Estava eu em La Paz, Bolívia, em
2005, época em que havia intensa pressão americana para que o país
erradicasse suas plantações de coca. E lá vi, numa passeata, um cartaz
inteligente: “Gringos, erradiquem seus narizes!”)
Então, eis aqui uma mudança radical de ponto de vista: muito ao
contrário de nos sentirmos vítimas da enxurrada publicitária, que consome
cerca de 1% do PIB da maioria das nações de economia avançada, será
extremamente saudável se introduzirmos, nesse quadro geral de apelos
e mandraquismos publicitários, tão empenhados em nos afetar, nossa
própria figura ativa, como personagens pensantes e atuantes em qualquer
faceta de nossa existência, detentoras de consciência e racionalidade.
Somente com a renúncia voluntária de tais fatores, isto é, à falta
de um poder analítico medianamente eficaz, podemos conceituar, ou
“denunciar”, um imaginário massacre publicitário.
É hora então, a partir dessa evidência, de revermos a abordagem
unilateral do problema, como tratado até aqui. Realmente, qualquer idéia
sobre “a formação da subjetividade pela publicidade” contém, em última
análise, um dado em falso, porque, concretamente, essa subjetividade
não é, produzida pela publicidade, mas sim por, quem aceita, por vontade
própria, se complementar com ela.
Já para quem não abra mão de seu senso crítico, toda a enxurrada
publicitária que incide em nosso quotidiano, com todos os bilhões de
dólares exigidos para sua existência, não passará, predominantemente, de
uma bobagem inofensiva e inútil – exceto quando, por exemplo, polui,
na forma de outdoors, o visual de nossas cidades e paisagens (o que já
devia ter sido proibido há muito tempo). E pode mesmo nos oferecer,
aqui e ali, momentos divertidos, por exemplo, no caso de comercias de TV

206
inegavelmente talentosos e criativos, vendendo produtos que, obviamente,
não iremos comprar.
Note-se que a subjetividade produzida pela publicidade, por muito
multifacetada que seja, a incidir em todas as áreas do comportamento
e da vida concreta, será sempre, maciçamente, uma subjetividade
centrada na aquisição, na compra, no TER. Pelo esgotamento dessa
obsessão, e por outros fatores, tornou-se hoje reconhecido que seu
poder de aculturação – vale dizer, o poder da publicidade, ao redor do
mundo – está em franco declínio.
Na atualidade, há, por exemplo, um forte movimento que considera
supérfluo o ter. Antigamente, ter televisão, ter carro, ter celular, dava
status. Hoje, principalmente nas sociedades avançadas, ter status é não
precisar disso.
O melhor livro de propaganda que conheço chama-se Confissões de
um Homem de Propaganda, de David Ogilvy. Logo no prefácio, o autor
informa, talvez como um ato falho, ter conhecido quem esteja disposto
a fazer uma campanha cujo tema seria: Nada Vale a Pena Ser Comprado.
Por mim, considero que, mudando (um pouquinho) a frase para Nada
Anunciado Vale a Pena Ser Comprado, a idéia, divulgada por Ogilvy
como exemplo de arcaísmo, passa a ser pós-moderna...
Estou convicto de que o slogan mais revolucionário que existe no
momento é: Who needs that? Quem precisa disso?
Na época em que vivemos, com todos os itens da existência
severamente mercantilizados, qualquer informação verídica, que dê
acesso a vantagens reais (incluindo as que versem sobre artigos de
compra), é valiosa, faria até jus, em princípio, a pagamento em dinheiro
por parte de quem a recebe. É ou não é? Assim, por favor, como irá
você confiar em comerciantes que, ao contrário, pagam fortunas para
informá-lo, e convencê-lo disso ou daquilo?
Que valor você pode dar a esse tipo de informação? Se acaso se
conscientizar que esse valor, por todas as leis da racionalidade, e
mesmo do mercado capitalista, é igual a zero, então qualquer possível
subjetividade criada pela publicidade em detrimento de suas verdadeiras
alternativas pessoais (inclusive de consumo) terá valor idêntico, sem

207
que se precise fazer qualquer denúncia contra “o cadáver que nos
sorri” nem empreender cruzada alguma contra o consumismo – ambas
comovedoramente ingênuas, exponencialmente inúteis.
Nem todos simpatizam com a presente proposta. Já me defrontei com a
alegação de que apenas uma minoria ínfima da população poderia se dar ao
luxo dessa postura crítica e dessa resistência à subjetividade – enquanto a
massa jazeria completamente indefesa em face da manipulação publicitária.
E também com a acusação de que eu estaria, com minha ênfase na
responsabilidade individual (enquanto amenizaria a manipulação unilateral
da propaganda), “tentando fazer uma omelete sem quebrar os ovos”...
Bem, não tenho dados estatísticos sobre essa “massa inerme”, ainda
que disponha de legítima argumentação contrária à mencionada
contestação, da qual, aliás, desconfio que contenha alguma dose de
preconceito. Contudo, reconheço, e confirmo, meu total desinteresse por
denúncias e cruzadas, principalmente – como no caso – sem possibilidade
mínima de sequer arranhar um sistema ubíquo e planetário.
Assim, nesse desafiador assunto – componente do espírito de
nossos tempos – qual seja o da subjetividade imbricada à publicidade
(subjetividade que constitui, afinal, boa parte da ideologia da sociedade
industrial avançada, e do sistema de economia de mercado, no mundo
inteiro), limito-me, concretamente, à esperança de ser, em termos
práticos, útil pelo menos a um único indivíduo – exatamente a você, que
está me ouvindo neste momento.
Gosto muito da frase de Eric Berne: “Se não há salvação para a
humanidade, pelo menos ela existe para os indivíduos que a compõe”.
O mundo, nossa civilização, está hoje seriamente ameaçada de
destruição (ou dano irreparável), não mais nuclear, mas advinda da
realização de duas apocalípticas ameaças: uma catástrofe ecológica e/
ou um espasmo da economia.
Tanto em uma perspectiva quanto em outra, o consumismo
desenfreado tem se provado a alma do negócio.
Então, é isso: Who needs that?
Você não precisa de praticamente nada do que está sendo
anunciado.

208
Mídia e produções de subjetividade:
questões da violência

Coordenação
Cláudia de Abreu

209
Mídia e produções de subjetividade:
questões da violência

Andréia Mendes dos Santos


Em Porto Alegre, estamos desenvolvendo vários estudos relacionados
à temática da violência, e, neste momento, temos tentado perceber um
pouco as outras formas de violência dentro do Serviço Social, que é onde
trabalho, buscando entender onde ele se insere em relação ao movimento
da sociedade. Então, quero explicar a vocês que aqui pretendo me deter
na mídia televisiva, em qual é a influência dessa mídia e na relação que
existe com a questão da violência. E, já de antemão, adianto que minha
posição é de que existe uma relação.
Em primeiro lugar, gostaria de destacar que, segundo o IBGE,
hoje cerca de 90% dos lares possuem televisão. Se formos comparar
esse mesmo percentual, as pessoas têm mais televisão em casa do
que geladeira.
Quero, para situar nosso debate, dizer que, na verdade, entendo que,
ao discutir o papel da mídia, não estamos procurando vilões. Em Porto
Alegre, fazemos um trabalho muito próximo com os profissionais da
comunicação, e não temos a postura de responsabilizar determinado
segmento profissional. Essa não é nossa intenção. Queremos entender
o que acontece, e, então, intervir no que vem após isso. Para tanto,
gostaria de situar como a mídia se encontra neste momento, na
sociedade. Frente a uma estrutura financeira apoiada por todo o sistema
capitalista, há uma grande importância da vertente que se chama
sociedade de consumo, que utiliza a mídia como um dos elementos
para propagar a lógica do sistema capitalista: vender mais, lucrar mais.
Então, percebo a mídia como um fator de estímulo para a venda e para
colocar no mercado aquilo que é de interesse do capital.
Dentro da lógica da sociedade de consumo, é interessante pensar
que há a criação da necessidade de um determinado produto que, ao
ser manipulado, acaba ganhando um significado. Não é apenas o fato
de se precisar comparar uma roupa. Aquela determinada roupa passa
a ter um significado maior e penetra mais fundo na subjetividade das

211
pessoas. Não se compara mais por necessidade, e sim, pelo significado
que o produto representará na vida do ser humano.
Não podemos deixar de dizer que estamos na era de uma explosão
de cultura, em que, com toda a questão da globalização e todos os
seus fatores, acontece uma verdadeira enxurrada de novos produtos,
muitas vezes bastante similares, e vem o desejo de consumir o produto
original e também o similar, o que aumenta o leque de necessidades
e, em conseqüência, o leque de frustrações, porque, nos dias de hoje,
é impossível adquirir tudo o que a mídia apresenta. Nesse sentido,
começamos a perceber uma desestruturação em termos de vida pessoal,
de comunidade, quando se começa a necessitar mais do que, na verdade,
se precisa. Esse movimento vem de uma forma circular, e envolve todos da
família, do trabalho e de todas as demais instâncias de nossas relações.
Assim como os produtos, percebo, ao estudar essa linha de pensamento,
que os sentimentos estão passando por uma lógica muito parecida. Ao
mesmo tempo em que preciso consumir, relaciono-me com as pessoas
dentro dessa perspectiva de precisar me relacionar, de calcular o que
essa relação vai me render, e por aí afora. Um movimento importante é
que, ao mesmo tempo em que preciso de um produto, ao adquiri-lo, ele
perde o significado. E tem início o pensamento de qual seria o próximo
objeto de consumo. Há um movimento muito rápido de necessidade e um
movimento muito rápido de descartar aquilo que acabei de necessitar, o
que traz, então, uma vulnerabilidade muito grande para o consumo. E o
consumo material se aproxima muito da maneira como as relações vêm
sendo encaradas. Ao mesmo tempo em que me coloco como alguém que
precisa consumir um produto, também me coloco como uma pessoa que
se relaciona de forma rápida, já que as afinidades acabam rapidamente,
não preciso mais da relação, que passa a ser posta de lado. Tudo isso traz
um reflexo para nossas relações em sociedade e se reflete em nossos
vínculos afetivos.

Como nos estruturamos na lógica do consumo?


Situação concreta: o Dia das Crianças chega sempre com inúmeros
brinquedos, muitas novidades. Percebemos que existem produtos

212
direcionados às crianças e existem produtos para seduzir os pais, os
familiares. Tento trazer uma aproximação do que a mídia, a televisão, a
propaganda, vem nos ofertando e o significado que isso possa ter dentro
de nossa casa, em primeiro lugar, depois em nossa comunidade, em
nossa cidade. Então, afirmo que a mídia, as propagandas, trazem uma
lógica que envolve, conquista todos, não somente o público-alvo. Hoje,
por exemplo, os carros são vendidos com DVD portátil para as crianças.
Não é mais o pai que escolhe o carro. Essa passou a ser uma decisão da
família. A questão nos chega de uma forma muito mais complexa do que
podemos perceber em um primeiro momento.
E, que bom para quem pode comprar tudo! Com certeza, é uma
minoria. O que está por trás desse movimento em que desejamos
comprar e esse significado se perde e desejamos outra coisa a seguir?
É um sentimento de frustração muito grande que, dependendo da
estrutura da pessoa, da família, se reflete de uma ou de outra maneira.
O que chamo a atenção é para o fato de que o movimento da mídia
tem grande poder de exclusão, e esse fator de exclusão ocorre porque
as formas que temos para reagir a esse movimento de “eu não posso,
eu não consigo comprar”, a proximidade existente entre o rico e o
pobre e as formas de reação a essa situação acabam incitando, sim,
à violência. E não me refiro apenas ao poder aquisitivo, à questão
econômica. Outros fatores vêm, junto à mídia, que também nos levam
a discriminações. As questões do negro e do gordo também estão
envolvidas no assunto.
As formas de violência de que podemos falar aqui, além daquelas
que são visíveis, também são invisíveis, como, por exemplo, ao comprar
um produto de que não necessito, ao fazer inúmeras prestações e entrar
no cheque especial, ficar sem dormir por causa das dívidas que tenho
a pagar. O movimento seguinte a tudo isso é como fazer para pagar as
dívidas ou, então, para lidar com o fato de que se tem que controlar os
gastos, porque não há mais possibilidade de compra. E as pessoas podem
chegar aos atos ilícitos.
Minha provocação para o debate se dá em relação a essa forma de
comportamento que é conseqüência de uma mídia muito sedutora,

213
porque as propagandas são encantadoras, nos pegam com facilidade,
e em verificar como isso interfere em nossa produção, em nosso dia a
dia, nos índices de violência, com suas diferentes características, e não
somente a violência visível.

214
Mídia e produções de subjetividade:
questões da violência

Vera Malaguti Batista


A mídia é protagonista da gestão da violência; é ela que, na ponta,
ajuda a construir a violência. A notícia que for veiculada no Jornal
Nacional de hoje será o que pautará a ação da polícia. A Chacina do Pan,
essa vergonhosa operação policial no Morro do Alemão, é glorificada, o
matador é glorificado e revela, fumando charuto, que gostaria de estar
no Iraque ou na Faixa de Gaza. De certa forma, a mídia é protagonista da
geração de uma subjetividade de truculência, que tem uma permanência
histórica no Brasil, um país de cultura colonizada, 500 anos de história,
400 de escravidão. E, quando se olham os pés das pessoas ensangüentadas
que estão sendo carregadas para baixo, no Morro do Alemão, fica claro
que ali estão os descendentes daqueles que estiveram no tronco, no
pelourinho, durante toda a história do povo brasileiro.
Falo de um lugar diferente, que é o da criminologia, mas que não
é nada diferente das outras áreas em que se trabalha com o objeto da
questão criminal. Então, há profissionais da Psicologia, da Literatura,
da Sociologia, do Direito penal e da Antropologia trabalhando com a
criminologia. Quer dizer, a criminologia não é um saber que significa
simplesmente se debruçar sobre a questão criminal. Durante os anos 70,
os que lidavam com a questão criminal de uma forma crítica, o faziam
como um dique utópico contra as violações de direitos humanos. Isso
ocorreu no Chile, na Argentina, no Uruguai, no Brasil, que estavam sob
governos militares, impostos pela dominação geopolítica militar do
continente feita pelos Estados Unidos e que hoje se dá pela democracia,
uma democracia vergonhosamente muito mais sangrenta no Brasil em
termos numéricos do que no ciclo militar. Dessa forma, a grande questão
é como podemos desconstruir, no discurso, essa produção permanente
do desejo de matar? Como recuperar esse dique utópico, desconstruir
essa avalancha contínua, já que o monopólio das Organizações Globo e
os demais meios de comunicação simplesmente reproduzem o formato
e o conteúdo, com pequenas alterações? A Globo está fechada com o

215
massacre do Pan-Americano. Pagará um preço histórico por isso, como
pagou pelo silêncio com relação ao Movimento Diretas Já. Falo nisso
emocionada, porque nós, no Rio de Janeiro, vivemos um drama. As
pessoas foram assassinadas friamente, arrastadas de dentro de casa. Uma
das manchetes de O Globo foi: “Parece que seis seriam traficantes”. Não
há pena de morte para tráfico de drogas no Brasil, ainda. E o discurso
é que traficante pode ser barbarizado, assassinado, morto dessa forma
brutal. Aqueles meninos fascistas da Barra da Tijuca que espancaram a
doméstica estão apenas reproduzindo a cultura assassina que vêem todo
dia. Eles assistem, lá no Morro do Alemão, os irmãos das domésticas,
os filhos das domésticas, os maridos das domésticas passarem por
situações muito mais violentas. Estou querendo dizer que esse fascismo
da Barra da Tijuca, da juventude do shopping e do condomínio é apenas
o resultado da cultura pedagógica da aceitação do extermínio no Rio de
Janeiro e no Brasil.
Na periferia da colonização, essas são traduções teóricas da
criminologia do Império, pois, na verdade, estamos assistindo a
uma tradução do paradigma bélico para o paradigma criminal. É
o mesmo modelo, e são as mesmas mercadorias que estão sendo
vendidas. Essa prisão apresentada como de segurança máxima é um
modelo norte-americano, tem uma arquitetura; como a tornozeleira
eletrônica, são as bugigangas do imperialismo, da indústria do
controle do crime, que nos estão sendo vendidas como a panacéia
para os nossos medos e os nossos riscos. Wacquant e Bourdieu
escreveram um artigo, chamado A astúcia da razão imperialista,
sobre como se dá a divulgação e a disseminação dessas políticas pela
imprensa. É muito interessante fazer uma analogia entre o discurso
policial e o discurso médico: faz-se a apologia das tecnologias e
da indústria fármaco-química, das neurociências. Essa medicina
vendida também é bélica, faz parte desse modelo. Promete a cura
de todos os males, o fim da morte e da velhice.
Nessa perspectiva, há um pensador que hoje é um dos maiores
intelectuais da América Latina e está escondido para nós no campo do
Direito. Hoje Zaffaroni é ministro da Corte Suprema argentina, e, na década

216
de 80, escreveu um livro sobre uma criminologia a partir das margens,
no qual propõe o que chama de realismo marginal, que é produzir um
discurso criminológico que venha das margens. Nosso saber é marginal
no sentido de que vem das margens do modelo central; então, ele propõe
a tentativa de construir um discurso a partir da realidade dessa margem.
Pensando na criminologia como um rio e na aproximação pela margem,
ele indica os significados diversos que as ideologias dos países centrais
apresentam na nossa periferia. Só poderemos promover essa aproximação
a partir da compreensão da multiplicação latino-americana das perguntas
centrais somadas à notória inferioridade no desenvolvimento teórico e nos
recursos informativos disponíveis e também na dramaticidade do nosso
cotidiano violento. Dizia Zaffaroni, já nos anos 80, que, no holocausto
normal do nosso dia a dia, o maior número de mortes é causado por
agências do Estado, seja nas execuções protagonizadas por policiais e
para-policiais, seja pelos esquadrões da morte, hoje alçados ao título de
milícias e vendidos pela mídia com certa simpatia.
Zaffaroni analisa a discursividade criminológica como fato de
poder, poder letal do centro para a periferia. Quer dizer, toda essa
discursividade vendida pela mídia tem um modelo disseminado que
aparece como discurso naturalizado. Para ele, uma das técnicas do
poder é o monopólio da informação, que impede a comunicação
entre as margens, por isso o isolamento intramarginal. Por que
incorporamos acriticamente a ideologia norte-americana das prisões
de segurança máxima e não sabemos nada da questão criminal na
África? Recomendo o lindo filme sul-africano Infância Roubada, que
aborda um pouco esse tema. O que une e o que separa a prisão RDD
de Presidente Prudente e a prisão de camponeses pobres de Cabrobó?
Não sabemos nada disso, pois a mídia não fala e jamais falará disso.
A dramaticidade da questão criminal em nossos países exige que
nossa terminologia explique o que são nossos sistemas penais, como
operam, que efeitos produzem, por que e como nos ocultam esses
efeitos, que vínculo mantêm com o resto do controle social e do
poder, que alternativas existem a essa realidade. Essas perguntas são
aquelas que não aparecem na cobertura da mídia.

217
Ainda segundo Zaffaroni, toda a energia do trabalho da criminologia
dirige-se também a construir um saber que permita ajudar as pessoas
criminalizadas a reduzir seus níveis de vulnerabilidade ao sistema penal.
Esse é um poder destrutivo, em ato, com uma localização subordinada
a um projeto mais amplo de genocídio, do holocausto colonizador
aos campos de concentração, da devastação da África aos territórios
ocupados do Oriente Médio e às favelas cariocas. É o que Paulo Arantes
chama de guerra cosmopolita, vista como uma questão judicial de crime
e castigo, uma questão de polícia. Da mesma forma que Bush ocupa
o Iraque para levar a democracia e produz um holocausto legitimado
pelo discurso do resgate da democracia, da mesma forma, estamos
produzindo a chacina dos Jogos Pan-Americanos para garantir o direito
de ir e vir. A polícia e a guerra têm o mesmo sentido. A produção midiática
daquilo que Chomski chamou de aquiescência passiva, manufatura do
consentimento, é realizada milimetricamente, palavras são escolhidas, e
a elite branca é sempre colocada como vítima.
Vinte anos mais tarde, Raúl Zaffaroni propõe uma nova virada
epistemológica baseada no livro de um criminólogo neozelandês chamado
Wayne Morrison (a Nova Zelândia e a Austrália puseram em prática um
grande projeto de aniquilamento das populações que viviam naqueles
territórios. Há pouco tempo, os filhos dos aborígenes entraram na Justiça
na Austrália pelo direito de conhecer a própria história. E perderam. Hoje,
uma das bandeiras do socialismo que venceu foi assumir o genocídio e
pedir perdão oficialmente aos aborígenes). O importante é entender
porque o genocídio não é objeto da discussão criminal. Por que se discute
como a polícia vai entrar no morro, a aplicação dos métodos para cercar e
atacar “bandidos”, governamentalidades, no meio da devastação? Por que
os especialistas usados pela mídia são sempre os mesmos? Simplesmente
para referendar essa manufatura do consentimento.
Na criminologia dos anos 50, dois criminólogos chamados Sykes e
Matza criaram o conceito de técnicas de neutralização, que seriam como
os pontos de fuga na Psicologia, que demonstrariam como as pessoas
que cometem infrações desenvolvem técnicas de neutralização em
relação às transgressões que estão cometendo. Geralmente, são usados

218
exemplos das infrações populares. Por exemplo, o menino da Cidade
de Deus que, ao ver o chefe do tráfico morto, fala: “Puxa vida, ele não
fazia nada contra ninguém, não matava e nem roubava”. Então, vejam
como aquele menino considerava culturalmente o comércio varejista de
drogas (a expressão “narcotráfico” faz parte do léxico imposto à mídia
pela geopolítica dos Estados Unidos), como se referia ao seu trabalho. Se
quisermos passar pelo Leblon, pensemos como os profissionais liberais
lidam com a sonegação do imposto de renda. Produzem técnicas de
neutralização, e isso define como cada grupo social vai constituindo
suas próprias técnicas. Assim, o que Zaffaroni aborda é a compreensão
das técnicas de neutralização, não com o mesmo objeto de Sykes e
Matza, mas analisando a ideologia que sustenta os massacres oficiais, do
Congo Belga ao Rio de Janeiro. Uma apavorante técnica de neutralização
teorizada pelos europeus, expandida pelos Estados Unidos, a doutrina
da segurança nacional, vai se tornando atual nos dias de hoje contra o
outro, o estranho, o inimigo. Essa técnica produz o perverso consenso
de não só legitimar a matança em curso e a expansão assustadora do
sistema penal como de produzir o inquietante deslocamento entre os
métodos e seus objetivos. É o próprio Paulo Arantes que também dirá
que o que resta é a crueldade. Com a onipotência, a violência vira uma
segunda natureza, e o ato de guerra uma rotina.
Na discussão sobre a questão criminal, no Brasil de hoje, não importa
que o extermínio, a violência contra os moradores de favela, os índios, os
sem terra, os sem teto, a tortura e o isolamento nas prisões não tenha
qualquer efeito sobre as condições reais da segurança. Não importa que
prendamos, torturemos e matemos, apesar disso em nada melhorar a
situação de nossos jardins cercados. A brutalidade e o extermínio fazem
sentido por si sós. O que quero trazer aqui é o engajamento subjetivo à
barbárie, com a vítima como o novo especialista. Não podemos esquecer
que há vítimas nas duas pontas, mas a vítima televisada é sempre a
branca. Ocorre a exploração da dor e dos sentimentos para criar consensos
sem debate, sem aprofundamento, com uma única versão, produzindo
a criminologia do senso comum. Toda essa técnica de neutralização faz
com que não nos identifiquemos com os pés negros, cheios de sangue,

219
dentro daqueles lençóis. Então, essa não-identificação anula o que se
passou na França do século XVIII, quando o sistema penal do absolutismo
produzia o enforcamento coletivo e, de repente, a população começa a
se identificar com os enforcados. E é dessa identificação que surge a
Revolução Francesa. Não existe cidadania sem revolução. E foi preciso
abrir as portas da Bastilha.

220
Mídia e produções de subjetividade:
questões da violência

Paulo Roberto Vaz


A pesquisa que venho desenvolvendo nos últimos quatro anos muda
o discurso dos riscos dos meios de comunicação. Quando falo do discurso
dos riscos dos meios de comunicação, proponho dois lugares para eles: o
próprio conceito de risco, que perpassa diversos campos, mas concentrei-
me na saúde e na educação. Estou certamente falando do discurso sobre
fatores de risco, como doenças cardíacas, cânceres, etc.
O segundo tema com o qual trabalho são as notícias de crime. Se
pensarem bem, meu objeto de estudo é sobre a forma como aparece
o sofrimento no espaço público, e como, então, esse sofrimento nos
leva a fazer alguma coisa em relação a ele. Então, vocês podem perceber
também que existe uma perspectiva que nem é tão relevante. Pelo ponto
de vista do qual abordo a questão, não é como podemos efetivamente
lutar contra os sofrimentos, ao contrário, é se interrogar sobre o sentido
que estamos dando ao sofrimento e se ele não provoca mais sofrimento.
Mais uma vez, pergunto, por exemplo, o que pode acontecer com nossas
vidas se elas se reduzem ao discurso de adiar a morte. É o caso da saúde.
O que pode significar em nossas vidas, ou ao contrário, em nossa relação
política, se, cada vez mais, pensamos que o único modo de combater
o crime ou de evitar o sofrimento causado pelo crime se reduza a ter
um Estado autoritário e conservador que tem a legitimidade de sair
matando? Ou seja, o meu problema, enquanto teórico, é como o sentido
dado ao sofrimento provoca mais sofrimento. É um cuidado, vamos
dizer assim, que deriva um pouco da matriz filosófica à qual pertenço,
já que sou marcado por autores como Nitzsche e Foucault. Vocês podem
perceber que essa seria a questão decisiva como abordagem.
Não quero dizer que esse problema seja legítimo, mas a questão é
como podemos agir, como podemos cuidar do outro que sofre ou como
podemos cuidar de nosso próprio sofrimento. Isso é absolutamente
legítimo. A ética implica refletir sobre o modo como se vai cuidar do
sofrimento. É esse lugar que quero ocupar, e é desse lugar que falo a

221
vocês. Certamente, todo o meu trabalho se dá nessa dupla dimensão:
como o sofrimento aparece no espaço público e, por outro lado, como
se constrói socialmente a idéia de sofrimento evitável. Vocês se lembram
daquela grande catástrofe, o Tsunami. Talvez vocês tenham visto o
noticiário da BBC, em que o ponto fundamental do comentário era
apenas ter tentado evitar aquela quantidade de sofrimento, que poderia
ter sido reduzido. Todo ponto era tentar definir como seria possível fazer
o sistema de informação funcionar melhor e fazer com que as pessoas
que estavam nos locais atingidos posteriormente tivessem recebido a
informação a tempo de fazer alguma coisa. Essa era a preocupação
fundamental da mídia, e gostaria que vocês percebessem isso. A pesquisa
do CESEC foi muito importante na minha própria pesquisa. Certamente,
o ponto não é ver que os sofrimentos quase não aparecem, e o outro
ponto é apenas a questão do contexto. O contexto é proposto o tempo
todo. O contexto dá a idéia do sofrimento evitável.
Muito concretamente, a morte aparece no espaço público de dois
modos: ou ela pode ser sempre adiada, pode estar sempre à distância,
ou é a morte absolutamente aleatória, mas apenas aparentemente
aleatória, porque o esforço da nossa narrativa, que é característica das
culturas modernas, é reforçar o quanto todo aquele sofrimento poderia
não ter acontecido. Assim como acontece no Tsunami, quem conhece
o jornalismo do Rio, o da Rede Globo, por exemplo, pode verificar que,
por diversas vezes, é muito usual aparecer o seguinte comentário após
qualquer notícia de crime: “O crime ocorreu a 20, 50, 100, 200, 400
metros de uma cabine de polícia”. Esse é um contexto, e, quando se diz
isso, o que está implícito é que esse sofrimento poderia ter sido evitado
se a polícia fosse eficiente. E, se vocês notarem, pela quantidade de
cabines de polícia, todo crime acontecerá a 100, 200, 400 metros da
polícia, ou seja, há uma direção da cultura contemporânea de que nada
pode acontecer por acaso, em tudo podemos fazer alguma coisa.
O conceito de risco se caracteriza por uma dupla contingência, e deve
ser diferenciado do conceito de perigo. O perigo é contingente, pode ou
não acontecer. O risco, além de ser contingente nesse sentido de poder ou
não acontecer, é remetido a uma decisão humana. Somente há risco se, por

222
acaso, qualquer sofrimento que acontecer no presente puder ser atribuído
a uma decisão nossa. Por exemplo, um ataque cardíaco e a feijoada que
como, ou a incompetência da polícia e o sofrimento ali vivenciado, ou,
ainda, a possível incapacidade de lidar com um ataque terrorista e a
catástrofe do 11 de setembro. É sempre esse tipo de construção acerca do
risco que atribui qualquer sofrimento presente ou por vir a uma decisão
humana, por isso ela é duplamente contingente, por isso a noção de risco
é absolutamente oposta à noção de acaso. Ele debilita imediatamente
o poder da ação humana diante do sofrimento. É como se ele dissesse:
“Vocês são a zona de risco, e criam uma espécie de delírio de onipotência,
porque tudo depende de nós, em última instância”.
E o que estamos vivendo hoje seria uma espécie de direito ao risco,
que tem duas dimensões. É uma relação Estado e indivíduo. Quero
caracterizar o Estado neoliberal, porque o seu primeiro argumento é
individualizar os riscos.
A questão é se quero ser informado de que, para contrair AIDS, depende
de eu usar ou não camisinha, mas quero mesmo ser aquele que decidirá
se vou ou não usar. A contrapartida disso é a crença de que a doença, e
também a saúde, o trabalho, o que for, é individual, no sentido de que cabe
ao indivíduo cuidar de si. A questão é: quero escolher o quão arriscado
serei. A contrapartida é que, se você, por acaso, sofrer, você mesmo foi
o responsável porque não se cuidou direito. Exemplo muito concreto
disso são as recentes legislações da Inglaterra, tipicamente instâncias de
individualização de riscos com relação à saúde, em que obesos e fumantes
têm que pagar mais seguro-saúde. Eles estão escolhendo. Essa é a idéia, ou
seja, a primeira dimensão do Estado neoliberal é essa da individualização do
destino; cabe ao indivíduo gerir os riscos ligados à saúde, ao trabalho e até
à própria segurança. Margareth Tatcher dizia: “O crime está aumentando.
Cabe a você, elite, fazer por onde evitá-lo”. Sabemos disso. Colocamos
alarme de segurança no carro, na casa, no escritório.
A primeira parte com relação ao risco tem como formulação “o Estado
deixa de ser moralista, deixa de querer intervir no que você faz na sua
vida e você escolhe quão arriscado quer ser. Em contrapartida, você se
responsabiliza por isso”.

223
A outra parte talvez seja mais interessante para a questão do
crime. Você quer escolher que riscos correr, portanto, você se indignará
profundamente contra todos aqueles que lhe impuserem o risco que você
não quis correr e com o qual não se beneficiou de modo algum. Estou
perto de uma fábrica que joga produtos químicos no rio. Adquiro um
câncer. Não tive benefício em relação a esse risco que corri, não quis correr,
não sabia que ele existia. Fico, então, profundamente indignado com a
fábrica e com o Estado, que não atuou contra a fábrica, isto é, a noção
de risco é uma terminologia usada para se atribuir a responsabilidade
perante o sofrimento. O que é importante observar é que essa atribuição
de responsabilidade em parte é destinada ao indivíduo, a aquele que
faz a sua parte e que não poderia ser colocado em um risco que ele não
quis correr, e que demanda, no tempo ideal, a intervenção do Estado. Há
uma semelhança de forma entre a demanda da intervenção ecológica e,
por exemplo, a demanda da intervenção do Estado contra o terrorismo.
A questão é sempre a mesma. Existe um outro que pôs você em risco, e
cabe ao Estado evitar isso. A questão do fumante passivo também ocupa
o mesmo lugar. Imagine você, um fumante passivo, morrer de câncer. O
Estado não fez regulação para evitar que o outro o pusesse em risco; a
reclamação, portanto, passa a existir. Você vai aos Estados Unidos hoje, e,
em uma cafeteria, se depara com frases como: “Faca corta” e “A água do
café é quente”. Se, por acaso, você se cortar ou queimar a boca enquanto
bebe o café, você processa a cafeteria. Então, o que proponho a vocês é
claro. Existe um direito ao risco, em que de um lado, atribuo ao indivíduo
responsabilidade sobre sua vida, e, de outro, o indivíduo demanda do
Estado que este impeça que outros o coloquem em risco. Isso vale para a
ecologia, para a saúde, para a segurança, para o terrorismo.
A outra face do estado neoliberal é o autoritarismo, isso porque, para
que eu não seja posto em risco por esse outro malvado, posso provocar
sofrimento. O argumento para a invasão ao Iraque foi exatamente esse.
Para evitar que uma catástrofe semelhante ao 11 de setembro fosse
ampliada por atos de destruição de massa, posso provocar sofrimento
tanto nos iraquianos quanto na minha população, que convoco para
entrar em guerra. Do mesmo modo, aqui no Brasil, o que é mais curioso

224
e assustador é que ninguém se indigna, e não há qualquer tipo de
reação social contra a polícia pelo fato de matar 20 pessoas na favela.
Ao contrário, o jornal depois descreve o policial quase como se fosse um
herói, e as pessoas pensam que o Estado brasileiro não é autoritário.
Outra lei absolutamente impressionante: na Inglaterra, foi criada uma lei
em relação à possibilidade de reincidência de doença. Hoje uma pessoa
diagnosticada com distúrbio sério de personalidade pode ser presa pelo
resto da vida sem jamais ter cometido um crime, porque simplesmente
pode cometer um crime, ou seja, pune-se o risco. Aqui no Brasil, não
é preciso fazer leis tão violentas, que desrespeitam tanto os direitos
humanos. Basta autorizar a polícia a sair matando. E nós autorizamos. O
sentido de autorizar é que não há indignação social em relação a isso.
Quando quero abordar mídia e subjetividade e violência, os dois
conceitos fundamentais que gostaria de propor são primeiro, o conceito
de vítima virtual, pois estamos assistindo à construção de uma nova
subjetividade que pode ser conceituada como vítima virtual, e, em
segundo lugar, a construção do criminoso como desumano. Na mídia
pode haver duas atitudes na relação mídia e crime: ou se pode pensar
que a mídia cause crime, aumente a criminalidade, e, quando se pensa
assim, se tem uma explicação conservadora ao modo da imitação. A
mídia mostra muita violência, e as crianças e jovens vêem o assassinato
e o imitam. O caso do rapaz que matou pessoas no cinema, por exemplo,
após ter jogado vídeo game. Essa é uma perspectiva da imitação. As
pessoas tentam imitar o que aparece na mídia ou se tem a perspectiva
de que a mídia cause crime porque favorece a harmonia, especialmente
no sentido de revelar o que há em sua vida. Tanto ela pode colocar em
crise ou substituir a família, sem tanto limite para as pessoas cometerem
crime, quanto ela pode gerar um sentido de vida que torna obrigatório
consumir, e, portanto, favorecer a criação de crime, quanto ensinar o
estilo de vida dos ricos para os pobres e tornar mais necessário cometer
crime. Essas são explicações do motivo de a mídia causar crime. Uma
mais conservadora, outra mais de esquerda.
A pesquisa em que trabalho não é sobre a mídia como causadora do
crime. Ela até causa violência, mas o que a mídia provoca é o medo do

225
crime, e é o medo do crime que tem dimensão política. Isso não quer dizer
que a mídia não cause crime. Coincide com o surgimento da televisão
o aumento da criminalidade no mundo inteiro, mas quero chamar a
atenção aqui não para isso, mas sim, para a forma como a mídia gera o
medo do crime e somente coloca uma alternativa conservadora para o
próprio crime.
Quero detalhar três ou quatro artigos reproduzidos pelo meu grupo de
pesquisa a respeito dessa cobertura do crime em 2001 e 2002, comparado
historicamente com 1982, 1983. Também analisei a cobertura da RJ TV.
O primeiro resultado da pesquisa mostra que a sensibilidade social
depende daquele que aparece na TV como criminoso e como vítima. Nos
Estados Unidos, faz-se pesquisa de raça para mostrar como as notícias de
crime favorecem o preconceito racial ao sub-representar o negro como
criminoso, ao sub-representar o negro como vítima, e, ao mesmo tempo,
ao sub-representar branco como vítima e ao sub-representá-lo como
criminoso. Fiz a mesma pesquisa no Brasil, não tanto com negros, porque
hoje o jornal não dá direção de raça às notícias, mas com relação à favela.
Muito claramente, são percebidos dois movimentos: primeiro, associa-se
a favela ao tráfico. Analisei 2001 e 2002, e, toda as vezes em que aparecia
a palavra “favela” ou semelhante, em 90% dos casos, também aparecia
a palavra “tráfico” na notícia, isto é, está absolutamente identificado
favela e tráfico. Por outro lado, nas notícias havia consistentemente a
sub-representação dos favelados como vítimas e uma sub-representação
como criminosos: “Tiroteio no Salgueiro provoca pânico na Tijuca”.
Quem mora no Salgueiro é vítima? Você sub-representa o favelado
como criminoso e o sub-representa como vítima, o que resulta em dois
movimentos claros.
Segundo ponto: a produção da vítima virtual. Afirmo que toda notícia
possui três fragmentos narrativos explícitos ou implícitos. O primeiro
fragmento narrativo é o que aconteceu ou poderia ter acontecido com
qualquer um. Manchete de uma matéria em que o homem morreu de
bala perdida em uma falsa blitz: “Poderia ser qualquer um de nós”. Esse
tipo de fragmento narrativo é colocado o tempo todo. Favorece a criação
da vítima virtual, pois você pensa que aquilo que aconteceu com aquela

226
vítima poderia ter acontecido com você. É diferente de uma notícia de
crime passional, em que há a tendência de identificação com o criminoso
e de distanciamento da possibilidade de vitimização. O crime aleatório,
ao contrário, tende a fazer com que você creia que aquilo que aconteceu
poderia ter acontecido com qualquer um de nós. É a mesma coisa com
o atentado terrorista. Um filósofo norte-americano escreveu a seguinte
frase: “Poucos novaiorquinos conheciam alguém que morreu no World
Trade Center, mas a quase totalidade da população conhecia alguém
que, apenas por uma questão de caso, não esteve lá naquele momento”,
ou seja, o atentado terrorista continua transformando todos em vítimas
virtuais. Do mesmo modo, uma bala perdida na Linha Amarela transforma
os cariocas em vítimas virtuais.
O segundo fragmento é que o que aconteceu pode acontecer
novamente, como o atentado terrorista. Para que Bush ganhasse a
eleição, ele manipulava o sistema de alerta. O jornal, ao noticiar um
crime aleatório, raramente ou nunca coloca estatísticas reais sobre o
fato. Recorre a casos semelhantes ou diz: mais uma vítima da violência,
o que significa dizer que se constrói o tempo todo uma possibilidade de
retenção do futuro. Ativistas de direitos humanos passam a exigir, em
alguns lugares, que a mídia, ao divulgar o crime, divulgue a taxa efetiva
do número de vítimas daquele crime, porque as pessoas calculam as
chances de serem vitimadas a partir da mídia. Quem somente tem a
experiência mediada de uma cidade, por exemplo, do Rio de Janeiro,
acha que, depois que passou pela Linha Vermelha, é hora de alguma
coisa acontecer, porque ela não tem um horizonte de normalidade, que é
o de quem vive no Rio e em que a maior parte do tempo nada acontece.
Idosos, pessoas que se afastam da cidade ou que só tem da cidade a
experiência mediada tendem a pensar que a cidade é mais perigosa do
que aqueles que têm outra experiência da cidade.
Gostaria, ainda, de destacar que o criminoso é apresentado como se
fosse absolutamente desumano, e essa é a condição para que se possa
fazer qualquer coisa com ele. A grande mudança teórica é que o que
importa para a prisão hoje são apenas os seres humanos. A prisão perdeu
a sua função, o seu ideal de reabilitar. O que se faz é separar os criminosos

227
como de alto, médio e baixo risco, e fazer com que os de alto risco, se
não forem mortos, que pelo menos fiquem presos o resto da vida. Para
a polícia brasileira, para os terroristas, a lei não vale porque eles não são
humanos. Essa é uma construção social que tem que ser questionada.
O último ponto é a construção do sofrimento evitável. Na pesquisa que
fiz sobre o RJTV, analisei uma amostragem 36 dias, e apenas em dois desses
dias não houve algum tipo de mensagem de fragmento de risco, dizendo
algo como “se as leis fossem mais rígidas, se houvesse mais polícia e se a
prisão contivesse riscos, nós não sofreríamos” Essa é a idéia autoritária do
populismo conservador que estamos o tempo todo autorizando, ou melhor,
a mídia nos convida a viver desse modo. Mais ainda, outro ponto importante
que diz respeito à subjetividade da vítima individual. Por que a vítima
concreta é a metonímia do público em geral, cansado de viver com medo?
Ele nos representa. Não nós, os especialistas, não nós, os sociólogos. Quem
nos representa é aquele que sofreu. Quem teve autoridade para questionar
o Presidente Lula, que não quis reduzir a maioridade penal, foi a própria
vítima, porque ela somos nós. É também interessante, nós que trabalhamos
com o saber, que comecemos a pensar em que mundo estamos, onde a
única autoridade ou a única requisição para poder falar sobre o crime é o
fato de ter sido vítima ou de poder ser vítima. Rebelião de Benfica: um mês
depois, a então Governadora do Rio promove uma mudança na penitenciária
de Benfica, que não seria mais uma casa de custódia, e sim, uma casa de
reabilitação dos criminosos que estavam prestes a sair. Quem vai discutir a
matéria por mais de cinco minutos na televisão é uma moradora vizinha de
Benfica, que não entende nada de segurança e não é identificada. Ela aparece
com o rosto distorcido, e aparece a sua sombra, pois ela é qualquer um de
nós. Essa é a sua autoridade. Ela pode ser vítima. Isso é um desafio imenso
para nós. Como agir diante desse mundo onde é produzida a subjetividade
da vítima virtual? Onde se tem o direito de sofrer, como podemos criar um
outro tipo de política com relação a isso?
Um último detalhe: toda vítima se considera inocente. Toda vítima, e
nós somos a vítima, pensa que o problema não é nosso. É da polícia. E
do Estado. Pensamos que o problema não seja social. Temos essa crença
absolutamente louca de que, matando o bandido, acaba o crime.

