Alberto Moravia A Romana
Alberto Moravia A Romana
Alberto Moravia A Romana
ALBERTO MORAVIA
TÍTULO ORIGINAL
LA ROMANA
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PRIMEIRA PARTE
1
Aos dezasseis anos eu era uma autêntica beleza. Tinha o
rosto de um oval perfeito, estreitando-se levemente nas fontes,
dois grandes olhos amendoados e meigos, um nariz direito,
que prolongava harmoniosamente a nobre linha da fronte, uma
bela boca de lábios vermelhos e carnudos e uma dentadura
perfeita, muito regular e de extraordinária brancura. Minha mãe
dizia que eu me parecia com uma santa. Pela minha parte,
descobria que me parecia com uma artista de cinema muito em
voga nesse tempo, e comecei a pentear-me como ela. Minha mãe
passava a vida a dizer-me que, se tinha um rosto bonito, o meu
corpo era cem vezes mais belo ainda, e que em toda Roma não
se encontraria um corpo mais perfeito do que o meu. Nesse tempo
o meu corpo não era coisa que me interessasse muito. Eu
pensava que só a beleza do rosto é que tem importância, mas
agora sei que minha mãe tinha toda a razão no que dizia. As
minhas pernas eram direitas e fortes, as ancas suavemente
arredondadas, as costas longas, largas nos ombros e estreitas na
cintura. Tinha o ventre ligeiramente proeminente - sempre tive um
bocadinho de barriga - e o meu umbigo enterrava-se tão
profundamente na carne que quase se não via. Eu pensava que
isso era um defeito, mas minha mãe teimava que, pelo contrário,
era um novo encanto, porque o ventre de uma mulher deve ser
arredondado sem exagero, e não completamente chato como se
usa agora. O meu seio era grande, mas firme e alto, e nunca
necessitei de qualquer auxílio ou artifício para o manter numa
posição perfeita. Também a este respeito, quando às vezes me
lamentava do seu tamanho, que me parecia excessivo, minha mãe
respondia que só um seio grande poderia ser belo e que o seio
pequeno não tinha qualquer espécie de encanto feminino. Nua,
como haviam tantas vezes de dizer-mo mais tarde, eu era grande e
opulenta como uma bela estátua. Vestida dava a impressão de
uma rapariguita um tanto magra, nunca compreendi bem porquê,
até que um pintor de quem fui modelo me disse que isso se devia
à extrema harmonia das minhas proporções.
Foi, é claro, minha mãe quem me conseguiu esse emprego.
Ela própria tinha posado antes de se casar e de se tornar
costureira de camisas. E foi precisamente o facto de um pintor a
encarregar de alguns trabalhos de costura que lhe inspirou a ideia
de o convencer a contratar-me para seu modelo. A primeira vez
que fomos ao seu atelier eu ia profundamente envergonhada. Não
por ir despir-me completamente pela primeira vez diante de um
homem, mas por pensar nos elogios que minha mãe não deixaria
de fazer para convencer o pintor a aceder às suas propostas. E, na
verdade, como eu calculara, mal acabou de me ajudar a despir e
me apanhou completamente nua no meio da sala, minha mãe
começou, entusiasmadíssima, a fazer o meu elogio:
- Veja este seio e estas ancas! Repare nas pernas que ela
tem! Onde encontraria o senhor umas pernas, uns seios e umas
ancas como estes?
Ao mesmo tempo que falava apalpava-me, como se faz nas
feiras de gado para encorajar o comprador a fechar o negócio.
O pintor ria-se, divertido. Eu sentia-me morrer de vergonha.
Como estávamos no Inverno, sentia bastante frio. E, embora
as palavras que saíam da boca de minha mãe não me
vexassem profundamente, eu compreendia que ela falava sem
malícia e que o orgulho que a minha beleza lhe causava vinha do
facto de ter sido ela quem me gerara e ser, portanto, a ela que eu
devia essa beleza. O pintor também parecia compreender esses
sentimentos da minha mãe, porque se ria sem maldade,
cordialmente. Foi isso que me devolveu a coragem perdida e me
deu forças para ir aquecer-me junto da salamandra acesa. O
pintor tinha quarenta anos. Era um homem gordo, de aspecto
sossegado e bem disposto. Eu sentia que ele olhava para mim
como quem olha para um simples objecto, sem nenhuma espécie
de sensualidade, e isso dava-me confiança. Mesmo mais tarde,
quando a intimidade se estabeleceu entre nós, continuou sempre
a tratar-me gentilmente, com respeito, não como se eu fosse uma
simples coisa, mas já como uma pessoa. Senti mediatamente uma
grande simpatia por ele, e talvez fosse possível que me tivesse
apaixonado simplesmente devido à sua amabilidade e à amizade
com que me tratava. Mas ele nunca teve para comigo a mais
pequena familiaridade: para mim foi sempre não um homem mas
apenas um pintor, e durante todo o tempo em que posei para ele
as nossas relações mantiveram-se tão distantes e tão correctas
como no primeiro dia.
Quando minha mãe se cansou de me tecer louvores, o
pintor, sem uma palavra, dirigiu-se para um monte de cartões
empilhados numa cadeira, folheou-os e voltou com uma gravura
colorida, que mostrou a minha mãe dizendo-lhe naturalmente :
- Aqui tens a tua filha.
Afastei-me do calor da salamandra para vir ver a gravura.
Representava uma mulher nua, estendida numa cama
coberta de ricos tecidos. Para além da cama via-se um reposteiro
de veludo, e nas pregas desse reposteiro, suspensos no ar, dois
meninos alados que me pareceram ser dois pequenos anjos.
Efectivamente, aquela mulher parecia-se comigo. No
entanto, e apesar de estar nua, por causa dos tecidos e dos anéis
que tinha nos dedos, depreendia-se que devia ter sido uma
rainha ou uma grande dama, enquanto que eu não passava de
uma pobre rapariga do povo. A princípio minha mãe não
compreendeu e ficou a olhar para a gravura com ar aparvalhado.
Depois, de repente, pareceu ter descoberto a semelhança e gritou,
quase sufocada:
- Não há dúvida alguma! É ela! Vê como eu tinha razão?
De quem se trata?
- De Dánae -- respondeu o pintor a sorrir.
- E quem é Dánae?
- Dánae é uma divindade pagã...
Minha mãe, que esperava o nome de uma pessoa que tivesse
realmente existido, ficou desorientada. Para esconder a sua
confusão começou a explicar-me com grandes gestos que eu tinha
de me pôr na posição que o pintor indicasse, deitada como a
mulher da gravura, por exemplo, ou então de pé, ou sentada, e
conservar-me imóvel, sempre na mesma posição, durante todo o
tempo do trabalho dele. Rindo, o pintor declarou que minha mãe
conhecia o ofício muito melhor do que ele próprio. E logo minha
mãe, cheia de vaidade, desatou a falar dos tempos em que era
modelo e todos os artistas de Roma a disputavam e lhe elogiavam
as formas, lamentando amargamente o facto de ter abandonado
esse trabalho. Entretanto, o pintor tinha-me feito estender num
sofá ao fundo do atelier, indicara-me a posição, dobrando-me ele
próprio as pernas e os braços para lhes dar a atitude requerida.
Tudo isto foi feito com uma delicadeza meditativa e distraída.
Como se na realidade já me estivesse a ver tal qual pretendia
pintar-me. Depois, enquanto minha mãe continuava
infatigavelmente a sua conversa. Começou a desenhar numa
1tela branca que pusera num cavalete. Minha mãe, percebendo
que ele já nem sequer a ouvia. Absorvido pelo seu trabalho,
perguntou-lhe:
- Quanto tenciona pagar à minha filha por cada hora de
pose?
O pintor disse um preço qualquer sem levantar os olhos
da tela. Minha mãe nem se dignou responder-lhe ou discutir com
ele. Pegou na minha roupa, que estava nas costas de uma cadeira,
e atirou-me violentamente com ela, ordenando:
- Veste-te! O melhor que temos a fazer é irmo-nos embora...
- Que mosca te mordeu? - interrogou o pintor,
estupefacto, parando de desenhar.
- Nada. Nada! - disse minha mãe, que parecia estar cheia de
pressa. - Vamos, Adriana. Temos imenso que fazer e não podemos
perder tempo!
- Que diabo! - exclamou o pintor. - Se tens uma proposta
para me fazer, diz do que se trata e deixa-te de histórias...
Então minha mãe lançou-se numa discussão interminável,
gritando que ele era completamente idiota se pensava que podia
pagar-me uma ridicularia daquelas, que se não tratava de um
destes modelos velhos que a ninguém interessam, mas sim de
uma bela rapariga de dezasseis anos, que posava pela primeira
vez.
Quando minha mãe quer impor a outras pessoas o seu
ponto de vista usa sempre a táctica da gritaria, como se
realmente estivesse possuída de uma violenta cólera; eu, que a
conheço como às minhas mãos, sei perfeitamente que aquilo não
1
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passa de um processo; grita como as regateiras do mercado
quando o comprador lhes faz uma oferta que elas consideram
baixa. E este processo dá sempre resultado, especialmente com as
pessoas que, pela sua formação, não podem responder aos seus
gritos com gritos semelhantes. É com essas, aliás, que ela
emprega mais vezes o sistema.
Com o pintor também não falhou. Enquanto minha mãe
se esganiçava cada vez mais, ele sorria, e apenas fazia de vez em
quando um vago gesto para a interromper. Por fim, aproveitando
uma oportunidade em que minha mãe se calara durante alguns
momentos para respirar, perguntou-lhe calmamente quanto
pretendia que ele me pagasse. Mas minha mãe não lhe respondeu
imediatamente. Atirou este argumento que ninguém podia
esperar:
- O que eu gostava de saber era quanto esse que pintou o
quadro que acaba de nos mostrar pagou ao seu modelo!
O pintor desatou a rir:
- Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? Os tempos
mudaram muito de então para cá. Ele deve ter-lhe dado em troca
uma boa garrafa de vinho, talvez um par de luvas, não sei...
De novo minha mãe ficou tão desorientada como quando ele
lhe tinha dito que a gravura representava Dánae. Eu compreendia
que o pintor estava a divertir-se à sua custa. Mas era sem
maldade, e minha mãe não se apercebeu disso. Desatou
novamente a gritar, chamando-lhe miserável avarento e exaltando
a minha beleza sem par. Depois, de repente, pareceu acalmar-se
e disse-lhe a quantia que entendia que devia pagar-me, ou melhor,
que ela queria que me pagasse. O pintor não concordou,
discutiram ainda um bom bocado, mas por fim acabaram por
assentar numa importância um pouco inferior à que minha mãe
tinha indicado. O pintor dirigiu-se para uma mesita, abriu uma
gaveta e pagou-lhe. Ela guardou alegremente o dinheiro, fez-me
algumas recomendações e retirou-se. O pintor foi fechar a porta,
voltou a sentar-se diante do seu cavalete e perguntou-me:
- A tua mãe fala sempre assim aos gritos?
- Minha mãe gosta muito de mim - respondi.
- Pois olha - disse ele tranquilamente, continuando a
desenhar. - Cá, para mim, do que ela gosta muito é de dinheiro...
- Oh! Não, isso não é assim! - respondi vivamente.
- De quem ela gosta acima de tudo é de mim. Mas tem pena
que eu tenha nascido pobre e gostava de me ver ganhar a vida
largamente.
Quis relatar pormenorizadamente esta história do pintor
porque esse foi o meu primeiro dia de trabalho, se bem que eu
tivesse acabado por escolher um ofício inteiramente diferente,
e também para mostrar como o seu procedimento indicava o
seu carácter e os seus sentimentos para comigo.
Terminada a minha hora de pose fui ter com minha mãe a
uma leitaria onde tínhamos marcado encontro. Perguntou-me
como se tinha passado a sessão e obrigou-me a relatar-lhe
minuciosamente todas as palavras do pintor, que era, aliás, pouco
falador. Finalmente disse-me que eu precisava de ter os olhos bem
abertos. Que talvez esse pintor não tivesse más intenções a meu
respeito, mas que a maioria dos artistas tentava sempre tornar-se
amante dos seus modelos, quando valia a pena, é claro. Ora era
preciso que eu repudiasse energicamente qualquer proposta desse
género.
- Nenhum deles tem onde cair morto - explicou-me e nada
há de bom a esperar deles. E tu, com a beleza que Deus te deu,
podes aspirar a coisa muito melhor...
Era a primeira vez que minha mãe se me dirigia nestes
termos. Mas ela falava com a segurança de uma pessoa que se
refere a coisas longamente meditadas.
- Que queres dizer com isso? - perguntei, surpreendida.
Vagamente, respondeu-me:
- Falam todos muito bem, mas não têm um chavo. Uma
linda rapariga como tu não deve frequentar senão homens
decentes..
- Como homens decentes? Eu ninguém conheço...
Ela olhou-me durante uns momentos e concluiu, com os
seus modos distraídos:
- Por agora podes perfeitamente ser modelo. Mais tarde
veremos... Cada coisa a seu tempo.
Havia nos seus olhos uma expressão ávida e concentrada
que quase me fez medo. E nesse dia a conversa ficou por aí.
As recomendações e os conselhos de minha mãe eram
desnecessários, porque eu era nesse tempo extremamente séria,
talvez como consequência da minha juventude. Depois
deste pintor trabalhei para outros e tornei-me muito conhecida
entre eles. Devo dizer que, de um modo geral, os pintores se
mostravam correctamente reservados e respeitosos para comigo,
se bem que alguns deles nada fizessem para me esconder os seus
sentimentos a meu respeito. Mas eu afastava-os imediatamente
com tal violência que rapidamente adquiri a fama de que comigo
nada havia a fazer. Mas creio que a verdadeira razão do modo
reservado como os pintores se portavam comigo era que na
realidade o que lhes interessava não era fazer-me a corte, mas
pintar. Ora, enquanto desenhavam ou pintavam, os olhos com que
me viam eram olhos de artista, e não de homem. Quero dizer que,
na minha opinião, olhavam para mim com a mesma
insensibilidade com que teriam olhado para uma cadeira ou para
outro objecto qualquer. Estavam habituados a trabalhar com
modelos, e o meu corpo nu, apesar de jovem e provocante, não
lhes causava qualquer impressão, como sucede com os médicos. O
que me complicava às vezes a existência eram os amigos dos
pintores. Chegavam e punham-se a conversar. Mas não tiravam os
olhos de mim, apesar da indiferença que afectavam. Outros nem
sequer tentavam disfarçar o que sentiam e andavam
constantemente de um lado para o outro de modo a poderem
mirar-me de todos os ângulos. Foram estes olhares e as obscuras
alusões de minha mãe que acordaram o meu amor-próprio
feminino, tornando-me consciente, ao mesmo tempo, da minha
beleza e das vantagens que podia tirar dela. E acabei, não só por
me habituar a essas assiduidades, mas até por sentir um certo
prazer quando os visitantes se perturbavam por minha causa e
uma estranha desilusão quando isso não acontecia.
Terminei por convencer-me, como o desejava minha mãe, de
que eu possuía na minha beleza um bom capital, que um dia
poderia render lucros pingues e seguros.
Nessa época da minha vida eu pensava, no entanto, em me
casar. Os meus sentidos ainda não tinham acordado e, pondo de
lado a vaidade, os homens que olhavam para mim enquanto
posava não me provocavam qualquer sentimento. Entregava
pontualmente a minha mãe todo o dinheiro que me pagavam, e
quando não tinha trabalho ficava com ela em casa, ajudando-a a
cortar e a coser as camisas. Este era o nosso meio de existência
desde a morte de meu pai, que tinha sido ferroviário. Vivíamos
num pequeno apartamento situado no segundo andar de uma
pobre casa, construída havia cinquenta anos para o pessoal dos
caminhos de ferro, numa rua da periferia da cidade. De um lado
havia uma fileira de construções do mesmo tipo, com dois
andares, uma fachada de tijolos sem reboco, doze janelas - seis
em cada andar - e em baixo uma porta central. Do outro lado
estendiam-se as antigas muralhas da cidade, que neste local se
mantinham de pé, cobertas de heras e trepadeiras. Uma porta
rasgava-se nessas muralhas, próximo da nossa casa. Perto dessa
porta havia uma espécie de Luna-Parque, sempre iluminado e
com música durante o tempo seco. Da minha janela eu podia
ver grinaldas de lâmpadas multicores, tectos dos quais se
erguiam pequenas bandeiras e pendões e a multidão que se
comprimia à entrada, debaixo dos enormes plátanos que davam
sombra a esse lado da rua. A música ouvia-se distintamente em
nossa casa.
Muitas vezes, durante a noite, eu deixava-me ficar
acordada para a escutar, sonhando com os olhos abertos.
Parecia-me que ela chegava até mim vinda de um mundo
inacessível, circunstância que a pequenez do meu quarto
reforçava. Tinha a impressão de que toda a população da cidade
vinha divertir-se para o Luna-Parque e que eu era a única que não
tinha posses para o fazer. E a música, que soava em toda a noite,
evocava no meu espírito a ideia de um castigo que eu sofria por
causa de crimes que devia ter cometido, mas que ignorava
quais tivessem sido. Por vezes, ao ouvi-la, chegava a chorar, de
tal modo a minha exclusão me humilhava e tornava infeliz,
porque nesse tempo eu era terrivelmente sentimental: um gesto ou
uma palavra mais brusca de uma amiga, uma censura de minha
mãe, uma cena emocionante vista no cinema, qualquer coisa
era suficiente para que as lágrimas me viessem aos olhos.
Possível que eu não tivesse com tanta nitidez a percepção de um
mundo de felicidades que me estavam vedadas se durante a
minha infância minha mãe não impedisse tão exclusivamente a
minha entrada no Luna-Parque. Mas a sua viuvez precoce, a sua
falta de recursos e principalmente a sua hostilidade para com
todos os divertimentos de que ela própria estava privada fizeram
com que ela nunca me permitisse a entrada no Luna-Parque ou
em qualquer outro lugar de distracção senão muito mais tarde,
quando eu já era uma mulherzinha e o meu carácter já se
encontrava formado. Provavelmente a isso que devo ter guardado
em toda a minha vida esta convicção da existência de um mundo
de alegria e de felicidade vedado para mim por um destino ao qual
já pertencia ainda antes de ter nascido. E esta sensação
radicou-se tão profundamente dentro de mim que não consigo
libertar-me dela nem quando tenho a certeza de que sou feliz.
Já disse que nesse tempo a minha grande aspiração era
o casamento. Agora posso ver qual era o verdadeiro aspecto
que essa ideia tomava dentro de mim. A rua em que morávamos
atravessava, quase no seu termo, um bairro menos pobre do que o
nosso. Em lugar das nossas casas baixas e iguais, semelhantes a
carruagens de caminho de ferro, empoeiradas e velhas, podiam
ver-se aí pequenos pavilhões rodeados de jardins. Não eram
luxuosos. Os que lá viviam não passavam de modestos
empregados ou remediados comerciantes, mas, em comparação
com a miséria da nossa casa, esses pavilhões eram infinitamente
confortáveis e alegres. Além disso eram todos diferentes uns dos
outros e não mostravam o aspecto de decadência que dão as
paredes sem cal e cheias de gretas, característica dominante da
nossa casa e das dos nossos vizinhos. Também os jardins que os
rodeavam, apesar de pequenos, estavam cheios de plantas e
davam-me uma doce sensação de intimidade, em contraste com a
desagradável promiscuidade da rua. Na minha casa era isso o que
se encontrava a todos os momentos e em toda a parte, a rua:
no vasto vestíbulo, que tinha o ar de um armazém abandonado,
na larga escada nua e suja, e até nas salas, cujos móveis
desirmanados e a cair aos pedaços me faziam pensar nos
ferros-velhos que os compravam e vendiam ao longo dos passeios.
Uma noite de Verão em que passeava na rua com minha
mãe, pela janela de um desses pavilhões vi uma cena familiar que
se gravou para sempre no meu espírito e me pareceu corresponder
ponto por ponto à ideia que tinha do que deve ser uma vida
normal e decente. Uma sala pequena, mas arrumada e limpa,
com as paredes forradas de um papel pintado às florinhas, uma
credência e um candeeiro de tecto suspenso ao centro da sala por
cima da mesa posta. A roda desta mesa sentavam-se cinco ou seis
pessoas, entre as quais três crianças dos oito aos doze anos. No
meio da mesa havia uma terrina, e a mãe, de pé, servia a sopa.
Por muito estranho que isto possa parecer, de todas estas coisas a
que mais profundamente se gravou na minha memória foi a luz da
suspensão, ou, melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e
normal que todas as coisas tomavam vistas sob esta luz. Mais
tarde, sempre que voltei a pensar nesta cena, tive a convicção
absoluta de que o meu fito na vida devia ter sido viver numa casa
idêntica, ter uma família como esta e passar os meus dias ao
clarão de uma luz assim, que parecia revelar a presença de tantas
afeições seguras e tranquilas. Muita gente há-de sorrir da
modéstia das minhas aspirações. Mas é preciso não esquecer o
que eu era nesse tempo. Para mim, nascida num autêntico
tugúrio, aquele pavilhão modestíssimo surgia aos meus olhos
como surgiria aos olhos dos seus habitantes, que eu tanto
invejava, um dos maiores e mais sumptuosos palácios dos bairros
aristocráticos, tão certo é ser o paraíso de uns o que para outros
não passa do inferno.
Minha mãe, ao contrário, acalentava grandes projectos para
o meu futuro, e eu depressa compreendi que esses projectos
excluíam por completo qualquer tipo de vida parecido com o que
eu própria desejava. O que ela pensava, em resumo, era que a
minha beleza me permitia aspirar a todos os géneros de
êxitos, mas de nenhum modo a tornar-me, como as outras
raparigas, uma mulher casada, vivendo para o marido e para os
filhos. Sendo nós extremamente pobres, a minha beleza
parecia-lhe o único património de que dispúnhamos, e pertencia,
portanto, tanto a mim como a ela, visto ter sido dela que eu a
recebera ao deitar-me ao mundo. E esta riqueza devia servir-me
para melhoria da nossa situação, sem ligar importância ao que
podiam ser as convenções sociais. No fundo isto não passava
de uma completa falta de imaginação. Numa situação como a
nossa, a ideia de pôr a minha beleza a render era perfeitamente
intuitiva. Minha mãe adoptou-a, agarrou-se a ela e nunca mais a
abandonou.
A verdade é que eu só muito vagamente compreendia os
projectos da minha mãe. Mas mesmo mais tarde, quando adquiri
experiência da vida, nunca tive coragem para lhe perguntar
como, incompreensivelmente, tendo ela essas ideias, tinha acedido
a casar com um pobre-diabo e cair na miséria. Muitas das
suas alusões tinham-me feito compreender que a verdadeira
culpada deste estado de coisas era eu, visto que o meu
nascimento não tinha sido previsto nem desejado. Por outras
palavras, o meu nascimento fora ocasional, e minha mãe, sem
coragem de me impedir de nascer (como deveria ter feito, segundo
dizia muitas vezes), não tinha tido outro remédio senão casar-se
com meu pai e aceitar todas as consequéncias desastrosas de um
casamento semelhante. Por isso, com frequéncia, referindo-se ao
meu nascimento, afirmava: “Tu foste a minha ruína!”
Estas palavras, apesar da tristeza que me causavam, foram
durante muito tempo perfeitamente obscuras para mim. Só muito
mais tarde lhes consegui apreender o sentido exacto. O que
elas realmente significavam era: “Sem ti nunca me teria casado e
a esta hora tinha automóvel!” Era perfeitamente compreensível
que, nutrindo ideias destas acerca da sua própria vida, minha
mãe não concebesse para mim, muito mais bonita do que ela fora,
o caminho dos mesmos erros, e portanto um destino semelhante.
Hoje, que me é possível ver as coisas em perspectiva,
não tenho coragem de a condenar. Para minha mãe a palavra
família significava miséria, escravidão e algumas pequenas
alegrias rapidamente terminadas com a morte do meu pai. Era
natural, senão justo, que considerasse a vida honesta e familiar
como um caminho seguro para a desgraça e estivesse alerta a não
me deixar tentar pelas miragens que a tinham atraído.
A sua maneira, minha mãe gostava muito de mim. Por
exemplo: logo que eu comecei a frequentar os ateliers, fez-me
dois vestidos: um fato inteiro e outro de saia e casaco. Para
falar verdade, eu teria preferido roupa interior, porque tinha
vergonha, sempre que era forçada a despir-me, da minha roupa
grosseira, usada, e até muitas vezes pouco limpa. Mas minha mãe
declarava que o importante era o que estava à vista. Para os fatos
escolheu dois tecidos baratos, de cor e padrão vistosos, e
cortou-os e coseu-os ela própria. Mas, porque era camiseira e não
modista, apesar da sua boa vontade, os resultados foram
desastrosos. Lembro-me de que o fato inteiro fazia pregas no peito,
deixando-me de tal maneira os seios a descoberto que fui obrigada
a usar constantemente um alfinete para fechar um pouco mais o
decote, e que o fato de saia e casaco estava demasiadamente
apertado e fazia rugas e pregas por todos os lados. Apesar disso,
estas roupas pareceram-me verdadeiras maravilhas, em
comparação com as coisas que até ali usara. Minha mãe
comprou-me também dois pares de meias de seda. Tudo isso me
encheu de alegria e de orgulho. Pensava constantemente, com
encanto, nas minhas novas coisas e nem por um momento
abandonava a preocupação de as não sujar ou estragar, como se
aqueles míseros trapos tivessem saído das mãos de um grande
costureiro.
Minha mãe pensava muito no meu futuro e não tardou
a mostrar-se descontente com a minha actividade de modelo.
Segundo ela, o que eu ganhava era uma verdadeira miséria. Além
disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretões,
e não seria com certeza nos seus ate1iers que eu conseguiria
algumas relações úteis. De repente meteu-se-lhe na cabeça
fazer-me bailarina. A sua cabeça estava sempre cheia de ideias
ambiciosas, ao passo que eu, como já tive ocasião de dizer,
sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A
ideia da dança veio à minha mãe num dia em que recebera uma
encomenda de camisas para o director de uma companhia de
variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto não
quer dizer que minha mãe pensasse que a profissão de bailarina
fosse por si própria muito lucrativa; mas, conforme afirmava
constantemente, umas coisas levam às outras e quem se exibe
num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um
homem decente.
Um dia declarou-me que falara com o director e que este
me queria conhecer. Fomos, assim, uma manhã ao hotel em que
ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel - recordo-me
perfeitamente - ficava num prédio muito grande e muito velho
perto da estação. Era quase meio-dia quando lá chegámos, mas os
corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro
humano que saía de todos aqueles quartos era tão forte e tão
denso que chegava a dificultar a respiração. Percorremos vários
desses corredores e acabámos por entrar numa espécie de
antecâmara sombria, onde três bailarinas se exercitavam ao som
de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num
ângulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no
canto em frente havia um enorme montão de lençóis sujos.
O pianista, um velho pálido, tocava de cor; deu-me a impressão de
pensar noutra coisa e talvez até de estar a dormir. As três
bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando
as saias de baixo, e dançavam com o peito e os braços nus.
Seguravam-se umas às outras pela cintura, e quando o pianista
atacava uma ária caminhavam na direcção do montão de roupa
suja, levantando as pernas e passeando-as num movimento de
conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois
com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar
sombrio e lúgubre, imprimiam às nádegas uma oscilação vigorosa.
Quando olhei para elas e as vi bater com os pés no chão com
um barulho rítmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem.
Não ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas,
eu não possuía a menor queda para a dança. Tinha recebido
lições, juntamente com duas amigas, numa escola do bairro. As
minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender
o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem
treinadas; eu, pelo contrário, parecia feita de chumbo. Isto
dava-me a impressão de não ser feita como as outras raparigas e
julgava existir em mim qualquer coisa de maciço e de pesado que
a música não conseguia atingir. Além disso, nas raras vezes em
que tinha dançado, o facto de sentir um braço apertar-me a
cintura dava-me uma tal sensação de moleza e de abandono que
eu arrastava as pernas em lugar de as mover. O pintor bem mo
dissera: “Tu, Adriana, devias ter nascido três ou quatro séculos
mais cedo... Estava na moda as mulheres como tu. Hoje, que a
moda é a magreza, tu és como um peixe fora de água. Dentro de
quatro ou cinco anos estarás bela e forte como Juno.” Nesta
última parte não acertou porque os cinco anos passaram e eu não
estou nem mais gorda nem mais forte que nesse tempo. Mas
quando me dizia que estava deslocada nesta época de mulheres
magras tinha razão, e eu sofria com a minha incapacidade. Bem
gostaria de emagrecer e de dançar como as outras raparigas. Mas
por menos que comesse e por mais esforços que fizesse
continuava maciça e imponente como uma estátua, e quando
dançava era-me impossível obedecer ao ritmo rápido e saltitante
da música moderna.
Disse tudo isto a minha mãe, porque tinha a certeza de que
a nossa ida ao hotel seria um fiasco e queria evitar essa
humilhação. Mas minha mãe desatou a gritar que eu era
infinitamente mais bela do que todas as desgraçadas que se
mostravam nos palcos, que o director daria graças a Deus pela
sorte de poder incluir-me no seu grupo de artistas e outras coisas
semelhantes. Minha mãe nada compreendia da beleza moderna;
acreditava com inteira boa fé que quanto mais opulentos forem os
seios e as ancas de uma mulher mais bela essa mulher será.
O director esperava-nos numa sala que dava para a
antecâmara de que já falei; suponho que do sítio onde estava
podia vigiar, pela porta aberta, o trabalho das bailarinas.
Estava sentado numa poltrona ao lado da cama por fazer, e em
cima desta tinha ainda a bandeja do pequeno-almoço, que
acabara de tomar. Era velho e gordo, mas vestia-se com exagerado
requinte e com uma elegância vistosa, que naquele quarto pobre
e desleixado, mal iluminado e com a cama desfeita, assumia
um aspecto singular e anacrónico. O seu rosto era corado,
mas desconfiei que o pintava, porque debaixo do tom rosado
das faces podiam ver-se como que placas irregulares de um
moreno doentio. Usava monóculo, movia constantemente os
lábios assoprando e descobrindo os dentes de uma brancura tão
excessiva que se via imediatamente serem postiços. Estava
sentado com o enorme ventre caindo-lhe para o meio das pernas;
quando acabou de comer disse-me numa voz contrariada e
quase gemebunda:
- Vamos, mostra-me as pernas!
- Mostra as pernas ao senhor director - repetiu a minha
mãe com ansiedade.
Desde que trabalhava nos ateliers já não tinha vergonha...
Mostrei as pernas conservando-me imóvel, arregaçando a saia
com as duas mãos. As minhas pernas são verdadeiramente belas:
longas, cheias e lisas, mas, um pouco acima dos joelhos, as coxas
tomam um desenvolvimento insólito: são redondas e fortes e não
cessam de alargar até ao ponto mais saliente das ancas.
O director abanou a cabeça e perguntou:
- Que idade tens tu?
- Completou dezoito anos em Agosto - respondeu
prontamente minha mãe.
O director não respondeu. Levantou-se e dirigiu-se para
um fonógrafo que se encontrava em cima da mesa, no meio de
papéis e peças de roupa. Deu volta à manivela, escolheu um disco
com cuidado e colocou-o no prato. Depois disse-me :
- Agora tenta dançar ao som desta música, mas mantendo a
saia levantada.
- Ela só teve duas ou três lições de dança - explicou minha
mãe.
Sabia perfeitamente que essa prova era decisiva, e
conhecendo a minha falta de habilidade temia o resultado do
exame.
Mas o director, depois de ter feito um gesto pedindo silêncio,
fez rodar o disco e, também por gestos, convidou-me a dançar.
Comecei mantendo a saia levantada, como me tinha dito
para fazer. Na realidade, a única coisa que fiz foi atirar as pernas
para a direita e para a esquerda de um modo pesado e sem graça,
dando-me perfeitamente conta de que nem sequer o fazia
acompanhando o ritmo da música. O director tinha-se deixado
ficar de pé junto do fonógrafo com os cotovelos apoiados na mesa,
olhando para mim. De repente parou o aparelho e fechou-o.
Voltou a sentar-se na sua poltrona e com um gesto expressivo
indicou-nos a porta.
- Que foi? Não serve? - interrogou minha mãe, entre ansiosa
e agressiva.
Ele respondeu sem sequer olhar para ela, ao mesmo tempo
que remexia nos bolsos em busca da cigarreira.
- Não. Não serve.
Eu bem sabia que quando minha mãe falava com aquele tom
de voz tentava provocar uma discussão. Para evitar isso puxei-a
por um braço. Mas ela afastou-me com um safanão e, fixando
no director um olhar chamejante, repetiu, já em voz mais forte:
- Não serve? Não? E poderá saber-se porquê? Entretanto o
director tinha encontrado os cigarros e procurava os fósforos.
Devido à sua gordura cada um dos seus gestos parecia
custar-lhe um enorme esforço. Apesar de ofegante, foi com grande
tranquilidade que respondeu:
- A tua filha nem tem físico de bailarina nem tem a menor
queda para a dança. Por isso que não serve.
Como eu calculava, minha mãe desatou nas suas habituais
considerações. Que eu era uma autêntica beleza, que tinha um
rosto de Madona, que não havia pernas, nem ancas, nem seios
mais belos do que os meus. Calmamente, continuando a fumar o
seu cigarro, o director observava-a e esperava que ela se calasse.
Depois disse na sua voz contrariada e um pouco chorona:
- Dentro de dois anos a tua filha poderá talvez dar uma boa
ama de leite. Uma bailarina nunca!
O pobre homem não sabia de que extremos de violência
minha mãe era capaz. O seu pasmo foi tão grande que deixou cair
o cigarro e ficou de boca aberta. Minha mãe era magra e de
aspecto frágil, de modo que ninguém compreendia onde ela ia
buscar tanta cólera e uma voz tão forte. Atirou-lhe à cara,
dirigidas a ele e às bailarinas que tínhamos visto no corredor,
quantas injúrias sabia. Depois, agarrando nos cortes de seda que
ele lhe confiara para ela fazer camisas, arremessou-os ao chão
gritando:
- As suas bailarinas que lhe façam as camisas! Eu não lhes
tocarei nem que mas pagasse a peso de ouro.
Isto era tão inesperado para o director que ele nada
respondeu e ficou a olhar para minha mãe, estupefacto e
congestionado.
Eu, entretanto, tentava arrastá-la dali para fora e quase
chorava de vergonha e de humilhação. Consegui-o finalmente,
e saímos do quarto sem que o director pronunciasse uma única
palavra.
No dia seguinte contei esta aventura ao pintor, que se
tinha tornado um pouco meu confidente. Ele riu com vontade do
que o director dissera quanto às minhas aptidões para ama de
leite e disse-me:
- Minha pobre Adriana. Já to disse várias vezes: o teu grande
erro foi teres nascido no tempo presente; devias ter vindo ao
mundo há quatro séculos. O que hoje é considerado defeito era
então considerado qualidade e vice-versa. Do seu ponto de vista, o
director tem razão. O público actualmente exige mulheres magras,
louras, de seio pequeno, ancas estreitas e um rosto malicioso e
provocante; tu, pelo contrário, és forte, morena, com um seio e
umas ancas opulentas e um rosto doce e tranquilo. Não está na
tua mão modificares a situação. Para mim tens precisamente o
que necessito. Continua a ser modelo. Depois, um belo dia,
casarás e terás muitos filhos parecidos contigo, morenos e
gorduchos, com caras meigas e tranquilas.
- São essas precisamente as minhas ambições - respondi
com energia.
- Muito bem - disse ele. - Agora inclina-te um bocadinho
para o lado. Isso! Óptimo.
Este pintor queria-me bem à sua maneira, e se tivesse
continuado a viver em Roma e a servir-me de confidente tenho a
certeza de que me daria bons conselhos e muitas coisas que me
aconteceram poderiam ter sido evitadas. Mas ele queixava-se
constantemente de que não vendia os seus quadros e acabou por
aproveitar a oportunidade de ter feito uma exposição em Milão
para fixar residência naquela cidade.
Continuei a ser modelo como ele me aconselhara. Mas os
outros pintores não tinham por mim a mesma amizade e eu não
me sentia disposta a falar-lhes dos meus problemas nem da
minha vida.
Nessa altura, aliás, muito mais imaginária do que real,
feita de sonhos, de aspirações e de esperanças, visto que nada
de extraordinário me acontecia.
2
Foi assim que continuei a ser modelo, apesar de minha
mãe resmungar constantemente que por esse processo eu nunca
chegaria a ganhar coisa que se visse. No decurso deste período da
minha vida minha mãe esteve constantemente de mau humor,
e, apesar de ela o não dizer claramente, eu bem compreendia que
a causa da sua má disposição era eu. Não é esta a primeira
vez que o digo: minha mãe contava com a minha beleza como se
conta com um capital seguro. Para ela o ofício de modelo não
passava de um ponto de partida; depois disto, segundo a sua
expressão habitual, “uma coisa traria outra”. A continuação deste
trabalho humilde e mal remunerado, ao mesmo tempo que a
enchia de amargura, tornava-a rancorosa contra mim, como se o
facto de eu não ser ambiciosa a privasse de lucros seguros.
Evidentemente que não me dizia isto. Mas dava-mo
constantemente a perceber pelos seus modos desagradáveis,
as suas alusões, os seus suspiros, os seus olhares melancólicos
e outros meios de expressão igualmente significativos. Era uma
espécie de chantagem constante, a razão pela qual muitas
raparigas, fundamentalmente honestas, martirizadas sem piedade
nem tréguas por mães ambiciosas e desiludidas, acabam por fugir
de casa e entregar-se ao primeiro homem que encontaram,
unicamente para se libertarem desse tormento. Eu bem sei que
minha mãe fazia isto por amor de mim. Mas esse amor era
como os dos aldeões para com as galinhas: no dia em que elas
deixam de pôr ovos começam imediatamente a perguntar a si
próprios se não terá chegado o momento de lhes torcer o pescoço e
as meter na panela.
Como se é paciente e crédulo quando se é jovem! A minha
vida nesse tempo era horrível e eu nem sequer tinha consciência
disso. O dinheiro que me rendiam as minhas longas, enfadonhas e
fatigantes sessões de pose nos ateliers era por mim integralmente
entregue em casa, e o tempo que não passava nua, entorpecida e
dolorida pela imobilidade, para que me pintassem e desenhassem,
passava-o em casa a coser à máquina, de costas dobradas e com
os olhos fitos na agulha ajudando minha mãe no seu trabalho. À
noite continuava a costurar até tarde, para me levantar mal
começava a amanhecer, pois os ateliers ficavam longe e as sessões
começavam cedo. Mas antes de partir para o trabalho fazia a
minha cama e ajudava minha mãe a arrumar a casa. Eu era
realmente infatigável, submissa, paciente e ao mesmo tempo
sempre calma, alegre e tranquila, a alma isenta de inveja, de
rancor ou de ciúme, cheia dessa doçura e dessa gratidão sem
motivo que são a florescência espontánea da juventude. Não me
apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme
sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de
trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas
paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras
desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mãe numa
cama de casal; mesmo por cima da minha cabeça, quando estava
deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando
estava mau tempo chovia-nos em cima. Tínhamos uma pequena
cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mãe por
desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Não me
apercebia da vida de sacrifício que levava, sem divertimentos, sem
amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na
minha inocência e na minha bondade, sinto uma grande
compaixão por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma
que se sente quando, ao ler-se um romance, desejamos evitar a
uma personagem simpática as desgraças que lhe vão acontecer,
sabendo ao mesmo tempo que as não poderemos impedir. A vida é
assim: a bondade, a inocência, nada valem para os homens. E não
será talvez um dos seus menos dolorosos mistérios que as
melhores qualidades que a natureza nos deu - e todos
entusiasticamente louvam - não sirvam senão para nos tornar
mais desgraçados ainda.
Nesta altura acreditava que a minha aspiração de casar e
ter uma família podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as
manhãs tomava o eléctrico numa grande praça muito perto da
minha casa, para a qual dava, entre outros prédios, uma
construção baixa encostada às muralhas e que servia de garagem.
A essa hora estava todos os dias à porta da oficina um rapaz que
lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistência. Era
moreno, com um ar finíssimo: nariz pequeno e direito, olhos
negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes
muito brancos. Parecia-se muito com um actor americano de
cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a
atenção. Primeiro tomei-o por uma pessoa de condição, porque
estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei
que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos
tais “cavalheiros respeitáveis” de que minha mãe tanto me falava.
Por um lado ele atraiu-me, mas pensava nele apenas quando o
via; depois ia para o atelier e a sua lembrança saía-me do espírito.
Mas não é menos verdade que sem dar por isso e apenas por
causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma
manhã em que eu, no passeio, esperava o eléctrico, ouvi que me
chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para
chamar os gatos; voltei-me e vi que ele me fazia sinais de dentro
do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava,
não hesitei um instante em aproximar-me. Ele abriu a porta. Ao
entrar reparei que a mão que pousava sobre o vidro aberto era
grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador
estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como têm os homens que
exercem profissões manuais. Nada disse e mesmo assim subi.
- Onde quer que a deixe? - perguntou-me fechando a porta.
Notei que tinha a voz doce e tive a impressão de que ela
me agradava, sem no entanto deixar de notar nela qualquer
coisa de falso e de afectado. Acrescentou:
- Bem... para fazer horas vamos dar uma volta... Ainda é
cedo! Depois levá-la-ei aonde você quiser.
E o carro partiu.
Saímos do meu bairro e contornámos as muralhas ao longo
da avenida exterior; em seguida entrámos numa estrada larga
e comprida, ladeada de casebres e de armazéns; por fim
chegámos ao campo. Então desatou a correr como doido por uma
estrada recta, entre áleas de plátanos. De vez em quando dizia-me
sem me olhar, mostrando o conta-quilómetros:
- Agora vamos a oitenta... noventa... cem... cento e vinte...
cento e trinta.
Queria impressionar-me com estas velocidades, mas eu
estava sobretudo inquieta porque tinha de ir posar e receava que
um incidente qualquer nos obrigasse a parar o carro em
algum descampado. De repente travou. Bruscamente desligou o
motor, voltou-se para mim e perguntou:
- Quantos anos tem?
- Dezoito anos - respondi.
- Dezoito anos... julguei que tivesse mais!
Tinha realmente uma maneira de falar afectada, e por vezes,
para sublinhar uma palavra, baixava o tom como se falasse
consigo próprio ou dissesse um segredo.
- Como se chama?
- Adriana. E você?
- Gino.
- O que faz? - perguntei-lhe.
- Sou comerciante! - respondeu sem hesitar.
- E o carro ê seu?
Olhou o carro com uma espécie de desdém e declarou:
- É meu, sim.
- Não acredito! - disse-lhe eu com toda a franqueza.
- Não acredita? Estão não é meu! - repetiu sem perder a
linha. - Não está má! E porquê?
- Você é o chauffeur?
Ele fingiu um espanto irónico cada vez maior.
- Mas, na verdade, você diz-me coisas fantásticas! Vejam
bem: chauffeur! Mas que a fez pensar isso?
- As suas mãos.
Olhou as mãos sem corar nem se desconcertar e confessou:
- Bom! Nada se pode esconder a esta menina. Mas que
argúcia! É verdade, sou chauffeur. E agora, está contente?
- Nada mesmo! - respondi duramente. - Quero apenas
pedir-lhe que me leve para a cidade o mais depressa possível.
- Mas porquê? Está zangada comigo por eu ter dito que era
comerciante?
Estava realmente irritada com ele. Nem eu sabia bem
porquê:
- Não falemos mais nisso. Leve-me!
- Mas era uma brincadeira! Então já não se pode brincar?
- Não gosto destas brincadeiras!
- Que mau génio! Eu pensei: é possível que esta rapariga
seja alguma princesa... se ela descobre que sou apenas um pobre
chauffeur, nem se digna olhar-me... vou dizer-lhe que sou
comerciante.
As suas palavras foram astuciosas, porque, lisonjeando-me,
faziam-me compreender os seus sentimentos a meu respeito. Por
outro lado ele pronunciava-as com uma mistura de graça e de
enfatuamento que acabaram de me conquistar.
- Não sou qualquer princesa - respondi. - Ganho a minha
vida como modelo, como você ganha a sua como chauffeur.
- Que quer dizer isso de modelo?
- Vou aos ateliês dos pintores. Ponho-me nua e eles
pintam-me ou desenham-me.
- Mas você não tem mãe? - perguntou-me com ênfase.
- Com certeza, porquê?
- E a sua mãe consente que se ponha toda nua diante dos
homens?
Eu nem sequer tinha sonhado alguma vez que pudesse
haver algum mal neste trabalho. Efectivamente, não havia mal
algum nisso, mas agradou-me ver tais sentimentos, que
denotavam que ele era sério e tinha senso moral. Como já disse,
eu tinha sede de normalidade; e ele na sua falsidade tinha
compreendido logo (mesmo agora eu não sei como conseguiu
adivinhar) as coisas que me devia dizer e as que não devia. Outro
qualquer - não pude deixar de pensar - ou teria troçado de mim
ou teria demonstrado qualquer indiscreta excitação à ideia da
minha nudez. E foi por isso que a primeira impressão que me
ficara da sua mentira se modificou sem que eu desse por isso.
Pensei que apesar de tudo devia ser um bom rapaz, honesto e
sério, muito parecido com o homem que eu sonhava para marido.
Respondi-lhe portanto com simplicidade:
- Foi minha mãe quem me arranjou este trabalho.
- Então é sinal de que ela não gosta de si.
- Não - protestei -, a minha mãe gosta até muito de mim;
mas ela também no seu tempo de rapariga foi modelo. E depois
asseguro-lhe que nada tem de mal. Há muitas raparigas como eu
que fazem este trabalho e são raparigas sérias.
Ele abanou a cabeça em ar de desaprovação e depois pousou
a sua mão na minha.
- Sabe que estou bem contente por tê-la conhecido... muito
contente!
- Também eu - respondi ingenuamente. Neste momento
sentia uma atracção tão grande por ele que quase esperava que
me beijasse. Com certeza que se me tivesse beijado eu não teria
protestado, mas em vez disso disse-me com voz grave e ar
protector:
- Se isso dependesse de mim, você não seria modelo com
certeza!
Senti-me imediatamente vítima e experimentei um
sentimento de gratidão pela sua consideração.
- Uma rapariga como você - continuou ele - deve ficar na
sua casa... precisando... pode trabalhar... Mas é preciso que seja
um trabalho digno... um trabalho em que não seja necessário
sacrificar-se a pôr em perigo a sua honra. Você é uma rapariga
para casa, fundar um lar, ter filhos, fazer companhia ao seu
marido.
Era exactamente o que eu pensava e não sabia dizer até
que ponto me tornava feliz saber que ele pensava como eu,
ou fingia pensar.
- Tem razão - disse-lhe. - Mas não quero que faça uma ideia
errada de minha mãe. Foi justamente por ela gostar muito de mim
que quis que eu fosse modelo.
- Ninguém o diria! - retorquiu com um ar seriamente
comovido e indignado.
- Sim! Ela gosta de mim! Somente, há certas coisas que ela
não compreende.
Continuámos a falar de tudo ou pouco, sentados, atrás
do pára-brisas, dentro do carro parado. Lembro-me de que
estávamos em Maio, que o ar era doce e que as sombras dos
plátanos pareciam brincar sobre a estrada até perder de vista.
Ninguém passava, salvo raros automóveis a toda a
velocidade. O campo em redor, cheio de sol e muito verde, estava
tão deserto como a estrada. Por fim olhou o relógio e disse-me que
íamos voltar para a cidade. Durante todo este tempo ele só me
tinha pegado na mão, e mesmo isso apenas uma vez. E eu, que
esperava que ele tentasse pelo menos beijar-me, estava ao mesmo
tempo decepcionada e contente de tanta reserva. Decepcionada
porque ele me agradava e não podia deixar de sentir uma grande
atracção pela sua boca fina e vermelha quando a olhava. Contente
porque a sua atitude confirmava a ideia que tinha a seu respeito,
de que era um rapaz sério como eu desejava que ele fosse.
Conduziu-me até ao atelier e disse-me que, a partir desse
dia, se eu estivesse na paragem do eléctrico a uma certa hora,
ele me traria no seu carro; a essa hora nada tinha que fazer.
Aceitei de boa vontade, e as minhas longas horas de
pose pareceram-me mais curtas naquele dia. Parecia que a minha
vida tinha tomado um rumo e sentia-me contente de poder pensar
nele sem remorsos e sem ressentimentos, como se pensa num
homem que não só nos agrada fisicamente, mas também pelas
qualidades de carácter que eu considerava essencial que ele fosse
possuidor.
Nada disse a minha mãe, porque pensava, muito
acertadamente, que ela nunca aceitaria que eu me ligasse a um
homem pobre e de futuro modesto. Na manhã seguinte veio
buscar-me como me prometera, e nesse dia limitou-se a levar-me
directamente ao atelier. Nos dias seguintes, logo que o tempo
começou a ficar bom, levou-me por vezes para qualquer estrada
dos arrabaldes, ou para qualquer rua pouco frequentada da
periferia, a fim de conversarmos à vontade, mas sempre de
maneira respeitosa e conversas honestas e sérias que muito me
agradavam. Eu era nesse tempo muito sentimental: tudo o que
traduzisse bondade, virtude, moral e afeição de família tocava-me
singularmente e comovia-me até às lágrimas, lágrimas que me
corriam livremente dando-me uma sensação embriagadora e
ardente de alívio, de simpatia e de confiança. Foi assim que pouco
a pouco me convenci de que Gino era absolutamente perfeito.
“Realmente - pensava eu às vezes -... que defeitos tem ele? É
novo, é belo, é inteligente, é honesto, é sério, não se lhe pode
apontar o mais pequeno defeito.” Isso admirava-me porque não é
fácil encontrar a perfeição, e o conhecê-la quase me afligia. “Que
homem é este que, depois de perscrutado, não revela a menor
mácula, nem a menor falta?”
Na verdade, eu apaixonara-me sem dar por isso. E agora sei
que o amor tem uns óculos através dos quais um monstro
nos parece maravilhoso.
Estava de tal maneira apaixonada que a primeira vez que ele
me beijou, na estrada onde tivera lugar a nossa primeira conversa,
experimentei uma tal sensação que se poderia traduzir como a
satisfação natural de um velho anseio, há muito desejado.
Contudo, a irresistível espontaneidade com que as nossas bocas
se uniram assustou-me um pouco, porque eu pensava que de
futuro os meus actos já não dependiam de mim, mas da força
irresistível que me atraía com tão doce violência para os seus
braços. No entanto, fiquei plenamente descansada, porque logo
que nos separámos ele disse-me que nos podíamos considerar daí
em diante como noivos.
Ainda desta vez não pude impedir-me de pensar que ele
encontrara sem dificuldades as palavras que correspondiam aos
meus anseios mais íntimos. Assim, o receio que este beijo me
despertara desvaneceu-se e todo o tempo em que estivemos
parados na estrada fui eu quem o beijou, sem reserva, com
um sentimento de inteiro, violento e legítimo abandono. Dei e
recebi na minha vida muitos beijos. Sabe Deus quantos dei e
recebi sem a menor reacção, não só afectiva mas também física,
como se dá ou se recebe uma moeda usada por mil mãos. Mas
nunca mais esquecerei aquele primeiro beijo, pela intensidade
quase dolorosa com a qual satisfiz plenamente, não apenas o meu
amor por Gino, mas uma espera de toda a minha vida. Lembro-me
de ter tido a sensação de que à nossa volta o mundo girava, que
eu tinha o céu em baixo e a Terra em cima de mim.
Na realidade tinha-me apenas debruçado um pouco sobre a
sua boca para prolongar o beijo. Qualquer coisa de fresco e de vivo
tocava e forçava os meus dentes, e quando os descerrei senti que
a sua língua, que tanta vez me acariciara os ouvidos com as suas
palavras, se me revelava agora mudamente, fazendo penetrar na
minha boca uma outra doçura desconhecida. Não sabia que se
podia beijar assim e por tanto tempo; bem depressa perdi a
respiração e senti-me tão vazia que quando nos separámos
encostei-me às costas do banco com os olhos fechados e o espírito
abstracto, como se fosse desmaiar. Nesse dia descobri que havia
outras alegrias no mundo além de uma vida tranquila no seio da
família. Mas não pensava que essas alegrias pudessem impedir
aquelas a que eu até então aspirara.
Depois da promessa de noivado de Gino senti-me segura de
poder sem pecado nem remorsos daqui para o futuro saborear ao
mesmo tempo umas e outras. Estava tão convencida da
honestidade e da dignidade da minha conduta que nessa mesma
noite, com um pouco de excitação e satisfação ao mesmo tempo,
contei o caso a minha mãe. Encontrei-a a coser à máquina junto
da janela à luz crua de uma lâmpada sem abat-jour, e disse-lhe
com a cara a arder:
- Mamã, estou noiva!
Vi a sua face enrugar-se com uma contracção como se
tivesse sentido um fio de água gelada correr-lhe pelas costas
abaixo.
- E de quem? - perguntou.
- De um rapaz que conheci há uns dias.
- Que faz ele?
- É chauffeur.
Gostaria de ter acrescentado mais alguma coisa, mas ela não
me deu tempo. Afastou-se da máquina e. saltando da cadeira,
agarrou-me pelos cabelos:
- Ficaste noiva sem nada me dizeres! E com um chauffeur?
Coitada de mim! Tu vais ser a minha morte.
Gritando, ela tentava esbofetear-me. Eu protegia a cara com
as mãos e acabei por me escapar, mas ela seguiu atrás de mim.
Corri à volta da mesa que ocupava o centro da sala, enquanto ela
me perseguia com lamentações de desespero. Eu estava
completamente apavorada ao ver o seu rosto magro virado para
mim com uma espécie de fúria dolorosa.
- Eu mato-te! - gritava. - Desta vez mato-te! - Cada vez que
ela dizia “mato-te” dir-se-ia que a sua raiva aumentava e que ela
ia pôr em prática as suas ameaças. Eu estava no topo da mesa e
vigiava os seus gestos porque naquele momento ela era capaz
senão de me matar, pelo menos de me ferir com a primeira coisa
que apanhasse à mão. Com efeito a certa altura brandiu a grande
tesoura de costura; só tive tempo de me virar e logo a tesoura
voou pelo ar e foi bater na parede. O seu próprio gesto assustou-a.
Bruscamente sentou-se junto da mesa, com o rosto entre as mãos,
e teve uma crise de lágrimas nervosas entrecortada por ataques de
tosse, onde havia mais raiva que dor. Ouvia-a dizer por entre
lágrimas:
- E eu que tinha tantos planos para ti!... Eu que te via rica...
com a tua beleza... E logo te foste comprometer com um
esfomeado!
- Mas ele não é um esfomeado - interrompi timidamente.
- Um chauffeur! Um chauffeur! - repetia ela levantando os
ombros. - Tu não passas de uma desgraçada e acabas por me
desgraçar a mim também!
Pronunciou lentamente estas palavras como para saborear a
sua amargura.
- Vai casar contigo e tu serás a sua criada primeiro e depois
a criada dos teus filhos... assim que tudo acabará!
- Casaremos logo que ele tenha dinheiro suficiente para
comprar um carro! - declarei, anunciando um dos vários planos
de Gino.
- Veremos!... Mas não o quero cá metido! - gritou
bruscamente, voltando para mim a cara coberta de lágrimas.
- Não o quero ver! Faz o que quiseres... encontra-te com ele lá
fora, as não o metas aqui!
Nessa noite fui-me deitar sem jantar, muito triste e muito
desencorajada. Mas percebi que se minha mãe se portava comigo
desta maneira era por gostar de mim e por ter feito para o meu
futuro não sei que planos que o meu noivado com Gino deitava
por terra. Mais tarde, quando compreendi quais eram esses
planos, não senti coragem para a condenar. Ela não tinha
recebido da sua vida honesta e laboriosa outras recompensas que
não fossem amarguras, tormentos e miséria. Que admira que
sonhasse para a sua filha uma sorte completamente diferente?
Devo acrescentar que se tratava talvez não tanto de
planos, mas mais propriamente de sonhos vagos e cintilantes que
podia acalentar sem muitos remorsos precisamente por serem
vagos e cintilantes. Mas isto é uma suposição. Pode muito bem ser
que, pelo contrário, a minha mãe, por um desvio inveterado de
consciência, tenha realmente decidido encaminhar-me um dia
para o caminho que fatalmente eu iria tomar sozinha. Se digo
estas coisas não é por rancor contra minha mãe, mas porque
ainda hoje não sei bem o que pensava ela então e porque a
experiência me ensinou que se pode pensar e sentir ao mesmo
tempo as coisas mais diferentes sem lhes notar a contradição.
Minha mãe jurara que em caso nenhum se encontraria com
Gino e durante algum tempo respeitei o seu juramento. Mas
depois dos primeiros beijos, Gino parecia extremamente desejoso
de apôr tudo em ordem, como ele dizia, e todos os dias insistia
comigo para ser apresentado a minha mãe. Não tinha coragem
para lhe dizer que ela não o queria conhecer porque achava a sua
profissão demasiado humilde e vi-me por isso forçada a encontrar
constantemente pretextos para retardar essa ocasião. Por fim Gino
compreendeu que eu lhe escondia qualquer coisa e insistiu tanto
que me vi forçada a revelar-lhe a verdade.
- Minha mãe não te quer conhecer. Acha que eu devia
casar-me com um homem rico e não com um chauffeur.
Esta conversa passava-se dentro do carro na ruazinha
costumada do arrabalde. Gino olhou-me com tristeza, suspirando.
Eu estava a tal ponto apaixonada por ele que nem me dei conta
do que havia de fingido na sua maneira de falar.
- Eis o resultado de ser pobre! - exclamou.
Depois disso manteve-se num silêncio longo e teimoso.
- Humilha-me - respondeu ele baixando a cabeça. Outro
qualquer no meu lugar nem teria falado em noivado, nem teria
pedido para ser apresentado à tua mãe. É para que serve querer
a gente portar-se bem!
- Que importância tem isso se tens a certeza do meu amor?
- O que eu devia ter feito - continuou ele - era apresentar-me
com a carteira bem recheada e sem falar de casamento. Se fizesse
isso, tua mãe abrir-me-ia os braços...
Não ousava contradizê-lo porque bem sabia que tudo quanto
ele dizia era verdade.
- Sabes o que vamos fazer? - propus daí a momentos. Um
destes dias levo-te lá a casa sem dizer nada. Desse modo minha
mãe não terá outro remédio senão conhecer-te. Que demónio! Não
pode chegar ao exagero de fechar os olhos!
Na noite combinada para isso conduzi Gino a nossa casa.
Minha mãe tinha acabado a tarefa desse dia e estava a preparar
uma ponta da mesa para jantarmos. Entrei à frente e disse
simplesmente.
- Mamã! Este é o Gino!
Esperava que houvesse uma cena desagradável. Até tinha
prevenido Gino. Com grande surpresa minha ela disse secamente :
- Muito prazer...
E depois saiu da sala.
- Vais ver que tudo corre bem - disse Gino.
Aproximei-me dele, estendi-lhe a boca e acrescentei:
- Dá-me um beijo...
- Não, não - murmurou ele em voz baixa afastando-me. - Se
eu fizesse isso, tua mãe teria muita razão em pensar mal de mim.
Gino sabia encontrar sempre as palavras exactas e perfeitas
para cada momento. Tive de concordar para comigo que tinha
razão. Minha mãe entrou pouco depois e, evitando olhar para
Gino, disse:
- O jantar não chega porque eu não sabia... Mas vou sair e...
Não teve tempo de acabar porque Gino se aproximou
imediatamente dela interrompendo-a:
- Por amor de Deus ! Eu não vim cá para que me dessem
de jantar. Pelo contrário! Peço licença para as convidar a ambas...
Falava cerimoniosamente, como a pessoas da alta. Minha
mãe, que não estava habituada a que lhe falassem assim, nem
a receber convites, hesitou uns momentos olhando para mim.
Depois respondeu:
- Cá por mim, se a Adriana quiser..
- Podíamos comer na casa de pasto aqui ao lado... - propus
eu.
- Onde quiserem - respondeu Gino.
Minha mãe declarou que ia tirar o avental e deixou-nos sós!
Enchia-me uma enorme e ingénua alegria, tinha a impressão de
que acabava de conseguir uma grande vitória quando na realidade
isto tudo não passava de uma comédia, na qual eu era a única
pessoa que permanecia completamente sincera. Aproximei-me de
Gino, e antes que ele conseguisse impedir-me beijei-o com paixão.
O meu beijo marcava o termo da ansiedade que me tinha
atormentado tantos dias, a segurança de que mais nenhum
obstáculo agora se ergueria contra o meu casamento, a minha
gratidão por Gino pela sua atitude amável para com a minha mãe,
a minha afeição por ele, uma afeição sincera, confiante e
desarmada como só é possível sentir-se aos dezoito anos quando
ainda nenhuma desilusão nos tocou e feriu a alma. Só mais tarde
é que vim a compreender como esta candura tem pouca
importância para os outros. A maior parte das pessoas
consideram-na ridícula e gostam de a macular.
Dirigimo-nos os três para um modesto restaurante que
ficava perto da nossa casa, do outro lado das fortificações. À
mesa.
Gino, deixando de me dar qualquer importáncia,
consagrou-se por completo a minha mãe, no claro desejo de a
conquistar, o que aliás me pareceu louvável e legítimo; foi por isso
que não prestei grande atenção às suas exageradas amabilidades
para com ela. Gino tratava-a por “madame”, tratamento
absolutamente novo para ela, e tinha o cuidado de usar esta
palavra o mais possível no começo e no fim das suas frases.
Ao mesmo tempo, com o ar mais natural deste mundo. Dizia-lhe:
“A senhora, que é uma pessoa inteligente, deve compreender.”
Chegou ao extremo de lhe declarar que quando tinha a minha
idade ela devia ter sido muito mais bonita do que eu.
- Que provas tens disso? - perguntei, um tanto amuada.
- Ora! Estas coisas adivinham-se, não precisam de provas! -
respondeu com ar superior e entendido.
Quanto a minha mãe, coitada, não sabia que fazer. Cheguei
a notar que às vezes repetia a si própria, murmurando, os
madrigais afectados e manifestamente interesseiros de Gino.
Esta era, com certeza absoluta, a primeira vez na sua vida
em que lhe diziam coisas destas, e o seu coração esfomeado não
conseguia saciar-se. A mim, como já disse, todas essas falsidades
me pareciam uma prova de respeito de Gino pela minha mãe e da
sua delicada ternura para comigo. E tudo isto era como o toque
final do pincel no belo retrato de Gino, já tão cheio de perfeições e
qualidades.
Entretanto, um grupo de gente jovem viera sentar-se na
mesa próxima da nossa. Um dos rapazes, que me pareceu estar
embriagado. Pôs-se a olhar insistentemente para mim e disse em
voz alta qualquer frase obscena a meu respeito. Gino ouviu-a,
levantou-se imediatamente e dirigiu-se-lhe:
- Repete o que acabas de dizer! - ordenou.
- O caso interessa-te? - perguntou o outro, numa voz, um
pouco pastosa, de bêbado.
- Esta senhora e esta menina estão acompanhadas por mim!
- declarou Gino elevando a voz - e enquanto estiverem comigo
tudo o que lhes diz respeito me interessa. Entendido?
- Entendido. Não te irrites - respondeu o rapaz, assustado.
Os outros, apesar da sua atitude hostil, nada se atreveram a
fazer. E o rapaz, fingindo-se ainda mais embriagado do que na
realidade estava, encheu um copo com vinho e ofereceu-o a Gino.
Este recusou com um gesto.
- Não queres beber? - gritou o bêbado. - Não gostas de
vinho? Fazes mal. O vinho é bom e faz bem. Está bem, pronto,
bebo eu!
Esvaziou o copo de uma golada. Gino encarou-o severamente
durante momentos e depois voltou para junto de nós.
- Gente mal educada! - disse sentando-se.
- Não valia a pena incomodar-se - disse minha mãe,
envaidecida com o que se passava. - Não passam de garotos.
Mas Gino não queria perder a oportunidade de marcar o seu
espírito de galanteria cavalheiresca.
- Como não valia a pena? Ainda se fosse com uma dessas
mulheres... bem, compreendamo-nos, não é verdade “madame”?
Se fosse isso vá lá, mas eu estou com uma senhora e com uma
menina honestas e respeitáveis. Aliás, o pateta compreendeu logo
que era melhor fazer marcha a trás...
Este incidente completou a conquista de minha mãe, sem
contar que Gino a forçava a beber, e que o vinho a embriagava
tanto como as suas adulações. Apesar disso, para além da
simpatia que ela sentia por Gino, mantinha-se o mau humor que
lhe causava o nosso noivado. Por isso não deixou escapar a
primeira ocasião que se lhe apresentou para lhe fazer
compreender que nada estava esquecido.
Essa oportunidade foi-lhe oferecida por uma conversa acerca
da minha profissão de modelo. Não me recordo a que propósito,
falei de um novo pintor para quem tinha posado essa manhã.
Gino declarou imediatamente:
- Talvez isto seja idiota e pouco moderno, mas custa-me
aceitar que a Adriana se ponha nua diante de todos esses
homens...
- E porquê? - perguntou minha mãe com uma voz alterada
que me fez temer a aproximação da tempestade.
- Porque me não parece moral.
Não me atrevo a dizer integralmente a resposta que lhe foi
dada. Essa resposta estava cheia dos palavrões e das
obscenidades que lhe vinham à boca sempre que bebia ou se
deixava dominar pela cólera. Mas, mesmo expurgada, a sua
diatribe revelava claramente quais eram as suas ideias sobre o
assunto.
- Ah, não é moral?! - gritou de tal modo que todos os
presentes pararam de comer e se voltaram para nós. - Ah, não é
moral? Então o que é moral? Passar todo o santo dia a lavar
pratos, cozinhar, passar a ferro, esfregar o chão, e depois, à noite,
ver chegar um marido tão estafado como nós, que se deita mal
acaba de jantar, se volta para o outro lado e se põe a ressonar
como um porco? Isso é que é moral, não lhe parece? Sacrificar-se
uma pessoa toda a vida, tornar-se velha e feia e por fim estourar,
isso é que é moral? Pois muito bem! Sabe o que lhe digo? Que não
se vive mais do que uma vez, e quando se morre, boas-noites! Vá
para o diabo com a sua moral! A Adriana faz muito bem em se
mostrar nua a quem lhe paga para isso, e ainda faria melhor se...
- Aqui uma série de obscenidades, que me fizeram corar,
proclamadas aos gritos para toda a gente. - Pela minha parte -
continuou - se ela fizesse isto que digo, não só não tentaria
impedi-la, como ainda a ajudaria com todas as minhas forças!
Desde que lhe pagassem, é claro! - concluiu, depois de um
momento de reflexão.
- Tenho a certeza de que não seria capaz disso - respondeu
Gino, sem perder a calma.
- Quem?! Eu?! Isso é o que o senhor pensa! Mas de que
diabo se convenceu o senhor? De que me causou algum prazer
que a Adriana se tivesse comprometido com um pobretanas como
o senhor, um simples chauffeur? Que não preferiria mil vezes
que ela levasse uma vida de paródia? Julga que eu posso
concordar que minha filha, bela como é, capaz de fazer pagar a
sua beleza por fortunas, vá condenar-se a ser uma criada sua
para toda a vida? Pois, meu amigo, se pensa isso, engana-se!
Garanto-lhe que se engana!
Gritava de tal maneira que toda a gente tinha os olhos
cravados nela. Eu estava meia morta de vergonha. Porém, Gino,
como já disse, mantinha-se perfeitamente calmo e senhor de si.
Aproveitando-se de um momento em que minha mãe se
calou para respirar, encheu-lhe o copo e propôs gentilmente, com
um sorriso:
- Mais uma gota de vinho?
Ela não soube fazer outra coisa senão dizer: - Obrigado! - e
aceitou o copo que Gino lhe oferecia. A nossa volta as pessoas,
vendo que apesar de todos aqueles gritos nós continuávamos a
beber como se nada se tivesse passado, retomaram as suas
conversas. Gino declarou:
- A Adriana, bela como é, merecia levar a vida que leva a
minha patroa...
- E que vida leva ela? - apressei-me a perguntar, ansiosa
por deixar de ser o assunto da conversa.
- Pela manhã - respondeu ele com vaidade, como se a
riqueza dos seus patrões se reflectisse nele próprio - levanta-se aí
pelas onze ou meio-dia. Levam-lhe o pequeno-almoço à cama
numa bandeja de prata e num serviço de que as peças são
também de prata maciça. Depois toma o seu banho, mas antes
disso a criada de quarto deita sais na água para a perfumar. A
seguir levo-a a dar uma passeio de carro. Toma um vermute em
qualquer parte, ou corre as lojas à procura de coisas que lhe
agradem. Volta então para casa, almoça, dorme a sesta e passa
horas a vestir-se. Também tem armários e armários cheios de
coisas! Quando está pronta, sai para fazer visitas ou jantar fora.
A noite vai ao teatro ou dançar, e também recebe com freqüência
lá em casa. Nessas ocasiões jogam, bebem, ou ouvem música.
Uma gente rica, extraordinariamente rica. Só em jóias estou
convencido de que a minha patroa possui milhões.
Como as crianças a quem é fácil distrair ou fazer mudar
de disposição, minha mãe já se tinha esquecido de mim e do meu
injusto destino e esbugalhava os olhos perante a descrição de todo
esse esplendor.
- Milhões? - repetiu com avidez. - E é bonita? Gino, que
estava a fumar, cuspiu com destreza um fio de tabaco.
- Bonita? Ela?! Credo! É horrorosa. Tão magra que parece
uma bruxa!
Continuaram os dois a conversar acerca da fortuna da
patroa do Gino, ou, para ser mais exacta, Gino continuou a
exaltar a sua riqueza como se a ele próprio pertencesse. Mas,
passado o primeiro impulso de curiosidade, minha mãe tinha-se
tornado novamente sombria e distraída. E nunca mais abriu boca
em toda a noite. Talvez tivesse vergonha de se ter abandonado
àquele acesso de cólera; talvez toda aquela riqueza lhe inspirasse
inveja e talvez pensasse com despeito na pobreza do homem que
eu tinha escolhido para noivo.
No dia seguinte perguntei timidamente a Gino se ela lhe
tinha desagradado muito; mas ele respondeu-me que, muito
embora não concordando, compreendia o seu ponto de vista cuja
origem era uma vida infeliz e cheia de privações. Era digna de
pena, concluiu. Além disso via-se bem que se falava daquela
maneira é porque gostava muito de mim. Era esta também a
minha opinião, e fiquei-lhe agradecida por se mostrar tão
compreensivo. Na verdade eu tinha tido muito medo de que a cena
que a minha mãe fizera viesse esfriar as nossas relações.
A moderação de Gino, além de me encher de gratidão,
reforçou em mim a ideia de que ele era perfeito. Se eu fosse menos
cega e menos inexperiente teria compreendido que só a falsidade
premeditada pode dar uma impressão de perfeição e que a
verdadeira sinceridade apresenta sempre, ao mesmo tempo,
qualidades e defeitos.
Em resumo, daí para o futuro a minha posição perante ele
seria sempre de inferioridade, porque eu ficaria para sempre
convencida de nada lhe ter dado em troca da sua generosidade e
da sua compreensão. Talvez se deva atribuir ao estado de alma de
uma pessoa que se via cumulada de favores e que deseja
instintivamente pagar a sua dívida o facto de, a partir desse
momento, eu ter deixado por completo de resistir, como fizera até
aí, aos seus gestos amorosos cada vez mais audaciosos. Mas
também é verdade - já o disse a propósito do nosso primeiro beijo
- que eu me sentia pronta à entrega total, levada ao mesmo tempo
por uma força suave e invencível, como acontece com o sono que,
para vencer a nossa vontade consciente de não adormecer, nos
obriga a dormir fazendo-nos sonhar que estamos acordados tão
bem que, abandonando-nos a ele, estamos convencidos de que
lhe resistimos.
Recordo-me com impressionante clareza de todas as fases
da minha sedução, porque cada uma das conquistas de Gino foi
ao mesmo tempo desejada e repelida por mim e porque cada
uma delas me deu, ao mesmo tempo, prazer e remorsos. E
também porque essas conquistas foram conseguidas com uma
lentidão sabiamente premeditada, sem pressas nem impaciências.
Gino procedia como um general que ocupa metodicamente um
pais e não como um amante ardendo de desejos, e assim foi
apossando-se do meu corpo passivo, da boca até ao ventre. Tudo
isto, porém, não impediu que mais tarde Gino se apaixonasse
violentamente por mim e que a premeditação calculada
desaparecesse para dar lugar, senão a um amor profundo, pelo
menos a um poderoso desejo que nada saciava.
Durante os nossos passeios de carro até ali ele tinha-se
limitado a beijar-me a boca e o pescoço, mas uma certa manhã
enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botões
da minha blusa. Depois uma sensação de frescura no peito fez
com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o
espelho do pára-brisas. Reparei então que um dos meus seios
estava nu. Enchi-me de vergonha, mas não tive coragem para me
tapar. Foi o próprio Gino, num gesto rápido, que parecia secundar
a minha atrapalhação, quem abotoou novamente a minha blusa.
Esta delicadeza da sua parte comoveu-me profundamente,
deixando-me ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia
seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer
aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de então
habituei-me àquela manifestação do seu desejo e parece-me que
se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar
de mim.
Conversávamos com frequência do que seria a nossa vida
depois de nos casarmos. Gino falava-me também muito da sua
família, que vivia na província, a qual não podia com justiça
considerar-se pobre, pois possuía algumas feiras de terra.
Tenho a impressão de que - o que aliás é vulgar nos
autênticos mentirosos - em dado momento ele começou a
acreditar nas suas próprias mentiras. Certo que mostrava por
mim uma forte atracção, e, visto que a nossa intimidade se
tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo
tempo tornar-se mais sincero. Pela minha parte as suas palavras
2adormeciam os meus remorsos e davam-me uma impressão de
felicidade ingénua e completa que nunca mais depois disso voltei
a conhecer. Eu amava, era amada, pensava que me casaria muito
breve e nada mais se poderia desejar neste mundo.
Minha mãe compreendia perfeitamente que os nossos
passeios matinais não eram completamente inocentes e deu-mo a
perceber muitas vezes por meio de frases como esta:
“Não sei o que vocês fazem quando passeiam de automóvel,
mas a verdade é que também o não quero saber...” Ou então: “Tu
e o Gino andam a preparar uma grande tolice! Tanto pior para ti!”
Dizia-me com frequência coisas no género. Mas por vezes as
suas recriminações pareceram-me estranhamente
desinteressadas.
Dir-se-ia que não só encarava com antecipada resignação a
ideia de que eu ia tornar-me amante do Gino como até no fundo
desejava que isso acontecesse. Agora sei que ela esperava sempre
o momento próprio para impedir que o meu casamento se
realizasse.
3
Uma manhã, Gino disse-me que os patrões tinham partido
para o campo, que as criadas estavam de férias nas suas aldeias e
que lhe tinham entregue a casa a ele e ao jardineiro. Não gostaria
eu de a visitar? Tinha-me falado dela tantas vezes e em termos tão
admirativos que eu estava cheia de curiosidade: aceitei de boa
vontade. Mas no preciso momento em que disse que sim, uma
2
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perturbação profunda feita de desejo fez-me compreender que a
minha curiosidade de ver a casa não tinha passado de um
pretexto, e que o verdadeiro motivo desta visita era bem outro.
Entretanto, como sempre acontece quando se aspira a uma coisa
que não se quer desejar, fingi não acreditar no pretexto,
enganando-me a mim própria e a ele.
- Sei que não devia ir - disse-lhe, subindo para o carro.
- Mas não nos vamos demorar muito tempo, pois não?
Ouvia-me a mim própria pronunciar estas palavras numa voz ao
mesmo tempo amedrontada e provocante. Gino respondeu-me
muito sério:
- Só o tempo de ver a casa. Depois vamos ao cinema.
A moradia elevava-se numa ruazinha que descia do novo
bairro rico, no meio de outras lindas casas. Estava um dia calmo e
todas essas casas estendendo-se pela colina debaixo de um céu
muito azul, com as suas fachadas de tijolos vermelhos ou de
pedra branca, os seus alpendres ornados de estátuas, as suas
pérgulas envidraçadas, os terraços e as varandas repletos de
gerânios, os jardins onde cresciam as suas árvores copadas entre
uma moradia e outra - tudo isso me dava uma deliciosa sensação
de descoberta e de novidade. Era como se entrasse num mundo
mais livre e mais belo, onde seria mais agradável viver. Não pude
deixar de me lembrar do meu bairro, da grande estrada que corre
junto das muralhas, das construções pobres, e declarei a Gino :
- Já estou arrependida de ter vindo.
- Porquê? - perguntou-me com ar desenvolto. - Não nos
demoraremos, está descansada!
- Tu não percebes! - respondi. - Estou arrependida porque
agora vou corar com vergonha da minha casa e do meu bairro.
- Ah! Isso sim! - disse com um ar aliviado. - Mas que queres
fazer? Era preciso ter-se nascido milionário... Neste bairro só
moram milionários.
Abriu o portão e levou-me por uma álea coberta de saibro,
entre duas filas de arbustos tratados com inexcedível esmero.
Entrámos na moradia por uma porta de vidro espesso e
encontrámo-nos no vestíbulo da entrada, vazio, pavimentado de
placas de mármore brancas e negras, desenhando enormes
quadrados encerados, brilhantes como espelhos. Do vestíbulo
passámos ao hall, espaçoso e cheio de luz, para o qual davam as
salas do rés-do-chão. Ao fundo do hall via-se uma escadaria toda
branca, que conduzia aos andares superiores.
Vendo este hall senti-me tão intimidada que comecei a andar
nos bicos dos pés. Gino reparou e disse-me a rir que podia fazer
todo o barulho que quisesse porque ninguém estava em casa.
Mostrou-me o salão: uma grande sala cheia de poltronas
e divãs; a sala de jantar, mais pequena, com uma mesa oval,
cadeiras e credências de uma bela madeira castanha, brilhante; a
rouparia cheia de armários pintados de esmalte branco.
Num quarto pequenino havia um bar engastado numa
reentrância da parede, um verdadeiro bar com prateleiras para as
garrafas, a máquina de café niquelada e o balcão forrado de zinco:
dir-se-ia uma capelinha, tanto mais que uma grade baixa fechava
a entrada.
Perguntei a Gino onde era a cozinha: disse-me que a cozinha
e os quartos do pessoal eram na cave. Era a primeira vez na
minha vida que eu entrava numa casa destas; instintivamente
tocava cada coisa com a ponta dos dedos, como se não acreditasse
no que viam os meus olhos. Tudo me parecia novo e precioso: o
vidro, a madeira, o mármore, o metal, os tecidos. Não me saia da
cabeça a comparação entre estas paredes, estes pavimentos, estes
móveis com os ladrilhos sujos, as paredes enegrecidas e os móveis
desconjuntados da nossa casa, e pensei que minha mãe tinha
razão quando dizia que nesta vida só o dinheiro conta. Pensava
também que as pessoas que viviam sempre no meio destas bonitas
coisas deviam por força ser belas e boas, não poderiam gritar, ter
questões, praticar enfim a maior parte dos actos que eu tinha
visto fazer na minha casa e nas outras iguais à minha.
Entretanto, Gino explicava-me pela centésima vez a vida que
se fazia lá dentro, como se qualquer coisa de todo aquele luxo e de
toda aquela riqueza se reflectisse nele.
- Têm pratos de porcelana... as travessas são todas de
prata... comem cinco pratos diferentes, bebem três qualidades de
vinho. À noite a senhora veste um vestido decotado e ele um
smoking... Depois do jantar, a criada de quarto leva-lhes uma
bandeja de prata com sete qualidades de cigarros, só cigarros
estrangeiros, bem entendido!... Depois saem da sala de jantar e
levam-lhes o café e os licores nesta mesinha rolante... têm sempre
convidados... umas vezes dois... outras vezes quatro... A senhora
tem brilhantes deste tamanho!... e um colar de pérolas que é uma
maravilha. Só em jóias deve ter uns bons milhões...
- Já me disseste isso! - interrompi, um pouco aborrecida.
Mas ele, entusiasmado com o assunto, nem deu pela minha
contrariedade.
- A senhora nunca vai à cave... - continuou. - Dá as suas
ordens pelo telefone... Aliás na cozinha só se trabalha a
electricidade... A nossa cozinha é mais limpa e bonita do que os
quartos de dormir de muita gente... Até mesmo os dois cães da
senhora andam mais asseados e comem melhor do que muitas
pessoas...
Falava dos patrões com admiração e dos pobres com
desprezo. Eu, um pouco pela sua conversa, um pouco pela
comparação que continuamente estabelecia entre esta casa e a
minha, sentia-me horrivelmente miserável.
Do primeiro andar, subindo a escada, chegámos ao segundo.
Na escada Gino passou-me o braço em volta da cintura e
apertou-me com força. Eu então não sei porquê tive a impressão
de ser a dona da casa e de subir a escada pelo braço do meu
marido, depois de algum jantar ou de alguma recepção, para me ir
deitar, na mesma cama que ele, no segundo andar.
Gino parecia adivinhar os meus pensamento - tinha
constantemente intuições deste género - e disse-me:
- Agora vamos deitar-nos... E amanhã trazem-nos o café à
cama.
Pus-me a rir, mas com a impressão de que isso era verdade.
Nesse dia, para sair com Gino, eu tinha vestido o meu fato
mais bonito (e também a minha blusa e o meu melhor par de
sapatos). Lembro-me de que era um vestido de duas peças: casaco
preto e uma saia aos quadrados pretos e brancos. O tecido não
era feio, mas a costureira do bairro que o cortara tinha pouco
mais prática do que minha mãe. Tinha-me feito a saia muito
curta, mas mais atrás do que à frente, de maneira que me cobria
os joelhos à frente, mas deixava as curvas à vista pelo lado de
trás. O casaco tinha ficado muito apertado, com enormes virados,
e as mangas tão estreitas que me repuxavam debaixo dos braços.
Abafava dentro deste casaco, que fazia sobressair o peito de tal
maneira que parecia ter perdido um botão. A blusa era
cor-de-rosa, muito simples, de tecido ordinário, sem bordados, e
deixava ver à transparência a minha melhor e mais bonita
combinação: de algodão branco.
Calçava sapatos pretos muito bem engraxados: a forma era
antiga, mas o cabedal era bom. Não trazia chapéu e o cabelo
caía-me sobre os ombros; tenho o cabelo castanho e ondulado.
Era a primeira vez que vestia esta toilette e sentia-me
orgulhosa. Mas quando entrei no quarto da patroa de Gino e vi a
grande cama, baixa e fofa, com a cobertura de seda acolchoada, os
lençóis de linho bordados e todos aqueles cortinados muito leves
que caíam da alto sobre a cabeceira e depois descobri a minha
imagem triplamente reflectida no espelho de três faces do
toucador ao fundo do quarto dei-me conta de que estava vestida
como uma infeliz, que o orgulho que os meus trapos me
inspiravam era ridículo e digno de piedade - e também que me
seria impossível considerar feliz enquanto não pudesse andar
elegantemente vestida e viver numa casa como aquela.
Estava quase a chorar e sentei-me sem dizer palavra na
beira da cama, tomada de uma vertigem.
- Que tens? - perguntou Gino sentando-se ao meu lado e
pegando-me na mão.
- Nada - respondi. - Estava a olhar uma pobretana que eu
conheço.
- Quem? - perguntou-me, admirado.
- Aquela - respondi mostrando-lhe o espelho onde me via
sentada ao lado de Gino.
Realmente nós tínhamos o ar - mais eu do que ele - de um
par de selvagens hirsutos que o acaso tivesse feito cair numa casa
civilizada. Desta vez ele compreendeu o sentimento de fraqueza,
inveja e ciúme que me apertava o coração, e beijou-me dizendo:
- Mas tu não precisas de olhar para o espelho!
Ele temia pelos seus planos. Deveria ter compreendido que
nada era mais propício para os executar do que o meu estado de
humilhação. Beijámo-nos, e o seu beijo fez-me voltar a coragem
porque senti que afinal eu era amada e amava.
Contudo, um pouco depois, quando me mostrou a casa de
banho, tão grande como as outras salas, com uma banheira
metida na parede e torneiras niqueladas, e sobretudo quando
abriu um dos armários, deixando ver no interior, apertados uns
contra os outros, os vestidos da patroa dele, a inveja voltou com
o sentimento de miséria e tornei a desesperar. Um grande desejo
de não pensar naquelas coisas tomou-me de repente e,
conscientemente, pela primeira vez, desejei tornar-me amante de
Gino: um pouco para esquecer a minha condição, um pouco para
me dar a ilusão, como reacção à impressão de miséria que me
escravizava, de ser também livre e capaz de agir. Não me podia
vestir elegantemente, nem possuir uma casa como aquela, mas
podia amar como os ricos ou talvez melhor que eles.
- Porque me mostras todos esses vestidos? - perguntei a
Gino.
- Que me interessa isso?
- Julguei que te interessasse - respondeu, desconcertado.
- Absolutamente nada me interessa. São muito bonitos, mas
não vim cá para ver vestidos.
Com estas palavras os seus olhos iluminaram-se.
Acrescentei com negligência:
- Mostra-me antes o teu quarto.
- É na cave - disse, vivamente. - Queres que vamos lá?
Olheio-o um momento em silêncio, e depois perguntei-lhe
com uma segurança, nova em mim, que me desagradou:
- Porque finges de imbecil comigo?
- Mas eu... - começou ele, surpreendido e atrapalhado...
- Tu sabes melhor do que eu que não viemos aqui para
visitar a casa, nem para admirar os vestidos da tua patroa, mas
para irmos para o teu quarto e sermos um do outro... Mais vale ir
já e não falarmos mais nisso.
Foi assim que só por ter dado uma olhadela a esta casa
eu passei a ser diferente da rapariga ingénua e tímida que aí tinha
entrado. Estava admirada comigo mesmo, não me reconhecia.
Saímos do quarto e descemos a escada. Gino tinha passado
o braço em torno da minha cintura e beijávamo-nos em cada
degrau. Creio bem que nunca uma escada foi descida tão devagar.
No rés-do-chão, Gino abriu uma porta disfarçada na parede, e
estreitando-me e beijando-me sempre conduziu-me à cave. Já era
noite: estava tudo às escuras. Sem acender a luz, ao longo do
corredor, muito abraçados e de bocas unidas, chegámos ao quarto
de Gino. Ele abriu, entrámos, e ouvi-o fechar a porta atrás de nós.
Durante muito tempo ficámos de pé, beijando-nos no escuro.
Eram beijos que nunca mais acabavam: se eu queria interromper
ele recomeçava, e quando ele parava era eu quem continuava.
Depois Gino empurrou-me para a cama e eu deixei-me cair de
costas. Gino não cessava de me murmurar ao ouvido, um pouco
ofegante, palavras doces e frases convincentes, com a intenção
clara de me aturdir, para não me aperceber de que ao mesmo
tempo as suas mãos me iam despindo. Mas não era preciso;
primeiro porque eu decidira entregar-me, e depois porque eu
odiava estes trapos que tanto me tinham agradado antes, e que
desprezava agora profundamente.
“Uma vez nua - pensava eu - serei tão bela, senão mais, do
que a patroa de Gino e que todas as mulheres ricas do mundo.”
Aliás, havia meses que o meu corpo esperava este momento;
sentia-o, mau grado meu, fremir de impaciéncia e de desejo
reprimido, como uma fera esfomeada e presa, à qual, depois de
um longo jejum, se cortam as prisões e se oferece com que matar
a fome. Foi por isso que o acto de amor me pareceu natural, e a
sensação de fazer um gesto desusado de modo nenhum se
misturava ao prazer físico. Pelo contrário, como acontece por vezes
diante de uma certa paisagem que se tem a impressão de já ter
visto, quando na realidade é a primeira vez que se oferece ao
nosso olhar, eu tinha a sensação de fazer coisas que já tinha feito,
não sabia onde nem quando, talvez numa outra vida. Isto não me
impedia de amar Gino com paixão, para não dizer com fúria, de
o beijar, de o morder, de o apertar nos meus braços até o sufocar.
Ele parecia possuído da mesma raiva. Assim, durante um tempo
que me pareceu muito longo, neste quartinho escuro, enterrado
debaixo de dois andares de uma casa vazia e silenciosa, nós
beijámo-nos e possuímo-nos como dois inimigos lutando pela
própria vida e procurando ferir-se o mais possível.
Mas quando os nossos desejos se saciaram, enquanto
estávamos estendidos lado a lado, enlanguescidos e extenuados,
tive medo de que Gino, depois de me ter possuído, já não quisesse
casar. Comecei então a falar da casa para onde iríamos morar
quando nos casássemos. A casa da patroa de Gino tinha-me
impressionado profundamente.
Agora parecia-me que só se poderia ser feliz no meio de
coisas bonitas e asseadas. Reconheci que nós nunca estaríamos
em estado de possuir não somente uma casa como esta, mas até
uma sala como as desta casa. No entanto, para vencer
esta dificuldade, expliquei-lhe que uma casa mesmo pobre podia
parecer rica se brilhasse como um espelho. Porque além do luxo, e
talvez ainda mais do que o luxo, o deslumbrante asseio desta
moradia provocava no meu espírito um formigueiro de reflexões.
Procurei convencer Gino de que o asseio podia fazer parecer
bonitos mesmo os objectos feios. Na realidade, desesperada pela
idéia que eu tinha agora da minha pobreza e consciente de que o
meu casamento com Gino seria o único meio de poder livrar-me
dela, queria sobretudo convencer-me a mim própria.
- Mesmo dois quartos, se estiverem verdadeiramente limpos,
com o chão passado todos os dias, os móveis limpos do pó, a louça
lavada e tudo arrumado: os pratos, os esfregões e os fatos e os
sapatos no seu lugar, também podem ser bem bonitos! O que é
preciso é limpar e lavar tudo muito bem todos os dias... Não me
deves julgar pela casa onde moramos, eu e minha mãe; minha
mãe é desordenada e depois não tem tempo de a arrumar, coitada,
mas a nossa cozinha será um espelho, prometo-te!
- Isso! Isso! - disse Gino. - O asseio acima de tudo! Sabes o
que faz a senhora quando descobre um grão de poeira num canto?
Chama a criada de quarto, obriga-a a ajoelhar-se e a tirar a poeira
com as mãos como se faz aos cães quando fazem porcarias... E
tem razão!
- Pois eu - declarei - tenho a certeza de que a minha casa
há-de estar ainda mais limpa e mais arrumada que esta... verás!
- Mas tu continuarás a ser modelo - disse-me num tom
travesso. - Não poderás tomar conta da casa!
- Modelo? - respondi vivamente. - Já não serei mais
modelo... Ficarei todo o dia em casa... Terei sempre a casa
arrumada e muito limpa e cozinharei para ti... a minha mãe diz
que isso é ser tua criada, mas, quando se ama alguém, mesmo ser
criada dá prazer!
Durante muito tempo fizemos projectos de futuro. E eu
pouco a pouco sentia o medo desvanecer-se para dar lugar à
minha habitual confiança amorosa e ingénua. Como poderia
duvidar?
Gino não só aprovava os meus projectos, mas discutia-os
pormenorizadamente, amparando-os e aperfeiçoando-os. Como já
devo ter dito, ele agora era relativamente sincero: o mentiroso
acabava por acreditar nas suas próprias mentiras.
Depois de tagarelarmos pelo menos duas horas, dormitei
docemente, e creio bem que Gino também adormeceu. Fomos
acordados por um raio de luar que entrava pelo respiradouro
térreo iluminando os nossos corpos estendidos sobre a cama.
Gino disse que devia ser muito tarde; com efeito o
despertador pousado sobre a mesa de cabeceira marcava
meia-noite e alguns minutos.
- Meu Deus! Como me irá receber minha mãe! - disse eu
saltando da cama e começando a vestir-me à luz da Lua.
- Porquê?
- É a primeira vez que entro em casa tão tarde. A noite
nunca saio sozinha.
- Diz-lhe que fomos dar uma volta de automóvel, que tivemos
uma avaria e que fomos forçados a parar no campo.
- Ela não acredita.
Saímos apressadamente da moradia, e Gino levou-me a
casa. Eu sabia que minha mãe não acreditaria na história da
panne, mas nunca supus que a sua intuição fosse ao ponto de
adivinhar com exactidão o que se passara entre mim e Gino.
Tinha as chaves da porta da rua e de casa. Entrei; subi os dois
andares no escuro, galgando a dois e dois os degraus, e abri a
porta.
Esperava que minha mãe estivesse deitada, e ver a casa toda
às escuras confirmou a minha esperança. Sem acender a luz, nos
bicos dos pés, dirigia-me para o quarto quando me senti agarrada
pelos cabelos com uma violência terrível. Sempre às escuras,
minha mãe, porque era ela, atirou-me para cima do divã, e
começou, sempre em silêncio, a esbofetear-me.
Procurava defender-me com os braços, mas parecia que ela
me via, porque arranjava maneira de me passar por baixo dos
braços e de apanhar-me em cheio a cara. Acabou por se cansar e
sentou-se ao meu lado, no divã, arfando com força. Depois
levantou-se, acendeu a luz do centro e veio pôr-se na minha frente
com as mãos nas ancas, olhando-me fixamente. O seu olhar
enchia-me de vergonha e embaraçava-me; procurei ajeitar a saia e
recompor a desordem em que esta espécie de luta me tinha
deixado. Ela disse-me num tom normal:
- Está a parecer-me que tu e o Gino passaram a noite juntos!
Desejei dizer-lhe que sim, que era verdade; mas temi que
me tornasse a bater, e o que mais me assustava era que agora,
com a luz acesa, acertar-me-ia em cheio. Não queria aparecer com
um olho negro, principalmente a Gino.
- Não - respondi. - Não dormimos juntos; tivemos uma avaria
na estrada que nos atrasou.
- Mas eu digo-te que estiveste na cama com ele!
- Não... não é verdade!
- Sim... é verdade! Olha para o espelho ; estás verde.
- É possível que esteja fatigada... mas nada houve entre nós!
- Houve, sim!
- Não, não, não houve!
O que me espantava e ao mesmo tempo me inquietava
vagamente era a calma que ela mostrava neste momento: nada
mais que uma forte curiosidade, o que me fazia pensar que ela
não estava totalmente desinteressada do caso. Por outras
palavras, o que ela queria saber era se eu me tinha entregue a
Gino, não para me castigar ou me repreender, mas porque o
desejava conhecer com precisão por uma razão que só ela sabia.
Somente era tarde de mais, e embora eu soubesse que já não
me bateria mais, continuei sempre a negar. Então, bruscamente,
fez menção de me agarrar o braço, e eu levantei a mão para me
proteger, mas ela disse :
- Não te toco, não tenhas medo! Vem comigo! Não percebia
bem aonde ela me queria levar; mas obedeci amedrontada. Sem
me largar, obrigou-me a sair do apartamento, a descer a escada
e a ir com ela para a rua. Estavam desertas as ruas a esta hora.
Logo em seguida percebi que minha mãe corria para a luz
vermelha da farmácia de serviço ou do posto de socorros. A
entrada da porta experimentei pela última vez resistir, fincando os
pés, mas ela empurrou-me e eu entrei, ou, por outra, fui
projectada para o interior; por um pouco não. Caí de joelhos!
Na farmácia estava só o farmacéutico e um médico ainda
novo.
Minha mãe disse ao médico:
- É minha filha! Quero que a examine!
O médico mandou-me entrar para uma divisão das traseiras
onde estava a marquesa dos serviços de urgência e perguntou a
minha mãe:
- Diga-me o que ela tem... Devo examiná-la porquê?
- Acaba de ser desonrada pelo noivo e diz que não, esta
porca! Quero que a examine - gritava a minha mãe - e que me diga
a verdade!
O médico estava divertido e mordiscava o bigode, sorrindo:
- Mas não é um diagnóstico que me pede, é uma informação.
- Chame-lhe como quiser - respondeu minha mãe, berrando
sempre -, mas quero que a examine! É ou não médico? Tem ou
não a obrigação de examinar as pessoas quando elas lhe pedem?
- Calma! Calma! Como te chamas? - perguntou o médico.
- Adriana - respondi.
Estava envergonhada, mas não muito. As cenas da minha
mãe e a minha docilidade eram bem conhecidas em todo o bairro.
- Mas mesmo que isso tenha acontecido - insistia o médico,
que parecia perceber o meu embaraço e tentava evitar o exame-,
que mal pode haver? Eles casam-se e pronto... tudo acabará bem.
- Meta-se na sua vida!
- Calma! Calma! - repetia, divertido, o médico. Depois,
dirigindo-se a mim, disse-me:
- Vamos! Visto que tua mãe acha que isto é indispensável...
despe-te, não demora muito tempo, depois deixo-te em paz.
Enchi-me de coragem e disse:
- Muito bem! É verdade! Fui desonrada! Mas vamos para
casa, mãe!
- Não, minha filha, não! - disse ela com ar autoritário. - Tens
de te deixar examinar!
Resignada, despi a saia e deitei-me na marquesa. O médico
examinou-me e disse a minha mãe:
- Tinha razão... Já não está virgem... E agora, está contente?
- Quanto lhe devo? - perguntou minha mãe, puxando do
porta-moedas.
Entretanto, eu tinha descido da marquesa e vestira-me. O
médico recusou o dinheiro e perguntou-me:
- Gostas do teu noivo?
- Com certeza - respondi.
- Quando se casam?
- Ele nunca se casará com ela! - gritou minha mãe. Mas eu
cortei tranquilamente:
- Logo que tenhamos os papéis arranjados.
Devia ser possível ler-se nos meus olhos uma grande
confiança, tão ingénua e tão pura, que o médico, com um riso
amigável e dando-me uma palmadinha na cara, empurrou-nos
para fora.
Eu esperava que, quando tornássemos a entrar em casa,
minha mãe me cobrisse de insultos e mesmo me tornasse a bater.
Bem longe disso, vi, pelo contrário, àquela hora avançada, acender
o gás e começar a cozinhar para mim, sem dizer palavra. Pôs a
frigideira ao lume, voltou à sala, desembaraçou um canto da mesa
dos trapos que lá estavam e pôs a toalha. Eu tinha-me sentado no
divã, para onde ela me arrastara pelos cabelos, e olhava-a em
silêncio. Estava aparvalhada. Não só não me repreendia como a
sua cara deixava transparecer uma estranha satisfação, que ela
tentava esconder. Quando acabou de pôr a toalha, foi à cozinha,
depois tornou a voltar trazendo um prato na mão e disse-me:
- Agora vais comer!
Para dizer a verdade, eu tinha bastante fome. Levantei-me e
fui sentar-me, um pouco atrapalhada, na cadeira que minha mãe
me indicou a seguir. No prato estavam dois ovos e um bocado de
carne assada.
- Mas isto é muito! - disse-lhe.
- Come... vai fazer-te bem - respondeu-me. - Precisas de
comer!
Era uma coisa extraordinária este seu bom humor, um
pouco malicioso talvez, mas nada hostil. Quase com bom modo,
acrescentou, passado um momento:
- O Gino nem sequer pensou em dar-te de comer?
- Nós adormecemos - respondi. - E depois já era muito tarde.
Ela nada disse, e ficou de pé a ver-me comer. Era sempre
assim que ela fazia: servia-me e ficava a ver-me comer, depois,
por sua vez, ia comer para a cozinha.
Durante muito tempo não comeu comigo à mesa. Comia
sempre menos do que eu: ou eram as minhas sobras, ou qualquer
coisa diferente e pior. Eu era para ela uma espécie de objecto
precioso e delicado que era preciso tratar com todo o cuidado, o
único objecto precioso que possuía.
Já há muito tempo que esta servidão admirativa e
lisonjeadora não me perturbava. Mas desta vez a sua serenidade,
o seu ar contente, inspiravam-me uma penosa inquietação. Ao fim
de uns instantes comecei a falar:
- Tu zangaste-te - disse-lhe - por eu ter feito isto, mas ele
prometeu casar comigo... não tardará a fazê-lo.
- Não me zanguei... naquele momento enfureci-me porque
esperei toda a noite e estava em cuidado... Mas agora come, e não
penses mais nisso.
O seu tom de evasiva e falsa calma, que fazia lembrar a
maneira como se fala às crianças quando não se quer responder
às suas perguntas, inquietou-me ainda mais:
- Porquê? Não acreditas que ele case comigo?
- Com certeza que acredito! Mas agora come!
- Não, tu não acreditas!
- Acredito, não tenhas medo! Vá, come!
- Não como mais se não me dizes o que se passa contigo!
- declarei, exasperada. - Porque estás com um ar tão contente?
- Não, não estou com um ar contente.
Agarrou no prato vazio e levou-o para a cozinha. Esperei
que ela voltasse, e disse outra vez:
- Então, porque estás contente?
Olhou-me longamente em silêncio e depois respondeu com
uma gravidade ameaçadora:
- É verdade, sim. Estou contente.
- E porquê?
- Porque agora tenho a certeza de que Gino já não casará
contigo e te vai deixar!
- Porque não há-de casar? Era preciso que tivesse uma
razão!
- Não casará e abandonar-te-á! Vai divertir-se à tua custa e
não te dará nem uma cabeça de alfinete, um esfomeado como ele
é. E depois larga-te!
- E é por isso que estás tão contente?
- Com certeza. Agora estou certa de que não casará contigo!
- Mas em que pode isso satisfazer-te? - gritei indignada e ao
mesmo tempo aborrecida.
- Se quisesse casar contigo não te teria desonrado - disse ela
bruscamente. - Eu estive noiva dois anos do teu pai, e até ao dia
do casamento ele apenas me deu um ou outro beijo. Ele vai
divertir-se e depois abandonar-te... Podes ter a certeza... E estou
contente por ele te abandonar, porque se casasse contigo estavas
perdida!
Não podia deixar de reconhecer que certas coisas que ela
me dizia eram verdadeiras. Os olhos encheram-se-me de lágrimas.
- Eu bem sei que não queres que eu constitua família. Tu
queres que eu venha a ter a mesma sorte que a Angela.
Angela era uma rapariga do bairro que, depois de ter estado
noiva duas ou três vezes, acabou por se entregar abertamente à
prostituição.
- Que tenhas uma boa situação é o que eu quero -
respondeu com um ar obstinado. E, levantando os pratos,
levou-os para a cozinha para os lavar.
Ficando só, reflecti muito tempo sobre a conversa de minha
mãe. Estabeleci uma comparação entre as suas palavras e as
promessas e a conduta de Gino e pareceu-me impossível que fosse
ela a ter razão. Mas a sua segurança, a sua calma, o seu tom de
previsão desconcertaram-me. Entretanto, minha mãe lavava a
louça na cozinha. Ouvi-a guardar os pratos no aparador e ir para
o quarto. Depois de uns instantes, vencida e humilhada,
fui deitar-me também.
No dia seguinte perguntava a mim mesma se devia ou não
contar a Gino as suspeitas da minha mãe. Depois de muita
hesitação resolvi nada dizer.
Na realidade, eu tinha tanto medo que Gino me
abandonasse, como minha mãe insinuara, que temia que,
comunicando-lhe a opinião dela, lhe pudesse sugerir a ideia.
Percebi pela primeira vez que a mulher que se entrega a um
homem fica de tal maneira na sua dependéncia que já não tem
meio de seguir a vontade própria. Mas não estava menos
convencida de que Gino cumpriria a sua promessa. Logo que o
tornei a ver, a sua atitude confirmou a minha convicção.
Eu esperava, decerto, que ele me iria cumular de atenções e
carícias, mas temia que guardasse siléncio sobre o casamento, ou
pelo menos não falasse nisso senão de uma maneira esporádica.
Pelo contrário, assim que parou o carro na avenida do costume,
Gino disse-me que já fixara a data do casamento: seria dali a
cinco meses, o mais tardar!
A minha alegria foi tal que me atribui as ideias de minha
mãe e não pude deixar de dizer:
- Sabes o que eu pensava, pelo contrário? Que depois do que
se passou ontem irias abandonar-me.
- Como? - disse, tomando um ar vexado. - Tu tomas-me por
um vigarista?
- Não, mas sei que há muitos homens que procedem assim.
- Não sabes que podia ficar magoado com a tua suposição?
Que ideia fazes de mim? É assim que dizes amar-me?
- Eu amo-te - respondi ingenuamente. - Mas receava que tu
não gostasses de mim.
- Até agora já te dei alguma razão que te fizesse supor que
não gosto de ti?
- Não, mas nunca se sabe...
- Olha! - disse-me bruscamente. - Tu indispuseste-me de tal
maneira que vou já levar-te ao atelier.
E fez menção de pôr o carro em andamento. Assustada,
deitei-lhe as mãos ao pescoço e supliquei:
- Não, não! Que tens? Falei por falar... faz de conta que nada
disse.
- Há coisas que não se dizem quando não se pensam... e
quando se pensam é porque não se ama!
- Mas eu amo-te!
- Eu não! - disse-me em tom sarcástico. - Como tu disseste,
tive sempre a ideia de me divertir à tua custa e depois deixar-te. É
estranho que só agora tenhas dado por isso!
- Mas, Gino, porque me falas dessa maneira? - gritava eu,
desfazendo-me em lágrimas.
- Nada - respondeu, pondo o carro em andamento - Vou
levar-te ao atelier.