228
Mídia e produções de subjetividade:
questões da infância e adolescência

Coordenação
Maria da Graça Gonçalves

229
Mídia e produções de subjetividade:
questões da infância e adolescência

Guilherme Canela1

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O AUDIOVISUAL: A PROTEÇÃO DE


CRIANÇAS E ADOLESCENTES2
Existem alguns fenômenos sociais que são tão amplos que
interessam a diferentes áreas do conhecimento. Dada a complexidade
desses fenômenos sociais, não é suficiente que, a partir de nossas áreas
específicas, analisemos essa realidade sem interagir com as outras áreas
de pesquisa. Ou as diferentes áreas que lidam mais diretamente com a
sociedade se conscientizam disso e começam a se aprofundar de forma
transdisciplinar no tema ou caminharemos de maneira equivocada.
A infância e a adolescência e o fenômeno da mídia e a inter-relação
entre esses dois pólos são dois desses temas que interessam amplamente
às diversas áreas, desde à própria Psicologia a outros setores, como à
Pediatria, à Sociologia, à Ciência Política e ao Direito. A Psicologia
tem muito a pesquisar sobre a relação estabelecida entre ambos, o
que envolve verificar quais são os impactos da mídia na formação de
crianças e adolescentes, isto é, em seu desenvolvimento integral. Um
eixo de debate bastante interessante para a Psicologia e que pode render
bons frutos é o da classificação indicativa.
Não é tarefa de fácil consecução uma discussão desapaixonada,
neutra axiologicamente – para nos valermos da expressão weberiana,
e, portanto, científica, acerca do tema “qualidade da programação

1. Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Coordenador de Relações Acadêmicas
da ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. [email protected]
2. Este artigo é baseado na apresentação realizada por Guilherme Canela na Mesa Mídia e Produções
de Subjetividade: Questões da Violência, no Seminário Mídia e Psicologia, em junho de 2007. Versões
similares deste argumento foram publicadas em: CANELA, Guilherme – “A classificação indicativa sob
o paradigma dos direitos humanos”, in: CHAGAS, Cláudia M. de F.; ROMÃO, José. E. E. e LEAL, Sayonara
– Classificação indicativa no Brasil: desafios e perspectivas. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça,
2006, pp. 197-214 e CANELA, Guilherme – “Qualidade da programação audiovisual para crianças: do
abstrato ao concreto”, in Cadernos Rio Mídia 2 narrativas e a mídia para crianças e adolescentes. 2º.
Encontro Internacional Rio Mídia. Rio de Janeiro: Multirio, Outubro de 2006.

231
audiovisual”, qualidade que vai muito além do estético, encerra o ético e
o moral, encerra os compromissos públicos assumidos por concessões de
rádio e televisão perante as sociedades nas quais estão inseridas. O bom e
sua antípoda, o ruim, dependem de um conjunto pouco administrável de
variáveis: contextos social, econômico, cultural, religioso, do observador,
para além das particularidades psíquicas, biológicas, etárias de cada
telespectador e telespectadora.
Diante disso, a resposta à pergunta “é possível determinar critérios
para a qualidade da programação” seria um sonoro não?
Antes de discutirmos as soluções potenciais para a qualidade da
programação para o público infanto-juvenil, uma pequena digressão
parece-nos pertinente. Quais são os caminhos de investigação e análise
quando a relação mídia e criança está no foco das preocupações de
pesquisadores e tomadores de decisão?

Infância, adolescência e interfaces comunicacionais


Crianças e adolescentes podem ser estudados como sujeitos da
comunicação, exercendo seu direito de voz garantido pelo tratados
internacionais (artigo 13 da Convenção Internacional sobre os Direitos
da Criança). Direito de voz na comunicação interpessoal, familiar e
comunitária, mas também na comunicação através da mídia.
A questão é como entender a discussão dos meios de comunicação
e das regulações a eles direcionadas a partir do paradigma dos direitos
humanos. Não é algo trivial, ainda que seja algo bastante presente na
afirmação histórica dos direitos humanos, o entendimento do direito à
comunicação e à informação como um direito humano. A idéia da liberdade
de expressão, a importância da opinião, sempre estiveram presentes desde
os gregos. Entretanto, ainda que estivessem presentes nas discussões, não
ganharam a mesma força política de outros direitos humanos. O cidadão
possui o direito de participar da produção das informações. Quando se
olha para crianças e adolescentes, nota-se que esse direito é permanente
negligenciado, especialmente em relação às crianças, que participam
muito pouco da produção das informações que lhes dizem respeito - algo
que precisa ser considerado com muito cuidado.

232
Dentro desse aspecto, porém em uma perspectiva bastante mais
complexa, nossos protagonistas ainda podem ser vistos como produtores
de conteúdos midiáticos os mais diversos possíveis. A pluralidade de
opiniões, conceito basilar das democracias ocidentais, não pode ser
apenas garantida aos grupos de interesse formados por adultos. Garotos
e garotas também devem possuir os instrumentos necessários para
veicular suas opiniões e demandas. Por certo, a utilização dos meios de
comunicação é central para assegurar essa necessidade de se colocar
perante o restante da sociedade. Esse aspecto é central tanto na
condução das políticas públicas (o que querem crianças, adolescentes
e jovens para si próprios) quanto na construção dos próprios conteúdos
midiáticos (veículos direcionados a jovens, em geral de classe média, já
têm constituído conselhos editoriais jovens, com a finalidade de estarem
mais próximos dos interesses de seu público-alvo). Adicionalmente, a
produção de conteúdos em veículos comunitários (e.g. Cala Boca já
Morreu), dentro dos espaços escolares (e.g. MultiRio e Educom.Rádio) ou
através da internet não pode ser desconsiderada.
Garotos e garotas podem ser analisados, adicionalmente, como
trabalhadores no mundo da comunicação: atores e atrizes, apresentadores
e apresentadoras. As implicações legais, sociais e individuais desse tipo
de relação profissional também devem ser investigadas.
A infância e a adolescência podem, ainda, figurar como conteúdo
da comunicação. A mensagem informativa e de entretenimento pode
ser construída não somente para as crianças e adolescentes mas
também sobre as crianças e adolescentes. Neste ponto, insere-se
indubitavelmente a discussão sobre a mídia noticiosa. Por que, a partir
do ponto de vista do jornalismo, é importante falar sobre a infância e
a adolescência? A resposta a essa pergunta, entretanto, foge ao escopo
de nossa presente discussão3.
Meninos e meninas também podem ser estudados como receptores
de produtos midiáticos. Diferentes mensurações realizadas ao longo
dos últimos anos por grupos distintos de pesquisadores destacam

3. Para reflexões sobre o tema, cf., e.g., CANELA (2005).

233
que, em média, crianças e adolescentes passam mais tempo diante
da televisão do que realizando qualquer outra atividade, exceto a de
estar na escola. Isto, sem embargo, para não mencionarmos outras
formas de consumo de entretenimento e informações mediadas (jogos
eletrônicos, internet, outdoors, revistas, etc.). Segundo a pesquisa Perfil
da Juventude Brasileira, capitaneada pelo Instituto da Cidadania no
bojo do Projeto Juventude, 91% dos jovens brasileiros assistem televisão
de segunda a sexta e 87% durante os finais de semana. Padrões de
consumo, efeitos na saúde mental, formação de futuros leitores,
elementos de socialização são alguns dos temas apetitosos que são
umbilicalmente conectados com esse locus da infância e adolescência
na comunicação.
A isso se soma a constatação de que a população com menos de
18 anos pode ser entendida a partir da sua necessidade de educar-se
e de ser educada para o consumo crítico das mensagens dos meios
de comunicação. Inúmeras são as abordagens nas ciências sociais e
humanas que discutem o processo de aprendizagem de crianças e
adolescentes, seus métodos e conteúdos. Nesse sentido, não podemos
deixar, especialmente os estudiosos da comunicação, de apontar a
relevância na formação dessas populações particulares para a interação
com o mundo da palavra, do som e da imagem mediados por diferentes
tecnologias. Novamente, a pediatria, a Psicologia, a comunicação, o Direito
devem ocupar nichos específicos nesta discussão, preferencialmente, de
maneira concatenada.

As bases de uma política de qualidade


Pois bem. São as interações da criança e do adolescente com os
conteúdos audiovisuais e os temas que interseccionam essa relação
que nos interessam mais de perto neste momento. Por certo, a questão
fundamental que se coloca quando estamos diante desse assunto
é a que remete à existência (e intensidade) de potenciais impactos e
conseqüências desses conteúdos no desenvolvimento de crianças
e adolescentes e, por derivação, das dúvidas quanto a um padrão de
qualidade para esses mesmos conteúdos.

234
Voltamos, portanto, ao nosso dilema inicial. É possível definir boa
qualidade e, logo, má qualidade? Sim, é. Devemos ressaltar, entretanto,
sob pena de seguirmos por um caminho que em nada contribuirá para
o desenvolvimento de políticas públicas para o setor, que a definição
deve partir de elementos muito concretos e derivados de consensos
alcançados pelas sociedades democráticas contemporâneas.
Esses consensos, ponto central de nossa argumentação deste ponto até
o final do artigo, jazem na construção, fortemente alavancada nas últimas
cinco décadas, de um paradigma internacional de direitos humanos, o
qual dedicou especial atenção aos direitos de crianças e adolescentes.
Assim, devemos salientar que tanto a Convenção Internacional dos
Direitos da Criança – da qual todos os países, exceto os Estados Unidos,
são signatários – quanto as legislações nacionais brasileiras consideram
a criança e o adolescente como “prioridades absolutas”. Se o Estado
(governo e sociedade) acordam institucionalmente que esse recorte
etário merece prioridade absoluta, à mídia não é conferido nenhum
salvo-conduto para se escusar de cumprir suas responsabilidades,
especialmente porque radiodifusores são operadores de concessões
públicas do Estado e da sociedade. Vale lembrar, adicionalmente, que a
Convenção Internacional (artigo 17) estabelece o direito de crianças e
adolescentes de receberem informação e entretenimento de qualidade
através dos meios de comunicação.
Dessa forma, se não é possível determinar a melhor qualidade dos
conteúdos audiovisuais a partir de um conjunto de critérios científicos
que automaticamente expressem o que é e o que não é de qualidade, é
factível construir uma política pública que regule democraticamente os
conteúdos audiovisuais, de tal forma que os mesmos sejam produzidos e
veiculados, quando direcionados a crianças e adolescentes, observando
os limites acordados pela sociedade brasileira junto às comunidades
nacional e internacional.
Como isso funciona na prática? Existem diversos modelos regulatórios
– muitos complementares entre si – que podem garantir os direitos
de crianças e adolescentes em relação aos conteúdos audiovisuais.
Construção de um sistema de educação para a mídia, proibição da

235
publicidade infantil, garantia de que elementos regionais e culturais
específicos tenham espaço na programação, classificação indicativa dos
conteúdos são algumas possibilidades efetivamente implementadas por
diferentes nações.
Por limitações de escopo e espaço, ater-nos-emos à política pública
de classificação indicativa, especialmente a partir do desenho que foi
(e vem sendo) trabalhado pelo governo brasileiro, pelo menos, desde a
gestão do então Ministro da Justiça José Gregori, passando e ganhando
especiais coloridos com os esforços da passagem de Márcio Thomaz
Bastos pela pasta, no primeiro mandato do Presidente Luis Inácio Lula
da Silva, e cujos efeitos e reflexões tiveram continuidade na gestão do
Ministro Tarso Genro.
Cabe ressaltar, entretanto, que, mutatis mutandis, os argumentos aqui
alinhavados podem ser extrapolados para outros modelos de garantia de
qualidade para a programação audiovisual direcionada para crianças e
adolescentes.

Comunicação como um direito humano


A máxima de que a informação é um direito de homens e mulheres
– independentemente de faixa etária, classe social ou raça/etnia – está
bastante arraigada no discurso dos mais diversos grupos de proteção
dos direitos humanos. Tal aforismo, apesar de simples à primeira vista,
requer um olhar mais cuidadoso no que concerne à sua amplitude e
às suas conexões. Há direito humano à informação e à comunicação, e
há várias questões importantes interligadas. Temos o direito de receber
informações, e informações de qualidade.

Primeiro, é necessário ressaltar que não só a recepção de


informações mas também a participação em seu processo
de produção constitui direito humano. Em segundo lugar,
deve ser sublinhado que esse direito pode e deve envolver
informação de qualidade. Finalmente, cumpre destacar que
a todos deve ser assegurada a proteção contra eventuais e
potenciais abusos cometidos pelos meios de comunicação

236
– ponto em que se enquadra a questão da classificação
indicativa. A Convenção dos Direitos da Criança (artigo
17) ressalta, conforme salientamos, a preocupação que os
Estados nacionais devem nutrir com relação à programação
direcionada a crianças e adolescentes. Nossa Constituição,
por sua vez, dentre outros dispositivos, determina que
compete à lei federal: estabelecer os meios legais que
garantam à pessoa e à família a possibilidade de se
defenderem de programas ou programações de rádio e
televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem
como da propaganda de produtos, práticas e serviços que
possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (Artigo 220,
parágrafo 3º, inciso II).

A sinalização, por parte de uma autoridade regulatória competente,


de conteúdos audiovisuais especialmente interessantes e produtivos
para determinados conjuntos populacionais – e inadequados para
outros – deve ter dois objetivos primordiais: oferecer à sociedade a
possibilidade, altamente recomendável nas democracias ocidentais, de
escolha consciente dos conteúdos audiovisuais aos quais pretende ter
acesso, e proteger os direitos de todos os cidadãos e cidadãs, em especial
os das chamadas minorias políticas.
Qualquer ator pode ser proporcionador ou violador dos direitos
humanos. Não há maniqueísmo. Cada ator pode fazer as duas coisas e,
freqüentemente, faz. Os meios de comunicação brasileiros desenvolveram,
ao longo dos últimos anos, estratégias extremamente importantes para a
garantia dos direitos humanos no Brasil. Quando, na novela, por exemplo,
é inserido, como merchandising social, o direito de inclusão da criança
com síndrome de Down, isso é muito mais significativo do que 20 mil
matérias de jornais. Assim, entendemos que prestam muito mais serviços
do que desserviços. Entretanto, o fato de prestarem esses serviços não
quer dizer que não possam regular os problemas existentes. Então,
aqui há uma relação que não é binária: ou faço isso ou faço aquilo.
Normalmente, acontecem as duas coisas.

237
A cada momento, pode-se violar ou proteger uma série de direitos
através dos meios de comunicação. E a grande questão que encontramos
é como o Estado, por meio de políticas públicas que não firam a liberdade
de expressão, colabora para que os meios sejam proporcionadores de
direitos e evita que sejam violadores. É nesse sentido que a política precisa
ser construída. Diante da possibilidade de os meios atuarem dessa ou
daquela forma, crianças e adolescentes acabam sendo particularmente
vulneráveis, porque são seres humanos em estágio de desenvolvimento,
e as informações recebidas podem ter impactos significativos, conforme
demonstrado pelas pesquisas da área. O Estado deve possuir uma grande
atuação nessa área justamente porque crianças e adolescentes não
têm representação política formal – eles são o que se determina como
“prioridades absolutas”.
São os adultos que defendem os direitos das crianças, o que, algumas
vezes, representa um problema, pois esses atores não são detentores, a
todo o momento, de verdades absolutas sobre crianças e adolescentes.
Portanto, as democracias contemporâneas precisam criar uma série
de estruturas para proteger a criança, uma vez que é mais difícil para
estas buscarem seus direitos do que para qualquer outra minoria
política, lembrando que todas as minorias políticas também precisam de
proteção, pois um conjunto expressivo de seus direitos, há séculos, vem
sendo vilipendiado.

Caracterizando os atores e o cenário


Qualquer ator que interaja no espaço social é potencialmente um
propulsionador ou violador de direitos humanos, conforme posto. A
afirmação vale não apenas para indivíduos, como também para grupos,
corporações e para o próprio Estado.
Aqui, cumpre destacar que é dever indelegável dos Estados nacionais
garantirem, em última instância, os direitos assegurados em sua
Constituição, nos tratados internacionais ratificados e nas demais
legislações infraconstitucionais aprovadas por seus Parlamentos.
Entretanto, dada a variedade de possibilidades de promoção ou de
violação dos direitos, os Estados são compelidos a concentrarem seus

238
esforços na atuação de alguns atores com maior capacidade de incidirem,
tanto positivamente quanto negativamente, sobre o ideal necessário dos
direitos humanos.
Nesse contexto, surge uma forte – e quase universal – preocupação
com os meios de comunicação de massa, nas mais avançadas democracias
do Planeta. Considerados um dos mais contundentes e poderosos
instrumentos de socialização das populações contemporâneas, esses atores
produzem e veiculam mensagens de diversos tipos e teores, ocupando
uma posição de destaque na relação com os direitos humanos.

Mocinhos e bandidos
Por meio de notícias jornalísticas, peças publicitárias e produções
voltadas para o entretenimento – as quais contam com enorme audiência
no Brasil –, a mídia pode assumir dois papéis distintos e contraditórios:
prestar serviço à difusão, proteção e consolidação de direitos ou afrontá-
los. No segundo caso, não são raros os episódios em que se verifica a
violação dos direitos individuais à privacidade, à proteção da imagem e à
recepção de informações de qualidade, além do aviltamento dos direitos
coletivos de respeito às minorias e às infinitas diferenças intrínsecas à
condição humana.
Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis
nesse cenário. Segundo já expusemos, como não possuem
representatividade política formal (não votam) e não constituem, via
de regra, organizações que defendam seus reais interesses e anseios
junto à sociedade, acabam necessitando de uma proteção especial
dos Estados nacionais. Algo semelhante ocorre com outras minorias
políticas – mulheres, negros, indígenas, homossexuais, pessoas com
deficiência, etc. Entretanto, por votarem e contarem com um mínimo
de organização política, tais minorias conseguem, com maior sucesso,
canalizar seus próprios interesses.

Modificando o roteiro
Democracias consolidadas nas mais diferentes regiões do Planeta,
em consonância com suas Constituições e com os compromissos

239
internacionais firmados, têm regulado os meios de comunicação a fim
de garantir, senão a promoção, pelo menos o respeito aos direitos de
todos e todas.
Alemanha, Argentina, Austrália, Espanha (Catalunha), Chile, Estados
Unidos, Holanda, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido: todas essas
democracias possuem índices de desenvolvimento humano melhores que
os brasileiros, taxas de mortalidade infantil substantivamente menores
que as nossas e índices de liberdade de imprensa (exceto a Argentina)
mais consolidados que os nossos. Todas essas nações, adicionalmente,
possuem sistemas de classificação indicativa mais sedimentados que
o que vigorou no Brasil até princípios de 2007, por exemplo, sistemas
estes que, com diferenças entre si, regulam o conteúdo audiovisual da
televisão aberta ao apresentar, pelo menos, intervalos etários que devem
(ou não) ter acesso a determinados programas e, paralelamente, faixas
de horário nas quais esses programas podem ser veiculados.
Em suma, a proteção dos direitos de crianças e adolescentes
perante a programação emitida pela televisão aberta é uma
preocupação de primeira hora dessas democracias. Para a autoridade
reguladora britânica “conteúdos que podem seriamente impactar o
desenvolvimento físico, mental ou moral de pessoas com menos de
18 anos não devem ser veiculados”.
Ao classificarem indicativamente os conteúdos transmitidos pelas
empresas de mídia, os Estados valem-se de algumas prerrogativas que
merecem ser assinaladas:

1.fazem uso legítimo de sua condição de proprietários do espectro


eletromagnético, o qual, por meio de concessões públicas,
está temporariamente cedido a determinadas empresas de
comunicação;
2.buscam apontar a pais, professores e demais responsáveis por
crianças e adolescentes quais conteúdos são apropriados ou
inadequados para certas faixas etárias. Isso assegura a liberdade
de escolha consciente das famílias e, ao mesmo tempo, o direito
inconteste de meninos e meninas terem uma socialização que

240
respeite a sua condição de indivíduos em formação – primando
por um desenvolvimento integral de qualidade.
Há, por certo, obstáculos de considerável envergadura nessa tarefa.
Alguns deles serão abordados na seqüência.

Classificação indicativa e liberdade de expressão


Se é verdade que a sociedade tem o direito humano e difuso de receber,
por parte das concessionárias que utilizam o espectro eletromagnético,
uma programação de qualidade – ou seja, respeitadora dos direitos
humanos de todos e todas –, também é certo que a liberdade de expressão
é um direito que deve ser tido em alta conta. Nesse sentido, parece haver
um choque de interesses entre a proteção a esses dois direitos. Seriam
eles excludentes? Haveria mesmo um conflito? Em caso afirmativo, qual
deve prevalecer?
Aqui entram em cena duas questões: a da regulação da programação
televisiva e a da censura. Apesar de algumas formas de controle poderem
– como já ocorreu – resultar em práticas arbitrárias, o sinal de alerta
parece-nos absolutamente despropositado no caso da classificação
indicativa, em especial quando um Estado não tem quaisquer dispositivos
para impedir que uma criança de determinada idade assista a um
conteúdo televisivo que lhe é inadequado. O mesmo é válido para outras
políticas, como o direito de resposta, por exemplo.
Vale apontar ainda que o Poder Público não pode exigir cortes em
trechos específicos das obras audiovisuais para que as mesmas se
enquadrem em determinados critérios classificatórios, descartando
assim qualquer possibilidade de compreender a classificação indicativa
como uma forma de censura. E, então, vem a pergunta: classificação
indicativa é censura? O governo brasileiro, felizmente, não tem o poder
de exigir que uma cena seja cortada de qualquer programa para que ele
vá ao ar. O máximo que pode acontecer é que o programa tenha que ir
ao ar depois das 23h. Então, não existe censura prévia. Ninguém pode
cortar parte alguma da programação, e é bom que seja assim.
Pode-se perguntar: e uma vez o programa no ar, o Governo pode retirá-
lo, se descumprir as regras? Felizmente, também não pode, se for uma

241
decisão autocrática. É como funciona em todas as democracias. E pode
ser feita uma terceira pergunta: indicar os horários com obrigatoriedade
de exibição não é uma forma de censura? Não é fácil responder a essa
pergunta. Então, ofereço duas possibilidades.
A primeira é que as políticas públicas na democracia são construídas
a partir de processos democráticos. A política pública da classificação
indicativa foi debatida ao longo de três anos, inclusive com a participação
das empresas. Outra forma é usar o método comparativo. Observando-
se outras democracias, verifica-se que naquelas em que o índice de
desenvolvimento humano e da criança é maiores que nossos, adota-se a
regulação de horário estabelecido em lei.
Finalmente, importa frisar que o discurso ao redor da liberdade de
expressão não pode ser conduzido de maneira binária: ou se tem liberdade
de expressão ou se tem censura. É perfeitamente possível assegurarmos
esse direito com uma regulação democrática dos meios de comunicação
de massa. Nesse processo, é necessário ao ente regulador dispor dos
adequados elementos legais para a tomada de decisões nos casos em
que essa liberdade entrar em conflito com outros direitos.

Conflito entre direitos?


Se assumirmos a possibilidade de a prática da classificação indicativa
(ou qualquer outra regulação dos meios de comunicação de massa),
imbuída do objetivo último de proteger os direitos humanos, entrar em
conflito com o direito à liberdade de expressão, o que deve ser feito? Que
direito prevalecerá?
A leitura que muitos grupos de interesse fazem do artigo 5º, inciso
IV e do artigo 220 da Constituição Federal de 1988 abre margem à
interpretação de que a liberdade de expressão paira vigorosa sobre os
demais direitos, o que não é verdade. Como já salientou o jurista e atual
ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, nossa Carta Política
não pode ser analisada em tiras, selecionando os trechos que mais se
encaixam em nossos interesses particulares (Cf. Fernandes, 2002).
Seguindo essa recomendação, parece-nos que dois artigos da Carta
Magna devem ser destacados neste momento, visto que são de suma

242
importância nos casos de supostos conflitos entre o direito à liberdade
de expressão e outros, como os das crianças e adolescentes e das demais
minorias políticas:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República


Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado


assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. Grifo nosso.

Como mostram os excertos acima, já em seu 3º artigo a Constituição


estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil –
os quais, pode-se supor, deveriam ser perseguidos por todos aqueles que
aqui se encontram.
Depois, o legislador constituinte deixou claro, conforme ressaltamos
anteriormente, como não o fez em nenhum momento da Lei Maior,
que os direitos de crianças e adolescentes – incluindo, vale destacar,
o direito a uma programação informativa e de entretenimento de
qualidade – devem ser observados por todos, inclusive pelas empresas
de comunicação, com prioridade absoluta. Assim, apesar de não haver
direitos absolutos, certamente há prioritários. E, pelo menos a partir do
texto constitucional, não é o caso da liberdade de expressão irrestrita e
irresponsável.

243
Os desafios regulatórios não se resumem à classificação indicativa, mas
têm uma amplitude bastante significativa. A discussão da classificação
indicativa a partir dos direitos de crianças e adolescentes em relação à
mídia é a ponta do iceberg. Precisamos discutir educação para a mídia,
proibição e/ou regulação da publicidade infantil. Nos Estados Unidos, há
fundos públicos para o aprimoramento do estímulo da programação de
qualidade direcionada à criança, há horários nos quais a programação
tem que ser direcionada para a criança. Não é somente deixar de passar
programas inadequados; ao contrário, o horário deve ser reservado a
uma programação especialmente direcionada para a criança.

Fora do papel
É importante frisar que a demanda por “programação de qualidade”
e a identificação da criança e do adolescente como “prioridades
absolutas” devem, sob pena de estarmos tão somente nos referindo
a princípios bem intencionados, redundar em medidas efetivas por
parte do Estado em relação a diversos setores, inclusive aos meios de
comunicação de massa. Nesse sentido, vale recuperar uma afirmação
do jurista José Carlos Barbosa Moreira, em seu artigo Ação Civil Pública
e Programação da TV:

Inútil frisar que “a possibilidade de se defenderem” das infrações


do art. 221 da Constituição Federal, devidamente posta em
realce no art. 220, parágrafo 3º, inciso II, de modo algum
pode resolver-se em inane recomendação de comportamento
meramente negativo por parte dos interessados – v.g.,
abster-se de assistir a programas refratários à disciplina
constitucional. A Lei Maior com certeza se pouparia do
trabalho de abrir espaço ao assunto, se o seu exclusivo intuito
fosse o de conferir a cada telespectador o direito de não ligar
(ou de desligar) o aparelho, todas as vezes que a programação
fosse desrespeitar, ou estivesse desrespeitando, o art. 221. Para
apertar (ou deixar de apertar) um botão com esse fim, é claro
que ninguém precisa, nem jamais precisou, de autorização

244
constitucional... Abstraindo-se, portanto, de outros aspectos
do problema, já no plano estritamente jurídico esbarra em
óbice irremovível o entendimento segundo o qual a defesa
adequada, na matéria, se traduziria pura e simplesmente na
abstenção individual de contemplar a telinha, ou mesmo
no impedimento a que a contemple alguém sobre quem se
exerça autoridade legítima (v.g., pátrio poder), bastante para
justificar a intervenção.

Assim, é preciso desenvolver sistemas regulatórios mais precisos para


a proteção dos direitos de crianças e adolescentes a partir do veiculado
pela mídia. A classificação indicativa – e suas diversas potencialidades
– é uma das alternativas concretas à disposição das democracias
contemporâneas.

Aprofundando a discussão
Partindo do exposto ao longo deste texto, é fácil perceber que a
classificação indicativa, tal como está proposta na Constituição Federal,
não é capaz de gerar quaisquer restrições ao uso responsável da
liberdade de expressão. Mesmo assim, é relevante aprofundar alguns
pontos desta questão.
Em primeiro lugar, vale lembrar que esta discussão foi travada no
âmbito da Assembléia Nacional Constituinte, quando se optou por
enterrar definitivamente a censura e instituir a classificação indicativa,
ficando clara a importância de se indicar – sem, contudo, proibir –
potenciais inadequações da programação.
Em segundo lugar, parece-nos que a mensagem central da
classificação indicativa é a proteção dos direitos humanos ou, em outros
termos, a definição do formato de socialização que queremos para
nossas crianças e adolescentes. Assim, se entendemos que um programa
de conteúdo pornográfico é inadequado para determinadas idades por
poder gerar impactos negativos – como a iniciação sexual precoce –
ou porque as crianças têm o direito de, no horário da programação a
elas destinada, ter acesso a uma atração que valorize elementos mais

245
próximos de seu estágio de desenvolvimento, é imprescindível que haja
dispositivos adequados para garantir alguma das alternativas a seguir:
impedir a veiculação desse conteúdo; transferi-lo para horários mais
apropriados; indicar a sua presença em determinadas obras audiovisuais
ou diferenciar produções aparentemente semelhantes. Esse último ponto
é particularmente relevante, pois pode-se considerar, por exemplo, que
o problema não é a apresentação de passagens com conteúdo sexual,
mas de cenas com esse conteúdo que não venham acompanhadas da
sinalização quanto aos riscos do sexo inseguro, à valorização do papel
da mulher, etc. Nesse sentido, vale assinalar a observação de Maria Rita
Kehl sobre o tema:
“A discussão sobre a classificação indicativa deve girar muito mais em
torno de formar as crianças que nós queremos do que ao redor da idéia
de que pessoas de determinada idade estão preparadas, ou não, para lidar
com determinado conteúdo”, argumenta a psicanalista Maria Rita Kehl.
Ela não nega a particularidade do desenvolvimento do público infanto-
juvenil, mas faz questão de ressaltar que isso não deve ser o centro do
debate sobre a indicação: “A própria Psicologia não estabelece uma
relação de causa e efeito e nem faixas estanques do desenvolvimento”.
O ângulo dos direitos infanto-juvenis
Afinal, o conteúdo da programação televisiva pode interferir nos
direitos de crianças e adolescentes? A resposta parece ser positiva,
apesar da dificuldade de se definir os contornos exatos de seus
impactos, porque causalidades diretas – especialmente em contextos
com importantes particularidades – podem estar relacionadas tanto a
conteúdos audiovisuais como a um conjunto de outros fatores.
A Comissão de Educação Pública da Academia Estadunidense de
Pediatria é, no entanto, categórica com relação ao assunto. Para ela, a
correlação entre a violência na mídia e o comportamento agressivo é
maior, por exemplo, que a relação entre a quantidade de cálcio e a massa
óssea ou a falta do uso de preservativo e a aquisição do vírus HIV.
Outro exemplo de impacto reconhecido pelas próprias corporações
está vinculado às estratégias chamadas de nag factor ou “azucrinação”. O
diretor executivo da Commercial Alert – organização sem fins lucrativos

246
que defende crianças e comunidades do consumismo – Gary Ruskin,
em artigo entitulado Why they whine: how corporations prey on our
children, publicado no último bimestre de 1999, na revista Mothering
Magazine, comenta as táticas de propaganda utilizadas para transformar
crianças em “soldados” das corporações, com a tarefa de convencer os
pais, através de práticas de “pentelhamento”, acerca da necessidade de
aquisição de determinados produtos.
Como se vê, exemplos há muitos. Porém, também é possível asseverar
que, para cada caso que “demonstre” a ocorrência de um impacto,
haverá um outro “comprovando” o contrário. Nesse sentido, reforçamos
a necessidade de se compreender o sistema de classificação indicativa
pela via do pacto social de proteção aos direitos – o que, inevitavelmente,
implica algum nível de decisão política que ultrapasse os critérios
absolutamente técnicos.

O desenho das políticas públicas


Ainda que seja altamente pertinente considerar as características
biológicas e psíquicas peculiares às crianças e aos adolescentes na
definição de quaisquer políticas públicas (entre elas a classificação
indicativa), o mais relevante é, portanto, compreender a leitura social
e política – no melhor sentido da palavra – que pode ser feita destas
mesmas características. Não por outro motivo, de tempos em tempos,
retomamos o espírito de duas leis: a Convenção dos Direitos da Criança
e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Na primeira, estão contidos
os compromissos que a comunidade internacional decidiu ratificar
quando estão em foco crianças e adolescentes. Em outras palavras,
está aí alocada a definição contemporânea de infância e adolescência.
Na segunda, em muito tributária à Convenção, encontram-se os
elementos particulares e específicos desses dois conceitos para a
sociedade brasileira.
A infância e a adolescência que emergem desses dois marcos legais
são completamente distintas – ainda que herdeiras – das concepções
que emergiram, por exemplo, da Renascença. Na verdade, o mais acurado
seria dizer que são revolucionariamente distintas, algo que, infelizmente,

247
quinze anos depois, não foi amplamente percebido nem pelas sociedades
nem pelos seus corpos de representação política.
Hoje, crianças e adolescentes são vistos como prioridades absolutas,
como merecedores de uma proteção especial em virtude de se
encontrarem na condição de indivíduos em formação, mas em uma
perspectiva totalmente diferente daquela atribuída no passado. Agora,
eles devem ser, sobretudo, compreendidos como sujeitos de seus próprios
direitos, como cidadãos e cidadãs capazes de colaborar para a construção
da sociedade que melhor lhes aprouver. A tutela vertical do Estado e
da família passou a ser substituída por uma colaboração mútua, com a
efetiva participação de crianças e adolescentes.
E, com isso, as sociedades contemporâneas não estão afirmando
que a infância e a adolescência devem ser igualadas ao universo adulto.
Entretanto, trata-se de mundos distintos que se entrelaçam em um
ponto comum: a existência de direitos humanos universais que se
aplicam indistintamente a crianças, adolescentes e adultos.
O parágrafo acima contém dois elementos centrais para a elaboração
de quaisquer políticas públicas voltadas para o segmento infanto-
juvenil, em especial iniciativas que envolvem a regulação dos meios de
comunicação. São eles: a diferenciação entre o mundo adulto e o universo
infanto-juvenil e o objetivo central das sociedades contemporâneas
quanto à proteção dos direitos humanos de todos os cidadãos e cidadãs,
independentemente de suas idades.

Ouvindo a população-alvo
Por fim, é fundamental salientar a relevância de se conferir voz à
população infanto-juvenil, especialmente quando questões – como
políticas públicas – que lhe dizem respeito estão em pauta. Isso tem
amparo, inclusive, na Convenção (artigos 12 e 13).
Assim, é imprescindível que pesquisas com crianças e adolescentes
sejam levadas a cabo com mais regularidade no Brasil, a fim de
entender o que desejam nossos meninos e meninas. Ademais, durante a
elaboração de qualquer política, é central dialogar com as organizações

248
formadas por crianças, adolescentes e jovens. Caso contrário, estará se
perpetuando um cenário pouco democrático e distante da real garantia
dos direitos infanto-juvenis. O debate acerca dos conteúdos audiovisuais,
por exemplo, seguirá sendo pautado por padrões exclusivamente adultos.
A Psicologia pode ofertar grandes contribuições a esse cenário.

Mantendo a separação dos mundos


Se crianças e adolescentes não são o mesmo que adultos, é necessário
compreender que há características socialmente aceitas (ou em debate,
ao menos), contemporaneamente, que diferenciam estes dois grupos
sociais. De fato, muitas delas são biológicas; outras, conforme já
adiantamos, não são.
A expressão “infância roubada” – empregada com grande freqüência
para descrever situações nas quais meninos e meninas estão absorvidos
pelo mundo adulto – ilustra a relevância da diferenciação social entre
esses universos. E a classificação indicativa, enquanto política pública
tributária da Convenção dos Direitos da Criança e do Estatuto da
Criança e do Adolescente, deve garantir a manutenção da identidade
diferenciada da infância e da adolescência e aquela do universo adulto.
Para tanto, é fundamental que os espaços públicos de construção da
identidade infanto-juvenil (incluindo os meios de comunicação de
massa) contribuam para isso.
Contudo, a programação televisiva, enquanto poderoso instrumento
de socialização, pode estar colaborando com um fenômeno inverso. Ao
colocar ao alcance de meninos e meninas conteúdos que não contribuem
para construir e reafirmar suas condições peculiares e distintas
daquelas atreladas ao universo adulto, a mídia pode estar estreitando
as desejáveis distâncias que separam estes diferentes lugares sociais:
infância, adolescência, juventude, mundo adulto e velhice.
Portanto, é tarefa do Estado indicar os conteúdos apropriados para as
audiências infanto-juvenis, de tal forma a tentar proteger essa separação
de universos, que está se esvaindo, como mostra o trabalho de Neil
Postman.

249
CONCLUSÃO
A decisão social de proteger nossa população infanto-juvenil de
determinados desvios de rota embutidos na programação audiovisual
e/ou de estimular o contato deste mesmo segmento com conteúdos de
qualidade não pode ser entendida nem como um aviltamento da liberdade
de expressão nem como conseqüência direta de comprovados impactos
sobre a formação biológica ou psíquica de crianças e adolescentes. O que
está em questão, de fato, é a formação de cidadãos e cidadãs com direitos
a uma identidade própria e à escolha de conteúdos que valorizem os
mais diversos interesses e vivências. Tais direitos, em muito, só poderão
ser garantidos quando o conteúdo das programações televisivas estiver,
democraticamente, sinalizado a todos e a todas.
É necessária uma decisão política das sociedades. As definições
técnico-científicas já estão postas, e os direitos humanos estabelecidos
e firmados. A questão é para onde queremos ir na regulação dos meios
de comunicação. Evidentemente, essa definição é mais difícil em um
país como o Brasil, porque esse não é um tema que está na agenda
da sociedade. Temos que passar não somente a pesquisar mais mas
também a ter uma atuação política no sentido de proteção dos direitos
humanos, que é um dever de cada um de nós, independentemente de
profissão. Unir esforços diante das diferentes perspectivas das áreas do
conhecimento que têm ligação com a mídia é um desafio para encontrar
soluções monitoriais de pesquisa e de desenvolvimento de políticas
públicas mais adequadas à proteção integral dos direitos das crianças e
dos adolescentes.
Nesse sentido, a classificação indicativa também se configura como
um instrumento pedagógico. Ao escancarar os segredos embutidos no
programa que se começa a assistir, a classificação incita os telespectadores
a tomarem uma decisão: assistir ou não àquele determinado conteúdo. A
tomada de decisões, necessariamente, implica algum grau de reflexão, o
que pode ser um convite para uma relação mais independente e proveitosa
com a caixa mágica que tem lugar de destaque em nossas residências. A
liberdade, o maior de todos os direitos, enfim, estaria garantida.

250
Referências Bibliográficas
CANELA, Guilherme. Cobrindo políticas públicas sociais, In: XVI Congresso da Associação Nacional
de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Niterói, UFF, 2005.
FERNANDES, André de Godoy. Televisão no Brasil: a Constituição Federal de 1988 e o controle da
programação televisiva. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
MOREIRA. Ação civil pública e a programação de tv, In: Revista do Direito Administrativo, vol. 201,
(julho-setembro de 1995) Rio de Janeiro: Renovar. p. 45-56.
NOVAES; VANNUCCHI, P. (Orgs.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação.
São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia Editoral. 1999
RUSKIN, Gary. Why they whine: how corporations prey on our children. In: Mothering Magazine,
nov. –dez. de 1999. Disponível em:
http://www.mothering.com/articles/growing_child/consumerism/whine.html. Acesso em:
01/04/2006.
VIVARTA, V. (Coord.). Remoto controle: linguagem, conteúdo e participação nos programas de
televisão para adolescentes. São Paulo: Cortez, 2004.
VIVARTA, V. CANELA, G. (Coord.). Classificação indicativa: construindo a cidadania na tela da tevê.
Brasília: ANDI, Secretaria Nacional de Justiça, 2006.

251
252
Mídia e produções de subjetividade:
questões da infância e adolescência

Ana Olmos
Como será que um bebêzinho que nasce saudável se transforma
aos poucos em um tirano dentro de casa, aprendendo a submeter
primeiro os pais e, depois, os que o cercam, a seus desejos, e enxergando
só suas necessidades, sem a menor percepção para com o outro?
Como uma criança pequena, doce e terna, se transforma em um ser
intolerante, voraz e com a capacidade de amar tão diminuída? Como
acontece tal deformação de ego? Quais fatores participam da gênese
e do estabelecimento desse padrão de funcionamento mental, dessa
percepção de si e do mundo? E, dentro de tais determinações, quais
fatores poderiam ser evitáveis? Seguramente, a mídia joga papel
relevante na construção de subjetividades como essa descrita, cada
vez mais presente nas narrativas de sofrimento emocional próprio ou
de pares.
Educada para o consumo, a criança constrói valores a partir de
modelos que lhe são apresentados por uma sociedade que, atualmente,
só valoriza aquele que tem poder de compra, assim como exclui quem
não tem acesso aos bens de consumo. A criança é, desde cedo, tratada
como consumidor, e não como cidadão com direito a brincar, conviver, 
estudar e cumprir todas as etapas do desenvolvimento infantil.
A publicidade dirigida à infância através da televisão desenha um papel
vital na formação dos valores e atitudes necessários ao consumismo,
desde os seus primeiros objetos de desejo. Não é por acaso que a grade
da programação televisiva  é construída junto  à área comercial das
emissoras.  
Tal qual o assédio moral, crime invisível mas poderoso, a publicidade
dirigida à criança  a  seduz  como o “canto da sereia” ou o encanto da
bruxa que hipnotiza a Bela Adormecida. E  a  menina  termina  “ferida
na roca” ...
Como funciona o pensamento da criança? Como se constrói seu
desejo? Como prevenir que ela faça uma adesão emocional a desejos,

253
hábitos e produtos de consumo? O que pode capturar o seu desejo,
manipulando-a, estimulando-a a não usar sua capacidade de  pensar?
A criança é parte de uma unidade solidária em todas as etapas
de sua evolução, feita de contrastes e conflitos, sensível a mudanças.
Na sucessão de suas idades, é um mesmo e único ser em processo
de metamorfose. Compreender sua progressiva maturação e seu
desenvolvimento cognitivo é imprescindível para esse caminho que
pretendemos compartilhar.
Piaget descreveu sucessivos estágios de desenvolvimento do
pensamento na criança, que correspondem a seus diferentes níveis
de organização dos conhecimentos. Ter em mente como a criança, no
estágio em que se encontra,  absorve os estímulos que recebe do meio
e trata a informação é essencial para quem  intervém, de alguma forma,
nos processos de aprendizagem social.
A partir de sua observação de crianças, Piaget elaborou um esquema
sobre os diferentes estágios evolutivos do desenvolvimento cognitivo.
Dentro desse esquema de organização das estruturas cognitivas,
emergem quatro grandes períodos de desenvolvimento: estágio sensório-
motor, estágio pré-operatório, estágio operatório concreto e estágio do
pensamento operatório formal.
No estágio sensório-motor, do nascimento até 18 meses ou 2 anos, o 
vínculo da criança com  o mundo se baseia nas ações e nos movimentos.
Estimulado em seus sentidos (tocar e ser tocado, escutar e fazer sons,
olhar, saborear, cheirar), apoiado em suas atividades motoras, descobre
as mãos, aprende a usá-las, dá seus primeiros passos, se entretém com
os primeiros brinquedos. Seu pensamento nasce dentro da ação, sua
percepção ignora completamente as representações abstratas. Ao final
dessa época, especialmente pela capacidade de locomoção, que amplia
seu campo de investigação, a criança é capaz de interpretar certos
indícios. Como sua grande fonte de estimulação nesta fase provém do
movimento,  dos estímulos do toque, texturas, sons e mãos na boca de
quem lhe fala diretamente, olho no olho, treino de relações e limites
físicos entre ela e outras crianças e adultos, abandoná-la na frente de
um aparelho de TV como primeira escolha para “distraí-la”, é ir na direção

254
contrária  ao que ela necessita de fato como “alimento pedagógico” para
seu desenvolvimento.
No estágio pré-operatório, de 2 a 6  anos, a criança  desenvolve a
capacidade de simbolizar, a imaginação mental, mas o comportamento
ainda está ligado à percepção direta. Com o domínio da linguagem,
acentua-se a curiosidade frente ao mundo (“por que?”), que a criança
tenta satisfazer através de pequenas experiências. Realiza progressos
espetaculares no âmbito de vários saberes  (linguagem, desenho,
atividades práticas). Entre os 3 e 4 anos, começa a ser capaz de manter
a atenção sustentada, centra seu interesse em todas as atividades de
caráter lúdico e fantástico, inventa ficções. Esse tempo de imaginação
que a criança precisa exercitar  fica “congelado” se ela for “estacionada”
frente à tela da televisão: continua  fundamental a interação  com  um
outro, seja  este adulto ou criança, como ela.
No estágio operatório concreto, de 7 a 11 anos, a criança começa a 
efetuar operações bastante complexas (seriação, hierarquização), ainda
que se limite a objetos concretos. O elemento fundamental dessa fase
é  a  capacidade de formar  conceitos, ou seja,  de apreender os objetos
a partir de suas relações internas, seus atributos, e não somente captá-
los através da aparência.  A criança descobre também, nesse período, a
noção de conservação da matéria: numérica (até os 6 anos e meio, em
média), de quantidades (até os 7 ou 8 anos) e, finalmente, a noção de
conservação dos pesos, que só será assimilada mais tarde (9 ou 10 anos).
A outra experiência fundamental desse período resultará  nas relações de
ordenação. Esses dois últimos conceitos, das estruturas de equivalência
e das estruturas de ordem, constituem os sistemas operatórios sobre
os quais se apóiam as múltiplas noções aritméticas e geométricas, pré-
requisito para a compreensão dos fenômenos econômicos. A criança já
é capaz de compreender as relações de causa e efeito; essa nova lógica
lhe permite iniciar processos reflexivos. A memória serve como elemento
integrador de experiências isoladas. Esta é a etapa do pensamento
lógico-concreto. Vai perdendo progressivamente a visão mais egocêntrica
da realidade e substitui-a por uma nova necessidade de participação e
pertinência ao grupo de identificação. Começam a aparecer os primeiros

255
sentimentos morais. No início, é uma moral de obediência aos adultos;
em seguida, vem um sentimento novo, que surge da cooperação com
seus iguais e que consiste no respeito mútuo. Nesse estágio, também,
ela descobre a regra, que a  une  às  crianças entre si, da mesma forma
que a  vincula aos pais, ao adulto. Vai cumprir as regras num jogo não
porque isso é “proibido”, mas porque isso viola um acordo entre pessoas
que se estimam. Só agora, por exemplo, é que a mentira começa a ser
compreendida. Enganar a um amigo pode ser considerado mais grave do
que mentir para os adultos. Organiza os valores éticos, pode incorporar
normas, valores e conceitos que lhe servirão de pontos de encontro ou
desencontro com seus iguais e com os próprios adultos. Observa o justo e o
injusto. Nessa etapa, tem plena consciência das contradições dos adultos.
É fundamental, neste momento, que a  criança tenha oportunidades de
se exercitar na formação desses valores  éticos, assumindo  formas de
protagonismo e de participação espontânea. Nesse sentido, a televisão
volta a ser uma referência importante.
No estágio do pensamento operatório formal, a partir dos 12 anos,
há o acesso ao pensamento abstrato, que vai além da experiência
imediata: até esse momento, as operações da inteligência infantil foram
unicamente concretas. Piaget usa um termo claro para essa forma de
funcionamento cognitivo:  o pensamento “hipotético-dedutivo”. De
fato, enquanto o pensamento concreto é a representação de uma ação
possível, o pensamento formal se desliga e se liberta do concreto para
construir, à vontade, reflexões, hipóteses, deduções, sistemas e teorias
abstratas. Para Vygotsky, o mais importante dessa etapa é o processo
de criar conceitos. Na verdade, é a consolidação, pela maturação até a
puberdade, da capacidade de formar  conceitos.
A organização autônoma das regras, a hierarquização dos valores  e
a formação de atitudes do adolescente se plasma tanto na admiração
por seus pais, primeiros modelos de identificação, como na substituição
dessas figuras de referência por outros mitos e ídolos.
Toda essa  evolução descrita se apóia nas três regras seguintes: 1.
Fatores ambientais podem favorecer ou inibir o desenvolvimento
cognitivo, influir na maior ou menor rapidez com que se sucedem os

256
diferentes estágios, mas não mudam a ordem das seqüências, porque
cada uma representa uma condição, um pré-requisito para a construção
da etapa seguinte;  2. As etapas do pensamento formam conjuntos
estruturados, o que faz com que as crianças  mostrem, inclusive em
situações muito distintas, as características do pensamento ligadas
à etapa a que pertencem;  3. As etapas cognitivas são hierárquicas e
integradoras: cada nova etapa contém a anterior. No início de cada nível,
a criança integrará as estruturas que caracterizam a etapa precedente,
através de uma integração hierárquica, o que levará à aparição de novos
esquemas.
Assim, não há substituição de uma estrutura cognitiva por outra, mas
sim, ampliação, crescimento da eficácia, ganhos de percepção, alargamento
de funções. Para Piaget, o elemento motor desse amadurecimento das
crianças é o contato com o novo,  a experiência, a confrontação de algo
que já se sabe com um novo dado exterior. Aprende-se a pensar com a
experiência: resolvendo problemas, explorando a realidade de maneira
independente, usando a capacidade de refletir sobre a maior variedade
possível de situações novas.
A apreensão pela criança de uma nova realidade também está
limitada pelo nível de avanço no seu desenvolvimento cognitivo. Mesmo
a interpretação das experiências passadas pela própria criança depende 
diretamente da percepção possível que ela tenha atingido em seu
desenvolvimento  cognitivo: com o grau de evolução das suas estruturas
de pensamento e dos seus esquemas operacionais internos. Antes de ter
adquirido previamente  um nível de organização dos conhecimentos de
um estágio determinado, certas experiências adequadas a essa etapa
ela não alcança, estão vedadas àquela criança, ela não consegue vê-
las, não tem a capacidade de percepção necessária para “metabolizá-
las”. É por isso que a aquisição das diferentes noções de conservação de
quantidades  se estendem por  mais de quatro anos. Ou, pensando em
números, a criança precisa ter a compreensão da operação da adição
(entender o que significa somar) para chegar à multiplicação, como
também precisa entender, antes, a multiplicação, para apreender, em
seguida, o significado da operação de potencialização.

257
Vygotsky  observou que, ainda que seja peculiar, em cada idade, a
interação entre desenvolvimento e instrução, os aspectos estruturais e
os funcionais do desenvolvimento não se separam.
A simples observação dos estágios evolutivos definidos por Piaget 
nos ajuda a compreender que, desde a primeira relação da criança com o
meio televisivo (estágio pré-operatório), até o final do período no qual a
criança passa a ser adolescente (estágio operatório formal), há diferentes
tipos de telespectadores, que respondem de maneira diferente dentro do
que é considerada a “audiência infantil”.
A televisão, como concessão pública que é, ainda  que os
concessionários insistam em negá-lo, tem a obrigação de atender às
necessidades dos diferentes públicos. E ainda que essa audiência seja
a infância e adolescência, observamos, nos horários a elas dirigidos,
o mesmo tratamento que é dado a quem teria, por ser adulto, a
discriminação entre o que é publicidade e o que é programa. Trata-se do
merchandising, especialmente o testemunhal, que é a propaganda feita
dentro do próprio programa infantil por quem o apresenta.
Caberia perguntar se o volume da publicidade detectada não a
converte na verdadeira programação. “O rabo balança o cão”, ou seja, a
programação existe unicamente para enviar as audiências, especificadas
demograficamente, para os anunciantes comerciais. E o programa vira
mera moldura para a indução ao consumo: a apresentadora infantil
avaliza, para as crianças e adolescentes que lhe assistem, os produtos que
o anunciante  lhe paga para endossar. E transfere-se para a mercadoria 
que a criança compra aquela confiança dirigida a seu ídolo.
O merchandising dirigido a crianças é proibido nos países que têm a
democracia consolidada. Em alguns, essa forma de publicidade inserida
dentro da narrativa é vedada mesmo quando é dirigida ao público-alvo
adulto, porque, para proteger o cidadão da voracidade dos interesses
do mercado, é essencial que o anúncio esteja absolutamente separado
do programa.
No caminho do desenvolvimento emocional da criança, ela  passa por
uma primeira perda, a do seu estado simbiótico com a mãe. É o inevitável

258
contato com a frustração, registro da realidade, fora do primeiro ninho
de completude e prazer. Começam assim as vivências de ansiedade e
angústia. Multiplicam-se os conflitos entre o desejo  (o que essa criança
quer) e a realidade  (a frustração que ela experimenta). Da dependência
e desamparo infantis até a relativa autonomia e independência adultas,
por muitas outras perdas ela passará. Mas é justamente a cada confronto
com a realidade que essa criança  mobilizará seus recursos internos  em
busca de soluções  e aprenderá  a pensar.
A cada desafio que a criança enfrenta usando sua capacidade de
pensar, mais ganhos de percepção ela tem. Com a experiência, aprende a
pensar, e o alargamento de sua percepção lhe permitirá enxergar novas
realidades.
Se o meio onde se desenvolve essa criança a estimula a buscar
recursos nela mesma, frente aos desafios da vida real, ela se fortalece
em termos de ego, aumenta o limiar de tolerância à frustração e,
portanto, fica menos vulnerável a constituir relações de dependência
para fugir da realidade: drogas  legais e ilegais, comportamentos adictos
para preencher a sensação de desamparo frente à realidade. A clínica
psicanalítica com crianças permite alcançar melhor entendimento
do significado e das motivações desses comportamentos, em geral
inconscientes para si  própria.
A adolescência, com o incremento das pulsões sexuais que emergem
nesse período devido à força dos hormônios, traz uma reorganização
dos mecanismos de defesa do ego contra as ansiedades provocadas por
conflitos entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Acontece
aí uma segunda fase de separação das figuras parentais.
Cada membro da família desempenha um papel diferente na estrutura
familiar, que se adapta às situações de mudança, visando a encontrar
um novo equilíbrio que cumpra a tarefa específica daquela fase de
desenvolvimento. O adolescente está ligado à estabilidade possível de
sua unidade familiar.
À procura de uma identidade própria e em busca de sentidos
e significados do mundo e de sua existência (“por que sou o que

259
sou?”), o adolescente estabelece interações complexas com as figuras
importantes de sua vida, os pais e sua família, professores, companheiros
e o mundo que o rodeia.
Os grupos de identificação desempenham um papel fundamental
na vida da criança e, em especial, na do adolescente que, na formação
de sua  identidade, se espelha em grupos de pertencimento. O destino
dessa necessidade depende muito das possibilidades que lhe são
oferecidas pelo ambiente em que cresce, dos tipos de grupos que estão
à sua disposição. Amparado pelo grupo, pode se sentir amado, incluído,
apaziguado ou pode dar rédea solta à sua agressividade, fortalecido
pelo poder de grupo, assim como facilmente cair nas mãos interesses
que, manipulando sua angústia e vulnerabilidade, ofereçam respostas
prontas a suas inquietudes. 
Na adolescência, os conflitos recalcados da infância são retomados
e ampliados num corpo já desenvolvido. O complexo conflito infantil,
mais doloroso e angustiante, é “eliminado” da consciência na medida do
possível. Na adolescência, porém, ele volta, se torna “duplo”: o recalque
que se originou na infância  e o que se instala com a adolescência,
quando foram vividas situações novas, totalmente inconciliáveis com um
modelo adulto; há crise da autoridade, crise da identidade, crise sexual.
Também a partir de sua concepção de sociedade, a escolha de um
papel social, de uma profissão, também pode servir para colocar em cena
conflitos não resolvidos. Problemas graves com a autoridade paterna
podem ser deslocados para atitudes violentas contra a sociedade em
geral e podem dar origem a condutas anti-sociais e violentas, com
profundas repercussões para a vida.
O desafio a todos que cuidamos de adolescentes é como canalizar
essa energia transbordante que os caracteriza em direções benéficas  a
eles mesmos. A enorme curiosidade do adolescente, sua necessidade de
ter certeza de tudo, seu ânimo de experimentar tudo sozinho, seu intenso
oposicionismo, sua culpa inconsciente por ser rebelde, sua compulsão a
ser diferente, sua falta de experiência, sua ignorância dos perigos que o
adulto conhece e sua liberdade sem limites, expõem-no a um altíssimo
risco imediato. Desenlaces catastróficos, “brincadeiras” delinqüentes.

260
Quantas vezes uma perda aparentemente banal, término de um namoro,
marca de maneira indelével sua vida? Acidentes provocados, pequenos
suicídios. A essência da dolorosa metamorfose é definitiva e inevitável
para poder ingressar num modelo social.
E o adolescente pobre, miserável, excluído dos bens da civilização? 
Obrigado a abandonar o jogo infantil, substitui-o, aos oito anos,
por juntar latinhas e papelão para o pai vender, ou  cheirar “ c o l a
de sapateiro” ou, na melhor das hipóteses, “brincar” com uma enxada
na terra.  Aos quinze, trata-a com a violência de sua rebelião interna.
Dos vinte em diante, trabalha com uma “paz submissa”. Sua energia de
adolescente vai diminuindo à medida que vê, como menino “da roça”,
“da periferia”, “do morro”ou “da rua”, como a sociedade falhou com ele.
Essa exclusão social  agrava as repercussões mentais, participa da
formação de um adolescente atormentado, “sem saída”, desorientado,
agitador, anti-social, reivindicador, ligado a gangues, destruidor do seu
meio social e ambiental, adicto de drogas legais ou ilegais, enfim, um
desastre de difícil “remoção”: as instituições governamentais, tipo Febem,
não lhe dão  escola.
No impedimento de seus processos intrapsíquicos, o jovem se vê
forçado a deter, a abortar seu desenvolvimento normal, convertendo-
se em um personagem de difícil manejo, alheio ao processo de seus
semelhantes.
É esse o contexto do telespectador criança ou adolescente num país
como o Brasil. Não sente que a cultura o ampare, olha e vê a impunidade
que permeia as decisões da justiça oficial.  Os modelos pedagógicos
com freqüência se orientam para o recalque ativo das características
da adolescência.  As escolas e a sociedade se angustiam ao ver tanta
eclosão pulsional. Sabemos como a adolescência começa, mas não como
vai terminar.
 
A socialização da criança consumidora (stop thinking: drink Coke)
O modelo de mídia  predominante no mundo representa valores
de maneira geral irrelevantes para as reais necessidades da maioria de
crianças e adolescentes. A razão disso é o  papel central que  exerce em

261
uma sociedade que se baseia no consumo: a mídia os pressiona, desde
pequenos, para comprar, comprar e comprar.
Os meios de comunicação geram padrões como modelos de
identificação de atitudes, valores, procedimentos,  costumes, música,
comportamento, cotidiano e ao mesmo tempo em que esse padrão é
criado, ele é “retratado”. A indústria televisiva, por exemplo, regida pelo
mercado publicitário, está encarregada das necessidades imaginárias de
crianças  que ainda vivem, no Brasil, o predomínio do analfabetismo
funcional.
O que vem primeiro, o ovo ou a galinha? O mercado, através dos
meios de comunicação, cria ou reforça padrões já existentes? O fato
importante é que, dentro desse círculo vicioso, milhões de jovens seguem
paradigmas pré-estabelecidos, que obedecem a uma lógica distinta da
que acompanharia o desenvolvimento cognitivo e  emocional dessa
criança. Trata-se da lógica do mercado, que estimula a atividade do
consumo. Quanto mais intenso o bombardeio de estímulos dos meios, 
mais massiva a adesão e indução do jovem à necessidade de consumir.
Já não se fala de um só paradigma, mas de massificação de paradigmas.
O mercado contempla a todos com um padrão, um acesso e um produto,
o mercado tem uma resposta  para sua ansiedade, seja ela qual for. E só ter
poder aquisitivo.  Além do grande mercado consumidor (padrão “novela
das oito”) que corresponde à grande massa, o mercado já encontrou
uma forma de atingir e capturar o desejo de jovens que contestem esses
modelos e não se identifiquem com esses personagens.
O mercado é, assim, não somente algo “externo” ao jovem, que
atua de fora para dentro, mas já tem uma representação interna  no
mundo mental desse jovem, conquistado pela adesão emocional para as
exigências das diversas “utopias de adequação”.
A busca por um ideal inalcançável (corpo perfeito, capacidades
ilimitadas, habilidades, etc.) se ancora na sensação vivida de “vergonha
de si” em algum aspecto: o objeto da vergonha varia, mas o sentimento
é o mesmo.
A psicanálise pode abordar essa “vergonha de si” como “ideal de ego”
ou  como uma “ferida narcísica”, dependendo da função ocupada na

262
clínica de determinado jovem. Pode, também, investigar como se constrói
esse sentimento no mundo mental de cada um, buscando a angústia que
a vergonha encobre, e seguir o caminho desse afeto básico (a angústia)
que funda toda relação de objeto (do primeiro objeto de necessidade ao
objeto de amor, quando este corre o risco de ser perdido).
Poderá observar como a vergonha repercute nos laços que o jovem
estabelece consigo mesmo e com outros objetos de amor. Poderá
investigar quando a criança entra no mundo dos valores aos olhos do
outro,  exposta a critérios como o veiculado pela propaganda de um
produto infantil cujo texto cantado por uma menininha era “eu tenho,
você não tem...”
A vergonha se relaciona com a  angústia.  O bebê não tem esse
sentimento de vergonha, que só aparece no psiquismo da criança depois,
a partir do olhar “do outro”, do julgamento “do outro”: um terceiro
conscientemente percebido como tal por ela; por isso, a vergonha é
sempre social, ainda que o social comece de sua  mais simples expressão:
um olhar do outro  que julga.
A vergonha é sempre social, mesmo que vivida intimamente, pois é
o laço social que existe entre “vergonhas”  diferentes  como ser “pobre”,
“gordo”, “feio”, “baixo”, “sem roupa de marca”, “sem carro novo”, etc.
Cada uma dessas nomeações ocupa o lugar de um nome próprio que
desencadeia um sentimento de vergonha, inadequação, derrota do “bom
de si”, violência contra si próprio. Todas essas nomeações lembram o
risco de o jovem ser excluído da comunidade. 
Do ponto de vista social, essa situação que engendra vergonha é
uma situação de violência, real ou simbólica, ao psiquismo do jovem.
Participam dessa violência os meios de comunicação social quando 
estão a serviço dos interesses de consumo do mercado. A construção
de imagens ideais, fora das quais esse jovem está excluído de qualquer
grupo de “pertença”, faz parte da estratégia de indução ao consumo que
tem “educado” a juventude. Grifes se confundem com identidades
Na situação de vergonha de si, o jovem tem, além da violência sofrida,
a impotência para reagir porque os critérios para o nascimento dessa
vergonha estão instalados dentro de si, inscritos dentro de seu mundo

263
mental, representados internamente já como “seus próprios” critérios,
“seus próprios” valores. Sua adesão a eles é emocional. Perde a capacidade
de pensar.
A experiência de não ser adequado é vivida dentro de seu espaço
simbólico de vida, por isso é tão devastador o ataque à imagem que ele
tem de si, por isso tão violenta a pressão contra si próprio.
É aí que entra o mercado, oferecendo ao jovem consumidor o produto
certo para a adequação ou para o consolo, atendendo agora às  minorias
portadoras de poder aquisitivo. Grifes se confundem com identidades
na tentativa de lidar com essa vergonha de si. Os objetos adquirem
características humanas, os objetos declaram quem é aquele jovem que
os possui. Seu consumo promete preencher desejos, faltas, vazios, a
sensação de desamparo. 
A  imagem, que está ligada ao produto, é central, nesse mecanismo
de colocar um objeto no lugar da carência, de adicionar algo à sensação
de desamparo,  de preencher com qualquer gratificação  aquele vazio.
E a imagem está indelevelmente ligada ao produto. O jovem é induzido
a construir desejos que independem de suas necessidades particulares,
dentro dessa função “aditiva” do consumo.
No âmbito social, é necessário rever como a educação, formal e não-
formal, participa, na construção do imaginário coletivo, dessa ausência
de pensamento próprio,  na indução ao consumo; nesse sentido, há que
se fazer cumprir o uso social  das emissoras de rádio e televisão, que são
concessões públicas, renováveis ou não.
Além disso, precisa ser regulamentada a propaganda comercial
dirigida às crianças, como ocorre há anos nos países com democracias
consolidadas, que visam a protegê-las do apetite por lucro do mercado
de consumo e da violência  contra o psiquismo infantil proveniente
da voracidade desse mercado.  E, dentro de nossa responsabilidade na
construção de critérios para a classificação indicativa, há que se rever o
merchandising dirigido à criança, ou seja, a peça publicitária colocada
dentro do programa,  na narrativa.  Nessa técnica, o produto anunciado
é utilizado ou consumido pelos atores durante a trama, induzindo o
telespectador a identificá-lo com o personagem, sua classe social, sua

264
história, seus hábitos, suas condutas. O aparecimento do produto na
trama faz parte de contrato entre a concessionária e o anunciante, mas
o consumidor fica fora desse acordo, cujas regras desconhece.
A identificação clara e rápida da mensagem publicitária é um pré-
requisito para a livre escolha de uma mercadoria. A publicidade só é
lícita se o consumidor puder identificá-la imediata (no momento da
exposição) e facilmente (sem esforço).
Há também uma outra forma de merchandising, chamada
“testemunhal”: o(a) apresentador(a) afirma que consome aquele produto
e enumera suas qualidades. E a credibilidade  do telespectador naquele(a)
artista se transfere para a mercadoria anunciada.
Imaginemos agora o olhar de uma criança exposta a essa publicidade
que não aparece como tal: se essa criança não consegue distinguir
claramente entre um programa de entretenimento e uma peça
publicitária, ela está completamente vulnerável à manipulação.  
Como podem as crianças  reconhecer e se defender contra a
persuasão dessa publicidade ? Dois pré-requisitos  de conhecimento
e habilidades são necessários para que uma criança telespectadora
processe o conteúdo comercial de um modo maduro. Primeiro, ela
deve estar apta para discernir em um nível razoável entre programa e
mensagem comercial; segundo, a criança deve ser capaz de reconhecer
a intenção persuasiva que é necessariamente a razão fundamental de
toda publicidade.
Uma simples percepção distintiva entre programas e comerciais,
contudo, não providencia uma “defesa cognitiva” contra as alegações
e os apelos da publicidade. A criança só consegue fazer uma avaliação
mais crítica do conteúdo do anúncio publicitário após desenvolver a
habilidade de reconhecer a intenção persuasiva da publicidade.
A publicidade deve ser claramente distinguida como tal, seja qual
for sua forma ou meio de veiculação; se uma mensagem aparece no
meio da fala de uma apresentadora de programa infantil, deveria ser
apresentado de tal forma que possa imediatamente ser reconhecido
como publicidade. Por exemplo, com uma legenda similar à que existe
em jornais e revistas: “propaganda paga”.

265
Aqui no Brasil, intensifica-se a publicidade de produtos com
um número crescente de inserções durante os programas infantis
comandados pelos apresentadores dos mesmos.  Com isso, aumenta o
faturamento dos anunciantes e das emissoras concessionárias. Mas, e
a criança, exposta a essa publicidade maciça na televisão, durante sua
formação? Quem necessita dessa publicidade? Quem se beneficia com
ela?  Quais as necessidades, e de quem, deveriam ser colocadas em
primeiro lugar?  Como  transformar, na programação televisiva,  as leis
de proteção à criança e ao adolescente em critérios transparentes que
representem seus direitos?
Merchandising no programa infantil: o rabo que balança o cão
A propaganda inserida dentro de programas dirigidos a crianças e
adolescentes é proibida em países com democracia melhor consolidada.
Em alguns, essa forma de publicidade, chamada merchandising, é vedada
mesmo para o público adulto, isso porque, para proteger as pessoas dos
interesses exclusivos do mercado, é essencial que esteja absolutamente
separado o anúncio do programa.
Tal qual o assédio moral, crime invisível, mas poderoso, a publicidade
dentro do entretenimento seduz e induz a criança de forma covarde. A
frase “Stop thinking: drink a Coke” (“Pare de pensar: Beba coca-cola”) é
emblemática. 
Lembrando Piaget, a criança aprende a pensar com a experiência:
resolvendo problemas, explorando a realidade de maneira independente,
usando a capacidade de refletir sobre a maior variedade de situações
possível. Mas essa aprendizagem é limitada pelo estágio do seu
desenvolvimento cognitivo. Algumas interpretações do que está sendo
visto não são possíveis até certa idade.
Quando a apresentadora infantil avaliza os produtos que o anunciante
lhe paga para endossar,  transfere para a mercadoria aquela confiança
que a criança lhe dirige. É uma silenciosa violência que acompanha o
merchandising testemunhal.
A televisão, como concessão pública que é, ainda que os concessionários
insistam em negá-lo, tem a obrigação de atender às necessidades dos
diferentes públicos. Mas, nos horários dirigidos à infância e adolescência,

266
o que se vê é o mesmo tratamento que é dado a quem teria, por ser
adulto, a discriminação entre o que é publicidade e o que é programa.
O volume da publicidade detectada na própria narrativa converte
o merchandising  na verdadeira programação. “O rabo balança o cão”,
ou seja, a programação existe unicamente para enviar as audiências,
especificadas demograficamente, para os anunciantes comerciais. E o
programa vira mera moldura para a indução das crianças e adolescentes
ao consumo.
Esse é mais um dos abusos praticados contra a criança e o adolescente
no Brasil.

267
268
Educação para a Mídia: Leitura Crítica

Coordenação
Ana Bock

269
Educação para a Mídia: Leitura Crítica

Paulo Roberto Ceccarelli1


Gostaria de compartilhar com vocês algumas reflexões sobre a
mídia. Não trago questões precisas. Interessa-me, sobretudo, pensar na
participação da mídia na construção de mentalidades. Uso a palavra
mentalidade em vez de subjetividade, porque sabemos que a palavra
subjetividade é carregada de especificidades: Psicologia social, psicanálise,
psicanálise da criança, psicanálise freudiana. Então, para evitar isso, optei
por um termo que me parece mais neutro: mentalidade.
Antes de mais nada, queria localizar o grupo TVer e falar um pouco do
meu trabalho sobre a mídia. Após fazer doutorado na França, voltei para
São Paulo e, em um congresso, encontrei-me com a então Deputada
Federal a Dra. Marta Suplicy. Na ocasião, ela falou-me de seu interesse
em promover um debate sobre mídia, pois havia um questionamento
popular sobre a qualidade da TV no que se referia aos programas exibidos.
A Dra. Marta, decidiu, então, organizar um grupo de debate sobre o tema.
Criou-se o Grupo TVer. Foi um grupo de discussão bastante interessante
e que, mais tarde, se transformou em uma ONG. No primeiro momento,
nós nos reuníamos de 15 em 15 dias e debatíamos sobre os programas
de televisão. O grupo era composto por pessoas de renome nacional,
como Eugênio Bucci, Lalo Leal Filho, Maria Rita Kehl, além de filósofos,
juízes, psicanalistas, professores de comunicação, fotógrafos. Com isso,
tomávamos conhecimento de um determinado dado ligado à mídia e
o analisávamos. O grupo ganhou uma certa notariedade, e, por várias
vezes, seus componentes publicaram artigos no jornal Folha de São
Paulo. Era interessante, pois o grupo analisava questões sobre as quais,
normalmente, não se pára para pensar: como a mídia trata a mulher?
Qual é a participação e a apresentação dos negros nas novelas? Lembro-

Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de


Paris VII; membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; sócio do
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França;
professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG (graduação e pós-graduação)

271
me, particularmente, do Luís Paulo, um jornalista, que fez uma pesquisa
sobre a participação dos negros na telenovela brasileira, e concluiu que,
exceto mais recentemente, eles não têm família, são empregados, ladrões,
marginais. Isso tem um certo impacto midiático, e vai construindo uma
cultura, um pensamento. Era esse o tipo de discussão que tínhamos.

Educação e mídia: um diálogo necessário


Começo com uma frase do Freud: “Para que o processo civilizatório
exista, é necessária a renúncia da satisfação pulsional”. Então, se é
necessária a renúncia da satisfação pulsional, ou seja, a renúncia de uma
certa forma de prazer em suas várias vertentes, a pergunta se coloca:
como se opera a renúncia de satisfação quando se é constantemente
bombardeado pela realidade que a mídia apresenta que, justamente,
incita o consumo, a satisfação?
Na apresentação de colega Ana Bock, chamou-me a atenção o
fato dela dizer que discutir mídia e subjetividade é discutir saúde
psíquica. Concordo inteiramente com a frase, e pergunto mais: o que
é saúde, do ponto de vista psicológico? Entendo que a mídia participa
intensamente da construção da subjetividade, ou da mentalidade,
se preferirmos esse termo, e, em conseqüência, essa construção se
refletirá na saúde psíquica.
O título da mesa, Educação para a mídia: uma leitura crítica, me fez
pensar se, de alguma maneira, seria possível preparar o cidadão, sobretudo
a criança, para uma leitura crítica daquilo que a mídia, em particular
a TV, está veiculando em sua programação, nas peças publicitárias, no
noticiário. Como educar para a mídia? Como educar para uma leitura
crítica da mídia?
No final, citarei exemplos bastante interessantes, que o grupo TVer
conseguiu efetivar no sentido de buscar a educação crítica para a mídia.
No dicionário, o verbete educação remete ao “ato ou processo de
educar”. E em educar encontramos: do latim educare “criar (uma criança);
nutrir; amamentar; cuidar;” “1.dar a alguém todos os cuidados necessários
ao pleno desenvolvimento de sua personalidade; 2.transmitir saber a; dar
ensino a; instruir. 3.fazer (o animal) obediente; domesticar; domar.