O carro pôs-se em marcha e Gino ao volante tinha um ar
carrancudo e duro. Eu quando vi, pelo vidro, as árvores e os
marcos quilométricos deslizarem, e as primeiras casas da cidade,
sucedendo-se ao campo, aparecerem no horizonte, desatei a
chorar.
Pensava que minha mãe iria rejubilar quando soubesse da
nossa zanga e que Gino, como ela tinha previsto, me deixaria.
Num gesto desesperado abri a portinhola do carro, inclinei-me
para a frente e gritei:
- Ou páras ou atiro-me para a estrada.
Olhou-me, o carro abrandou, voltou por um caminho lateral
e parou atrás de uma elevação coroada por uma ruína. Gino
desligou o motor, travou e, voltando-se para mim, disse com
impaciência:
- Então, coragem! Vá! Fala!
Eu julgava realmente que ele me queria abandonar e pus-me
a falar com um fogo e uma paixão que me pareceram ao mesmo
tempo ridículos e comoventes quando os recordo hoje.
Explicava-lhe até que ponto o amava: cheguei a dizer-lhe que se
ele não casasse comigo seria o mesmo, porque me contentaria com
ser sua amante. Escutava-me com um rosto sombrio, abanando a
cabeça e repetindo de vez em quando:
- Não, não, por hoje acabou. Amanhã talvez me passe!
Quando lhe disse que para mim era suficiente ser sua amante,
respondeu com fervor:
- Não, não! Casados ou nada!
Discutimos durante muito tempo, e várias vezes a exibição
da sua lógica, tão perversa como indiscutível, levou-me ao
desespero e às lágrimas. Depois, gradualmente, a sua atitude
inflexível pareceu modificar-se; por fim, depois de o ter beijado
longamente e ameigado sem qualquer resultado, tive a impressão
de ter conseguido uma grande vitória quando o convenci a descer
comigo e vir possuir-me no assento traseiro do carro num abraço
inconfortável, que o meu angustioso desejo de lhe agradar achou
demasiado curto e cheio de uma amarga ansiedade. Eu devia ter
compreendido ser esse, no meu próprio interesse, o último dos
procedimentos a adoptar. Era entregar-me completamente nas
suas mãos, mostrar-lhe a minha disposição de me entregar a ele,
não apenas por puro ímpeto amoroso, mas também para o
prender e convencer a concordar comigo quando as palavras não
chegassem para isso: precisamente a conduta das mulheres que
amam sem a certeza de serem amadas: Mas eu estava
completamente cega pela atitude perfeita que a sua falsidade lhe
permitia tomar. Ele dizia e fazia sempre as coisas que devia dizer e
fazer. E eu, na minha inexperiéncia, não me apercebia de que esta
perfeição pertencia mais à imagem convencional do amante que
eu própria tinha criado do que ao homem que estava na minha
frente. Mas a data do casamento tinha sido fixada e comecei logo a
ocupar-me dos preparativos. Combinei com Gino que, pelo menos
nos primeiros tempos, faríamos vida em comum com minha mãe.
Além da grande sala, da cozinha e do quarto, havia uma
outra divisão que minha mãe, por falta de dinheiro, nunca tinha
chegado a mobilar. Guardávamos aí os objectos partidos e
inutilizados; e pode imaginar-se o que seriam os objectos partidos
e inutilizados de uma casa como a nossa, onde tudo parecia
inutilizado!
Depois de muitas discussões assentámos num programa
mínimo: mobilaríamos esse quarto e eu faria um pequeno enxoval.
Nós éramos muito pobres, mas eu sabia que minha mãe tinha
algumas economias, e que esse dinheiro tinha sido posto de parte
para mim a fim de poder fazer face - dizia ela - a qualquer
eventualidade.
Quais poderiam ser essas eventualidades? Não era muito
claro; seguramente que não a possibilidade de eu casar com um
homem pobre e de futuro incerto. Fui ter com minha mãe e
disse-lhe.
- Esse dinheiro que puseste de parte foi para mim, não foi?
- Foi.
- Pois bem! Se me queres fazer feliz, dá-mo agora para
arranjar o quarto, para onde iremos, eu e o Gino. Se é verdade que
o guardaste para mim, chegou o momento de mo dares!
Esperava reprimendas, discussões, e por fim uma recusa.
Pelo contrário, minha mãe acolheu o meu pedido com a maior
calma e mostrou de novo aquela serenidade sardônica que tanto
me tinha aborrecido na noite em que visitara a moradia.
- E ele não vai contribuir com qualquer coisa? -
perguntou-me, voltando-se.
- Há-de dar, com certeza - respondi, mentindo. - Ele já disse.
Mas também eu tenho de contribuir com a minha parte.
Ela estava a coser ao pé da janela. Para falar interrompera
o seu trabalho.
- Vai ao quarto, abre a primeira gaveta do armário...
encontrarás uma caixa de cartão... está lá a caderneta da Caixa
Económica e o ouro. Leva-a e o ouro também... Ofereço-te.
O ouro era pouca coisa: um anel, um par de brincos e
um pequeno fio. Mas desde a minha infância, magro tesouro
escondido debaixo dos trapos e só entrevisto em circunstáncias
extraordinárias, tinha incendiado a minha imaginação.
Impetuosamente beijei minha mãe: afastou-me sem brutalidade,
mas com frieza, declarando:
- Cuidado com a agulha... podes picar-te!
Mas eu não estava satisfeita. Não me bastava ter obtido
aquilo que queria; pretendia mais: que minha mãe estivesse como
eu.
- Mãe! - gritei. - Se fizeste isto só para me dar prazer, então
prefiro não aceitar!
- Decerto que não foi para lhe dar prazer a ele! - respondeu,
recomeçando a coser.
- Realmente não acreditas no meu casamento com Gino?
- perguntei com uma voz acariciadora.
- Nunca acreditei. E hoje menos que nunca.
- Mas então porque me deste o dinheiro para arranjar o
quarto?
- Não é dinheiro mal gasto. Os móveis e as roupas sempre
ficam... Mobília ou dinheiro é a mesma coisa.
- Então não me acompanharás aos armazéns para me
ajudares a escolher?
- Por amor de Deus! - gritou. - Nem quero mesmo ouvir falar
nisso! Arranjem-se, vão vocês, escolham... eu não quero saber de
coisa alguma!
Acerca do meu casamento ela era intratável; eu acreditava
que a sua atitude não era ditada só pela conduta, pelo carácter
e pela situação de Gino, mas principalmente pela maneira
como ela encarava a vida. Não havia espírito de contradição nesta
sua atitude, mas somente completa inversão das ideias correntes.
As outras mulheres desejam com obstinação que as filhas se
casem; minha mãe há muito tempo que com a mesma tenacidade
esperava que eu não me casasse.
Existia uma espécie de aposta entre mim e minha mãe. Ela
queria que eu não me casasse e me desse conta do bom
fundamento das suas ideias. Eu desejava que este casamento se
efectuasse e que minha mãe se convencesse de que a minha
maneira de pensar é que estava certa. Agarrava-me à esperança
de me casar com a sensação de jogar desesperadamente toda a
minha vida numa só cartada. Mas sentia ao mesmo tempo, não
sem amargura, que minha mãe vigiava os meus esforços e tentava
fazer-me soçobrar. Devo mencionar aqui mais uma vez que a
maldita perfeição de Gino não se desmentia nem mesmo por
ocasião dos preparativos para o casamento. Tinha dito à minha
mãe que Gino ajudaria às despesas. Menti, porque até então Gino
nem sequer tinha aludido a essa possibilidade. Fiquei, pois, ao
mesmo tempo surpreendida e contente no dia em que Gino, sem
que eu nada lhe tivesse pedido, me ofereceu uma pequena soma
de dinheiro, para me ajudar. Desculpou-se da mesquinhez da
quantia, explicando-me que não me podia dar mais, porque tinha
urgência em mandar dinheiro aos seus. Quando hoje penso nesta
dádiva não posso explicá-la senão pela extraordinária fidelidade ao
papel que decidira representar: fidelidade proveniente talvez do
remorso de me enganar e do pesar de não poder casar comigo,
como agora realmente desejava.
Triunfante, tratei de pôr minha mãe ao corrente da oferta de
Gino. Limitou-se a observar que era uma soma bem miserável;
apenas o necessário para me deitar poeira nos olhos sem se
arruinar!
Este foi na minha vida um período muito feliz. Encontrava-
me todas as noites com Gino, e amávamo-nos onde era possível:
sobre o assento de trás do carro, de pé, no canto escuro de uma
rua solitária, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no
quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa,
amámo-nos no patamar, em frente da porta do apartamento,
estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuímo-nos
no cinema, encolhidos nas últimas cadeiras, mesmo debaixo da
cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele
no meio da multidão, dos eléctricos e dos lugares públicos, porque
as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo
o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a
necessidade de lhe apertar a mão, de lhe passar os dedos pelos
cabelos e de lhe fazer qualquer outra carícia, no sitio em que
estivéssemos, mesmo na presença de terceiros, com a ilusão de
que ninguém se apercebia. como sempre que se cede a uma
paixão irresistível. Gostava infinitamente de amar: talvez eu
gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentia-me
levada a praticá-lo não somente pelo sentimento que
experimentava por ele, mas também pelo prazer que sentia. Não
pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro
homem. Mas apercebia-me de uma maneira obscura de que o
nosso amor não podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e
a paixão que punha nas minhas carícias. Isso tinha um carácter
autónomo; era uma espécie de vocação que, de toda a maneira,
mesmo sem as ocasiões que Gino me proporcionava, acabaria
por manifestar-se.
Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para
mim que qualquer outra. Ajudava minha mãe o mais que podia, a
fim de ganhar dinheiro, e deitava-me sempre muito tarde. Nos
dias em que não posava no atelier corria os armazéns com Gino,
para escolher os móveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco
dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais
atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que
sabia bem que não podia comprar, examinava-os longamente,
discutindo o preço com o vendedor; depois, mostrando pouco
entusiasmo e prometendo voltar, saía sem nada comprar. Não
notava que estas incursões cobiçosas pelas lojas. Este exame
angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a
reconhecer, mau grado meu, como minha mãe tinha razão no que
dizia: sem dinheiro não se tem direito à mais pequena felicidade.
Depois da minha visita à moradia, foi a segunda vez que eu deitei
os olhos sobre o paraíso da riqueza: vendo-me excluída sem que
tivesse culpa não me podia impedir de experimentar alguma
amargura e me sentir perturbada. Mas como já o tinha feito na
moradia, esforcei-me no amor por esquecer a injustiça, este amor
que era o meu único luxo e permitia que me sentisse igual a todas
as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois
de muitas discussões e muitas procuras, decidi-me por fim a fazer
as minhas compras: aquisições verdadeiramente modestas.
Como o dinheiro não chegasse, comprei pagando em
prestações mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer
dizer, uma cama de casal, uma cómoda com espelho fazendo de
toucador, duas mesas-de-cabeceira, duas cadeiras e um armário.
Eram coisas extremamente vulgares, feitas em série e de
fabricação grosseira, mas a paixão que me inspiraram
imediatamente estes pobres móveis era incrível. Tinha mandado
caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e
raspar o chão tão bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio
no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os móveis foi
sem dúvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava
uma sensação de incredulidade à ideia de que possuía um quarto
como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e
esta incredulidade manifestava-se num contentamento que me
parecia inesgotável. Por vezes, quando tinha a certeza de que
minha mãe não me observava, ia para o quarto, sentava-me nos
colchões da cama e ficava horas inteiras a olhar à minha volta.
Não me mexia mais que uma estátua, e contemplava os móveis
como se não acreditasse na sua existência, como se receasse que
se evaporassem de um momento para o outro e só ficassem as
paredes; levantava-me às vezes para tirar o pó da madeira e
puxava o lustro ternamente.
Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus
sentimentos beijaria a mobília. A janela, sem cortinas, dava sobre
um vasto pátio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e
baixas, como a minha. Tinha-se a impressão de se olhar para um
pátio de lazareto ou de prisão; mas naquela altura eu vivia em
êxtase e já não via o pátio: sentia-me tão feliz como se o quarto
desse para um lindo jardim cheio de árvores.
Imaginava a nossa vida lá dentro, Gino e eu: como
dormiríamos e nos amaríamos. E saboreava de antemão a
aquisição de outros objectos que compraria assim que pudesse;
aqui um vaso para flores, ali um candeeiro, além um cinzeiro ou
qualquer outro bibelot. O meu único desgosto era não poder ter
uma banheira, se não parecida com a que tinha visto, pelo menos
nova e limpa. Más tinha decidido que traria sempre o meu quarto
limpo e arrumado. A minha visita à moradia convencera-me de
que o luxo começava por duas coisas: a ordem e o asseio.
4
Nesse tempo, como continuasse a posar nos ateliers,
criei amizade com um modelo chamado Gisela. Era uma rapariga
bem feita, com a pele muito branca, cabelos pretos encrespados,
os olhos pequeninos e azuis-escuros e uma boca vermelha. O seu
feitio era muito diferente do meu: violento, apaixonado e vibrante,
mas ao mesmo tempo prático e interesseiro; foi exactamente esta
diversidade que nos uniu. Não lhe conhecia outro emprego que o
de modelo; mas ela andava muito mais bem vestida do que eu e
não escondia os presentes de um homem que apresentava como
noivo. Lembro-me de que naquele Inverno ela usou algumas vezes
um casaco preto com gola e punhos de astracã que eu muito lhe
invejava. O noivo chamava-se Ricardo, era um rapaz alto e gordo,
pacífico e bem nutrido, com uma cara lisa como um ovo, que me
pareceu então bela. Estava sempre reluzindo, cheio de cosméticos
e com fatos novos: o pai era dono de uma loja de gravatas e roupa
interior para homem.
Possuía a simplicidade Que se aproxima da imbecilidade:
era alegre, bonacheirão e mesmo bom, creio eu; Gisela e ele eram
amantes sem que entre eles, suponho, houvesse qualquer
promessa de casamento, como existia entre mim e Gino. Gisela,
aliás sem grandes esperanças, pensava em se casar. Quanto a
Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma união com Gisela
nunca lhe tinha aflorado o espírito; a esta, bem mais experiente
que eu, tinha-se-lhe metido em cabeça proteger-me e educar-me.
Ela tinha - para resumir as coisas - sobre a vida e sobre a
felicidade as mesmas ideias de minha mãe, salvo que na minha
mãe estas ideias encontravam uma expressão amarga e violenta
porque eram o fruto de decepções e privações, ao passo que em
Gisela esta maneira de ver vinha da sua prática e fazia-se
acompanhar de uma grande suficiência e de uma grande
profundidade. Minha mãe, num certo sentido, contentava-se em
enunciar essas ideias como se para ela a afirmação dos princípios
contasse de antemão para a sua aplicação. Gisela, pelo contrário,
tendo pensado sempre dessa maneira e não compreendendo que
alguém pensasse diferentemente, admirava-se de que eu não me
comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar
dos meus esforços em contrário, deixei transparecer a minha
desaprovação, que o seu espanto se transformou em cólera e
ciúme. Gisela compreendeu de súbito que eu não me limitava a
recusar as suas lições e a sua protecção, mas ia mais longe, e a
condenava do alto das minhas aspirações afectuosas e
desinteressadas. Foi então que nasceu no seu espírito, talvez
3inconscientemente, o desejo de anular essa condenação,
tornando-me igual a ela. Enquanto isso não acontecia, não
cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar
esta vida de sacrifícios só para me manter honesta; que era uma
dor de alma ver-me tão mal vestida; que, se eu quisesse, com a
minha beleza poderia mudar por completo de existência. Acabei
por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha
conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relações
com Gino, informando-a ao mesmo tempo de que estávamos
noivos e nos casaríamos brevemente. Ela perguntou-me
imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur
franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me
pedir que lho apresentasse.
Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje
estou à altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha
cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino,
já disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez
notasse os seus defeitos, mas em compensação julgava que ela
tinha um grande coração e uma grande afeição por mim, porque
atribuía a sua solicitude pela minha sorte não ao despeito por me
achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade
mal compreendida e fora de propósito. Tanto assim que os
apresentei, não sem apreensão; na minha ingenuidade, eu tinha
querido que eles se fizessem amigos. A apresentação foi numa
leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude
claramente hostil.
Pelo lado de Gino, acreditei de princípio que ele quisesse
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seduzir Gisela, porque, seguindo o seu hábito, encaminhou a
conversa para o assunto da moradia e alongou-se a exaltar a
riqueza dos patrões, como se esperasse dissimular assim a classe
medíocre da sua condição. Mas Gisela não desarmou: persistia na
sua atitude hostil. Não me lembro já a que propósito, ela
encontrou maneira de o fazer notar:
- Teve muita sorte em ter encontrado Adriana!
- Porquê? - perguntou Gino, muito admirado.
- Porque habitualmente os chauffeurs arranjam-se com as
criadas!
Vi Gino corar; mas ele não era homem para se deixar
apanhar desprevenido.
- É verdade! É verdade! - repetia lentamente, baixando o tom
como se considerasse pela primeira vez um facto evidente que até
então lhe tivesse escapado. - Com efeito o chauffeur que lá esteve
antes de mim casou justamente com uma cozinheira;
compreende-se, é muito natural! Eu devia ter feito o mesmo:
os chauffeurs casam com criadas e as criadas com chauffeurs...
Pergunto a mim mesmo como não pensei nisso mais cedo!... Aliás
- acrescentou negligentemente -, tinha preferido que Adriana
deixasse deliberadamente de ser honesta do que ser modelo... não
tanto - continuou levantando a mão, como a prevenir uma
objecção de Gisela - por causa propriamente do ofício, se bem
que, para dizer a verdade, não consigo engolir essa história de se
pôr toda nua diante dos homens... mas sobretudo porque este
trabalho proporciona certas ligações de amizade que...
Levantou a cabeça e fez uma careta. Depois, oferecendo a
Gisela o seu maço de cigarros:
- Fuma? - perguntou.
De momento Gisela não soube que responder; limitou-se a
recusar o cigarro. Depois olhou o relógio de pulso e disse:
- Adriana, temos de nos ir embora, é tarde.
Era efectivamente tarde.
Despedimo-nos de Gino e saímos da pastelaria. Uma vez na
rua, Gisela disse-me:
- Mas tu cometeste um erro enorme!... Eu nunca casaria
com um homem assim!
- Não gostaste dele? - perguntei-lhe ansiosamente.
- Absolutamente nada. Primeiro tinhas dito que ele era alto,
e ele é quase pouco mais pequeno do que tu! Tem uns olhos falsos
e que não nos olham de frente... é sempre artificial... Fala de uma
maneira tão afectada que se conhece a um quilómetro de distância
que não diz o que pensa... E é de uma vaidade para um chauffeur!
- Mas eu amo-o - objectei.
Ela respondeu-me com calma:
- Sim, só tu, porque ele não te ama; vais ver que um dia
abandona-te.
Fiquei magoada com esta profecia tão segura e tão parecida
com a da minha mãe. Hoje posso dizer que numa hora, à parte a
maldade, Gisela compreendera melhor o carácter de Gino que eu
durante tantos meses. Por seu lado, o julgamento que Gino fazia
de Gisela era igualmente maldoso, mas tinha que reconhecer em
seguida que, parcialmente pelo menos, era e acto. Na realidade,
estava cega não só pela minha inexperiência mas também pela
afeição que dedicava aos dois..
Quando se pensa mal das pessoas, está-se quase sempre
perto da verdade!
- A tua Gisela - disse-me ele - é o que na minha terra se
chama uma boa tipa!
Olhei-o com um ar espantado. Ele explicou:
- Uma rapariga das ruas. Está toda orgulhosa de andar bem
vestida, mas... como ganha o dinheiro?
- É o seu noivo quem lho dá.
- Um noivo diferente todas as noites... entretanto ouve: é
preciso escolher entre ela e eu!
- Que queres dizer?
- Quero dizer que és livre de fazer o que quiseres... mas se
continuas a dares-te com ela deves renunciar a ver-me... Ou ela
ou eu!
Procurei fazê-lo mudar de ideias, mas sem resultado. A
atitude desdenhosa de Gisela tinha-o com certeza ferido; mas ele
devia, na sua antipatia indignada, a mesma fidelidade ao seu
papel de noivo que lhe tinha sugerido contribuir para os gastos
dos nossos preparativos de casamento.
- A minha noiva não deve andar com mulheres de má vida!
- repetia com ar inflexível.
Tomada do mesmo receio inicial de ver ir por água abaixo o
meu casamento, acabei por lhe prometer não tornar a ver Gisela,
mas sabia no meu coração que não poderia cumprir a promessa,
até mesmo pela impossibilidade de o fazer: Gisela e eu posávamos
à mesma hora no mesmo atelier!
Desde esse dia continuei a falar-lhe às escondidas de Gino.
Quando estávamos juntas, ela nunca perdia oportunidade de
fazer alusões irónicas e desdenhosas ao meu noivado. Eu tinha a
ingenuidade de lhe fazer confidências a respeito das minhas
relações com Gino; era justamente destas confidências que ela se
servia para me ferir e me representar a minha vida presente e
futura sob as cores mais negras. Como o seu amigo Ricardo
parecia não notar a mínima diferença entre ela e eu,
considerando-nos as duas como raparigas fáceis, que não
mereciam qualquer respeito, ele prestava-se de boa vontade às
brincadeiras de Gisela e reforçava as piadas, mas de maneira
estúpida e sem malícia, porque, como já disse, não era inteligente
nem mau. Para ele o meu noivado não era outra coisa que um
assunto para boas graçolas, para matar o tempo.
Mas Gisela, a quem a minha virtude fazia o efeito de uma
censura viva, e que queria tornar-me igual a ela, para me tirar o
direito de a desaprovar, punha nas suas graçolas encarniçamento
e azedume, procurando por todas as formas mortificar-me e
humilhar-me. Atacava sobretudo o meu ponto fraco: a maneira de
vestir.
- Hoje - dizia - tenho francamente vergonha de andar
contigo!
Ou então:
- O Ricardo não permitiria que eu saísse com esses trapos
em cima de mim. Não é verdade, Ricardo?
- Isso é que é um índice de amor, minha querida!
Ingenuamente eu caía nesta grosseira armadilha. Exaltava-me,
defendia Gino, defendia mesmo os meus vestidos, por vezes com
pouca convicção, mas acabava sempre por perder, corar e ficar
com lágrimas nos olhos. Um dia Ricardo teve pena de mim e
declarou:
- Hoje vou dar um presente a Adriana. Vou oferecer-lhe
uma mala!
Mas Gisela opôs-se violentamente a este oferecimento,
declarando:
- Não, não! Nada de ofertas. Ela tem o seu Gino. Que faça
com que ele lhe dê presentes!
Ricardo, que se propusera oferecer-me a mala por pura
bondade de alma, sem imaginar nem por sombras o prazer que me
teria dado a sua oferta, renunciou logo à sua ideia; e eu, por ponto
de honra, fui nessa mesma tarde comprar uma mala com o meu
dinheiro. No dia seguinte apareci aos amantes com a minha mala
no braço e disse-lhes que tinha sido um presente de Gino. Foi a
única vitória que consegui no decurso destas deploráveis
escaramuças. Custou-me muito, porque era uma boa mala, e a
paguei muito cara.
Quando Gisela julgou ter-me mortificado e humilhado
suficientemente, à força de ironias, de vexames e de sermões,
chamou-me e disse que tinha uma coisa importante a
comunicar-me :
- Mas vais deixar-me falar até ao fim! - explicou. Não vais
mostrar-te intransigente, como é teu hábito, antes de teres
compreendido?
- Conta - disse-lhe.
- Sabes que sou muito tua amiga - começou. - Considero-te
como uma irmã. A tua beleza permitir-te-ia teres tudo o que
quisesses... Faz realmente pena ver-te sempre vestida como uma
pedinte.
Aqui parou e olhou-me com ar solene.
- Há um senhor extremamente distinto, muito sério... que te
viu e se interessa imenso por ti. Ele é casado, mas a família está
na província. É um grande da polícia - acrescentou baixando a
voz. - Se tu quiseres, eu posso apresentar-to. Como te digo, é um
senhor muito sério e muito fino; com ele podes estar certa de que
mais ninguém saberá... De resto, ele está muito ocupado e só te
encontrarias com ele duas ou três vezes por mês. Não há
inconveniente em que continues essa história com o Gino, se isso
te agrada... nem mesmo que te cases... mas ele procurará
proporcionar-te uma vida melhor do que a que tens agora. Que
dizes?
- Agradeço-te muito mas não posso aceitar! - respondi
peremptoriamente.
- Mas porquê? - gritou ela, sinceramente estupefacta.
- Porque não. Amo o Gino, e se aceitasse nunca mais poderia
olhá-lo de frente.
- É ideia tua, porque Gino nada saberá!
- É justamente por isso!
- Pensar - pronunciou então como se falasse consigo própria
- que se aqui há uns tempos me tivessem feito uma oferta
semelhante! Então, que devo dizer-lhe? Não queres reflectir?
- Não, não! Não aceito!
- És uma idiota! - disse-me Gisela, desapontada. - A isto
chama-se recusar a fortuna!
Acrescentou muitas coisas do mesmo género, às quais
respondi sempre da mesma maneira, e foi-se embora muito
descontente.
Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo,
sem lhe discutir o valor. Só uma vez experimentei como que
um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que
Gisela tivesse razão, podia ser esta a única maneira de obter tudo
de que tão desesperadamente precisava. Mas afastei este
pensamento e agarrei-me de preferência à ideia do casamento e da
existência pobre, mas honesta, que tinha traçado para mim.
O sacrifício que me tinha imposto punha-me entretanto na
obrigação de me casar a todo o custo; era ainda mais forçoso que
anteriormente.
Não consegui resistir a um sentimento de vaidade e
informei minha mãe da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe
agradaria duplamente: sabia até que ponto ela estava orgulhosa
da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o
seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas convicções.
Mas fiquei estupefacta com a agitação que lhe provocou a minha
notícia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de
contentamento:
- Mas quem é? - perguntou por fim.
- Um senhor rico - disse-lhe. Tinha vergonha de confessar
que era um polícia.
- Ela disse que ele era muito rico?
- Sim... parece que ganha muitíssimo bem!
Não ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha
feito mal em recusar a oferta.
- Ele viu-te - repetiu - e disse-lhe que se interessava por ti...
Porque não to apresentou?
- A que propósito, se eu não posso?
- Que pena ele já ser casado!
- Mesmo que fosse solteiro não o queria conhecer.
- Há tanta maneira de fazer as coisas! - disse minha mãe. -
alguém que é rico... gosta de ti... uma coisa leva à outra... podia
ajudar-te... sem te pedir nada!
- Não, não! - respondi. - Essa gente nada dá sem receber em
troca.
- Nunca se sabe.
- Não, não - repetia eu.
- Nada quer dizer - disse minha mãe abanando a cabeça...
- Isso não impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha
verdadeira afeição por ti. Outra qualquer teria tido inveja, não te
teria falado. Ela, ao contrário, mostrou ser uma verdadeira amiga!
Depois da minha recusa, Gisela não me tornou a falar do tal
senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a
propósito do meu noivado. Continuava a vê-la às escondidas,
assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com
o desejo de uma reconciliação, porque estes subterfúgios me
desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as
suas expressões de raiva e jurava que se soubesse que eu a
tornara a ver tudo acabaria entre nós. Falava seriamente e eu
tinha quase a impressão de que teria de boa vontade aproveitado
este pretexto para desfazer o casamento! Falei à minha mãe desta
antipatia de Gino por Gisela e minha mãe declarou, sem parecer
pôr maldade nesta observação:
- Ele não quer que andes com Gisela porque tem medo que
tu faças a comparação dos trapos com que sais e as toálettes
que o noivo dela lhe dá.
- Não! Somente diz que Gisela não lhe agrada.
- Ele é que não agrada... Se Gino pudesse saber que tu falas
com Gisela e rompesse contigo!
- Mãe! - gritei, apavorada. - Que nem sequer te passe pela
cabeça dizer-lho!
- Não, não! - respondeu muito depressa, como que
arrependida. - Isso são assuntos vossos, não são da minha conta!
- Se lhe fores dizer - gritei, pondo toda a minha paixão neste
grito. - Nunca mais me verás!
Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e
límpidos. Gisela disse-me um dia que anuíra a fazer uma pequena
viagem de automóvel: ela, Ricardo e um seu amigo.
Precisava-se de outra senhora para fazer companhia ao
amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na
mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que
me pudesse torná-la menos insípida. Disse a Gino que era
obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã,
pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado
da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei
nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se
mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu
encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara
amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma
boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir.
Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de
Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzento-escuro, calças de um
cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma
pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram
doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos.
Era extremamente cortês, mesmo cerimonioso. Gisela
apresentou-mo dando-lhe o nome de Estevão Astárito e tive logo a
convicção de que se tratava do senhor distinto cujas galantes
propostas ela me tinha transmitido. Mas não fiquei contrariada
por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as
suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavam-me mesmo,
num certo sentido. Estendi-lhe a mão; levou-a aos lábios com uma
devoção estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois
subi, ele sentou-se ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o
automóvel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma
estrada nua e inundada de sol, não falámos quase nada. Eu
estava feliz por andar de automóvel, feliz por dar um passeio, feliz
pelo ar que passava atrás da janela e me batia em cheio no rosto.
Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu
dava um passeio longo de automóvel e tinha receio de não o
desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o
maior número possível de coisas: molhos de palha, quintas,
árvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses,
talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha
que gravar todos os pormenores na memória de maneira a possuir
uma recordação precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas
Astárito, afastado, muito direito, não parecia ter olhares senão
para mim. Os seus olhos melancólicos e cheios de desejo não
largavam por um instante a minha cara e o meu corpo; realmente
o seu olhar dava-me a sensação de um dedo que ele passasse
lentamente sobre toda a minha pessoa. Não direi que esta atenção
me desgostasse, mas embaraçava-me.
Pouco a pouco senti-me no dever de me ocupar dele e de lhe
falar. Estava sentado com as mãos sobre os joelhos; num dos
dedos brilhava, com uma aliança, um anel ornado com um
brilhante.
- Que anel tão bonito! - disse-lhe estouvadamente. Ele
baixou os olhos para o anel sem mexer a mão e respondeu:
- Era o anel do meu pai. Tirei-lhe do dedo quando morreu.
- Oh! - disse para me desculpar. Depois acrescentei,
indicando a aliança: - É casado?
- Com certeza que sim! - respondeu com uma espécie de ar
complacente. - Tenho mulher e filhos.
- É bonita a sua mulher? - perguntei timidamente.
- Menos que você - disse-me sem sorrir, em voz baixa e
enfática, como se anunciasse uma verdade importante. E a mão
em que brilhava o anel tentou agarrar a minha. Desembaracei-me
rapidamente dela e perguntei, para dizer qualquer coisa:
- Vive com ela?
- Não - respondeu-me. - Ela mora em... - e disse o nome de
uma longínqua cidade de província- e eu aqui. Vivo só... Espero
que venha visitar-me.
Fingi não me aperceber desta entrada, insinuada de uma
maneira trágica e convulsa, e perguntei:
- Porque... não gostaria de viver com a sua mulher?
- Estamos legalmente separados - explicou-me, amuando.
- Quando me casei era um garoto... foi minha mãe quem arranjou
o casamento... Sabe bem como estas coisas se passam... uma
rapariga de boa família, com um belo dote... são os pais que
combinam o casamento, mas são os garotos que se devem casar!
Viver com uma mulher... você seria capaz de viver com uma
mulher como esta?
Tirou a carteira do bolso do peito, abriu-a e estendeu-me
uma fotografia. Vi duas garotinhas com ar de gémeas, morenas,
pálidas, todas vestidas de branco. Atrás delas, com as mãos
pousadas nos seus ombros, uma mulherzinha morena e pálida,
com os olhos unidos como os de um mocho e expressão maldosa.
Devolvi-lhe a fotografia. Ele tornou a guardá-la na carteira
e depois disse-me num sopro:
- Não... queria viver consigo.
- O senhor não me conhece de lado algum! - respondi,
desconcertada com a sua obsessão.
- Conheço-a muito bem. Há um mês que a sigo. Sei tudo a
seu respeito.
Falava e continuava a ficar respeitosamente distante. Mas
incessantemente a sua paixão dilatava-lhe os olhos.
- Estou noiva! - declarei-lhe.
- Gisela disse-me - pronunciou com voz estrangulada.
- Mas não falemos do seu noivo, que importa? - e fez um
pequeno gesto com a mão, de afectada indiferença.
- Mas a mim importa-me, e muito - continuei. Olhou-me e
repetiu:
- Gosto imensamente de si.
- Já dei por isso.
- Agrada-me enormemente - prosseguiu. - Talvez nem se
aperceba de que maneira me agrada.
Falava realmente como um louco. Mas o que me
tranqüilizava era ele estar sentado longe de mim e não tentar mais
pegar-me na mão.
- Nada há de mau em que eu lhe agrade - disse-lhe.
- E eu, agrado-lhe?
- Não.
- Tenho dinheiro - disse ele com a cara crispada. Tenho
muito dinheiro para a fazer feliz. Se vier ter comigo, verá que não
terá de se arrepender!
- Não preciso do seu dinheiro - respondi com calma, quase
com indiferença.
Pareceu não ouvir e disse, olhando-me:
- Você é muito bela!
- Obrigada.
- Tem uns lindíssimos olhos.
- Acha?
- Acho... e a sua boca é também muito bonita...
quereria beijá-la.
- Porque me diz essas coisas?
- O seu corpo também o gostaria de cobrir de beijos... todo o
seu corpo.
- Porque me fala dessa maneira? Estou noiva e casaremos
dentro de dois meses.
- Desculpe, mas dá-me prazer falar destas coisas. Faça de
conta que não é consigo. - Ainda estamos muito longe de Viterbo?
- Estamos quase a chegar... Almoçaremos lá. Prometa-me
que se sentará ao meu lado à mesa.
Desatei a rir, porque no fim de contas uma paixão tão
violenta lisonjeava-me:
- Está bem - disse eu.
- Vai sentar-se ao meu lado como agora - prosseguiu ele.
- Contento-me em respirar o seu perfume.
- Mas eu não uso perfume! - exclamei.
- Hei-de oferecer-lhe um frasco, deixe estar! - respondeu.
Tínhamos chegado a Viterbo e o carro abrandou a
velocidade para entrar na cidade. Durante todo o trajecto, Gisela e
Ricardo, sentados à nossa frente, tinham-se conservado em
silêncio. Mas quando começámos a percorrer lentamente as ruas
repletas de gente, Gisela voltou-se para trás e disse-me:
- Como vai isso aí, com os dois? Tu julgas, se calhar, que
nós nada vimos?
Astárito ficou calado, mas eu protestei:
- Tu não podias ter visto coisa alguma... temos vindo
somente a conversar!
- Está bem! Está bem! - respondeu.
Fiquei profundamente admirada e um pouco irritada tanto
com a atitude de Gisela como com o silêncio de Astárito.
- Mas se eu te digo... - confirmei.
- Está bem! Está bem! - repetiu ela. - Não estejas com medo!
Nós nada diremos ao Gino!
Entretanto tínhamos chegado à praça e descido do
automóvel.
Começámos a passear ao longo das ruas pelo meio do
povo endomingado sob o sol de Outubro, doce e brilhante.
Astárito não me largava um instante, sempre grave, até mesmo
sombrio, com a cabeça hirta, emergindo do seu alto colarinho,
uma mão no bolso e a outra a balouçar. Tinha o ar não tanto de
me seguir, mas de me vigiar. Gisela, pelo contrário, ria alto com
Ricardo; muitas pessoas voltavam-se para nos observar.
Entrámos numa pastelaria e tomámos vermute ao balcão.
Reparei, de repente, que Astárito murmurava por entre dentes não
sei que ameaças e perguntei-lhe o que se passava.
- É aquele imbecil que está ali à porta a olhar para si com
uma insistência descarada! - respondeu-me, furioso.
Voltei-me e vi com efeito um rapazola louro, que olhava
para mim encostado à porta do café.
- Que mal tem isso? - disse eu alegremente. - Olha-me!... E
depois?
- Mas eu sou muito capaz de lhe partir a cara!
- Se o fizer nunca mais lhe falarei e nunca mais o
conhecerei! - disse-lhe, aborrecida. - Não tem esse direito! O
senhor não representa coisa alguma na minha vida!
Ele não respondeu e foi à caixa pagar o vermute. Saímos da
pastelaria e recomeçámos o nosso passeio. O sol, o burburinho, o
movimento das ruas, todas essas caras coradas e sadias de
provincianos punham-me de bom humor. Quando chegámos a
uma praçazinha fora do centro, ao fundo de uma rua
perpendicular, eu exclamei de repente:
- Olhem! Se eu tivesse uma casinha como aquela - e
mostrava uma bonita casinha de dois andares junto de uma igreja
-, seria bem feliz de viver aqui!
- Meu Deus! Meus Deus! - gritou Gisela. - Viver na província!
Então em Viterbo. Eu não anuía a isso nem que me pagassem
em ouro!
- Depressa te aborrecerias, Adriana - disse Ricardo.
- Quem se habitua a viver na cidade já não pode viver
na província.
- Vocês estão enganados! - disse eu. - Gostaria bem de viver
aqui... com alguém que gostasse de mim... Quatro quartos, uma
trepadeira, quatro anelas... De nada mais precisava.
Eu falava sinceramente, porque me via já com Gino nesta
simples casita de Viterbo.
- Que diz? - perguntei dirigindo-me a Astárito.
- Consigo também lá viveria! - disse-me a meia voz para que
os outros não o ouvissem.
- O teu defeito, Adriana, é seres demasiadamente modesta...
Na vida, quando não se deseja muito, nada se consegue!
- Mas eu nada quero... - respondi.
- Nada, então? Nem casar com o Gino? - perguntou Ricardo.
- Isso sim!
Começava a fazer-se tarde; as ruas iam ficando desertas;
entrámos num restaurante. A sala do rés-do-chão estava cheia,
principalmente com aldeões de fatos domingueiros, que a
circunstância de ser dia de feira tinha trazido a Viterbo.
Gisela ficou de mau humor e disse que o cheiro que havia ali
lhe fazia faltar o ar e perguntou ao patrão se não podíamos comer
no andar superior. O patrão disse que sim, que era possível e,
precedendo-nos, fez-nos subir uma escadinha de madeira e entrar
numa sala estreita e comprida com uma só janela, que dava para
um beco. Abriu as persianas e fechou a janela. Depois estendeu a
toalha numa mesa rústica que ocupava a maior parte da sala.
Lembro-me de que as paredes eram cobertas por um velho papel
fora de moda, rasgado em vários sítios, com flores e pássaros, e
que do outro lado da mesa havia um pequeno armário
envidraçado cheio de pratos.
Enquanto isto se passava, Gisela girava pela sala
examinando tudo, espreitando até o beco pela janela. Acabou por
abrir uma porta que parecia dar acesso a outra sala. Depois de lhe
deitar uma olhadela, dirigindo-se ao dono da casa, perguntou com
um ar natural o que vinha a ser aquela outra sala.
- É um quarto - respondeu o proprietário. - Se alguém quiser
descansar depois do almoço..
- Nós havemos de ir, hem, Gisela?! - disse Ricardo com o seu
risinho parvo.
Gisela fingiu não percebeu. Olhou mais uma vez o quarto e
puxou a porta com cuidado sem no entanto a tornar a fechar. Ver
uma sala de jantar tão pequenina e tão íntima agradou-me e
também fingi não reparar pára a porta aberta nem tão-pouco para
o olhar de cumplicidade que julguei surpreender entre Gisela e
Astárito. Tomámos os nossos lugares à mesa; sentei-me ao lado de
Astárito, como lhe tinha prometido, mas ele nem sequer deu por
isso: parecia tão preocupado que nem podia falar. Passado um
momento, o hoteleiro trouxe os acepipes e o vinho. Eu tinha muita
fome, atirei-me ao almoço com tal sofreguidão que todos
começaram a rir. Gisela aproveitou a ocasião para me arreliar;
como de costume, a propósito do meu casamento.
- Come! Come! - recomendava-me ela. - Não é com o Gino
que tu comerás tanto nem tão bem!
- Porquê? - disse eu. - Gino ganha muito bem a sua vida!
- Sim... mas vocês comerão todos os dias feijão.
- Os feijões são tão bons como qualquer outra coisa! - disse
Ricardo rindo. - Vou mandar vir um prato deles para nós!
- És uma idiota, Adriana! - continuou Gisela. - Tu precisas
de um homem de meios, sério, arrumado, que pense em ti e nada
te negue que te permita realçar a tua beleza. E afinal enrolaste-te
com o Gino!
Não respondi. De cabeça baixa, continuava a comer. Ricardo
observava, rindo:
- Eu, no lugar de Adriana, a nada renunciaria... nem ao
Gino, visto que é dele que gosta tanto, nem ao homem sério.
Ficaria com os dois... E talvez até que o Gino não achasse mal!
- Ah! Isso não! Se ele soubesse que eu tinha dado hoje este
passeio com vocês era o bastante para romper o noivado!
- E porquê? - perguntou Gisela, irritada.
- Porque ele não gosta que eu ande contigo!
- Porco, nojento, ordinário! Reles pobretão! - gritou Gisela
com raiva. - Gostaria realmente de experimentar procurá-lo e
dizer-lhe: a Adriana continua a dar-se comigo. Hoje passámos
todo o dia juntas. Anda, vai romper o noivado!
- Não! Não! - replicava eu, apavorada. - Não farás isso!
- Era uma sorte para ti!
- Seria... mas não o faças! - pedi de novo. - Se és um pouco
minha amiga, não o laças!
Durante toda esta conversa, Astárito não disse palavra,
nem sequer comeu. Tinha os olhos constantemente fixos em mim
e o seu olhar, carregado de intenções, grave e desesperado,
incomodava-me mais do que eu queria. Desejaria pedir-lhe que
não me olhasse daquela maneira, mas temia a troça de Gisela e de
Ricardo. Foi pelo mesmo motivo que não tive coragem de protestar
quando Astárito, aproveitando o momento em que pousei a minha
mão esquerda sobre o banco, a apertou na sua com força,
obrigando-me a comer só com a direita. Fiz mal, porque de
repente Gisela gritou, rindo:
- Em palavras és muito fiel ao Gino, mas em acções. Julgas
que não vos vejo, a ti e ao Astárito, de mãos dadas debaixo da
mesa?
Corei, atrapalhada, e tentei libertar a minha mão. Mas
Astárito reteve-a fortemente e Ricardo interveio:
- Deixa-os sossegados! Que mal é que isso tem? Eles estão
de mãos dadas, pronto! O que temos a fazer é imitá-los!
- Disse isto por brincadeira! Pelo contrário - declarou Gisela
-, estou até bem contente!
Quando acabámos de comer o primeiro prato, fizeram-nos
esperar muito tempo pelo segundo. Gisela e Ricardo não paravam
de rir e de brincar, bebendo e fazendo-me beber. O vinho era tinto;
era bom mas muito forte e subia depressa à cabeça. Eu gostava
deste gosto do vinho, quente e picante; estava embriagada, mas
tinha a impressão de não o estar e de poder beber
indefinidamente. Astárito apertava-me a mão, grave e sombrio, e
eu já não me revoltava. Dizia a mim mesma que afinal de contas
não havia mal em lhe dar um aperto de mão! Por cima da porta
havia uma estampa com uma varanda florida de rosas e um
homem e uma mulher vestidos com fatos de há cinquenta anos
que se beijavam de uma maneira complicada. Gisela reparou na
estampa e confessou que não compreendia como aqueles dois
conseguiam beijar-se naquela posição.
- Vamos a ver se os conseguimos imitar? - propôs a Ricardo.
- Tentemos!
Ricardo levantou-se rindo e pôs-se a imitar o homem do
cromo, enquanto Gisela, também a rir, se debruçava sobre a mesa
como a mulher da litografia sobre a florida varanda. Conseguiram
unir as bocas ao fim de grandes esforços, mas pouco faltou para
perderem o equilíbrio e tombarem os dois em cima da mesa.
Gisela, excitada com a brincadeira, gritava:
- Agora é a vossa vez!
- Porquê? - perguntei, alarmada. - A que propósito?
- Sim, sim. Experimentem!
Senti que Astárito me passava o braço em torno da cintura
e tentei desembaraçar-me declarando:
- Mas eu não quero!
- Oh! Como tu és aborrecida! - gritava-me Gisela. É uma
brincadeira! Uma simples brincadeira!
- Mas eu não quero - repeti.
Ricardo ria e ajudava-a excitando Astárito.
- Astárito, se não a beijas, não és homem!
Mas Astárito estava sério. Quase me fazia medo. Era bem
claro que para ele isto não era apenas uma brincadeira.
- Vocês vão deixar-me em paz - disse eu, voltando-me para
ele.
Astárito olhava para mim e depois para Gisela com ar
interrogativo, como se esperasse um encorajamento.
- Coragem, Astárito - gritou-lhe Gisela.
Ela parecia mais encarniçada do que ele de uma maneira
que eu sentia obscuramente cruel e impiedosa.
Astárito apertou-me com mais força pela cintura e puxou-me
para ele; agora já não era a brincadeira que o excitava: queria
beijar-me a todo o custo. Sem dizer nada, eu procurava livrar-me,
mas ele era mais forte; por mais força que eu fizesse com os
cotovelos de encontro ao seu peito, sentia pouco a pouco o seu
rosto aproximar-se do meu. No entanto, não teria conseguido
beijar-me se Gisela não o tivesse ajudado.
Bruscamente, com um grito de alegria, ela levantou-se,
veio por detrás de mim, segurou-me os braços e puxou-os para
trás. Eu não a via, mas sentia a sua fúria nas unhas que me
enterrava na carne e na sua voz, que repetia, entrecortada de riso
e com um tom de excitada crueldade:
- Depressa! Depressa! Astárito, agora!
Astárito estava sobre mim. Eu procurava o mais possível
virar a cara, porque era a única coisa que podia fazer, mas ele
segurou-me o queixo com a mão e voltou-me para ele,
beijando-me depois demoradamente na boca.
- Até que enfim! - disse Gisela, triunfante. E voltou
alegremente para o seu lugar.
Astárito deixou-me, e eu, irritada e dorida, declarei:
- Nunca mais venho com vocês!
- Ora, ora, Adriana - gritava Ricardo com ar de troça. - Só
por causa de um beijo!
- Astárito está todo cheio de bâton! - gritava Gisela,
exultante. - Se o Gino entrasse agora, sempre queria saber o que
diria!
Era verdade. O meu bâton tinha pintado completamente a
boca de Astárito, o traço vermelho sobre a sua cara amarelenta
e triste também me dava vontade de rir.
- Vá lá! - disse Gisela. - Façam as pazes... Limpa-lhe o bâton
com o teu lenço, senão quando o criado entrar vai pensar sabe
Deus o quê!
Eu, contra vontade, tinha de concordar e, com uma ponta do
meu lenço molhada de saliva, limpei pouco a pouco o meu bâton
da cara imóvel de Astárito. Fiquei arrependida mais uma vez de
me mostrar amável, porque logo que guardei o lenço na mala ele
tornou a passar-me o braço em torno da cintura:
- Deixe-me - disse-lhe.
- Ora, ora, Adriana!
- Que mal é que isto pode fazer? - disse Gisela. - A ele dá-lhe
prazer e a ti não te prejudica... E depois já o deixaste beijar-te...
deixa-o lá continuar.
Foi assim que eu cedi pela primeira vez, e que ficámos um
ao lado do outro, ele com o braço em torno da minha cintura e
eu hirta e digna! O criado entrou trazendo o segundo prato.
Apesar de Astárito continuar a apertar-me com força, comer
fez-me passar o mau humor. O segundo prato era excelente, e eu
bebia sem dar por isso todo o vinho que Gisela me servia sem
parar. Em seguida serviram-nos fruta e um bolo. Eu não estava
habituada a comer bolos, mas este era óptimo, e quando Astárito
me ofereceu a sua parte não tive coragem de a recusar. Gisela,
que também bebera muito, pôs-se a fazer macaquices com
Ricardo, enfiando-lhe na boca gomos de tangerina e
acompanhando cada gomo com um beijo. Eu sentia-me
embriagada, mas não de uma maneira repugnante: deliciosamente
embriagada! O braço de Astárito tinha finalmente deixado de me
incomodar.
Gisela, cada vez mais excitada e vibrante, levantou-se para
se sentar nos joelhos de Ricardo, e eu não pude deixar de rir ao
ouvir o grito de dor que ele soltou como se Gisela o esborrachasse
com o seu peso! De repente, Astárito, que até então estivera imóvel
e se tinha limitado a conservar o braço em torno da minha
cintura, começou a cobrir-me de beijos o pescoço, o peito e as
faces. Desta vez já não protestei; primeiro porque estava
demasiadamente embriagada para lutar e depois porque me
parecia que era outra pessoa que ele beijava; tão-pouco eu tomava
parte nessas expansões, conservando-me hirta e imóvel como uma
estátua. Na minha embriaguez tinha a sensação de ser
espectadora de mim própria, observando com fria curiosidade a
furiosa paixão de Astárito por mim. Mas os outros tomaram a
minha indiferença por amor, e Gisela gritou:
- Bravo, Adriana! Assim mesmo é que é!
Ia responder, mas não sei porquê mudei de ideias, agarrei
no meu copo cheio e levantei-o, declarando: “Estou embriagada!”,
e bebi-o de um trago. Julguei que o meu gesto seria aplaudido.
Mas Astárito parou de me beijar, olhou-me fixamente e disse
em voz baixa:
- Vamos para ali!
Segui a direcção dos seus olhos e vi que indicavam a porta
entreaberta do quarto de cama contíguo. Pensei que também ele
estivesse embriagado, e disse que não com a cabeça, mas sem
violéncia, até com um pouco de coquetterie. Ele repetiu como um
sonâmbulo:
- Vamos para ali!
Reparei que Gisela e Ricardo já não riam e nos olhavam
em silêncio. Gisela disse:
- Coragem! Para a frente! Porque esperas?
De súbito, tive a impressão de que a minha embriaguez
passara. Na verdade eu estava embriagada, mas não ao ponto de
não me aperceber do perigo que me ameaçava.
- Mas eu não quero! - disse.
E levantei-me.
Astárito levantou-se também e puxou-me o braço, tentando
levar-me para junto da porta. De novo os outros o encorajaram:
- Coragem, Astárito!
Astárito arrastou-me quase até à porta, apesar de me
debater. Mas com uma sacudidela desembaracei-me dele e corri
para a outra porta, que dava para a escada. Mas Gisela tinha sido
mais rápida do que eu:
- Não! Minha filha, não! - gritava-me.
Deixando os joelhos de Ricardo, tinha alcançado a porta
antes de mim e fechara-a à chave com duas voltas.
- Mas eu não quero! - repeti num tom assustado, parando
em frente da mesa.
- Que importância tem isso para ti? - gritou Ricardo.
- Idiota! - disse-me Gisela num tom duro empurrando-me
para Astárito. - Vai... Vai... deixa-te de fitas!
Compreendi então que Gisela, levada pelo seu
encarniçamento e pela sua crueldade, não se dava bem conta do
que fazia; esta espécie de emboscada que me tinha preparado
devia parecer-lhe uma coisa alegre, espirituosa e divertida. Outro
pormenor que também me chamou a atenção foi a indiferença de
Ricardo, que eu sabia ser bom e incapaz da menor crueldade.
- Mas eu não quero! - disse novamente.
- Que mal é que isso tem? - perguntou Ricardo. Gisela,
excitadíssima, continuava a empurrar-me, dizendo:
- Não te julgava tão parva! Anda, porque esperas? Até ali,
Astárito não tinha pronunciado uma única palavra; ficara imóvel
junto da porta, com os olhos fixos em mim. Agora,
tranquilamente, confusamente, como se as palavras tivessem uma
consistência pastosa e lhe custasse deslocá-las dos lábios, disse:
- Vem. Se não vieres, digo ao Gino que passaste a tarde
deitada comigo.
Compreendi imediatamente que cumpriria a ameaça.
Podemos enganar-nos quanto ao sentido de uma frase, mas não
quanto ao tom de uma voz. Astárito falaria com Gino e tudo
acabaria para mim ainda antes de ter começado. Hoje penso que
podia ter-me revoltado. Talvez que se tivesse gritado, se me
debatesse violentamente, o tivesse persuadido da inutilidade da
sua vingança. Mas isto podia também para nada servir, porque o
seu desejo era mais forte do que a minha repugnância. O certo
é que de repente me senti definitiva e absolutamente subjugada; e,
muito mais do que o desejo de me defender, o que actuava em
mim era a necessidade de evitar o escândalo que me ameaçava.