272
E em mídia encontramos: ‘mídia’ vem do inglês (mass) media, ‘meios
de comunicação (de massa)’, o inglês media, por sua vez, advém do
neutro plural do latim medium, ‘meio’, ‘centro’; é a forma substantiva do
adjetivo latino medius, a um, ‘que está no meio’, inicialmente usado na
acepção geral de ‘meio’, ‘meio termo’.» Mídia significa «“o conjunto dos
meios de comunicação, e que inclui, indistintamente, diferentes veículos,
recursos e técnicas, como, p. ex., jornal, rádio, televisão, cinema, outdoor,
página impressa, propaganda, mala-direta, balão inflável, anúncio em
site da internet, etc. ‘Mídia’ significa também ‘O conjunto de meios
de comunicação selecionados para a veiculação de mensagem ou de
campanha publicitária’.
Educar para a mídia pode ser entendido como criar uma leitura
crítica, estabeler uma distância entre o que a mídia mostra e a
realidade externa.
Diante disso, e como fruto desses nossos encontros no Grupo TVer,
comecei a me interessar particularmente pelo que chamo os efeitos
perversos da mídia, em particular os da televisão. Entendo por efeitos
perversos a utilização, pelos meios de comunicação, em particular
pela televisão, do seu alto poder de persuasão, que, auxiliada por uma
tecnologia sempre de ponta, transforma os objetos mais triviais em
objetos que constituem necessidades vitais e que são oferecidos como
sonhos de consumo. É bom lembrar que o telespectador é sempre e,
acima de tudo, um consumidor. Para que esse fim seja alcançado, criam-
se padrões de comportamento, valores globalizantes que, muitas vezes,
destroem a particularidade do sujeito. Cito um exemplo. Vou com certa
freqüência a Belém do Pará. O local onde, até algum tempo atrás, se
comprava sucos da Amazônia, não existe mais. Em seu lugar, há um
MacDonalds; o suco de cupuaçu... só o industrializado. Sob o pretexto
globalização, vai-se, aos poucos, minando culturas e identidades. Eis um
exemplo do que chamo de “efeito perverso”, pois, nesse movimento, o
sujeito perde completamente suas referências identificatórias de base.
Os comportamentos criados pela mídia são apresentados como
padrões de referência e transformados em modelos identificatórios.
Entretanto, a grande maioria da população não tem condições de seguir

273
os ditames da mídia. No mínimo duas “realidades” serão construídas:
aquela dos que têm acesso aos objetos e outra daqueles que não têm.
Ora, se não tem os objetos, dê um jeito de adquiri-los, roube, mate,
faça qualquer coisa para consegui-los, senão será excluído do social.
Tive oportunidade, quando morava em São Paulo, de conversar com
um menino da Febem. Ao escutar a sua história, percebi que estava
completamente perdido, sem referências no tecido social. A falta de
referências identitárias obrigava-o a cometer atos delinqüentes para
poder ter acesso aos objetos valorizados pela mídia: assim ele podia
existir. A mídia tem uma responsabilidade ética sobre isso, embora pouco
se discuta esse aspecto. E esse imaginário que a mídia mostra está em
estreita ressonância com o mercado.
Como diz Eugênio Bucci, “a mídia é o maior veículo de exclusão social”.
É claro que vemos facilmente a tensão social que essa organização
acarreta. Freud afirma que as relações que os homens estabelecem
estão diretamente ligadas à quantidade de satisfação que a sociedade
lhes oferece, à quantidade de prazer que têm. “Não preciso ter tudo,
mas alguma coisa tenho que ter”. Quando isso não acontece, quando a
sociedade nada dá em troca, o próprio processo civilizatório não conclui
seu objetivo, que é exatamente tornar a vida comunitária possível.
Retomo uma passagem de Freud sobre a questão da educação. Embora
fale pouco do assunto, ele dedica um texto não à questão da educação
formal, mas ao que chama de “educação pulsional”. A educação pulsional
é um longo e difícil processo que começa no nascimento e cujo objetivo
é o de fazer com que o recém-nascido aprenda a suportar as exigências
impostas pela civilização, logo, a suportar e a adiar, ou mesmo a renunciar,
a certas satisfações.
Ao nascer, o bebê traz um potencial bio-psíquico que será desenvolvido,
num primeiro momento, a partir das relações estabelecidas entre ele e
quem o acolhe no mundo. E, em um segundo momento, pelo grupo
primário no qual está inserido (a família e a sociedade). Começará,
então, a ser educado pulsionalmente, ou seja, a adquirir os elementos
de informação sobre o sistema de valores ético-morais de seu grupo,
de como deve agir, sendo menino ou menino, seus limites, deveres e

274
direitos. Esse é, entretanto, um processo de mão dupla. De um lado,
para viver uma realidade de cidadania e de respeito, a criança terá que
aprender que há limites para a realização de seus impulsos, sobretudo os
que se relacionam à sexualidade e à agressividade. Por outro lado, esse
mesmo processo protege o sujeito por meio das leis que, por princípio,
são iguais para todos. Além disso, a energia das pulsões recalcadas são
transformadas, via sublimação, em força de trabalho, integrando o sujeito
na sociedade. Caso contrário, não haveria justificativa para manter esses
limites. Qualquer que seja a cultura, o sujeito terá que se submeter aos
limites impostos.
Há algum tempo, em um programa exibido à tarde, a discussão girava
em torno de uma menina que havia ficado grávida. Debatia-se se ela
deveria ou não ser expulsa de casa. Ora, esses e outros temas ligados
à sexualidade são sempre complicados, e frequentemente envolvem
elementos completamente ignorados pelos participantes do debate.
Muitas vezes, o modo como a mídia trata esses assuntos não corresponde
à percepção que o sujeito tem de sua própria realidade interna sobre o
tema debatido. Na falta de referências internas, pode ocorrer que o
sujeito tome por verdade o que é mostrado sem, entretanto, conseguir
vivenciá-lo. O que a mídia mostra passa a ser usado como referência
para a construção de valores, o que leva, muitas vezes, ao que chamo
de “efeitos perversos” pois, já o dissemos, os valores apresentados como
verdade são distantes da construção de uma situação de cidadania.
Na falta de referências internas, repetimos, o sujeito buscará suas
referências na mídia. E referências são necessárias para a construção
de um mundo interno criador de limites, de respeito, e, logo, de
cidadania. Por outro lado, a carência de educação pulsional, de limites,
pode produzir efeitos desastrosos. O mais noticiado, o mais punido pois
atinge a classe menos favorecida, manifesta-se na falta de razão para
suportar a educação pulsional, ou seja, o sujeito vive em uma sociedade
que não dá nada em troca, uma sociedade que exige somente que
ele aceite a imposição, mas também que não se revolte, que fique em
silêncio, excluído. Esse estado de coisas manifesta-se, por exemplo, nos
crimes violentos praticados pelas classes menos favorecidas. E uma das

275
conseqüências disso, uma causa cara ao Conselho Federal de Psicologia,
é o debate lançado sobre a diminuição da idade penal, que atingirá
exatamente uma classe que não tem mais como ser punida. A solução
não é diminuir a maioridade penal. Os caminhos são outros. Quando se
discute isso na França, por exemplo, há que se levar em consideração que
a organização social é outra. Esse menino que citei, da Febem, que, para
roubar um tênis espanca outro menino, não tem qualquer motivo para
respeitar o pacto social, porque é excluído desse pacto.
O outro extremo da não educação pulsional é a falta de limites
produzida pelo excesso de satisfação pulsional. E essa é a menos
confortável de abordar, porque implica pessoas próximas, vizinhos,
familiares, mas, sobretudo, as pessoas da classe alta, como quando o
índio foi queimado em Brasília ou a empregada doméstica foi espancada
no Rio de Janeiro. Impressionou a resposta dada pelo pai de um dos
rapazes. Somam-se a isso os comportamentos marginais, cada vez mais
comuns, embora pouco noticiados, nos condomínios de alto luxo onde,
ironicamente, a segurança é máxima justamente para não deixar entrar
a violência do mundo externo.
Estamos diante das duas faces da perversão: uns não têm nada,
outros têm tudo.
Os modelos impostos pela mídia, verdadeiros ditames de conduta,
substituem, diria mesmo que eliminam a singularidade do sujeito (a
origem, a cultura), o que leva ao empobrecimento radical da subjetividade,
pois esses modelos criam modelos hegemônicos de ilusões identitárias
e transformam o sujeito em objeto de consumo. E as novelas, os reality
shows, os programas televisivos que mostram desgraças, têm seu próprio
expediente, o de servir como substância tóxica no sentido de ser aquilo
que nos afasta da realidade, que é outro efeito perverso da mídia. É claro
que todos gostam de assistir televisão. Foi feita uma pesquisa sobre o
porquê de a televisão não ter dado certo como instrumento educativo.
A conclusão foi que a televisão é considerada instrumento de lazer,
descanso. As pessoas não querem sentar e pensar, aprender. A TV não
tem essa função, e sim, a de provocar o efeito tóxico de fazer com que
aquilo que ali é mostrado passe a ser uma forma de fuga da realidade. E

276
é claro que cria algo muito sério, que é a distância entre como eu sou e
aquilo que a mídia afirma que devo ser para ter reconhecimento social.
Temos, dessa maneira, um aumento da frustração.
Para terminar, quero narrar uma experiência que nosso grupo teve
com a questão da educação para a mídia, de como a educação pode
contribuir para desconstruir a realidade mostrada pela mídia. Em São
Paulo, foi realizado um trabalho em uma escola privada de segundo
grau. Conseguimos fazer com que essa escola reservasse duas horas
por mês para se fazer televisão, e essa atividade criou uma mentalidade
crítica. Isso foi feito também em Franco da Rocha. Fomos a uma escola
para discutir televisão com a idéia de que o povo vê o que gosta, e, para
nossa agradável surpresa, eles vêem aquilo porque não têm o que fazer,
e gostariam de ter uma outra televisão. O mesmo trabalho foi feito em
Belo Horizonte, com resultados interessantes. Perguntas apareceram:
Por que a mesma notícia é mostrada de maneiras diferentes, em jornais
diferentes? Que mundo maravilhoso é esse da novela, em que ninguém
trabalha? Os problemas nas novelas parecem se reduzirem, por exemplo, a
ir, ou não, à Europa, etc. Outro exemplo foi feito com a novela Malhação.
Assistíamos um trecho e, ao analisá-lo, cada um foi mobilizado por coisas
diferentes, o que serviu para questões como: Que realidade foi mostrada?
Como você se sente com tal assunto, demonstrado daquela forma?
A educação para a mídia deve desconstruir os efeitos que ela produz
nas pessoas. Não se trata de fazer algo contra a mídia, pois ela tem o
seu lado importante na sociedade. A mídia não é pior, ou melhor, nesta
ou aquela época. Não podemos esquecer que, há 100 anos, o mundo era
menor, mais restrito. Quem tinha acesso, podia viajar, outros viajavam
através das revistas Capricho, Poliana, e outras tantas. Mudou a realidade,
mudaram os meios. Educar para a mídia é levar o debate para as escolas,
é fazer a desconstrução da ilusão mostrada na telinha através de uma
visão crítica.

277
Educação para a Mídia: Leitura Crítica

Rosária Ilgenfritz Sperotto1

Considerações iniciais
Apresento aqui algumas problematizações advindas de uma pesquisa
realizada em 1999 a que hoje estou dando continuidade, pois estou re-
intervindo no campo empírico, trabalhando com os mesmos sujeitos. Em
1999, os sujeitos da pesquisa eram crianças de 3ª e 4ª séries do ensino
fundamental do Colégio Gonzaga, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Hoje são
jovens que estão na 2ª série do ensino médio.
A preocupação central da pesquisa atual está voltada para questões
relacionadas à interferência das mídias na constituição das subjetividades
e suas interferências nas situações de ensino e de aprendizagem que dizem
respeito aos estudantes, situando-os em duas instâncias formadoras: na
escola, instituição sistematicamente dedicada à formação de crianças e
jovens e na interferência das mídias-meios de comunicação que fazem parte
do nosso dia a dia, seduzindo-nos e envolvendo-nos com uma “realidade
produzida” pela indústria cultural à qual pertencemos.
O “caso Pokémon”: a mídia como um dispositivo de produção de
“subjetivid@de high.tec” na infância – pesquisa desenvolvida em 1999,
e que pode ser considerado a gênese de meus estudos sobre a mídia
como dispositivo educativo .
Em 1999, o público infantil pesquisado assistia os episódios do
desenho animado Pokémon, veiculados pela Rede Record de televisão e
pelo Cartoon Network; na época, os sujeitos eram crianças entre 8 e 12
anos; hoje eles são jovens adolescentes com 16 anos.
A pesquisa desenvolvida foi instigadora para eu me aproximar desse
universo de aprendizagem, que contém uma linguagem com velocidade
diferente daquela que habita a escola, onde a mídia atua como um
dispositivo de subjetivação.
Questionando-me sobre como as crianças interagiam com esses
dispositivos midiáticos, promotores de interação, socialização e
1. Psicóloga, Professora da Faculdade de Educação UFPel, Doutora em Educação, atuando em
cursos de graduação presenciais e a distância, e no Mestrado em Educação /PPGE. E-mail:
[email protected]

279
experimentação aventurei- me na pesquisa, em 1999. A “febre Pokémon”
foi desencadeada pelo desenho animado, veiculado na Rede Record a
partir do segundo semestre de 1999, no Brasil.
Nesse mesmo ano são lançados álbuns de figurinhas, os bonecos e uma
série de “artefatos” que passaram a fazer parte dos hábitos cotidianos das
crianças em fase escolar (mochilas, camisetas, lápis, cadernos, chaveiros,
brinquedos, cartas – cards, etc).
Concomitantemente ao lançamento das mídias supracitadas, surgem
os games – o game boy – os cds para play station, como também havia a
possibilidade de fazer download para seus microcomputadores das versões
Pokémon em inglês ou japonês do jogo boy red, blue, yellow, green, etc.
Hoje, junho de 2007, o Pokémon ainda continua sendo veiculado pela
televisão no Cartoon Network; porém, os demais acessórios estão obsoletos
e foram substituídos por outros “vícios”. As crianças de 1999 hoje circulam
em outros territórios virtuais: assistem MTV, Lost, prision break, novelas
veiculadas nas TVs, escrevem e postam em fotologs, blogs, jogam conter
straik, fazem downloads de jogos, vídeos, filmes, etc.
Percebemos hoje que a prática do jogo on line produz uma nova categoria
de atletas : os cyber-atletas (campeonatos de CS e de playstation. Também
experimentam viver uma vida virtual, no “second life” umas das novidades
atuais do mundo virtual. Os “avatares”, personagens que assumem, visibilizam
a possibilidade experimentar, viver virtualmente outros devires de si.
Surge a indagação: como intervir no campo da Psicologia hoje?
Os sujeitos são híbridos e pertencem a diferentes tribos com estilos de
fala e de estética visual diferenciados: trata-se de uma geração subjetivada
por estímulos visuais com múltiplas cores e velocidades, para a qual a mídia
é um dos meios educativos eficazes e presentes no processo educacional.
Percebemos que hoje alguns hábitos cotidianos são diferenciados do
passado; por exemplo, os mp3, mp4 tornam-se uma espécie de “próteses
identitárias”. A mídia do mp3, mp4 podem ser vista hoje junto aos corpos
de crianças, adolescentes, adultos, etc. Percebemos isso nas ruas onde
circulamos, e as baladas dos djs já estão sendo substituídos pelos pen
drives dos participantes da festa. Cada um coloca o “seu som”. São estilos
singulares partilhados com o coletivo.

280
1.0 Contornos da pesquisa desenvolvida em 1999
O desenvolvimento desta pesquisa foi movido pela curiosidade em
conhecer as variações dos percursos, das potencialidades e dos efeitos
suscitados, a partir do dispositivo2 da mídia, como produtor de subjetividade
e de modos de subjetivação3 na infância. Com essas questões, passei a
tracejar e a assinalar alguns possíveis caminhos que me levassem a mostrar
uma mínima possibilidade de fecundidade, para problematizar uma forma
de ensino e de intervenção na área de Psicologia da educação que ocupasse
alguns dos espaços que as transformações contemporâneas exigem; pois, sem
dúvida, necessitamos construir conjuntos de procedimentos de educação e
de ensino sintonizados com a contemporaneidade.
Ao iniciar este estudo, chamou-me a atenção as inquietações, as “queixas”,
as dificuldades, os estranhamentos, os desconfortos e a falta de referências
apontados por pais, psicólogos4 e professores5, em relação a um “fenômeno
do momento” chamado Pokémon6, que produz em crianças e adolescentes7
o desenvolvimento de “vícios” e múltiplos conjuntos de “sintomas ”.
Cotidianamente, as crianças estão sendo por estímulos sensitivos,
cognitivos, afetivos que metamorfoseiam as suas constituições subjetivas. E
cada indivíduo, cada grupo social, veicula seu próprio sistema de modelização
da subjetividade, quer dizer, uma certa cartografia feita de demarcações
2. Utilizo a concepção de dispositivo a partir das proposições teóricas de Michel Foucault. Segundo o
autor, dispositivo é uma máquina de fazer ver, de fazer falar. Os dispositivos produzem subjetivações.
Cada dispositivo comporta uma multiplicidade de vetores, de linhas que operam em devir. Um processo
de subjetivação inventa linhas de força, de saber, de prazer, bem como facilita cruzamentos de outros
múltiplos vetores que agem como flechas e que não cessam de entrecruzar as coisas e as pa­lavras, sem
que por isso deixem de conduzir batalhas. As linhas de forças produzem-se em todas as relações de
um ponto a outro e passam por todos os lugares de um dispositivo (Foucault; 1977; Deleuze; 1996a).
3. A subjetivação é uma relação de força que a pessoa estabelece consigo. Foucault (1990) assinala que
a subjetivação é uma operação artisca, ela é ética e estética, ela produz modos de existência, estilos de
vida e de relações, ela é um processo de individuação, pessoal ou coletiva.
4. Em função desta demanda realizei a palestra Subjetividade infantil na contemporaneidade, no
CRP/07- Setorial Sul do Conselho de Psicologia, em novembro de 1999, na cidade de Pelotas-RS.
5. Do ensino fundamental do Colégio Gonzaga, de Pelotas – RS, e que procuraram orientação para
discutir: como trabalhar na sala de aula com essa questão.
6. Um desenho animado, de produção japonesa veiculado desde o início do segundo semestre de
1999, no Brasil, pela Rede Record de televisão e Cartoon Network.
7. O material que analiso foi produzido por “meninos e meninas”, numa faixa etária entre 5 a 21 anos,
que poderiam ser designados como de adolescentes, porém optei por chamá-los de crianças, uma vez
que a maior parte deles está num período de transição entre a infância e a adolescência e porque
estou tratando de um devir infância, um modo de ser.

281
cognitivas, mas também míticas, rituais, sintomatológicas, a partir da qual
ele se posiciona em relação a seus afetos (GUATTARI; 1992; p. 22).
A subjetividade contemporânea é polifônica, e está sendo constituída
na convivência com determinadas condições e possibilidades de uma
heterogeneidade de discursos institucionais: a família, a escola, a
mídia (em suas diferentes formas – revistas, jornais, TVs, internet) –
que são dispositivos de “produção” e de “modelação” da subjetividade
na atualidade.
Somos palcos a dar passagens aos fluxos que nos atravessam. Como
facilitamos essas passagens? Modelizamos e repetimos afetos e modos
de relações ou encontramos outras formas de nos relacionarmos conosco
mesmos com os outros? Como somos capturados pelos discursos
contemporâneos?
Essa captura gera imagens, sensações e pensamentos, produzidos
pelas conexões e afecções com instâncias afetivas, cognitivas, sensitivas
e perceptivas que se tornam visíveis através das múltiplas maneiras
pelas quais a pessoa se expressa: escritas, falas, gestos, olhares,
expressões corporais. A essas formas que nos permitem mostrar os
diferentes modos de vida que nos compõem enquanto seres humanos,
chamo de subjetivações.
O conjunto de procedimentos desta pesquisa compõe-se de: a)
reportagens publicadas em revistas e jornais que abordam o tema
em questão; b) observação dos episódios veiculados pela televisão; c)
entrevistas e observações com algumas crianças das séries iniciais do
ensino fundamental que participaram, espontaneamente, do concurso
Desenhe um Pokémon8.

8. Esse material empírico é oriundo do concurso Desenhe um Pokemón, promovido pela Sonic Locadora
de Games e a DIBA (Distribuidora de Revistas Bagé) de Pelotas, RS. Após o término do concurso, os
promotores cederam os desenhos e autorizaram o seu uso nesta pesquisa. Os vencedores do concurso
foram premiados com locações de games e todas as outras crianças, não vencedoras, receberam
revistas Pokémon Club, de games e decalques pela participação. Esse concurso foi divulgado na Sonic
Locadora de Games, e também através de um anúncio publicado pelo Diário Popular, um jornal de
circulação diária da cidade de Pelotas – RS, em 8/11/99. Foram entregues 218 desenhos durante o
período em que vigorou o concurso (4 semanas), pelos participantes cuja faixa etária oscila entre 5
a 21 anos.

282
2.0 Problematizando as indagações
A partir do “caso Pokémon9”, objetivo problematizar como essa produção
semiótica da mídia opera na produção da subjetividade infantil, não só
apenas na capacidade de potencializar a memorização, a percepção, mas
também a sensibilidade, os modos de afetos e de relações.
As relações que as crianças estabelecem hoje com as máquinas
tecnológicas de informação e de comunicação concorrem para a produção
da subjetividade; então, acontece a produção de outras imagens e de
novos universos de relações. A produção “maquínica” da subjetividade pode
trabalhar tanto para melhor, como para pior. O melhor é a criação, a invenção
de novos “universos de referência”; o pior é o embrutecimento, ao qual são
condenados hoje em dia milhares de indivíduos (GUATTARI; 1992).
Hoje convivemos com novas formas de arte, no cinema, na televisão, na
internet. Outras imagens nos capturam e passamos a nos inter-relacionar
com múltiplas instâncias (humanas e “maquínicas”, essas são produzidas por
dispositivos tecnológicos). As imagens que reproduzimos não são imagens
passivamente representativas, mas vetores de subjetividade, ou seja, são
germes de produção de subjetividade (DELEUZE; 1985,1990).
Então indago: Como as crianças estão constituindo suas subjetividades?
Quais são as possibilidades de experimentação? Como operam os dispositivos
de subjetivação? Quais possibilidades estão sendo apontadas para
trabalharmos com Psicologia da educação? Quais desafios se instalam?
Com essas questões, passo a cartografar10 (marcar caminhos e
movimentos com coeficientes de sorte e perigo) sobre um dispositivo
de constituição da subjetividade infantil contemporâneo: a mídia.
Atualmente, ela não só habita a escola, os lares e os espaços de lazer
por onde circulam pessoas, mas também produz discursos, instala novas
práticas sociais e de relações.
Para povoar essa escrita, busco as companhias de alguns intercessores:
Gilles Deleuze, Michel Foucault, Félix Guattari. Desejo que essa escolha possa
9. Sirvo-me deste termo a partir das teorizações propostas por Gilles Deleuze; para ele, o caso é tudo
que produz efeitos, suscita procedimentos e inventa modos de subjetivações.
10. A cartografia é um procedimento de pesquisa utilizado por Deleuze e Guattari em muitas de suas
investigações. Nessa pesquisa, uso esse recurso para mostrar alguns movimentos, efeitos, trajetos,
percursos e devires do objeto em estudo.

283
servir como guia no sentido de despertar e aguçar hábitos e habilidades que
nos arrebatem e desafiem a buscar novidades.
Os hábitos são necessários para incorporar determinadas coisas. O
problema é permanecer neles! Os hábitos são sempre a vida em movimento.
A liberdade é que cria os hábitos, mas os hábitos podem abafar a liberdade.
Agir nunca é repetir, nem na ação que se prepara nem na ação totalmente
preparada; a generalidade é coisa totalmente distinta da repetição (DELEUZE,
1988, p.135).
O objeto que estou propondo investigar é a subjetividade, e
subjetividade pressupõe desestabilizações. Então, ao dar uma forma de
escrita cartográfica para os efeitos e as implicações dos dispositivos que a
produzem, estou sendo desafiada a desenvolver hábitos de pensamento e
de pesquisa que têm a ver com aprendizagem e criação. Os caminhos do
aprender são amplos e transbordantes, e estão atravessados de relações tais
como o amor, o desassossego, o desejo – que não são, necessariamente, o
caminho da razão.

3.0 A infância como ponto de conexão para a constituição da


subjetividade: busco a intercessão de Gilles Deleuze.
As crianças estão em constante busca e exploração de meios. Elas
traçam mapas psíquicos. Ao se expressarem, deslizam entre falas, fantasias,
afetos. Estão sempre em movimento e a experimentar novos jeitos e formas
de relações.
Os mapas desses trajetos são essenciais à atividade psíquica como
possibilidade de expressão de desejos (eles se tornam visíveis através de
desenhos, diálogos, expressões corporais). O trajeto, percorrido pela criança
se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio (pais,
professores, psicólogos, heróis de desenhos e estórias) mas também com a
subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o
percorrem. O mapa exprime a identidade entre o percurso e o percorrido.
Confunde-se com seu objeto quando o pró­prio objeto é movimento
(DELEUZE,1997).
Os pais, os professores, os psicólogos, as mídias, os grupos de convivência
são os meios que a criança percorre, com suas qualidades e potências, e

284
cujo mapa ela traça. Eles só tomam a forma pessoal e parental como
representantes de um meio num outro meio.
Os adultos com quem a criança convive desempenham a função
de abri­dores ou fechadores de portas, conectores ou desconectores de
zonas. Os percursos da crian­ça, os desvios, as bar­reiras, formam uma
cartografia dinâmica .
O pivô da infância é a amizade, e na adolescência esse universo se
expande em direção à descoberta de outras possibilidades amorosas, de
experimentações, aventuras, curiosidades, descobertas e metamorfoses
– são processos que acontecem entre. Trata-se de um devir-criança que
vai se compondo e cada vez mais se aproximando da visão de um sujeito
consciente, responsável e mestre de si.
O devir-criança se atualiza em nós, nos vários momentos e situações
que povoam a nossa vida; o devir contém a possibilidade de deslizar, de
inventar, de explorar meios e formas de relações consigo mesmo e com os
outros que nos habitam.
A constituição da subjetividade é processual, é fluxo, é devir; os devires
são múltiplos, eles se encadeiam, se misturam uns aos outros compondo
linhas de reflexão, de invenção, bem como facilitam novos acoplamentos,
aprendizagens e subjetivações.
O devir não é uma forma, um modo de identificação, imitação, mímesis,
mas o devir produz uma zona de vizinhança, ou de indiferenciação, uma
“hybris”, de tal maneira que se torna difícil distinguir outros devires. O devir
está sempre “entre” ou “no meio”.
Os devires potencializam conexões com múltiplas maneiras de
aprendizagens, que estão se desenvolvendo e que buscam cruzamentos com
outras referências, trocas de experiências e inter-relações sociais e individuais.
As aprendizagens que as crianças adquirem estabelecem conexões
com múltiplos meios e contêm o que acontece com cada um e entre os
componentes do grupo. Isso dá oportunidade ao surgimento de novidades.
A convivência grupal facilita o trânsito daquilo que se encontra
bloqueado e cria maneiras, hábitos e liberdades de expressão. Além disso, as
relações grupais provocam tensionamentos, movimentos, deslocamentos e
modificações de valores.

285
4.0 O “caso Pokémon”: o que esse discurso produz? Quais seus
efeitos?
Esse é um caso de aventura, de expedições, de capturas, de experimentações
que desperta paixões, febres, curiosidades e desenvolve habilidades diz a Veja
on line11.
No desenho, animado não há exatamente mocinhos e bandidos, há
sim rivalidade entre treinadores e monstros mais ou menos adestrados, ao
contrário dos desenhos japoneses de outras épocas que afetaram a criançada
como os Powers Rangers que vieram para defender a terra de invasores, os
Cavaleiros do Zodíaco, as Tartarugas Ninja.
A exploração, o jogo, os desafios, as fugas, e as aventuras são algumas das
referências desse desenho. O que é uma aventura? São coisas que estão por
vir: experiência arriscada, incomum, perigosa, cujo fim ou decorrência são
incertas; acontecimento imprevisto, surpreendente, peripécia, é experimento,
é por à prova, é empreender, diz o Dicionário Aurélio12.
Nas expedições não há apenas incerteza do que se vai descobrir ou
conquistar, mas também a invenção de outras possibilidades e trajetos, ou
seja, elas promovem subjetivações. (DELEUZE, 1998).

4.1 A geografia da subjetividade


Atualmente, a linguagem Pokémon invade escolas, lares e espaços de
lazer de inúmeras crianças no Brasil e no mundo. O universo13 Pokémon
foi criado por Satoschi Tajiri, um japonês de 34 anos que na infância tinha
mania de colecionar insetos e na adolescência ficou louco por videogames.
Tajiri não fez faculdade e, conforme os princípios de seu país, parecia estar
destinado ao fracasso. Em 1982, ele lançou uma revista sobre games,
GameFreak. Depois, achou que escrever sobre os jogos era pouco e resolveu

11. http://www2.uol.com.br/veja/241199/p_068.html. Nº 1625 de 24/11/1999.


12. Novo Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
13. É assim que as revistas especializadas no assunto abordam o tema. Entre elas cito a Pokémon Club
e Pokémon Quadrinhos, ambas da Conrad Editora. Encontrei também este termo nas edições on line
das revistas: Veja Nº1622, Veja e Nova Escola on line http://www2.uol.com.br/veja/241199/p_068.
html. Nº 1625, http://www.uol.com.br/novaescola/ edição março de 2000); bem como na IstoÉ nº 1574
http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1585/comportamento/1585quale.htm;Nº1585,http://www.zaz.
com.br/istoe/comport/1585/comportamento/1585quale.htm;Nº1585,http://www.zaz.com.br/istoe/
comport/1585/comportamento//1585quale.htm

286
criar alguns. Em 1991, encantou-se com o game-boy – criado pela Nintendo
(esse aparelho permite que o jogador brinque sozinho, numa tela que cabe
na palma da mão). Tajiri juntou suas lembranças de caça a insetos à paixão
pelos games para criar o jogo Pokémon, feito para game-boy. Em 1996, o
mercado de game-boy parecia ter chegado ao fim, com o surgimento de
outras novidades tecnológicas. Mesmo sem grandes expectativas, a Nintendo
resolveu lançar o Pokémon14.
Os personagens do game se tornaram desenhos animados e hoje são
encontrados em diversas páginas da WEB15, em brinquedos, filme16, fitas de
vídeo, alimentos, roupas, CDs, álbuns de figurinhas17 (nos Estados Unidos e
no Brasil, algumas escolas tomaram a decisão de proibir o uso das figurinhas
nas salas de aula, pois “estavam atrapalhando”, diz a Nova Escola on line18).
Os monstri­nhos Pokémon “aterris­saram” no Brasil, no final de 1998, como
um videogame da Nintendo. Mas a mania só tomou impulso mesmo a partir
de maio de 1999, quando o desenho animado estreou no progra­ma Eliana &
Alegria, da R­ede Record. Logo que entraram no ar, por volta de 11 horas, de
segunda a sexta, os mons­trinhos triplicaram a audiência da apresentadora,
acrescenta a Veja On line19.
O psicólogo Lino de Macedo afirma que o sucesso de Pokémon pode estar
na combinação de modelos antigos adaptados a uma linguagem moderna e
globalizada., ou seja, os caçadores repetem o passado masculino de capturar,
14. Foram vendidos no Japão 12 milhões de cartuchos; em três anos, nos EUA 7 milhões em um
1 ano. O faturamento mundial, em 1999 foi previsto em torno de 6 bilhões de dólares. Maiores
considerações sobre estes dados podem ser obtidas na Revista Veja Nº 1622.
15. Cito a seguir alguns sites especializados em Pokémons, http://www.pokemon.com, http://www.
pokedemais.cjb.net; http://www.zipnet.com.br/pokemon; http://www.pokemonvillage.com.
16. Pokémon, The First Movie fora lançado nos EUA no dia 10 de novembro de 1999 – arrecadou 56
milhões de dólares só na primeira semana de exibição, com 20 milhões de telespectadores. No Brasil,
o lançamento do filme deveria acontecer em abril de 2000, porém foi antecipado para a primeira
semana de janeiro, devido ao sucesso do lançamento nos EUA. Até o final do ano de 1999, a marca
Pokémon faturou 50 milhões de dólares no Brasil (dados obtidos na Veja on line , http://www2.uol.
com.br/veja/241199/p_068.html http://www.uol.com.br/veja/ )
17. Pokémon temos que pegar. Ed. Panini, Osasco, São Paulo,1999, álbum de figurinhas lançado no
Brasil em novembro de 1999. Na primeira semana, após o lançamento do álbum, foram vendidas 15
milhões de unidades.
18. Nova Escola on line http://www.uol.com.br/novaescola/ed/130_mar00/html/pokemon3.htm e
http://www.uol.com.br/novaescola/ed/130_mar00/html/pokemon.htm
19. Revista VEJA on line nº 1585, http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1585/comportamento//1585
quale.htm 1999 e Veja Edição 1622 de 3/11/1999. http://www.uol.com.br/novaescola/ edição
março de 2000.

287
dominar e transformar. As meninas ficam seduzidas pela fantasia de cuidar,
treinar, que faz parte da cultura do gênero feminino. Ele também espanta a
teoria de que games no estilo de Pokémon fazem mal às crianças. Os jogos
não contêm em si nem vício nem virtude. Cada um tem características
próprias, comenta a Isto É on line.20.
As expedições Pokémon são protagonizadas por equipes de crianças
(meninos e meninas) Ash, Brock e Misthy e a equipe Rocket, composta por
Jessie, James e Meowth (um Pokémon que fala). Esses estão sempre fazendo
planos para roubar Pokémon raros, e o alvo principal é o Pikachu de Ash.
Além das crianças, aparecem alguns adultos, entre eles o professor Carvalho,
a maior autoridade em Pokémon do mundo.
Os Pokémons são “monstros de bolso” que possuem formas estranhas e
nomes difíceis – formados por misturas de palavras de várias línguas, como
inglês, espanhol e latim.
O principal personagem Pokémon é um simpáti­co bichinho amarelo
de bochechas vermelhas que tem cara de rato e rabo em forma de raio.
Atende pelo nome de Pikachu e, pelo menos na televisão, é ca­paz de emitir
choques elétricos de até 10 000 volts. Este Pokémon é de propriedade de Ash,
o personagem central.
No mercado de consumo, é possível encontrar de tudo: bonecos,
jogos eletrônicos, mochilas, chaveiros, cuecas, meias, língua de sogra,
boa parte “pirata”, é bom que se diga. Atualmente existem 150
produtos licenciados21.
A revista Pokémon Club, especializada nesta temática, chegou às bancas
brasileiras com uma tiragem de 70.000 exemplares, sendo necessário
reimprimir 250.00022. Em termos matemáticos, pode-se dizer que o
sucesso de Pokémon é o resultado da análise combinatória aplicada ao
consumismo desenfreado. Mas, para as crianças, não passa de um divertido
20. Isto é on line, nº 1585 de 16/02/2000. http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1585/
comportamento//1585quale.htm
21. Revista VEJA on line nº 1585, http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1585/comportamento//
1585quale.htm e http://www.uol.com.br/novaescola/ edição março de 2000.e Nova Escola on line
http://www.uol.com.br/novaescola/ edição março de 2000).
22. Revista VEJA on line http://www2.uol.com.br/veja/241199/p_068.html Edição 1625 de 24/11/1999
e Veja Edição 1622 de 3/11/1999.

288
exercício de raciocínio e memorização típicos da acelerada nova geração,
assinala a IstoÉ on line23.

4.2 Cartografando as cenas


As histórias contêm uma atraente estrutura de jogo, com o desafio de
capturar mais e mais monstrinhos, embora o desenho não dê o reconhecimento
visual ao verdadeiro fenômeno, que é o jogo. O que movimenta os enredos
dos desenhos são as lutas entre os Pokémon. Isso nos leva a pensar que as
crianças, principalmente as menores, estão tendo a possibilidade de entrar
em contato com seus “conflitos”, pois as lutas atualizam algumas cenas de
vida que vão ao encontro dessas questões.
Os enredos das expedições Pokémon enaltecem valores positivos, como
responsabilidade, cooperação e respeito pelos mais velhos. Eles mostram
alguns pontos básicos da cultura do país de origem dos personagens, o
Japão, salienta a Nova Escola on line24.
Atualmente, há 216 Pokémon, que têm capacidade de evolução. Qualquer
criança com mais de 10 anos pode tor­nar-se um treinador de Pokémon.
Para isso, deve capturá-los, treiná-los e colocá-los para lutar. Terminado o
combate, se o monstrinho derrotado é selvagem – não possui treinador – ele
pode ser capturado pelo vencedor, diz a revista Nova Escola on line.
As figuras centrais do enredo, os meninos Ash e Brock e a menina
Misty, cuidam bem dos pequenos monstros. Além disso, os três resolvem
seus problemas juntos, com espírito de equipe. Embora tenham lutas, as
histórias são pouco violentas. Os monstros não morrem nas batalhas25,
apenas desmaiam e são conduzidos pelos treinadores para um Centro
Pokémon para se reabilitarem. Este aspecto mostra a importância do
desenvolvimento de hábitos e habilidades bem como a influência da
interação e troca entre grupos, e isso envolve socialização.

23. Isto é on line, nº 1585, http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1585/comportamento//1585quale.


htm
24. http://www.uol.com.br/novaescola/ edição março de 2000.
25. Como acontecia com os oponentes dos heróis do passado (Power Rangers, Cavaleiros do Zodíaco,
Tamagochi).

289
Cada cidade do Universo Pokémon possui um centro de reabilitação, e
todos eles estão interligados por redes de computadores e são atendidos
pelas enfermeiras Joys (todas idênticas).
Ao vencer uma luta difícil, um Pokémon pode evoluir, mas não há
regras fixas para que isso aconteça. Depois da evolução, ele ganha
mais força, outras formas e um novo nome. As pessoas desse universo
estão envolvidas com um único objetivo: capturar mais e mais bichos.
Para começar a caçada, é preciso possuir pelo menos um, já que só um
Pokémon pode lutar com outro. Quem pega um deles guarda-o numa
bola especial, a pokébola. Na hora de lutar, o dono abre a pokébola e de
lá sai o monstro, que só combate bem se for treinado. Por isso, não basta
pegá-lo; é preciso cuidar dele e proporcionar o desenvolvimento de suas
habilidades através de constantes treinamentos.
O herói é Ash, um garoto que quer se tornar o maior treinador de
Pokémons do mundo. Seu primeiro Pokémon é justamente Pikachu – o
preferido da criançada. Episódio após episódio, ele acumula Pokémons.
Pokémon que é Pokémon não mata nem fere – só tira o rival de
circulação. Quando consegue tal proeza, cada um por meio de uma
habilidade própria (música, jato de água, raio) diz-se que ele evoluiu, ou
seja, ficou mais experiente e poderoso. Assim, não é tão fácil rotulá-los
como influências negativas, por isso não é fácil dizer que não se aprende
nada com o desenho animado.
Existem 15 espécies de Pokémons26 classificados de acordo com o
tipo, a habilidade, a força, a capacidade de defesa e a agilidade. Quanto
ao tipo, observa-se que existem várias categorizações. Entre elas, destaco:
plantas venenosas, fogo, insetos, água, veneno, aquático, terrestre, pedra,
psíquico, gelo, voador, terrestre, gelo/psíquico, elétrico. Cada um deles
possui um jeito diferente de ser.

4.3 Sobre as observações, desenhos e entrevistas com crianças


Utilizei inicialmente a coleção de desenhos do concurso Desenhe
um Pokémon, uma vez que o material recolhido foi entregue
espontaneamente pelas crianças participantes.
26. Dados obtidos no álbum ilustrado Pokémon temos que pegar. Ed. Panini, Osasco, São Paulo,1999.

290
Fui autorizada pelos promotores do concurso a ter acesso ao
material bem como a publicá-lo. Realizei um levantamento de dados:
mapeei a idade das crianças, o sexo, o Pokémon desenhado. Foram
entregues 218 desenhos, 185 de meninos e 33 de meninas, com idades
entre 5 e 21 anos. Nesses desenhos apareceram 72 Pokémons dos 150
existentes e o que apareceu mais vezes, tanto nos desenhos de ambos
os sexos, foi o Pikachu. A faixa etária das crianças que participaram
do concurso está entre 8 e 12 anos e o maior número de desenhos
provém de crianças com 9 anos de idade, a maioria delas estuda numa
escola particular que fica nas imediações da vídeo-locadora, situada
no centro da cidade de Pelotas–RS.
A partir desses dados, fiz a escolha da escola onde aconteceram as
observações bem como a das crianças que seriam entrevistadas (optei
por 10 crianças, 5 de cada sexo, e cada 2 na faixa etária entre 8 e 12
anos, uma vez que aqui se encontra a maior concentração de crianças
que participaram do concurso).
As observações aconteceram no pátio da escola, nos recreios, no
horário de entrada e durante a saída, diariamente, nos meses de novembro
e dezembro de 1999, bem como em fevereiro e março de 200027.
Inicialmente, procurei observar as crianças sem que soubessem
do meu interesse pelo tema. Nos meses de novembro e dezembro já
colecionavam o álbum de figurinhas Pokémon, trocavam figuras entre
si e “batiam” (uma espécie de jogo, uma batalha em que participavam
duas crianças que sempre estavam rodeadas por outras). Essa disputa
acontecia no chão ou no muro da escola. Inicialmente, algumas figurinhas
eram colocadas viradas e escolhiam quem iniciaria o jogo. Geralmente,
utilizavam o recurso de par ou ímpar. O objetivo final era desvirar o
máximo possível de figuras e se apropriar delas. Para isso, utilizavam
movimentos com a mão em forma de concha. As tentativas eram feitas
com rapidez e agilidade (o grupo de assistentes emitia opiniões e elogios
aos participantes). Pode-se perceber que este desafio promove interações
entre as crianças como também desenvolve habilidades psicomotoras.

27. As observações foram feitas até o dia 16 de dezembro e retornaram na segunda metade de
fevereiro em virtude das férias escolares.

291
Muitas crianças utilizavam essas figurinhas para compor outro álbum de
figurinhas, em conjunto, com os colegas.
Nos períodos de recreio, aconteciam lutas imaginárias, em que as
crianças faziam gestos e emitindo sons, como se fossem os Pokémons.
Traziam as revistas Pokémon Club e Pokémon Quadrinhos – liam em grupos,
comentavam sobre os episódios que haviam assistido às 11h e trocavam
opiniões sobre o que poderia acontecer no episódio do dia seguinte.
Predominavam, entre os grupos de crianças, brincadeiras que utilizavam
as batalhas com as super cartas Pokémon28. Como são? O lado da frente
mostra a imagem do Pokémon e o verso indica o tipo, sua capacidade de
força, de ataque, de defesa e de agilidade. O jogo é disputado por duas
pessoas, mas as estratégias e possibilidades são analisadas pelo grupo
de amigos que assistem ao combate. O jogo acontece assim: os dois
jogadores escolhem uma super carta, entre as que compõem as suas
coleções; feita a escolham, mostram-na para o rival; o passo seguinte é
decidir, através de par ou ímpar, quem iniciará o jogo. O vencedor desta
etapa avalia a situação e opta por uma das habilidades que seu Pokémon
possui. O jogador diz ao rival o tipo que está apostando na batalha, por
exemplo: o máximo de força. As cartas são analisadas e vence a batalha
a criança que possui a supercarta Pokémon que corresponde à regra
estabelecida; a carta perdedora é entregue ao rival vencedor.
Essa disputa exige que os jogadores conheçam as potencialidades de
cada Pokémon, como também promove o desenvolvimento da memória
visual, da capacidade de raciocínio rápido, bem como exige que a criança
faça escolhas entre as possibilidades que tem.
Também percebi que as crianças trocavam entre si as descobertas que
faziam sobre os esquemas e as senhas do game boy29, que jogavam em
suas casas, sozinhos ou com outros amigos. Às vezes, essas descobertas
eram trazidas anotadas e distribuídas aos colegas interessados no
assunto; outras vezes recitavam-nas (essas senhas são códigos compostos
por uma série de letras e números) e os colegas pegavam seus cadernos e
faziam as devidas anotações.
28. Dados obtidos no álbum ilustrado Pokémon temos que pegar. Ed. Panini, Osasco, São Paulo,1999.
29. É um jogo da Nintendo e possui diversas versões. Pode ser comprado individualmente, ou baixado
pela internet e instalado no microcomputador.