Na realidade, fora atraída à falsa fé, com o espírito
completamente ocupado por doces projectos de futuro, aos quais
de maneira nenhuma queria renunciar. O que me aconteceu
depois foi tão brutal que hoje creio que, de uma maneira ou de
outra, acontecem coisas a todos os que tem ambições, por mais
modestas, mais inocentes ou mais legítimas que sejam, como era
o meu caso. É pelas nossas ambições que a vida nos domina e
castiga. Só os abandonados e os que renunciaram a tudo podem
considerar-se livres e serenos.
Mas no próprio momento em que me submetia ao destino
senti uma dor lúcida e aguda. Uma brusca iluminação - dir-se-ia
que o caminho da vida, geralmente tão obscuro e tão tortuoso,
aparecia de repente diante dos meus olhos perfeitamente plano e
direito - revelou-me tudo o que eu ia perder em troca do siléncio
de Astárito. Os meus olhos encheram-se de lágrimas; cobri a cara
com as mãos e pus-me a chorar. Compreendi que chorava por
excesso de resignação e não por um sentimento de revolta,
porque, ao mesmo tempo que chorava, aproximava-me de
Astárito. Gisela empurrava-me, repetindo:
- Mas por que demónio estás tu a chorar? Como se fosse
a primeira vez!
Ouvi Ricardo rir e senti, embora não os visse, os olhos de
Astárito fixos em mim, que me aproximava lentamente, lavada em
lágrimas. Depois o seu braço rodeou a minha cintura e a porta do
quarto fechou-se nas minhas costas.
Nada queria ver. Parecia-me que ter de sentir o que ia
passar-se já era um martírio suficiente. Por isso, apesar dos
esforços de Astárito, conservei obstinadamente o meu braço
pousado sobre os olhos. Suponho que ele teria querido proceder
como qualquer amante, isto é, levar-me lentamente,
insensivelmente, gradualmente, a satisfazer os seus desejos.
Mas a minha teimosia obrigou-o a ser mais brutal e mais
rápido do que ele desejaria. Por isso, depois de me ter feito sentar
na beira da cama e tentado inutilmente convencer-me com
carícias, empurrou-me para trás e deitou-se por cima de mim. O
meu corpo, da cintura aos pés, estava inerte e pesado como
chumbo: nunca mulher alguma foi possuída com mais abstinência
e menos colaboração. Mas, entretanto, as minhas lágrimas
secavam. E quando ele se deixou cair, ofegante, sobre o meu peito,
tirei o braço da cara e abri os olhos.
Tenho a certeza de que nesse momento eu era tão amada por
Astárito quanto uma mulher pode ser amada por um homem,
seguramente muito mais do que por Gino. Lembro-me de que ele
não se cansava de me acariciar a testa e o rosto, com gestos
convulsivos e apaixonados, tremendo da cabeça aos pés e
murmurando-me palavras de amor. Mas enquanto me acariciava
eu seguia o fio dos meus pensamentos secretos. Revia o meu
quarto com os seus móveis novos, ainda não completamente
pagos, e sentia uma espécie de amargo alívio. Agora já nada me
impedia de casar-me e de viver a vida a que aspirava. Mas ao
mesmo tempo sentia que a minha alma tinha mudado
irremediavelmente: onde antigamente só havia esperança,
ingenuidade e frescura existia agora segurança e resolução. Em
resumo, sentia-me mais rica de uma força triste e privada de
amor.
Acabei por pronunciar as primeiras palavras desde que
tínhamos entrado no quarto.
- São horas de sairmos.
E ele respondeu imediatamente em voz baixa:
- Estás zangada comigo?
- Não.
- Odeias-me?
- Não.
- Gosto tanto de ti! - murmurou ele.
Voltou a cobrir-me o rosto de beijos furiosos. Passados
momentos, disse-lhe:
- Está bem, mas temos de voltar para a sala.
- Tens razão - concordou ele.
E levantou-se de cima do meu corpo, começou, pareceu-me,
a vestir-se no escuro. Tornei a vestir a minha roupa, levantei-me e
acendi o candeeiro da mesinha-de-cabeceira. A sua luz amarelada,
o quarto apareceu-me tal como o seu cheiro a fechado e a
alfazema mo tinham feito imaginar: um tecto baixo caiado, papel
pintado nas paredes e móveis maciços. Num canto havia um
lavatório com tampo de mármore, duas bacias e dois jarros de
água com flores cor-de-rosa e verdes, debaixo de um espelho com
moldura dourada. Fui ao lavatório, deitei um pouco de água na
bacia, molhei uma ponta da toalha e lavei os lábios de onde
Astárito tinha tirado todo o bâton com os seus beijos, depois os
olhos, ainda vermelhos de chorar. De um fundo manchado cor de
ferrugem o espelho devolvia-me uma imagem dolorosa de mim
própria que me aturdiu por momentos a alma entorpecida e cheia
de compaixão. Depois voltei a mim, ajeitei o melhor que me foi
possível o cabelo e voltei-me para Astárito. Ele esperava-me ao pé
da porta; assim que me viu pronta, abriu o batente, evitando
olhar-me e voltando-me as costas. Apaguei a luz e segui-o.
Fomos alegremente recebidos por Gisela e por Ricardo,
sempre com o mesmo humor amalucado e indiferente. Como
antes, eles não tinham compreendido a minha dor, nem
entendiam a minha serenidade de agora. Gisela gritou:
- Tu és uma boa sonsa! Não querias, não querias, mas
parece que aceitaste bem depressa e de muito bom grado!...
Fizeste bem se isso te deu prazer, mas não valia a pena teres-te
feito tão rogada.
Olhei-a. Parecia-me estranhamente injusto que ela, que me
obrigara a ceder a ponto de me segurar os braços para que
Astárito me beijasse mais a seu jeito, censurasse agora a minha
complacência. Ricardo, com o seu bom senso, fez-lhe notar:
- Estás a ser pouco lógica, Gisela... Tu, que de começo
insististe tanto, agora quase a censuras por ela o ter feito.
- Pois decerto! - insistiu duramente Gisela. - Se ela não
queria, fez mal... Eu, por exemplo, se não quisesse, não me
deixaria convencer nem pela força. Mas ela... ela queria -
acrescentou, considerando-me com um ar descontente. - Ela
queria e muito! Eu bem a vi no carro antes de chegarmos a
Viterbo. É por isso que ela não precisava de se fazer tão rogada.
Calei-me, quase admirando a perfeição de uma crueza ao
mesmo tempo impiedosa e inconsciente. Astárito aproximou-se de
mim e tentou agarrar-me a mão. Repeli-o e fui sentar-me ao fundo
da mesa.
- Mas olhem para Astárito! - gritou Ricardo desatando a rir. -
Parece que vem de um enterro!
Verdadeiramente, à sua maneira, com uma gravidade
lúgubre e o seu ar mortificado, Astárito parecia compreender-me
melhor do que os outros.
- Vocês estão sempre a brincar! - disse ele.
- Talvez quisesses que começássemos a chorar, não? - gritou
Gisela. - Agora vocês vão ter paciência e esperar por nós como nós
esperámos por vocês... Cada um por sua vez! Anda, querido,
vamos!
- Tenham cuidado, hem! - recomendou Ricardo
levantando-se depois dela.
Estava visivelmente embriagado e nem ele sabia bem
porque dissera para termos cuidado.
- Vamos! Vamos!
Saíram por sua vez da sala de jantar, deixando-nos sós, a
mim e a Astárito. Eu estava sentada a uma ponta da mesa e
Astárito na outra. Um raio de sol entrava pela janela, iluminando
violentamente os pratos em desordem, os copos ainda meio cheios
e os guardanapos sujos - e batia em cheio na cara de Astárito, que
conservava a sua expressão triste e sombria.
Satisfizera o seu desejo, mas o olhar que me deitava
conservava a mesma intensidade dolorosa dos primeiros
momentos do nosso encontro. Apesar do mal que me fizera,
senti-me cheia de piedade por ele. Compreendia como ele tinha
sido infeliz antes de me possuir, e como, apesar de ter conseguido
o seu fim, não tinha deixado de o ser. Primeiro sofrera porque me
desejava; agora sofria porque eu não retribuía o seu amor. Mas é
precisamente na piedade que o amor tem a sua inimiga; se o
odiasse, talvez um dia viesse a amá-lo. Mas não o odiava.
Nutrindo por ele, como já disse, apenas compaixão, a única
coisa que eu poderia sentir por ele era antipatia, frieza e repulsa.
Ficámos longamente silenciosos na sala cheia de sol,
esperando o regresso de Gisela e de Ricardo. Astárito fumava sem
descanso, acendendo uns cigarros nos outros. E, através das
nuvens de fumo de que se rodeava raivosamente, lançava-me os
olhares eloquentes de um homem que tem muito que dizer, mas a
quem falta a coragem de falar. Eu estava sentada junto da mesa,
com as pernas cruzadas, e todos os meus sentidos se
condensavam num único desejo: ir-me embora. Não sentia
fadiga, nem vergonha; mas gostaria de estar só para poder reflectir
à minha vontade no que me tinha acontecido. Absorvido por este
grande desejo de partir, o meu espírito vazio divagava
continuamente e observava futilidades: a pérola que Astárito
usava na gravata, o desenho do tapete, uma pequena nódoa de
molho de tomate na minha blusa, uma mosca que passeava
tranquilamente na borda de um copo; irritava-me comigo própria
por não ser capaz de pensar em coisas mais sérias. Mas esta
futilidade veio em meu auxílio quando Astárito, vencendo a sua
timidez, me perguntou, a custo:
- Que estás a pensar?
Reflecti durante um momento, e depois respondi, com
tranquilidade:
- Parti uma unha e não sei como foi.
Isto era verdade. Mas o seu rosto tomou uma expressão de
incrédula amargura e renunciou definitivamente a conversar
comigo.
Pouco depois, felizmente, Gisela e Ricardo saíram do quarto,
um pouco ofegantes, mas tão alegres e despreocupados como
antes. Ficaram admirados do nosso silêncio e da nossa gravidade,
mas fazia-se tarde e o amor tinha tido neles um efeito oposto ao
que tivera sobre Astárito: tinha-os tranquilizado e acalmado.
Gisela voltava até a mostrar-se afectuosa para comigo, pondo por
completo de parte a excitação e a crueldade de que dera provas
antes e durante a chantagem de Astárito. Pensei que essa
chantagem tinha sido para ela uma espécie de novo tempero
sensual para a insipidez da sua ligação com Ricardo. Na escada
passou o braço em volta da minha cintura e murmurou:
- Porque estás com essa cara? Se estás preocupada por
causa do Gino, podes ficar descansada. Nem eu nem o Ricardo
falaremos nisto a alguém.
- Estou fatigada - menti.
O meu temperamento impede-me de guardar rancor seja a
quem for; bastava aquele gesto de amizade de Gisela para dissipar
por completo o meu ressentimento.
- Eu também me sinto cansada - disse ela. - Deve ser do
vento que apanhei na cara.
Daí a momentos, parada à porta do restaurante, enquanto
os dois homens caminhavam na direcção do carro, acrescentou:
- Não ficaste zangada comigo pelo que se passou?
- Que ideia! - respondi. - Que culpa tiveste disso? Assim,
depois de ter tirado todas as satisfações que a sua intriga podia
proporcionar-lhe, queria ainda ter a certeza de que não lhe
guardava rancor. Tive a impressão de ter lido com clareza no seu
espírito, e foi precisamente porque não queria que ela
compreendesse isso, o que decerto a humilharia, que tentei por
todos os meios ao meu alcance dissipar os seus temores e
mostrar-me afectuosa. Dei-lhe um beijo e disse-lhe:
- Porque havia de me zangar agora contigo? Tu sempre
pensaste que devia deixar o Gino e juntar-me com o Astárito.
- Isso é verdade! - afirmou ela com ênfase. - E continuo a
pensá-lo!? Mas tu, pelo contrário... Tenho medo de que nunca me
perdoes.
Mostrava-se ansiosa, e eu, por um curioso contágio, estava
ainda mais ansiosa do que ela, porque temia que adivinhasse os
meus verdadeiros sentimentos.
- Isso só prova que não me conheces bem - respondi com
simplicidade. - Bem sei que é só por amizade para comigo que
queres que eu deixe o Gino, porque estar com ele é contra os
meus interesses. E é muito possível que tenhas razão! - terminei,
mentindo novamente.
Tranquilizada, agarrou-me por um braço e disse-me, num
tom de serena confidência:
- Queria que me compreendesses... Astárito ou outro
qualquer, tanto faz, contanto que não seja o Gino. Se soubesses a
pena que me faz ver uma rapariga bonita como tu prejudicar-se
dessa maneira... Pergunta ao Ricardo: passo o dia a falar-lhe de
ti...
Exprimia-se, como era seu hábito, sem meias palavras: e
eu tinha o cuidado de aprovar tudo o que ela dizia, quer
concordasse quer não. Chegados ao carro, ocupámos os mesmos
lugares da vinda e partimos.
Durante a viagem de regresso conservámo-nos os quatro em
siléncio. A expressão de Astárito ao olhar para mim exprimia mais
um sentimento de mortificação do que de desejo; mas agora os
seus olhares não me incomodavam, nem eu sentia, como à vinda,
a necessidade de lhe falar e de ser amável com ele.
Absorvia com prazer o vento que me batia na cara e
entretinha-me a verificar, por meio dos marcos quilométricos, a
progressiva diminuição da distáncia que nos separava de Roma. A
certa altura senti a mão de Astárito tocar na minha e percebi que
tentava obrigar-me a pegar em qualquer coisa como um bocado de
papel. Admirada, pensei que, não ousando falar-me, recorrera ao
expediente de escrever para comunicar comigo. Mas, baixando os
olhos, vi que se tratava de uma nota de banco dobrada em quatro.
Ele olhava fixamente para mim, ao mesmo tempo que
tentava fazer com que os meus dedos se fechassem sobre a nota.
Por momentos apeteceu-me atirar-lhe com ela à cara, mas ao
mesmo tempo compreendi que isso não passaria de um gesto
puramente exterior, ditado mais por um preconceito do que por
um profundo impulso da alma. O sentimento que nesse momento
tomou conta de mim causou-me extraordinário espanto: depois
disso, nas numerosas vezes que recebi dinheiro de homens, nunca
mais o tive tão claro e tão intenso; era um sentimento de
cumplicidade e de acordo sensual, que nenhuma das suas
carícias, no quarto do restaurante, tinha podido inspirar-me. Este
sentimento de inevitável sujeição revelou-me de repente um
aspecto do meu carácter até aí completamente desconhecido para
mim. Eu sabia, com absoluta certeza, que devia recusar esse
dinheiro, mas ao mesmo tempo sentia que o desejava aceitar. E
isto não tanto por avidez como pelo raro e novo prazer que o facto
dava à minha alma.
Apesar de firmemente resolvida a aceitar a nota, fingi
recusá-la, num gesto de puro instinto. Astárito insistiu, sem
deixar de me fitar nos olhos. Então passei a nota da mão esquerda
para a direita. Sentia-me tomada por uma estranha excitação que
me fazia corar e me dificultava a respiração.
Se nesse momento Astárito tivesse podido adivinhar o que
se passava em mim, talvez tivesse pensado que o amava. Ora
nada era menos verdadeiro; era somente o dinheiro, o modo como
me tinha sido dado e o motivo dessa dádiva que actuavam sobre
o meu espírito. Senti Astárito pegar-me na mão e levá-la aos
lábios. Deixei-o beijá-la e depois retirei-a. Não voltámos a olhar
um para o outro até à nossa chegada a Roma.
Logo que chegámos à cidade separámo-nos rapidamente uns
dos outros, como se cada um de nós tivesse a consciência de ter
cometido um crime e quisesse esconder-se. A verdade é que nesse
dia todos nós tínhamos cometido qualquer coisa que podia
considerar-se um crime: Ricardo, por estupidez, Gisela, por inveja,
Astárito, por luxúria, e eu, por inexperiência.
Ricardo desejou-me boas-noites. Astárito, grave e comovido,
não teve coragem senão para me apertar silenciosamente a mão.
Tinham-me levado a casa, e, apesar da minha fadiga e dos
meus remorsos, lembro-me de que não me foi possível evitar um
sentimento de vaidosa satisfação ao descer deste belo carro diante
da porta, perante os olhares da família do ferroviário que ocupava
a casa do lado e que nos espreitava por uma janela.
Corri para o meu quarto e a primeira coisa que fiz foi
olhar para o dinheiro. Descobri que não era apenas uma, mas sim
três notas de mil, e durante momentos, sentada na borda da
minha cama, senti-me feliz. Este dinheiro, além de chegar para
pagar o que eu ainda devia dos móveis, permitia-me comprar
outras coisas de que precisava. Como nunca tinha tido em meu
poder uma tal importância, não me fartava de olhar para o
dinheiro.
A minha pobreza fazia com que a sua existência fosse não só
agradável mas inacreditável. Tive de olhar longamente para as
notas, como já sucedera com os móveis, para conseguir acreditar
que me pertenciam.
O meu longo e profundo sono dessa noite pareceu-me ter
desvanecido a recordação da minha aventura de Viterbo. No dia
seguinte, acordei tranquila, decidida a prosseguir com a mesma
perseverança nas minhas aspirações de possuir uma vida e uma
família normais. Gisela, que vi nessa mesma manhã, quer fosse
por remorsos quer, como era mais provável, por discrição, bem
compreensível, não me fez a menor alusão ao nosso passeio e eu
fiquei-lhe reconhecida por isso. A ideia de tornar a encontrar-me
com Gino angustiava-me e enchia-me de ansiedade.
5
Embora estivesse convencida da minha total inocência,
pensava que seria necessário mentir-lhe, o que receava, e não
estava certa de o poder fazer, porque seria a primeira vez, visto
que eu até agora tinha sido inteiramente sincera para ele.
verdade que lhe escondera os meus encontros com Gisela,
mas esta dissimulação tinha um motivo tão inocente que nunca a
tinha considerado como uma mentira; era apenas um expediente,
com o qual condenava a sua injusta antipatia por Gisela.
A minha angústia era tal quando o encontrei nesse dia que
por pouco não rompi a chorar e não lhe contei tudo, pedindo-lhe
que me perdoasse. Este passeio a Viterbo pesava-me na
consciência e sentia um violento desejo de aliviar a minha alma
confessando-lho. Se Gino fosse diferente e se eu não soubesse que
era tão ciumento, tenho a certeza de que lho teria dito; depois de o
fazer, parecia-me, nós amar-nos-íamos mais ainda que
anteriormente, e eu sentir-me-ia protegida e ligada a ele por um
laço mais forte que o nosso próprio amor. Era de manhã,
estávamos no carro. como de costume, parados na nossa avenida
dos arrabaldes. Ele notou o meu embaraço e perguntou-me:
- Que tens?
“Vou contar-lhe tudo mesmo com o risco de ele me pôr fora
do carro e de eu ter de voltar para Roma a pé.” Mas não tive
coragem e perguntei-lhe, por minha vez:
- Amas-me?
- É um interrogatório? - respondeu-me.
- Vais amar-me sempre? - repeti. com os olhos cheios de
lágrimas.
- Sempre.
- E vamos casar-nos depressa?
Ele mostrou-se contrariado com a minha insistência.
- Palavra de honra! - protestou. - Tu acabarás por me
convencer de que não tens confiança em mim! Não decidimos
casar na Páscoa?
- Sim, é verdade!
- Não te dei dinheiro para começarmos a montar casa?
- Deste.
- Então? Sou ou não homem de palavra? Quando digo que
faço alguma coisa, faço mesmo. Está a parecer-me que é a tua
mãe que te excita contra mim.
- Não, não. A minha mãe nada tem a ver com isto -
respondi, alarmada. - Diz-me... Então viveremos juntos?
- Bem entendido!
- E seremos felizes?
- Isso dependerá de nós.
- Viveremos juntos? - perguntei pela segunda vez, incapaz de
sair do círculo da minha ansiedade.
- Uf! Já me perguntaste e eu já te respondi.
- Desculpa - disse-lhe -, mas às vezes isso parece-me
impossível. - E, não podendo conter-me por mais tempo, desatei a
chorar.
Nessa mesma tarde, depois de o deixar, entrei numa igreja
para me confessar. Havia quase um ano que não o fazia; durante
todo esse tempo pensava que podia fazê-lo e isso bastava-me.
Deixara de me confessar logo que dei o primeiro beijo a Gino.
Dei-me conta de que as minhas relações com Gino eram um
pecado segundo a religião, mas, como eu sabia que nos
casaríamos, não sentia remorsos e contava ser absolvida de tudo.
antes do casamento.
Entrei numa pequena igreja do centro cuja porta fica entre
a entrada de um cinema e a montra de uma loja de meias.
Estava quase mergulhada na escuridão, à parte o altar-mor e
uma capela lateral consagrada à Virgem. Era uma igreja muito
suja e muito velha: as cadeiras de palha, todas desarrumadas,
tinham ficado na mesma confusão em que os fiéis as tinham
deixado ao sair. Fazia lembrar que tivessem abandonado com
alívio, bem mais do que uma missa, uma macadora reunião.
Uma fraca luz bruxuleante que tombava da lanterna da
cúpula revelava a poeira das pedras e as esfoladelas brancas
do reboco amarelo das colunas a fingir de mármore. Numerosas
promessas de prata em forma de coração chamejavam suspensas
nas paredes umas contra as outras, provocando uma impressão
melancólica. No entanto, o ar estava impregnado de um velho
cheiro a incenso que me encorajou. Rapariguinha, tinha a sorvido
muitas vezes este cheiro, e as recordações que ele me suscitava
eram agradáveis e inocentes. Tive, por isso, a impressão de me
encontrar num sítio familiar, e, se bem que entrasse pela primeira
vez naquela igreja, pareceu-me que sempre a frequentara.
Mas antes de me confessar quis ir à capelinha lateral
onde tinha entrevisto uma imagem da Virgem. Eu tinha sido desde
o meu nascimento votada à Virgem Santa; minha mãe dizia que
eu era parecida com Ela, com os meus olhos negros e doces.
Sempre amei a Nossa Senhora porque Ela tinha o Seu filho nos
braços e porque este filho feito homem Ih'O tinham morto; e Ela,
que O pôs no mundo e O amou como se ama um filho, muito deve
ter sofrido vendo pregarem-lh'O na cruz. Muitas vezes pensava
que a Virgem, que tinha sofrido tanto, era a única capaz de
compreender os meus pesares; e, quando era pequena, só a Ela
queria rezar, porque só Ela estava à altura de me ouvir.
Depois, a Virgem agradava-me porque me parecia
extremamente diferente de minha mãe, serena, tranquila como
era, ricamente vestida, com olhos que se fixavam em mim
afectuosamente.
Parecia-me que era Ela a minha verdadeira mãe, e não a
minha, sempre ríspida e mal vestida.
Ajoelhei-me, pois, tomei a cara entre as mãos, e de cabeça
baixa fiz uma longa oração à Virgem, pessoalmente para lhe pedir
perdão pelo que tinha feito e para invocar a sua protecção para
mim, para minha mãe e para Gino. Em seguida lembrei-me de que
a ninguém devia guardar rancor e pedi a Sua protecção também
para Gisela, que me traíra, para Ricardo, que por estupidez tinha
ajudado Gisela, e mesmo até para Astárito.
Rezei por Astárito mais tempo que pelos outros, porque
experimentava um ressentimento à sua recordação e queria
anular esse mau sentimento, gostando dele como gostava dos
outros, perdoando-lhe e esquecendo todo o mal que me havia
feito. Acabei por me sentir tão comovida que as lágrimas me
vieram aos olhos. Levantei os olhos para a imagem da Virgem
sobre o altar; as lágrimas faziam como um pequeno véu e a
imagem parecia-me vacilante e bruxuleante como se a visse
debaixo de água; os círios que brilhavam à sua volta faziam uma
poeira dourada, doce à vista mas amarga também, como por vezes
as estrelas que se deseja tocar e se sabe que estão muito longe.
Fiquei muito tempo olhando a Virgem quase sem A ver; em
seguida, as lágrimas rolaram pela minha cara com um formigueiro
amarbo; então vi a Virgem com o Seu Menino nos braços, que me
olhava, o rosto iluminado pela chamazinha dos círios. Tive a
impressão de que era com simpatia e compaixão que Ela me
olhava; agradeci-Lhe com todo o meu coração, e depois.
levantando-me e já serena, fui-me confessar.
O confessionário estava vazio; mas enquanto tomava
alento procurando com os olhos um padre, vi alguém sair por uma
pequena porta à esquerda do altar-mor, passar em frente do altar
fazendo uma genuflexão e, persignando-se, dirigir-se para o outro
lado. Era um frade, não percebi bem de que ordem. Enchi-me de
coragem e chamei-o em voz baixa. Ele voltou-se e veio logo ao meu
encontro. Quando se aproximou vi que era um homem ainda
novo, alto e forte, com um rosto fresco, rosado e viril, enquadrado
por uma ligeira barba loura, olhos azuis e uma testa alta e branca.
Pensei quase involuntariamente que era um homem magnífico,
como é raro encontrar-se, não só numa igreja mas até cá fora, e
senti-me feliz por me ir confessar a ele. Disse-lhe o que desejava
em voz baixa; ele, com um ligeiro sinal de assentimento,
acompanhou-me até ao confessionário.
Entrou e eu ajoelhei-me em frente da grade. Uma placazinha
pregada sobre o confessionário indicava o nome do padre: Élie;
este nome ainda me inspirou mais confiança; entrou, ajoelhou-se,
fez uma breve oração e perguntou:
- Há muito tempo que não se confessa?
- Há quase um ano - respondi.
- É muito tempo... muito tempo... Porquê?
Notei que falava mal o italiano, carregando muito os erres
como fazem os franceses. Dois ou três erros que cometeu
pronunciando à italiana palavras estrangeiras fizeram-me
compreender que era efectivamente francés. O facto de ser
estrangeiro agradou-me também, sem eu saber verdadeiramente
porquê. Talvez porque quando se faz qualquer coisa a que se dá
importância tudo o que nos parece insólito apresenta-se-nos como
um bom agoiro.
Disse-lhe que a longa história que lhe iria contar lhe
explicaria o motivo das interrupções das minhas confissões.
Após um curto silêncio, perguntou-me o que tinha para lhe
dizer. Então, com muito entusiasmo e confiança, contei-lhe as
minhas relações com Gino, a minha amizade com Gisela, o
passeio a Viterbo e a chantagem de Astárito. Enquanto falava não
me podia impedir de pensar no efeito que lhe fariam as minhas
confidências. Este não era um padre como os outros; o seu
aspecto altivo, com ar de homem do mundo, levava-me a
perguntar quais as razões que o teriam levado a tornar-se frade.
Pode parecer estranho que depois da extraordinária emoção que a
minha prece à Virgem me provocara, eu me pudesse distrair ao
ponto de me interessar pelo meu confessor; mas não vejo
contradição entre esta curiosidade e esta emoção. Elas vinham do
fundo da minha alma, onde a devoção e a coquetterie, a aflição e a
sensualidade, faziam uma indissolúvel mistura.
Embora pensasse nele como acabo de dizer, experimentava
uma doce consolação e uma avidez reconfortante por contar tudo.
Tinha a impressão de me afastar cada vez mais da pesada
angústia que me tomara, como uma flor ressequida que recebe
enfim as primeiras gotas de chuva. Comecei por me exprimir
penosamente, com hesitações, depois falei correntemente, e por
fim a minha sinceridade era veemente e cheia de esperança.
Nada omiti, nem mesmo o dinheiro que recebera de Astárito,
os sentimentos que essa oferta me tinham inspirado e o uso que
tencionava fazer ele. Ouviu-me sem fazer nenhum comentário.
Quando acabei declarou :
- Para evitar uma coisa que lhe parecia um prejuízo, quer
dizer, o rompimento do seu noivado, acedeu a praticar uma acção
mil vezes mais grave para si própria...
- É verdade - disse-lhe, palpitante e contente por os seus
dedos delicados me abrirem a alma.
- Na realidade - continuou ele, como se falasse consigo
próprio -, o vosso noivado nada tem a ver com isto...
Entregando-se a esse homem cedeu apenas a um impulso de
avidez.
- É verdade! É verdade!
- Pois bem! Era preferível que o vosso noivado se
desmanchasse a ter feito o que fez.
- Também eu penso assim!
- Não basta pensá-lo. Agora vai casar, é verdade, mas por
que preço? Nunca poderá ser uma esposa honesta.
Estas palavras duras e inflexíveis atingiram-me. Explodi
num grito de angústia:
- Ah! Por isto não! - disse-lhe. - Para mim é como se
absolutamente nada se tivesse passado. Estou certa de que serei
uma esposa honesta!
A sinceridade da minha resposta deve ter-lhe agradado. Fez
uma grande pausa e depois repetiu com uma voz mais doce:
- Sente um arrependimento sincero?
- Ah! Sim! - respondi impetuosamente.
De repente, tive a ideia de que ele me iria impor a devolução
do dinheiro a Astárito. Se bem que já sentisse a pena que me fazia
devolver-lho, nem sequer me passou pela cabeça desobedecer-lhe,
sobretudo porque a ideia viria dele, o que me agradava e me
subjugava de uma maneira singular. Mas, sem fazer a menor
alusão ao dinheiro, ele continuou, na sua voz fria e distante, à
qual a sua pronúncia estrangeira dava apesar de tudo um acento
afectuoso:
- Agora vai casar o mais depressa possível... Regularizar a
sua situação. Deve dizer ao seu noivo que não podem continuar a
encontrar-se assim.
- Já lhe disse.
- E que respondeu ele?
Não pude deixar de sorrir ao pensar no belo rapaz louro que
me fazia esta pergunta do fundo do confessionário escuro.
Respondi, não sem esforço:
- Disse-me que nos casaríamos na Páscoa.
- Era melhor que casassem já... - disse-me, depois de um
momento de reflexão.
E desta vez tive verdadeiramente a impressão de que não era
um padre quem me falava, mas um homem do mundo, cortés, um
pouco aborrecido por ter de se ocupar dos meus assuntos.
- Vem longe a Páscoa !
- Não podemos antes... Tenho de fazer o enxoval e ele tem de
ir à terra para falar aos pais.
- Seja como for - continuou ele -, tem de casar o mais
depressa possível, e até ao dia do casamento deve interromper
completamente todas as relações carnais com o seu noivo... É um
grande pecado! Percebeu?
- Está bem - prometi.
- Promete? - perguntou como se duvidasse. - De qualquer
maneira, fortifique-se contra as tentações pela oração. Procure
rezar.
- Sim... Rezarei.
- Quanto a esse outro homem - prosseguiu -, nunca mais o
deve tornar a ver, seja a que pretexto for... Isso não lhe deve ser
difícil, visto não gostar dele... Se ele insistir e se a procurar, não o
receba.
Respondi-lhe que o faria. Então, depois de algumas
recomendações pronunciadas com voz fria e reticente e ao mesmo
tempo tão agradável de escutar devido ao seu acento estrangeiro e
à cortesia que dele emanava, ordenou-me como penitência que
recitasse todos os dias um certo número de orações e deu-me a
absolvição. Mas antes de ma conceder quis que eu rezasse um
padre-nosso com ele. Aceitei com alegria porque era de má
vontade que me ia embora e porque ainda não me tinha saciado
da sua voz.
- Pai Nosso que estais nos Céus - disse ele.
E eu repeti.
- Pai Nosso que estais nos Céus...
- Venha a nós o Vosso Reino...
- Venha a nós o Vosso Reino...
- Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu...
- Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu...
- O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
- O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
- Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores...
- Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores...
- Não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo o
mal...
-Não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo o
mal...
- Amen.
- Amen.
Transcrevo inteiramente oração para reviver o sentimento
que experimentei ao recitá-la com ele: a impressão de ser
muito pequenina e de que ele me conduzia pela mão de uma frase
à outra. Mas, entretanto, eu pensava no dinheiro que me tinha
dado Astárito e sentia-me quase decepcionada porque ele não me
tinha imposto que o devolvesse. Com efeito, eu teria desejado que
ele mo tivesse ordenado para lhe dar uma prova concreta da
minha boa vontade, da minha obediéncia e do meu
arrependimento, e poder fazer por ele uma coisa que era para mim
um real sacrifício. Acabada a oração, levantei-me. Ele também
saiu do confessionário e fez menção de se ir embora sem me olhar.
Era justo, visto que me tinha feito um ligeiro cumprimento com a
cabeça. Então, quase sem querer e sem reflectir, puxei-lhe a
manga do hábito. Parou e fixou-me com os seus olhos
azuis-claros, frios e serenos. Pareceu-me ainda mais belo, mil
ideias loucas me atravessaram o espírito.
Sonhei que poderia amá-lo; pensei na maneira de lhe
mostrar que ele me agradava. Mas ao mesmo tempo a voz da
minha consciéncia advertiu-me de que estava na igreja, que este
homem era um padre e o meu confessor. Todas estas ideias e
estas lutas me atacaram ao mesmo tempo, produzindo no meu
espírito uma grande confusão: senti-me por momentos incapaz de
falar. Então, depois de uma espera razoável, ele perguntou-me:
- Queria dizer-me mais alguma coisa?
- Queria saber - disse eu - se devo restituir o dinheiro àquele
homem.
Lançou-me um rápido olhar, mas directo e que me atingiu
até ao fundo da alma; depois, disse com brevidade:
- Faz-lhe muita falta?
- Faz, sim.
- Então pode guardá-lo. Mas proceda segundo a sua
consciéncia.
Disse estas palavras num tom seco, como para me indicar
que nada mais havia a dizer, e eu balbuciei um “obrigada”
sem sorrir, olhando-o fixamente nos olhos. Realmente, naquele
momento tinha perdido a cabeça; esperava talvez que, de uma
maneira ou de outra, por um sinal ou por ama palavra, ele me
fizesse compreender que eu não lhe era indiferente. Ele sentiu
com certeza a intenção do meu olhar: ligeiro clarão de espanto
passou no seu rosto. Esboçou um cumprimento, voltou-me as
costas e partiu, deixando-me junto do confessionário confusa e
cheia de perturbação.
Nada disse a minha mãe da minha confissão, como nada lhe
tinha dito sobre o passeio a Viterbo. Eu sabia que ela tinha a
respeito dos padres e da religião ideias bem determinadas.
“Eram - dizia ela - coisas muito belas; mas, entretanto,
os ricos continuavam ricos e os pobres pobres ficavam.” - “Por aí
se vê - concluía - que os ricos sabem rezar melhor do que nós”.
As ideias da minha mãe sobre religião eram as mesmas que
sobre a família e o casamento; fora piedosa e praticante e tudo lhe
tinha corrido mal; por isso já não acreditava. Quando uma vez lhe
disse que a nossa recompensa estava no outro mundo, ela
enfureceu-se e declarou-me que a recompensa a queria já e neste
mundo e que se não a tinha era porque “tudo isso não passava de
mentiras”! Contudo, tendo começado por ser piedosa, ela tinha-me
dado, como já disse, uma educação religiosa. Só no decorrer dos
últimos anos é que mudara de ideias.
No dia seguinte de manhã, quando entrei para o carro de
Gino ele disse-me que os patrões tinham ido para fora por alguns
dias e nós podíamos encontrar-nos na moradia. O meu primeiro
movimento foi de alegria, porque - julgo já o ter dito - amar
agradava-me e gostava de fazer amor com Gino. Mas logo a seguir
lembrei-me da promessa feita ao meu confessor e declarei:
- Não, não posso.
- Porquê?
- Porque não é possível!
- Está bem! - disse com um suspiro de condescendência. -
Então será amanhã...
- Não... amanhã também não... nunca mais!
- Ah! Nunca mais! - repetia ele afectando assombro. - Nunca!
Então penso que ao menos me irás dar uma explicação...
Tinha uma expressão desconfiada e ciumenta.
- Gino - disse-lhe muito depressa... - Amo-te... muito...
Nunca te amei tanto como neste momento... Mas é justamente por
te amar... que acho melhor que até ao dia do nosso casamento
nada haja entre nós, e nada... quero dizer... que não tenhamos
relações.
- Ah! Agora está tudo explicado! - declarou maldosamente. -
Tens medo que eu já não queira casar contigo, hem?
- Não, estou certa de que casarás. Se eu tivesse essa
desconfiança não fazia todos estes preparativos... Não teria gasto o
dinheiro que a minha mãe levou toda a sua vida a pôr de lado.
- Oh! Como tu pões nos píncaros esse dinheiro da tua mãe!
- disse-me.
Depois, tornando-se tão desagradável que nem o reconhecia:
- Então, porquê?
- Fui-me confessar e o meu confessor proibiu-me de ter
relações contigo até que estejamos casados.
Ele fez um gesto de desapontamento e soltou uma
exclamação de teve em mim o efeito de uma praga.
- Mas com que direito é que esse padre vem meter o nariz
nas nossas coisas?
Preferi não lhe responder. Ele insistiu:
- Então, porque não respondes?
- Nada mais tenho para dizer.
Sem dúvida que eu lhe devia ter parecido inflexível, porque
de repente, mudando de ideias, declarou:
- Está bem, está! Então queres que te leve outra vez para a
cidade?
- Como quiseres.
Devo dizer que foi esta a única vez que ele foi pouco gentil e
desagradável para mim. No dia seguinte parecia resignado e
mostrou-se como sempre tinha sido: afectuoso, cortês e amável.
Continuámos a ver-nos todos os dias, como de costume;
somente não nos possuíamos e limitávamo-nos a conversar. De
tempo a tempo, dava-lhe um beijo, coisa que ele tinha resolvido
nunca mais me pedir. Parecia-me que beijá-lo não era pecado,
porque, no fim de contas, éramos noivos e casaríamos em breve.
Quando me recordo desses dias imagino que se Gino se
resignou tão depressa a esse papel de noivo respeitador foi com
a esperança de que as nossas relações arrefecessem gradualmente
e lhe fosse possível levar as coisas a um rompimento definitivo.
Depois de longos e extenuantes dias de noivado, acontece a
muitas raparigas encontrarem-se livres sem outra perda que a da
sua juventude evaporada. Com esta ordem do meu confessor,
ofereci-lhe sem o saber o pretexto que ele procurava para relaxar
as nossas relações. Como ele tinha um carácter egoísta e fraco, e
como o prazer que lhe davam as nossas intimidades era mais forte
do que a vontade de me abandonar, por ele nunca teria tido
coragem para o fazer. Mas a intervenção do confessor permitiu-lhe
adoptar uma solução hipócrita e aparentemente desinteressada.
Ao fim de algum tempo, começou a encontrar-se comigo
menos frequentemente; não todos os dias, mas dia sim dia não.
4Percebi que o trajecto dos nossos passeios de
automóvel encurtava gradualmente e que ele cada vez dava menos
atenção às minhas conversas sobre o casamento. Mas, mesmo
dando-me conta, embora obscuramente, de todas estas mudanças
de atitude, de nada suspeitava, não só porque estas mudanças
se iam processando quase insensivelmente, mas também porque
ele continuava a portar-se comigo da forma habitual: afectuoso e
gentil. Um dia, por fim, tomou um ar contrito e anunciou-me que,
por razões de família, a data do nosso casamento tinha de ser
adiada.
- Isso contraria-te muito? - acrescentou, ao verificar que eu
não comentara a novidade e me limitava a olhar em frente, com
um ar amargo e sonhador.
- Não, não! - disse contendo-me. - Não tem importáncia...
paciência... assim terei tempo de acabar o meu enxoval.
- É absolutamente falso! Contraria-te e muito! Ele tinha
curiosidade em saber até que ponto o atraso do casamento me
desgostava.
- Já te disse que não.
- Então se isso não te contraria, quer dizer que não me amas
sinceramente e que no fundo talvez até não te contrariasse se não
nos casássemos?
- Não digas isso! - proferi com pavor. - Para mim seria uma
coisa terrível! Nem quero pensar!
Nesse mesmo momento não compreendi a expressão que o
seu rosto tomou. Com efeito, ele quis ver até que ponto eu ainda
estava interessada nele e percebeu com grande desapontamento
4
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção
de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes
Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
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recebê-lo em nosso grupo.
que o meu sentimento por ele era ainda muito forte.
Se o adiamento do meu casamento não levantou suspeitas
no meu espírito confirmou a impressão de minha mãe e de Gisela.
Minha mãe não fez comentários imediatos; isso acontecia-lhe às
vezes, e esta atitude era estranha, atendendo ao seu carácter
impulsivo e violento. Mas uma noite, depois de me servir o jantar,
como habitualmente, de pé, em silêncio, eu fiz já não sei bem que
alusão ao meu casamento. Então ela declarou:
- Tu sabes como chamavam no meu tempo às raparigas,
como tu, que estão sempre à espera de se casar e nunca o
conseguem?
Empalideci e o meu coração deixou de bater.
- Como? - perguntei-lhe.
- A rapariga da despensa! - disse calmamente minha mãe. -
Ele guarda-te na despensa como um resto de carne assada... Em
determinada altura, à força de estar guardada na despensa, a
carne estraga-se. Então, deita-se fora!
Tive um acesso de raiva e gritei:
- Não é verdade! Apesar de tudo, é a primeira vez que nós
adiamos... e apenas por alguns meses... A verdade é que tu
detestas o Gino por ele não ter dinheiro e ser chauffeur.
- Eu não detesto ninguém.
- Sim, tu detesta-o... e também te arrependeste de teres dado
o teu dinheiro para o nosso quarto. Mas não tenhas medo...
- Minha filha, o amor torna-te idiota!
- Não tenhas medo - disse eu. - Todas as coisas que faltam
ele as pagará... e serás reembolsada das que comprámos com o
teu dinheiro. Olha!
E, levada pela minha exaltação, abri a mala e mostrei as
notas que Astárito me tinha dado.
- É dinheiro dele! - continuei.
Estava tão doida por ele que ao dizer estas mentiras quase
tinha a impressão de que era verdade.
- Foi ele quem me deu estas notas, e ainda tem mais! O seu
olhar caiu sobre o dinheiro; o seu rosto tomou uma expressão tão
arrependida e vexada que me encheu de remorsos. Havia já muito
tempo que não a tratava tão mal e ao mesmo tempo apercebia-me
de que acabara de dizer uma mentira e que no fim de contas este
dinheiro não tinha sido o Gino quem mo havia dado. Sem dizer
uma palavra, levantou a mesa, levou os pratos e saiu. Vi-a de
costas, de pé, em frente do lava-louça, passando os pratos por
água e pondo-os um a um sobre o mármore, para que secassem.
Com a cabeça baixa e os ombros ligeiramente curvados,
inspirou-me uma violenta piedade.
Impetuosamente, deitei-lhe os braços à roda do pescoço
e desculpei-me :
- Perdoa ter-me excedido nas coisas que te disse. Não as
pensei... Mas quando começas a falar de Gino fazes-me perder a
cabeça.
- Então! Então! Deixa-me! - dizia fingindo esforçar-se por se
desembaraçar de mim.
- É preciso que compreendas - acrescentei com paixão. - Se
Gino não casa comigo.. mato-me ou “vou fazer a vida”!
Gisela acolheu a noticia do adiamento do meu casamento
pouco mais ou menos como minha mãe. Estávamos no seu quarto
mobilado: eu, toda vestida, sentada na borda da cama, ela, em
camisa, sentada diante do toucador, a pentear-se. Deixou-me falar
até ao fim, sem fazer comentários, depois disse-me, triunfante e
calma:
- Verás que eu tinha razão!
- Porquê?
- Ele não quer casar contigo, nem casará... Por agora não é
na Páscoa, é no Dia de Todos-os-Santos. Do Dia de
Todos-os-Santos passará para o Natal... Um belo dia, acabarás tu
própria por compreender, e serás tu a deixá-lo.
Estas palavras faziam-me pena e tornavam-me furiosa. Mas,
num certo sentido, eu já me tinha vingado na minha mãe. E
depois, se eu tivesse dito o que pensava, teria que cortar relações
com Gisela, e eu não o queria fazer, porque apesar de tudo era a
minha única amiga. Ter-lhe-ia respondido que ela não queria que
eu me casasse porque sabia que Ricardo nunca casaria com ela.
Esta era a verdade, mas uma verdade muito dura de ouvir, e não
me parecia justo ferir Gisela unicamente porque, logo que ela me
falava de Gino, se deixava levar - talvez com sentido de defesa -
por um vil sentimento de inveja e ciúme. Limitei-me pois a
retorquir-lhe :
- Queres que nunca mais falemos disto? A ti, no fundo, que
te importa que eu me case ou não? E a mim não me dá prazer
voltar ao assunto.
Gisela levantou-se bruscamente do toucador e veio sentar-se
na cama, ao meu lado:
- Que me importa a mim, dizes tu? - protestou com
vivacidade.
Depois, passando-me o braço em volta da cintura:
- A mim, pelo contrário, faz-me raiva que te pretendam
prejudicar!
- Mas isso não é verdade! - disse eu em voz baixa.
- Queria ver-te feliz - prosseguiu.
Calou-se um momento, depois perguntou, como que por
acaso:
- A propósito... Astárito atormenta-me constantemente para
te tornar a ver... Diz que não pode viver sem ti... Está realmente
preso... Queres marcar-lhe um encontro?
- Não me fales de Astárito! - respondi-lhe.
- Reconheceu que se portou mal contigo, naquele dia, em
Viterbo - continuou - mas no fundo ama-te e está pronto e reparar
a sua falta de correcção.
- A única maneira que ele tem de a reparar é nunca mais
me aparecer!
- Vamos! Vamos! Além disso, é um homem sério e que te
ama muito... Ele quer absolutamente ver-te, falar-te... Porque não
se encontram vocês num café, por exemplo, na minha presença?
- Não! - disse eu com decisão. - Não o quero tornar a ver.
- Vais arrepender-te.
- Vai tu com ele... com o Astárito!
- Eu? Ia já, minha filha! É um homem generoso, que não
olha ao dinheiro... Mas é a ti que ele quer... realmente uma ideia
fixa.
- Está bem! Mas eu nada quero dele.
Insistiu ainda muito a favor de Astárito, mas não me deixei
convencer. No cúmulo do meu desejo desesperado de me casar
e de ter família, estava firmemente decidida a não me deixar
seduzir, nem pela razão, nem pelo dinheiro. Tinha esquecido até o
frémito de prazer que Astárito me tinha provocado quando me
introduzira à força aquele dinheiro na mão quando regressávamos
de Viterbo. Como aconteceu frequentemente, era justamente
porque receava que Gisela e minha mãe tivessem razão e que, por
um motivo ou por outro, o meu casamento não se realizasse, que
eu me agarrava à ideia desse casamento com uma esperança
ainda mais forte e encarniçada.
6
Enquanto esperava, tinha pago todas as prestações dos
meus móveis e pusera-me a trabalhar mais que nunca para
ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manhã
posava no atelier e à tarde fechava-me no grande quarto com
minha mãe para trabalhar até à noite. Ela cosia à máquina junto
da janela, e eu, sentada à mesa, ao pé dela, cosia à mão. Minha
mãe tinha-me ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu
desde o princípio me mostrara muito jeitosa e rápida. Havia
sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar
em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e
tão em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para
homem era a nossa especialidade, mas às vezes acontecia ter de
confeccionar qualquer camisa ou combinação ou cuecas de
mulher, sempre coisas vulgares, não só porque minha mãe não
seria capaz de fazer coisas delicadas, mas também porque não
conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o
meu espírito perdia-se em divagações sobre Gino, o casamento, o
meu passeio a Viterbo, minha mãe - a minha vida, em suma -, e o
tempo passava depressa. O que pensava minha mãe nunca o
soube, mas era bem certo que o seu cérebro estava ocupado,
porque, enquanto trabalhava à máquina, tinha de tempo a tempo
uma expressão furiosa, e se eu lhe falava nessa altura
respondia-me mal. Para a noite, quando começava a escurecer, eu
limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter
com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim
própria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque
desejava ardentemente qualquer coisa que considerava próxima e
possível. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem
quando, já não há esperança; torna-se então inútil passar bem ou
mal e de nada se precisa.
Mais de uma vez, no decurso deste período, apercebi-me de
que Astárito me seguia na rua. Ia para o atelier de manhã muito
cedo. Habitualmente Astárito, imóvel, num vão de escada, no
outro lado da rua, esperava que eu saísse. Nunca atravessava e
enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praça. junto
das casas, ele limitava-se a seguir-me do outro lado, mais
devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso
bastava-lhe: era bem a imagem de um homem perdidamente
apaixonado. Quando eu chegava à praça, ele ia postar-se na
paragem do eléctrico fronteira àquela em que eu estava.
Continuava a observar-me, mas se eu deitava uma olhadela
para o seu lado isso bastava para que disfarçasse e olhasse para a
frente, fingindo interessar-se pela chegada do meu eléctrico.
Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor
como aquele; embora firmemente decidida a não lhe tornar a falar,
experimentava por vezes uma espécie de compaixão lisonjeada.
Depois Gino chegava no carro, ou às vezes no eléctrico. E quando
eu subia, fosse para o automóvel, fosse para o eléctrico, Astárito
ficava no seu refúgio a ver afastar-me.
Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala
grande e encontrei Astárito, de pé, o chapéu na mão, apoiado à
mesa e conversando com minha mãe. Quando o vi em minha casa,
à ideia de tudo o que ele poderia ter dito à minha mãe para a
persuadir a intervir a seu favor, esqueci toda a compaixão e fui
tomada de raiva.
- Que faz o senhor aqui? - perguntei.
Olhou-me e vi na sua cara a mesma expressão convulsa e
trémula que tivera no carro quando íamos a caminho de Viterbo e
me dissera que eu lhe agradava. Mas desta vez ele nem conseguia
falar.
- Este senhor diz que te conheceu e que queria
cumprimentar-te - começou minha mãe em ar confidencial.
Pelo seu tom compreendi que Astárito lhe falara exactamente
no sentido que eu pensava e que talvez até mesmo lhe tivesse
dado dinheiro.
- Tu - declarei a minha mãe - vais fazer o favor de te
retirares!
A minha voz, quase selvagem, assustou-a: saiu, sem dizer
palavra, para o lado da cozinha.
- Que faz o senhor aqui? - disse de novo a Astárito. Vá-se
embora!
Olhou-me, pareceu mover os lábios, mas nada disse. Tinha
os olhos revirados sobre as pálpebras, vendo-se quase o branco;
cheguei a pensar que fosse desmaiar.
- Vá-se embora! - repeti, batendo com o pé no chão. Ou
então chamo gente... Chamo um dos meus amigos que mora cá
em baixo.
Muitas vezes depois perguntei a mim mesmo porque não
fizera Astárito chantagem pela segunda vez: porque não me teria
ele ameaçado, se eu não cedesse, de contar a Gino o que se
tinha passado em Viterbo. Esta chantagem seria doravante muito
mais bem sucedida, pois que me tinha de facto possuído, e havia
testemunhas que não me permitiriam negar. Concluí que da
primeira vez me tinha apenas desejado, mas que da segunda era
realmente impelido pelo amor. O amor quer ser retribuído, e se
Astárito me amava devia sentir quanto era insuficiente para ele
possuir-me como naquele dia em Viterbo, muda, inerte, como
morta. Por outro lado, daquela vez eu estava bem decidida a
declarar a verdade; depois de tudo, se Gino me amava, devia
compreender e perdoar-me. A minha atitude resoluta convenceu
certamente Astárito da inutilidade de segunda chantagem.
A minha ameaça de chamar gente nada respondeu, mas
pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta. Quando chegou perto,
baixou a cabeça e pareceu recolher-se um momento, para falar.
Levantou os olhos para mim remexendo os lábios, mas toda
a coragem pareceu abandoná-lo; olhou-me fixamente e ficou
mudo.
Este segundo olhar pareceu-me muito longo. Acabou por
esboçar com a cabeça um cumprimento e saiu fechando a porta.
Fui depois, furiosa, à cozinha e perguntei a minha mãe:
- Que disseste a esse homem?
- Eu? Nada! - respondeu ela, assustada. - perguntou-me a
que género de trabalho nos entregávamos e disse-me que queria
mandar fazer umas camisas.
- Se vais a casa dele, mato-te - gritei-lhe.
Olhou-me com olhar apavorado e respondeu:
- Não é preciso lá ir! Pode muito bem mandar fazer as suas
camisas a outra pessoa!
- Não te falou de mim?
- Perguntou-me quando te casavas.
- E tu, que lhe respondeste?
- Que te casavas em Outubro.
- Não te deu dinheiro?
- Não. Porquê? - perguntou fingindo admiração. - Devia
dar-mo?
Pelo tom da sua voz adquiri a convicção de que Astárito
lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segurei-lhe violentamente o
braço.
- Diz a verdade! Ele deu-te dinheiro! - gritei-lhe.
- Não. Não me deu.
Ela conservava a mão no bolso do avental. Apertei-lhe o
pulso com uma violência terrível e vi saltar do bolso ao mesmo
tempo que a mão uma nota de banco dobrada em duas. Assim que
a deixei, ela curvou-se para a apanhar com uma tal avidez, uma
tal cobiça, que a minha fúria cessou. Lembrei-me da emoção e da
felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de
Astárito em Viterbo. Senti que não tinha o direito de condenar
minha mãe por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e
ceder às mesmas tentações. Naquela altura teria preferido nada
ter perguntado, nem ter visto aquela nota.
Limitei-me a observar com voz normal:
- Afinal, sempre to tinha dado!
E sem esperar mais explicações saí da cozinha. Ao
jantar, algumas suas alusões fizeram-me compreender que
desejava tornar a falar de Astárito e do dinheiro. Mas eu desviei a
conversa e ela não insistiu.
No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo à pastelaria onde
habitualmente nos encontrávamos. Ainda não se tinha sentado e
já me dizia sem mais preâmbulos:
- Hoje tenho de falar-te de uma coisa muito importante.
Uma espécie de pressentimento obrigou-me a olhá-la
exangue.
- Se é uma má notícia - supliquei-lhe com voz branda -
peço-te que não ma dês.
- Não é boa, nem é má - respondeu vivamente. - É uma
notícia... eis tudo. Já te disse que Astárito...
- Não quero ouvir falar mais de Astárito.
- Mas ouve... não sejas criança. Pois, como te disse, o
Astárito é um homem importante.. um graúdo da polícia e da
política.
Senti-me um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de
política.
Declarei sem esforço:
- Mesmo que esse Astárito fosse ministro, para mim era a
mesma coisa!
- Uff! Como tu és... Ouve em vez de me interromperes!
- declarou Gisela. - Astárito disse-me que era absolutamente
necessário que fosses ter com ele ao ministério... precisa de
falar-te... mas não de amor - acrescentou rapidamente. - Precisa
de falar-te de uma coisa muito importante... De uma coisa que te
diz respeito.
- Que me diz respeito?
- Sim... é para teu bem... pelo menos foi o que ele me disse.
Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite
de Astárito, apesar de todas as minha resoluções contrárias? Nem
eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:
- Está bem. Irei.
Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha
passividade.
Foi então que se apercebeu da minha palidez e do meu ar
assustado:
- Que tens? - disse-me. - Porque é da polícia? Mas nada tem
contra ti! Nenhuma intenção tem de te prender.
Levantei-me, embora me sentisse vacilante.
- Está bem - repeti. - Irei; qual é o ministério?
- O Ministério do Interior. Mesmo em frente do Supercinema.
Mas ouve...
- A que horas?
- Por toda a manhã... Mas ouve...
- Até logo.
Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixão, não
atingia o que Astárito me podia querer, mas um pressentimento
que me parecia infalível dizia-me que nada podia ser de bom. O
lugar onde me tinha chamado fez-me supor que o assunto devia
ter alguma ligação com a polícia. Por outro lado, eu sabia, como
sabem todos os pobres, que logo que a polícia se mete nalguma
coisa nunca é por bem. Depois de examinar minuciosamente a
minha conduta, acabei por concluir que Astárito queria exercer
sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informação que
obtivera sobre a vida de Gino. Eu não conhecia a vida de Gino; era
possível que ele se tivesse comprometido politicamente.
Nunca me ocupara de política, mas não era parva a ponto de
ignorar que havia muita gente que não suportava o regime fascista
e que homens da profissão de Astárito eram precisamente
encarregados de dar caça a esses inimigos do governo. A minha
imaginação pintava de cores negras o dilema diante do qual
Astárito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A
minha angústia baseava-se no facto de eu não querer de modo
algum ceder a Astárito, mas tão-pouco permitir que metessem
Gino na prisão. Quando fazia estas reflexões não experimentava
qualquer compaixão por Astárito; odiava-o, simplesmente.
Parecia-me um homem desprezível e baixo, indigno de viver, que
era preciso punir impiedosamente! Entre outras soluções, a ideia
de matar Astárito vinha-me com facilidade ao espírito. Mas, mais
do que uma solução, era uma divagação mórbida da insónia; e de
facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em
decisões objectivas e firmes, acompanhou-me até ao romper do
dia. Via-me a pôr na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda
com que minha mãe descascava as batatas; procurar Astárito;
ouvia-o dizer-me o que eu imaginara e com toda a força do meu
braço forte cravava-lhe a minha faca no pescoço, entre a orelha e
o seu alto colarinho de goma. Imaginava-me a sair da sala,
fingindo a maior calma e correr a refugiar-me em casa de Gisela,
ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo ardendo nestas
visões sanguinárias, sabia que nunca seria capaz de fazer uma
coisa semelhante; tenho horror ao sangue; tive sempre horror em
fazer mal aos outros, e o meu carácter leva-me mais a
submeter-me à violência que a cometê-la.
De madrugada dormitei um pouco. O dia nasceu;
levantei-me e dirigi-me ao meu encontro habitual com Gino. Logo
que nos encontrámos na nossa avenida dos arredores, depois de
algumas palavras de conversa, esforcei-me por dar à minha voz
uma entoação banal e perguntei:
- É verdade... nunca te interessaste por política?
- Por política? Que queres dizer?
- No sentido de ter feito qualquer coisa contra o governo?
Olhou-me com um ar de entendimento e perguntou por sua
vez:
- Mas diz-me lá, achas que eu tenho ar de cobarde?
- Não, mas...
- Responde primeiro. Tenho ar de cobarde?
- Não - respondi-lhe -, nada disso me pareces. Somente. . .
- Então por que diabo queres tu que me ocupe de política?
- Não sei. É que muitas vezes...
- Não comigo. A esses que te insinuaram isso podes
dizer-lhes que Gino Molinari não é um cobarde.
Próximo das onze horas, depois de ter rondado mais de uma
hora em volta do Ministério sem me decidir a entrar.
apresentei-me ao contínuo e perguntei por Astárito. Primeiro subi
uma comprida escada de mármore, depois outra escada mais
pequena, mas também comprida, depois, por largos corredores,
acompanhou-me a uma antecâmara para onde davam três portas.
Estava habituada a ligar à palavra polícia a visão de locais
minúsculos e repugnantes de comissariados de bairros; fiquei
estupefacta com o luxo das repartições onde trabalhava Astárito.
A antecâmara era um verdadeiro salão, com o chão de mosaico e
velhos quadros nas paredes, como eu estava habituada a ver nas
igrejas; grandes sofás estavam dispostos ao longo da parede e o
centro era ocupado por uma mesa maciça.
Intimidada por tanto luxo, não pude deixar de pensar que
Gisela tinha razão: Astárito devia ser realmente uma pessoa
importante. E esta importância de Astárito foi-me bruscamente
confirmada por um facto inesperado. Tinha acabado de me sentar
quando uma das três portas se abriu e vi sair uma senhora muito
alta e de uma grande beleza, mas muito nova, elegantemente
vestida de preto, com um véu sobre a cara.
Astárito seguia-a. Julgando que chegara a minha vez,
levantei-me. Astárito, fazendo-me um gesto com a mão, para me
indicar que já me vira mas que ainda não era a minha altura,
continuou a conversar com a senhora no limiar da porta. Em
seguida, depois de a ter acompanhado até ao meio da sala e de se
ter despedido dela inclinando-se e beijando-lhe a mão, fez um
sinal para chamar outra pessoa que estava sentada ao meu lado
na antecámara; um velhote de lunetas e barbicha branca, todo
vestido de preto, que tinha aspecto de professor. Ao sinal de
Astárito levantou-se logo, servil e submisso, e precipitou-se para
ele. Os dois homens desapareceram no gabinete e fiquei de novo
só.
O que mais me impressionou no decurso desta breve
aparição de Astárito foi a diferença entre os seus modos de agora e
os que tivera durante o nosso passeio a Viterbo. Tinha-o visto
nessa altura embaraçado, convulso, mudo, trémulo; agora
aparecera-me extremamente senhor de si mesmo, cheio de
presença, com um ar de superioridade ao mesmo tempo
autoritária e discreta. Até mesmo a voz mudara. Durante o
passeio falara-me em voz baixa, quente e estrangulada, e a sua
voz enquanto falava à senhora do véu tinha um timbre claro, frio,
amável e tranquilo. Estava vestido de cinzento-escuro, como de
costume, com um alto colarinho de goma que dava à sua cabeça
qualquer coisa de fixo; mas agora o fato e os colarinhos que eu
notara no decurso do passeio sem me impressionar pareciam-me
inteiramente de harmonia com o lugar: os móveis, maciços e
severos, as vastas proporções da sala, o silêncio e a ordem que
reinavam ali era como se tudo fosse um uniforme. “Gisela tinha
razão - pensava eu de novo -, este deve ser realmente uma
personagem de marca; só o amor pode explicar os seus modos
embaraçados e o sentimento constante de inferioridade nas suas
conversas comigo.” Estas observações fizeram-me esquecer a
minha primeira atrapalhação, e quando, ao fim de alguns
minutos, a porta se abriu para deixar sair o velho, sentia-me
suficientemente segura de mim. Desta vez, porém, Astárito não
apareceu à porta para me convidar a entrar. Uma campainha
retiniu, um contínuo entrou no gabinete de Astárito, fechando a
porta atrás dele, reapareceu, aproximou-se de mim e,
informando-se do meu nome em voz baixa, disse-me que podia
entrar. Levantei-me e avancei sem pressa.
O gabinete de Astárito era uma sala quase tão grande como
a antecâmara. Esta sala estava vazia, à parte um divã e dois
fauteuils de couro num canto, e noutro canto uma mesa atrás da
qual Astárito estava sentado. Por duas janelas veladas por
cortinas brancas entrava na sala um dia frio, sem sol, silencioso e
triste, que me fez pensar na voz de Astárito a falar com a senhora
do véu. Havia um grande tapete no chão e dois ou três quadros
nas paredes. Lembro-me de que um deles representava um prado
verde que se estendia até à linha do horizonte limitado por
montanhas rochosas. Astárito, como já disse, estava sentado à
mesa; quando entrei, levantou os olhos de uns autos que estava a
ler ou fingindo que lia. Eu disse “fingindo” porque tive logo a
seguir a certeza de que era uma comédia com o fim de me
intimidar e de me fazer sentir a sua autoridade e a sua
importância. Com efeito, quando me aproximei da mesa vi que a
folha que examinava com tanta atenção não continha mais que
três ou quatro linhas rabiscadas à pressa. De mais a mais, a mão
em que apoiava a testa e que segurava o cigarro aceso com dois
dedos revelava a sua perturbação por uma tremura bem visível.
Esta tremura tinha feito mesmo cair um pouco de cinza sobre a
folha que ele lia com uma atenção muito marcada e cheia de
artifício.
Pousei a mão na borda da mesa e disse-lhe:
- Cá estou!
Como se estas palavras fossem um sinal, deixou de ler,
levantou-se muito devagar e veio dar-me os bons-dias,
pegando-me nas mãos. Mas tudo isto num silêncio que muito
contrastava com a atitude autoritária que se esforçava por
conservar. Na realidade, como depressa compreendi, só a minha
voz foi suficiente para lhe fazer esquecer o papel que se preparara
para representar, e a sua perturbação habitual tomou-o de novo
irresistivelmente. Beijou-me as mãos, primeiro uma, depois outra,
olhando-me com os olhos ávidos e melancólicos e fez mençâo de
falar; mas os seus lábios tremeram e durante um momento
guardou siléncio.
- Tu vieste! - disse por fim com a voz que eu conhecia, baixa
e estrangulada.
Agora - talvez por contraste à sua atitude - sentia-me
completamente descansada.
- Sim - disse-lhe -, vim. Na realidade não devia... Que tem
para me dizer?
- Vem. Senta-te ali - murmurou.
Não me tinha largado a mão, que apertava com força.
Levando-me pela mão, conduziu-me até junto do divã. Sentei-me,
mas ele de repente ajoelhou-se diante de mim, abraçou-me as
pernas e apoiou a cabeça nos meus joelhos. Tudo isto em silêncio
e tremendo de desejo. Apoiava a fronte com tal força contra mim
que me fazia doer; depois de um momento de imobilidade,
levantou a sua cabeça calva como se a quisesse entalar entre os
meus joelhos. Então fiz menção de me levantar e disse-lhe:
- Tinha uma coisa importante para me dizer. Diga-me,
senão vou-me embora.
A estas palavras levantou-se com grande esforço, sentou-se
a meu lado, tomou-me a mão e murmurou:
- Não era nada... Queria tornar a ver-te.
Fiz novamente menção de me levantar; reteve-me e
continuou:
- Sim... E depois queria dizer-te que é preciso que nos
entendamos de vez.
- De que maneira?
- Amo-te! - disse vivamente. - Amo-te tanto! Vem viver para
minha casa; serás a dona da casa... como se fosses a minha
mulher. Comprar-te-ei vestidos, jóias, tudo o que quiseres...
Parecia ter perdido a cabeça; os lábios ficavam imóveis e
como estendidos, as palavras saíam-lhe desordenadamente.
- Ah! Foi para isto que me fez vir aqui? - perguntei-lhe
friamente.
- Não queres?
- Isso agora não está em causa!
Coisa estranha, depois desta resposta nada mais disse, mas
largou a mão e, fascinando-me quase com o seu olhar desvairado
e fixo, acariciou-me a cara como se quisesse reconhecer um
desenho. Os seus dedos eram leves e eu sentia a sua tremura
enquanto eles me contornavam a cara, da testa à face e da face à
testa. Era um gesto de homem verdadeiramente apaixonado e tal é
a força persuasiva do amor, mesmo quando não se lhe quer
corresponder, que durante um momento senti-me quase
impulsionada a dizer-lhe, por piedade, algumas palavras menos
duras e menos definitivas. Mas ele não me deu tempo. A carícia
acabou e ele levantou-se protestando, num curioso tom empolado
e pedante, onde se notava ao mesmo tempo a perturbação do
desejo e não sei que zelo inesperado:
- Espera... é verdade... tenho uma coisa importante para
dizer-te.
Dito isto, foi à mesa e pegou num caderno encarnado. Foi a
minha vez de me perturbar quando o vi avançar para mim com o
fascículo na mão.
- Que é isso? - perguntei com um fio de voz.
- ... é... - que coisa curiosa o tom da sua voz autoritária e
oficial misturado com a excitação! - ... é uma informação que diz
respeito ao teu noivo.
- Ah ! - fiz eu.
E durante um instante, mortalmente assustada, fechei os
olhos.
Astárito não deu por isso; folheou o caderno, cujas folhas
rangiam com a sua agitação.
- Gino Molinari, não é?
- Sim.
- E vais casar com ele em Outubro, não é?
- Sim.
- Mas eu verifico que Gino Molinari é casado - continuou ele
-, e, para ser mais preciso, com Antonieta Partini, filha de Emílio
Partini e de Diomira Lavagne, há quatro anos, e que têm uma
pequenita chamada Maria. Presentemente a mulher vive em
Orvieto, em casa da mãe.
Eu não pronunciei palavra; levantei-me do divã e dirigi-me
para a porta, Astárito ficou de pé, no meio da sala, com o caderno
nas mãos. Abri a porta e saí.
Lembro-me de que logo que me encontrei na rua, naquele
dia doce e enevoado de um Inverno ameno, tive a amarga mas
certa impressão de que a minha existência - após uma
interrupção às minhas aspirações de vida conjugal e aos meus
preparativos - recomeçava a seguir o seu curso, como um rio, que,
desviado por qualquer acidente, volta ao seu velho leito e
recomeça a correr como dantes, sem novidade nem mudanças.
Podia ser que esta impressão proviesse do facto de, no meu
desvairamento, olhar à minha volta com olhos, de ora em diante,
incertos e que a multidão, as lojas, os veículos, me aparecessem
pela primeira vez depois de tantos meses com o seu aspecto
impiedosamente normal; nem bonitos, nem feios, nem
interessantes, nem insignificantes, exactamente como eles eram,
tal qual deviam aparecer aos bêbados depois de lhes ter passado a
embriaguez. Mas podia ser também, e era o mais provável, que a
sensação proviesse da verificação de que a vida normal não eram
os meus projectos de felicidade, mas sim o contrário, quer dizer,
todas as coisas contrárias aos planos e aos programas, todas as
coisas que se revelavam defeituosas e imprevisíveis, que provocam
decepção e dor. Se assim era - e parecia-me bem que seria -,
qualquer dúvida que, após uma bebedeira de alguns meses, eu
ainda tivesse nessa manhã tinha revivido.
Tal foi a única ideia que me inspirou a falsidade de Gino.
Não sonhei sequer condená-lo e tive a impressão de nenhum
verdadeiro rancor alimentar por ele. Eu não fora lançada numa
armadilha sem cumplicidade da minha parte; a recordação do
prazer que sentira nos braços de Gino era demasiado recente para
que não encontrasse, senão justificação, pelo menos desculpas
para a sua mentira. Pensava que, cego pelo desejo, ele fora mais
fraco que mau; que a falta, se a havia, estava na minha beleza,
que fazia andar à roda a cabeça dos homens e os fazia esquecer
todos os escrúpulos e o dever. Gino no fim de contas não era mais
culpado que Astárito, salvo que ele recorrera à mentira, ao passo
que Astárito preferira a chantagem. Os dois amavam-me tanto
quanto era possível; certamente que, se tivessem podido, eles
teriam usado, para me possuir, de meios lícitos e ter-me-iam
assegurado a modesta felicidade que eu punha acima de tudo.
Mas a fatalidade quisera que com a minha beleza eu tentasse os
homens que não me podiam dar essa felicidade. Infelizmente, se
era verdade que ele tinha sido realmente culpado, era bem certo
que havia uma vítima, e que essa vítima era eu.
Pode ser que esta maneira de sentir pareça fraca depois de
uma traição como a de Gino. Mas cada vez que eu era ofendida - e
lembro-me de o ser muitas vezes pela minha pobreza, a minha
inocência e o meu isolamento - experimentava sempre o desejo de
desculpar o ofensor e esquecer o agravo o mais depressa possível.
Se a ofensa determina em mim qualquer mudança, essa mudança
não se manifesta nem na minha atitude nem no meu aspecto
exterior: actua mais profundamente na minha alma, que se fecha
mais, tal como uma carne sã com uma boa circulação sanguínea
consegue por si, depois do ferimento, cicatrizar mais depressa.
Mas as cicatrizes ficam: e as mudanças, embora inconscientes, da
alma são sempre definitivas.
Foi o que me aconteceu com Gino. Não senti nem sequer um
momento de rancor contra ele, mas compreendi que em mim
própria muitas coisas se tinham subvertido e quebrado para
sempre: a minha estima por ele, a minha esperança de arranjar
uma família, a minha vontade de não ceder nem a Gisela nem a
minha mãe, a minha fé religiosa, ou pelo menos o género de fé que
tivera até ali: comparei-me a uma das minhas bonecas do tempo
em que eu era rapariguinha: depois de as ter amachucado e
martirizado durante todo o dia, a sua cara risonha e rosada ficava
intacta e eis que um ruído de molas partidas vinha de dentro do
seu corpo, com um chocalhar de mau agouro. Virava-as de cabeça
para baixo, e então, pelo pescoço, via cair fragmentos de
porcelana, as molas e as peçazinhas do mecanismo que as faziam
falar, mexer os olhos, e também misteriosos bocadinhos de
madeira e de fazenda dos quais nunca consegui descobrir a
utilidade.
Aturdida mas tranquila, entrei em casa e fiz de tarde as
mesmas coisas que habitualmente executava, sem dizer a minha
mãe o que se tinha passado, não lhe confiando as conseqüências
que esse facto me traria. Apercebi-me de que era impossível levar
a dissimulação ao ponto de trabalhar no meu enxoval como nos
outros dias; pegando nas peças prontas e nas que ainda tinha por
acabar fui fechá-las à chave no armário do meu quarto. Minha
mãe notou a minha tristeza, coisa rara em mim, que sou por
hábito estouvada e alegre; mas disse-lhe que estava fatigada e era
verdade. Ao entardecer, enquanto minha mãe cosia à máquina,
larguei a minha costura, fui para o meu quarto e estendi-me em
cima da cama. Reparei que olhava os meus móveis já pagos, e por
mim, graças ao dinheiro de Astárito, com olhos bem diferentes dos
de outrora, sem alegria e sem esperança. Não sentia dor, mas
simplesmente a lassidão e a indiferença que se experimentam
depois de um grande esforço completamente inútil. De resto
estava fisicamente cansada; tinha os membros partidos.
Invadiu-me um grande desejo de repousar.
Pensando vagamente nos meus móveis e na impossibilidade
de agora em diante os usar como esperava, adormeci quase
a seguir, deitada vestida sobre a minha cama. Dormi talvez umas
quatro horas, com avidez, com um sono que me pareceu triste e
sombrio; acordei muito tarde; chamei minha mãe com voz forte,
do fundo da obscuridade que me rodeava. Ela acorreu logo e
disse-me que não me tinha acordado porque eu estava a dormir
um sono tranquilo e reparador.
- Há mais de uma hora que o jantar está pronto -
continuou, permanecendo de pé, olhando-me. - Que queres fazer?
Vens comer ou não?
- Não me apetece levantar! - respondi cobrindo os olhos com
o braço porque a luz me feria a vista. - Porque não me trazes o
jantar aqui?
Ela saiu e voltou logo a seguir trazendo o habitual jantar
num tabuleiro. Pousou-o na borda da cama; levantei-me e comecei
a comer molemente, apoiada no cotovelo. Minha mãe ficou de pé
a olhar-me. Mas às primeiras garfadas deixei de comer e caí outra
vez sobre a almofada.
- Então não comes mais? - perguntou-me minha mãe.
- Não tenho fome.
- Não te sentes bem?
- Estou bem.
- Então vou levar tudo outra vez - resmungou. Levantou o
tabuleiro da cama e pousou-o sobre a mesa, ao pé da janela.
- Não me acordes amanhã de manhã - disse-lhe. passado um
momento.
- Porquê?
- Porque resolvi não ser mais modelo; a gente cansa-se muito
e ganha pouco.
- Mas então que vais fazer? - perguntou-me, inquieta.Eu não
te posso sustentar!... Já não és criança e custas caro! Além disso,
há muitas despesas... O enxoval...
Começava já a choramingar e a lamentar-se; então, sem tirar
o braço da cara, articulei lenta e penosamente:
- Não me aborreças agora. Está sossegada, que dinheiro não
vai faltar!
Seguiu-se um grande silêncio.
- De nada precisas? - acabou por perguntar, mortificada e
zelosa, como uma criada de quarto a quem tivessem repreendido
por excesso de familiaridade e quisesse fazer-se perdoar.
- Sim, faz-me um favor... Ajuda-me a despir... estou ainda
tão cansada e com tanto sono!
Ela obedeceu. Sentando-se na cama começou por me tirar os
sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama.
Depois despiu-me o vestido e a combinação e ajudou-me a vestir a
camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados.
Depois de estar debaixo da roupa, enrolei-me, puxei o lençol
e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe dar-me as boas-noites
do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe
respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora
avançada do dia.
Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino;
mas ao acordar apercebi-me de que não desejava vê-lo enquanto a
minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado
de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento,
como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer
outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das
coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento,
e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era
de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava
de Gino; mas não queria odiá-lo, porque pensava que juntaria ao
prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento
desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim.
Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha
preguiça, quase voluptuosa, e sentia-me menos triste que na noite
anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria
antes do meio-dia. Deixei-me ficar debaixo da roupa: foi o primeiro
prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria
unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito
cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o
tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo
privara-me dele; mas agora estava bem decidida a fazê-lo sempre
que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as
coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular
e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava
que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas
que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que
se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem
do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter.
Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por
ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário,
pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas
as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom.
Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas
vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação
readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais
íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradava-me muito,
e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de
tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões
da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos.
Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava
querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu
desejasse.
Nessa manhã, pela primeira vez, considerava o meu corpo
um meio cómodo de conseguir os objectivos que o trabalho sério
nunca me permitiria alcançar.
Estes pensamentos ou, melhor, estes sonhos fizeram passar
a manhã num relâmpago e admirei-me de ouvir os sinos da igreja
vizinha anunciarem o meio-dia e vi um grande raio de sol que se
infiltrava pela janela e pousava na minha cama. Tudo, como a
minha preguiçosa manhã, os sinos e o raio de sol, me parecia um
luxo inesperado e precioso. Nesse momento as belas senhoras
ricas que habitavam nas casas iguais à dos patrões de Gino
deviam mandriar assim e sonhar nas suas camas escutando os
mesmos sinos e olhando com o mesmo espanto o mesmo raio de
sol. Foi com a sensação de já não ser a Adriana necessitada e
esfomeada do bairro, mas uma Adriana diferente, que por fim me
levantei da cama para tirar a camisa de dormir diante do espelho
do guarda-fato. Olhei-me toda nua e compreendi o orgulho da
minha mãe quando dizia ao pintor: “Olhe este peito! Estas pernas!
Estas ancas!” Pensei em Astárito, que o desejo destes seios, destas
pernas e destas ancas fazia mudar de carácter, de maneiras e até
de voz, e disse a mim própria que com certeza encontraria outros
homens que para gozar o meu corpo me dariam muito dinheiro,
até talvez mais do que ele.
Indolentemente, como me impunha a minha nova
disposição, vesti-me, tomei um café e saí. Entrei um bar próximo
de casa e telefonei para casa dos patrões de Gino. Ele tinha-me
dado o número com a recomendação, tipicamente servil, de não o
usar senão quando fosse estritamente necessário, porque os
patrões não gostavam de ter o telefone impedido pelo pessoal.
Primeiro falei a uma mulher que devia ser criada de quarto. A
seguir veio Gino. Ele perguntou se eu não estava doente, e não
pude deixar de sorrir ao reconhecer nesta solicitude a perfeição,
inteiramente falsa, que contribuíra para me induzir em erro.
- Estou bem - disse-lhe. - Nunca me senti tão bem.
- Quando nos veremos?
- Quando quiseres, mas desejava que o nosso encontro fosse
como dantes... quero dizer aí na moradia, se os teus patrões vão
para fora.
Ele compreendeu logo as minhas intenções e respondeu
vivamente:
- Eles só devem partir daqui a dez dias, pelas festas do
Natal; não antes.
- Então - disse-lhe num tom indiferente - ver-nos-emos
daqui a dez dias.
- Mas como? - perguntou-me, admirado. - Porque não antes?
- Antes tenho que fazer.
- Mas que tens tu? - perguntou-me num tom desconfiado. -
Tens alguma coisa contra mim?
- Não - respondi. - Não tenho nada contra ti; se tivesse
alguma coisa contra ti, não te diria que nos veríamos na moradia.
Lembrei-me de repente de que ele podia ter ciúmes e
aborrecer-me ; por isso acrescentei:
- Não tenhas medo... amo-te como sempre... somente, tenho
que ajudar minha mãe a acabar uma encomenda extraordinária,
por causa das festas... como não poderei sair de casa senão muito
tarde, e tu tarde nunca estás livre, preferi esperar que os teus
patrões se vão embora.
- Mas de manhã?
- De manhã dormirei! - respondi. - A propósito, sabes que já
não sou modelo?
- Porquê?
- Cansava-me... Estás contente, não estás? Então
encontramo-nos daqui a dez dias... Eu telefono-te.
- Está bem!
Ele disse “Está bem!” com um ar pouco convencido, mas eu
conhecia-o suficientemente para ter a certeza de que, apesar das
suas suspeitas, ele não daria sinal de vida antes dos dez dias que
eu combinara. Ou melhor, era precisamente por ter ciúmes que
não daria sinal de vida. Não era corajoso, e a ideia de que eu
pudesse ter descoberto a sua falsidade enchia-o de susto e
punha-o nervoso. Depois de ter reposto o auscultador reparei que
falara a Gino com uma voz tranquila, amável e afectuosa; e podia
tornar a vê-lo sem o receio de me mergulhar e de mergulhar os
nossos encontros numa atmosfera de ódio falso e desagradável.
7
Nessa mesma tarde fui ter com Gisela ao seu quarto
mobilado.
Como fazia habitualmente àquela hora, ela acabava
justamente de se levantar e começava a vestir-se, para ir ao seu
encontro com Ricardo. Sentei-me na sua cama desfeita, e
enquanto ela ia e vinha no quarto em penumbra, cheio de objectos
e de roupas em desordem, contei-lhe tranquilamente como tinha
ido ter com Astárito e como ele me revelara que Gino era casado e
tinha uma filha. Ao ouvir a notícia, Gisela soltou uma exclamação
que ignoro se era de alegria ou de surpresa, veio sentar-se na
cama na minha frente e pousou-me as suas mãos nos ombros,
abrindo os olhos:
- Não... não posso acreditar... uma mulher e uma filha... Mas
é realmente verdade?
- A filha chama-se Maria.
Era claro que ela desejava aprofundar e comentar a notícia
o mais possível e que a minha atitude serena a desconcertava.
- Uma mulher e uma filha... e a filha chama-se Maria... e tu
dizes isso dessa maneira?
- Como querias que dissesse?
- Mas não te faz pena?
- Sim, faz-me pena.
- Mas como te disse ele? “Gino Molinari tem mulher e uma
filha”? Assim?
- Sim.
- Mas tu, o que lhe respondeste?
- Nada... Que querias que lhe respondesse?
- Mas o que sentiste? Não ficaste quase a chorar? Apesar de
tudo, para ti foi um desastre!
- Não. Não tive vontade de chorar.
- Agora é impossível casares com Gino - gritou com ar
medidativo e contente. - Mas que história!... Que história! Que
falta de consciéncia! Uma pobre rapariga como tu, que só vivia
para ele, pode dizer-se... Os homens são todos uns safados!
- Gino - disse eu - ainda não sabe que estou ao facto de
tudo.
- No teu lugar, minha filha - declarou, toda excitada -,
dava-lhe o que merecia! Um bom par de bofetadas ninguém lhas
tirava.
- Marquei encontro com ele para daqui a dez dias -
continuei.
- Creio que vamos continuar a ter relações um com o outro.
Recuou e olhou-me com os olhos esbugalhados:
- Mas porquê? Ainda gostas dele? Depois de tudo o que te
fez?
- Não - respondi, e, emocionada como estava,
instintivamente baixei a voz... - Já não gosto dele... mas... hesitei e
fiz um esforço para mentir - os gritos e as bofetadas não são a
melhor maneira de nos vingarmos!
Olhou-me um instante semicerrando os olhos e afastando-se
como fazem os pintores quando olham os seus quadros.
Depois disse-me :
- Tens razão... não tinha pensado nisso... Mas sabes o que
faria no teu lugar? Deixava correr, tranquilamente, sem que ele
desse por isso e um belo dia, zás! Deixava-o.
Não respondi. Ao fim de um momento, repetiu, com a voz
menos exaltada, mas animada e cantante:
- Ainda me parece mentira! Uma mulher e uma filha! E
contigo fazia tantas fitas! E fez-te comprar móveis, um enxoval...
Que história! Que história!
Eu continuava calada.
- Mas eu já tinha percebido! - gritou com ar vitorioso. - Tens
de reconhecer! Que te tinha eu dito? “Este homem não é
sincero...” Pobre Adriana!
Deitou-me o braço à roda do pescoço e beijou-me. Deixei-me
beijar e acrescentei:
- Sim, o pior é que me fez gastar o dinheiro de minha mãe!
- E tua mãe, sabe?
- Ainda não.
- Pelo dinheiro não te aflijas ! - acudiu. - Astárito está de tal
maneira apaixonado por ti!... Basta que queiras e ele te dará todo
o dinheiro de que precisares.
- Não quero tornar a ver Astárito - respondi. - Outro não me
importo, mas não Astárito!
Devo esclarecer que Gisela não era parva. Percebeu
imediatamente que de momento mais valia não falar de Astárito.
Compreendeu também o que eu queria dizer com a frase:
“Não me importa outro qualquer.” Fingiu reflectir um momento,
depois declarou:
- No fundo tens razão, compreendo-te. Eu também, depois
do que aconteceu, sentiria uma certa impressão se tivesse que
andar com o Astárito... Ele quer as coisas pela força... foi para se
vingar que te contou a história de Gino.
Calou-se de novo, depois disse-me com voz solene:
- Deixa-me agir... queres que te apresente alguém disposto a
ajudar-te?
- Quero.
- Deixa-me agir.
- Somente, a ninguém me quero prender; quero ficar livre.
- Deixa-me agir - repetiu pela terceira vez.
- Por agora - continuei - quero devolver o dinheiro à minha
mãe... e comprar diversas coisas que me fazem falta. Depois quero
que minha mãe deixe de trabalhar - disse como conclusão.
Entretanto, Gisela levantara-se para se ir sentar em frente
do toucador:
- Tu, Adriana - disse-me pintando-se a toda a pressa -, tens
sido sempre muito boa. Vês agora o que acontece quando se é boa
demais?
- Sabes que esta manhã não fui posar? - disse-lhe. Decidi
não voltar a ser modelo.
- Fizeste bem - respondeu. - Eu também, de resto, já não
posso mais, a não ser para X..., unicamente para lhe fazer um
favor, mas quando ele terminar não posarei mais.
Experimentei nesse momento uma grande amizade por
Gisela e senti-me reconfortada. Os seus “deixa-me agir” tinham
soado aos meus ouvidos com o acento de segurança das
promessas maternais e amigas de acudir o mais de pressa possível
às minhas necessidades. Apercebi-me com toda a clareza de que o
que levava Gisela a ajudar-me, mais do que uma verdadeira
amizade, era, como na história de Astárito, o desejo, talvez
inconsciente, de me ver nas mesmas condições que ela. Mas
ninguém faz nada por nada, e como, por coincidência, a inveja de
Gisela vinha ao encontro dos meus interesses, nenhum motivo
tinha para recusar a sua ajuda, unicamente porque a sabia
interessada.
Estava apressada porque já era tarde para o encontro com o
seu “noivo”. Saímos do quarto e descemos às escuras a escada
estreita e íngreme da sua velha casa. Na escada, possuída pela
sua excitação e talvez também pelo desejo de diminuir a amargura
da minha desilusão, mostrando-me que não estava só na minha
infelicidade, confiou-me:
- E depois, sabes... começo a crer que Ricardo me quer fazer
o mesmo que Gino te fez a ti.
- Ele também é casado? - perguntei ingenuamente.
- Não, isso não; somente, faz-me cenas... tenho a
impressão de que se quer pôr a fugir... Mas eu já me expliquei:
“Meu caro, não preciso de ti para coisa alguma; se queres ficar
fica, mas se não queres podes ir-te embora!”
Nada disse, mas pensei que havia uma grande diferença
entre nós, mesmo até nos encontros dela e Ricardo e nos meus
com Gino. Ela, no fundo, nunca tivera uma desilusão sobre a
seriedade de Ricardo nem tinha escrúpulo em enganá-lo de
tempos a tempos; enquanto que eu esperava com toda a força da
minha alma inexperiente vir a ser mulher de Gino e ser-lhe
sempre fiel; não podia chamar-se traição ao que se havia passado
em Viterbo com Astárito, ameaçada com a sua chantagem.
Mas pensava que ela se ofenderia se eu lhe dissesse isto; não
abri a boca. Na soleira da porta marcou-me encontro para o dia
seguinte numa pastelaria, recomendando-me que fosse pontual,
porque ela provavelmente não estaria sozinha. E foi-se embora.
Sentia que devia contar o que se passava a minha mãe, mas
não tinha coragem. Minha mãe gostava realmente de mim. Ao
contrário de Gisela, que não via na traição de Gino senão o triunfo
das suas ideias e nem sequer tentava disfarçar a sua cruel
satisfação, ela experimentaria mais dor que alegria ao verificar que
no fim de contas tivera razão. No fundo não desejava senão a
5minha felicidade; pouco lhe importava o meio pela qual a
alcançasse: somente estava convencida de que Gino não ma daria.
Depois de muitas hesitações, acabei por decidir nada lhe dizer.
Sabia que no dia seguinte, à tarde, os meus actos lhe abririam
melhor os olhos que quaisquer palavras. Reconheci que era uma
maneira brutal de lhe revelar a grande mudança que se operara
na minha vida; mas o que me agradava era que desta maneira
evitaria uma quantidade de explicações, de reflexões e de
comentários: pelo menos todo o género de explicações, de reflexões
e de comentários em que Gisela se mostrara pródiga quando lhe
contara a traição de Gino. Na realidade eu experimentava uma
espécie de repugnância em falar no casamento; desejava falar nele
o menos possível e preparar as coisas de maneira que os outros
não me tocassem no assunto.
No dia seguinte, para que minha mãe não me aborrecesse se
suspeitasse de alguma coisa, fingi ter um encontro com Gino e
passei toda a tarde fora. Para o meu casamento mandara fazer um
fato de saia e casaco cinzento, que contava vestir depois da
cerimónia. Era o meu vestido mais bonito: hesitei em pô-lo, mas
pensei que acabaria por estreá-lo um dia, que não seria nem mais
puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas
aparências e que era preciso apresentar-me o melhor possível para
obter mais proventos: afastei todos os escrúpulos. Vesti-o pois,
mas não sem remorsos - o meu lindo vestido, que, recordando-o
agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos
de então -, penteei-me com cuidado e pintei-me, mas não mais do
que o costume. A propósito deste último pormenor, observo que
5
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção
de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes
Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
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recebê-lo em nosso grupo.
nunca percebi a razão por que as mulheres da minha profissão
pintam a cara como se fossem máscaras de Carnaval. Porque a
vida que levam as torna muito pálidas? Talvez porque julguem que
se não se pintarem desta maneira violenta não chamam a atenção
dos homens e não mostram que são fáceis de abordar? Eu, por
mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena
e sã, e posso dizer, sem falsa modéstia, que a minha beleza bastou
sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo
na rua. Não é pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a
atenção dos homens, mas - muitos mo têm dito - pela serenidade
e pela doçura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus
dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e
ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam não
reparam que os homens dão-se conta no primeiro momento de
como elas são e experimentam uma espécie de antecipada
desilusão. Eu, tão natural e simples, deixei-lhes sempre uma
dúvida sobre a minha verdadeira personalidade, dando-lhes desta
maneira a ilusão de uma aventura que eles procurassem mais do
que a pura satisfação dos sentidos.
Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas
vezes a mesma fita. Quando saí do cinema era já noite; fui
directamente à pastelaria onde tinha marcado encontro com
Gisela.
A casa não era uma daquelas leitarias modestas onde
habitualmente nos encontrávamos com Ricardo, mas uma
pastelaria elegante, onde eu punha os pés pela primeira vez.
Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intenção de
elevar o preço dos meus favores. Estes ardis e ainda outros de que
falarei a seguir podem, com efeito, levar as mulheres da minha
espécie, quando jovens e bonitas, e que os usem inteligentemente,
ao bem-estar estável que é o alvo de todas. Mas poucas se servem
deles e eu nunca pertenci a esse número. A minha origem popular
fez-me sempre desconfiar dos locais luxuosos; nos cafés
burgueses senti-me sempre pouco à vontade; envergonhava-me de
sorrir aos homens ou de os olhar disfarçadamente; tinha a
impressão de que a luz demasiada me expunha num pelourinho.
Pelo contrário, senti sempre uma profunda e afectuosa atracção
pelas ruas da minha cidade, com as suas nobres construções, as
suas igrejas, os seus monumentos, as suas lojas e os seus portais,
que as tornam mais belas e acolhedoras que qualquer sala de
restaurante ou pastelaria. Sempre gostei de descer à rua à hora do
passeio, ao pôr do Sol, caminhar lentamente olhando as montras
iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o céu e os telhados.
Sempre apreciei seguir por entre a multidão, ouvir, sem me voltar,
as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa
súbita exaltação dos sentidos, se atreviam a murmurar-me às
vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua até à
saciedade, ficar sem forças mas continuar com espírito ainda
ávido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se
esgotam. O meu salão, o meu restaurante, o meu café, foram
sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter
tido influência nestas minhas predilecções; sabe-se que os pobres
se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas
montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das
belas casas, onde nunca morarão. Deve ser pelo mesmo motivo
que amei sempre as igrejas, tão numerosas em Roma, abertas
para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre mármores,
ouros e decorações preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza
é, por vezes, mais forte do que o do incenso.
Naturalmente os ricos não passeiam pelas ruas, não vão à
igreja: quando muito atravessam a cidade de automóvel,
recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a
qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos
sítios que Gisela me marcaria - em troca dos meus gostos mais
predilectos. Este sacrifício nunca o quis fazer; todo o tempo que
durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de
discussões encarniçadas. Gisela não gostava da rua; as igrejas
nada lhe diziam; a multidão só lhe inspirava repugnância e
desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo,
onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos
seus clientes, os dancings modernos, com músicos de uniforme e
dançarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os
seus gestos, as suas atitudes, até a sua voz mudavam. Fingia ser
uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais
tarde até certo ponto, como se poderá ver. O aspecto curioso do
seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas
ambições não a encontrou nos locais de luxo, mas graças a mim e
precisamente na rua, que ela odiava tanto.
Na pastelaria encontrei Gisela acompanhada por um homem
de meia-idade, um caixeiro-viajante, que me apresentou com o
nome de Jacinto. Sentado, parecia ter uma altura normal, porque
tinha os ombros largos, mas de pé parecia quase anão, e a largura
de ombros ainda o tornava mais baixo. Tinha o cabelo espesso e
branco como prata, que usava em escova sobre a testa, talvez para
parecer mais grave, um rosto encarnado, cheio de saúde, com
traços nobres e regulares de estátua, uma bela testa serena,
grandes olhos pretos, nariz direito e a boca bem desenhada. Mas
uma expressão antipática de vaidade, de suficiência e de falsa
benevolência tornava esta cara, agradável e majestosa à primeira
vista, bastante repulsiva.
Sentia-me um pouco nervosa, e depois de acabadas as
apresentações sentei-me sem dizer palavra. Jacinto, como se a
minha chegada fosse sem importância, apesar de ser na realidade
o motivo da reunião, continuou a conversa que sustentava com
Gisela:
- Não podes queixar-te de mim, Gisela - declarou-lhe,
pousando-lhe a mão no joelho e conservando-a ali todo o tempo
em que falou. - Quanto tempo durou a nossa... a nossa aliança,
por assim dizer? Seis meses? Bem! Não podes dizer com verdade
que no decurso desses seis meses te deixei uma única vez
descontente.
Tinha a voz clara, lenta, acentuada, articulada; mas
percebia-se que falava desta maneira, não para se fazer entender,
mas para se ouvir ele próprio e julgar cada uma das palavras que
pronunciava.
- Não, não! - disse Gisela baixando a cabeça com ar
aborrecido.
- A Gisela que te diga, Adriana! - continuou Jacinto com a
mesma voz clara e martelada. - Não só nunca a lesei em dinheiro
pelo... digamos pelos seus préstimos profissionais, mas todas as
vezes que voltava de Milão trazia-lhe sempre um presente.
Lembras-te, por exemplo, daquele perfume francês que te trouxe
uma vez? E doutra ofereci-te uma combinação de seda natural e
rendas. As mulheres julgam que os homens não percebem de
roupas interiores de senhora. Mas eu sou uma excepção. Hé! Hé!
Ria discretamente mostrando uma dentadura perfeita, mas
de uma brancura estranha que lhe dava um ar de dentadura
postiça.
- Dá-me um cigarro! - pediu Gisela com secura.
- É para já! - respondeu com uma solicitude irónica.
Ofereceu-me também um, tirou outro para si e, depois de o
acender, continuou: - Lembras-te também daquela mala que te
trouxe uma vez? Uma grande mala de cabedal leve.. uma
verdadeira obra-prima! Já não a usas?
- Mas é uma mala para usar de manhã! - disse Gisela.
- Gosto muito de fazer presentes! - proclamou, dirigindo-se a
mim. - Não por razões sentimentais, entendamo-nos - acrescentou
deitando o fumo pelo nariz -, mas por três motivos bem claros: o
primeiro, porque me agrada que me agradeçam; o segundo,
porque não há como um presente para se ser bem servido; com
efeito quem recebe um presente espera sempre outro: a terceira,
porque as mulheres gostam de ilusões e um presente dá a
impressão de sentimento, mesmo quando ele não existe.
- És um bom maroto! - disse com ar indiferente Gisela, sem
mesmo o olhar.
Ele abanou a cabeça com o seu belo sorriso cheio de dentes.
- Não - disse - não sou maroto. Sou um homem que viveu e
que soube tirar boas lições das suas experiências. Com as
mulheres sei que é preciso fazer certas coisas, com os clientes
outras, com os subordinados outras ainda, e assim por diante. O
meu espírito é como um ficheiro bem arrumado. Por exemplo,
tenho uma mulher debaixo de olho... tiro a ficha, observo-a, e vejo
que certas medidas obtém o efeito desejado e outras não; torno a
pôr a ficha no seu lugar e vou agir segundo as circunstáncias, e é
tudo!
Calou-se e sorriu de novo.
Gisela fumava com ar aborrecido; eu estava calada.
- E as mulheres - continuou - ficam-me reconhecidas porque
compreendem logo que comigo não terão desilusões, que eu
conheço as suas exigências, as suas fraquezas e os seus
caprichos... como eu fico agradecido ao cliente que escolhe
depressa... que não perde tempo a tagarelar... que sabe o que quer
e o que eu quero... Em Milão, na minha secretária, tenho um
cinzeiro com a seguinte inscrição: “O Senhor abençoa quem não
me faz perder tempo.” Deitou fora o cigarro, estendeu o pulso e
olhou o relógio dizendo :
- Parece-me que vão sendo horas de irmos jantar.
- Que horas são?
- Oito horas... com licença... venho já.
Levantou-se e afastou-se para o fundo da sala. Era
realmente muito pequeno, com os seus largos ombros e a sua
escovinha branca em cima da cabeça. Gisela esmagou o cigarro no
cinzeiro e declarou:
- É aflitivo! Só fala dele!
- Já dei por isso.
- O melhor é deixá-lo falar e dizer sempre sim. Verás as
confidências que ele vai fazer-te... Sabe Deus por quem se toma!
Mas é generoso. E dá presentes realmente.
- Sim, mas a seguir atira-os em cara.
Ela não disse palavra. Abanou a cabeça como a dizer
“Que havemos de fazer?” Ficámos um momento silenciosas;
depois Jacinto voltou. Pagou e saímos da pastelaria.
- Gisela - disse Jacinto logo que chegámos à rua -, a noite
está consagrada a Adriana. Mas se nos quiseres dar o prazer de
jantar connosco.
- Não, não, obrigada! - disse muito depressa. - Tenho um
encontro!
Despediu-se de nós e foi-se embora. Logo que ela se afastou
eu disse a Jacinto:
- A Gisela é muito simpática!
Ele fez um trejeito e respondeu:
- Sim, muito... tem um lindo corpo.
- Não a acha simpática?
- Eu - disse-me caminhando ao meu lado e apertando-me
com força o braço, muito em cima, quase no sovaco - nunca peço
a alguém que seja simpático, mas que faça o que lhe cumpre. A
uma dactilógrafa, por exemplo, não peço que seja simpática, mas
que escreva rapidamente e sem erros. A uma mulher como Gisela
não peço simpatia, mas que saiba do seu ofício, quer dizer que me
torne agradáveis as duas ou três horas que lhe consagro. Ora, a
Gisela não percebe do seu ofício.
- Porquê?
- Porque só pensa no dinheiro... Tem sempre medo que não
lhe paguem ou que não lhe dêem bastante. Não exijo com certeza
que ela me ame, mas faz parte da sua profissão portar-se como
tal; se realmente não me ama tem de me dar essa ilusão, para isso
que lhe pago. Gisela deixa sentir demasiadamente que o fez por
interesse... Nem nos dá tempo a respirar de tal modo se chora...
Que diabo!
Tínhamos chegado ao restaurante, um sítio barulhento,
cheio de gente; os homens pareciam-me do género de Jacinto:
caixeiros-viajantes, negociantes, industriais de passagem. Jacinto
entrou primeiro, entregou o chapéu e o sobretudo ao homem do
bengaleiro e perguntou:
- A minha mesa está livre?
- Sim, senhor Jacinto.
Era uma mesa colocada no vão de uma janela. Jacinto
esfregou as mãos e perguntou:
- Você é bom garfo?
- Julgo que sim - respondi-lhe, embaraçada.
- Bem! Isso agrada-me. Gosto que se coma à mesa.. A Gisela,
por exemplo, nunca quer comer... diz que tem medo de engordar.
Asneiras! Cada coisa a seu tempo! Quando se está à mesa é para
comer!
Tinha um verdadeiro rancor contra Gisela.
- Mas é verdade - disse eu timidamente. - Quando se come
demasiadamente engorda-se... e há mulheres que não gostam de
engordar.
- Você é dessas?
- Eu não. Mas justamente as pessoas dizem que eu sou
muito forte.
- Não faças caso, é inveja. Digo-te eu, que percebo disso.
Acariciou-me paternalmente a mão para me convencer. O
criado aproximou-se e Jacinto disse-lhe:
- Para começar vais levar daqui estas flores...
incomodam-me... Depois trazes o habitual. Percebido? E isso
depressa!
Depois, dirigindo-se a mim, explicou:
- Já me conhece e sabe do que eu gosto... deixa-o fazer: vais
ver que não terás razão de queixa!
Com efeito não tive razão para me lamentar. Os pratos que
se sucederam na mesa eram, senão requintados, pelo menos
suculentos e agradáveis. Jacinto mostrava-se com grande apetite.
Comia com uma espécie de ênfase, a cabeça baixa, brandindo
solidamente o garfo e a faca, sem me olhar nem me falar uma
única vez. A sua avidez privava-o até mesmo da sua bela calma,
obrigando-o a fazer várias coisas ao mesmo tempo, como se
temesse ficar em jejum. Metia um bocado de carne na boca ao
mesmo tempo que partia o pão com a mão esquerda. Mordia este
pão, deitava vinho no copo com a outra mão e bebia-o sem ter
acabado de mastigar. Tudo isto estalando os lábios, rolando os
olhos, sacudindo a cabeça de vez em quando como um gato às
voltas com um pedaço demasiado grande. Mas para
contrabalançar, ao contrário do que era habitual, eu não tinha
fome. Era a primeira vez que me preparava para me deitar com
um homem que não amava, que até mesmo não conhecia; e
olhava-o com atenção, estudando os meus sentimentos e
procurando imaginar como me sairia. Mais tarde deixei de dar
atenção aos homens com quem ia, porque, levada pele
necessidade, aprendi depressa a encontrar ao primeiro olhar o
lado bom ou atraente do homem, suficiente para tornar a sua
intimidade suportável. Mas nessa noite, este expediente da minha
profissão, que consiste em descobrir num só olhar o que torna
menos desagradável um amor venal, não o tinha ainda aprendido;
procurava-o instintivamente, sem dar por isso. Já disse que
Jacinto não era feio; até mesmo quando se calava e não mostrava
os seus pontos antipáticos, até poderia parecer belo. Já era muito,
porque, apesar de tudo, todo o amor é em grande parte comunhão
física. Mas isso não me bastava. Nunca pude, já não digo amar,
mas simplesmente suportar um homem só pelas suas qualidades
físicas. Ora, quando a refeição acabou e Jacinto, acalmada a sua
extraordinária voracidade, arrotou uma ou duas vezes e
recomeçou a falar, apercebi-me de que nada havia nele, ou pelo
menos não era capaz de descobrir, absolutamente nada, por
pouco que fosse, que mo tornasse simpático. Não só, como Gisela
me avisara, só dele falava, mas fazia-o de uma maneira
desagradável, vaidosa e aborrecida, contando a maior parte do
tempo coisas que nada o honravam e confirmavam plenamente a
minha primeira impressão de repugnância. Nada havia nele,
absolutamente nada, que me agradasse; e todos os traços que
apresentava como qualidades, de que se envaidecia e punha a nu,
pareciam-me horríveis defeitos. Só muito raramente encontrei, daí
em diante, homens no mesmo género, que não têm valor algum e
nada oferecem de bom a quem se aproximar para neles encontrar
qualquer simpatia; sempre me admirou que eles existissem e
muitas vezes perguntei a mim própria se não seria minha a culpa,
incapaz de descobrir as qualidades que eles sem dúvida haviam de
ter. Seja como for, com o tempo habituei-me a estes desagradáveis
companheiros e fingi rir e chalacear com eles, em suma, ser aquilo
que queriam que eu fosse e julgavam que era. Mas nessa noite
esta primeira descoberta inspirou-me reflexões bem melancólicas.