292
As entrevistas foram realizadas informalmente, através de conversas
individuais ou em grupos. Constatei que a meta das crianças é colecionar,
elas adoram games Pokémon, e convivem várias horas do dia, quando
estão fora da escola, com esse universo virtual.
Elas citaram um rol de nomes e características dos Pokémons - todos
“são do bem” e têm sentimentos humanos, como o medo e a raiva. Cada
Pokémon tem um poder diferente do outro e existem muitas regras para
as lutas valerem. Uma delas é nunca usar um monstrinho de água contra
outro com poderes de fogo, contam as crianças. Uma delas colocou a
pergunta: a água não apaga o fogo? Então o Pokémon da água é mais
forte que o do fogo e aí a batalha se torna uma covardia!
Também afirmaram que lêem muito sobre o tema, compram todas
as revistas Pokémon Club e Pokémon Quadrinhos30, e citavam muitas
informações lidas em revistas, bem como as que obtinham na web (a
maioria navegava na internet).
Quando indaguei por que participaram do concurso, responderam
que adoram os Pokémons, assistem os desenhos diariamente e que
queriam ganhar o concurso. Todas elas referiam que gostaram muito
de ver os seus desenhos e os das outras crianças expostos no painel na
vídeo-locadora (na semana subseqüente à entrega dos desenhos, todos
eles ficavam dispostos num painel). Algumas crianças comentaram que
inventaram detalhes e mudaram outros ao desenharem seus Pokémons
(a maioria dos participantes desenhou foi o Pikachu, embora outros 72,
dos 150 existentes, tenham sido contemplados).
Ao assistir a série de desenhos animados, que vai ao ar pela TV,
observei que os enredos usam uma linguagem articulada de forma
veloz, as músicas são atraentes e movimentadas, e, no final de cada
episódio, vai ao ar um PokéRap, cujo objetivo é desafiar as crianças para
memorizarem os nomes dos Pokémons. O tom é o de aventura, em que o
desconhecido incita o desenvolvimento da autonomia, da auto-estima e
a busca incessante pelo poder.
30. Ambas da Editora Conrad, São Paulo. A Pokémon Club informa características de Pokémons, dicas
de jogos, mostra lançamentos de produtos e propõe jogos de memória, caça-palavras, labirintos,
liga pontos. Além disso, cada edição apresenta um capítulo de um episódio. A Pokémon Quadrinhos
ensina a “arte Pokémon” que é um curso rápido de desenhos e cada revista mostra um capítulo de um
episódio seqüencial. Sempre fica em aberto: o que vai acontecer?

293
Os episódios seguem um modelo de novela seqüencial (o telespectador
fica curioso para saber o que vai acontecer no próximo episódio) e os
heróis sempre andam em grupos.
Dessa forma, pode-se dizer que o grupo assume a função de um
dispositivo de produção de subjetividade; as inter-relações grupais
acionam, “cutucam” afetos e aproximam-nos de novas situações, que
podem intensificar algumas sensações ou deslocá-las de um lugar ao
outro. O estar entre e frente outros – pessoas, afetos e inter-relações –
propicia a configuração de novos “universos de referência”, outros jeitos
de ser e de sentir. Esse hibridismo dá oportunidade a que aconteçam
subjetivações. Sempre há linhas de subjetivação que flutuam dependendo
da composição das forças que estão em jogo.
O dispositivo grupal tensiona, movimenta, desloca para outro lugar,
provoca outras conexões e ao mesmo tempo produz novas. Tais conexões
não obedecem a nenhum plano pré-determinado; elas se fazem num
campo de afecção onde as partes podem se juntar a outras sem com
isso constituir um todo. O dispositivo é sempre referido a um regime
discursivo que opera em múltiplos sentidos. Cabe, então, perguntar qual
regime e com quais sentidos tal dispositivo se produz? (Barros, 1996).

5.0 Quais desafios se instalam para a psicologia da educação?


O desafio que se coloca é um convite para conhecermos mais
as crianças, suas subjetividades, seus modos de subjetivação, suas
habilidades, seus hábitos e potencialidades perceptivas, ou seja, as novas
composições de seus “Universos de referência”.
Talvez necessitemos desenvolver novos modos de olhar, olhares-
vídeo, como afirma Guattari (1992), não priorizando as causas, mas
sim, os trajetos, os movimentos daquilo que estamos observando. Trata-
se de analisar como acontecem as ações/invenções/criações dessas
crianças para que, dessa forma, possamos propor uma intervenção que
se aproxime das necessidades que a realidade apresenta.
Talvez a observação do comportamento cotidiano das crianças tenha
mais a nos ensinar do que muitas das teorias e técnicas reunidas.

294
Essa afirmação não se refere às visões psicologistas e
desenvolvimentistas da Psicologia, mas sim, ao modo através do qual as
crianças interagem. Elas têm um jeito singular de deslizar entre amigos, falas,
o que permite passagens de fluxos e a invenção novos modos de ser.
As crianças apresentam “sintomas” (falam em Pokémon o tempo
todo, reproduzem gestos, colecionam figurinhas, trocam revistas entre
si e senhas dos jogos entre os colegas, etc). Sintomas que podem ser
analisados como indicadores dos percursos que a criança traça e com
eles inventa habilidades e modos de relação consigo e com os outros.
As observações e as entrevistas realizadas na pesquisa, bem como
os dados coletados, cartografam movimentos de linguagens, de hábitos,
de rupturas e os efeitos nos modos de produção da subjetividade e de
subjetivação da infância, na atualidade. Quando as crianças inventam
jogos, estratégias de ações e compartilham suas aprendizagens elas
apresentam os caminhos através dos quais estão constituindo seus
“Universos de referência”, mas não se trata só de algo da ordem da
cognição, e sim, de um fenômeno de intensidade existencial.
A aprendizagem é algo que possibilita a invenção e a constituição
de outros estilos de vida (de sentir como me encontro com o Outro quais
são os afetos? Quais são as afecções? Quais são as possibilidades de
experimentação?) (DELEUZE, 1998).
Os grupos de crianças desta pesquisa mostram novos estilos de
relações, outros modos de vida, descobrem coisas e trocam novidades. E
isso, também, é aprendizagem.
Um dispositivo pedagógico age em qualquer lugar, transforma
relações entre as pessoas, no meio onde interage, bem como nas que
o sujeito estabelece consigo mesmo (LARROSA, 1997). Os efeitos
dessas conexões e as sintonias com os novos dispositivos tecnológicos
produzem uma “subjetivid@de high.tec” com outros contornos e
plasticidades. Uma subjetividade em mutação? Que tem a ver com os
desejos, as aprendizagens e os devires?
O “caso Pokémon” é um dispositivo pedagógico, pois faz com que as
crianças deslizem, vejam, falem e tracem mapas como também desloca

295
os adultos, porque o devir- infância está em constante processo de
atualização – e isso produz subjetivações.
A criança aprende a construir conhecimentos através das relações
com e entre os grupos, que servem como potencializadores de linguagens
que expressam a subjetividade, subjetividade essa que se compõe no
cruzamento de múltiplos “Universos de referência”, não só intrapsíquicos,
subjetividade que é impermanente e que pede passagem para outros
fluxos, outros processos, que se transmutam, se perplicam e se deslocam.
São linguagens em construção.

6.0 Sobre a pesquisa atual: as tecnologias digitais como dispositi-


vos de produção de subjetividade e de aprendizagem
O caso Pokémon foi a gênese de minhas pesquisas sobre a mídia como
um dispositivo educativo. Sendo assim, em 2007 retorno ao campo de
pesquisa propondo uma investigação/intervenção com os mesmos alunos
da pesquisa anterior que ainda permanecem no Colégio Gonzaga.
Objetivamos agora:
1- realizar um diagnóstico (um estudo piloto) utilizando um
inventário investigativo (questões objetivas que visam conhecer como
os investigados utilizam os meios digitais, as linguagens utilizadas e as
áreas de interesse, entre outros); além disso, serão realizadas entrevistas
individuais e grupais, tendo como técnica investigativa os grupos
operativos de aprendizagem (RIVIÉRE, 1986) que serão filmados, bem
como pesquisar os Blog, Orkut, Fotologs, dos sujeitos que usam esses
recursos, com a intenção de mapear o perfil dos sujeitos investigados,
observando: como escrevem sobre si? Quais seus interesses? Que
linguagens usam nos contextos virtuais; o que desperta sua curiosidade
para aprender?
2- analisar os dados, apresentar os resultados aos sujeitos envolvidos,
implementando na escola pesquisada um projeto que contemple os
interesses dos alunos e professores na produção do conhecimento
considerando a linguagem utilizada na rede, com as proposições de
aprendizagem dos conteúdos curriculares trabalhados nas escolas;

296
3- planejar, implementar e avaliar uma intervenção com docentes e
alunos, oferecendo elementos de reflexão e instrumentalização para a
inclusão das ferramentas da internet, no cotidiano da sala de aula, a
partir de ações teórico-práticas;
4- aprofundar as investigações nessa área, entendendo que esta
é uma maneira de contribuir para propor outras formas de ensino
contemporâneas que estão implicadas no processo de formação docente,
como também através dos dados obtidos sobre o comportamento
adolescente na interação com a internet;
5- descrever a cartografia da subjetividade e os modos de subjetivação
desta etapa do desenvolvimento, ou seja: adolescentes do início do
século XXI que estão desenvolvendo suas aprendizagens e interações
sociais hibridados por dispositivos tecnológicos.
6- realizar e contribuir com o refinamento da utilização da internet –
modos de intervenção pedagógica – que se tem mostrado extremamente
importante e promissor na luta pela melhoria da educação brasileira.

Para maior elucidação da proposta de ação, dividiu-se a pesquisa em


três momentos – a realização de um diagnóstico, a elaboração de um
plano de intervenção, a execução da proposta de intervenção junto à
escola e a avaliação de toda a experiência:
1- Fase de diagnóstico: Para colher dados a respeito do uso da internet
será aplicado um inventário, um questionário e, posteriormente, serão feitas
entrevistas com os professores e os alunos das disciplinas de Geografia,
História, língua portuguesa e artes. As entrevistas semi-estruturadas serão
realizadas na própria escola e, se possível, gravadas em áudio; serão também
executadas observações (e, se permitido, gravações em vídeo) de uma média
de seis reuniões, com os respectivos professores, (ou até a saturação dos
dados - MINAYO, 1993) com o objetivo de mapear/desenhar detalhadamente
a maneira como são utilizadas, planejadas e implementadas as ações de
aprendizagens que envolvem a internet por professores e alunos.
Além dos questionários aplicados individualmente nos alunos e
professores, sob forma de entrevista semi-estruturada, faremos a análise

297
dos blogs, fotologs e orkuts de todos os sujeitos envolvidos na investigação
que forem usuário desses meios. Tal procedimento servirá para mapear
os hábitos de escrita, os interesses e os temas contemporâneos que
despertam a sua curiosidade.
2- Fase de análise dos dados obtidos no diagnóstico: após realizarmos
as análises e as comparações de dados, com auxílio de programas
estatísticos, bem como a análise cartográfica (SPEROTT0/PERUZZO, 2002)
dos modos de subjetivação, será elaborado um relatório, um mapa, com
os dados coletados em campo, assim como, elaboraremos uma proposta
de intervenção pedagógica, que será construída junto com os professores
das respectivas disciplinas, de forma que haja uma aproximação entre as
culturas dos adolescentes e dos professores convergindo os seus interesses
com as necessidades de aprendizagens que constam na grade curricular.
Os adolescentes contemporâneos têm como característica “uma
disposição multitarefa”. Eles respondem as mensagens do celular, ouvem
músicas no Ipod, assistem TV e falam com os amigos no messenger
– tudo ao mesmo tempo – que é uma característica típica das novas
gerações, isso lhes confere uma elaboração cognitiva muito rápida. Tais
considerações mostram que eles estão sendo criados numa sociedade
que não é só real mas também digital.
Por isso, educar hoje, é também educar para a mídia, daí a urgência
de que os modos de ensino e de aprendizagem se integrarem a essa
realidade, pois os equipamentos digitais não são mais meros receptores
de informação, mas instrumentos de partilha e elaboração de novas
aprendizagens (RIVORTELLO, 2007).
3- Fase de implementação e acompanhamento da intervenção: a
proposta de intervenção será discutida com a administração da escola,
supervisão pedagógica, e com os professores envolvidos na fase de
diagnóstico – professores das disciplinas de geografia, história, língua
portuguesa e artes, pois para ser uma intervenção eficaz ela deverá ser
realizada em equipe para que seja possível estabelecer um diálogo entre
educadores e educandos.
Estima-se que a intervenção tenha a duração de um ano letivo com
observações quinzenais em sala de aula, além da realização de grupos

298
operativos de aprendizagem, onde estarão presentes alunos e professores
mais um ano para implementar o plano de intervenção. A estimativa de
duração do projeto é de trinta e seis (36) meses, sendo que utilizaremos
dezoito (18) a vinte e quatro (24) meses para entrarem em contato com os
sujeitos de nossa pesquisa dentro do período escolar. As entrevistas serão
semi-estruturadas. Por quê? Pela possibilidade de integrar pesquisadores
e sujeitos de forma interativa. Os dados serão complementados por
meio de intervenções grupais, com a técnica de grupos operativos de
aprendizagem (PÍCHON-RIVIÉRE, 1986) e vídeo-psicodrama (PENTEADO,
2002) com alunos e professores, tais recursos possibilitarão interações de
aprendizagens grupais presenciais que oportunizam subjetivações.
A interação com a situação estudada por meio da observação
participante se justifica porque ao interatuar com alunos e professores,
seremos afetados pelo processo de pesquisa (ANDRÉ, 1995). A escolha
da observação participante, que acontecerá durante todo o processo,
justifica-se pela necessidade de acompanharmos, no contexto escolar,
a prática desses jovens, pois, como afirmam Ludke e André (1986, p.26),
“a observação ocupa um lugar privilegiado nas novas abordagens de
pesquisa educacional. (...) a observação possibilita um contato pessoal e
estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado, o que apresenta
uma série de vantagens”.
O intuito caracteriza-se também por auxiliar aos docentes na
construção coletiva de alternativas didáticas para trabalhar com o
auxílio do computador, integrando-o nas diversas áreas de produção
do conhecimento. A pesquisa previu flexibilidade no planejamento e na
execução das ações, que foram permanentemente (re) avaliadas e (re)
significadas, de acordo com as reações dos sujeitos investigados.
Mais especificamente, o trabalho pretende, inicialmente, diagnosticar
o uso destas tecnologias digitais entre alunos e professores, analisar os
dados e propor intervenções com alunos e professores. Utilizando, como
objeto intermediário (MORENO, 1997), as ferramentas tecnológicas
digitais utilizadas por alunos e professores (no ambiente escolar).
Estes procedimentos de pesquisa implicam maiores conexões entre as
culturas dos alunos, professores e pesquisadores.

299
Pretendemos promover um processo contínuo de reflexão na e sobre a
própria ação pedagógica de aprendizagem utilizando a internet - modos
de intervenção pedagógica. Estabeleremos conversas pelo msn com os
sujeitos,bem como observaremos seus orkuts, os blogs e os fotologs dos
adolescentes.
Existem várias pesquisas desenvolvidas no Brasil que enfocam esta
temática que poderão servir como subsídios teóricos para auxiliar na
problematização e análise dos dados coletados no campo empírico.
Algumas pesquisas anteriores realizadas no Brasil e no exterior (KASTRUP,
1995; LOPES, 2005; SCHLEMMER, 2005; ROMERO, 2005; PORTO, 2005)
apontam a relevância de investigações, na área da Educação, que
problematizem as novas possibilidades de aprendizagens e linguagens de
inter-relações que se constroem dentro e fora das instituições escolares,
pois ambas estão intrinsecamente ligadas.

7.0 Algumas constatações preliminares


Neste momento já aplicamos e analisamos alguns questionários para
realizar um estudo piloto. As análises nos mostram que os adolescentes
não são apenas ouvintes ou expectadores. Pois, fazem parte da geração
que mantém comunicações e interações síncronas, poderiam ser
chamados de “nativos digitais”, pois nasceram nos anos 90 período de
inserção da internet no Brasil.
Eles assistem bastante televisão, uma mídia que opera de modo
assíncrono. Por outro lado, a utilização da internet possibilita interações
síncronas, com interações instantâneas com trocas de informações e
de habilidades.
As análises dos dados mostram que os sujeitos executam múltiplas
tarefas ao mesmo tempo; operando no MSN, visitando orkuts, jogando
na internet como também realizando pesquisas.
Há uma tendência de substituir a biblioteca física das escolas por buscas
de informações na internet para realizarem suas pesquisas escolares.
Essa outra maneira de buscar informações possibilita a inserção de links,
de imagens e de sons nos pesquisas escolares – quando entregues em
arquivo digital. Observamos a emergência de novas habilidades cognitivas,

300
bem como a rapidez no processamento de informações imagéticas.
Outra característica é a interatividade e a interconectividade
oferecidas pelas tecnologias digitais, com pensamento rápido e
composições cognitivas outras. Trata-se de uma subjetividade rizomática
com linguagens polifônicas.
A partir deste contexto percebemos que a instituição escolar necessita
inserir na sua prática didático-pedagógica essa lógica de ensino e de
aprendizagem instituída por meio das tecnologias midiáticas. Sabemos,
porém, através de várias pesquisas, que muitas instituições educativas
não possuem recursos tecnológicos para operar em situações de ensino
e de aprendizagem.
Sabe-se hoje, através de pesquisas, que grande parte das escolas
públicas no Brasil não possuem laboratórios de informática, nem
conexões a cabo de internet. Muitas vezes o maior recurso midiático
é uma televisão e um dvd. Embora muitos alunos das escolas públicas
brasileiras não tenham um microcomputador em casa, eles freqüentam
lan houses e sabem operar com esse dispositivo. As novas gerações
interagem facilmente com esses dispositivos tecnológicos.

8.0 Agenciando algumas problematizações


Nós, os educadores contemporâneos, somos forasteiros em uma nova
cultura, oriundos de uma geração que viveu a infância e a adolescência
sob a influência da televisão. Mas, os adolescentes nasceram num
meio social e cultural onde as tecnologias midiáticas oferecem outras
possibilidades de interações e de aprendizagens.
As mudanças de hábitos, dos modos de aprender e de interagir com
as tecnologias ainda assustam muitos educadores. Teme-se chegar perto
de um microcomputador; como também não é incomum que muitos
professores ainda não possuírem e-mails.
Ainda há resistência para os professores se familiarizarem com as
tecnologias; continuam trabalhando em sala de aula ancorados na lógica
da linearidade, de verdades soberanas, e com muita resistência ao novo.
Diante disso, volto a afirmar que o “caso Pokemon “funcionou como
um dispositivo educativo”, para os sujeitos envolvidos nas pesquisas,

301
como também produziu modos de subjetivação. Um dispositivo, uma
mídia, que produziu efeitos no processo de socialização, desenvolveu
habilidades cognitivas e perceptivas nas “crianças/adolescentes”
tendo como efeitos múltiplas possibilidades de aprendizagem, de
experimentações, de invenções e de explorações de diferentes meios.
Constituindo subjetividades.
Desejamos que os resultados dessa pesquisa possam servir como
um dispositivo educativo que produza “conversas” entre os educadores.
Conversas que possibilitem a criação modos de intervenção didático-
pedagógicos que transitem com e entre as mídias contemporâneas.
Talvez, necessitemos desenvolver “olhares vídeos”, o que seria algo
bastante singular num mundo engendrado entre dispositivos midiáticos.

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303
A contribuição da psicologia para a
mídia de resistência

Coordenação
Noeli Godoy

305
A contribuição da psicologia para a
mídia de resistência

Heitor Reis

A contribuição da psicologia para a mídia de resistência


Em função da inexperiência em lidar com sua própria realidade
interior e exterior, cada ser humano traz em si a possibilidade de acertar
e de errar, e prejudica ou beneficia a si mesmo e a outrem, consciente
ou inconscientemente. O processo dialético individual e coletivo é fruto
de experiências que servirão de base para comportamentos futuros,
portanto, a visão do que seja bem e mal não existirá, caso consideremos
tudo parte de nossa aprendizagem, a ser registrada em nossa genética ou,
como acreditam os religiosos, em nosso possível espírito eterno. Contudo,
limitando nosso foco a um espaço de tempo relativo, percebemos que
nossos atos conduzem a resultados desejáveis ou não, traduzidos por
alguns em termos de bondade e malignidade, implícitos ao ser humano
e a tudo o que ele constrói.
Assim, temos os erros e acertos intrínsecos ao Estado, temos os erros
e acertos intrínsecos ao capitalismo e ao socialismo. Disso decorre que
o Estado se torna instrumento de cidadania ou de alienação, em sua
pior face, a serviço da ditadura do grande capital ou da ditadura dos
líderes do proletariado. Também podemos perceber os erros e acertos
intrínsecos à mídia. Constatamos, então, que há uma distância enorme
entre a teoria e a prática de qualquer ideologia, doutrina, norma ou
religião. Tentando caminhar do real para o ideal, estamos todos nós, a
Psicologia e suas várias áreas de atuação, das quais podemos destacar
a Psicologia social e a Psicologia política. Pesquisando, descobri que
a Psicologia social “é o estudo do condicionamento que os processos
mentais impõem à vida social do homem, ao mesmo tempo em que as
diversas formas da convivência social influem na manifestação concreta
dos mesmos”. Quanto à Psicologia política, fica claro que “as ações
políticas são ações de seres humanos. O estudo das causas diretas dessas
ações insere-se no campo da Psicologia. Todas as outras ações sociais

307
operam como variáveis que afetam indiretamente as ações políticas.
O psicólogo não necessita de tais intermediações. Ele está em contato
direto com a conexão central da cadeia de eventos, entre as condições
antecedentes e as ações resultantes.”
A Psicologia, de forma geral, e a Psicologia social e a Psicologia política,
em especial, não se omitem ao tentar encontrar as causas dos problemas
enfrentados pela nação e pela comunidade, para tratá-los, visando a
produzir resultados melhores que os atuais. Não é o que Parece é tema
de uma série de vídeos produzidos pelo Conselho Federal de Psicologia,
que pode ser aplicado à questão social e à política, dentre as quais, o
sistema comunicacional do País. O Estado, a República, a democracia e
a mídia, em termos essenciais, “não são nada do que parecem”, nem do
que deveriam ou dizem ser. Estão muito longe do ideal, para atender aos
interesses reais da maioria da população.
A mídia contribui para a formação e a deformação da subjetividade das
pessoas desde a infância, fazendo da vida uma mercadoria e reduzindo
seu valor a um objeto de consumo nas prateleiras de um supermercado.
A mídia visa, primeiramente, ao lucro, e não à verdade dos fatos ou à
sua análise intensa. A notícia é fruto de um filtro, cuja porosidade é
permeada pelo equilíbrio entre a verdade e o interesse comercial dos
anunciantes, os interesses particulares dos políticos, dos financiadores,
dos proprietários dos veículos de comunicação. Produz, assim, uma
verdade mais conveniente aos detentores do poder econômico. Dessa
forma, é criada uma realidade virtual em oposição à realidade concreta,
tanto individual quanto coletiva. Em síntese, raras são as pessoas que
conseguem se livrar da matrix nossa de cada dia.
O planejamento, que é a reflexão, o desenvolvimento, que é a ação, o
controle, que é a verificação daquilo que foi feito após comparação com
o planejado, e a correção, como meio de transformação da realidade
interna e externa, precisam ser implementados. (Vide Qualidade Total,
PDCA – plan, do, check, action.) A única revolução possível começa
dentro de mim. Esperar que a sociedade evolua e que venha a me
influenciar positivamente, implica abdicar de assumirmos o controle
pessoal do próprio destino. Nossa subjetividade é construída com base

308
nas informações que recebemos sob a forma de conceitos utilizados para
a comunicação pessoal ou pela mídia. A reflexão é uma forma eficaz
de aprimorar a informação recebida. Sem uma nova conceituação, não
haverá revolução. A revolução conceitual antecede a revolução de fato,
especialmente se desejarmos que ela seja pacífica. Sem a incorporação
e o aprofundamento de novos conceitos também não haverá revolução.
O Estado Democrático de direito é um; o Estado Democrático de fato
é outro. O Estado, que deveria ser uma República, foi privatizado. A
República se tornou uma “reparticular”. O Estado tornou-se plutocrático
(governo dos ricos) e cleptocrático (governo de ladrões).
É importante reconhecer que há dificuldade de a maioria silenciosa
se organizar para exercer poder político sobre a minoria que a domina. As
rádios comunitárias estão em uma posição privilegiada nesse processo de
resistência ao pensamento único, e oferecem, aos que querem construir
um país melhor, um meio de comunicação para interagir com os excluídos
da concentração da riqueza nacional. A rádio comunitária é mídia de
resistência por excelência! Já temos alguns exemplos promissores de quem
está rompendo com a matrix nossa de cada dia. Podemos constatar, sem
muito esforço, o protagonismo dos afro-brasileiros nesse processo. As
pessoas dos bairros pobres, das favelas, resistem e instalam suas rádios
comunitárias na base da desobediência civil. E a grande imprensa noticia que
os aeroportos tiveram interferência em seus sistemas de transmissão pelas
rádios comunitárias, mas não noticiam que o aeroporto Santos Dumont,
por exemplo, ficou quinze minutos sem operar em função da interferência
dos equipamentos da TV Globo. A construção de uma rede de comunicação
popular é fator relevante para a implantação de uma verdadeira cidadania,
de uma verdadeira democracia e de uma verdadeira república no País. A
apelação de mandado de segurança 1999.01.00.013489-4, oriundo do
Maranhão, recebeu sentença do TRF1, em 11/10/2004, fundamentada
na seguinte argumentação: “A comunicação de massa desenvolveu-
se no Brasil, assim como nos demais países da América Latina, durante
os regimes militares, voltados para a política de integração nacional e a
prevenção dos movimentos subversivos da ordem então estabelecida, o
que facilitou a formação de oligopólios em detrimento da diversificação,

309
por meio da instituição de veículos locais e regionais que se tinham como
de difícil controle. Têm tal aspiração, no artigo 70, da Lei nº 4.117/62, com
redação dada pelo Decreto Lei n° 236, de 1967: “Constitui crime punível
com pena de um a dois anos, aumentada na metade se houver dano a
terceiros, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância
do disposto nesta Lei e nos regulamentos”.
Os serviços de rádios comunitárias ainda não conseguiram romper tais
amarras, prova é a timidez com que a Lei nº 9.612/98 trata toda a matéria,
a ponto de limitar a audiência das rádios a 25 watts e a cobertura restrita
à comunidade de um bairro ou vila, quando sua finalidade maior é atender
as populações rurais de extensos Municípios. Sob vocação do poder de
polícia, o Estado, que se omite do dever de prestar os serviços, manda lacrar
as estações instaladas pelos comunitários municipais, com a justificativa
que representam risco para a navegação aérea, ainda que não se tenha
notícia de qualquer queda de aeronave provocada por uma das milhares de
rádios que funcionam no Brasil sem autorização formal do Ministério das
Comunicações. (...) As rádios comunitárias são a esperança de colocação
dos serviços públicos de comunicação de massa na direção correta.”
O objetivo da mídia de resistência, segundo João Pedro Stédile,
sintetizando a tese defendida pelo movimento pela democratização das
comunicações:
“Colocar energia na construção e no desenvolvimento dos
meios de comunicação de massa próprios, como rádios e televisões
comunitários, jornais, revistas, programas de comunicação de todo
tipo, sob o auspício dos movimentos e organizações populares, para
enfrentar o verdadeiro oligopólio das comunicações, sob controle da
classe dominante brasileira”. (MST Informa, Letra Viva, 23/02/2007).
A Abraço Rio Grande do Sul aprovou um manifesto contra a ditadura
da mídia nacional, que diz: “combater a informação deturpada dos
opressores com a contra-informação nas mãos dos oprimidos”.
[http://redeabraco.org/rede/manifesto2.html; http://www.mst.org.br/
mst/pagina.php?cd=2419 ]
Qual a contribuição que o Conselho Federal e os Conselhos Regionais
de Psicologia podem dar à mídia de resistência?

310
Antes de responder a essa questão, é fundamental reconhecer que a
categoria dos psicólogos tem sido uma das mais atuantes na luta pela
democratização da comunicação de que nós, das rádios comunitárias,
somos testemunhas. No entanto, diante da gigantesca dimensão de
nossos adversários, estamos ainda nos primeiros passos dessa caminhada,
que somente nos levará ao destino que almejamos caso caminhemos
junto a outras categorias e movimentos. A resposta é a mesma que
poderia ser dada também aos demais conselhos profissionais, sindicatos
de classe, movimentos populares e organizações não governamentais,
em síntese, a toda a sociedade, sem o que jamais reverteremos o
processo de dominação ora existente. Basicamente, isso será feito ao
se reconhecer e enfrentar as causas dos grandes problemas nacionais,
dentro das limitações que lhe são impostas ou superando-as na medida
do possível. A mídia é uma das maiores, já que é sustentada por lados
mais profundos do poder estabelecido. Assim é que poderemos superar
barreiras e buscar a democratização das comunicações. Essas propostas
devem ser analisadas, considerando-se a limitação de cada entidade
ou profissional da Psicologia, realizando cada um o que for possível.
Plagiando Stédile, e apenas alterando o sujeito de sua frase:
O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia
precisam colocar mais energia na construção do desenvolvimento de
meios próprios de comunicação de massa, como rádios e televisões
comunitárias, jornais, revistas e programas de comunicação de todo
tipo, sob o auspício dos movimentos e organizações populares, para
enfrentar o verdadeiro oligopólio das comunicações sob controle da
classe dominante brasileira.

Outras propostas:
• Reconhecer publicamente a existência de uma classe dominante
no País e revisar o conceito de que estamos em uma democracia,
que é defendido intransigentemente pela mídia e pelo Estado
privatizado por uma minoria;
• Reconhecer e contribuir para que a população incorpore a
consciência de que estamos numa ditadura dos ricos sobre os

311
pobres, dos brancos sobre os negros, dos homens sobre as mulheres,
da mídia sobre os leitores, ouvintes e telespectadores;
• Produzir condições para que se busque uma democracia plena
e verdadeira;
• Os Conselhos de Psicologia e os Sindicatos dos Psicólogos devem
aplicar na mídia de resistência a revisão dos conceitos tradicionais
tidos como absolutos até então, como fizeram com a reforma
psiquiátrica, um exemplo de como se pode mudar a realidade;
• O CFP deve reconhecer, como a Federação Nacional de Jornalistas
o fez, que, sem democratizar a comunicação, não haverá plena
democracia no Brasil;
• Reconhecer a existência de um oligopólio inconstitucional dos
meios de comunicação e tomar medidas práticas e objetivas no
sentido de combatê-lo;
• Reconhecer, como o faz a filósofa Marilena Chauí, que o Estado
brasileiro é autoritário e oligárquico;
• Aumentar concretamente seus esforços no sentido de patrocinar,
com outras organizações, o fortalecimento do Fórum Nacional
pela Democratização das Comunicações e da própria Abraço –
Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, ajudando,
assim, a agregar e qualificar as 15 mil rádios de baixa potência, e,
com outros meios populares de comunicação, formar uma grande
rede nacional a serviço da cidadania e da democracia de fato, e
não apenas de direito.

312
A contribuição da psicologia para a
mídia de resistência

Adilson Vaz Cabral Filho


Diante de todos os aspectos relacionados a essa pauta de democratização
das comunicações, é fundamental construir interfaces, não somente
entre campos de conhecimento como também entre diferentes atores.
Quando falamos de interfaces no envolvimento da sociedade, em relação
à apropriação social das tecnologias de informação e comunicação, de
certa forma, estamos invertendo a lógica corrente, a de “democratizar a
comunicação para democratizar a sociedade”, como se, para que a sociedade
se democratizasse, fosse preciso democratizar também a comunicação.
Na verdade, estamos construindo um campo para que a sociedade se
aproprie das políticas trabalhadas. Há toda a lógica de uma incidência
maior no campo institucional em termos de política de comunicação
que acaba. E por mais que se tenha, no discurso, a perspectiva do
estabelecimento de bandeiras a serem trabalhadas, na prática, as
interfaces, o envolvimento de pessoas e organizações, não acontece.
Um indicador interessante, por exemplo, é que poucos sabem onde
está a sede do Canal Comunitário da TV a cabo do Rio de Janeiro. O Canal
Comunitário do Rio de Janeiro, um dos mais abertos, mais acolhedores em
termos de pluralidade de participação e de programação, não trabalha
com uma lógica de conteúdo de produtores diferenciados que, por
exemplo, possam vir a acolher estudantes, professores e pesquisadores
de Psicologia, com suas mais variadas interfaces com os movimentos
sociais, com grupos sociais, com questões de gênero, etnias, enfim, das
várias questões que fazem parte dos cursos.
Cada um de nós é uma mídia em potencial. Cada um de nós é
apropriador potencial das tecnologias. E existem meios já estabelecidos.
Não estamos aqui construindo mais um projeto de lei, buscando uma via
institucional. Queremos nos apropriar dos meios que já estão disponíveis,
e existe todo um potencial de trabalho para além da institucionalidade
do CFP, da institucionalidade dos Conselhos Regionais, do qual cada
psicólogo pode se apropriar.

313
A proposta do Centro de Pesquisa e Produção em Comunicação e
Emergência – EMERGE é trabalhar a comunicação da emergência. Nesse
caso, a emergência não é aquele botão do elevador, mas um conceito
que trabalha basicamente com processos construídos de baixo para cima
e de forma adaptativa.
Quando falamos em comunicação comunitária, lembramos os anos 70,
80, e parece que esse é um conceito da moda, minimamente semelhante
à comunicação comunitária de três, quatro décadas passadas, mas com
algumas nuances diferentes em relação à realidade. E, como disse Heitor,
a realidade somos nós que fazemos, e, se é isso, não buscamos uma
realidade originária, colocada no lugar do elo perdido e que o movimento
social organizado busca atingir.
Não! Precisamos partir dos nossos processos, das realidades mais
simples, construindo a partir das realidades mais complexas de forma
adaptativa, o que significa trabalhar a partir das referências em termos
de qualidade de gestão, de programação, de produção, de articulações
com os movimentos sociais, no caso de iniciativa de comunicação
comunitária, tudo construído de maneira a incidir na formulação de
políticas públicas.
Então, o EMERGE começou, em um primeiro momento, com um
projeto de pesquisa cujo título diz muito do que quer: Comunicações
na era digital, apropriação social e processo regulatório. Destinava-se
a entender todo esse processo de transformação tecnológica digital no
Brasil, que está alguns anos à frente do de outros países, e não tão atrás
em termos de desenvolvimento, de compreensão e de processos. E, por
não estar tão atrás, temos todo o potencial para fazer uma diferença e
trabalhar os processos de TV e de rádio digital em função da apropriação
social do processo regulatório. Isso significa atuarmos para construir o
potencial a fim de estabelecer uma regulação, normas, usos, um marco
regulatório da efetivação da digitalização das comunicações a partir de
uma apropriação social para além da institucionalidade, para além de
instituições que constroem essa prática, que acaba fazendo com que
não tenhamos uma democratização tão plena como poderíamos ter. E
o fato de não termos um movimento de comunicação tão focado na

314
via institucional, trabalhando a partir das experiências construídas em
curso, pode imprimir transformações mais radicais.
A conclusão central desse processo (o projeto começou em meados de
2006, e terminou em meados de 2007) é que não adianta trabalharmos
reivindicando políticas que se traduzam em leis, decretos ou portarias
se nós não nos apropriarmos dos meios. E a TV a cabo comunitária do
Rio de Janeiro completará dez anos em 2008, e não temos o MST, por
exemplo, no Canal Comunitário, não temos as questões fundamentais,
não temos nem os grupos relacionados às questões fundamentais na
perspectiva de transformação social, apropriando-se das tecnologias,
produzindo conteúdos e fazendo, portanto, a diferença.
O movimento das rádios comunitárias vive um refluxo muito grande
no Rio de Janeiro e no Brasil. Existe um potencial, existe a disposição
de se trabalhar com rádios comunitárias, de se efetivar o meio rádio
nas comunidades, mas, diante de uma grande repressão e de uma forte
incidência da polícia federal, a partir da ANATEL, a partir do Ministério
das Comunicações, e, em última análise, da Presidência da República, há
a provocação do refluxo. Mas, o refluxo acontece em função do quê?
E entramos no tema da Mesa, a mídia de resistência.
Resistir é compreender o projeto que move a nossa prática, é
compreender a certeza do bem que esse projeto traz e ter confiança na
continuidade do processo. Devemos retomar o conceito de que a questão
não é democratizar a comunicação para democratizar a sociedade, mas
que a sociedade consciente da demanda por democracia é que promoverá
a democratização da comunicação.
E não adianta nos atermos a sindicatos, a partidos políticos, a
movimentos institucionalizados, pois esses sujeitos históricos estão dados
no tempo. Estamos trabalhando aqui com a perspectiva de outro sujeito
histórico que parta, por exemplo, do conjunto das rádios comunitárias,
um movimento que tem a possibilidade, efetivamente, de recolocar em
outros termos esse sistema opressor de comunicação.
Então, o movimento de rádios comunitárias tem a capacidade
de, a partir do local, do território que ocupa o conjunto dessas
rádios comunitárias, articular, com o seu Zé da padaria, que tem um

315
conhecimento, que tem um ofício, tem conteúdo para apresentar, para
veicular, para trocar com a tia Maria, que é professora e chega ao garoto
que está com mau rendimento na escola e o ajuda. Todas essas pessoas
têm que estar na rádio comunitária, produzindo conteúdo alternativo;
essas pessoas têm que estar, inclusive, discutindo políticas públicas de
comunicação. Isso é apropriação social do processo regulatório.
O processo regulatório é algo que vimos em nosso caminho
de pesquisa, até chegarmos à conclusão, em relação ao Estatuto
da Criança e do Adolescente, que é um processo socialmente
apropriado, todos sabem o que é, brigam por ele, mesmo podendo
haver divergências. Não se pensa em formar consenso consolidado,
mas em construir um processo que parta da estrutura e que seja
implantado de forma adaptativa. As adaptações serão trabalhadas
a partir das diferenças, e o processo será construído coletivamente.
Afinal de contas, somos nós que construímos a realidade. Então, o
ECA está inserido na sociedade de forma geral, porque passou por
uma discussão bastante ampla. Outro processo interessante foi o do
Código de Defesa do Consumidor.
Que capacidade temos de fazer, de uma futura potencial lei geral de
comunicação de massa, algo socialmente assimilável, a ponto de dizer
que queremos uma política diferente, que não queremos baixaria nos
meios de comunicação, que não queremos concentração dos meios
de comunicação, que não queremos concessão dada àqueles que são
ilegais dentro de um processo de concessão, que não queremos que o
Estado se ponha a pagar dívidas e a enriquecer os donos dos meios de
comunicação? Reivindicamos uma série de questões que precisam ser
assimiladas e apropriadas pela sociedade, e que passam pelo debate da
construção das políticas públicas de comunicação, até porque, quando
falamos de rádio digital e de TV digital e reivindicamos mais espaços, mais
canais, reivindicamos um processo que já deveria ter sido implantado nas
rádios comunitárias e também nos canais comunitários de TV a cabo,
que são subutilizados.
Então, estamos falando de um processo a ser construído, que passa
também pela perspectiva da emergência, mas essa possibilidade de

316
apropriação e de descentralização proporcionaria um potencial muito
grande de um caldo cultural mais amplo para o fortalecimento do debate
relativo à reivindicação de políticas públicas de comunicação.
Ao longo de quase duas décadas de Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação, tivemos alguns processos legais em
termos regulatórios, em que colhemos uma série de limitações. Embora
as leis existissem, abriram-se determinados flancos para a sociedade, e,
de certa forma, tivemos, a partir do momento em que a lei passou a
vigorar, que conviver com essas limitações. Em 1995, foi promulgada a lei
de TV a cabo, que determinava a existência de um canal comunitário por
Município. Temos, derivada disso, uma Associação Brasileira de Canais
Comunitários que, a despeito de defender a idéia de mais canais para
mais grupos, defende a idéia de que deve realmente existir um canal,
porque é mais fácil de administrar. É a lógica de garantir o que temos.
Queremos a ocupação do espectro eletromagnético, e não vou ter a
expectativa de que ele seja livre e aberto, mas que seja uma ocupação
democrática e isonômica do espectro eletromagnético que permita
mais canais, por grupos diferentes, com mais temas, quer dizer, que haja
diversidade e pluralidade dos meios. A discussão de canais comunitários
passa pela lógica de entrada no digital a partir da ocupação do espectro
eletromagnético disponível.
Não há leis de outros sistemas de TV por assinatura que usam satélite
em vez de cabo: Directv, Sky, TVA. Nesses sistemas, não temos canal
comunitário, canal universitário, porque não existe lei que obrigue a isso.
Claro que, para colocarmos o que são chamados tecnicamente de canais
básicos de utilização gratuita na lei, foi uma briga enorme. Foi um avanço
em relação ao que se tinha e muito pouco em relação à nossa demanda
de produção. A crítica, a avaliação, precisa ser completa. Essa demanda
de produção, inclusive, não está presente no canal comunitário, que
possui uma outra lógica, porque temos movimento, temos questões
para serem colocadas, e teríamos também dinâmicas de produção, se
houvesse disposição.
Em 1998, pela lei de radiodifusão comunitária, houve um grande
movimento para que não existisse rádio comunitária que funcionasse

317
de forma adequada no País. As que funcionam tentam manter esse
movimento que presenciamos.
O Conselho de Comunicação Social foi aprovado no texto da lei de TV
a cabo, em 1995, precisou ser muito negociado e foi uma barganha pela
abertura ao capital estrangeiro. O Conselho é composto por empresários,
governo e sociedade civil em torno da mesma mesa para discutir
questões fundamentais de comunicação, que nem são deliberativas.
Da representação da sociedade civil, Sirotzky está presente em nome
de uma associação, e ele é dono da RBS, uma das maiores redes de
comunicação do Brasil. Então, a barganha no nível de articulação
institucional levou a esse processo. Precisamos de outra matéria-prima,
precisamos compreender a resistência a partir de outra perspectiva,
pois senão somente faremos movimento pela democratização da
comunicação para dentro, auto-referente.