Enquanto Jacinto tagarelava esgaravatando os dentes com um
palito, eu pensava que era um duro ofício aquele que eu escolhera,
de fingir transportes amorosos com certos homens que na
realidade - era o caso de Jacinto - me inspiravam sentimentos
bem diferentes; que não havia dinheiro que pagasse esses favores;
que era impossível - pelo menos em casos semelhantes -
portar-me como Gisela, que não pensava senão no dinheiro e não
o ocultava. Acudiu-me ainda ao espírito a ideia de que iria levar
este antipático Jacinto para o meu pobre quarto, destinado a um
uso tão diferente; que não tinha sorte; que o azar me fizera sair
logo um Jacinto, que podia ter encontrado algum rapaz agradável
e delicado em busca de uma aventura, ou qualquer bom homem,
sem pretensões, como havia tantos; que, em suma, a presença de
Jacinto entre os meus móveis acelerava a minha renúncia aos
velhos sonhos de fazer uma vida decente e normal.
Ele falava sempre, mas não era tão boçal que não se
apercebesse de que apenas o escutava e que não estava alegre.
- Então, menina, estamos tristes? - perguntou-me.
- Não, não! - respondi depressa, quase até tentada, por esta
ilusória entoação afectuosa, a confiar-lhe o que sentia e a falar-lhe
de mim, depois de o ter deixado falar tanto tempo dele.
- Gosto mais assim - recomeçou. - Não gosto de gente triste.
E depois não te convidei para que estivesses triste. Podes ter razão
para isso, não discuto, mas logo que estejas comigo tens de deixar
a tristeza em casa. Não me interessam os teus problemas, nem
quem és, nem o que te aconteceu, nem o resto... Certas coisas não
me interessam. Fizemos um contrato um com o outro, mesmo que
não tenha sido escrito... Eu comprometo-me a pagar-te uma certa
soma e tu, em compensação, comprometes-te a fazer-me passar
uma noite agradável... O resto não conta.
Proferiu estas palavras em tom sério. Talvez estivesse um
pouco contrariado por eu não o ter escutado com suficiente
atenção.
- Mas eu não estou triste... - respondi sem lhe desvendar o
mundo de sentimentos que me agitava a alma. - Somente aqui há
tanto fumo! E um barulho! Sinto-me um pouco atordoada.
- Então, saímos? - perguntou com vivacidade. Disse-lhe que
sim. Chamou em seguida o criado e pagou. Saímos. Quando
chegámos à rua, perguntou-me:
- Vamos para o hotel?
- Não, não - disse eu apressadamente.
A perspectiva de ter de mostrar os meus documentos
assustava-me, e de resto já decidira outra coisa.
- Vamos para minha casa! - disse.
Subimos para um táxi e dei a minha direcção. Assim que o
táxi arrancou, atirou-se para cima de mim e apalpou-me o corpo
todo beijando-me no pescoço. Senti pelo seu hálito que bebera
muito e devia estar embriagado. Repetia constantemente a palavra
“filhinha”, que se diz às crianças e que na sua boca me irritava
como um termo ridículo e ligeiramente profano. Deixei-o agir
durante uns momentos, depois observei, apontando as costas do
chauffeur: - Era melhor esperar que chegássemos... não? - Não
respondeu e caiu pesadamente sobre as almofadas, encarnado e
congestionado como se sentisse fulminado por um súbito mal.
Depois tratamudeou com ar furioso:
- Pago-lhe para que me conduza ao meu destino e não para
que dê conta do que se passa dentro do seu táxi.
O dinheiro era a sua ideia fixa, e sobretudo o seu dinheiro,
que podia fechar todas as bocas. Nada respondi e durante o resto
do percurso ficámos calados um ao lado do outro, sem nos
tocarmos. As luzes da cidade entravam pelas portinholas,
iluminando por instantes os nossos rostos e as nossas mãos, e
desapareciam; parecia-me estranho encontrar-me ao lado deste
homem, do qual algumas horas antes nem conhecia a existência,
e rolar num carro na sua companhia para minha casa, para me
entregar a ele como a um amante querido. Senti uma espécie de
atordoamento ao ver o táxi parar diante da minha porta na
avenida tão conhecida.
Na escada escura pedi a Jacinto:
- Não faça barulho ao entrar, peço-lhe, porque minha mãe
mora comigo.
- Está descansada, filhinha - respondeu-me.
Chegados ao patamar, abri a porta com a minha chave.
Jacinto seguia-me; peguei-lhe na mão; sem acender a luz, fi-lo
atravessar a antecâmara e conduzi-o até à porta do meu quarto,
que era a primeira à esquerda, entrando. Precedida por ele, acendi
o candeeiro da mesa-de-cabeçeira e da soleira da porta deitei um
olhar aos meus móveis como se fosse uma despedida. Muito
contente por encontrar um quarto novo e limpo, quando julgava
que o conduzisse a um quarto sujo e com móveis velhos, Jacinto
soltou um suspiro de satisfação e tirou o seu sobretudo, que
atirou para cima de uma cadeira. Disse-lhe que me esperasse e saí
do quarto.
Dirigi-me directamente à sala grande e encontrei minha mãe
sentada à mesa central preparada para coser. Quando me viu
afastou logo o trabalho e levantou-se sem dúvida com a ideia de
me servir o jantar como nas outras noites. Mas eu disse-lhe:
- Não... não te incomodes... Já jantei... Pelo contrário...
Tenho alguém no meu quarto e não vás lá, seja a que pretexto for!
- Alguém? - perguntou-me com cara de pasmo.
- Sim, alguém! - disse-lhe apressadamente. - Mas não é
Gino. É um “senhor de posição”!
E saí da sala sem esperar qualquer pergunta. Tornei a entrar
no quarto e fechei a porta à chave. Impaciente e corado, Jacinto
veio ao meu encontro ao meio do quarto e tomou-me nos braços.
Era muito mais pequeno do que eu e para pousar os lábios na
minha cara, tive que inclinar-me sobre a cama. Procurava evitar
que ele me beijasse a boca, dobrando-me para trás como por
voluptuosidade. Consegui. Jacinto possuía da mesma maneira
que comia; com avidez, sem discernimento nem delicadeza,
começando e largando sem propósito, como se tivesse medo de
deixar escapar alguma coisa, cego pelo meu corpo, como o estivera
pela comida no restaurante.
Depois de me ter beijado, fez menção de me despir, como
estávamos, de pé. Pós a mão num dos meus braços e depois, como
se esta carne lhe queimasse as ideias, começou a cobrir-me de
beijos. Julguei que com os seus gestos bruscos me rasgasse o fato
e acabei por lhe dizer sem o repelir:
- Vamos, despe-te.
Largou-me logo e, sentando-se na cama, começou a
despir-se. Eu do outro lado fazia o mesmo.
- Mas a tua mãe sabe? - perguntou-me.
- Sim.
- E que diz ela?
- Nada.
- Desaprova?
É claro que estas informações não tinham outro valor que o
de dar um pouco de picante à aventura. É um traço comum a
todos os homens; são bem poucos os que resistem à tentação de
misturar ao prazer interesse de género diferente, indo por vezes
até à compaixão.
- Não aprova nem desaprova - disse secamente
levantando-me e fazendo passar a saia pela cabeça. - Sou livre de
fazer o que me apetece!
Quando fiquei nua arrumei a minha roupa toda sobre uma
cadeira e estendi-me de costas em cima da cama, um braço
dobrado sobre a nuca e o outro sobre o ventre cobrindo-o com a
mão. Não sei porquê, recordei-me que estava na mesma posição
daquela deusa pagã parecida comigo que o gordo pintor mostrara
a minha mãe numa gravura colorida, e bruscamente senti
desgosto e raiva ao pensar na grande mudança que depois disso
se operara na minha vida. Jacinto devia estar admirado com a
beleza opulenta e sólida do meu corpo, que não se nota, assim
como já disse, quando estou vestida, porque parou de se despir e
olhou-me com ar deslumbrado, a boca aberta e os olhos
espantados.
- Avia-te - disse-lhe. - Tenho frio.
Acabou de se despir e atirou-se para cima de mim. Já falei
da sua maneira de amar, que não sei o que me parecia; quanto a
ele, suponho já tê-lo descrito suficientemente. Devo acrescentar
que era um destes homens para os quais o dinheiro que pagaram
ou que irão pagar inspira uma exigência meticulosa, como se
temessem ficar roubados se renunciassem a qualquer das coisas
que julgam ser-lhes devidas. Era ávido, já o disse, mas não ao
ponto de não ter sempre presente o seu dinheiro e de não querer
tirar todo o benefício possível. O seu desejo - depressa
compreendera prolongar o mais possível os nossos encontros e
tirar de mim todo o prazer a que se considerava com direito. Com
este principio, esfalfava-se sobre o meu corpo, como sobre um
instrumento, exigindo uma longa preparação antes de tocá-lo, e
incitava-me a todo o tempo a fazer o mesmo com o dele. Mas,
embora lhe obedecesse, comecei logo a aborrecer-me e a
observá-lo friamente, como se os seus cálculos tão transparentes o
afastassem de mim e como se estivesse a ver de muito longe,
através de uma lente de antipatia e de desagrado - não somente a
ele, mas também a mim. Era exactamente o contrário do
sentimento de simpatia que me esforçara por experimentar por ele
no princípio da noite. De repente senti não sei que vergonhosa
impressão de remorso e fechei os olhos. Ele acabou por se cansar
e ficámos estendidos lado a lado. Sublinhou num tom de
satisfação:
- Tens de reconhecer que, apesar de não ser já muito novo,
sou um amante excepcional!
- É verdade - respondi com indiferença.
- Todas as mulheres mo dizem - continuou. - Sabes o que
penso? Que é nos pequenos barris que se encontra o melhor
vinho: há homens grandes, com o dobro do meu tamanho, que
nada valem!
Comecei a sentir frio. Sentei-me na cama e puxei a colcha
sobre nós. Ele interpretou o meu gesto como uma atenção
afectuosa.
- Muito bem! - disse-me. - Agora vou dormir um bocadinho.
Enrolou-se de encontro a mim e adormeceu.
Continuei imóvel, deitada de costas, com a sua cabeça
branca sobre o meu peito. A colcha não nos tapava senão até à
cintura; olhando-o, vendo o seu dorso peludo, marcado por pregas
moles indicando a idade madura, tive uma vez mais a impressão
de me encontrar com alguém que me era perfeitamente estranho.
Mas ele dormia, e como dormia, já não falava, não olhava, não
gesticulava. Neste sono, dado o seu carácter pouco atraente, não
ficava, por assim dizer, mais do que a sua melhor parte, que era a
de ser um homem como tantos sem profissão, nem nome, nem
qualidades, nem defeitos, nada mais que um corpo humano a
quem um sopro fazia levantar o peito. Talvez pareça estranho,
mas, olhando-o e observando o seu sono confiante, experimentava
por ele como que um impulso de afeição e notei as precauções que
tomava para evitar qualquer movimento que o pudesse acordar.
Era o sentimento de simpatia que eu tinha baldadamente tentado
experimentar até agora; a vista da sua cabeça encanecida
molemente apoiada sobre o meu peito jovem suscitara-o por fim
na minha alma. Esta impressão consolou-me e pareceu-me até
sentir menos frio. Experimentei mesmo, por um instante, uma
espécie de terna exaltação que humedeceu os meus olhos. Na
realidade, eu tinha então - como ainda tenho - um excesso de
ternura no coração. Uma ternura, que, por falta dos objectivos
legítimos aos quais se devia consagrar, não temia desviar-se sobre
pessoas e coisas, quase sempre indignas dela, para não ficar
inactiva e vazia. Ao fim de vinte minutos, acordou e
perguntou-me:
- Dormi muito tempo?
- Não.
- Sinto-me bem! - disse saindo da cama e esfregando as
mãos. - Ah! Como me sinto bem!... Rejuvenesci pelo menos vinte
anos!
Depois começou a vestir-se, continuando as suas
exclamações de bem-estar e de alegria. Vesti-me também em
silêncio. Quando estava pronto, declarou-me:
- Queria tornar a ver-te, filhinha... Como hei-de fazer?
- Telefona a Gisela - respondi. - Vejo-a todos os dias.
- Mas tu estás sempre livre?
- Sempre.
- Viva a liberdade! - e acrescentou, metendo a mão no bolso:
- Quanto queres que te dê?
- Paga o que te apetecer - disse-lhe. E acrescentei com
sinceridade: - Se me deres bastante, farás uma boa acção porque
não sou rica.
Mas ele respondeu taco a taco:
- Se te dou muito não será para fazer uma boa acção...
Nunca faço boas acções... será por seres uma bonita rapariga e
por me teres feito passar uma noite agradável.
- Como quiseres! - disse-lhe encolhendo os ombros.
- Tudo tem o seu valor, e tudo deve ser pago segundo o seu
valor - continuou tirando o dinheiro da carteira. As boas acções
não existem. Tu deste-me certas coisas, de uma qualidade
superior às que me tinham dado antes... por exemplo, Gisela... As
boas acções nestes casos não contam... Outro conselho! Nunca
digas: dá-me o que te apetecer! Deixa fazer isso aos vendedores
ambulantes. A mim quando me dizem “faça você o preço” sinto-me
sempre tentado a dar menos do que devo pagar.
Fez uma careta significativa e estendeu-me o dinheiro. Como
Gisela me dissera, era generoso; a soma ultrapassava as minhas
previsões. Senti de novo, pegando-lhe, o sentimento de
cumplicidade e sensualidade que me inspirara o dinheiro de
Astárito no decurso do passeio a Viterbo. E pensei que isso
denotava em mim urna vocação, que eu devia ter de facto jeito
para esta espécie de ofício, mesmo se o meu coração aspirava a
coisas diferentes.
- Obrigada - disse-lhe.
E, sem quase dar por isso, por gratidão, beijei-o de boa
vontade.
- Obrigado eu! - respondeu dispondo-se a retirar. Dei-lhe a
mão e conduzi-o, no escuro, através do vestíbulo, na direcção da
porta. Durante um momento, logo que fechei a porta do meu
quarto e antes de abrir a da casa, caminhámos numa obscuridade
completa. E então, não sei que intuição quase física me revelou
que minha mãe se encontrava em qualquer canto do vestíbulo
enquanto eu vagueava com Jacinto. Ela tinha-se escondido sem
dúvida atrás da porta, ou num canto, entre o armário e a parede e
esperava que Jacinto saísse. Lembrei-me daquela vez que ela
fizera a mesma coisa, na noite em que chegara atrasada depois de
ter estado com Gino em casa dos patrões dele e assaltou-me um
grande nervosismo à ideia de que, como daquela vez, depois de
Jacinto sair ela me saltasse em cima, me agarrasse os cabelos, me
atirasse para cima do canapé da sala grande e me enchesse de
bofetadas. Sentia-a no escuro; parecia-me quase vê-la; sentia uma
impressão nas costas como se tivesse as suas garras atrás da
minha cabeça prontas a arrepelar-me os cabelos. Segurava
Jacinto pela mão e na outra mão guardava o dinheiro. Lembrei-me
de o meter entre os dedos da minha mãe logo que ela me quisesse
saltar em cima. Seria uma maneira silenciosa de lhe lembrar que
nunca cessara de me instigar a ganhar dinheiro e também uma
tentativa de a captar pela avidez - a sua paixão dominante - e
assim fechar-lhe a boca. Entretanto tinha aberto a porta.
- Então até qualquer dia... Telefonarei a Gisela - disse-me
Jacinto.
Vi-o descer a escada, com os seus largos ombros e os seus
cabelos brancos cortados à escovinha, agitando a mão sem olhar
para trás, em sinal de cumprimento - e fechei a porta.
Imediatamente, como previra, minha mãe surgiu do escuro junto
de mim. Mas não me agarrou pelos cabelos, como julguei: pelo
contrário de uma maneira desajeitada, que de princípio não
compreendi, fez uma tentativa para me beijar. Fiel ao meu plano,
procurei a sua mão e introduzi-lhe o dinheiro. Mas ela recusou-o;
o dinheiro caiu no chão; ai, o encontrei no dia seguinte de manhã
quando saí do meu quarto. Tudo isto com um pouco de angústia
de parte a parte, mas sem que qualquer de nós abrisse a boca.
Entrámos na sala grande e sentei-me ao cantinho da mesa.
Minha mãe sentou-se na minha frente e olhou-me. Parecia
ansiosa e eu estava embaraçada. Disse-me de repente:
- Sabes que enquanto estiveste no quarto houve um certo
momento em que tive medo?
- Medo de quê? - perguntei-lhe.
- Não sei - respondeu-me. - Primeiro senti-me só... tive frio...
E depois já não me sentia eu, tudo girava à minha volta como
quando se bebe, sabes! Tudo me parecia estranho! Pensava: isto é
uma mesa, isto é uma máquina de costura... Mas não me chegava
a convencer de que era realmente uma mesa, a cadeira, a
máquina de costura.. Também tive a sensação de que já não era
eu... dizia: sou uma velha costureira... Tenho uma filha que se
chama Adriana... mas não me convencia... Para me assegurar de
que assim era pus-me a pensar no que tinha sido quando era
pequenina, depois quando tinha a tua idade, quando me casei,
quando tu nasceste... Então tive medo, porque tudo passou como
se tivesse sido ontem; de nova, que era, cheguei bruscamente a
velha sem dar por isso... E quando eu morrer - concluiu com
esforço olhando-me - será como se nunca tivesse existido.
- Porque pensas nessas coisas? - pronunciei lentamente. -
Ainda és nova... Que necessidade tens de pensar na morte?
Pareceu não me ter ouvido e continuou com a mesma énfase,
que me fazia pena e me parecia falsa:
- Digo-te que tive medo! Pus-me a pensar: se uma pessoa
não tem mais vontade de viver, deve continuar a estar neste
mundo à força? Não digo que se mate; para se matar é preciso
coragem; não, mas apenas deixar de querer viver como se deixa de
querer comer, ou de querer andar... Pois bem! Juro-te por alma do
teu pai... Já não queria viver mais!
Tinha os olhos cheios de lágrimas e os lábios trémulos. Eu
estava quase a chorar também, sem saber porque, e levantei-me,
beijei-a e fui sentar-me com ela no canapé, ao fundo do quarto.
Ficámos uns momentos a chorar nos braços uma da outra.
Sentia-me desnorteada, estava muito cansada, e as palavras
incoerentes da minha mãe, com á sua ilógica, aumentavam o meu
desnorteamento. Mas fui a primeira a recompor-me, porque no fim
de contas eu não chorava senão por simpatia. Há muito tempo
que deixara de chorar por mim!
- Então! Então! - comecei a dizer-lhe, dando-lhe palmadas
nas costas.
- Digo-te, Adriana, já não tenho vontade de viver! -
repetia-me chorando.
Afaguei-lhe o ombro sem dizer nada, deixando-a chorar à
vontade. Mas pensava, por minha vez, que as suas palavras eram
a clara expressão do seu remorso. É certo que sempre me tinha
mostrado o exemplo de Gisela e recomendara que me vendesse o
mais caro possível. Mas entre dizer e fazer há uma boa diferença.
Ter trazido um homem a casa, sentir que lhe punha o dinheiro na
mão, era certamente para ela um duro golpe. Agora, que tinha
diante dos olhos o resultado da sua educação, não podia deixar de
sentir-se horrorizada. Mas ao mesmo tempo havia nela uma
espécie de incapacidade para reconhecer que se tinha enganado;
talvez também uma amarga satisfação ao verificar que se
enganara. Tanto assim que, em vez de me dizer francamente
“Procedeste mal... não recomeces”, preferiu falar de coisas que
nada tinham a ver comigo, da sua vida, do seu desejo de deixar de
existir. Tive muita vez ocasião de observar pessoas que no mesmo
momento em que se abandonam a uma acção que sabem ser
repreensável, procuram defender-se e resgatar-se discorrendo
acerca de coisas mais elevadas, susceptíveis de as rodear, a seus
próprios olhos e aos dos outros, de uma aura de desinteresse e de
nobreza bem longe da acção que praticam - ou ainda, para voltar
ao caso da minha mãe -, daquilo que deixam os outros praticar.
Somente, a maior parte actua com inteira consciência; minha
mãe, pelo contrário, coitada, fá-lo sem dar por isso, como o seu
coração e as circunstâncias a inspiram.
Portanto, a sua frase sobre a vontade de não viver
parecia-me justa. Pensava que também eu, logo que descobri a
traição de Gino, desejei deixar de viver. Mas o meu corpo
continuava a viver por sua conta, indiferente à minha vontade.
Este peito, estas pernas, estas ancas, que tanto agradavam aos
homens, continuavam vivas; a minha natureza continuava a
desejar o amor, mesmo sem que eu o quisesse. Estendida na
minha cama, tinha decidido deixar de viver, não acordar no dia
seguinte de manhã; enquanto dormia. o meu corpo continuava
vivo, o sangue corria-me nas veias. o estômago e os intestinos
digeriam, os pêlos despontavam-me nas axilas, onde os tinha
rapado, as unhas cresciam, a pele molhava-se de suor e as forças
restauravam-se. E de manhã cedo, sem que o quisesse, as
pálpebras abriam-se e os meus olhos viam, por mal deles, esta
realidade que detestavam. Em suma, percebia que, a despeito do
meu desejo de morrer, estava ainda viva e devia continuar a viver.
E portanto - concluía eu -, é preciso sujeitarmo-nos a viver e não
pensar mais nisso. Nada disto disse a minha mãe, porque sabia
que estas ideias não eram menos tristes que as suas e não a
consolariam. Mas quando me pareceu que deixara de chorar
aproximei-me dela e disse-lhe:
- Tenho fome!
Era verdade; no restaurante, com o nervosismo, quase não
tinha comido.
- O teu jantar está pronto - respondeu-me, contente por eu
lhe oferecer um meio de se tornar útil e de fazer uma coisa que
fazia todas as noites. - Vou preparar-to.
Saiu e fiquei só.
Sentei-me em frente da mesa, no meu lugar habitual, e
esperei que ela voltasse. Sentia a cabeça oca; de tudo o que se
passara ficara-me apenas o cheiro acre e doce do amor entre os
dedos e o traço seco e salgado das lágrimas no rosto. Olhei,
imóvel, as sombras que o candeeiro suspenso projectava nas
grandes paredes nuas da sala. Minha mãe voltou. Trazia um prato
com carne e legumes.
- A sopa não ta aqueci - disse-me -, porque não ficava boa. E
depois, já não há muita.
- Não faz mal. Isto chega!
Deitou-me vinho tinto no copo e ficou de pé na minha frente,
como sempre que eu comia... imóvel, atenta às minhas ordens.
- O bife está bom? - perguntou-me ansiosamente.
- Está bom, está.
- Pedi tanto ao homem do talho para me dar um bocado
tenro!
Parecia ter acalmado; tudo parecia igual às outras noites.
Acabei lentamente de comer, bocejei, abri os braços e
espreguicei-me. De repente senti-me bem; este gesto bastava para
dar ao meu corpo uma sensação de juventude, força e
contentamento.
- Tenho sono! - declarei.
- Espera... vou fazer-te a cama! - disse minha mãe,
atenciosa, fazendo menção de sair.
- Não, não; eu faço!
Levantei-me; minha mãe levou o prato vazio.
- Amanhã de manhã deixa-me dormir! - recomendei-lhe. -
Não me acordes.
Respondeu-me que me deixaria dormir, e, depois de lhe dar
as boas-noites é de a beijar, retirei-me para o meu quarto. A cama
estava na desordem em que eu e Jacinto a tínhamos deixado.
Limitei-me a ajeitar a almofada e a colcha, despi-me e enfiei-me
nos lençóis. Fiquei durante uns instantes com os olhos abertos no
escuro, sem pensar em nada.
- Sou uma prostituta! - disse por fim em voz alta, para ver o
efeito que isso me produzia.
Tive a impressão de que não me fazia qualquer efeito: fechei
os olhos e adormeci logo a seguir.
8
No decurso dessa semana tornei a ver Jacinto todas as
noites. Ele tinha telefonado a Gisela no dia seguinte de manhã e
Gisela tinha-me dado o recado. Jacinto devia voltar a Milão na
véspera da noite do dia que eu tinha marcado para me encontrar
com Gino; fora esta a razão pela qual consentira em encontrar-me
com ele todas as noites. Doutra maneira, teria recusado, porque
jurara a mim mesma que não teria encontros seguidos com
qualquer homem. Pensava que era preferível, já que tinha que ter
esta vida, fazé-lo francamente, mudando de amante de cada vez,
em lugar de me enganar a mim própria e de me dar a ilusão de
não o fazer deixando-me sustentar por um homem só, com o risco
de me afeiçoar a ele ou de o deixar afeiçoar-se a mim, e perder
assim não só a liberdade física mas também a dos sentimentos.
De resto, guardara intactas as minhas ideias sobre a vida conjugal
e regular; pensava então que se tivesse de me casar não seria com
um amante que me sustentasse e que por fim decidisse tornar
legais, mas não morais, relações de interesse; isso aconteceria
com um rapaz que eu amasse e por quem fosse amada, que fosse
da minha condição, com os mesmos gostos e as mesmas ideias
que eu. Queria, em resumo, que a vida que escolhera ficasse bem
distinta das minhas velhas aspirações, sem contágios nem
compromissos. Porque me sentia, num certo sentido, levada a ser
uma boa esposa e uma boa cortesã, mas incapaz de escolher,
como entendia que devia fazer Gisela, o meio termo hipócrita e
prudente entre as duas soluções. Sem contar que, feitas as
contas, se podia obter mais do escrúpulo de muitos que da
generosidade de um só.
Durante todas aquelas noites, Jacinto levou-me a jantar ao
seu restaurante habitual e acompanhou-me a minha casa onde se
demorava. Minha mãe renunciou a falar destas noites; limitava-se
a perguntar-me se dormira bem quando de manhã entrava no
meu quarto, a uma hora avançada, para me levar o café num
tabuleiro. Este café, já o disse, costumava engoli-lo na cozinha,
muito cedo, de pé, junto da chaminé, ainda com o frio da água
nas mãos e na cara. Mas agora minha mãe trazia-mo ao quarto e
eu bebia-o na cama, enquanto ela abria as persianas e tratava de
dar alguma arrumação ao quarto. Não lhe dizia nunca mais do
que já lhe dissera, mas ela percebera por si própria que tudo tinha
mudado na nossa vida e mostrava pelo seu comportamento que
compreendia que espécie de mudança se operara. Agia como se
entre nós houvesse um acordo tácito e parecia, pelas suas
atenções, pedir-me humildemente que lhe permitisse, na nossa
vida nova, servir-me e tornar-se útil como outrora. Devo dizer que
este hábito de me trazer o café à cama devia tranquilizá-la num
certo sentido, por que muita gente - e minha mãe era dessas -
atribui aos hábitos um valor positivo, mesmo que não tenham,
como este, essa característica. Manifestou o mesmo zelo
introduzindo todos os dias pequenas mudanças da mesma ordem
na nossa vida quotidiana: tanto assim que me preparou uma
grande panela de água quente para me lavar ao levantar, pôs
flores numa jarra no quarto e assim por diante.
Jacinto dava-me sempre a mesmo soma de dinheiro e eu,
sem dizer nada a minha mãe, ia-a depositando no fundo de uma
gaveta, numa caixa onde até agora ela guardara as suas
economias. Ficava com pouco dinheiro para mim. Imaginava que
ela já se tinha apercebido destas adições diárias ao nosso
património, mas nunca trocámos uma única palavra a tal
respeito. Durante a minha vida pude observar que mesmo aqueles
cujo dinheiro tem uma origem lícita não gostam de falar nisso,
não só com estranhos, mas até mesmo com os íntimos. Sem
dúvida liga-se ao dinheiro um sentimento de vergonha ou talvez
de pudor que o risca das conversas normais e se relega para o
plano das coisas secretas inconfessáveis, nas quais não se deve
falar. Como se, qualquer que seja a sua origem, ele fosse sempre
mal adquirido. Talvez também ninguém goste de mostrar o
sentimento que o dinheiro suscita na sua alma: um sentimento
muito forte, quase sempre inseparável de uma sombra de culpa.
Numa dessas noites, Jacinto exprimiu o desejo de dormir
comigo no meu quarto, mas eu, com o pretexto de que os vizinhos
notariam a sua presença de manhã, quando ele saísse, não
consenti. Na realidade, depois da primeira noite, a nossa
intimidade não avançara; mas não por minha culpa. Até ao dia da
nossa separação continuou a portar-se exactamente como na
primeira noite. Era na verdade um homem de valor nulo ou quase
nulo na intimidade, e tudo o que eu podia sentir por ele já o
sentira na primeira noite, enquanto dormia. A ideia de dormir com
um homem assim repugnava-me; depois receava que me
aborrecesse, porque tinha a certeza de que me obrigaria a estar
acordada uma parte da noite para me fazer confidências e
falar-me dele. No entanto, ele não se apercebeu nem do meu
aborrecimento nem da minha antipatia e partiu convencido de ter
sido, durante aqueles dias, extraordinariamente simpático.
Chegou o momento do meu encontro com Gino. Aconteceram
tantas coisas no decurso destes dez dias que eu tinha a impressão
de que se tinham passado cem anos depois do tempo em que o via
antes de ir para o atelier a fim de ganhar dinheiro e montar a
minha casa e me considerava como uma noiva prestes a casar-se.
Ele foi pontual e chegou à hora que lhe tinha marcado; quando
subi para o carro, tive a impressão de que ele estava
extremamente pálido e parecia atrapalhado. Ninguém gosta de
sentir que se lhe atira à cara uma traição, mesmo o traidor mais
corajoso; ao longo destes dez dias de interrupção das relações
habituais ele deve ter reflectido muito e feito muitas suposições.
Todavia, eu não mostrava qualquer ressentimento, e
verdadeiramente não necessitava de fingir, porque o meu espírito
estava tranquilo; passada a primeira dor da desilusão, a minha
alma inclinava-se para uma espécie de indulgente e céptica
afeição. Em resumo, ainda gostava de Gino e foi o que percebi logo
que lhe deitei o primeiro olhar. Já era muito.
Enquanto o carro se dirigia para a moradia, perguntou-me,
passados uns instantes:
- Então, o teu confessor mudou de ideias?
Tinha um tom brincalhão, mas ao mesmo tempo pouco
seguro. Respondi-lhe simplesmente:
- Não... eu é que mudei de ideias...
- E esse trabalho para a tua mãe acabou?
- Por agora.
- É estranho.
Não sabia o que dizia; mas era claro que procurava picar-me
para ver se as suas suposições eram verdadeiras.
- É estranho porquê?
- Falei por falar.
- Não acreditas que o tenha feito?
- Não acredito nem deixo de acreditar.
Decidi atrapalhá-lo, mas à minha maneira, fazendo o jogo do
gato e do rato, sem as violências aconselhadas por Gisela e que
não eram para o meu feitio. Perguntei-lhe com coquetterie:
- Estarás com ciúmes?
- Eu, com ciúmes? Pelo amor de Deus!
- Estás com ciúmes, estás! Se fores sincero, tens de o
confessar!
Mordeu o anzol que lhe preparara e declarou:
- No meu lugar qualquer pessoa estaria com ciúmes!
- Porquê?
- Ora! Como queres que te acredite! Um trabalho tão
importante que não te permite dispensar cinco minutos para me
falar... Vamos!
- E no entanto é a verdade: trabalhei muitíssimo - disse-lhe
tranquilamente.
Era verdade. Que outra coisa era senão trabalho o que eu
tinha com Jacinto todas as noites?
- E ganhei com que pagar as nossas prestações e o meu
enxoval - acrescentei, troçando de mim própria. - Assim, pelo
menos, podemo-nos casar sem dívidas!
Ele nada disse. Estava quase convencido a acreditar na
verdade das minhas afirmações e a abandonar as suas primeiras
desconfianças. Tive então um gesto que me era habitual dantes:
passei-lhe um braço em torno do pescoço enquanto conduzia e
beijei-o por baixo da orelha, murmurando-lhe:
- Porque tens ciúmes? Sabes bem que só tu existes na
minha vida!
Chegámos à moradia. Gino entrou com o carro no jardim e,
fechando o portão, dirigiu-se comigo para a porta de serviço. Era
ao entardecer; brilhavam já as primeiras luzes nas janelas das
casas vizinhas; pareciam vermelhas na bruma azulada desta tarde
de Inverno. O corredor da cave estava muito escuro e sentia-se um
cheiro a bafio. Parei e disse-lhe:
- Esta tarde não quero ir para o teu quarto!
- Porquê?
- Quero que vamos para o quarto da tua patroa.
- Tu estás doida! - gritou, escandalizado.
Tínhamos ido muita vez aos quartos lá de cima, mas as
nossas relações tínhamo-las tido sempre na cave.
- É um capricho... Que mal há nisso? - disse-lhe.
- Há muito... pode partir-se alguma coisa... que sei eu? Se
eles descobrem, que vou eu fazer?
- Olha a grande coisa! - gritei com ar trocista. - Despedem-te
e pronto!
- Vês como dizes isso?
- Como querias que dissesse? Se me quisesses de verdade,
não pensarias um minuto.
- Amo-te, mas não me peças isso; nem é bom pensar nisso;
não quero sarilhos!
- Mas nós tínhamos cuidado... eles não dariam por isso!
- Não! Não!
Eu estava perfeitamente calma. Continuei a fingir uma
atitude que não sentia e gritei:
- Então eu, que sou a tua noiva, peço-te para me fazeres um
gosto, e tu, com medo que eu ponha o meu corpo onde a tua
patroa põe o seu e que apóie a minha cabeça onde ela apóia a sua,
recusas-mo? Mas que imaginas tu? Que ela vale mais do que eu?
- Não, mas...
- Valho dez mulheres como ela - continuei. - Pior para ti! Não
tens mais que ir para a cama com os lençóis e a almofada da tua
patroa... Eu vou-me embora!
Já o fiz notar: o respeito e a timidez que lhe inspiravam os
patrões eram grandes; orgulhava-se ingenuamente deles, como se
de qualquer maneira a sua riqueza fosse a dele; no entanto,
quando me ouviu falar desta maneira e me viu disposta a ir-me
embora com uma decisão nova a que ele não estava habituado,
perdeu a cabeça e correu atrás de mim, gritando:
- Mas espera... aonde vais? Falei por falar... vamos para
cima se isso te dá prazer!
Fiz-me ainda um pouco rogada, tomando ares ofendidos,
depois aceitei. Foi assim que, enlaçados e parando de tempos a
tempos sobre os degraus para nos beijarmos, exactamente como
da primeira vez, mas com um estado de espírito bem diferente,
pelo menos no que me dizia respeito, subimos ao andar superior.
Uma vez no quarto da sua patroa, ele objectou:
- Queres mesmo meter-te na cama?
- E porque não? - respondi tranquilamente. - Não estou
disposta a apanhar frio!
Calou-se, desnorteado. Eu, depois de ter preparado a cama,
passei para a casa de banho, acendi o esquentador e abri a
torneira da água quente muito pouco, de maneira que a tina não
se enchesse muito depressa. Gino seguiu-me inquieto e
descontente. Protestou de novo:
- Vais tomar banho também?
- Eles também não tomam banho antes de irem para a cama
fazer o que nós vamos fazer?
- Eu é que sei o que eles fazem? - respondeu-me encolhendo
os ombros.
Eu via que lá no fundo estas audácias não o desgostavam;
somente, custava-lhe a aceitá-las. Era um homem pouco corajoso
que não gostava de desobedecer. Mas as infracções às regras
atraíam-no, até porque raramente se permitia praticá-las.
- Afinal tens razão - disse, passados uns momentos, com um
sorriso ao mesmo tempo mortificado e desejoso, apalpando os
colchões. - Está-se melhor aqui que no meu quarto!
Sentámo-nos na beira da cama.
- Gino - disse, deitando-lhe os braços à roda do pescoço. -
Como vai ser bom, quando tivermos uma casa para nós os dois...
Não será como esta, mas será a nossa.
Não sei bem porque falava assim. Provavelmente porque
sabia de antemão que todas estas coisas eram impossíveis e
gostava de me ferir onde mais me doesse.
- Sim, sim - disse abraçando-me.
- Eu sei o que quero da vida - continuei com o sentimento
cruel de falar numa coisa para sempre perdida. - Não preciso de
uma bela casa como esta. Bastam-me dois quartos e uma cozinha,
mas com tudo o que é necessário e asseada como um espelho.
Viver tranquila lá dentro, sairmos juntos ao domingo, comer
juntos, dormir juntos... Pensa bem como vai ser bom, Gino!
Ele nada disse. Para dizer a verdade, falando assim, eu já
não sentia a menor emoção. Tinha a impressão de representar um
papel; estava no palco. Mas já não me parecia agora tão amargo.
Esta personagem, tão fria e exterior, que não suscitava da minha
parte a menor participação, tinha sido eu própria dez dias antes.
Entretanto, enquanto eu falava, Gino despia-me impaciente e
apercebi-me uma vez mais, como no momento em que subi para o
carro, de que continuava a gostar dele, o que me fez pensar com
tristeza e despeito que era talvez mais o meu corpo, sempre pronto
a aceitar o prazer, do que o meu espírito, agora distante, que me
tornava tão indulgente e disposta a perdoar. Ele acariciava-me e
beijava-me e as suas carícias e os seus beijos faziam-me arder o
cérebro: o prazer dos sentidos era mais forte do que a revolta do
coração.
- Matas-me - murmurei cheia de desejo, caindo sobre a
cama.
Mais tarde enfiei as pernas debaixo dos lençóis; ele fez o
mesmo e ficámos deitados com a colcha bordada deste leito
luxuoso puxada até ao queixo. Uma espécie de dossel, suspenso
sobre as nossas cabeças, deixava cair em torno do travesseiro
várias camadas de tule branco e vaporoso. Todo o quarto era
branco, com cortinados leves nas janelas, lindos móveis baixos
encostados às paredes e objectos brilhantes de vidro, de mármore
e de metal. Os lençóis finos e sedosos pareciam acariciar-me o
corpo, o colchão cedia docemente a cada movimento, acordando
nos membros um profundo desejo de dormir e de repousar. Da
casa de banho, pela porta aberta, o ruído da água caindo na tina
chegava-me aos ouvidos como um gorjeio tranquilo. Sentia o
maior bem-estar e nenhum rancor contra Gino. O momento
pareceu-me propício para lhe dizer que sabia tudo, porque estava
certa de lho dizer gentilmente, sem sombra de ressentimento.
- Então, Gino - disse-lhe com voz acariciadora, depois de um
longo silêncio -, a tua mulher chama-se Antonieta Partini?
Com certeza que dormitava, porque teve um violento
sobressalto, como se o sacudissem bruscamente pelos ombros.
- Mas, que estás a dizer? - perguntou.
- E a tua filha chama-se Maria, não é?
Quis protestar de novo, mas olhou-me nos olhos e
compreendeu que seria inútil. Tínhamos a cabeça na mesma
almofada, os rostos lado a lado e eu falava-lhe quase sobre a sua
boca.
- Pobre Gino! - continuei. - Porque me disseste tantas
mentiras?
- Porque te amava! - respondeu-me com violência.
- Se me amasses realmente, devias ter pensado que logo que
descobrisse a verdade iria sofrer muito... Mas não pensaste nisso,
não foi, Gino?
- Amava-te, perdi a cabeça...
- Isso basta - interrompi -, de momento magoou-me muito...
Não pensava que fosses capaz... Mas agora acabou-se... não
falemos mais nisso... Para já, vou tomar banho.
Desembaracei-me das roupas, levantei-me e fui para a casa
de banho. Gino deixou-se ficar onde estava.
A tina estava cheia de água quente e azulada, que
contrastava de forma agradável com as cerâmicas brancas e as
torneiras cintilantes. Entrei na tina e pouco a pouco mergulhei no
líquido escaldante.
Uma vez estendida no fundo da tina, fechei os olhos. Não
vinha qualquer ruído do quarto ao lado. Gino ruminava com
certeza a minha declaração e procurava elaborar um plano para
não me perder. Sorri ao pensar nele, perdido na grande cama de
casal com a notícia dada em pleno rosto, como uma bofetada. Mas
sorria sem maldade, como se ri de uma coisa cómica e que em
nada nos afecta, porque não sentia o menor rancor contra ele.
Conhecendo-o agora como ele era na realidade, tinha quase a
impressão de nutrir por ele uma espécie de afeição. Em seguida,
ouvi-o andar no quarto; devia estar a vestir-se. Passado um
momento, apareceu à porta da casa de banho e olhou-me com
olhos de cão batido, como se não ousasse entrar.
- Então não nos tornamos a ver?... - disse-me em voz baixa
depois de um longo silêncio.
Compreendi que realmente gostava de mim, embora à sua
maneira, sem que lhe repugnasse mentir-me e atrair-me a uma
armadilha.
Lembrei-me de Astárito e pensei que Astárito também me
amava - mas também à sua maneira. Respondi-lhe, enquanto
ensaboava um braço.
- Porque não nos havemos de ver mais? Se não te quisesse
tornar a ver, não teria vindo hoje. Continuaremos a ver-nos... mas
menos vezes.
Estas palavras pareceram dar-lhe coragem.
- Queres que te ensaboe? - perguntou-me entrando na casa
de banho.
Não pude deixar de pensar em minha mãe, também ela cheia
de atenções e cuidados comigo.
E respondi secamente:
- Se quiseres... As costas, que eu não chego lá.
Gino agarrou o sabonete e a esponja; pus-me de pé e ele
ensaboou-me as costas todas. Olhava-me no espelho que estava
em frente da tina, a toda a altura, e parecia-me ser a dona de
todas aquelas belas coisas. Ela também se poria de pé como eu
estava agora e uma criada de quarto, uma pobre rapariga como
eu, a ensaboaria e a lavaria respeitosamente e com mil cuidados
para não a arranhar. Pensava em como devia ser agradável, em
lugar de se usar as próprias mãos, ser-se servida por outra
pessoa, ficar tranquila e inerte enquanto outra, cheia de respeito e
solicitude, se incomodaria para nos servir.
A ideia que me assaltou quando entrara pela primeira vez
nesta casa de que toda nua, desembaraçada dos meus trapos, eu
valia tanto como a patroa de Gino, voltou a assaltar-me. No
entanto, o meu destino era diferente do dela; era uma injustiça.
Irritada, disse a Gino :
- Já chega!
Ele foi buscar um roupão de banho e enquanto eu saía da
tina pousou-mo nos ombros para que me pudesse enrolar nele.
Tentou beijar-me, talvez para ver se eu lho permitiria. Eu, de pé,
envolta no tecido branco, deixei-o beijar-me o pescoço. Em
seguida começou a friccionar-me em silêncio, o corpo todo,
começando pelos tornozelos e subindo até ao seio com um zelo e
uma habilidade como se não tivesse feito outra coisa durante toda
a vida; fechei os olhos imaginando de novo que eu era a patroa e
ele a criada de quarto. Gino tomou a minha atitude passiva por
uma entrega e bruscamente senti que deixara de me friccionar e
me acariciava. Então repeli-o, deixei cair a toalha, e com o corpo
já bem seco tornei a entrar no quarto, nas pontas dos pés. Gino
ficou na casa de banho a despejar a tina. Vesti-me à pressa e olhei
em torno examinando o mobiliário. Parei em frente do toucador,
semeado de objectos de madrepérola e ouro. Reparei, num canto,
no meio de escovas e de frascos de perfume, numa pequena caixa
de pó de arroz toda de ouro. Peguei nela e olhei-a. Era muito
pesada e parecia maciça. Era quadrada, inteiramente cinzelada e
um grande rubi servia de fecho. Tive uma impressão, não tanto de
tentação como de descoberta; de futuro podia fazer tudo, até
mesmo roubar. Abri a mala e meti nela a caixa, que caiu com todo
o seu peso entre as moedas miúdas e as chaves de casa.
Experimentei ao tirá-la uma alegria sensual muito parecida com a
que me inspirava o dinheiro recebido dos amantes. Para dizer a
verdade, não sabia o que iria fazer com uma coisa tão preciosa,
que não dizia nem com as minhas toilettes nem com a vida que
levava. Tinha a certeza de que nunca me serviria dela. Mas
roubando obedeci à lógica que determinava daí em diante as
vicissitudes da minha vida. Pensava que uma vez a casa
construída era preciso pôr-lhe um tecto.
Gino entrou no quarto. Com um cuidado servil, arranjou a
cama e todos os objectos que lhe pareceram ter sido
desarrumados.
- Ora! Ora! - disse-lhe com desdém, quando o vi, depois
deste trabalho, olhar em volta com ansiedade, para se certificar se
tudo estava no seu lugar habitual. - Ora! A tua patroa não dá por
coisa alguma. Ainda não é desta vez que vais para a rua!
Notei que ao ouvir as minhas palavras o seu rosto se crispou
dolorosamente e senti remorsos por té-las dito, porque eram
maldosas e nem sequer eram sinceras.
Não abrimos a boca, nem enquanto descíamos a escada
interior nem depois no jardim, quando subimos para o carro.
Tinha anoitecido havia muito. Assim que o carro começou a
percorrer as ruas do bairro elegante, como se eu esperasse apenas
por esse momento, comecei a chorar docemente. Não sabia porque
chorava, mas a minha amargura era enorme.
Não sou feita para representar papéis de mulher desiludida
ou desesperada, e durante toda a tarde em que me tinha
esforçado por parecer serena, muitos dos meus gestos e muitas
das minhas palavras traziam a marca da desilusão e da raiva. Pela
primeira vez, através das lágrimas, experimentava um verdadeiro
rancor contra Gino, cuja traição me levava a sentimentos que não
gostava de sentir e que não estavam de acordo com o meu
carácter. Pensava que sempre fora doce e boa e que talvez
doravante já não o fosse, e esta ideia enchia-me de desespero.
Teria querido perguntar a Gino: “Porque fizeste tudo isto? Como
poderei esquecer?” Mas calei-me, deixando correr as lágrimas e
sacudindo de vez em quando a cabeça para as fazer tombar dos
olhos, como se sacode um ramo para fazer cair os frutos mais
maduros. Atravessámos a cidade toda quase sem que eu desse por
isso. O carro parou, desci e estendi a mão a Gino dizendo :
- Telefonar-te-ei.
Olhou-me esperançado, mas a sua expressão mostrou-se
espantada quando me viu a cara banhada de lágrimas. Mas não
teve tempo de falar; fiz-lhe um gesto de despedida acompanhado
de um sorriso contrafeito e afastei-me.
9
Foi assim que a minha vida começou a girar sempre para o
mesmo lado e com as mesmas personagens, como o carrocel do
Luna Parque que eu via, rapariguinha, da janela da minha casa e
do qual o brilhante girar me enchia de alegria o coração.
Também no carrocel há poucas personagens e sempre as
mesmas. Ao som de uma música estridente e desafinada, vêem-se
desfilar o cisne, o gato, o automóvel, o cavalo, o trono, o dragão e
o ovo e assim por diante, durante toda a noite. Eu também via
girar as silhuetas dos meus amantes, quer fossem homens que eu
já conhecesse quer fossem desconhecidos, em tudo parecidos com
os primeiros. Jacinto vinha de Milão, donde me trazia meias de
seda, e durante algum tempo via-o todas as noites. Depois Jacinto
tornava a partir e recomeçava a ver Gino, uma ou duas vezes por
semana. Noutras noites ia com outros homens que encontrava na
rua ou que Gisela me apresentava. Havia os jovens, os menos
jovens e os velhos; alguns simpáticos, que me tratavam com
gentileza, outros desagradáveis, que me consideravam como um
objecto comprado e vendido; mas no fundo, como decidira não me
prender a alguém, era sempre a mesma música.
Encontrávamo-nos na rua, ou no café, íamos por vezes jantar
juntos, depois corríamos para minha casa. Aí fechávamo-nos no
quarto, eu entregava-me, falávamos um pouco, depois o homem
pagava e ia-se embora e eu passava para a sala grande, onde
minha mãe me esperava. Se tinha fome comia e em seguida
deitava-me. Algumas vezes, mas muito raramente, se ainda era
cedo, tornava a sair e voltava à cidade a procurar outro homem.
Mas havia também os longos dias em que ficava em casa sem
fazer nada e sem querer ver ninguém. Tornara-me muito
preguiçosa, de uma indoléncia triste e voluptuosa, e assaltava-me
uma sede de repouso e de tranquilidade que não era somente a
minha, mas a da minha mãe e de toda a raça de seres sempre
fatigados e sempre pobres, a que eu pertencia. Frequentemente,
ao ver a gaveta das economias vazia, isso bastava para me fazer
sair de casa e me levar a calcorrear as ruas em busca de um
companheiro; mas também com frequência a minha preguiça me
vencia, e preferia pedir dinheiro emprestado a Gisela ou mandar
minha mãe comprar a crédito nas lojas.
E, no entanto, não poderia dizer que realmente esta vida me
desagradava. Depressa percebi que a minha inclinação por Gino
nada tinha de especial ou de única e que no fundo quase todos os
homens, por uma razão ou por outra, me agradavam. Não sei se
isto acontece a todas as mulheres que levam a mesma vida que
eu, ou se indica a presença de uma particular vocação; o que sei é
que sentia todas as vezes um frémito de curiosidade e de
expectativa que raramente resultava em decepção.
Dos jovens, gostava dos corpos compridos, magros, ainda
adolescentes, os gestos desajeitados, a timidez, os olhos
acariciadores, os lábios e os cabelos cheios de frescura. Dos
homens maduros, gostava dos braços musculosos, largos peitos,
um não sei quê de maciço e de possante que a virilidade empresta
aos ombros, ao ventre e às pernas; por fim até mesmo os velhos
me agradavam, pois o homem não é, como a mulher, escravo da
idade; até na velhice eles conservam um encanto particular. O
facto de mudar todos os dias de amante permitia-me distinguir à
primeira vista qualidades e defeitos com a precisão e a penetração
de observação que só a experiência permite adquirir. Além disso, o
corpo humano era para mim uma fonte inesgotável de um prazer
misterioso e nunca saciado; mais de uma vez me surpreendi a
acariciar com os olhos ou a tocar com as pontas dos dedos os
membros dos meus companheiros de uma noite, com se quisesse,
para além das superficiais relações que nos uniam, penetrar o
sentido do seu interesse por mim e explicar a mim própria por que
motivo me atraíam tanto. Mas procurava esconder esta atracção o
mais que podia, porque estes homens, na sua vaidade sempre
desperta, podiam tomá-la por amor e imaginar que me apaixonara
por eles, quando na realidade o amor - pelo menos como eles o
entendiam - nada tinha a ver com o meu sentimento, o qual se
parecia mais com o respeito e a vibração que experimentava
antigamente quando frequentava a igreja assistindo a certos actos
religiosos.
O dinheiro que ganhava desta maneira não era tanto como
poderia imaginar-se. Primeiro, nunca chegava a ser tão ávida e
venal como Gisela. Decerto que esperava que me pagassem porque
se eu “ia” com os homens não era para me divertir; mas a minha
natureza levava-me a entregar-me mais por uma espécie de
exuberância física do que por espírito de lucro, e não pensava no
dinheiro senão no momento em que me pagavam, o que era tarde.
Sempre tive a convicção de que a mercadoria que eu fornecia aos
homens nada me custava e não se pagava; recebia esse dinheiro
mais como um presente do que como um salário: parecia-me que
o amor não devia pagar-se e nunca estava bem pago; presa a esta
modéstia e a esta presunção, sentia-me incapaz de fixar um preço
que não me parecesse arbitrário; também quando me davam
muito, agradecia com uma excessiva gratidão, e quando me
davam pouco nunca me sentia roubada nem protestava. Só mais
tarde, levada por algumas decepções amargas, é que me decidi a
imitar Gisela, que discutia as suas condições antes de chegar a
acordo. Mas ao princípio corava, murmurava os preços entre
dentes; muitos não me percebiam; tinha sempre que repetir.
Havia ainda outro motivo que tornava insuficiente o dinheiro
que ganhava. Olhando às despesas muito menos que dantes,
permitindo-me a compra de muitos mais vestidos, perfumes,
artigos de toilette e outros objectos semelhantes necessários à
minha profissão, o dinheiro que recebia dos meus amantes não
era mais do que aquele que outrora ganhava sendo modelo e
ajudando minha mãe a trabalhar. Como dantes, e ainda com mais
frequência agora, havia dias em que não tínhamos um centavo em
casa. E como antigamente, e até mesmo pior, a despeito do
sacrifício da minha honra, sentia-me pobre e pensava com
angústia na insegurança do dia de amanhã. Sou de natureza
alegre e calma; esta inquietação nunca tomou em mim um
carácter de obsessão, como noutras pessoas menos equilibradas e
menos indiferentes. Mas estava na minha consciência obscura
como um verme de um velho móvel; advertia-me constantemente
de que eu estava desprovida de tudo, que não podia esquecer esta
precária condição e descansar, nem melhorar definitivamente com
a profissão que escolhera.
Aquela que nada sentia, ou pelo menos parecia não sentir
qualquer inquietação, era minha mãe. Dissera-lhe logo que não
era necessário que desperdiçasse a sua vida cosendo o dia inteiro.