318
A Produção de Sujeitos:
A Tensão entre Ficção e Realidade

Coordenação
Monalisa Barros

319
A Produção de Sujeitos: A Tensão entre Ficção e Realidade

Berenice Mendes Bezerra


“A linguagem corrente forma parte do organismo humano e
não é menos complicada do que ele.”
(L. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, 70, 4.0002)

Talvez a virada do século, talvez a tremenda aceleração do fluxo de


informações, a globalização do mercado, a liberalização dos costumes, o avanço
da ciência, a autonomia da arte, seja o que for, a verdade é que todos sentimos
estar vivendo um período de transição: não somos mais o que fomos e não
seremos jamais o que vamos ser.
Transição vem do latim transitione, que significa a passagem de um estado
de coisas a outra, e quer dizer ir além, transformar, comunicar. Mas, exatamente,
para onde estamos indo? No que estamos nos transformando e o que deveremos
comunicar, transmitir a nossos pósteros? E ainda, de que modo se materializa
essa sensação transicional?
Se a resposta está sempre contida na pergunta, bastaria um rigoroso exercício
de lógica para encontrarmos a solução para tais indagações, mas, e se for a
própria lógica que está mudando, que padrão de pensamento precisaríamos
adotar para chegar à compreensão dos fatos?
Passaram-se dezenas de milhares de anos entre o nascimento da sociedade, da
arte e da linguagem e o surgimento da escrita. Símbolo de um símbolo, a escrita
representa a linguagem que (in)forma o pensamento. Inicialmente ideogramática, a
linguagem era formada por símbolos de coisas, ações e idéias que a mera pictografia
não permitia reproduzir. Foram os fenícios e os hebreus, por volta de 1.500 anos AC,
que empregaram símbolos com valor exclusivamente fonético, dando surgimento
ao alfabeto, que se expandiu de modo relativamente rápido.
Restrito aos mais elevados estratos sociais, o conhecimento da escrita
reforça o poder daqueles que constroem os sistemas semânticos e gramaticais.
Ao longo de mais de 2.000 anos, uma complexa estrutura de uso da palavra
escrita é forjada, consolidando padrões sintáticos e lógicos de construção
e interpretação do discurso, que acabam por transferir-se para a própria
organização da sociedade. A distância que separa o homem comum medieval
da escrita é a mesma que o separa do senhor das terras onde vive.

321
O invento da prensa mecânica por Gutenberg carrega consigo o
revolucionário efeito de disseminar a palavra escrita, de retirá-la das torres em
que se encerravam, pulverizando o conhecimento e o poder dele decorrente.
Ao mesmo tempo, submete os novos iluminados às regras do pensar assim
codificado e proporciona um salto cultural que se materializa violentamente
através das revoluções pelas quais se institui o Estado moderno.
Esse novo Estado, surgido sob a égide da liberdade e da igualdade, do anseio
e da esperança de mundos novos, é erigido sob declarações de direitos, leis e
constituições – formas escritas da palavra – e à sua semelhança: estruturado
de modo lógico, hierárquico, linear, com regras de coordenação e subordinação
e com a mesma disciplina com que se dispõem palavras numa frase, que forma
um parágrafo que compõe um texto. Assim como se lê, se pensa, se relaciona,
se age, de modo logocêntrico.
As grandes estruturas socializantes – o Estado-nação, as forças armadas,
a família, a empresa, a Igreja, apresentavam-se todas com um soberano
pai, presidente, general, abaixo dos quais se sucediam as patentes de poder
diminuído até os simples contribuintes, pecadores, soldados e operários,
status que traziam embutidos expectativas de direitos embaladas por grandes
ideologias e projetos históricos que efetivamente funcionaram no contexto
social de um planeta com cerca de um bilhão de habitantes.
Nascida como arte e ferramenta científica, a fotografia, a partir do século
XIX, começa a transformar o imaginário social que recebe a contribuição desta
mediação tecnológica. A imagem-máquina faz a ruptura ao instaurar um novo
olhar sobre a representação da realidade, que não mais depende do dom,
do talento e da tradição. O cinema, no final daquele século, traz o fascínio
da reprodução virtual do mundo e dá início ao novo aprendizado visual da
humanidade. Não é modo de pensar, mas dita tendências de moda, costumes,
comportamentos e prepara as pessoas para a leitura de novas linguagens em
novos textos. O rádio e suas mensagens sonoras estimulavam a imaginação e,
finalmente, em meados do século XX, surge a televisão.
Se, outrora, o rádio era fonte coletiva de informação e o cinema, objeto
ritual de elegância e fruição estética e intelectual, a TV – caixote luminoso e
falante, cujo fluxo ininterrupto e caótico de mensagens se coloca ao alcance
das mãos e da manipulação individual, gerou grande desconforto sensorial nas
pessoas mais antigas.

322
Foram cinqüenta anos (a partir do pós-guerra) de universalização de uma
linguagem audiovisual que, enquanto se capilarizava pelo Planeta, ia modificando
a forma de se ler o mundo, de se informar, de se divertir, de consumir, de modo
cada vez mais fragmentado, mais efêmero, mas também mais eficiente, mais
rápido, mais individualista.
Entramos no século XXI com amplos contingentes populacionais providos
de informática e telefonia, conectados por internet, via fibras óticas,
satélites, microondas e um turbilhão de aparatos e potencialidades digitais
ao qual estamos chamando de convergência tecnológica. As ferramentas de
comunicação são unificadas e rompe-se a relação espaço-temporal. Pode-
se fazer tudo com a mesma ferramenta: telefona-se, vê-se TV, ouve-se rádio,
enviam-se mensagens eletrônicas, capta-se e edita-se texto, imagem estática
e em movimento, transmite-se, virtualiza-se a realidade. E tudo isso ao alcance
das classes médias inseridas no mercado de produção e consumo.
A humanidade, sob essa nuvem de conhecimento e informação interminável
e sem finalidade, passa de uma inflexão lógica para uma reflexão estética que a
vem transformando. Deixa a milenar logosfera e adentra a videosfera do terceiro
milênio. Não lemos mais as substâncias universais, categóricas, genéricas de todo o
sempre. Na videosfera, temos, a cada instante, o acidente, o particular, e não mais o
conceito, mas a própria forma. E se o cinema e a TV já traziam estas possibilidades,
a não-linearidade, a interatividade, a portabilidade da mal chamada TV digital traz
também a radicalidade da saída do mundo do conteúdo para o da forma.
Não é à toa que sentimos as grandes estruturas de controle social “fazendo
água” e ruindo por todos os lados. Somos seis bilhões de habitantes num
planeta, com uma ordem econômica calcada na velocidade das tecnologias de
comunicação, comunidades de interesses organizadas em redes digitais (nas
quais cada indivíduo que a acessa é o centro), e onde, portanto, o pai, o general, o
presidente, fazem cada vez menos sentido; são, a cada dia, mais incapazes de dar
conta da complexidade de um mundo cujo pensamento não é mais linear, mas
rizomático, com novos padrões de reconhecimento das informações advindas da
percepção audiovisual, estética, sensorial. Esta mudança, além de cultural, social
e psicológica, é fisiológica, pois implica o incremento da atividade do lado direito
do cérebro, responsável pelos estímulos visuais e sensoriais.
Neste contexto, se há efetivamente uma potencialização do uso criativo da
mente a partir das novas mídias, é possível pensar que a autonomia do indivíduo

323
só interessa numa sociedade soberana, na qual este mesmo indivíduo, que
é autônomo para consumir e produzir, esteja capacitado criticamente para
entender o que faz, o que consome, o que deseja, e assim expressar de modo
mais rico o mundo em que vive.
O desafio que tal quadro coloca para a inteligentzia é o de desvelar os
mecanismos desta transição, buscando uma necessária e possível harmonia
entre as novas potencialidades de desenvolvimento propiciadas pela tecnologia
e a garantia da liberdade de expressão, da diversidade de informações, da
preservação e difusão das artes e das culturas, enfim de uma ética que possa
balizar um novo humanismo.
Se a onipresença da TV analógica nas últimas décadas, já nos dotou de
gerações inteiras imersas num mundo formatado ostensivamente por imagens
e sons, a convergência tecnológica, a navegação no espaço cibernético e a
TV digital, ao extinguir o modo de irradiação de um para “n” emissores, ao
propiciar a interação que dá a todos a condição de autores, ao viabilizar o
acesso a múltiplas programações, inclusive de modo simultâneo, acabará por
quebrar a grade de programação, paradigma lógico de organização do fluxo
narrativo televisual e do modelo do negócio, que se configura ainda hoje como
uma prisão dos olhares dos espectadores.
Nativos digitais comporão sua própria grade de programação, interferirão
na programação, introjetarão o hábito da leitura audiovisual ao molde de
hipertextos e de forma cada vez mais aleatória, simultânea, horizontal,
virtual, subjetiva, sensorial, heterogênea, metafórica e fugaz, fazendo do
novo aparato ferramenta não apenas de recepção, mas de produção de
conhecimento autônomo.
Neste cenário, o crivo da razão se dirige a um plano operacional e passa a ser
utilizado no sentido técnico, para garantir a eficiência de processos, enquanto
a experiência pessoal é eleita como critério de julgamento. A experiência direta
consistirá na nova pedagogia, única capaz de permitir entender e agir em tal
mundo, um mundo sem modelos genéricos e universais, portanto, não passível
de cópia, um mundo de particulares, de incertezas, a exigir uma abordagem
mais orgânica – estética, sensorial – da realidade.

324
A Produção de Sujeitos: A Tensão entre Ficção e Realidade

Maria de Fátima Nassif

A produção de sujeitos: a tensão entre ficção e realidade

A tensão entre realidade e ficção, no que diz respeito aos meios de


comunicação de massa, existe e pode ser traduzida por falta de clareza sobre o
que se refere a um e o que se refere a outro.
Nos meios de comunicação eletrônicos de massa, no rádio e TV de caráter
comercial, há e houve sempre espaços delimitados para a realidade e a ficção: a
chamada realidade é dada nos espaços de jornalismo e informação: a ficção deve se
dar nos espaços reservados a filmes, a novelas, à dramaturgia. No meio, os espaços
ditos de “entretenimento e informação”, como programas de auditório e entrevistas.
No entanto, a delimitação entre a qualidade desses espaços e seus
conteúdos é tênue e só aparentemente verdadeira. Com freqüência cada vez
maior, elementos de realidade e ficção são apresentados de forma misturada,
ou, pior, um se apresenta travestido do outro.
Concentrando a atenção principalmente na televisão, meio de comunicação
presente em mais de 90% dos lares brasileiros e única fonte de informação para
cerca de 45% dos brasileiros, essa falta de clareza torna-se ainda mais grave.
A nebulosa fronteira entre realidade e ficção foi demonstrada logo no início
do fenômeno de comunicação de massas, por um episódio que se tornou
emblemático do poder da comunicação na sociedade.
Quero lembrar um episódio clássico para ilustrar como essa confusão
entre realidade e ficção é antiga. Todos vocês já devem conhecer, pois esse
fato é amplamente discutido há 50 anos. Trata-se da novela “A Guerra dos
Mundos”, levada ao rádio por Orson Welles a partir de uma novela de H. G.
Wells. O dia era 30 de outubro, véspera do feriado de Halloween, o ano era
1938, e o país era os Estados Unidos. Segundo pesquisas locais, cerca de 32
milhões de pessoas ouviam rádio naquele horário; teve, então um grande
público entre a população norte-americana.
“A Guerra dos Mundos” estava inserida em um programa de entretenimento
que foi levado ar pelo rádio, um meio de comunicação de massa ainda novo,

325
mas já tinha grande inserção e prestígio crescente. O tema da peça era uma
suposta invasão alienígena. Eram marcianos que teriam chegado a Nova Iorque,
sendo que, no ápice da peça, Nova Iorque era destruída.
Orson Welles, muito criativo, muito inventivo, resolveu romper o modelo
formal já existente, já estabilizado, de programação, com começo, meio e fim e
horário delimitado e apresentou o programa em forma de boletins informativos.
Ele subverteu a estrutura e a linguagem de apresentação já consagradas para
os programas de entretenimento.
Tratava-se de um tema totalmente absurdo, totalmente inconsistente, que
não tinha nenhum dado de realidade, mas que em forma de boletins informativos,
na iminência da Segunda Guerra, período em que os boletins eram usados
para transmitir as tensões da guerra, provocou um pânico generalizado. Mesmo
tendo sido dados avisos nos intervalos de que aquele era um programa de
ficção, milhares de americanos abandonaram suas casas, seus empregos, seus
pertences e foram embora, pensando que o fim do mundo havia chegado.
Essa reação tem várias tentativas de explicação, que não vou aprofundar aqui,
como o contexto, etc. Mas o fato de a novela ter sido repetida com as mesmas
características em Quito, anos mais tarde, em 1949, e ter provocado o mesmo tipo
de reação, nos leva a pensar mais na força das estratégias de comunicação do que
na força do contexto como mobilizadoras das reações. A diferença foi que em
Quito, ao perceber o engodo - os latinos são mais bravos - a população enfurecida
queimou o prédio do jornal de onde havia sido feitas as transmissões.
O que é importante e que eu queria ressaltar é que, ainda que tendo seu efeito
potencializado pelas características socioculturais e pelo contexto histórico
traumatizante, o programa demonstrou na prática as enormes possibilidades
de manipulação pelo jogo dos elementos constitutivos da comunicação.
Podemos dizer que aí foi inaugurada a simulação como estratégia, simulação
essa que, a partir dos meios de comunicação, tornou-se uma das características
dominantes da cultura atual.
Dando um corte no tempo para 2001, vamos lembrar do atentado às Torres
Gêmeas, um atentado real, com conseqüências reais, que foi capturado em
imagens repassadas ao mundo centenas de milhares de vezes, com detalhes do
choque dos aviões e das pessoas em pânico.

326
Se a “Guerra dos Mundos” enganou porque a representação remetia à
realidade, “parecia real”, o atentado às Torres Gêmeas pareceu falso porque
remetia a cenas já vistas em filmes. A primeira reação às imagens do
atentado foi de pura incredulidade, porque parecia um filme de ficção com
efeitos especiais.
O que mudou? No intervalo de 53 anos, aparentemente, os modelos
referenciais se inverteram. Se no primeiro as referências eram ancoradas na
realidade vivida ou em expectativa, após meio século os modelos referenciais
para a vida real se baseiam naqueles oferecidos pela ficção.
A experiência, a experimentação que temos é pela ficção, por meio dos
filmes, das imagens. Quando nos deparamos com algo que foge da realidade
vivenciada, já temos como referência algo da ficção, o que gera certa confusão
entre o que é real e o que é fictício. A experiência agora é virtual, mediada pela
técnica, e o padrão de realidade acaba sendo cada vez mais o simulacro, que
nos parece mais real do que a própria realidade.
O que os terroristas fizeram, em 11 de setembro foi devolver aos Estados
Unidos, em forma de realidade, uma ficção criada e alimentada por eles
mesmos, pela indústria do entretenimento: o culto à imagem. E o que os Estados
Unidos fizeram imediatamente depois foi se apoderar das imagens - que não
haviam sido criadas por eles - e usar essas mesmas imagens para justificar
para o mundo uma guerra, a invasão de um país. As imagens, por meio de sua
repetição infinda e pela reprodução em todos os meios de comunicação, foram
usadas para fins políticos, econômicos e bélicos. Elas mobilizaram a opinião
pública mundial e naquele momento deram sustentação suficiente para que a
invasão do Iraque fosse perpetrada.
Essas mesmas imagens, por outro lado, serviram também para alimentar
a indústria do entretenimento. Os fatos inspiraram novas imagens, notícias,
filmes e documentários. Ficção e realidade se misturam: em um movimento
cíclico, a vida real inspira novas peças de ficção, que vão além do fato e
inspirarão novas ações.
Se vivemos a Sociedade do Espetáculo, como defendeu Guy Debord na década
de 60, mas ainda e cada vez mais atual, a imagem, a representação em forma de
espetáculo, valem mais que o real. Na Sociedade do Espetáculo, o fato só adquire
existência social se for transmitido pela mídia, e em forma de espetáculo.

327
O espetáculo pressupõe um público que simplesmente o assiste, passivamente,
o que inviabiliza o diálogo necessário para a construção da história social. A
versão midiática torna-se tão ou mais importante do que a própria História, e
de certa forma, a substitui.
O espetáculo é uma sucessão de imagens vazias, que visam a provocar
o gozo imediato e são logo substituídas por outras, numa sucessão rápida
e interminável. Ele é produto e reprodutor do capitalismo, é um agente de
circulação e consumo de mercadorias, valores e opiniões. É produzido por uma
minoria e consumido por uma esmagadora maioria; ele é dado, e o público do
lado de cá se reduz, assim, a mero consumidor.
Vemos que os meios de comunicação de massa, a televisão, principalmente,
adotaram o espetáculo na sua forma de atuação, e condicionaram de tal forma
a sociedade que, cada vez mais, ela aceita adequar suas expressões ao formato
de espetáculo para ter sua existência atestada na TV.
O que se percebe então é que manifestações populares, muitas delas de
descontentamento, de protesto, promovidas por grupos restritos ou por
segmentos mais amplos, são formatadas para aparecerem na TV e nos jornais,
para render imagens, como se apenas isso lhes conferisse existência.
Por esse prisma, chegamos à conclusão que a História não é totalmente
sincera. Ela se simula a si própria para se tornar espetáculo. As ações
sociais só se tornam vitoriosas a partir do impacto que as suas imagens
provocam, e esse impacto é que confere maior ou menor importância,
maior ou menor realidade.
A televisão, que é estruturada em torno da sucessão rápida de imagens, não
estimula, de forma alguma, o raciocínio ou a reflexão; ao contrário, ela estimula
o consumo passivo de informações. E ocorre que, assim como os programas de
ficção, programas jornalísticos também seguem o modelo de espetáculo.
Quem prestar atenção nos noticiários de TV pode perceber, facilmente,
quantas vezes a palavra emoção é repetida associada aos mais diversos
temas. Nesses espaços teoricamente reservados à racionalidade, à obtenção
de elementos para a formação da opinião pública, o que é estimulada é a
aquisição de informação pela emoção, porque a emoção é mais compatível
com a urgência que marca o ritmo da TV. Reflexão e pensamento exigem um
tempo que não está disponível.
O que temos, enfim, não é falta, mas excesso de informação. Recebemos um
grande volume de informações rasas, que se sucedem numa velocidade tal que

328
são naturalmente esquecidas, de tal forma que não conseguimos formar uma
opinião sobre a maioria delas. Temos a ilusão de sermos bem informados, mas
simplesmente captamos e esquecemos, captamos e esquecemos, captamos e
esquecemos. Não há tempo e nem elementos para se formar uma opinião, e
assim aceitamos como verdade as notícias como elas nos são apresentadas.
O problema é que muitas vezes essas notícias se situam mais no campo da
ficção do que no da realidade. Nesse meio século depois de Guerra dos Mundos,
muitos mecanismos foram desenvolvidos, aperfeiçoados e disseminados,
aumentando em muito as possibilidades de simulação e manipulação pelos
meios de comunicação.
Perseu Abramo, professor e jornalista paulista já falecido, apontou, no
livro Padrões de Manipulação da Grande Imprensa, alguns mecanismos
que são usados habitualmente na imprensa escrita ou eletrônica, e que
fazem com que a notícia produzida seja algo muito distinto dos fatos:
a ocultação deliberada de diversos aspectos que envolvem o fato, a
fragmentação do todo, que é descontextualizado e destituído de suas
relações e interrelações, a inversão, que consiste no reordenamento das
partes, trocando lugares, prioridades e importância, e a repetição, que
torna a versão uma verdade incontestável.
Os fatos assim apresentados não expressam a realidade, apesar de guardarem
relação com ela, porque a distorcem. A realidade apresentada é criada
artificialmente e apresentada como real. É sobre essa realidade artificial que
as pessoas se posicionam e se movem – portanto, a manipulação transcende a
informação e adquire a dimensão de manipulação da realidade.
No caso da televisão, ainda segundo Abramo, há uma estrutura habitual
no noticiário: primeiro é dada a apresentação do fato, geralmente de forma
espetacular e muitas vezes sensacionalista; num segundo momento, há
depoimentos pessoais, que instigam a emoção, a solidariedade, e, num terceiro
momento, a promessa de uma autoridade de que vai resolver aquele assunto -e
só vai resolver, é claro, por interferência do meio de comunicação.
Assim, fecha-se o ciclo: a ação social é desestimulada, posto que o problema
será resolvido “por cima” e por intervenção do meio de comunicação. Não é
preciso fazer nada, pode-se esquecer o assunto e esperar pelo próximo.
Por outro lado, a repetição sem fim de cenas e temas, tratadas como
espetáculo para consumo imediato, levam à banalização e também à apatia.
A indignação inicial que porventura tenhamos dá lugar a um certo cansaço e

329
esgota-se ali mesmo; exercemos nossa cidadania a partir de nossas poltronas.
Tudo isso é agravado pela cada vez maior concentração dos produtores
de informação. No plano internacional, agências de notícias difundem suas
versões por todo o Planeta. Internamente, grandes, poucos e poderosos
conglomerados as retransmitem e produzem suas próprias versões, de acordo
com seus interesses econômicos e políticos.
A realidade social é multifacetada, cada fato tem história, contexto,
interrelações e conflitos de interesses. Os fatos produzem versões, mas a
possibilidade de aproximação com a realidade, que seria pelo conhecimento
e confrontação de versões, nos é dificultada ou até impedida no que se
refere à grande mídia. Não temos a oportunidade de conhecer outras
versões e outras visões: as minorias sociais, políticas, raciais, os que têm
outros pontos de vista, não ocupam lugar no sistema de comunicações. A
mídia tem um papel privilegiado na circulação de versões que tendem a se
tornar hegemônicas na sociedade; a versão que ela transmite é a assumida
como verdade pela sociedade.
E assim a realidade e a ficção se confundem cada vez mais. O desenvolvimento
da técnica, a aproximação da linguagem, o tratamento do espetáculo, os
interesses, tendem a transformar tudo em uma massa irreconhecível. Quanto
mais parecida com a realidade, mais a ficção se afirma; quanto mais próxima
da ficção, mais a realidade se torna atrativa.
Não estamos nem falando da Internet, que traz tantas possibilidades de
misturas entre a realidade e a ficção e tem tantas especificidades que mereceria
um espaço só para ela. A Internet é presente e seu uso é crescente, e, por
suas próprias características, a confrontação com a realidade é na maioria das
vezes muito difícil. A chamada realidade virtual suscita inúmeras questões
e gera reflexões por todo o mundo. A Internet oferece a possibilidade de a
pessoa se transformar em personagem, interagir com outras pessoas como um
personagem e distanciar-se das suas próprias características e da sua própria
identidade. Por outro lado, oferece também a possibilidade de que a pessoa
seja ela mesma e se expresse como quiser, e de que circulem diversas versões
do mesmo fato, sob diferentes pontos de vista.
Eu só quis mencionar a internet para não deixar de citá-la, mas eu
pretendi aqui me concentrar nos meios convencionais e já tradicionais de
comunicação – rádio, jornais e TV – e defender a idéia de que a tensão entre
a realidade e a ficção é marcante na nossa comunicação, e, por conseguinte,
na nossa sociedade.

330
Referências bibliográficas:
Carone, Iray e Baraúna, Lia - O dia das bruxas de Orson Welles , Folha de S.Paulo, Caderno Mais,
2002.
Senra, Stella – A estratégia das imagens, Folha de S.Paulo, caderno Mais, 04/11/2001.
Debord, Guy – A sociedade do espetáculo, Ed. Contraponto, RJ, 1997.
Abramo, Perseu – Padrões de manipulação na grande imprensa, Ed. Fundação Perseu Abramo,
SP, 2003.

331
332
A Produção de Sujeitos: A Tensão entre Ficção e Realidade

James Arêas1

O cinema e os modos de subjetivação


Resumo da exposição: O cinema e os modos de subjetivação: a experiência
cinematográfica invocou, desde o início, em razão do automatismo da imagem, o
despertar de uma subjetividade automática: o autômato espiritual, consciência
crítica ou revolucionária. Ao ideal de subjetivação das massas contrapôs-se, no
entanto, a realidade das massas assujeitadas. O cinema moderno, ao denunciar
o fracasso da esperança clássica, deparou-se com uma interioridade petrificada
e com a evidência da múmia subjetiva. Que novas linhas se abrem no mundo, a
partir de nosso tempo, para novos modos de subjetivação?

1. A crise da Psicologia do século XIX e o universo material das


imagens
O primeiro ponto que gostaria de abordar na experiência do cinema, como
a grande arte do século XX, é a singularidade da imagem cinematográfica.
A imagem cinematográfica, ou ainda o agenciamento das imagens no
cinema se singulariza na medida em que com o cinema, a imagem atinge o
automovimento, o movimento automático. O cinema faz do movimento o dado
imediato da imagem.
Eu gostaria de me referir aqui ao magnífico trabalho que Gilles Deleuze
realizou, na esteira de Bergson, em seus dois livros sobre o cinema, mas também
às observações que desenvolve em suas magníficas aulas, algumas transcritas, a
que temos acesso pela Internet.2
O primeiro dado da imagem cinematográfica é, portanto, o automovimento
da imagem. A invenção do cinema, e das imagens-movimento, responde a um
problema que remonta à crise a que a Psicologia fora levada no final do séc.
XIX, e que consistiu essencialmente na sustentação e defesa, por parte das

1. Professor-Adjunto do Depto de Filosofia da UERJ e da UCAM-Centro.


2. Refiro-me especialmente aos sites: www.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=6, L’image
automatique, (article=7) Penseé et automatisme. Cf. também www.webdeleuze.com.

333
investigações psicológicas em curso, de uma posição teórica dualista segundo
a qual as imagens residiriam na consciência e, a esse título, pertenceriam
ao domínio da consciência e da subjetividade, enquanto os movimentos dos
corpos no mundo se alojariam exclusivamente no espaço, de onde retirariam
sua objetividade. Mas, o movimento automático da imagem cinematográfica
dizia respeito também ao problema filosófico da constituição de uma imagem
do pensamento.
Desse modo, ao considerar que a consciência correspondia a uma espécie
de receptáculo passivo das imagens ou das representações das coisas e
dos objetos dispostos no espaço, os psicólogos, apoiados ou não em certas
concepções filosóficas, concebiam a consciência como sede das imagens
inextensas e o espaço como lugar da extensão material dos movimentos no
mundo. A fórmula encontrada para exprimir essas teses: imagens qualitativas
e inextensas na consciência e movimentos quantitativos e extensos dos corpos
no espaço, parecia, entretanto, lançar adiante novos problemas, como muito
bem observara Bergson e posteriormente Deleuze.
Como passar de uma ordem à outra, da consciência ao mundo ou do mundo
à consciência? Como explicar que movimentos de repente produzam uma
imagem, como, por exemplo, na percepção, ou ainda que a imagem produza um
movimento, como na ação voluntária? Como impedir que o movimento já não
seja imagem pelo menos virtual, e que a imagem já não seja movimento pelo
menos possível? A dualidade consciência/mundo punha em confronto, de um
lado, o materialismo, que pretendia reconstituir a ordem da consciência com
puros movimentos materiais, e de outro, o idealismo, que pretendia reconstituir
a ordem do universo com puras imagens na consciência.
Para romper a dualidade da imagem e do movimento, da consciência e da
coisa, duas filosofias se apresentam, em resposta à Psicologia do século XIX,
cada uma buscando uma nova solução para o antigo dualismo, como dois
gritos de guerra:
Husserl: “Toda consciência é consciência de alguma coisa”.
Bergson: “Toda consciência é alguma coisa”.
Ora, a rigorosa identificação bergsoniana da consciência com alguma coisa, a
consciência não é consciência de, afirma ele, mas antes, a consciência é, ela própria,
alguma coisa. A posição de Bergson, defendida em Matéria e Memória, por exemplo,

334
resulta em considerar que a própria noção de matéria já implica, para sua definição,
a noção de movimento e de imagem. É precisamente porque a matéria não pode
mais ser considerada um substrato, ou um núcleo de resistência, de estabilidade
ou de permanência que ela se identifica ao movimento e a imagem. A matéria é
identificável ao movimento sob todos os seus aspectos e, a esse título, é também
identificável à imagem que é movimento. Não mais podemos, portanto, dissociar a
matéria do movimento e da imagem. A matéria é, pois, imagem-movimento. É em
razão disto, creio, que Bergson pode definir a matéria, a título de esclarecimento, no
Prefácio da sétima edição de Matéria e Memória como um conjunto de “imagens”,
desde que entendamos por imagem “uma certa existência que é mais do que o
idealista chama representação, porém menos do que o materialista chama uma
coisa – uma existência situada a meio caminho entre a ‘coisa’ e a ‘representação’”.
O mais curioso é que esse “esclarecimento”, que Bergson diz corresponder
pura e simplesmente à concepção de matéria do senso comum, permanece, no
entanto, bastante obscuro. Ou então o senso comum a que se refere Bergson
é bastante incomum.
De qualquer modo, estamos, num abrir e fechar dos sentidos, em presença
de imagens, do conjunto daquilo que aparece, do universo material das
imagens, onde “não há móvel que se distinga do movimento executado, nada
do que é movido se distingue do movimento recebido”. Estamos todos inseridos,
imersos de saída, em um universo de imagens, onde a imagem “não passa de
um caminho sobre o qual passam em todos os sentidos as modificações que
se propagam na imensidão do universo” (DELEUZE, 1985, p. 78). “Cada imagem
age sobre outras e reage a outras em” todas as suas faces e através de todas
as suas partes elementares” (DELEUZE, 1985, 78-9).
Por essa razão, parece-nos, Deleuze observa que “este conjunto infinito de
todas as imagens constitui uma espécie de plano de imanência” (DELEUZE, 1985,
p. 79), e é importante notar que a partir de Cinema 1: A imagem-movimento
e Cinema 2: A imagem-tempo, Deleuze é levado a reler o bergsonismo e a
incluir Bergson na linhagem dos pensadores da imanência tão caros ao
desenvolvimento de sua própria obra.
Estamos, portanto, diante do plano de imanência das imagens, onde a
imagem existe em si, e onde este em-si da imagem é a matéria: “não algo que
estaria escondido atrás da imagem, mas, ao contrário, a identidade absoluta

335
da imagem e do movimento. É a identidade da imagem e do movimento que
nos faz concluir imediatamente pela identidade da imagem-movimento e da
matéria”. (DELEUZE, 1985, p.79).

Em síntese:
1.Bergson postula, frente à crise da Psicologia do séc.
XIX e do dualismo ao qual essa crise remonta, a rigorosa
equivalência, ou melhor, a plena identidade da imagem-
movimento com a matéria, o universo, o plano de
imanência das imagens. Universo acentrado, aberto e
infinito das imagens.
2.O plano de imanência das imagens extravasa o
universo mecanicista, que implica sistemas fechados,
ações de contato, cortes imóveis instantâneos, o plano
de imanência das imagens não se deixa reduzir ao
mecanicismo, ele constitui antes, como sugere Deleuze:
“o agenciamento maquínico das imagens-movimento. O
universo como cinema em si” (DELEUZE, 1985, p.80).
3.O plano de imanência, pela velocidade que atinge, é
inteiramente Luz (DELEUZE, 1985, p.81).

2. Imagens vivas: percepção, afecção, ação


É preciso considerar, contudo, no interior desse universo acentrado das
imagens, onde tudo reage sobre tudo, o surgimento de imagens especiais, ou
imagens vivas. Tais imagens ao se desenvolverem e se especializarem no interior
desse universo introduzem um elemento diferenciante, uma diferença, uma
disparidade, um fator de uma outra natureza. Uma redução da velocidade,
um intervalo, um hiato. Esse intervalo vai servir para que Bergson defina
um novo tipo de imagem, um tipo muito particular de imagem: imagens ou
matérias vivas, que são imagens de certo modo esquartejadas, que recebem
movimentos ou ações apenas em uma face ou em algumas de suas partes, e
só executam reações por meio ou através de outras partes. São imagens que
desenvolvem uma face especializada, receptiva ou sensorial e uma outra reativa
ou ativa. Um sistema vivo pressupõe, com efeito, percepções e ações. Os seres

336
vivos constituem sistemas relativamente fechados, constituem “quadros” que
se deixarão atravessar por algumas ações exteriores, enquanto isolam outras
sob as quais podem eventualmente agir ou reagir. Os seres vivos promovem
“enquadramentos”, desenvolvem vínculos sensório-motores com o meio
circundante. O esquema sensório-motor determina a vinculação de uma
imagem viva, de um organismo com o seu meio.
Contudo, entre o movimento ou ação recebida em uma de suas partes e os
movimentos, reações que executa com outras partes, em outra face, impõe-se
um intervalo: as reações executadas não se encadeiam diretamente com a ação
sofrida, as reações são retardadas em virtude do intervalo ou da ressonância
interna que modifica inclusive a qualidade da reação, e só elas podem ser
chamadas de ações propriamente ditas. Ações retardadas, o vivo, todo vivo é
sempre retardado, e nisso reside talvez uma de suas maiores virtudes, já que
esse retardamento corresponde ao desenvolvimento das afecções.
Estamos agora diante do tríplice regime bergsoniano das imagens: imagem-
percepção, imagem-afecção, imagem-ação (Deleuze acrescentará aí a imagem-
pulsão). Em seu conjunto, esse tríplice registro das imagens define o regime
sensório-motor: percepção-afecção-ação e o traço de união que liga o vivo a
seu meio, o homem ao mundo.
O cinema da imagem-movimento dispõe desse conjunto de imagens,
e pressupõe a vinculação, digamos, “natural”, do homem com o mundo. A
imagem-movimento explora esse vínculo homem/mundo e pretende sobre
ele influir, modificando-lhe a direção e o sentido habituais, permitindo que a
ação se exteriorize no mundo. Trata-se, ainda aqui, tanto para o cinema quanto
para a Filosofia de ampliar, modificar, transformar o vínculo sensório-motor do
homem com seu meio.

3. A esperança sensório-motora: a imagem-movimento e o autô-


mato espiritual
O cinema clássico segundo Deleuze sempre aspirou amplificar o vínculo
natural da percepção humana com o mundo. Ao se instalar diretamente
na modulação do real e em razão do caráter automático da imagem
cinematográfica, o cinema realiza aquilo que para as outras artes era somente
uma possibilidade. A imagem automática é uma imagem que se mexe, não é

337
um corpo real que se mexe como na dança, nem uma imagem imóvel como na
pintura. Eis o essencial: a realidade expressa pelas imagens cinematográficas
atinge diretamente a plena mobilidade e fluência de todas as coisas. O cinema,
contudo, não nos dá apenas imagens, ele as cerca com mundos, mundos
cinematográficos – perceptivos, afetivos, pulsionais e ativos – extraídos do
universo acentrado das imagens-movimento que constituem a própria essência
da realidade. Imagens, matéria, movimento e luz constituem os fragmentos de
caos, as caóides, com os quais o cinema erige em blocos espaços-temporais o
conjunto das forças visuais e sonoras.
Na medida em que ousou promover um desvio pelo direto, indo ao cerne da
matéria errante da realidade, o cinema alimentou a esperança, talvez a ilusão,
de promover igualmente a exploração e a expansão da percepção humana, de
ativar em cada um de nós o autômato espiritual, o pensador adormecido. O
automatismo das imagens cinematográficas parece implicar diretamente, como
seu correlato o automatismo sensório-motor, uma subjetividade automática,
o autômato psicológico, mas também, do ponto de vista do pensamento, um
autômato espiritual, um autômato pensador em cada um de nós.
Desse modo, finalmente, o homem da percepção comum e do hábito não
poderia mais escapar, nem se esquivar, por força do encadeamento automático
da imagem cinematográfica e de sua correlação com a subjetividade automática,
da tomada de consciência do todo, da totalidade orgânica a partir da qual cada
elemento ou cada parte da realidade adquire um novo valor e renova seu sentido. Só
o cinema, pelo choque que transmite ao agenciar as imagens poderia, finalmente,
arrancar a consciência de seu torpor, o agir de sua parcialidade e despertar em
cada um o furor do pensamento e da ação revolucionária, o cinema como arte
das massas. A evidência de que a certeza sensível só cobre uma pequena parte
da realidade fulgurante das coisas, a mais tosca, utilitária e descolorada nutriu a
esperança cinematográfica de romper as cadeias sensório-motoras da percepção
natural para a restauração ou transformação do mundo. Renovar, revolucionar
o vínculo do homem com o mundo, tornou-se então o programa da arte das
massas, enfim, conquistada. O cinema fermentou o sonho revolucionário, talvez
a grande ilusão, de ultrapassar do homem comum.
Deleuze observa, a esse respeito, as objeções e a inquietação que o cinema
despertou desde seu início: “com o cinema eu não posso mais pensar o que

338
eu quero”. (DELEUZE, 2007, p.2). Trata-se de uma objeção fascinante, conforme
ele próprio sugere, “não posso mais pensar o que eu quero diante do cinema;
as imagens moventes, ou seja, as imagens automáticas, as imagens móveis se
substituem ao meu próprio pensamento” (DELEUZE, 2007, p.3), reclama Georges
Duhamel, romancista francês do início do século XX, que fez uma grande crítica
contra a América, a civilização americana, e contra o cinema.
Ora, o ideal do pensamento, da Filosofia, consiste justamente nisso: não
pensar o que eu quero, não poder pensar o que eu quero é ser levado a pensar
diferentemente do que se pensa. Não poder pensar o que eu quero não é nada
mal, nem é de todo ruim ainda que isso possa fazer mal a alguém que acha
que pode pensar o que quer. A objeção significa que a imagem cinematográfica
“longe de instaurar uma relação com o pensamento, destrói a relação com o
pensamento”; a imagem automática “impõe seu desenrolar ao pensamento”.
(DELEUZE, 2007, p.3). A imagem automática faz de nós autômatos incapazes
de pensar o que queremos.