Como se toda a vida ela não esperasse outra coisa que esta
advertência, abandonou imediatamente a maior parte do trabalho
e limitou-se à execução desinteressada de uma ou outra
encomenda, mais para passar o tempo que pelo desejo de ganhar
alguma coisa. Era como se o esforço de todos estes anos, a
começar no tempo em que eu era rapariga e servia uma família
como criadinha, se afundasse bruscamente sem deixar resíduos e
sem remédio, à maneira das velhas casas que logo que se
desmoronam desaparecem, entram em si próprias, se bem que
não tenham uma única parede de pé; nada fica senão um montão
de poeira. Para uma pessoa como minha mãe, o dinheiro queria
dizer comer e descansar até à saciedade. Comia mais que nunca e
permitia-se pequenos luxos que na sua ideia distinguiam os ricos
dos pobres: levantar-se tarde, dormir depois do almoço, passear
de vez em quando. Devo dizer que o efeito que produziu nela esta
mudança de hábitos foi talvez o lado mais desagradável da minha
nova vida. Sem dúvida, os que estão habituados a trabalhar
nunca deviam parar: o descanso, o bem-estar, mesmo de uma
origem boa e lícita - não era porém o caso -, corrompem-nos. Ao
mesmo tempo que a nossa situação melhorava, minha mãe
engordava, ou, para ser mais exacta, dada a rapidez com que
desapareceu a sua magreza ofegante e angulosa, ela inchava de
uma forma doentia e de uma maneira que me pareceu
significativa, embora isso não me surgisse com clareza. As suas
ancas agudas arredondaram-se, os ombros secos cobriram-se, as
faces, que sempre foram cavadas, encheram-se e refloriram como
se tivessem sido assopradas. Mas o pormenor mais triste da sua
transformação física foram os olhos. Outrora grandes e dilatados,
com uma expressão excitada e inquieta, reflectiam agora uma luz
equívoca e ambígua. Tinha engordado, mas sem beleza nem
rejuvenescimento. Parecia-me que era ela quem trazia no corpo e
na cara a marca visível da nossa mudança de vida; nunca a podia
olhar sem experimentar um sentimento penoso misturado de
remorso, compaixão e repugnância. Ela aumentava o meu
mal-estar assumindo atitudes de gulosa e feliz satisfação. Na
realidade, rejubilava por não ser forçada a trabalhar e estas
atitudes eram as de uma mulher que durante toda a sua vida
nunca comera nem descansara o suficiente.
Naturalmente eu não deixava transparecer os meus
sentimentos para não a magoar, sem contar que havia certas
coisas que deveria dizer primeiro a mim antes de as dizer a ela.
Mas de tempos a tempos escapavam-me gestos de contrariedade.
Tinha a impressão de gostar menos dela, agora que estava grande
e gorda e caminhava rolando as ancas, do que quando berrava,
corria e se chorava todo o dia, desgrenhada e ávida. Chegava por
vezes a perguntar a mim própria: “Se tivesse conseguido o
bem-estar por meio de um bom casamento, a minha mãe teria
engordado desta maneira?” Hoje penso que sim; não sei que
sintoma ignóbil eu julgava notar na sua gordura; atribuo-o agora
ao olhar que lhe lançava, carregado, mesmo sem querer, de
clarividência e remorso.
Não escondi durante muito tempo a Gino a minha nova
condição. Tive mesmo a ocasião de lha revelar bem depressa, a
primeira vez em que o vi, quinze dias depois de nos termos
encontrado em casa dos seus patrões. Uma manhã minha mãe
veio acordar-me e, com voz embargada e cúmplice, disse-me:
- Sabes quem está ali à porta e te quer falar? O Gino!
- Diz-lhe que entre - respondi simplesmente.
Um pouco decepcionada com a resposta, abriu a janela e
saiu. Passado um momento, Gino entrou e percebi logo que estava
perturbado e furioso. Nem me deu os bons-dias. Girou em torno
da cama e olhou-me, estendida e ensonada como estava. Depois
6perguntou:
6
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- Pois chama.
Olhou-me e de repente encolerizou-se; talvez tivesse medo
das consequências do meu acto, ou pressentia, de uma maneira
confusa, que a primeira responsabilidade deste roubo era dele.
- Diz-me lá - gritou. - Que te passou pela cabeça? Ah! Foi
para isso que quiseste ir para o quarto da senhora... agora
percebo! Mas eu, minha querida, não quero estar misturado nisto.
Se tu queres roubar, rouba onde muito bem te parecer, mas não
na casa onde trabalho. Uma ladra! Estava fresco se tivesse casado
contigo... teria casado com uma ladra!
Deixei-o dar livre curso à sua raiva, observando-o
atentamente. Admirava-me de o ter achado durante tanto tempo
perfeito. Não havia dúvida, bem perfeito! Quando me pareceu que
acabara as reprimendas, disse-lhe por fim:
- Mas porque te zangaste tanto, Gino? Não te acusam de
teres roubado... Vão falar ainda nisso durante algum tempo e
depois passará à história. Meu Deus, com tantas caixas que tem a
tua patroa, vale bem a pena!
- Mas porque a roubaste? - perguntou-me.
Era claro que queria ouvir dizer aquilo que vagamente
adivinhava.
- Porque sim! - disse-lhe.
- Porque sim não é resposta.
- Então, se tu queres realmente saber - disse-lhe
tranquilamente -, roubei-a, não por inveja nem porque precisasse,
mas porque de futuro até já posso roubar.
- Que queres dizer? - disse-me. Mas eu não o deixei
continuar.
- A noite - expliquei-lhe - vou pelas ruas, procuro um
homem, trago-o para aqui e ele paga-me. Se faço isto, posso
também roubar, não é verdade?
Compreendeu e teve uma reacção característica.
- Também fazes isso?... Mas é perfeito!... Estava fresco se
tivesse casado contigo!
- Não o faria - respondi-lhe. - Comecei a fazê-lo no momento
em que soube que tinhas mulher e filha.
Ele esperava já esta frase.
- Não, minha rica - respondeu-me. - Não deites agora as
responsabilidades para cima das minhas costas. Só se torna
prostituta ou ladra quem o quer ser.
- Então é porque eu já o era sem o saber - disse-lhe. - E tu
não fizeste outra coisa senão oferecer-me a ocasião de o chegar a
ser de facto.
A minha calma mostrou-lhe que era inútil discutir. Mudou
então de táctica.
- Bem... O que és ou o que fazes não é da minha conta...
Mas essa caixa, é preciso que ma devolvas... Senão, mais tarde ou
mais cedo, perderei o meu lugar... Preciso que ma dês e fingirei
que a encontrei... no jardim, por exemplo.
- Porque me dizes tudo isso? - respondi-lhe. - Se é para não
perderes o lugar... podes levá-la... está aí na primeira gaveta do
armário.
Com ar aliviado, precipitou-se para o armário, abriu a
gaveta, agarrou na caixa e meteu-a no bolso. Depois olhou-me de
uma maneira onde havia desejo de reconciliação. Mas não tive
coragem de enfrentar a cena embaraçosa que este olhar me fazia
prever.
- Tens lá em baixo o carro? - perguntei-lhe.
- Tenho.
- Está bem! É tarde, é melhor que não demores; tornaremos
a falar nisto na próxima vez que nos virmos.
- Estás zangada comigo?
- Não.
- Sim, estás!
- Já te disse que não.
Suspirou, curvou-se sobre a cama e deixei que me beijasse.
- Mas telefonas-me? - insistiu, da porta.
- Está descansado.
Foi desta maneira que Gino aceitou o meu novo género de
vida. Mas no dia em que nos tornámos a ver não falámos nem da
caixa, nem do meu trabalho, como se de futuro essas coisas não
tivessem importância e cujo único interesse tivesse sido apenas a
novidade. Portou-se um pouco como minha mãe, salvo que não
pareceu experimentar, nem por um instante, o pavor manifestado
por ela a primeira vez em que eu trouxe Jacinto para casa, e que
me parecia por vezes sentir ainda perpassar por entre a sua
satisfação, ver por debaixo da sua gordura balofa. O importante
do carácter de Gino era, pelo contrário, uma espécie de finura tola
e desentendida. Imagino que logo que conheceu a mudança que a
sua traição operara na minha vida encolheu os ombros dizendo:
“Matei dois coelhos de uma cajadada. Assim não me pode acusar
de coisa alguma e continuarei a ser seu amante.” Há homens que
consideram uma sorte conservar o que possuem, seja o dinheiro, a
mulher e até a própria vida, nem que seja pelo preço da dignidade.
Gino era desses.
Continuei a encontrar-me com ele, porque, como já disse,
me agradava ainda, apesar de tudo, e porque não tinha alguém
que me agradasse mais do que ele, e também porque, se bem que
pensasse que de futuro tudo estava terminado entre nós, não
queria que este fim fosse brusco e desagradável. Nunca gostei dos
cortes decisivos nem de interrupções bruscas. Acho que as coisas
da vida devem morrer por si, assim como nascem, por indiferença
ou por hábito, uma vez que o hábito é uma variedade de fiel
aborrecimento; gosto de as sentir morrer assim, naturalmente,
sem que seja por minha culpa nem por culpa de outrem, e vê-las
pouco a pouco ceder o lugar a outras. Além de tudo, estas
mudanças claras e precisas não existem; quando se quer mudar
precipitadamente, corre-se o risco de ver desabrochar com viva
tenacidade, quando menos se espera, os velhos hábitos que se
tinha a ilusão de ter arrancado de um só golpe e de uma maneira
definitiva. Queria que as carícias de Gino acabassem por me ser
tão indiferentes como as suas palavras; temia, se não deixasse o
tempo agir, vê-lo ressuscitar a cada instante na minha vida,
obrigando-me contra vontade a retomar as nossas antigas
relações.
Uma outra pessoa que tornou a entrar na minha vida
naquele momento foi Astárito. Com ele foi tudo ainda mais
simples do que com Gino. Gisela via-o às escondidas e eu supus
que ele tinha relações com ela só para ter ocasião de saber
notícias minhas. Fosse como fosse, Gisela espiava o momento
favorável para me falar dele; quando lhe pareceu que já tinha
passado bastante tempo e que eu já estaria mais calma,
chamou-me de parte para me dizer que ele lhe pedira notícias
minhas.
- Nada me disse de preciso - acrescentou -, mas senti que
ainda estava apaixonado por ti... Até me fez pena... parecia muito
infeliz... Nada me disse, repito-te, mas percebi que tinha grande
desejo de te tornar a ver... Agora, depois de tudo...
Interrompi-a para lhe dizer:
- Ouve, é inútil continuar a falar dessa maneira.
- De que maneira?
- Com tantas precauções! Diz antes francamente que te
mandou, que me quer ver e que te comprometeste a levar-lhe a
minha resposta.
- Admitindo que seja assim - concordou, desconcertada. -
Então?
- Então? - respondi, tranquila. - Diz-lhe que nada me impede
de o ver... mas como também tenho outros, bem entendido que é
de tempos a tempos, sem compromisso.
Ela ficou estupefacta com a minha calma; estava convencida
de que eu odiava Astárito e nunca consentiria em tornar a vê-lo.
Não compreendia que o ódio e o amor tinham morrido para mim.
Como sempre, pensou que escondia qualquer intenção.
- Tens razão - disse, passados uns instantes, com ar
reflectido -, eu no teu lugar faria o mesmo... Há casos nos quais
tem que se passar por cima das antipatias. Astárito ama-te de
verdade. Era capaz de anular o seu casamento para casar
contigo... Não és parva, tu! E eu que te julgava uma ingênua!
Gisela nunca me tinha compreendido; sabia por experiência
que seria tempo perdido tentar abrir-lhe os olhos; por isso fitei-a
com ar desenvolto e respondi-lhe:
- É assim mesmo - deixando-a num estado de alma onde a
inveja se misturava com a mais injuriosa admiração.
Comunicou a minha resposta a Astárito e tornei a vê-lo na
mesma pastelaria onde encontrei pela primeira vez Jacinto. Gisela
tinha razão; ele continuava a amar-me freneticamente; logo que
me viu ficou pálido como um morto, perdeu toda a segurança e
não abriu a boca. Esta paixão era mais forte do que ele. Penso que
certas mulheres do povo, simples, como minha mãe, por exemplo,
tem razão quando, contando histórias de amor, declaram que
certos homens foram enfeitiçados pela amante. Sem querer e sem
dar por isso, eu exercia sobre Astárito uma espécie de sortilégio;
ele tinha consciência disso, e se bem que tentasse livrar-se com
todas as forças não o conseguia. Tinha, de uma vez para sempre,
feito dele um subordinado; de uma vez para sempre tinha-o
desarmado, paralisado e reduzido a nada. Explicou-me mais tarde
que por vezes, quando estava sozinho, tentava estudar o papel da
personagem fria e desdenhosa que queria representar comigo,
indo até ao ponto de decorar frases, mas que quando me via o
sangue fugia-lhe do rosto e uma espécie de angústia oprimia-lhe o
peito, o espírito turvava-se-lhe, a língua recusava-se a falar. Tinha
a impressão de não poder suportar o meu olhar, perdia a cabeça,
experimentava o desejo irresistível de se lançar de joelhos diante
de mim e de me beijar os pés.
Realmente, ele não era como os outros homens; quero dizer
que dava a impressão de estar obcecado. Na noite em que nos
tornámos a encontrar, depois de termos ido jantar juntos ao
restaurante, sempre num silêncio terno e crispado, apenas
chegados a minha casa, obrigou-me a contar em pormenor, sem
nada omitir, toda a minha vida depois do dia do passeio a Viterbo
até ao meu rompimento com Gino.
- Mas porque te interessa isso tanto? - perguntei, muito
admirada.
- Por nada - respondeu. - Mas para ti que mal tem isso? Não
te preocupes comigo, conta!
- Pela minha parte não me importo! - respondi, encolhendo
os ombros. - Se isso te dá prazer!
E minuciosamente, como me recomendara que o fizesse,
contei-lhe tudo o que se passara depois do passeio: como fora a
explicação com Gino, como seguira os conselhos de Gisela, como
encontrara Jacinto. Só não contei a história da caixa de
pó-de-arroz, nem sei bem porquê, talvez para não o colocar numa
situação falsa, sendo ele, como era, polícia. Fez-me imensas
perguntas, particularmente sobre o meu encontro com Jacinto.
Parecia que nunca tinha os pormenores suficientes: dir-se-ia que
não queria só saber as coisas, mas vê-las, tocá-las e participar
nelas, em suma. Não sei quantas vezes me interrompeu para me
dizer:
- E tu, que fizeste?
Ou ainda:
- Mas ele, que te fez?
Quando eu acabava beijava-me, gaguejando:
- Tudo isto foi por minha culpa!
- Não - respondi, um pouco contrariada. - Não foi culpa de
ninguém.
- Sim! Foi por minha culpa! Fui eu quem te destruiu! Se não
me tivesse portado daquela maneira em Viterbo, tudo se teria
passado de uma maneira diferente!
- Enganas-te! - disse-lhe vivamente. - Se alguém está em
falta é Gino: tu nada tens que ver com isto! Em Viterbo, meu caro,
quiseste possuir-me à força. As coisas que se obtêm dessa
maneira não contam! Se Gino não me tivesse enganado, eu teria
casado com ele; depois contar-lhe-ia o que se havia passado e
seria como se nunca te tivesse conhecido!
- Não, foi por minha causa! Aparentemente a culpa pode ser
de Gino... mas no fundo só eu fui o culpado, só eu!
Parecia ter grande empenho em considerar-se culpado: mas
julguei compreender que, longe de sentir remorsos, tinha prazer
em pensar que me tinha corrompido e desnudado. Sentia prazer...
é dizer muito! Excitava-o. Talvez fosse esse o motivo principal da
sua paixão por mim. Compreendi isso logo que me apercebi de que
muitas vezes, durante os nossos encontros, insistia para que lhe
contasse com pormenores o que se passava entre os meus
amantes ocasionais e eu. No decorrer destas descrições ficava com
uma cara alterada, tensa, atenta, que me desagradava e me fazia
corar. Logo a seguir atirava-se para cima de mim, e enquanto me
possuía repetia-me com uma intensa paixão palavras injuriosas,
brutais, obscenas, que eu não posso repetir e que me pareciam
ofensivas até para a mulher mais depravada. Como esta estranha
atitude podia estar ligada à sua adoração por mim nunca o
compreendi; do meu ponto de vista, é impossível amar uma
mulher sem a respeitar; mas no seu caso, o amor e a crueldade
pareciam misturar-se, emprestando um ao outro a sua cor e a sua
força. Algumas vezes pensava que esta singular volúpia que sentia
em me julgar degradada por sua culpa era-lhe sugerida pelo seu
trabalho de polícia, o qual consistia precisamente, como o percebi,
em procurar o ponto fraco dos acusados, corrompê-los e aviltá-los
de maneira que se tornassem inofensivos. Chegou mesmo a
dizer-me, já não sei a que propósito, que todas as vezes que
conseguia fazer confessar ou domar um acusado, de uma maneira
ou de outra, sentia uma satisfação particular, quase física,
parecida com a da posse amorosa. “O acusado é como uma
mulher - explicava-me. Enquanto resiste tem a cabeça alta. Mas
quando cedeu, uma vez só que seja, não é mais que um farrapo
que se pode retalhar como e onde se quiser.” Portanto, parecia-me
mais provável que o seu carácter cruel e voluptuoso fosse nele
uma coisa inata, e se escolhera esta profissão era porque tinha
feitio para ela e não o caso contrário.
Astárito não era feliz; ainda mais: a sua infelicidade sempre
me pareceu a mais completa e a mais irremediável que vi, porque
não provinha de qualquer motivo exterior, mas de uma
incapacidade, de uma insegurança que nunca consegui
apreender. Quando me fazia contar as minhas experiências
profissionais tinha o costume de se ajoelhar na minha frente, de
pousar a cabeça nos meus joelhos e ficar imóvel nesta posição às
vezes durante uma hora. Não tinha mais que passar-lhe a mão de
vez em quando sobre a cabeça, levemente, como as mães fazem
aos filhos. De vez em quando gemia, talvez mesmo chorasse.
Nunca amei Astárito, mas nesses momentos inspirava-me uma
grande compaixão, porque compreendia que sofria e que não havia
qualquer meio de lhe aliviar o sofrimento.
Era com a maior amargura que falava da família; da mulher,
que odiava, dos filhos, que não amava, dos parentes, que lhe
tinham dado uma infância difícil, e depois, quando ele era ainda
inexperiente, o tinham obrigado a fazer um casamento desastroso.
Ao seu trabalho nem aludia. Chegou até a dizer-me uma vez com
uma estranha expressão:
- Nas casas há muitos objectos que não são limpos, mas que
são úteis... Eu sou um desses objectos: o caixote do lixo...
Mas, de uma maneira geral, tenho a impressão de que
considerava a sua profissão perfeitamente honrosa. Tinha um
grande sentimento do dever, e compreendi, na visita que lhe fiz no
Ministério, que era um funcionário modelo: zeloso, perspicaz,
incorruptível, rígido. Se bem que pertencesse à polícia política,
fazia questão de dar a entender que nada percebia de política.
- Sou uma roda de uma engrenagem que gira com as outras
rodas do rodado - disse-me um dia. - Não sou eu quem manda: eu
executo!
Astárito queria ver-me todas as noites, mas, além do facto de
não querer, como já disse, ligar-me a qualquer homem,
aborrecia-me e deixava-me mal disposta com a sua gravidade
convulsa e as suas bizarrias, tanto que, apesar da piedade que me
inspirava, não podia reprimir um suspiro de alívio quando ele se
retirava. Tentei portanto vê-lo só raramente, não mais que uma
vez por semana. Esta redução dos nossos encontros ao mínimo
contribuiu certamente para manter o ardor e a avidez da sua
paixão por mim; talvez que, se eu tivesse aceitado as propostas,
que constantemente me fazia para ir viver com ele o fosse
habituando à minha presença e acabasse por me ver como eu
realmente era: uma pobre rapariga como havia tantas. Deu-me o
número do telefone que tinha na mesa de trabalho, no Ministério.
Era um número secreto. As únicas pessoas que o conheciam eram
o prefeito da polícia, o chefe do Governo, o ministro e mais um
grupo de pessoas importantes. Quando lhe telefonava respondia
logo, mas, assim que compreendia que era eu, a sua voz, que
antes era tranquila e límpida, tremia e começava a balbuciar.
Estava verdadeiramente submisso, subjugado como um escravo.
Lembro-me de que uma vez, distraída, acariciei-lhe a cara sem
que mo tivesse pedido. Agarrou-me logo a mão para a beijar com
fervor. Chegou a pedir depois que lhe tornasse a fazer
espontaneamente esta carícia, mas as carícias não se fazem de
encomenda.
10
Muitas vezes, já o disse, não tinha vontade de ir procurar os
homens na rua e não saía de casa. Já não me apetecia ficar junto
de minha mãe, porque, embora houvesse entre nós um
entendimento tácito para se não falar do meu “ofício”, a conversa
acabava sempre por girar à volta disso, aborrecida e cheia de
alusões; quase preferia que as coisas se dissessem claramente.
Fechava-me pois no meu quarto, recomendando a minha mãe que
não me incomodasse, e estendia-me em cima da cama. O meu
quarto dava para o pátio através de uma janela sempre fechada;
nenhum barulho chegava do exterior. Dormitava durante algum
tempo, depois levantava-me e girava no quarto, absorvida em
qualquer trabalho, como arrumar alguns objectos ou limpar o pó
aos móveis. Estas ocupações serviam-me de estimulante para pôr
em marcha o maquinismo do meu cérebro e para criar à minha
volta uma atmosfera de intimidade concentrada e bem
entrincheirada. Começava por pensar com profunda crueza e
depois acabava por em nada pensar.
Durante estas horas de solidão havia sempre um momento
em que era tomada por um imenso espanto: parecia-me de
repente ver, com uma clarividência gelada, toda a minha vida e eu
própria, por todos os lados e de todas as maneiras. As coisas que
eu fazia tomavam a clareza de uma síntese. Dizia-me a mim
própria: “Trago aqui muitas vezes homens que encontro na rua
sem me conhecerem... Lutamos enlaçados na cama, como dois
inimigos... Depois dão-me uma folha colorida de papel impresso.
No dia seguinte troco este papel por alimentos, vestidos e outras
coisas necessárias.” Mas este enunciado não era mais que um
primeiro passo no caminho de um espanto mais profundo. Servia
para me desembaraçar o espírito da apreciação que não cessava
de me chocar em relação ao meu ofício; mostravam-me este ofício
como um conjunto de gestos privados de senso, equivalentes a
outros gestos de ofícios diferentes. Pouco depois, um ruído
longínquo vindo da cidade, ou o estalar da mobília no quarto,
davam-me um sentimento obscuro e quase delirante da minha
presença ali. Dizia a mim própria: “Estou aqui e poderia estar
noutro lado. Poderia estar há mil anos ou daqui a mil anos...
Poderia ser uma negra ou uma velha ou mesmo loura,
pequenina...” Pensava que tinha saído de uma obscuridade sem
limites, que tornaria a entrar numa outra obscuridade igualmente
ilimitada e que a minha breve passagem não seria notada senão
por gestos absurdos e fortuitos. Então compreendi que a minha
angústia não era devida às coisas que eu fazia, mas,
profundamente, ao único facto de viver; não era nem bom, nem
mau, mas simplesmente doloroso e sem razão de ser.
Durante aqueles instantes este estado de alucinação
provocou-me um arrepio que me percorreu o corpo todo e me pôs
os cabelos em pé, com formigueiro na raiz. Tive de repente a
impressão de que as paredes da casa, a cidade, e até o mundo, se
desvaneciam, que me encontrava suspensa num espaço vazio,
negro e sem limites, e, para cúmulo, suspensa com os meus
trapos, os meus sonhos, o meu nome, a minha profissão. Uma
rapariga chamada Adriana suspensa no nada. Parecia-me que
esse nada era uma coisa solene, terrível e incompreensível e que o
aspecto mais triste de toda a questão era apresentar-me
precisamente nesse nada com os modos e a aparência que tinha à
noite para me apresentar na pastelaria onde Gisela me esperava.
Não me consolava a ideia de que os outros se moviam e agitavam
de uma maneira também frívola e inadequada dentro deste vazio.
Admirava-me só de que não tivessem disso a consciência, e, como
acontece quando muita gente descobre ao mesmo tempo o mesmo
facto, não comunicassem as suas observações e não falassem
nelas mais frequentemente.
Acontecia-me nesses momentos ajoelhar-me e rezar, mais
talvez por hábito de infância do que por vontade clara e
consciente. Mas não rezava empregando as expressões habituais
das orações; pareciam-me muito longas para o meu súbito estado
de alma. Ajoelhava-me com tal violência que às vezes as pernas
me doíam durante muitos dias, e rezava assim, com força, com
uma voz desesperada: “Cristo, tem piedade de mim”! Não era uma
verdadeira oração, mas uma espécie de fórmula mágica, pela qual
esperava dissipar os meus terrores e reencontrar a realidade
habitual. Depois de gritar desta maneira, impetuosamente, com
todas as forças do meu corpo, ficava muito tempo absorta, com a
cara entre as mãos. Por fim, já em nada pensava, aborrecia-me e
ficava a Adriana de sempre que se encontrava no meu quarto.
Apalpava o corpo, admirando-me de o encontrar intacto e
presente, levantava-me e ia deitar-me. Sentia-me cansada,
dolorida, como se tivesse rolado muito tempo por um talude
pedregoso. Adormecia logo em seguida.
Estes estados de alma, todavia, não exerciam qualquer
influência na minha vida habitual. Continuava a ser a Adriana
habitual, com o seu carácter de sempre, que encontrava os
homens na rua e os trazia para casa por dinheiro, que se dava
com a Gisela, que falava de coisas sem importância com sua mãe
e com os outros. Por vezes parecia-me estranho ser assim tão
diferente, na solidão e em sociedade, nas minhas relações comigo
própria e nas que tinha com os outros. Mas não imaginava que
era só eu a experimentar sentimentos tão violentos, tão
desesperados. Pensava que isso aconteceria a todas as pessoas.
pelo menos uma vez por dia; sentir a vida reduzir-se a um único
estado de angústia inefável e absurdo. E com os outros também,
esta consciência não produzia efeitos visíveis. Logo que saiam de
si próprios, partiam para a sua vida habitual, representando com
sinceridade um papel hipócrita. Esta ideia confirmava a minha
convicção de que todos os homens, sem excepção, são dignos de
compaixão, quanto mais não seja só pelo facto de estarem vivos.
SEGUNDA PARTE
1
Agora, eu e Gisela já não éramos apenas amigas, mas sim
uma espécie de sócias. Nunca estávamos de acordo quanto aos
lugares que devíamos frequentar, porque Gisela preferia os
restaurantes de luxo, ao passo que eu gostava mais dos cafés de
terceira ordem ou simplesmente da rua. Mas, devido precisamente
a esta diferença de gostos, tinha-se concluído entre nós uma
espécie de pacto: cada uma de nós acompanharia a outra, dia sim,
dia não, aos seus lugares predilectos. Uma noite, depois de um
jantar infrutífero num restaurante, regressávamos juntas a casa
quando observei que éramos seguidas por um carro. Preveni
Gisela e arrisquei-me a dizer-lhe que talvez não fosse tolice deixar
que eles chegassem à fala connosco. Gisela, que estava de mau
humor, porque tinha tido de pagar o jantar e estava quase sem
dinheiro, disse com mau modo:
- Vai tu, se quiseres! Cá por mim vou para a cama.
Entretanto, o carro tinha-se abeirado do passeio e
seguia-nos passo a passo. Gisela caminhava do lado da parede e
eu do lado de fora. Olhei disfarçadamente para o automóvel e vi
que dentro dele vinham dois homens. Interroguei Gisela a meia
voz:
- Que vamos fazer? Se tu não vens, eu também não vou.
Gisela deitou também um olhar de lado para o carro, que
continuava a seguir-nos devagarinho, e, parecendo resignar-se de
repente, respondeu-me:
- Está bem! Mas este sistema não me agrada... Andamos
ainda umas dezenas de metros, sempre seguidas pelo carro,
depois Gisela virou a esquina e metemos por uma travessa
acanhada e sombria, com um passeio muito estreito que se
estendia ao longo de uma parede coberta de cartazes. Ouvimos o
carro voltar também e logo a seguir a luz branca e crua dos faróis
iluminou-nos. Tive a sensação de que esta luz me despia e me
pregava nua na parede molhada, sobre os cartazes rotos e
desbotados. Paramos. Gisela, irritada, disse-me a meia voz:
- Se isto são maneiras! Vamos para casa!
- Não, não... - supliquei eu.
Não sei porquê, apoderara-se de mim um desejo fortíssimo
de conhecer os homens do carro.
- Que importância tem isso? - continuei. - Todos eles
procedem assim.
Gisela encolheu os ombros e no mesmo momento os faróis
apagaram-se; depois o carro veio parar junto de nós. O condutor
deitou de fora a cabeça loura e disse, numa voz sonora:
- Boas noites!
- Boas noites - respondeu Gisela com ar digno.
- Onde vão as duas, assim tão sós? - continuou o homem. -
Podemos acompanhá-las?
Apesar da sua entoação irônica, como de alguém que se
julga terrivelmente espirituoso, estas frases eram rituais. Ouvi-as
depois centenas de vezes. Sempre muito séria, Gisela respondeu:
- Depende...
Esta era, também, a sua resposta de sempre.
- Ora, ora! - insistiu o homem. - Depende de quê?
- Quanto é que tencionam pagar-nos? - perguntou Gisela
encostando-se à porta do carro.
- Quanto pedem vocês?
Gisela disse uma importância.
- Vocês são caras - respondeu o rapaz. - Muito caras! Mas
parecia decidido a aceitar. O seu companheiro debruçou-se para
ele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O louro encolheu os
ombros e. dirigindo-se a nós, continuou:
- Está bem. Subam...
O seu companheiro desceu e foi sentar-se no assento de trás
convidando-me a entrar com um gesto. Gisela sentou-se ao lado
do condutor, que lhe perguntou:
- Para onde vamos?
- Para casa de Adriana - respondeu Gisela. E deu-lhe a
minha morada.
- Bem. Vamos lá então para casa da Adriana...
Geralmente, quando me encontrava com homens que não
conhecia, num carro ou em qualquer outra parte, ficava imóvel e
silenciosa, esperando as suas palavras ou os seus gestos. Sabia
perfeitamente que em geral não era preciso encorajá-los a tomar a
iniciativa. Por isso limitei-me a aguardar os acontecimentos
enquanto o carro percorria rapidamente as ruas. Do homem que o
acaso me destinava para companheiro dessa noite não via senão
duas mãos longas e brancas, pousadas nos joelhos. Ele também
não falava e conservava-se imóvel, encostado para trás, com a
cabeça no escuro. Pensei que era tímido e simpatizei
imediatamente com ele. Eu também já assim fora, e o espectáculo
da timidez emocionava-me sempre, porque me recordava a minha
paixão por Gino. Gisela não havia meio de se calar. Um dos seus
grandes prazeres era conversar com os clientes com um ar
superior e bem educado, como se fosse uma senhora em
companhia de homens que a respeitassem. A certa altura,
perguntou :
- Este carro é seu?
- É. Agrada-te?
- É cômodo - respondeu Gisela com ar superior. - Mas gosto
mais dos Lancia. Andam mais e tém uma suspensão melhor. O
meu noivo tem um.
Realmente Ricardo tinha um Lancia. Simplesmente, o que
ele nunca fora era noivo de Gisela. O rapaz desatou a rir e
respondeu:
- O que ele deve ter é um Lancia de duas rodas...
Gisela era fácil de irritar. Respondeu com ar ofendido:
- Por quem me toma você?
- Não sei. Diga-me por quem a devo tomar, não vá eu
enganar-me...
Outra das ideias fixas de Gisela era fazer-se passar aos olhos
dos seus amantes de acaso por aquilo que não era, nem nunca
tinha sido: bailarina, dactilógrafa, senhora respeitável, sem
reparar que essas pretensões não condiziam com a facilidade com
que ela se deixava abordar e discutir logo de entrada o aspecto
material da questão.
- Somos dançarinas da troupe Caccini - declarou ela com um
ar muito sério. - Não temos o hábito de aceitar convites de
desconhecidos. Aliás, eu não queria aceitar. A minha colega é que
insistiu tanto... Se o meu noivo suspeitasse disto, havia de ser
bonito!
O rapaz que ia ao volante riu de novo:
- Bem. Eu e o meu amigo somos realmente duas pessoas
decentes. Quanto a vocês, são duas prostitutas de rua. Mas que
importância tem isso?
Foi então que o meu companheiro falou pela primeira vez.
- Pára, João Carlos - disse com uma voz tranquila.
Eu não disse palavra. Não me agradava aquela classificação,
principalmente com a manifesta intenção de ofender que se notava
no tom de voz com que João Carlos falava. Mas, ao fim e ao cabo,
o que ele dissera era verdade.
- Isso é mentira e você não passa de um ordinarão!
O rapaz não respondeu, mas parou o carro junto do passeio.
Estávamos numa rua pouco frequentada e mal iluminada. O
condutor voltou-se para Gisela.
- E se eu te pusesse fora do carro?
- Experimenta! - respondeu Gisela, agressiva.
Gisela era extremamente desordeira e de ninguém tinha
medo.
Então o meu companheiro inclinou-se para a frente e eu vi
pela primeira vez o seu rosto. Era moreno, com os cabelos em
desordem, a testa alta, grandes olhos sombrios e brilhantes, um
nariz bem desenhado, a boca sinuosa e um horrendo queixo
fugidio. Era extremamente magro. Interrogou o amigo:
- Vais acabar com essa discussão idiota?
A pergunta foi feita com energia, mas sem irritação, como se
ele interviesse num assunto em que, na verdade, não estivesse
directamente interessado nem lhe desse importância. A sua voz
não era muito forte, nem muito masculina e até, com frequência,
soava a falsete.
- Que tens tu com isso? - respondeu o outro, bruscamente.
Mas isto foi dito num tom de voz de quem já está
arrependido da sua brutalidade e que no fundo ficasse bastante
satisfeito com a intervenção do amigo.
- Que maneiras são essas? - tornou o outro. - Que diabo!
Convidámo-las, elas confiam em nós, e em paga dizemos-lhes
insolências e insultamo-las. Achas bem? Dirigindo-se agora a
Gisela, disse-lhe, ao mesmo tempo com gentileza e com
autoridade:
- Não faça caso, menina. Ele bebeu talvez um pouco mais do
que devia. Garanto-lhe que não tinha a intenção de a ofender.
O louro fez um gesto de protesto, mas o meu companheiro
forçou-o a calar-se pondo-lhe a mão num braço e dizendo-lhe em
tom peremptório:
- Já te disse que bebeste demais e que não tinhas intenção
de a ofender. E agora, vamos embora!
- Eu não aceitei a vossa companhia para ser insultada -
começou Gisela, numa voz pouco firme.
O moreno deu-lhe imediatamente razão.
- Com certeza! Ninguém gosta de ser insultado. É tudo
quanto há de mais natural...
O louro olhava-nos com ar aparvalhado. Tinha o rosto
encarnado, coberto de marcas irregulares, como pisaduras, uns
olhos azuis perfeitamente redondos e uma grande boca sensual e
glutona. Olhou primeiro para o amigo, depois para Gisela, e
finalmente desatou a rir:
- Palavra de honra que não percebo nada! - exclamou. -
Porque estamos nós a discutir? Não há maneira de me lembrar
como isto começou. Em lugar de nos divertirmos, zangamo-nos!
Somos completamente idiotas, não há dúvida!
Ria com evidente satisfação. E, sem deixar de rir, voltou-se
para Gisela e disse-lhe:
- Vá! Façamos as pazes! Sinto que fomos feitos um para o
outro!
Gisela tentou sorrir e declarou:
- Realmente, eu também tinha essa impressão...
O louro continuou, sempre a rir a bandeiras despregadas:
-Eu tenho um rico feitio, não é verdade, Jaime? É questão de
saber lidar comigo, e mais nada... Vamos! Venha de lá uma
beijoca...
Debruçou-se para Gisela e passou-lhe um braço pela
cintura. Ela desviou levemente a cabeça e disse-lhe:
- Espera!
Tirou um lenço de dentro da bolsa, limpou a boca com ele e
depois beijou-o secamente, com um ar muito digno. Enquanto
esse beijo durou, o louro agitava as mãos como se estivesse a
afogar-se e tentasse nadar. Separaram-se e então ele pôs o motor
a trabalhar com gestos pretensiosos e solenes.
- Ora pois! Juro que daqui para o futuro não lhes darei uma
única razão de queixa. Vou ser muito sério, muito bem educado,
muito distinto... Autorizo a esbofetearem-me, se não me portar
bem...
O carro pôs-se de novo em movimento.
Durante o resto do trajecto ele não cessou de falar e de rir
animadamente; por vezes mesmo chegou a tirar as duas mãos do
volante para gesticular. O meu companheiro, pelo contrário,
depois da sua breve intervenção, tinha voltado à sombra e ao
silêncio. Eu começava a simpatizar fortemente com ele,
sentindo-me, ao mesmo tempo, curiosa e atraída; agora, que volto
a pensar nisso, passado tanto tempo, compreendo ter sido nesse
momento que me apaixonei por ele, ou, pelo menos, que comecei a
consubstanciar na sua pessoa todas as coisas que amava e de que
até então estivera privada. Afinal de contas, o amor tem de ser um
sentimento completo e não apenas uma pura satisfação dos
sentidos; e eu continuava, teimosamente, em busca dessa
perfeição que pensara existir em Gino. Talvez esta fosse a primeira
vez em toda a minha vida, e não apenas desde que exercia este
ofício, que se me deparava uma pessoa como este homem, com
tais maneiras e uma tal voz. O primeiro pintor de quem eu tinha
sido modelo assemelhava-se a ele até certo ponto, mas era mais
frio e mais seguro de si; aliás, mesmo que ele o não tivesse
querido, eu ter-me-ia apaixonado por ele do mesmo modo, se bem
que, por motivos diferentes, a voz e as atitudes deste rapaz
suscitassem na minha alma os sentimentos que se tinham
apossado de mim a primeira vez que tinha estado na casa dos
patrões de Gino. Assim como, ao ver a ordem, o luxo e a limpeza
dessa casa, eu tinha pensado que, sem um ambiente como esse, a
vida não valia a pena ser vivida, assim agora a voz e os gestos
deste rapaz, tão gentis e tão calmos, inspiravam-me não sei que
atracção profunda e comovida. Ao mesmo tempo ele acordou em
mim um violento desejo físico; sentia-me ansiosa por ser
acariciada pelas suas mãos, beijada pela sua boca; compreendi
que acabava de se produzir em mim essa mistura imponderável,
mas veemente das aspirações antigas e do prazer actual que é a
própria essência do amor e marca infalivelmente o seu
nascimento. Ao mesmo tempo temia que ele se apercebesse dos
meus sentimentos e me desprezasse. Dominada por este medo,
estendi a mão e apertei a dele. Mas ele não teve qualquer reacção.
Então uma grande perplexidade tomou conta de mim; sentia que a
sua imobilidade me impunha uma atitude de desinteresse, mas
essa atitude era superior às minhas forças. O carro, dobrando
bruscamente uma esquina, atirou-nos um contra o outro; fingi ter
perdido o equilíbrio e deixei cair a cabeça nos seus joelhos. Ele
estremeceu, mas não disse uma palavra nem fez um gesto.
Sentindo com alegria que o carro corria velozmente, fiz como
fazem os cães: meti a minha cara no meio das suas mãos,
beijei-as e passei-as no meu rosto numa carícia que eu quisera
ardentemente fosse afectuosa e espontânea. Compreendendo que
estava de cabeça perdida, admirei-me de como meia dúzia de
palavras amáveis haviam bastado para isso. Mas ele não me
concedeu a carícia desejada e tão humildemente pedida, e retirou
as mãos da minha cara. Precisamente neste momento o carro
parou.
O louro apeou-se, e com uma galantaria trocista ajudou
Gisela a descer. Descemos também, abri a porta da escada e
entrámos. Gisela e o louro tomaram a dianteira. O rapaz ficou
para trás e a meio da escada deitou as mãos à saia de Gisela,
levantou-a e descobriu-lhe as coxas brancas e uma parte das
nádegas, que ela tinha pequenas e magras.
- Subiu o pano! - exclamou com uma gargalhada. Gisela
limitou-se a compor o fato com um gesto seco. Pela minha parte,
pensando que essa atitude ordinária tinha desagradado ao meu
companheiro, tentei fazê-lo compreender que partilhava da sua
opinião.
- É divertido, o seu amigo! - disse.
- É - respondeu este secamente.
- Vê-se que a vida lhe corre bem...
Entrámos em casa em bicos de pés e eu conduzi-os
directamente para o meu quarto. Quando a porta se fechou, o
louro sentou-se na beira da cama e começou tranquilamente a
despir-se, sem nos ligar a mínima importância. Não se calava nem
deixava de rir, falando de quartos de hotel e de quartos
particulares e tentando interessar-nos por uma aventura que
tivera recentemente.
- Ela disse-me: “Sou uma mulher honesta; não quero ir
consigo para um hotel.” Então eu respondi: “Os hotéis estão
cheios de mulheres honestas!” “Mas eu - disse ela - não quero
dizer o meu verdadeiro nome!” E eu disse-lhe: “Passarás por
minha mulher! Para a importância que isso tem...” Finalmente
seguimos para o hotel, mas quando chegou o momento decisivo
complicou toda a nossa vida. Começou a dizer que tinha
remorsos, que não queria, que era, na verdade, uma mulher
honesta, o demônio! Acabei por perder a cabeça e tentar empregar
a força. Pois sim! Abriu a janela e berrou que se atirava para a rua
se eu insistisse.. “Bem - disse eu. - Compreendo. A culpa foi
minha. Nunca te devia ter trazido para aqui!” Então a criaturinha
sentou-se na beira da cama e desatou a choramingar, enquanto
me contava uma história capaz de fazer chorar um morto.. Não
sou capaz de a repetir, porque me esqueci. Mas lembro-me de que,
no fim, estava comovidíssimo e pouco faltou para me pôr de
joelhos na sua frente e pedir-lhe perdão de ter pensado mal dela...
“Está bem - concordei -, nada se passará entre nós. Vamos só
deitar-nos e dormir com muito juízo até amanhã.” E foi o que
fizemos; adormeci imediatamente; mas, a meio da noite, acordo, e
ela tinha desaparecido. Ela e a minha carteira. Honesta, hem?
Desatou à gargalhada, com uma alegria tão irresistível e tão
contagiosa que eu tive de me rir também e a própria Gisela não
conseguiu impedir-se de sorrir. Ele tinha tirado o fato, a camisa,
os sapatos e as peúgas. Ficara em ceroulas de malha de lã, justas
e compridas, de um tom rosado de peito de rola, que o cobriam
desde os tornozelos até ao pescoço, dando-lhe o aspecto de um
equilibrista ou de um bailarino. Esta peça de roupa, geralmente só
usada por homens muito idosos, aumentava ainda a comicidade
do seu aspecto. Nesse momento esqueci-me da sua brutalidade e
quase cheguei a sentir simpatia por ele. Gostei sempre das
pessoas alegres, e eu própria tenho mais tendência para a alegria
do que para a tristeza. O rapaz pôs-se a passear pelo quarto,
brincando como um miúdo, pequenino, gorducho, orgulhoso das
suas belas ceroulas como de um uniforme. Depois, do canto da
cómoda, num salto inesperado, veio cair na cama, em cima de
Gisela, que soltou um grito de susto e se deixou cair de costas
para fugir ao choque. Mas, de repente, numa atitude
irresistivelmente cômica, ele pareceu tomado por uma ideia
súbita, deixou-se ficar de gatas por cima de Gisela, voltou para
nós o seu rosto vermelho e libidinoso e perguntou:
- E vocês, porque esperam?
Olhei para o meu companheiro e perguntei-lhe:
- Queres que me dispa?
Ele nem sequer baixara ainda a gola do sobretudo.
Estremeceu e respondeu-me:
- Não. Depois deles.
- Queres ir para outra sala?
- Quero.
- Dêem uma volta de carro! - gritou o louro, sempre de gatas
em cima de Gisela. - As chaves estão no tablier!
Mas o meu companheiro saiu do quarto sem dar mostras de
ter ouvido estas palavras.
Passamos para o vestíbulo: fiz-lhe sinal para me esperar e
entrei na sala. Minha mãe estava sentada à mesa do meio,
entretida a fazer uma paciência. Quando me viu, sem esperar
qualquer palavra minha, levantou-se e foi para a cozinha. Eu vim
então à porta do vestíbulo e disse ao rapaz que podia entrar.
Voltei a fechar a porta e fui sentar-me no canapé, junto da
janela. Desejava ardentemente que ele viesse sentar-se ao meu
lado e que me acariciasse, como sempre acontecia com os outros
homens. Mas ele nem sequer reparou na existência do canapé e
pôs-se a passear para trás e para diante pela sala, andando à roda
da mesa, com as mãos nos bolsos. Pensei que estava contrariado
por ter de esperar e disse-lhe:
- Desculpa, mas não disponho senão de um quarto...
Ele parou, olhou para mim com uma expressão levemente
ofendida mas gentil:
- Eu já te disse, porventura, que precisava de um quarto?
- Não. Mas pensei...
Voltou ao seu passeio, até que eu, não podendo conter por
mais tempo a minha impaciência, indiquei-lhe um lugar ao meu
lado, no canapé:
- Porque não vens sentar-te ao pé de mim? - perguntei.
Ele obedeceu e interrogou-me:
- Como te chamas?
- Adriana.
- Eu chamo-me Jaime - disse ele, pegando-me na mão. Este
modo de proceder, invulgar para uma mulher como eu,
admirou-me profundamente, convencendo-me, de novo, de que a
timidez o dominava. Deixei ficar a minha mão na sua e sorri-lhe
para o encorajar. Jaime voltou a interrogar-me:
- Então, daqui a pouco temos de ser um do outro?
- Claro.
- E se não me apetecer?
- Isso é contigo - respondi, na ideia de que ele estava a
brincar.
- Pois, não me apetece - disse ele com ar solene. - Não me
apetece absolutamente nada.
- De acordo! - respondi eu.
Na realidade, a sua recusa parecia-me demasiadamente
estranha para que me fosse possível tomá-lo a sério.
- E isso não te ofende? Em geral, as mulheres detestam que
a gente as recuse.
Acabei por compreender. Sem coragem para falar, limitei-me
a dizer que não com a cabeça. Ele não me desejava! Bruscamente
senti-me desesperada e os olhos encheram-se-me de lágrimas.
- Não. Isso não me ofende - balbuciei. - Mas visto que não
me desejas, vamos esperar que o teu amigo acabe e depois vais-te
embora.
- Será justo? - hesitou ele. - Perdeste a noite por minha
causa. Podias ter ganho dinheiro com outro qualquer...
Pensando que o seu problema não era falta de interesse, mas
impossibilidade de me pagar, propus-lhe, cheia de esperança:
- Se não tens dinheiro não faz mal. Pagas-me quando
voltares a encontrar-me...
- Tu és boa rapariga - respondeu. - Mas o problema não é
esse. O dinheiro não me falta. Vamos fazer um contrato. Eu
pago-te como se me tivesse servido de ti. Dessa maneira, pelo
menos, não perderás a noite.
Tirou do bolso do casaco um rolo de notas, que me deu a
impressão de ter sido preparado previamente, e foi pousá-lo em
cima da mesa, longe de mim, num gesto ao mesmo tempo
desajeitado e curiosamente elegante e desdenhoso.
- Não, não - protestei. - Nem penses nisso!
Disse isto sem grande convicção, porque, no fundo,
agradava-me receber aquele dinheiro; era um laço como outro
qualquer entre nós; e, visto que contraia uma dívida para com ele,
podia tentar pagá-la. Interpretando a minha vaga recusa como um
gesto de aceitação, Jaime deixou ficar o dinheiro em cima da
mesa, e veio outra vez sentar-se ao meu lado no canapé. Eu,
embora compreendesse perfeitamente a ingenuidade e o ridículo
do meu gesto, estendi a mão e peguei na dele. Olhámo-nos
longamente, bem de frente. Depois, sem mais nem menos, ele
pegou num dos meus dedos e torceu-o com força.
- Ai! - gritei eu. E continuei com mau modo. - Que ideia tão
estúpida foi essa?
- Desculpa! - respondeu ele. E o seu ar de confusão era tão
forte e tão sincero que me fez arrepender logo da secura com que
lhe falara.
- Fizeste-me doer, compreendes? - expliquei.
- Desculpa - repetiu ele.
Tomado de uma súbita agitação, levantou-se e pôs-se a
passear na sala.
- E se saíssemos? - propôs. - É aborrecidíssimo esperar
desta maneira.
- Aonde queres ir?
- Não sei. Apetece-te dar uma volta de carro? Lembrando-me
de todos os passeios que dava com o Gino, respondi vivamente:
- Não, de automóvel não.
- Podíamos ir tomar qualquer coisa. Há algum café aqui
perto?
- Parece-me que sim...
- Então vamos.
Levantámo-nos e saímos da sala. Na escada disse-lhe, em ar
de brincadeira:
- Não te esqueças de que o dinheiro que me deste te dá o
direito de vires ter comigo quando quiseres. Combinado?
- Combinado.
Era uma noite de Inverno doce, húmida e escura. Tinha
chovido durante todo o dia e a rua estava semeada de grandes
poças de água em que se reflectia a luz serena dos raros bicos de
gás. Por cima das muralhas o céu aparecia sereno, mas sem Lua,
e uma bruma densa velava as raras estrelas que se viam. De vez
em quando os eléctricos invisíveis passavam por detrás das
fortificações fazendo saltar dos fios clarões rápidos e violentos, que
iluminavam o céu por momentos. Quando chegamos à rua
lembrei-me de que há meses não ia para os lados do Luna Parque.
Habitualmente tomava pela esquerda, na direcção da praça em
que Gino esperava por mim. Nunca mais voltara para o lado do
Luna Parque desde os tempos em que, ainda pequena, passeava
com minha mãe, e ora subíamos a grande avenida sobranceira às
muralhas, ora fomos gozar a música e as iluminações sem ousar
entrar no recinto para não gastar dinheiro. Era deste lado da
grande avenida que se encontrava o pequeno pavilhão em que eu
vira uma vez, pela janela aberta, uma família sentada à mesa e
que me provocara o sonho de me casar, ter um lar, viver uma vida
normal. Fui, então, tomada de um desejo violento de falar ao meu
companheiro desse tempo, dessa idade, dessas aspirações; e isto,
devo confessá-lo, não somente por impulsão sentimental, mas
também por cálculo. Queria que ele não me avaliasse apenas
pelas aparências, mas sim de um modo diferente, melhor, e que
eu considerava mais verdadeiro. Há quem, para receber
personalidades importantes, vista um fato de cerimônia e abra as
melhores salas da sua casa; quanto a mim, parecia-me que a
simples sinceridade dos meus pensamentos e dos meus
sentimentos chegaria para me defender, para o levar a mudar de
ideias e para o fazer I aproximar-se de mim.
- Nunca ninguém passa nesta parte da avenida - disse,
enquanto caminhávamos ao lado um do outro. - Mas no Verão é o
passeio preferido das pessoas do bairro... Eu também aqui vinha.
Mas há tanto tempo! Só tu serias capaz de fazer com que eu aqui
voltasse...
Ele tinha enfiado o seu braço no meu, para me ajudar a
caminhar na rua encharcada.
- Com quem passeavas? - perguntou.
- Com minha mãe.
Começou a rir, com um riso depreciativo que me espantou.
- Com minha mãe! - repetiu marcando as sílabas. - Há
sempre uma mãe! Que irá dizer minha mãe? Que irá fazer minha
mãe? A mamã!
Imaginei que, por qualquer motivo pessoal, ele sentisse
rancor pela sua própria mãe e perguntei-lhe:
- A tua mãe fez-te alguma coisa?
- Nada me fez! - respondeu-me. - As mães nunca fazem
nada. Quem não tem uma mamã? E tu gostas da tua mãe?
- Com certeza. Porquê?
- Por nada - disse depressa. - Não te preocupes comigo...
Continua... Então tu passeavas com tua mãe...
O seu tom não era muito tranquilizador. E, no entanto, um
pouco por cálculo, um pouco por simpatia, sentia-me levada a
continuar as minhas confidências:
- Sim - disse-lhe. - Nós passeávamos juntas, sobretudo no
Verão, porque em nossa casa de Verão sufoca-se... Justamente...
olha... vez aquela vivendazinha?
Parou e olhou. Mas as janelas da casa não estavam abertas;
parecia mesmo desabitada. Metida entre duas longas construções
baixas do caminho de ferro, pareceu-me ainda mais pequena do
que a recordava e até feia e tosca.
- E depois? - perguntou-me. - O que acontecia nessa casa?