4. A imagem do pensamento e o autômato que cria


O automatismo da imagem cinematográfica se diz em um primeiro sentido,
técnico, que concerne ao registro e à projeção das imagens, ou seja, à base
tecnológica da imagem automática. Mas, há ainda um segundo sentido que
concerne ao conteúdo próprio das imagens cinematográficas, o pertencimento e
o povoamento das imagens cinematográficas por uma variedade de autômatos.
É por acaso, interroga-se Deleuze, que o cinema, desde seu início, nos
apresentou autômatos e marionetes de uma maneira tão insistente, tão
constante, essa exibição ou essa adequação dos autômatos à imagem
cinematográfica? (DELEUZE, 2007, p.4). O cinema, desde o início, foi invadido
por autômatos em todas as suas variedades. No expressionismo alemão, por
exemplo, os golems, os sonâmbulos, os autômatos vivos, os zumbis de toda
espécie tornam-se personagens-chave da nova arte. A escola francesa, de uma
outra maneira, povoa as imagens cinematográficas de autômatos inanimados
e não deixa de proceder à confrontação e à troca. Autômatos vivos, autômatos
inanimados contra os vivos, etc. O cinema sempre foi perseguido pelos
autômatos, como mediação entre os personagens vivos e de um personagem
vivo a outro. A suspeita que nasce em nós é que há núpcias então profundas

339
entre a imagem cinematográfica enquanto tal e o autômato que vem povoá-
las. Ora, se o próprio da imagem cinematográfica é o automatismo, não é
inteiramente normal que a imagem cinematográfica nos apresente autômatos,
indaga-se Deleuze (DELEUZE, 2007, p.5).
Robert Bresson em suas Notas sobre o Cinematógrafo dedica um capítulo ao
automatismo no qual afirma “Nove entre dez dos nossos movimentos obedecem
ao hábito e ao automatismo. É contra a natureza subordiná-los à vontade e ao
pensamento”3. Ele parece reconhecer um outro tipo de automatismo, diferente do
expressionismo alemão e mesmo da escola francesa, um automatismo da vida real.
Por fim, um terceiro sentido do automatismo concerne à forma da imagem
cinematográfica. Nesse caso o automatismo afeta a forma estética da imagem
cinematográfica, ou seja, a maneira pela qual ela é percebida e pensada. Para os
pioneiros do cinema a imagem automática, a imagem material automática do
cinema tem por correlato um automatismo espiritual, um automatismo mental
ou uma subjetividade automática. O cinema graças à imagem automática faz
despertar em nós o autômato espiritual.
Elie Faure em Fonction du Cinema nos diz: “Na verdade, é seu automatismo
material que faz surgir do interior dessas imagens esse novo universo que ele
impõe pouco a pouco a nosso automatismo intelectual. É assim que aparece,
em uma luz obcecante a subordinação da alma humana às ferramentas que
ela criou, e reciprocamente. Entre tecnicidade e afetividade, uma reversibilidade
constante se verifica”4.
Ora, há, portanto, ação da imagem automática sobre o autômato espiritual
e reação do autômato espiritual sobre a imagem automática, conclui Deleuze
(DELEUZE, 2007, p.6-7).
É porque a imagem cinematográfica é uma imagem automática que, longe
de nos impedir de pensar, ela faz despertar em nós o velho sonho, o sonho
arcaico mas somente realizado pelo cinema, o sonho de uma subjetividade
automática e de um autômato espiritual. O cinema não é somente a
imagem automática, ele é o correlato da imagem automática e da imagem

3. BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo, trad. E. Mocarzel e B Riberolle, São Paulo: Iluminuras,
2005, Do Automatismo, pp. 30-39.
4. FAURE, Elie. Fonction du Cinema, Suisse: Éditions Gonthier, 1964 , p. 56.

340
do pensamento, isto é, a correlação da imagem automática e do autômato
espiritual que lhe corresponde.
Ver-se reduzido ao estado de autômato espiritual, de uma subjetividade
automática não é assim tão mau, esse foi o sonho de todos nós, ou pelo menos
o sonho do pensamento. Isso sempre foi o sonho do pensamento: um autômato
pensador, um autômato capaz de criar. Trata-se de uma bela idéia.

5. O despertar da múmia e a crença imanente


O cinema moderno surge, segundo Deleuze, dos escombros da esperança sensório-
motora, da perda do vínculo homem/mundo e da fragmentação da subjetividade
automática, uma suspensão do mundo, ou pelo menos o fracasso da ilusão de um
vínculo natural que unisse o homem ao mundo. Não que o mundo tenha desaparecido,
já que ele permanece aí, diante de nossos olhos, dia após dia, mas o vínculo, o elo
que nos unia a ele se rompeu. De nossas ilusões sensório-motoras parece só ter
sobrado um estranho ceticismo cognitivo; das posturas e poses grandiosas de que
revestíamos nossos sentimentos, só a degeneração dos afetos; da lógica das ações e
reações, só esboços imperfeitos; da seqüência encadeada da História e da esperança
de recuperação de seu sentido, só a banalidade do cotidiano.
O autômato espiritual que se encarnava na concepção do cinema como
monólogo interior de Eisenstein, em que o choque ou a vibração produzida
pelo agenciamento das imagens libertava o pensador adormecido confronta-
se com a constatação de impotência de pensar que define o verdadeiro
sujeito-objeto do cinema em Artaud. É que Artaud manifesta muito cedo
um descontentamento com o cinema, ou com o modo pelo qual o cinema
se pensa: aquilo que o cinema deve privilegiar não é a força do pensamento
ou a propensão ao pensamento que ele desperta, mas antes seu impoder, sua
impotência. Aquilo que o cinema deve considerar, em primeira instância, é
a impossibilidade a que ele efetivamente conduz: “não poder pensar o que
quero”. Bem entendido, há o choque, a vibração, mas esse choque se revela
na incapacidade do herói em atingir seus próprios pensamentos. O cinema irá
precisamente dramatizar essa impotência do herói no cerne do pensamento,
já que ele “está reduzido a ver desfilar dentro de si imagens, um excesso de
imagens contraditórias”, a experimentar essa ausência central de que nos fala
Blanchot ou ainda Deleuze: “roubaram-lhe o espírito”.

341
O autômato desfez-se em múmia, em ausência central, só restam as
bandagens, a força dissociadora que leva o pensamento a confrontar-se com
sua própria impotência, as imagens com o buraco das aparências, insólita
presença do impensável no pensamento, como assinala Blanchot em toda a
literatura. Suspensão do mundo, não seu desaparecimento, é preciso lembrar,
mas uma profunda perturbação do visível.
Ah... E essa impotência de pensar, essa inoperância no agir, essa estranha e
perturbadora imagem do mundo e do pensamento. A múmia, enfim, o autômato
desmontado, paralisado, petrificado, congelado. Roubo de pensamentos,
despersonalização, petrificação hipnótica, alucinação, esquizofrenia galopante.
Por toda a parte, o Eros adoecido, insiste Antonioni, o deserto na percepção,
o inevocável na garganta, o desterro e o avesso do pensamento. E por fim, essa
fissura insidiosa, o todo rachado, a fenda aberta, escancarada entre o homem
e o mundo, e em cada um de nós.
Ainda aqui, o diagnóstico de Blanchot, assevera Deleuze: “... por um lado,
a presença de um impensável no pensamento, e que seria a um só tempo
como que sua fonte e sua barragem; por outro, a presença ao infinito de outro
pensador no pensador, que quebra qualquer monólogo de um eu pensante”
(DELEUZE, 1990, p. 203).
O pensamento no cinema é colocado diante de sua própria impossibilidade,
da qual extrai, porém, uma potência ou nascimento mais elevado. Diante dessa
afetação do visível e da incoerência do pensamento, diante do intolerável, só parece
restar aguardarmos o despertar da múmia. Trata-se, da imperiosa necessidade de
impor à antiga ilusão sensório-motora e ao antigo sonho do pensamento clássico
um tratamento diurno. Fundir, o pensamento com a realidade íntima do tempo
para conquistar novas imagens diretas do tempo. Afinal, precisamos de razões para
crer nas possibilidades desse mundo, precisamos de razões para converter nossa
crença esfarrapada. Uma nova imagem do pensamento e novas imagens do tempo.
A múmia, enfim, a serviço de uma poderosa vontade de arte, perigosa, obscura,
condensada, aspirando a se desdobrar através de movimentos involuntários e sem
rédeas. A múmia em nós, corpo sem órgãos, vagando por espaços desconectados,
atravessada por todos os lados pelo turbilhão incessante das imagens que não
param de fugir. A múmia, descentrada, e em razão do afrouxamento sensório
motor choca-se de todos os lados, em todas as faces com o universo das

342
imagens. Desperta é somente uma imagem entre imagens, impotente para o agir
automático, incapaz de sonhar, mas prenhe de afetos desconhecidos, como a
heroína de Europa 51 de Rosselini, diz Deleuze, múmia que irradia ternura. A
múmia, talvez não seja tão mau assim, esvaziada de si, atravessada por sensações
óticas e sonoras puras, sem direções definidas no espaço em que erra, percorrida
por fluxos intensos anuncia, talvez, novas possibilidades afetivas, novas posturas
perceptivas e uma nova imersão das sensações no mundo. Uma múmia que não
podendo agir automaticamente no mundo, irradia beleza, como um modo de
tocá-lo e talvez de atingi-lo à distância. Antonioni, por exemplo, soube encontrar
e contrapor ao Eros adoecido as mais belas múmias que o cinema conhece.
Talvez, para conversão da velha crença, tenhamos necessidade de uma
metafísica imanente que nos faça crer nesse mundo de múmias que irradiam,
de sensações novas que nos de razões sensíveis para crer nesse mundo. Enfim,
o cinema não cessa de multiplicar e de pluralizar as razões pelas quais podemos
crer nesse mundo, no amor ou na vida. Razões para projetarmos novas imagens
do que não podemos ainda pensar, ou do que só podemos pensar de outro
modo. Novas experiências das imagens, novas experiências de pensamento.
Razões para crer nesse mundo. Só os idiotas, sugere ainda Deleuze, riem das
razões que buscamos para converter a crença em pura imanência, para crer
em novas possibilidades de vida nesse mundo, para crer nesse mundo, nesse
mesmo mundo do qual fazem parte os idiotas.

Referências Bibliográficas:
BRESSON, R. Notas sobre o cinematógrafo, trad. E. Mocarzel e B Riberolle, São Paulo: Iluminuras,
2005, Do Automatismo, pp. 30-39.
FAURE, E. Fonction du Cinema, Suisse: Éditions Gonthier, 1964 , p. 56.
BERGSON, H. – Matéria e Memória. Tradução de Paulo Neves, São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DELEUZE, G. – Cinema 1: A imagem-movimento. Tradução de Estella Senra, São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 76-94.
______. Cinema 2: Imagem-tempo. Tradução de Eloísa de Araujo Ribeiro, São Paulo: Brasiliense,
1990.
______. www.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=6, L’image automatique, (article=7)
Penseé et automatisme. Cf. também www.webdeleuze.com.

343
Ética e pensamento na mídia

Coordenação
Vera Canabrava

345
346
Ética e pensamento na mídia
Maria Rita Kehl
Começo o tema com a apresentação de dois pontos: o primeiro
não tem muita relação com os conceitos da psicanálise, apesar de eu
ser psicanalista; o segundo, sim. O primeiro ponto é sobre o que pode
ser considerado pouco ético na mídia brasileira: não necessariamente
imoral nem terrivelmente do mal, mas pouco ético. Creio ser importante
procurar a ética, assim como a falta de ética, onde elas se apresentam da
maneira mais sutil, onde elas são escancaradas, todos vemos. Proponho
pensarmos onde, na mídia informativa, jornalística, há obstáculos à ética.
Na mídia informativa, a formação de um pensamento mais abrangente
sobre o País seria fundamental. É claro que o Brasil teve e tem grandes
pensadores da realidade do País. Mas são os jornais diários, os telejornais,
o rádio, o jornal impresso, que vão atualizando, ou modificando, nossa
leitura sobre a realidade do País. Quando temos dois fatos chocantes,
como na semana passada, em que a polícia invadiu, do modo como o
fez, a Favela do Alemão, e, na mesma semana, um grupo de rapazes da
Barra da Tijuca espancou uma empregada doméstica só “por diversão”,
o modo como a mídia trata esses dois fatos tem efeitos sobre a imagem
do Brasil e da cidade, do Rio de Janeiro. Para isso, é preciso repensar a
ética da informação.
A imprensa freqüentemente convoca psicanalistas, sociólogos,
pedagogos, etc, como se pudéssemos, diante dos fatos, retomar o fio de
um pensamento ético.
Então, o primeiro ponto que gostaria de abordar é que a mídia brasileira
se pauta em uma atitude não inventada por ela. É uma atitude própria
da sociedade brasileira e que, segundo o historiador Sérgio Buarque de
Holanda, vem do período colonial: a cordialidade. Retomo essa idéia de
cordialidade, que não é um conceito da psicanálise e tampouco é aquilo
que se entende pelo senso comum. O que chamamos normalmente de
cordialidade é um modo gentil de tratar o outro. Quando dizemos que
fulano é cordial, a idéia é de que é gentil, generoso.
Mas o homem cordial, conforme a expressão que Sérgio Buarque
de Holanda tomou emprestada de Ribeiro Couto, não tem a ver

347
necessariamente com a boa educação nem com a gentileza; tem a
ver com o coração, pois a palavra cordial é derivada de core (coração),
que não significa necessariamente bons sentimentos, boas maneiras e
nem bons tratos com o semelhante. O percurso de Sérgio Buarque de
Holanda para estabelecer a idéia de que o brasileiro seja um homem
cordial tem a ver com a predominância dos aspectos e valores ligados à
vida privada, familiar, sobre os valores e aspectos ligados à vida pública.
O Brasil colonial era muito mais agrário do que urbano, não somente no
sentido de que não havia cidades, mas no sentido de que as cidades, até
o final do século XIX, com exceção das que foram capitais da Colônia,
não eram, em absoluto, importantes, não eram lugar de convívio, de
civilidade; as cidades eram basicamente entrepostos comerciais em
que os donos das fazendas trocavam seus produtos e compravam
escravos. Quem circulava mesmo nas cidades era o baixo funcionalismo
público, os vendedores e os mendigos. As cidades eram lugares bastante
degradados, e, ao mesmo tempo, as grandes fazendas eram lugares
onde a lei não chegava, porque, assim como o dono da fazenda era o
dono de escravos, era proprietário e não como contratante, da força de
trabalho que ele explorava, considerava-se também o dono das famílias,
dos agregados livres que trabalhavam para ele. A atitude do coronel, do
senhor de terras, do sinhozinho que impõe a lei a partir de seu arbítrio,
de sua vontade, para toda a extensão familiar da sua propriedade, foi
formadora da elite brasileira.
Essa elite brasileira, mesmo depois da escravidão, até hoje considera
que o espaço público seja a extensão de seu espaço privado. Esta é
a cordialidade, para Sérgio Buarque de Holanda: a idéia de que os
valores afetivos, os valores do coração, podem ser usados para proteger,
beneficiar, ajudar aqueles dos quais se gosta, punir desafetos, etc. São
valores que estão acima da lei, ligados aos afetos, à vida familiar e à
vida privada. Sérgio Buarque afirma que essa atitude não se limitou
àquele período do ciclo agrário do Brasil, da escravidão, mas formou
uma mentalidade segundo a qual o espaço público não tem valor, pois
é o espaço, digamos assim, do pedestre, do Zé Mané. No Brasil, o que
tem valor é o espaço privado. Esse é o conceito de cordialidade que

348
quero guardar, e que se repete nas formas atuais do arbítrio praticado
por quem “pode”, por quem tem dinheiro e paga por seus privilégios, e
submete às suas conveniências aqueles que não têm o chamado poder
de compra – como se o cidadão só valesse enquanto consumidor.
As diferenças, nós, que moramos nas grandes cidades, conhecemos
muito bem; o modo como os bairros que pagam IPTU mais baixo e
os bairros que pagam IPTU mais alto são tratados pelo poder público
demonstram isso. Nos primeiros, há um abandono geral das vias públicas,
das escolas, não há policiamento. Nos outros, há jardins, praças, polícia
bem educada, cuidados especiais. Parece que há uma lógica espontânea
na formação das cidades, pois os imigrantes chegam e vão para as
periferias, para as favelas. Mas não é tão espontânea assim. É uma lógica
de administração pública que se forma a partir desse viés escravagista,
de elites privatizantes do País.
E como passamos da questão da cordialidade à mídia?
Falarei mais da mídia televisiva, que é a que tem mais estudo. A televisão
tem a ambigüidade de ser um veículo de comunicação, de informação,
e até deveria ser de educação e de entretenimento, e, ao mesmo tempo,
um veículo sustentado pela publicidade. Essa ambigüidade produz um
atravessamento quase inevitável: a linguagem publicitária, mais ágil e
eficiente, e que abrange trabalhos de profissionais de alto nível técnico,
interfere na linguagem do entretenimento, pois os espectadores estão
sendo educados para prestar atenção a essas mensagens curtas, de
modo que começam a tolerar cada vez menos um pensamento longo,
um debate, uma teledramaturgia um pouco mais complexa. Nossa
atenção começa a ser educada para bits de 30 segundos. Isso influi na
dramaturgia, que precisa ser eficiente, causar muito impacto, muita
emoção a cada 30 segundos, com mudanças rápidas de personagens, de
cena, senão o espectador muda de canal. Então, a concorrência também
produzirá esse tipo de linguagem, de informação, de estética.
O telejornalismo, que deveria ter uma lógica completamente diferente,
já que lida com temas que merecem mais tempo, que merecem ser
analisados e discutidos, assuntos que precisam ser relacionados com o
que aconteceu na semana passada, o telejornalismo também passa a

349
obedecer a essa lógica, a essa linguagem que precisa variar muito, senão,
o espectador se cansa e muda de canal.
Qual é a linguagem mais eficiente para atender essa necessidade de
comunicar rapidamente, de não deixar o espectador mudar de canal, de
prender a atenção?
É a linguagem do afeto, da emoção, do coração. A notícia de um
tiroteio na favela, por exemplo, é um fato a ser analisado. Onde o
jornalismo centra a informação? Na dona de casa que está chorando,
porque perdeu um filho, o que é, de fato, dramático. Essa informação
não é desprezível. Mas qual o tratamento dado a essa informação? Um
close lento no rosto da mulher na hora em que as lágrimas começam
a correr. E aí já estamos completamente mergulhados nessa outra
linguagem, que é a da dramaturgia, e nos identificamos com essa dor.
Mas aí a informação se torna genérica, porque essa dor é a dor das mães
em geral, e uma parte da informação necessária para analisar a violência
que causou aquele choro se dissolve nas lágrimas. O trato passa a ser
cordial. O trato da notícia passa a ser feito pela via da emoção, positiva
ou negativa. Em geral, em seguida, para não se ficar no baixo astral,
vem a torcida de um time que ganhou, e a emissora transmite o som
da torcida gritando, torcendo, de jovens alegres, na festa. Uma emoção
anula a outra, e vamos em frente.
Esse é um dos aspectos da cordialidade que impede a informação,
principalmente a televisiva, que é a que mais nos atinge, pois a maioria
dos brasileiros não lê jornal.
Temos um segundo viés, importantíssimo, e que também tem a ver
com a cordialidade.
Os jornais são pagos por quem pode comprar. Apesar de serem
baratos, em um país como o Brasil, não são todos os que podem
comprá-los. As emissoras de televisão são pagas pelos anunciantes, que
anunciam produtos para a faixa de consumidores que podem adquirir
aqueles produtos no horário em que o telejornal está sendo exibido,
portanto, há um outro viés, que é também cordial, também fruto da
prevalência do privado sobre o público, que é o de que a notícia tem que
ser interessante para quem pode comprar aquele jornal ou para quem

350
pode comprar o produto anunciado. Isso aconteceu recentemente, em
São Paulo. Em uma praça de um bairro de periferia, o Jaraguá, houve um
massacre inexplicável. Havia meninos jogando dama, xadrez, e vieram
motoqueiros encapuzados e fuzilaram esses meninos. Morreram sete
deles. A população do bairro não revelou o que sabia, e a notícia ficou
assim, em suspense. No dia seguinte, fui procurar informações, e só se
divulgou que a polícia ainda estava investigando. Esse acontecimento
ocorreu no início de maio, e nunca mais surgiu notícia alguma sobre
o fato. Ora, isso significa que o crime desapareceu do espaço público.
O tema é de interesse público, mas as vítimas eram pobres; assim, essa
chacina inexplicada desapareceu do noticiário. Por que sumiu do espaço
público? Porque, no primeiro momento, o impacto da notícia atingiu os
leitores e os telespectadores, a quem interessa vender jornal e vender
espaços publicidade, mas, em um segundo momento, aqueles meninos
não são os “nossos” meninos, não interessam mais. São anônimos que
morreram. Então, a notícia some. E não some, necessariamente, porque
o dono da emissora é cúmplice dos matadores ou porque tem a ver
com uma banda podre da polícia. Não é essa a sordidez do assunto. É
mais sórdido do que isso, porque tem uma sordidez light, inocente. Some
porque não vende jornal, some porque não interessa ao espectador do
Jornal Nacional ou do Jornal da Band, enfim. Então, desaparece a notícia.
E, como as investigações são conduzidas de acordo com o interesse da
sociedade, é evidente que esse crime ficará impune.
No caso da Barra da Tijuca, por que esse crime volta a ser discutido?
Porque os espancadores da doméstica são garotos de classe média.
Aí, todos os pais de classe média, todos os compradores de jornal, os
espectadores do Jornal Nacional estão interessados em saber como isso
aconteceu, imaginam que poderia ter sido o filho deles, etc. Então a
investigação prossegue. E é bom que prossiga. O ruim é que as outras
investigações não prossigam.
Então, o que quero mostrar é que esse é outro aspecto da predominância
do privado sobre o público, quer dizer, a cordialidade produz efeitos pouco
éticos sobre a informação, principalmente a televisiva. O primeiro aspecto
é a predominância do emocional sobre o analítico. Quando uma notícia

351
não tem grande impacto emocional, ela é artificialmente produzida,
na edição, o que caracteriza a distorção da notícia. Não é pelo aspecto
emocional que se deve chamar a atenção do espectador. Se a notícia
não tem impacto emocional, mas é importante pelas conseqüências que
traz para a sociedade, tem que ser analisada em seu teor objetivo. E, se
tem grande impacto emocional, o telejornalismo deve ter critérios para
não abusar do apelo emocional, pois estes interferem nos critérios de
julgamento éticos. O apelo emocional favorece a tendência a julgamentos
sumários, freqüentemente injustos.
O segundo aspecto da cordialidade e da prevalência dos interesses e
valores privados sobre os públicos é que esses interesses privados, não só
dos anunciantes mas também os dos espectadores e leitores, prevalecem
sobre a obrigação jornalística de informar e dar equilíbrio, dar igual peso
às notícias, independentemente da classe social em que aconteceram e
de quem será ou não afetado.
Um exemplo: quando começamos a questionar os investimentos da
prefeitura em tal ou tal bairro segundo o critério de “quero ver onde está
sendo aplicado o meu dinheiro”, estamos, na verdade, partindo de nossos
interesses privados, do que atinge nosso bolso. Mas esse não é o critério
para avaliar ações de prefeituras e governos. Quem mora nos bairros ricos
paga mais impostos, mas a prefeitura pode usar esse dinheiro para poder
fazer, como no caso da gestão da Marta Suplicy, melhorias nos bairros
pobres. Não se trata de “eu pago, eu recebo”. Pago porque sou um cidadão.
Pago porque sou obrigado a pagar. A questão não é se a destinação me
beneficia diretamente, é se a destinação beneficia a cidade. Por fim, vale
lembrar o vício anti-republicano embutido no termo “bairro nobre”, tão
comum na imprensa. Os jornalistas ainda pensam que vivemos em uma
sociedade aristocrática? Existe bairro rico, e não bairro nobre. Não há
mais nobres no Brasil. Pelo menos isso!

352
Ética e pensamento na mídia

Gustavo Barreto
Ao refletir sobre a publicidade, percebo como, hoje a imprensa,
tal como está constituída - e acho que há um projeto de mudança -,
tradicionalmente não é um lugar de pensamento, não realiza nexo causal
entre os fatos. Por exemplo, o “Caveirão” (carro de guerra da polícia militar)
é produzido pela Ford, que tem muitas ações socioambientais, mas que
participa dessa tática genocida da polícia no Rio de Janeiro. É a instituição
da pena de morte e da guerra, desse imaginário de guerra, com inimigo
constituído. E quem é o inimigo no Rio de Janeiro? O pobre.
Acho interessante resgatar, na minha apresentação, a questão da
subjetividade e da coletividade. E começo por um caso interessante.
Observei a abertura do G8, e a mídia, ou aquilo que entendemos como
mídia, utilizou, também nesse caso, frases feitas, como sempre se dá. A
frase do G8 foi que o Grupo deu U$ 60 bilhões de ajuda para a África.
Isso me parece ingênuo, talvez, pois constrói-se o imaginário de ajuda
à África que todos temos. E isso era repetido incessantemente, sem que
tivesse havido investigação.
Busquei informações e, em apenas dez minutos, descobri o que
ocorria. São governos ajudando entidades ou outros governos. Então,
toda a verba é pública, ou seja, tem controle. Fui, então, buscar o que
existia dessa verba, e descobri que U$ 3 bilhões eram verbas novas, e os
outros U$ 57 bilhões eram verbas já prometidas na reunião anterior, em
2005, e que não haviam sido encaminhadas.
A segunda questão: para fazer a matéria, peguei como referência um
país que supostamente estaria sendo ajudado – Mali, da África Central,
que possui todos aqueles padrões de exploração, é governado por
pessoas que estão de acordo com as políticas externas de organismos
internacionais e adotam práticas nada recomendáveis ao país e ao povo;
por exemplo, como um país que precisa de tanta ajuda internacional
deve, como os demais, reduzir tantos custos públicos? Isso não tem o
mínimo senso. Conto esse caso do G8 porque essa é uma lógica. Qual?

353
Quando se chega em uma redação para produzir a informação,
existem muitos assuntos que já estão dados. Alguns assuntos não estão
em discussão, outros são o assunto do dia que todos devemos discutir.
E não há condição de nos contrapormos a isso. É óbvio que temos que
falar sobre isso. Por que? Quem disse? Quem determinou? Se formos fazer
um outro estudo, pensar em outras perspectivas, não há viabilidade. Há
uma pauta mais importante, há assuntos que devem ter continuidade,
matérias da semana passada a serem continuadas. No entanto, os temas
são pré-determinados, em grande parte.
A outra lógica é a da objetividade. O jornalista chega no telejornal
e anuncia a notícia de forma imparcial. Ele está de longe, como um ser
supremo, de fora. É a voz em off que está dando a verdade dos fatos.
Como não se pensa nisso, não se percebe que esse é um corte que sempre
externa a raiz de pensamento daquele meio de comunicação. Não existem
iluminados que percebam isso. É uma lógica. O telespectador recebe a
notícia que usa elementos que nos são comuns.
Um aspecto muito importante nesse processo é a subjetividade. A
mídia, de forma geral, não trabalha com valores ideais, que nos são
estranhos, que são bonitos. Não. Existe um escritor francês do século XIX,
Jean-Gabriel Tarde, que faleceu no começo do século passado e agora
está sendo retomado. Ele dizia: “Façamos uma experiência. Sai o jornal
do dia. Você começa a ler com muito interesse. Daqui a 20 minutos, você
percebe que não era o jornal do dia. Você viu a data e se equivocou.
Então, imediatamente, você perde o interesse pelo jornal”. Existem várias
versões sobre a razão de esse fato ocorrer. Ele argumenta que, quando
se lê o jornal do dia, uma pessoa acaba por se conectar mentalmente
a várias pessoas que também estão lendo o jornal do dia. Em minha
mente, existem várias pessoas que estão fazendo a mesma coisa.
É interessante perceber que, além da globalização econômica, política,
desigual, existe, há muito tempo, uma espécie de globalização mental,
de pensamento. A realidade é um conceito específico para cada época.
Naquela época em que Jean-Gabriel escrevia, pensava que a realidade
era o que ele conhecia, os países que existiam. E até hoje é assim. Se não
conheço algum país, efetivamente não sei se ele existe. Há um país na Ásia

354
chamado Butão. Eu não sei se ele existe. Ele não existe, poderia imaginar.
Com isso, constrói-se uma cadeia de pensamentos. É essa coletividade
produzida que a mídia usa, especialmente com os destaques.
Há uma partida de futebol que envolve dois milhões de pessoas ao
mesmo tempo. Nessa perspectiva, a mídia usa a subjetividade das pessoas
e, de certa forma, o senso coletivo, para provocar sentimentos, resgatar
aquilo que julga importante para os interesses do órgão de comunicação.
Por que as celebridades que, muitas vezes, não têm nada para nos dar
são tão importantes, têm tanto destaque? Por que, por exemplo, em uma
cidade grande em que as pessoas se sentem cada vez mais isoladas, elas
se identificam com as celebridades?
Outra questão que gostaria de ressaltar é a responsabilidade da mídia.
Cito um caso: certa vez li, em um grande jornal do Rio de Janeiro, uma
reportagem de página inteira, com destaque na capa, sobre o neonazismo
no orkut, esse site virtual de relacionamentos. Havia vários dados, e,
curioso, tive de fazer uma pesquisa. Não consigo tomar conhecimento
de um fato e deixar de interferir, pelo menos mentalmente. Descobri, em
uma hora, que existem 20 comunidades neonazistas no orkut. Delas, 18
haviam sido feitas pela mesma pessoa, e nenhuma delas tinha mais que
12 pessoas, quer dizer, são poucas pessoas, mas, dentro desse jornal, há
a decisão política de usar uma página inteira para o tema, destacando e
aumentando, de forma considerável, o problema.
Outro caso que achei, que não é algo isolado, é o Jornal do Brasil ter
colocado a fotografia de atores que estavam fazendo um filme sobre a
violência no Rio de Janeiro. A frase era: “os traficantes não obedecem
mais limites”. Estavam no orkut. Na verdade, eram apenas atores, mas o
JB os tomou como traficantes para reforçar a lógica da guerra no Rio.
Tenho esse material, fiz um estudo sobre ele.
A explicação do JB no dia seguinte foi sensacional. Foi em um artigo
curto, no site do Observatório da Imprensa. Foram duas explicações
básicas. A primeira foi que o jornalismo do JB é “perseguido” pelos
outros jornalistas e pela imprensa em geral. A segunda era que a foto
dos supostos traficantes estava em “vários lugares da internet”, por isso
seria válida jornalisticamente.

355
O que me interessa é que isso revela um desconhecimento completo
da dinâmica da comunicação atual, moderna, descentralizada e, depois,
a falta de humildade. O jornal nem sequer pediu desculpas. Então, esses
são casos.
Não cito o caso da Venezuela, porque é um assunto que acho que
pode ser tenso, mas basta olharmos para um dado muito simples.
Imagina se o Ali Kamel, vice-diretor executivo da Rede Globo, contribui
decisivamente, utilizando sua empresa privada, para um golpe de Estado
contra o Lula e consegue realizá-lo. Dois dias depois, o Lula volta ao
poder e esse diretor-executivo fica impune, sem qualquer justificativa
pela ação ilegal para a nação. Foi o que aconteceu na Venezuela. O vice-
diretor executivo da RCTV é o ativo participante de um golpe de Estado,
inclusive aparece nas fotos realizadas no Palácio no dia desse golpe. Cada
processo é diferente, mas imaginem isso no Brasil. É absurdo. Não estive
na Venezuela, não sei o que acontece, não sei quais foram os motivos do
fechamento da RCTV.
E assim é em Cuba. Há aqueles que defendem e os que são contra,
cada país tem seu processo, Cuba tem seu processo, seus problemas.
Eles pensam de modo diferente, principalmente em relação à imprensa.
Eles têm uma lógica diferente, e precisamos nos deslocar até ela. Esse
deslocamento que precisamos fazer é algo parecido com o que acontece
quando me apaixono perdidamente por uma pessoa. Nesse momento, há
um deslocamento completo da minha realidade, pois estou totalmente
imerso nessa nova paixão, e, portanto, vejo a vida de uma forma diferente.
Então, creio que o processo de imersão é útil para não se dizer frases
soltas, repetidas e vazias, algo que a imprensa faz cotidianamente.
Para finalizar, gostaria de falar sobre nossa metodologia de ação.
Fiz estudos sobre a economia de mídia e, em um estudo denso sobre
a revista semanal Veja, descobri que a publicidade está muito ligada ao
que se publica nos jornais. As matérias estão diretamente relacionadas
aos empresários e aos políticos interessados naquela versão. Então, é
indissociável o do poder financeiro do poder midiático, que é um poder
que pode ser útil à população, mas que é freqüentemente útil apenas a
outros poderes, os poderes políticos e econômicos.

356
Nesse sentido, creio ser importante parar de consumir e de pagar pela
mídia tradicional, pois, se a achamos ruim, que a critiquemos, se não
concordamos com a sua lógica, mudemos essa lógica.
A revista Viração, por exemplo, que é uma revista de jovens com uma
proposta inovadora, além do conselho editorial tradicional, tem um
conselho pedagógico, formado por educadores e psicólogos. Alguém
imagina isso num meio de comunicação tradicional? Então, precisamos
começar a privilegiar a solução. Trago um exemplo da área de saúde,
a homeopatia. Ela tem uma filosofia diferente daquela do remédio
tradicional. A homeopatia não trabalha no ataque à doença. Atua com
o conjunto de partes do corpo que estão saudáveis. Há um estímulo ao
organismo, e não um combate à doença em si. Podemos fazer essa interface
aqui. E lembrar, para concluir, uma música do Milton Nascimento: “Nada
a temer, senão o correr da luta, nada a fazer, senão esquecer o medo”.

357
Ética e pensamento na mídia

Mauro Malin
Quando recebi o convite para tratar do tema “ética e pensamento”,
pensei que não poderia fazê-lo, pois não tenho treinamento nem de
Filosofia, nem de Antropologia e nem de Psicologia. Então, resolvi separar
os temas.
A única palavra abrangente e que pode sintetizar ética eu diria que é
humanismo. Se há algum tipo de humanismo dentro de uma redação,
se a cultura daquela redação tem o humanismo como norma, podemos
avançar de alguma maneira. Essa discussão é complexa. Evidentemente,
os profissionais da TV Globo, para citar o exemplo mais relevante, dirão
que são humanistas, e não dá para dizer que eles não sejam humanistas
ou que a maioria não seja humanista. Para efeito de raciocínio, podemos
equiparar a mídia a uma instância de governo, principalmente essa
grande mídia que é a TV Globo. Sempre digo que não mais se governa o
Brasil sem essa mídia. É totalmente impossível. Pode-se tomar qualquer
exemplo, desde campanha de vacinação até paralisação de aeroporto.
Então, podemos exigir que a imprensa tenha um comportamento e uma
visão que sejam comparáveis àquilo que exigiríamos do governo, que não
vai, em tese, privilegiar interesses privados. A realidade da qual estamos
falando é muito pior do que imaginamos.
Depois, há a questão do pensamento, que é a abrangência contraposta
à especialização. Como se forma um indivíduo para que ele venha a ter
uma visão abrangente e, ao mesmo tempo, se especialize em determinado
assunto? Ele vai consumir as horas de estudo, de reflexão, para se especializar.
Se alguém não fizer o trabalho de pensar o tempo todo... Desconfio que
essa seja a realidade de hoje: cada vez menos indivíduos preparados para
pensar sobre o todo, dirigindo pessoas que farão coberturas específicas de
determinados assuntos.
E temos a questão política. Tanto na ética como no pensamento, temos
uma submissão dos meios de comunicação a determinadas articulações
políticas. Isso, normalmente, não ocorre de maneira explícita, mas há casos
de explicitação da vassalagem política. Cito o caso do Complexo do Alemão,

359
que não foi planejado, mas foi uma fuga para a frente da polícia, e que é
noticiada como planejada, organizada. Isso é uma descarada mentira. O
jornal compara essa tese porque, se não apoiar o Sérgio Cabral, apoiará o
Garotinho. É o mesmo padrão existente há muitos e muitos anos.
Queria chamar a atenção para alguns aspectos que Maria Rita citou
e que precisam ficar guardados. O primeiro deles é que a televisão aberta
não é gratuita. Esse ponto é essencial, porque a propaganda da TV aberta
afirma que ela é gratuita e que traz informação, educação, entretenimento
para a família brasileira. Isso é mentira. Para ser gratuita, a TV aberta deveria
começar dando o aparelho de televisão para as pessoas, mas você compra a
televisão, paga a energia e compra os produtos da publicidade embutida na
programação. Esse é um tópico que não agrada às emissoras de televisão,
evidentemente, e eles dizem que as pessoas que dizem isso querem que tudo
fique na mão do Estado, seja escravizado a determinado esquema. Acho
que, com o Estado [monopolizando os meios de comunicação], seria muito
pior do que a TV Globo que temos. Sou contra Chavez fechar emissora de
televisão, mas o discurso deles não é verdadeiro. A Maria Rita aponta essas
questões com muita propriedade. Eu faria um pequeno contraponto, que
é a questão da publicidade no jornalismo. Acho que a publicidade também
se beneficia com o jornalismo. Há uma via de mão dupla nisso. Então, por
exemplo, há 15 anos, começaram a fazer jornal em videotape para veicular
informações nas empresas. A maioria dos produtores adotou o mesmo
formato: um homem e uma mulher apresentando juntos o jornal. Igual ao
Jornal Nacional. Acho uma perversão do jornalismo usar a sua influência e
colocá-la na publicidade, mas não há como proibir isso, e precisamos ficar
alerta. No ano passado, houve o episódio do PCC em São Paulo, um dos mais
impressionantes que me foi dado ver. Houve algum problema no acordo
entre o Governo e os bandidos, e ocorreu aquela situação. Acompanhei o
máximo que podia. Quando explodiu no Rio, às vésperas da posse do Sérgio
Cabral, com a queima de um ônibus interestadual, um dos atentados mais
tenebrosos na história deste país, resolvi fazer algo diferente. Pensei que
precisávamos sair do ritmo da mídia e entrar em outro ritmo. Provoquei
um debate chamado Debate busca as raízes da violência, e convidei
pessoas que conheciam o assunto e também jornalistas. O primeiro foi

360
em janeiro, o segundo em março. O que as pessoas dizem é que a polícia
militar desempenha, no Brasil, o papel que a máfia desempenha da Itália.
Não se encontra isso em linha de jornal algum em nenhum momento. Eles
jamais dizem isso. Fiz questão de procurar pessoas e colocar que poderiam
falar o que quisessem, para chamar a atenção para uma outra visão desse
processo todo. Então, quando é dito que a polícia militar, com a ajuda das
polícias civil e federal, cercou, invadiu, que acerto há nisso? Quem irá se
beneficiar? Eles me disseram também que o “caveirão” é alugado. Uma
quadrilha aluga a incursão de um batalhão com o “caveirão” para desalojar
outra quadrilha. Isso foi dito e está publicado na internet. É chocante, está
completamente fora do discurso oficial.
Então, quero dizer que existem maneiras de se contrapor a essa narrativa
que convém. E as redações poderiam fazer mais nesse sentido, por isso,
sempre convidei jornalistas dos diferentes órgãos: um da TV Globo, um
do jornal O Globo e um do jornal Folha de São Paulo. No primeiro debate,
foram todos; no segundo, dois não puderam ir, e, no terceiro, três não
puderam ir. Mas continuarei tentando.
No terceiro debate, havia um coronel da PM, e quando eu disse que
a PM representa no Brasil o que a máfia representava na Itália, ele disse
que não era a PM, é o Estado, é o Estado brasileiro. Ele dobrou a aposta. A
sua consciência o impeliu a dizer a verdade. Não é a PM, a Polícia Militar é
um aparato de suposto controle do uso legal da força. São os acertos que
patrocinam o caixa dois eleitoral, porque os comandantes de batalhão são
cabos eleitorais e são arrecadadores de finanças, e isso também acontece
com os delegados de polícia. Esse fato se repete em São Paulo. Por essa
via, o PCC também tentou eleger candidatos, e, por essa via, foram eleitos
indivíduos, na cidade e no estado do Rio de Janeiro, que deveriam estar na
cadeia. E estão no Legislativo. Pergunto se isso é veiculado pela imprensa
e como poderemos melhorar o padrão do relato do assassinato dos jovens
no Jaraguá, bairro de São Paulo, que realmente foi esquecido, e de tantos
outros fatos que foram esquecidos?
Para finalizar, quero dizer que, no documentário Raízes do Brasil,
do Nelson Pereira dos Santos, quando se fala sobre Sérgio Buarque de
Holanda, Antônio Cândido termina dizendo que D. Amélia foi essencial não

361
somente porque foi mãe do Chico Buarque, mas porque foi uma mulher
que participava da pesquisa, da busca, da investigação. E termina dizendo
que queria entender o seguinte: Sérgio Buarque de Holanda escreveu
sobre um país que não era mais Portugal. Tinha deixado de ser Portugal por
causa dos imigrantes (não os forçados, os escravos), porém, o Brasil que
era Portugal está perfeitamente vivo. E esses são os nossos dramas mais
essenciais. O Brasil da escravidão, da exclusão, dos preconceitos, está aí.
Olhem as fotos do Complexo do Alemão e verão pessoas descalças ou de
chinelo. Olhem as fotos da época da escravidão. São as mesmas pessoas,
vivendo quase do mesmo jeito.
Em homenagem a uma das pessoas que me chamou a atenção para
isso, o geógrafo Andrelino Campos, que escreveu Do Quilombo à Favela,
hoje fui ao Parque da Catacumba, onde havia quilombo. Campos dizia: “Já
havia quilombo na zona sul”. A favela não começou depois da Guerra de
Canudos. Fui lá, e realmente há vestígios, como fundações de casas, que
antecedem à Favela da Catacumba, que foi erradicada.

362
Democratização da comunicação

Coordenação
Marcos Ferreira

363
Democratização da comunicação

Celso Schröder
Quero fazer um agradecimento que efetivamente saia da retórica,
pois participar de um evento desta natureza, com este grupo e com esta
organização, é importante para o FNDC, porque trouxe uma visão de
mundo que fazia falta para os atores presentes no Fórum. Quando vim
para cá, pensei em traduzir o meu discurso para psicologias, se é que isso
existe, e tentar fazer a conexão com alguns temas que imaginava fossem
acessíveis. Desisti, principalmente pela diferença do tema, e decidi mostrar
que, quando esse discurso chegou ao FNDC, ele se tornou mais complexo,
mais plural, e, principalmente, trouxe uma visão que faltava ao Fórum.
Outro elemento de destaque é o peso que o Conselho Federal de
Psicologia tem como organização, como instituição, quer dizer, o
movimento institucional e nacional que o Conselho fez foi fundamental
para dar ao FNDC a estatura que imaginamos para ele lá no início,
quando pensamos nesse espaço público como um local destinado
a realizar a luta pela democratização da comunicação. E, finalmente,
porque vinha de encontro a uma concepção importante para um de
nossos formuladores, o Daniel Hertz, que sempre dizia que essa luta
não tinha sentido se permanecesse como estava por grande parte do
tempo. Começamos, então, a fazer o debate e a formulação de uma nova
forma de se produzir comunicação no País, pois não fazia sentido que ela
ficasse restrita aos lutadores, aos trabalhadores da área de comunicação,
aos jornalistas que, de alguma maneira, iniciaram esse processo. Então,
não teria sentido deixar o trabalho restrito a esses atores pela dimensão
que a comunicação assumia naquele momento, e exigia da sociedade
brasileira um espectro muito maior, uma franja muito maior do que só
com esses atores. A presença do CFP consolida isso, demonstra isso de
uma maneira absolutamente visível, com a presença de psicólogos em
um debate que não teria sentido há alguns anos; hoje um debate como
esse é extremamente pertinente.
Tenho que fazer uma referência concreta às presenças da inteligência
alegre e carioca da Vera Canabrava, da sabedoria zen do Marcos Ferreira
e da competência e presença constante do Ricardo Moretzsohn.

365
A minha apresentação parte de um enfoque do panorama dos
processos de luta democrática, da luta pela democratização da
comunicação. E o que isso significa? Simplesmente a apresentação de
maiores possibilidades, de maior diversidade, de diversificar a propriedade
dos meios, que era uma das visões clássicas da esquerda? Parece que
não. A luta tem alguma complexidade.
Quero falar um pouco da origem desse debate contemporâneo de
nossa luta. Ela reaparece pós-Constituinte, com o sentimento de um
déficit democrático, já que o País se redemocratiza em vários sentidos,
em várias dimensões, mas, na área de comunicação, há uma deficiência
localizada. Efetivamente, apesar de algumas deficiências, a democracia
se instala, e a Carta Constituinte revela isso em alguns aspectos, como no
meio ambiente. Na área de comunicação, era visível a falta de avanços.
E isso era expresso nos quatro artigos constitucionais que apontavam
aspectos muito tênues, muito exíguos, não só em seu número como
também em sua explanação. Desses artigos, 99% não estão regulados.
Não está lá sequer a primeira frase, que é importante para qualquer país
civilizado, o controle sobre os monopólios e oligopólios, e o monopólio
da comunicação exprime uma dissimulação do espaço democrático
do ponto de vista capitalista pleno, do ponto de vista da concorrência
comercial, tanto que a proibição do monopólio e do oligopólio não é
exclusividade da Constituição brasileira e nem sequer das cartas de
países de esquerda, dos países liberais. Essa expressão do oligopólio e do
monopólio sequer está regulada. Não temos regra alguma. E por quê?
Porque tinha se formado, ao longo desse período, especialmente na
ditadura militar, um segmento que foi importante para a manutenção do
regime autoritário e que cresceu junto com esse regime. Com o final do
regime, ele se apresentava com um monumental poder, formado por rede
de televisão brasileira, principalmente, e que tinha, dentro do Congresso
Nacional, uma expressão completamente desproporcional em relação às
demais representações dos outros segmentos da sociedade. Então, esse
segmento de produção de opinião apresentava, em alguns debates, em
alguns segmentos, visões teóricas sobre o quarto poder. E nós preferimos
não atribuir a ele poder algum. É um serviço importante, fiscalizador da
democracia, não há dúvida alguma, a liberdade de expressão é um bem,

366
isso não é uma falácia, é um direito humano, é um princípio, e, portanto,
precisa ser garantido, mas não é propriedade de alguém. Então, essa
desproporção, por exemplo, na representação daquela Constituinte,
expressava isso, e há dados que comprovam o número de proprietários
ou testas-de-ferro dos meios de comunicação. O relatório feito pela
comissão responsável por esse artigo da Constituição foi encampada
pelo Antônio Brito, que depois foi governador do Rio Grande do Sul, mas
que se elegeu Deputado Federal a partir do momento em que exerceu o
cargo de porta-voz do Presidente Tancredo Neves, especialmente por ser
homem da Globo. Todo esse embate mostrou que era importante fazer
um movimento nacional que não defendesse simplesmente os interesses
da comunicação, mas alguns princípios contemporâneos que tentassem
dar concretude a essa visão de democratizar sem simplesmente distribuir
a propriedade.
O primeiro deles é a percepção que já tínhamos naquele momento,
a de que a TV passava a ser um instrumento central da comunicação do
País, o mais importante. Naquele momento era assim; hoje é gritante.
Temos um número de televisões que ultrapassou o número de rádios nas
residências. Temos uma exposição maior, por exemplo, que a americana.
São mais de quatro horas de presença individual em frente à televisão
brasileira, isso porque, obviamente, há uma política pública que deposita
nessa rede uma tarefa de construtor de uma visão de mundo e que
tem seu lado positivo, inclusive, de construção de nação, e que ajudou,
dentro do regime autoritário, obviamente com suas contradições, a
produzir o país que temos atualmente. Mas, efetivamente, há uma
absoluta hegemonia desse meio, que produz, entre outras coisas, uma
sociedade absolutamente audio-visual, com uma incapacidade de leitura
que já começa a se tornar visível. Há um baixíssimo índice de leitura de
jornal. E isso não tem relação com a capacidade financeira. Há países
com renda per capita menor que a nossa nos quais o nível de leitura é
muito maior que o nosso. Isso significa que temos cidadãos com uma
formação e uma capacidade de aprendizagem e de conhecimento com
uma visão de mundo, apenas e certamente, se tivermos outros meios,
isso será mediado. Não podemos esquecer que os meios, obviamente,
não permitem que tenhamos a visão completa de mundo, mas eles nos

367
ajudam. Talvez a maior obra literária do mundo seja Dom Quixote, que
representa a reação, naquele momento, a um livro que, no entendimento
do Cervantes, enlouquecia o Quixote, porque impedia que ele tivesse
contato com a realidade concreta. E, mediado por esses livros, ele se
perdeu. Essa metáfora do Quixote, obviamente, demonstra que todos
os meios são limitados, têm características próprias, têm sua natureza.
Certamente a televisão traz vantagens, mas tem uma forma de produzir
conhecimento e de influenciar a vida do cidadão que precisa ser avaliada.
Se temos quatro horas a mais que qualquer país no mundo, isso é relevante,
mas, com uma rede de televisão que tem 70% de financiamento e uma
rede de televisão que tem 90% em alguns momentos, de audiência, e o
País ainda permite isso, precisamos pensar sobre esse fato.
Então, esse centro do debate na televisão é importante, porque ela
tem a característica de ser mais suscetível ao debate público. Voltarmos
o debate para esse veículo que produz mais consciência do que qualquer
outro no País é essencial, e tornou-se o centro e a atuação do FNDC.
Refiro-me ao momento de ter um conjunto de entidades e pessoas que
lutam e que, a partir dos anos 90, organizam um espaço e, obviamente,
se juntam a outros atores.
Outra colocação que me parece pertinente e supera a visão que
tínhamos na esquerda e que teve origem no campo da política, no campo
teórico, era a de dar um local para a democratização. A democratização
aconteceria quando tivéssemos isto ou aquilo, quando tivéssemos os
jornais nas mãos dos operários, quando tivéssemos os conselhos de
comunicação, enfim, quando tivéssemos ações democratizadoras do
ponto de vista dos atores democratizantes. Começamos a perceber que
isso não era verdade. O próprio processo da democracia, e isso parece ser
um fruto da nossa reflexão pós-queda do muro, pós-crise do socialismo
real na Europa, acontece permanentemente, não tem um fim, ou seja,
essa idéia de que chegaríamos em algum momento à sociedade ideal
foi uma falha dialética que ainda hoje temos dificuldades para resolver,
mas está dada e determina uma necessidade constante de atuação. Não
aconteceria aqui e nem com quem. Os agentes que trabalham com isso
tem a tendência de acreditar que seu ponto de vista seja o correto. No
campo da comunicação, o princípio é a pluralidade, portanto, essa idéia

368
de permanência do processo sem local fixo e fora das mãos de agentes
específicos é relevante.
Outro elemento que quero trazer, porque está em debate atualmente,
é a idéia de quanto o Estado representa o público. Obviamente, com a
democracia representativa, o Estado representa, em alguma dimensão, o
público. Movimentos sociais e partidos políticos começavam a trabalhar
com esse conceito, e perceberam que era necessário um outro tipo de
inserção do público, pois ele representa esses espaços muito valorizados
pela democracia participativa. Isso parecia um pouco deslocado. Como
implementar essa democracia participativa? Percebeu-se que seria
possível fazer cortes transversais. A experiência demonstrava isso, a
Europa demonstrava isso, com seus Conselhos. Enfim, percebeu-se que
seria necessário trazer uma representação social, o controle social,
para dentro da idéia de controle público, enfrentando um debate que
ainda era hegemônico, e que qualquer tentativa de incidir sobre as
atividades de comunicação teria uma característica de censura, qualquer
movimento que se fizesse nesse sentido teria a característica de censura.
E isso precisava ser enfrentado. Aliás, precisa, pois ainda há um discurso
hegemônico.
A idéia de controle público ainda é fundamental. A sociedade
precisa criar mecanismos para incidir sobre os meios, sejam quais
forem, e principalmente em relação ao rádio e à televisão. Tempos atrás,
foi publicado um artigo do Habermas, um filósofo da racionalidade,
importante para o debate da comunicação, que retoma essa idéia de
esfera pública e denuncia, de alguma maneira, a refeudalização da
sociedade quando fragmenta a comunicação. Voltamos a um período em
que a esfera pública não existia. Existiam as esferas privadas. Ele aposta
na ação comunicativa como elemento democratizador e civilizador.
Esse filósofo, ao analisar a mídia impressa européia e detectar o grau
de comercialização, começa a dizer que a natureza pública de qualquer
exercício, de qualquer atividade de comunicação, seja ela TV ou rádio, é
essencialmente pública, porque o Estado precisa administrar a escassez
do espectro. Dizemos há algum tempo que não é isso que a torna pública;
o que a torna pública é seu conteúdo, ou seja, que, a exemplo da TV e do
rádio, que são nitidamente públicos por essa característica da escassez

369
do espectro, o jornal, e isso é uma surpresa inclusive para jornalistas, pois
não é um tema fácil, também precisa ser avaliado, é necessário buscar
as formas de incidência nos jornais, pois não estão produzindo qualquer
tipo de produto. A sociedade precisa repensar e retomar aquilo que é
dela; tem esse direito, previsto na Constituição. É o direito de expressão,
que não é o direito de expressão do jornalista, do jornal. É o direito de
ser mediado.
Gostaria de estabelecer uma diferença, a de não se poder, no meu
ponto de vista, atribuir à internet o papel de meio. Ela não é um meio. É
tudo o que foi dito e, inclusive, tem uma capacidade de entropia visível,
porque tem um grau de informação incapaz de ser absorvida por um ser
humano, o que a torna inumana, nesse sentido. Portanto, ela somente é
meio quando é mediada. Esse é o papel da comunicação social. Quando
falamos de democratização da comunicação, não nos referimos à
comunicação interpessoal. Esse direito está na luta dos direitos básicos.
Falamos em comunicação social quando há alguém mediando, e esse
alguém precisa estar sob controle público, seja jornalista, seja meio,
seja rádio comunitária, seja quem for. A idéia de mediação precisa estar
sob controle, não a sua programação, da qual podemos não gostar, mas
precisamos garantir a pluralidade dos meios, principalmente o debate
que a sociedade precisa fazer sobre seus conteúdos, e o debate social
sobre conteúdo é mais do que ligar e desligar um aparelho. As empresas
de comunicação dizem que se democratiza à medida que se acessa ou
não o produto, e a garantia de que o produto é necessário se dá porque
a audiência é alta.
Enfim, quero encerrar com um eixo que diz respeito aos psicólogos, e
acho que é o que diferencia esse momento da luta, que é a necessidade
de capacitar a sociedade. Mais do que distribuir meios, mais do que
possibilitar que a sociedade tenha acesso aos meios, é aprender junto, é
construir uma compreensão do que está sendo construído. Precisamos
buscar o entendimento dos mecanismos complexos desses meios, que,
efetivamente, são cada vez mais complexos, desde a produção de novelas
ao encadeamento de uma grade de programação de televisão, desde a
forma com que o Jornal Nacional é apresentado até a própria sociedade
produzir a sua fala.

370
Isso não significa, e quero deixar isso claro, que abrimos mão de incidir
sobre os meios, os chamados grandes meios. A compreensão de controle
público se aplica à idéia de poder incidir nos meios, desde os grandes
até as rádios comunitárias. E a grande aposta que fazemos para reverter
a situação é um grande debate nacional sobre a Conferência Nacional
de Comunicação. Pela primeira vez, faremos um pacto com a sociedade
brasileira sobre tudo o que diz respeito à comunicação, principalmente
sobre a forma como a sociedade pode incidir na sua política pública e
na sua regulação.

371
372
Democratização da comunicação

Ricardo Vieiralves de Castro


O tema proposto para o encerramento deste Seminário promovido
pelo Conselho Federal de Psicologia não podia ser mais oportuno e
urgente. A abrangência da relação entre mídia e democracia me obrigou
a optar por alguns aspectos em detrimento de tantos outros, também
importantes. Minhas reflexões basear-se-ão em três eixos situados sobre
o modo de vida contemporâneo e serão orientadas por uma abordagem
psicossocial, essa espécie de Psicologia social que compreende o seu
objeto na interação entre o social e o indivíduo, de maneira dinâmica, a
partir da interpretação do fenômeno na vida e no cotidiano.
O primeiro eixo que gostaria de considerar está em uma equação que,
aparentemente, demonstra uma contradição. A questão democrática
contemporânea tem seu problema no excesso de mídias, no que é
produzido e nos meios utilizados para a veiculação. Até pouco tempo,
o centro de nosso problema se estabelecia no acesso às informações.
As teorias sociológicas marxistas e pós-marxistas consideravam um
dos problemas da consciência o impedimento deliberado do acesso aos
bens de informação disponíveis, sendo que esses bens, restritos a um
determinado grupo social, se tornaram instrumentos de dominação,
alienação e promoção de ignorância sobre os acontecimentos
sociopolíticos. A concepção baseada na conscientização da ação
política, fundamental para a promoção de mudanças sociais, ancorou-
se no binômio democracia–acesso e combateu a restrição como
movimento ideológico de dominação. A dimensão contemporânea das
mídias, portanto, deslocou esse eixo para outro muito mais complexo e
sofisticado. Houve, a partir das últimas décadas do século XX, uma espécie
de big bang nas possibilidades de comunicação, que se encontram em
expansão imensurável, o que gerou uma multiplicidade de formas de
comunicação, uma geração exponencial de informação e a necessidade
de criação de instrumentos poderosos de navegação. O acesso dos bens
de informação, antes desse novo universo, era para os que tinham um
gradiente razoável de informação e de renda, mas esses bens hoje são

373
de acesso generalizado: a internet, os DVDs, as rádios, os canais de TVs
permitiram um acesso quase universal aos meios de comunicação.
Tomando a internet como exemplo, o imperativo diante da quantidade
de informação disponível exige de nós uma ferramenta de navegação
que não atinge de maneira irrestrita todas as informações disponíveis na
rede. O exemplo disso são os acordos dos donos do google na China para
criar bloqueadores de informação na rede para o acesso aos chineses
que defendem a idéia de que esses navegadores podem ser ferramentas
de acesso restrito, dependendo dos interesses do dono e do acordo, na
realidade, com o Estado.
Essas ferramentas de busca tornam, a meu ver, disponível a
inacessibilidade da informação. Essa é uma equação paradoxal.
Vamos a exemplos. Digitei a palavra Psicologia no google e obtive,
sem nenhum rigor empírico, a solicitação atendida 26.900 mil vezes,
aproximadamente, como diz o navegador, que não cita o número exato.
Pensei: “É um tema genérico”. Vamos discriminar: Psicologia social.
Aparece 2.900 vezes. Psicologia clínica: 2.950 mil vezes; Especifiquemos
mais: neurose: aparece 561 mil vezes; psicose: 412 mil vezes. Ainda está
genérico. Peguemos um conceito da psicanálise recalque: surge 226 mil
vezes. Então, decidi sair dos conceitos e digitar um nome: Freud. Aparece
20.800 vezes. Nas minhas contas extraordinárias, resolvi, para poder ler
tudo o que apareceu sobre Psicologia, dar cinco minutos para cada
consulta, e encontrei, para consultar Psicologia os seguintes tempos:
134.500 minutos, 2.241.666 horas, 93.402 dias, aproximadamente
255 anos. Abri a primeira página da minha maratona para acessar
Psicologia, e tentei entender se haveria um critério objetivo para a
ordenação, visto que, diante dos 255 anos que me esperam, essa é
uma questão fundamental. Descobri que não há sistema por ordem
alfabética, não vi pelos endereços dos sites escolhidos nem pelos títulos
estabelecidos e nem tampouco qualquer critério que conseguisse
observar. Na primeira página, o primeiro endereço era o da Wikipedia,
e o décimo era do Submarino, que vende também livros de Psicologia.
O que tem o Submarino para ficar na 10a posição de minha caminhada
para acessar Psicologia? Pensei em reduzir meus longos anos de leitura

374
sobre Psicologia considerando que, nesses números astronômicos,
existe muito lixo, e posso descartá-lo. O problema é que não sei como
identificar o lixo, o que fará com que minha pesquisa se concentre nas
primeiras páginas escolhidas pelo meu navegador no sistema de busca,
que funciona, na prática, como um tutor não interativo, que não posso
nem criticar, porque desconheço seus critérios de ordenação. Diante
desse excesso de informação, necessitamos de navegadores, mas, na
realidade, não temos navegadores. Temos tutores impessoais.
Isso nos remete ao segundo eixo de nossa preocupação: a ausência de
posicionamento das mídias, que aduz a uma construção que vou colocar
no terreno das ilusões, e que é baseada na idéia de revelação do real.
As mídias contemporâneas ancoram-se no mito da neutralidade e da
isenção, e, por isso, não emitem juízos ou partem de um ponto de vista,
mas são somente reveladoras do real.
Essa ideologia tem conseqüências, a meu ver, muito graves. A primeira
delas é que não devem ter qualquer espécie de controle social, pois,
afinal, se são somente reveladoras do real, o problema é do mundo real,
e não de quem o relata. O controle social é associado à idéia de que é
uma ação política para impedir a revelação da realidade, e de que é, por
isso, ditatorial, antidemocrático, etc.
A segunda conseqüência dessa revelação do real, como reveladora
do real, poderia ser resumida na frase “o real não tem dono, e, por isso,
tudo o que está no mundo pode ser revelado”. Isso cria o fenômeno, por
exemplo, dos paparazzi. Quem não estabelece uma diferenciação entre
público e privado pensa que pode invadir qualquer lugar, que tudo é
real, tudo pode ser revelado, pois o real não tem dono. O ator Eduardo
Moscovis disse que paparazzi haviam tentado subornar vizinhos para
espionar e fotografar sua residência, porque seu filho iria nascer e
queriam fotografar o quarto do bebê em primeira mão. Ele escreve, então
uma carta belíssima no jornal dizendo que há limite para isso. Isso está
na dimensão da revelação do real, faz parte do jogo dessa ideologia.
A terceira conseqüência é que, diante da revelação da realidade, não
há prudência. As informações podem ser velozmente apresentadas com
uma espécie de hiper-realismo acrítico. Isso pode ser apresentado no

375
campo das biografias, ou então, no caso de que todos se lembram bem,
dos diretores de uma escola de São Paulo que foram acusados de pedofilia,
foram massacrados socialmente e perderam todo o campo de negócios,
e, então, descobre-se que tudo era uma farsa inventada por um desafeto.
Mas o fato foi levianamente colocado nas primeiras páginas dos jornais
e nas redes de televisão. Esses professores jamais se recuperaram. E isso
me faz perguntar: a RTV venezuelana pode, democraticamente, apoiar
um golpe de Estado? A Globo pode, “democraticamente”, editar um
debate, como o fez nas eleições de 1989, e interferir decisivamente no
processo eleitoral? Todas essas redes, o tempo todo, e os argumentos que
utilizam em todos os casos são sempre apoiados no direito democrático
de revelar a realidade. Quando a Globo é inquirida sobre a edição do
debate, afirma que apenas revelou o que aconteceu no debate. A RTV diz
que emitiu opinião, que o golpe estava em curso e que tinha que noticiar,
ou seja, não temos posição, mas somente falamos a verdade e revelamos
a verdade da realidade.
O terceiro e último eixo que escolhi é a relação dessa mídia
contemporânea com a memória. É preciso considerar que, na atualidade,
o esquecimento e a lembrança estão associados ao processo de
construção das informações e à desterritorialização de espaços de poder.
Desconsiderar os órgãos de poder político sobre os meios disponíveis
de comunicação e informação e os conteúdos e valores divulgados e
transmitidos ingenuamente estabeleceu uma ilusão sobre os fluxos
de sentido. O excesso na produção e veiculação de informações e as
possibilidades de utilização desses meios diversificados criam um grande e
grave problema na identificação e discriminação dos lugares de memória.
Outra coisa a se constituir nessa geléia geral do mundo contemporâneo é
o que é e o que não é publicidade. A idéia do merchandising contaminou
todas as mídias, e quase não há uma diferenciação entre o que é efeito
ou produto de venda. Como identificar as redes nesses mesmos lugares?
Impossível, como fiz e demonstrei com minha pequena conta, pois são
encontradas em toda sua extensão. Os meios diversificados e a internet
incluíram o paradigma de espaço e tempo nas relações intersubjetivas
e na constituição de valores. Os lugares de memória passaram a ser

376
um signo para os especialistas. Jean Baudrillard, em sua Ilusão Vital,
diz que vivemos em uma época de obscenidades, em que o excesso
de informações põe fim à comunicação. O esquecimento de fatos no
mundo contemporâneo não pode mais ser avaliado sem considerarmos
outra contradição. Produzimos tantos lugares de memórias entrópicos
que nos esquecemos onde eles estão. De maneira analógica, é mais
ou menos o que as mulheres fazem, guardando e guardando tantos
pertences e lembranças de fatos vividos, aqui sem nenhuma provocação,
que têm dificuldade depois para organizá-los e classificá-los. Aos poucos,
somente se lembram que guardaram, mas não sabem o que guardaram.
Dessa maneira, a experiência contemporânea criou uma metalembrança.
Lembramos e lembramos, mas não lembramos mais do que é que
lembramos. Esses fenômenos contemporâneos de informação colocam
o esquecimento no centro da cena do entendimento da complexa rede
de relações humanas. Os lugares de memória perdem sua capacidade
semântica de significados para serem estabelecidos quase como uma
referência exclusivamente quantitativa e formal. Lembramos que temos,
mas não sabemos nem onde nem o quê.
A globalização e a conseqüente desterritorialização do espaço e
das culturas é um importante acontecimento para o entendimento
desse fenômeno que vivemos hoje. O planeta globalizado, também
considerado um fenômeno de comunicação, pretende universalizar
culturas e procedimentos, estabelecer uma nova dimensão de tempo,
o tempo real. Há uma atribuição valorativa nesses interesses sociais,
que encontram na mídia uma difusão não muito hierarquizada, cujo
exemplo claro são as novas colunas sociais nos grandes jornais. A fofoca
e o evento político caminham juntos. O que é veiculado pelas mídias
globalizadas tem a fluidez do extremo, ou seja, é difundido e valorizado
o que é absolutamente universal e o que é absolutamente específico.
Essas duas instâncias, abordadas de maneira extremada, criam um
descompasso com o cotidiano e produzem expressões caricaturais de
uma determinada cultura. O acontecimento do 11 de setembro é um
exemplo disso. O personagem midiático de Osama Bin Laden, que domina
a tecnologia de ponta e vive escondido em cavernas pré-históricas, com

377
o apoio de minorias ultra-específicas do islamismo, é impressionante
como elemento de mitificação e espetáculo. Como estabelecer juízos de
interpretação quando o planeta globalizado é apresentado de maneira
tão dicotômica e tão extremada?
É preciso também considerarmos a valorização da idéia do tempo real
como um fenômeno em crescimento. Não é mais o futuro que se estende
à nossa frente, mas uma dimensão anoréxica, a impossibilidade de ver
além do presente. A memória do futuro diminui na mesma proporção
da memória do passado, em que existe uma transparência geral, em que
tudo pode ser visto, nada mais pode ser previsto. E essa sobrevalorização
do presente, a concepção que se encontra subjacente à ideologia do
tempo real, proporciona um desprezo pelo passado, numa incapacidade
de simular o futuro. O desprezo pelo passado determina a inexorabilidade
do que já ocorreu. Se o esquecimento em nível existencial possibilita a
renovação, o esquecimento permanente impossibilita a renovação. Não
há mais o que renovar. O esquecimento fica intimamente associado às
idéias de repetição compulsória. Essa é uma marca de nossa tragédia
contemporânea. Também essa sobrevalorização do presente incapacita a
simulação, despreza a infinitude do cálculo das probabilidades e dá cabo
principalmente da criatividade. É a constante do tempo social.
Na simbologia do tempo real, o passado desprezado é um estorvo no
excesso que produz. E o futuro também, porque a previsibilidade cria
um excesso a ser descartado. O presente torna-se onipresente. O excesso
desprende-se do múltiplo para ser aceitável somente na condição do
mesmo. Nessa condição imediata, o esquecimento se faz social e se
estabelece sobre uma falta, uma ausência de memória. Investe-se na
cognição do indivíduo. O presente é sobrevalorizado, e todas as funções
cognitivas e afetivas devem estar, de maneira exclusiva, direcionadas para
a apreciação do presente. Isso significa que esse esquecimento não é
mais uma lacuna, mas uma interpretação, a hermenêutica de um tempo
que deve ser desprezado.
A simultaneidade impõe uma desconsideração da memória, que é
sempre hermenêutica. Na mídia contemporânea, o tempo real é o juízo
do acontecimento ou o sentido que se encontra no próprio fato, o

378
realismo radicalizado que precisou de outra denominação: a de hiper-
real. Dessa maneira, as lembranças transformam-se em uma estratégia
minimalista, um contínuo em mutação, e essa mutação só pode ser
percebida de forma sutil ou através de instrumentos poderosos que
consigam identificá-la. Não há, pois, o que guardar ou esquecer, porque
tudo é guardado, e, ao mesmo tempo, esquecido.
Por fim, como conclusão, quero propor determinadas ações políticas
que, a meu ver, protegem a questão democrática.
A primeira delas é que, mais do que nunca, é preciso que todas as
mídias digam claramente o que são, a quem apóiam. Há uma experiência
fabulosa de um laboratório em uma universidade de Pavia, cidade vizinha
de Milão, onde se montou um observatório da mídia eletrônica com
relação aos partidos políticos da Itália. As informações públicas eram
monitoradas, e foram contratadas pelo parlamento italiano. Com isso,
as mídias começaram a ser identificadas, e sabia-se quem apoiava quem,
ou seja, a transparência e a clareza de informações obrigaram todos os
cidadãos a parar com a farsa horrorosa da isenção e da neutralidade
em suas posições. Uma rede que se posicionava claramente contra a
esquerda tinha essa revelação. E acabou a isenção.
O segundo ponto que acho necessário é que os navegadores,
principalmente os meios de informação como a internet, deixem claros
os métodos de pesquisa e de ordenação e possibilitem o controle do
usuário para organizar a sua ordenação e buscar seus caminhos. E que
sejamos nós mesmos ou quem escolhermos os tutores.
E, por fim, viva a crítica! Os intelectuais silenciosos e o abandono da
formação superior crítica nos serão fatais. A liberdade de pensar é um
enorme antídoto contra o totalitarismo.

379
380
Democratização da comunicação

Marcos Ferreira
Consideramos a comunicação uma mercadoria. Isso se expressa, para
mim, no seu inverso. Não aceitamos, por exemplo, que serviços de saúde
sejam mercadoria, ainda que eles sejam vendidos. O serviço de transporte
é uma necessidade da sociedade. E é vendido. Mas não aceitamos que o
dono de uma empresa de ônibus resolva que não vai transportar carecas.
Mas aceitamos nos meios de comunicação. Lembro-me que alguém
da família do Roberto Marinho determinou que Brizola, na ocasião
governador do Estado do Rio de Janeiro. não aparecesse na televisão. E,
por dois anos, ele apareceu três vezes, evidentemente sendo criticado. E
as pessoas não reagiam. Não houve uma passeata no Rio de Janeiro. Não
em defesa do Brizola, mas para dizer que a comunicação não pode ser
privada. Digo isso, e creio que vocês entenderam, como tática para dizer
que uma política pública como a comunicação, cujo objeto é um bem
essencial, deve ser vista de outras dimensões não tão claras. Proponho,
por exemplo, que tratemos tudo o que diz respeito à comunicação como
tratamos um dos setores mais desenvolvidos no Brasil, que é o Sistema
Único de Saúde. O SUS cuida da saúde e diz que é preciso resolver o
problema do financiamento, e discute e resolve esse problema. Volta e
diz que tem que resolver outro problema. Então, tem suas várias teses
gerais colocadas. E o controle social sobre o Sistema Único de Saúde
nunca significou que fôssemos entrar em um consultório médico e
dizer ao profissional como ele tem que proceder. É um controle sobre
o sistema de saúde. E é isso que precisamos fazer quanto ao sistema
de comunicação. Precisamos lidar com a comunicação exigindo que ela
atue como um sistema, tendo que ser controlada pela sociedade. Isso
não significa que diremos ao escritor da novela ou ao jornalista o que
pode ou não escrever, mas significa que, da mesma forma que, ao haver
um erro quando se presta um serviço de saúde, haverá procedimentos
curativos, saneadores no sistema. Então, é preciso haver controle social,
e, para concluir, fazendo aqui uma conclamação em nome de todos os
que discutiram o tema, e que diz que a melhor forma de exercitarmos

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hoje o controle social, o diálogo com a sociedade sobre comunicação, é
a construção da Conferência Nacional de Comunicação Social. É fazer
o que queremos agora, e do jeito que achamos que deve ser. É colocar
na pauta da sociedade a discussão sobre o monitoramento. Isso será
muito importante para o avanço de nossa sociedade, e, além disso,
precisamos fazer com que nossas teses sejam boas, convincentes e
ganhem os corações e as mentes dos brasileiros para sermos vitoriosos na
Conferência. Para isso, precisaremos todos militar de forma persistente,
consistente, na nossa Conferência Nacional de Comunicação.

Texto-base de manifestação pública do Seminário Mídia e Psicologia


Carta do Rio de Janeiro
Os psicólogos e interessados na área de comunicação social, reunidos
no 1º Seminário Mídia e Psicologia, realizado em junho de 2007, no Rio de
Janeiro, sob a organização das entidades Conselho Federal de Psicologia
- CFP, Conselho Regional de Psicologia - RJ - CRP-RJ, e Associação
Brasileira de Ensino de Psicologia - ABEP, reafirmam sua inserção nesta
discussão, indicando as seguintes proposições na formação de uma rede
comprometida com a implementação de três frentes de trabalho:
1) Prática profissional:
Estimular e incentivar o desenvolvimento de práticas do profissional de
Psicologia nas interfaces de mídia e subjetividade.
2) Pesquisa:
Estimular a criação de linhas de pesquisa com abrangência em mídia e
Psicologia nos cursos de graduação e demais níveis de formação.
3) Política:
a) Convocação da Conferência Nacional de Comunicação Social para
2008, a fim de garantir uma ampla e democrática participação dos diversos
setores da sociedade;
b) Fortalecimento do Fórum Nacional pela Democratização das
Comunicações - FNDC e de demais iniciativas de luta pela democratização
da comunicação;
c) Pelo desenvolvimento de mecanismos de controle social das mídias;

382
d) Pelo fortalecimento da Campanha Quem financia a baixaria é contra
a cidadania;
e) Pela afirmação da necessidade de se estabelecer uma política de
classificação indicativa de horários para os produtos audiovisuais, de
acordo com a Portaria nº 264/2007, do Ministério da Justiça, conforme o
disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA;
f) Pelo fim da repressão às rádios comunitárias;
g) Pela ampliação dos debates sobre a televisão pública;
h) Por uma televisão digital que contemple os interesses da sociedade
brasileira;
i) Por um conselho de comunicação social composto por legítimas
representações da sociedade civil.

383
Encerramento

385
Encerramento

José Novaes
Gostaria de agradecer o Conselho Federal de Psicologia por ter
proposto e insistido na realização deste Seminário, que foi de uma
beleza muito grande. Todas as Mesas das quais tive oportunidade de
participar foram de grande qualidade, e expressaram o que aconteceu
em todo o evento, e, para encerrar com chave de ouro, a aprovação da
Carta do Rio de Janeiro, uma manifestação séria e decidida de atuação
pela democratização das comunicações.
Agradeço, emocionado, a presença de todos.

387
Encerramento
Marcos Ferreira
Este evento consistiu em uma oportunidade ímpar em diferentes
sentidos. Nele, colocamos na pauta da Psicologia no Brasil um tema
de enorme importância que inacreditavelmente vinha ficando fora do
horizonte da maioria dos profissionais e cursos de nossa área. Além disso,
na construção do evento, nossas entidades (tanto a ABEP quanto os
conselhos de Psicologia) puderam, mais uma vez, reafirmar a disposição
do trabalho conjunto visando ao engrandecimento da Psicologia. E,
ainda, fizemos um exercício impressionante de trabalho em equipe, uma
vez que o grupo responsável pela sua organização não tinha qualquer
experiência anterior de trabalho conjunto.
Por isso tudo, quero agradecer, em nome da ABEP, ao Conselho Federal
de Psicologia e ao Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro
pela oportunidade deste trabalho em colaboração. Para a nossa entidade,
esse tema da comunicação de massa consiste em assunto relativamente
recente. Exatamente por isso, não poderíamos, como Associação de
forma isolada, produzir um evento com a qualidade com que este foi
produzido, ainda mais nos prazos em que ele foi construído. Então, para
nós, foi uma honra viver mais esse momento de cooperação.
Quero dizer que muitos de nós nunca havíamos nos encontrado
antes do dia da abertura do evento. Mesmo assim, conseguimos
produzir uma sintonia impressionante para chegar à construção
das propostas e para realizar o enfrentamento das divergências.
Seguramente devemos muito disso à condução tranqüila e acolhedora
realizada pela colega Ana Bock, sempre acompanhada pela sempre
disposta Vera Canabrava. Em nosso grupo, houve sempre muito boa
disposição para os muitos encontros telefônicos e muita segurança
na busca de qualidade para todos os momentos do evento. Então,
quero agradecer também a esse coletivo que se esforçou tanto, quer
seja no plano técnico, quer seja na organização administrativa, na
elaboração e na tomada de decisões.
Por fim, quero reafirmar nosso agradecimento aos dois Conselhos
(tanto ao Federal quanto ao Regional do Rio) pela oportunidade que

389
a ABEP teve de colaborar nesse processo. Seguramente vamos precisar
continuar colaborando.
A construção de uma contribuição efetiva da Psicologia para o tema
da comunicação social e a construção da Conferência Nacional de
Comunicação Social são tarefas que exigirão essa sintonia de trabalho
no âmbito da Psicologia.

390
Encerramento

Ana Bock
Começo pelos agradecimentos, somando o que já colocou o Marcos
Ferreira, e gostaria de agradecer pela parceria com o Conselho Regional
de Psicologia do Rio de Janeiro. Quero dizer que, para nós, não é uma
simples satisfação. É uma satisfação poder estar junto a este Regional que
ajudamos e que se vê hoje reerguido, saneado, o que é enorme satisfação
para todo o Sistema Conselhos de Psicologia. Então, ser parceiro com o
Rio de Janeiro neste evento foi importante para o Conselho Federal e
para o Sistema Conselhos de Psicologia.
Quero agradecer à ABEP, que também não é uma simples parceira,
mas uma parceira de muitas lutas e muitos espaços; a satisfação de ter
a parceria da ABEP, neste momento em que Marcos Ferreira preside a
entidade, vem do fato de ele ter dito, dentro do CFP, em 1997, em uma
plenária, quando assumimos a primeira gestão e ele era suplente, que
precisávamos atuar no campo da comunicação. E repetiu isso por muito
tempo, incansavelmente. Levamos bastante tempo para chegar a este
momento, e quero que todos acreditem que não foi por ter deixado de
ver a importância do que ele dizia, mas porque era um processo que
ainda estava em construção e poucos de nós tínhamos a possibilidade
de acompanhar e contribuir com esse campo. Então, é muito bom ter a
parceria da ABEP, em especial, presidida pelo Marcos Ferreira.
Quero também agradecer ao Instituto de Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que nos acolheu com atenção, com carinho e
com disponibilidade para o que precisávamos.
Também agradecer à Associação Brasileira de Rádios Comunitárias,
que esteve conosco o tempo todo, à Escola de Comunicação da UFRJ, ao
Conselho Regional de São Paulo e ao Fórum Nacional pela Democratização
da Comunicação, que apoiaram este Seminário.
Agradeço muito carinhosamente aos funcionários do CRP Rio de
Janeiro, aos funcionários do Instituto de Comunicação da UFRJ e aos
funcionários do Conselho Federal de Psicologia. Obrigada pela dedicação
e pelo trabalho.

391
Agradecer à comissão científica que analisou os trabalhos, à comissão
organizadora, que tratou de muitos trabalhos em reuniões telefônicas
intermináveis para sanar problemas, fazer propostas, sempre com muito
respeito, muita fraternidade e muito afeto, porque tínhamos certeza de
que estávamos produzindo uma atividade muito importante.
Quero agradecer especialmente à Vera Canabrava, que acompanhou o
evento, como conselheira do CFP, tomou nas mãos a luta da comunicação,
e, apoiada pelo Marcos Ferreira e pelo Ricardo Moretzsohn (a quem aqui
também aproveito para agradecer) atuaram insistentemente em relação
ao tema, em um trabalho coletivo.
Agradeço aos nossos convidados, que vieram compor nossas Mesas,
em especial aos das outras áreas, na medida em que vieram dialogar
com o campo da Psicologia, emprestando-nos sua competência.
Agradeço ao Manuel Calvino, que, de Cuba, trouxe suas experiências,
seus conhecimentos e sua simpatia.
Agradeço aos psicólogos, aos profissionais de outras áreas, aos
estudantes de Psicologia e aos estudantes de outros cursos que
estiveram aqui dialogando, dispostos a conversar, tendo as divergências
sido colocadas em um campo de confiabilidade e de luta.
Quero aproveitar a palavra do Novaes para descrever o evento: beleza.
Beleza de seriedade, beleza de compromisso, beleza de disposição para o
diálogo. E somo a beleza a palavra fraternidade. Este encontro fortaleceu
a presença da Psicologia na sociedade brasileira, e não fortaleceu
qualquer presença, mas, uma determinada maneira de estar na sociedade
brasileira, que é a maneira comprometida com as lutas democráticas,
comprometida com a construção de um mundo melhor. E nós todos que
aqui estamos, fizemos isso juntos. Parabéns a todos nós.
Obrigada.

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