Eu agora corava do que ia dizer. Continuei com esforço:
- Todas as tardes passava por esta casinha; como era Verão,
as janelas estavam abertas... a esta hora via sempre uma família
sentar-se à mesa... - Calei-me, envergonhada.
- E então?
- Estas coisas não te podem interessar - disse. E tive a
impressão de que o meu pudor era, ao mesmo tempo falso e
sincero.
- Porquê? Tudo me interessa.
- Bem... - acabei à pressa. - Tinha-se-me metido na cabeça
que um dia também eu teria uma casinha como esta e que faria
todas as coisas que via esta família fazer.
- Ah! Compreendo - disse. - Uma casinha como esta...
Contentavas-te com pouco!
- Comparada com a casa onde moramos - disse eu - que é
tão feia. E depois, sabes, naquela idade pensa-se tanta coisa!
Puxou-me pelo braço para junto da vivendazinha.
dizendo-me:
- Vamos ver se essa família ainda lá está!
- Mas que fazes? - protestei, resistindo. - Está lá com
certeza.
- Bem, vamos ver!
Estávamos diante da porta. O jardim estava às escuras,
assim como as janelas e o miradouro. Ele aproximou-se do portão
e disse:
- Até tem uma caixa de correio! Vamos tocar para ver se está
cá alguém. Mas a tua casa parece desabitada.
- Não! - disse-lhe rindo. - Está quieto! Mas que fazes?
- Experimentemos - respondeu. Levantou o braço e tocou a
campainha. Tive vontade de fugir, tal era o medo que alguém
viesse atender.
- Vamos! Vamos! - suspirava eu. - Se alguém aparece, que
figura fazemos nós?
- Que dirá a mamã? Que dirá a mamã? - repetia
cantarolando, deixando-se arrastar.
- Tu detestas as mamãs! - observei afastando-me
rapidamente.
Chegamos ao Luna Parque. Lembrava-me, da última vez em
que lá tinha estado, da multidão que se comprimia, dos festões de
lâmpadas eléctricas coloridas, dos balcões com lâmpadas de
acetileno, da decoração das barracas, da música, do burburinho
das vozes. Fiquei um pouco decepcionada por nada disso
encontrar. A paliçada não parecia cercar um parque de diversões,
mas um depósito de material, escuro e abandonado. Os oito
balouços suspensos do carrossel pareciam insectos ventrudos
parados em pleno vôo por uma brusca paralisia. Sem iluminação,
os tectos pontiagudos dos pavilhões pareciam dormir. Tudo era
negro, o que era normal porque estávamos no Inverno. A
esplanada estava deserta e semeada de charcos: iluminava-a
fracamente um único bico de gás.
- Aqui, no Verão, é o Luna Parque, tem sempre muita
gente... mas de Inverno não funciona... Aonde queres ir?
- Ao tal café.
- Não é bem um café, é uma tasca.
- Vamos, vamos à tasca.
Passamos sob a abóbada da porta; mesmo em frente havia
uma fila de casas, e num rés-do-chão via-se a luz por detrás de
uma porta envidraçada. Assim que entrei vi logo que era a mesma
casa de pasto onde há muito tempo tinha ido jantar com Gino e
com minha mãe e onde Gino tinha dado o correctivo ao bêbado
insolente. Não tinha mais de três ou quatro pessoas, que comiam
coisas que haviam trazido embrulhadas em papel de jornal,
bebendo vinho da casa. Estava lá mais frio do que na rua, o ar
parecia impregnado de um cheiro a vinho, a chuva e a serradura;
pensava-se logo que os fogões estavam apagados. Sentámo-nos a
um canto e ele pediu um litro de vinho.
- Quem vai beber esse vinho todo? - perguntei.
- Porquê, tu não bebes?
- Muito pouco.
Encheu o copo e bebeu-o de um trago, mas com esforço e
sem prazer. Este gesto confirmou o que eu já notara: ele fazia as
coisas sem participação, só para o exterior, como se representasse
um papel. Ficamos algum tempo em silêncio. Olhava-me com os
seus olhos intensos e brilhantes e eu examinava o que estava à
minha volta. A recordação daquela longínqua noite em que eu ali
fora com Gino e minha mãe assaltou-me outra vez; não sei se
sentia pena ou contrariedade ao recordá-la. Eu era então muito
feliz; é verdade, mas tinha ainda tantas ilusões! Sentia no meu
íntimo que era exactamente como se se abrisse uma gaveta
fechada há muito tempo e que em vez das belas coisas que se
esperava lá estivessem apenas se vissem alguns farrapos
poeirentos e traçados. Tudo tinha acabado. Não só o meu amor
por Gino, mas a minha adolescência e os meus sonhos desfeitos.
O facto de me ter podido servir por cálculo e por manha das
minhas recordações com o fim de comover o meu companheiro
bastava para o demonstrar. Disse por acaso:
- O teu amigo ao princípio pareceu-me antipático... Mas
agora quase que simpatizo com ele... é tão alegre!
Ele respondeu-me com modo brusco:
- Primeiro, aquele não é meu amigo. E depois é o menos
simpático do mundo!
A violência da resposta deixou-me estupefacta.
- Achas? - disse-lhe.
Ele bebeu e continuou:
- Das pessoas que fazem espírito devia fugir-se como da
peste! Vulgarmente, debaixo daquele espírito todo nada existe... Se
tu o visses no escritório... Asseguro-te que aí não diz graças!
- Em que escritório está?
- Não sei ao certo, um negócio de patentes.
- Ganha muito dinheiro?
- Muitíssimo.
- Tem sorte!
Serviu-me vinho e eu perguntei:
- Mas se o achas tão antipático, porque sais com ele?
- É um amigo de infância - respondeu-me de mau humor. -
Estudamos juntos... Os amigos de infância são todos assim.
Bebeu ainda e acrescentou:
- No entanto, de certa maneira vale mais do que eu.
- Porque?
- Porque quando ele faz uma coisa, fá-la seriamente; ao
passo que eu começo por querer fazê-la e depois (aqui falou com
uma voz tão falsa que me fez estremecer)... uma vez chegado o
momento não a faço... Esta noite, por exemplo, quando me
telefonou para me pedir para ir com ele engatar umas raparigas,
como costuma dizer-se, eu aceitei. Quando nos encontramos,
desejei realmente ir para a cama contigo... Mas depois, logo que
cheguei a tua casa, já nada me apetecia...
- Já nada te apetece? - repeti olhando-o.
- Não... para mim não eras uma mulher, mas um objecto,
não sei... uma coisa... Reparaste quando te torci o dedo até te
magoar?
- Sim.
- Pois bem, fiz isso para me certificar de que existias de
facto... mais nada... até com risco de te fazer sofrer.
- Sim, eu existia e tu magoaste-me muito - disse sorridente.
Começava agora a compreender com alívio que não fora por
antipatia que ele nada tinha querido de mim. Aliás nunca há coisa
alguma de estranho nas pessoas. Desde que se procure
compreendê-las, sabe-se que a sua conduta por mais insólita que
pareça é sempre devida a um motivo perfeitamente plausível...
- Então eu não te agradei? - perguntei-lhe.
Negou com um gesto de cabeça.
- Tanto faz... tu ou outra... é a mesma coisa!
Perguntei-lhe, passado um minuto de hesitação:
- Diz-me lá... tu não serás impotente, por acaso.
- Nem por sombras.
Agora eu sentia um grande desejo de ter intimidades com
ele, de transpor a distância que nos separava, de o amar e de ser
amada por ele. Tinha-lhe dito que não estava vexada pela sua
recusa; na verdade, sentia-me pelo menos mortificada e ferida no
meu amor-próprio. Tinha a certeza de ser bela e sedutora:
nenhuma razão verdadeira via para que ele não me desejasse.
- Ouve - propus-lhe com simplicidade. - Acabamos de beber
e vamos depois para casa.
- Não, é impossível.
-Então isso quer dizer que não te agradei logo da primeira
vez, quando me viste na rua.
- Sim, procura compreender...
Sabia que não há homens que resistam a certos argumentos.
“Vê-se que não te agrado!” e, repetia eu com calma e com uma
infinita amargura. E ao mesmo tempo estendi a mão e passei-lha
pela cara. Tenho a mão comprida, grande e quente; se é verdade
que o carácter se pode ler nas mãos, o meu não deve ser vulgar
em comparação com o de Gisela, que tem a mão vermelha, rude e
disforme. Comecei a acariciar-lhe com doçura as faces, a testa, a
raiz dos cabelos, olhando-o com uma ternura insistente e cheia de
desejo. Lembrei-me de que Astárito, no Ministério, tivera o mesmo
gesto comigo e compreendi mais uma vez que estava realmente
apaixonada por este rapaz, porque não havia dúvida de que
Astárito me amava e tivera este mesmo gesto de amor. Ao sentir
esta carícia, primeiro ficou impassível, depois o queixo começou a
tremer-lhe, o que nele era sintoma de perturbação, como pude
observar mais tarde, e todo o seu rosto tomou uma expressão
atrapalhada, extraordinariamente juvenil e quase infantil. Fez-me
pena e senti-me contente por este sentimento, que me aproximava
dele.
- Mas que fazes? - perguntou-me como um garoto
envergonhado. - Estamos num sítio público!
- Que me importa? - disse eu tranquilamente. Sentia as
faces a arder, apesar do frio que estava na casa, e fiquei admirada
ao ver, a cada inspiração nossa, formar-se uma nuvenzinha de
vapor:
- Dá-me a tua mão! - disse-lhe.
Deu-ma de má vontade e eu levei-a à minha cara dizendo :
- Não sentes como as minhas faces estão a arder?
Não disse palavra. Limitou-se a olhar-me e o seu queixo
tremia. Alguém bateu com a porta ao entrar e eu tirei a mão. Deu
um suspiro de alívio e bebeu outro copo de um trago. Mas eu,
assim que o cliente passou, estendi outra vez a mão e introduzi-a
no casaco, desabotoando a camisa e pousando-a sobre o seu peito
nu, junto do coração.
- Quero aquecer as mãos - disse-lhe. - E quero sentir como
bate o teu coração.
Voltei a mão de costas e depois do lado da palma.
- Tens a mão fria! - disse olhando-me.
- Aqui vai aquecer - disse sorrindo.
Conservei o braço estendido e devagarinho acariciava o seu
peito e as suas costelas magras. Sentia uma grande alegria porque
o sabia junto de mim e porque estava tão cheia de amor por ele
que podia dispensar o seu. Olhei-o e disse-lhe com ar de fingida
ameaça:
- Sinto que daqui a pouco chegará o momento em que te irei
beijar.
- Não, não - respondeu esforçando-se por brincar também,
mas no fundo assustado. - Domina-te.
- Vamos embora daqui!
- Vamos, se queres!
Pagou o vinho, que não acabou de beber, e saiu comigo
Agora também ele parecia excitado à sua maneira; não como eu,
por amor, mas por qualquer agitação do seu espírito que os
acontecimentos da noite lhe tivessem provocado. Mais tarde,
quando o conheci melhor, percebi que ficava sempre assim
excitado quando qualquer coisa lhe permitia descobrir um aspecto
ignorado do seu carácter, ou confirmar esse mesmo aspecto. Ele
era muito egoísta, ou, por outra, preocupava-se muito consigo
próprio.
- Acontece-me isto constantemente... - começou a dizer como
se falasse sozinho, enquanto eu o levava para a minha casa quase
a correr - penso fazer uma coisa, com grande entusiasmo, tudo me
parece próprio, tenho a certeza de que agirei como tenciono,
depois, no momento preciso, tudo se desmorona... deixo de existir,
por assim dizer... ou talvez não exista de mim mais do que a pior
parte da minha alma: fico frio, vazio, cruel... como quando te torci
o dedo.
Monologava com ar concentrado e talvez até com uma
amarga satisfação. Eu nem o ouvia, porque estava cheia de
alegria: os meus pés voavam por entre os charcos. Respondi-lhe
alegremente:
- Já disseste essas coisas... mas eu, por minha vez, ainda
não te contei o que sinto. Tenho um grande desejo de te apertar
com força, muita força, de te dar o meu calor e de te obrigar a
fazer o que não queres... não ficarei contente enquanto não o
fizeres!
Nada respondeu. O que lhe dizia parecia que nem sequer lhe
chegava aos ouvidos, tão ocupado estava a ruminar o que me
dissera. De súbito passei-lhe o braço à roda da cintura e pedi-lhe:
- Passa o teu braço à roda da minha cintura... Sim?
Pareceu não me ouvir. Então passei-lho eu, como se faz
quando se enfia um casaco. Recomeçamos a andar mal agarrados,
porque estávamos cheios de roupa grossa de Inverno e quase não
nos podíamos abraçar.
Quando passamos ao pé da vivenda do torreão, parei e
disse-lhe:
- Dá-me um beijo!
- Mais logo.
- Dá-me um beijo!
Voltou-se e eu beijei-o violentamente, passando-lhe os
braços à roda do pescoço. Ele ficou com a boca fechada, mas eu
introduzi a língua por entre os seus lábios, depois entre os dentes,
que acabaram por se descerrar. Não tive a certeza de o meu beijo
ter sido retribuído; mas como já disse, pouco me importava.
Separámo-nos e vi-lhe à volta da boca uma grande mancha de
bâton, enviesada, que tornava cômica e esquisita a sua cara séria.
Desatei a rir, toda contente.
- Porque te ris? - murmurou.
Hesitei, depois preferi nada lhe dizer, porque me divertia
vê-lo correr atrás de mim com um ar muito grave e a cara toda
pintada sem que soubesse.
- Por nada! - disse-lhe. - Porque estou contente... não faças
caso.
Depois, para culminar a minha felicidade, dei-lhe outro beijo
rápido nos lábios.
Quando chegamos à minha casa, já lá não estava o
automóvel.
- O João Carlos foi-se embora! - disse com ar aborrecido. -
Sabe Deus o que vou ter que andar para voltar para casa.
Não me magoou este tom pouco gentil, porque de futuro
nada me devia magoar. Os seus defeitos, como acontece quando
se está apaixonado, apresentavam-se-me com um aspecto
singular que os tornava agradáveis. Disse-lhe, encolhendo os
ombros:
- Há muitos eléctricos de noite! Aliás, se quiseres podes
dormir comigo.
- Não, isso não! - respondeu logo.
Subimos a escada. Quando chegamos ao vestíbulo, levei-o
para o meu quarto e fui espreitar à sala grande. Estava às
escuras, salvo junto da janela, iluminada por um bico de gás da
rua que incidia sobre a máquina de costura e a cadeira. Minha
mãe devia ter ido deitar-se. Quem sabe se teria visto o João Carlos
e a Gisela e se teria falado com eles? Fechei a porta e entrei no
quarto. Jaime rondava nervosamente de um lado para o outro,
entre a cómoda e a cama:
- Ouve - começou a dizer -, é melhor ir-me embora!
Fingindo não ter ouvido, tirei o casaco e fui pendurá-lo no
bengaleiro. Sentia-me tão contente que não resisti a perguntar-lhe
com vaidade de proprietária:
- Que tal achas o meu quarto? Não é confortável?
Olhou à volta e fez uma careta que não compreendi.
Segurei-lhe a mão, obriguei-o a sentar-se na cama e disse-lhe:
- Agora deixa-me fazer.
Despi-lhe o sobretudo, depois o casaco e pendurei-os no
bengaleiro. Sem pressa, desfiz o nó da gravata e tirei-lha, assim
como a camisa, que pus em cima de uma cadeira. Em seguida
ajoelhei-me e, pondo o seu pé no meu regaço, como fazem os
sapateiros, tirei-lhe os sapatos e as meias e beijei-lhe os pés.
Começara a agir com método e sem pressa, mas à medida que lhe
tirava a roupa não sei que delírio de humildade e de adoração se
apoderou de mim. Talvez o mesmo sentimento que por vezes me
assaltava ao prostrar-me na igreja. Era a primeira vez que o sentia
por um homem, e isso tornava-me feliz, porque sabia que era esse
o verdadeiro amor, livre de toda a sensualidade e de todo o vício.
Quando ficou nu, apertei-o de encontro às minhas faces e aos
meus cabelos, com força, fechando os olhos. Ele deixava-me
fazê-lo com uma expressão admirada, que me agradava. Depois
levantei-me e comecei a despir-me à pressa, deixando cair a roupa
no chão. Ficou friorentamente sentado na beira da cama e não
levantava os olhos. Aproximei-me por trás dele e, animada por
uma violência alegre e cruel, puxei-o e deitei-o de costas com a
cabeça sobre a almofada. Tinha um corpo longo, magro e branco;
os corpos têm a sua expressão como os rostos: o seu tinha uma
expressão casta e juvenil. Estendi-me ao seu lado, o meu corpo
contra o dele e ao pé da sua magreza, da sua graciosidade, da sua
frieza e da sua brancura tive a impressão de ser muito ardente,
muito morena, muito carnuda e muito forte. Apertei-me com
violência contra ele, comprimi o meu ventre contra os ossos das
suas ancas, estendi os braços ao longo do seu peito, o meu rosto
contra o seu e esmaguei os meus lábios contra a sua orelha.
Parecia-me que desejava não tanto amá-lo como envolvê-lo no
meu corpo como se fosse um quente cobertor e comunicar-lhe o
meu ardor. Estava deitado de costas, mas conservava a cabeça
um pouco levantada e os olhos abertos, como se quisesse observar
tudo o que eu fazia. O seu olhar atento rasava as minhas costas e
inspirava-me não sei que mal-estar e que tormento. No entanto,
no primeiro impulso continuei durante algum tempo sem fazer
caso disso. De repente sussurrei-lhe:
- Não te sentes melhor agora?
- Sim - respondeu-me num tom neutro e distante.
- Espera! - disse-lhe eu.
Mas na altura em que o ia estreitar outra vez com um novo
ardor, tive novamente a sensação do seu olhar fixo e frio
estendendo-se ao longo das minhas costas, como um fio de aço
molhado, e de repente senti-me perdida e envergonhada. O meu
ardor apagara-se; lentamente afastei-me e deitei-me de costas,
longe dele. Tinha feito um grande esforço de amor; tinha posto
neste esforço todo o entusiasmo de um inocente, de um velho
desespero; o brusco sentido da inutilidade deste esforço
encheu-me os olhos de lágrimas e escondi a cara com um braço
para que não visse que eu chorava. Parecia-me que me tinha
enganado, que nem o podia amar, nem ser amada por ele. E
pensava ainda mais, que ele me via e me julgava sem ilusões, tal
como eu era na realidade. Agora eu sabia que vivia numa espécie
de bruma que eu própria criara para não me poder reflectir na
minha consciência. Ele, com os seus olhares, dissipara essa
bruma e pusera novamente o espelho diante dos meus olhos. E eu
via-me tal como era, na verdade, ou, melhor, tal como devia ser
para ele, porque de mim eu nada pensava, nada sabia, como já o
expliquei: quase não acreditava na minha existência. Acabei por
lhe dizer:
- Vai-te embora.
- Porquê? - disse-me apoiando-se no cotovelo e olhando-me
com ar embaraçado. - Que aconteceu?
- É melhor que te vás embora! - disse-lhe com calma sem
tirar o braço da cara. - Não julgues que me ofendeste... Mas sei
que nada sentes por mim, e então...
Não acabei, mas abanei a cabeça. Não respondeu; senti-o
mexer-se e sair da cama; vestia-se. Uma dor aguda trespassou-me
a alma como se me tivessem ferido profundamente com uma
lâmina fina e cortante. Sofria por ouvi-lo vestir-se; sofria com a
ideia de que daí a um momento ele se iria embora para sempre e
eu nunca mais o voltaria a ver; sofria por estar a sofrer.
Vestiu-se devagar, esperando talvez que eu o chamasse.
Lembro-me de que um instante julguei poder prendê-lo excitando
o seu desejo. Quando me estendera ao seu lado, tinha puxado a
roupa da cama para cima. Com uma coquetterie da qual sentia o
desespero e a tristeza, mexi a perna, de maneira que a roupa
escorregasse ao longo do corpo. Nunca me oferecera desta
maneira. Durante uns instantes, deitada de costas, as pernas
afastadas e o braço sobre os olhos, tive como que a ilusão física
das suas mãos sobre os meus ombros e do seu hálito na minha
boca. Mas quase imediatamente ouvi a porta fechar-se.
Fiquei como estava, estendida, imóvel. Creio que passei, sem
dar por isso, da dor para uma espécie de semi-sonolência, depois
ao sono. Acordei ainda de noite e reparei que estava só. Durante
este primeiro sono, apesar da amargura da separação, o sentido
da sua presença ficara-me. Não sei como, voltei a adormecer.
2
No dia seguinte surpreendi-me por me sentir lânguida,
melancólica, como se tivesse saído de uma longa doença. Sou de
carácter alegre, e como em mim a alegria vem da saúde e da
robustez do corpo, ela foi sempre mais forte do que todas as
adversidades, se bem que me tenha acontecido por vezes
sentir-me alegre sem que o queira em circunstâncias em que me
deveria sentir bem triste. Assim raro era o dia em que logo que me
levantava não sentia desejo de cantar ou de contar alguma graça à
minha mãe. Mas, nessa manhã, mesmo esta involuntária alegria
me faltava; sentia-me apagada e dolente, sem desejo de viver as
doze horas de vida que o dia me oferecia. Como minha mãe
reparasse logo nesta mudança de humor, disse-lhe que tinha
dormido mal.
Era verdade, e esse fora um dos numerosos efeitos da
profunda mortificação que me trouxera a recusa de Jaime. Já o
disse; há muito tempo que não me importava de ser o que era: não
achava em mim própria qualquer razão para não o ser. Mas
esperava amar e ser amada; ora, a recusa de Jaime, apesar das
razões complicadas que ele me dera, parecia não poder ser
atribuída senão ao meu ofício, o qual por este motivo se me
tornara bruscamente odioso, intolerável.
O amor-próprio é um curioso animal que pode não acordar
aos mais cruéis golpes e despertar ferido de morte por uma
simples arranhadura. Havia uma recordação entre todas que me
afligia e me enchia de amargura e de vergonha: - Que tal achas
este quarto? - perguntara-lhe. - Não é confortável?
Lembrara-me de que não respondera, mas olhara tudo à sua
volta com uma careta que eu de momento não compreendi. Agora
sabia que tinha sido uma careta de desagrado. Tinha com certeza
pensado: “O quarto de uma prostituta!” Quando recordava isto, o
que mais me afligia era o ter pronunciado esta frase com uma
ingênua satisfação. Deveria ter pensado que a uma pessoa como
ele, tão fina, tão sensível, o meu quarto devia parecer-lhe um
antro sórdido, duplamente feio, pelos seus móveis tão modestos e
pelo uso que eu lhe dava. Bem desejei nunca ter pronunciado esta
frase infeliz, mas agora era tarde. Nada havia a fazer! Dava-me a
sensação de uma prisão da qual eu não podia fugir de maneira
alguma. Esta frase era eu própria, inalterável, de futuro, como no
que eu me tornara por vontade. Esquecê-la ou ter a ilusão de não
a ter dito era o mesmo que esquecer-me de mim própria ou querer
ter a ilusão de que não existia.
Estas reflexões intoxicavam-me como um veneno lento que
lentamente seguira o seu caminho nefasto por entre o sangue das
minhas veias. Habitualmente, de manhã, costumava saltar da
cama, obedecendo a uma espécie de vontade independente. Mas
nesse dia foi exactamente o contrário que aconteceu: a manhã
passou, chegou a hora do almoço e eu nem sequer ainda me tinha
mexido. Sentia-me inerte, impotente, entorpecida e ao mesmo
tempo dorida como se esta imobilidade me causasse uma fadiga
desesperada. Tinha a impressão de ser um desses barcos
apodrecidos que ficam amarrados em qualquer baía pantanosa,
com o ventre cheio de água fétida e negra: se alguém sobe para
eles, as pranchas apodrecidas cedem logo e a barca, que talvez ali
estivesse há anos, afunda-se num instante. Não sei quanto tempo
fiquei neste estado enrolada na roupa da cama, os olhos dilatados,
o lençol puxado até ao nariz. Ouvi tocar o meio-dia nos sinos,
depois a uma, as duas, as três, as quatro horas. Tinha fechado a
porta à chave e de vez em quando minha mãe, inquieta, vinha
bater-me à porta. Respondia-lhe que já me levantava e que me
deixasse em paz. Quando começou a anoitecer, procurei ser
corajosa, fiz um esforço, que me pareceu sobre-humano, atirei
com a roupa e levantei-me da cama. Sentia os membros inchados
de inércia. Lavei-me, vesti-me, arrastando-me de um lado para o
outro no quarto. Em nada pensava; sabia somente, não no meu
espírito, mas em todo o meu corpo, que pelo menos nesse dia não
desejava ir à caça dos meus amantes costumados. Depois de
vestida, fui ter com minha mãe e disse-lhe que passaríamos a
noite juntas. Passearíamos pelo centro da cidade e à noite iríamos
tomar um aperitivo a um café.
A alegria de minha mãe, que não estava habituada a este
género de convites, irritou-me não sei porquê: mais uma vez tive
ocasião de observar como as suas faces estavam flácidas e gordas
e como os olhos empapuçados tinham um luzir equívoco e falso.
Mas refreei a tentação de lhe dizer alguma indelicadeza que teria
destruído a sua alegria e fui sentar-me à mesa da sala grande, à
espera que ela se vestisse. A luz branca dos anúncios entrava pela
janela sem cortinas, iluminava a máquina de costura e
estendia-se pela parede. Baixei os olhos sobre a mesa e vi as
figuras coloridas do jogo de paciência com que minha mãe
enganava o aborrecimento das suas longas noites. Então,
bruscamente, tive uma sensação extraordinária: parecia-me que
era eu minha mãe em carne e osso, esperando que sua filha
Adriana, no quarto ao lado, acabasse o encontro com o seu
amante de passagem. Esta impressão provinha sem dúvida de eu
me ter sentado no seu lugar à mesa, em frente das suas cartas.
Os lugares às vezes dão-nos destas sugestões: mais de uma
pessoa, ao visitar uma prisão, experimenta o frio, o desespero, o
sentimento de isolamento do prisioneiro que há muito tempo ali
definha. Mas a sala não era uma prisão e minha mãe não sofria de
dores tão concretas e fáceis de imaginar. Ela limitava-se a viver
como sempre vivera. Todavia, talvez por há pouco ter sentido
contra a sua pessoa um movimento de hostilidade, esta percepção
da sua vida operara em mim uma espécie de reencarnação. As
pessoas boas, para desculparem alguma má acção, dizem por
vezes: “Põe-te no seu lugar”. Pois bem! Acabava de me pôr no
lugar de minha mãe a ponto de ter a sensação de ser ela própria.
Era-o... mas com a consciência de o ser, coisa que não lhe
acontecia, de contrário já se teria revoltado de uma maneira ou de
outra. Sentia-se flácida, envelhecida, enrugada; compreendi o que
é a velhice, que não só muda o aspecto do corpo, mas torna-o
inepto e inerte. Como era minha mãe? Por vezes tinha-a visto
quando se despia, e reparava, sem pensar, nos seus seios negros e
murchos, no ventre amarelo e encolhido. Agora esses seios, que
me tinham amamentado, esse ventre, de onde eu saíra, sentia-os
tanto em mim que quase julgava poder tocar-lhes, causavam-me o
desgosto, a pena impotente que ela devia ter sentido ao ver a
mudança do seu corpo. A juventude e a beleza tornam a vida
suportável e por vezes alegre. Mas quando já não existem? Senti
um calafrio acordar-me deste pesadelo e felicitei-me por ser na
realidade a bela e jovem Adriana e não a sua mãe, que não era
nova nem bela, nem nunca mais o seria.
Mas ao mesmo tempo, como um mecanismo parado que
começa lentamente a mover-se, começaram a formigar no meu
espírito todas as ideias que lhe deviam passar pela cabeça
enquanto esperava que eu aparecesse na sala. Não é difícil
imaginar o que pode pensar uma pessoa como minha mãe em
7semelhantes circunstâncias; somente, na maior parte das
pessoas, o facto de imaginar nasce da reprovação e do desprezo e
em vez de imaginar elas constroem um fantoche sobre o qual
vertem a sua hostilidade. Mas eu, que gostava de minha mãe e
que só me punha no seu lugar por amor, sabia que naqueles
momentos os seus pensamentos não eram nem interessantes,
nem assustadores, nem vergonhosos, nem sequer relacionados de
qualquer maneira com o que eu fazia e com quem o fazia. Sabia,
pelo contrário, que as suas ideias eram insignificantes e
ocasionais como era natural de uma pessoa como ela, pobre,
velha, ignorante, e que durante toda a vida não tinha pensado
dois dias a seguir da mesma maneira sem receber da necessidade
o mais peremptório desmentido. As grandes ideias e os grandes
sentimentos - sejam tristes e negativos - precisam de protecção;
são plantas delicadas que levam tempo a criar raízes e a fortificar.
Minha mãe nunca tinha podido cultivar nem no seu espírito, nem
no seu coração, outra coisa que as maldosas e efêmeras ervas das
reflexões e das preocupações e dos ressentimentos quotidianos,
enquanto eu, no quarto ao lado, me dava aos homens por
dinheiro. Assim, diante da sua “paciência”, podiam continuar a
rolar na sua cabeça sempre as mesmas imbecilidades (se é justo
chamar assim às coisas que nela tinham vivido durante tantos
anos): o preço dos alimentos, a costura que havia para fazer e
outras coisas parecidas. Talvez agora, ao ouvir o som dos sinos da
igreja vizinha, ela por vezes pensasse sem ligar grande
importância ao facto: “Desta vez a Adriana leva mais tempo que de
costume.” Ou quando ouvia abrir a porta e falar no vestíbulo: “A
7
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção
de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes
Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos procure por http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros. Será um prazer
recebê-lo em nosso grupo.
Adriana acabou.” Que mais? Com estas ideias na cabeça eu era a
minha mãe completa: corpo e alma. E justamente porque
conseguira ser como ela de uma maneira tão completa tinha a
impressão de a amar outra vez , e mais do que dantes.
Acordei deste sonho com o ruído da porta que se abria.
Minha mãe acendeu a luz e perguntou-me:
- Que fazes aí às escuras?
Deslumbrada pela luz, levantei-me e olhei-a. Tinha mudado
de facto; reparei logo. Não tinha chapéu, porque nunca o usara,
mas vestira um vestido preto de feitio complicado. Sobraçava uma
grande mala de couro preto com fechos de metal amarelo e trazia
ao pescoço uma pele de gato bravo. Molhara os seus cabelos
cinzentos e penteara-os com cuidado, prendendo-os num rolo na
nuca com numerosos ganchos. Até tinha passado um pouco de pó
de arroz rosado sobre as faces, dantes áridas e magras e agora
cheias e coradas. Sem querer, sorri por vê-la tão aperaltada e tão
solene. E foi no meu tom afectuoso de sempre que lhe disse:
- Vamos!
Sabia que ela gostava de passear à hora de maior movimento
pelas ruas principais, que tinham as lojas mais bonitas da cidade.
Assim, tomamos um eléctrico e descemos a Rua Nacional. Minha
mãe costumava levar-me a passear nessas ruas quando eu era
garota. Começava na Praça do Hexaedro pelo passeio da direita.
Lentamente, examinando as montras uma por uma com atenção,
chegava à Praça de Veneza. Ali, sempre observando tudo com
minúcia e puxando-me pela mão, passava para o outro passeio e
voltava para a Praça do Hexaedro. Então, sem ter comprado um
alfinete nem se ter atrevido a pôr pé num dos numerosos cafés da
rua, trazia-me para casa, sonolenta e cansada. Lembrava-me de
que esses passeios não me agradavam, porque, ao contrário de
minha mãe, eu teria desejado entrar, comprar e trazer para casa
todas as belas coisas expostas atrás dos vidros brilhantemente
iluminados. Mas depressa aprendera que éramos pobres e não
manifestava de forma alguma os meus sentimentos. Uma vez só,
não me lembro porquê, tive, como costuma dizer-se, uma birra. E
percorremos a rua do princípio ao fim, minha mãe puxando-me
por um braço e eu resistindo com todas as forças, chorando e
gritando... Por fim, em vez do objecto desejado, minha mãe
deu-me um par de tabefes e a dor da bofetada fez esquecer a da
renúncia.
Encontrei-me de novo pelo braço da minha mãe, no mesmo
passeio da mesma Praça do Hexaedro, como se os anos não
tivessem passado. Via as pedras dos passeios, onde formigavam
pés calçados com botas, grossos sapatos, sandálias, saltos altos,
saltos baixos; via os transeuntes que subiam e desciam a rua, a
dois e dois, em grupos de homens, de mulheres e de crianças ou
ainda pessoas sós, umas lentas outras apressadas, todas iguais,
justamente porque queriam parecer diferentes, com os mesmos
fatos, os mesmos chapéus, as mesmas caras, os mesmos olhos, as
mesmas bocas. Via as sapatarias, as joalharias, as relojoarias, as
livrarias, as floristas, as lojas de fazendas, os luveiros, os cafés e
os cinemas, os bancos. Revia as janelas iluminadas das belas
casas, com pessoas lá dentro a andar de um lado para o outro ou
sentadas à mesa a trabalhar, os anúncios luminosos, sempre os
mesmos. Num canto da rua, o vendedor de jornais, os vendedores
de castanhas, os mendigos: o cego com a cabeça encostada à
parede, a bengala branca estendida e os óculos pretos; mais
abaixo a mulher quase velha com uma chaga no seio, ainda mais
abaixo o idiota com aquele coto amarelo luzidio como um joelho e
que estendia à caridade. Ao encontrar-me nesta rua, no meio de
todas as coisas que me eram familiares, experimentava uma
fúnebre impressão de imobilidade, que me arrepiou da cabeça aos
pés, e durante um momento tive a sensação de estar nua, como se
um sopro de terror se tivesse infiltrado por entre a minha roupa e
a minha pele. O aparelho de T. S. F. de um café transmitia a voz
ruidosa e apaixonada de uma mulher que cantava. Era no ano da
guerra da Etiópia e ela cantava Linda Caránha Preta.
Como era natural, minha mãe não se apercebia dos meus
sentimentos; de resto eu não os deixava transparecer. Como já
disse, tenho um aspecto tão doce e tão fleumático que é raro as
pessoas adivinharem o que passa pela minha cabeça. Num certo
momento, no entanto, senti-me comovida (a mulher acabava de
cantar uma cançoneta sentimental), os lábios começaram-me a
tremer e disse a minha mãe:
- Lembras-te de quando me fazias subir e descer esta rua
para ver as montras?
- Lembro-me - respondeu ela -, mas nesse tempo estava tudo
mais barato... Esta mala, por exemplo, comprei-a por metade do
preço de agora!
Passamos da montra de uma loja de malas para a de uma
joalharia. Minha mãe parou a contemplar as jóias e disse com ar
extasiado:
- Olha aquele anel... Sabe Deus o que custa!... E esta
pulseira... toda de ouro maciço! Eu nunca tive a paixão das
pulseiras ou dos anéis... mas colares, sim! Tinha um colar do
coral... mas tive de o vender.
- Quando?
- Oh! Há muitos anos!
Não sei porquê, lembrei-me de que com o dinheiro ganho
com a minha profissão não tinha ainda podido comprar o mais
miserável anelzito. E declarei a minha mãe:
- Sabes... Decidi que daqui em diante mais ninguém traria
para casa. Acabou.
Era a primeira vez que eu aludia ao meu ofício de uma forma
tão explícita. A cara dela teve uma expressão que eu de momento
não consegui interpretar, e respondeu:
- Já to disse muitas vezes... Farás aquilo que entenderes. Se
estiveres contente, eu também estou.
No entanto, não parecia satisfeita.
- Recomeçaremos a vida que levávamos dantes - continuei-,
serás obrigada a voltar a cortar e a coser as tuas camisas.
- Já o diz durante tantos anos! - disse.
- Não teremos tanto dinheiro como agora - insisti um pouco
cruelmente. - Temos levado uma rica vida. Por mim ainda não sei
o que farei.
- Que vais fazer? - perguntou-me minha mãe com uma
expressão de esperança.
- Não sei - respondi. - Recomeçarei a ser modelo... ou talvez
te ajude às camisas...
- Oh! Mas como me poderás ajudar?... - disse ela,
desencorajada.
- Ou então arranjo um lugar de criada - continuei. - Que
queres que faça?
Agora minha mãe tinha uma cara amarga e triste como se
sentisse bruscamente toda a gordura dos últimos anos
abandoná-la, como as folhas mortas que se desprendem das
árvores aos primeiros frios do Outono. Disse com a mesma
convicção:
- Farás o que quiseres - repito. - Contanto que estejas
contente!
Compreendia que dois sentimentos opostos se debatiam
dentro dela: o seu amor por mim e o seu desejo de uma vida
confortável. Fez-me pena. Teria preferido que tivesse tido a
coragem de sacrificar deliberadamente um dos dois sentimentos e
fosse toda amor ou toda interesse. Mas é raro que isso aconteça:
passamos toda a vida a anular com a acção dos nossos vícios o
efeito das nossas virtudes.
- Eu dantes não estava satisfeita e agora também não irei
estar. Somente não tenho coragem para continuar esta vida.
Depois destas palavras nada mais dissemos. Minha mãe
estava com uma cara abatida; a sua magreza de outrora, a sua
pele esticada, pareciam desenhar-se já de novo debaixo do seu ar
de prosperidade. Examinava as montras com o mesmo ar
minucioso, as mesmas longas contemplações, mas sem alegria,
sem curiosidade, maquinalmente, como se pensasse noutra coisa.
Talvez nada visse do que olhava, ou, melhor, não visse os objectos
expostos, mas uma máquina de costura, com um pedal infatigável
e uma agulha que subia e descia como louca, pedaços de tecido
meio confeccionados sobre a mesa da costura, bocados de papel
preto nos quais embrulhava o trabalho acabado para entregar na
cidade aos clientes. Pela minha parte, estes fantasmas não se
interpunham entre os meus olhos e a montra. Via tudo muito bem
e pensava de uma maneira clara. Inspeccionava os objectos um
por um, vendo a etiqueta com o preço, e dizia a mim própria que
podia muito bem não querer continuar o meu ofício (como de facto
não queria), mas que na realidade não podia ter outro. Alguns
objectos que via nas montras poderia vir a tê-los se economizasse
um pouco; no dia em que voltasse aos meus anteriores trabalhos
seria preciso renunciar a estas coisas para sempre; recomeçaria
para mim e para minha mãe a nossa vida de outrora, restrita, sem
conforto, cheia de renúncias e de recalcamentos, de sacrifícios
inúteis e de economias sem resultado. Actualmente podia aspirar
a uma jóia se encontrasse alguém que ma pudesse oferecer. Mas
se voltasse à minha vida miserável, as jóias tornar-se-iam para
mim tão inacessíveis como as estrelas do céu. Assaltou-me um
violento desagrado por essa vida passada, que me pareceu
estupidamente desesperante, e senti como eram absurdos os
motivos que me tinham levado a pensar em mudar de vida. Porque
um estudante por quem eu tinha ficado embeiçada não me tinha
querido! Porque se me tinha metido na cabeça que ele me
desprezava? Em suma, só porque eu não tinha querido ser o que
era. Compreendi que era unicamente orgulho, e não podia por
simples orgulho voltar, e sobretudo obrigar minha mãe a voltar, à
nossa miserável situação de antigamente. Vi de súbito a vida de
Jaime, que se aproximara da minha e nela se fundira, divergir
numa direcção diferente e a minha continuar pela estrada que eu
tinha escolhido. Se encontrasse alguém que gostasse de mim e me
desposasse, então sim, nem que fosse pobre! Mas por capricho
extravagante não valia a pena! A esta ideia, uma grande calma,
feita de alívio e doçura, invadiu-me a alma. Era uma sensação que
frequentemente experimentava de cada vez que não só aceitava o
destino que a vida me impusera, mas também quando ia ao meu
encontro. Era o que era: devia ser isto e não outra coisa. Podia ser
uma boa esposa, por muito estranho que pareça, ou uma mulher
que se dá por dinheiro, mas nunca uma desgraçada que se
condenou a uma vida de miséria apenas para satisfação do seu
orgulho. Por fim sorri, reconciliada comigo própria.
Estávamos em frente de uma loja de novidades para
senhora. Minha mãe disse-me:
- Olha que lindo lenço. De um lenço assim é que eu
precisava.
Tranquila e serena, levantei os olhos para ver o lenço que
minha mãe indicava. Era realmente bonito, preto e branco, com
ramos e pássaros. Da porta da loja podia ver-se sobre o balcão
uma caixa com divisões cheia de lenços iguais e desdobrados.
Perguntei-lhe:
- Gostas do lenço?
- Sim. Porquê?
- Vais tê-lo, mas, para começar, dá-me a tua mala e toma lá
a minha.
Ela nada percebia e olhava-me de boca aberta. Sem falar
trocamos as malas, abri o fecho, segurando-o com dois dedos, e,
devagar, com o passo de quem quer comprar, entrei na loja.
Minha mãe seguiu-me. Continuava a não compreender, mas não
ousava perguntar.
- Queríamos ver lenços - disse eu à empregada
aproximando-me da caixa das divisões.
- Estes são de seda, estes de caxemira, estes de lã... estes
são de algodão... - dizia a empregada estendendo-os à minha
frente.
Aproximei-me o mais possível do balcão, com a mala ao nível
da barriga, e comecei a examinar, só com uma das mãos, os
lenços, abrindo-os e voltando-os para a luz para ver melhor o
desenho. Havia pelo menos uma dúzia deles, todos parecidos.
Consegui que um ficasse caído de maneira que uma grande ponta
pendesse para o lado de fora do balcão. Depois disse à empregada:
- Gostaria de ver alguns de tons mais vivos.
- Temos um artigo melhor, mas mais caro! - disse ela.
- Mostre-me.
A empregada voltou-se para puxar uma caixa de riscas. Era
tempo; afastei-me um pouco do balcão e abri a mala; puxar a
ponta do lenço e tornar a encostar-me ao balcão foi obra de um
instante.
Entretanto, a empregada trouxera a caixa. Pousou-a sobre o
balcão e mostrou-me outros lenços maiores e mais bonitos. Eu
examinava-os fazendo observações sobre as cores e os desenhos e
mostrando-os a minha mãe, que tinha visto tudo e me respondia
com acenos de cabeça, mais morta do que viva.
- Quanto custam? - perguntei.
A empregada disse o preço e eu respondi num tom
desgostoso:
- Tinha razão; são muito caros... pelo menos para mim.
Obrigada.
Saímos da loja e dirigimo-nos rapidamente para uma igreja
próxima, porque eu receava que a empregada desse pelo roubo e
nos perseguisse por entre a multidão. Minha mãe, que me dava o
braço, olhava em volta com ar assustado, como um bêbado que
pergunta a si mesmo se não serão os objectos que estão bêbados
porque os vê vacilar e baralharem-se. Não pude deixar de sorrir da
sua atrapalhação. Não sabia porque tinha roubado o lenço: a
coisa, de resto, não tinha importância, porque eu já tinha roubado
a caixa de pó de arroz de Gino e porque nas coisas deste gênero o
primeiro passo é que custa. Mas experimentava o mesmo prazer
sensual e começava a compreender porque havia tanta gente que
roubava. Perto da igreja disse a minha mãe:
- Queres entrar por um instante?
- Como quiseres! - respondeu-me em voz baixa.
Entrámos: era uma igrejinha branca, redonda, à qual uma
colunata disposta em volta do pavimento dava a impressão de
uma sala de baile. Levantei os olhos e vi que a cúpula estava cheia
de frescos representando anjos de asas abertas. Tive a convicção
de que estes belos anjos me protegeriam e que a empregada só se
aperceberia do roubo à noite. O silêncio, o cheiro do incenso, a
sombra, o recolhimento da igreja, davam-me segurança, depois do
tumulto e da luz violenta da rua. Entrara depressa, arrastando
um pouco minha mãe, mas acalmei-me logo e o medo
desapareceu. Minha mãe fez menção de abrir a minha mala que
ainda conservava e eu troquei-a pela sua, dizendo-lhe:
- Põe o lenço!
Ela abriu a mala e pôs na cabeça o lenço roubado.
Molhamos os dedos em água benta e fomo-nos sentar na primeira
fila de bancos em frente do altar-mor. Ajoelhei-me, enquanto
minha mãe ficava sentada com as mãos sobre os joelhos, a cara
escondida pelo lenço demasiadamente grande. Percebi que ela
estava perturbada e não pude deixar de comparar a sua
perturbação com a minha calma. Estava com uma disposição de
espírito doce e conciliadora; não sentia remorsos e estava muito
mais próxima da religião do que quando não praticava acções
condenáveis e trabalhava cerrando os dentes para ganhar a vida.
Lembrei-me do frêmito de desalento que momentos antes sentira
ao olhar as ruas cheias de gente e senti-me reconfortada à ideia de
que havia um Deus que via claro no meu íntimo: verificava que em
mim nenhum mal havia, que pelo único facto de viver estava
inocente, como todos os homens de resto. Sabia que este Deus
não estava lá para me condenar ou julgar, mas para justificar a
minha existência, que só podia ser boa, visto que só dependia
dele. Rezando maquinalmente e pronunciando as palavras da
oração, olhava o altar sobre o qual, atrás da chamazinha trêmula
dos círios, entrevia um quarto com uma imagem que me parecia
ser a da Virgem e sentia que entre mim e a Virgem a questão não
era saber se eu devia viver desta ou daquela maneira, mas, mais
radicalmente, se me devia considerar encorajada a viver ou não. E
bruscamente tive a impressão de que este encorajamento partia
da silhueta escura que estava atrás dos círios do altar sob a forma
de um brusco calor que me envolveu o corpo todo.
Minha mãe ficara toda trêmula e assustada, com o seu lenço
novo que lhe fazia um bico por cima do nariz. Quando a olhei, não
pude deixar de sorrir com amizade.
- Reza um bocadinho - murmurei-lhe. - Verás que te faz
bem.
Ela estremeceu, hesitou, depois ajoelhou-se e pôs as mãos
como que de má vontade. Sabia que ela não queria acreditar na
religião, que lhe parecia um falsa consolação destinada a
acalmá-la e a fazer-lhe esquecer as durezas da vida. Nem ao
menos a vi mover maquinalmente os lábios, e a sua cara cheia de
desconfiança e de mau humor fez-me sorrir de novo. Teria
desejado sossegá-la, dizer-lhe que mudara de ideias, que não
devia ter receio, que não seria obrigada a coser à máquina outra
vez. Havia qualquer coisa de infantil na sua má disposição: era
como uma criança a quem se recusa um bolo que se tinha
prometido, e esta aparência parecia-me o aspecto fundamental da
sua conduta para comigo. Se assim não fosse, eu teria de pensar
que ela desejaria que eu continuasse com o meu ofício para
usufruir daí o seu conforto; e eu sabia, no fundo, que não era
verdade.
Quando acabou de rezar, persignou-se com ar seco e
despeitado para marcar bem que o fazia só para me ser agradável.
Saímos. À porta tirou o lenço, dobrou-o cuidadosamente e
meteu-o na mala. Voltamos à Rua Nacional e encaminhei-me para
uma pastelaria.
- Vamos tomar um vermute! - disse-lhe.
- Não, não, não vale a pena! - respondeu com uma voz em
que a apreensão e o prazer se misturavam.
Fazia sempre a mesma coisa; por um velho hábito, receava
sempre que eu fizesse gastos excessivos.
- Ora! - disse-lhe. - Por um vermute!
Calou-se e seguiu-me.
Era uma velha pastelaria com um balcão com embutidos de
caju luzidio e muitas vitrinas cheias de lindas caixas com
bombons. Sentámo-nos num canto e pedi dois vermutes. O criado
intimidou minha mãe, que baixou os olhos, imóvel e
envergonhada, enquanto eu dava as competentes ordens. Quando
trouxeram os vermutes, ela bebeu um pequeno gole, tornou a pôr
o copinho em cima da mesa, olhou-me e pronunciou com
gravidade:
- É bom.
- É vermute - disse eu.
O criado trouxe uma grande caixa de vidro e metal com
bolos. Abri-a e disse-lhe:
- Come um bolinho!
- Não, não, por favor...
- Pelo menos um...
- Tirava-me o apetite.
- Um bolo só!...
Escolhi um folhado com creme e ofereci-lho dizendo:
- Come este, que é leve.
Ela mordicou-o com precaução, olhando para o sítio que
tinha mordido.
- É realmente muito bom! - disse por fim.
- Come outro - disse-lhe.
Desta vez não se fez rogada e comeu o segundo bolo.
Acabado o vermute, ficámos silenciosas, contentando-nos
em olhar o vaivém de clientes na pastelaria. Compreendia que
minha mãe se sentia contente por estar sentada neste canto com
um vermute e dois bolos no estômago, que as idas e vindas desta
gente lhe despertavam a curiosidade e a divertiam e que nada
tinha para me dizer. Era provavelmente a primeira vez que ela ia a
um lugar destes.
Uma rapariga entrou. Trazia pela mão uma garotinha com
uma gola de pele branca, um vestido curto, meias e luvas brancas.
A mãe escolheu um bolo e deu-o à garota. Eu disse a minha mãe:
- Quando eu era pequena, nunca me trazias às pastelarias!
- Como podia eu? - respondeu.
- Agora - disse tranquilamente -, quem te leva às pastelarias
sou eu.
Calou-se, depois disse-me com ar penalizado:
- Estás a censurar-me por ter vindo... mas eu não queria!
Pousei a minha mão sobre a sua e disse-lhe:
- Não te censuro... Pelo contrário, estou bem contente por te
ter trazido... A avó nunca te levava às pastelarias?
Ela abanou a cabeça:
- Até aos dezoito anos nunca saí do meu bairro.
- Então já vês - disse-lhe. - Numa família é preciso que haja
alguém que faça certas coisas, um dia ou outro. Tu nunca o
fizeste, tua mãe também não, nem provavelmente a mãe da tua
mãe... então faço-as eu... Não pode continuar tudo eternamente
da mesma maneira.
Nada disse e passamos ainda um quarto de hora a observar
as pessoas. Depois abri a mala, tirei a cigarreira e acendi um
cigarro. É frequente as mulheres como eu fumarem nos lugares
públicos para chamarem a atenção dos homens. Mas eu naquela
altura não pensava em procurar amantes; tinha até decidido
deixar de o fazer. Apetecia-me fumar, mais nada. Introduzi o
cigarro nos lábios e deitei uma baforada pelo nariz, conservando o
cigarro entre os dedos e olhando em volta. Mas devia haver nos
meus gestos, sem que eu desse por isso, qualquer coisa de
provocante, porque vi logo alguém que se encontrava junto do
balcão e segurava uma chávena de café que se preparava para
beber suspender o movimento e olhar-me fixamente. Era um
homem de quarenta anos, baixo, de cabelo encaracolado, olhos
salientes e maxilares duros. Tinha o pescoço tão curto que quase
não existia. Como um touro que vê o vermelho e pára a olhar de
cabeça baixa, assim ele me olhava com a chávena na mão. Estava
vestido elegantemente, com um sobretudo que valorizava os seus
largos ombros. Sabia que com aquele aspecto bastava que eu o
olhasse para que as veias do pescoço lhe inchassem e a cara
ficasse vermelha. Mas não tinha a certeza de que ele me
agradasse. Depois senti como que uma seiva secreta saindo de
uma casca rugosa, sob a forma de mil germezinhos ternos; o
desejo de o excitar espicaçava-me o corpo todo e obrigava-me a
deixar a minha atitude reservada. Justamente uma hora antes eu
tinha decidido deixar esta vida. Pensava que realmente nada havia
a fazer... era mais forte do que eu! Mas pensava-o alegremente.
Depois de sair da igreja, tinha-me reconciliado com a minha sorte,
fosse ela qual fosse, e sentia que esta aceitação valia mais para
mim que qualquer nobre recusa. E assim, passados uns
momentos de reflexão, levantei os olhos para o homem. Ainda me
olhava, apalermado, com a chávena na sua mão peluda e os olhos
bovinos fixos em mim. Então, tomei, por assim dizer, o meu
impulso, e com toda a malícia de que era capaz disparei-lhe um
longo olhar cálido e sorridente. Recebeu-o em cheio e, como já
tinha previsto, congestionou-se. Bebeu o café, pôs a chávena no
balcão e, muito direito no seu sobretudo apertado, foi-se embora,
para pagar na caixa. A porta olhou para trás e fez-me claramente
e com ar imperioso um sinal de inteligência. Saiu e eu disse a
minha mãe :
- Deixo-te... fica tu! De qualquer maneira não te poderia
acompanhar.
Ela estremeceu:
- Porquê? Aonde vais?
- Esperam-me lá fora - disse-lhe, levantando-me. Toma o
dinheiro: paga e volta para casa... Aliás chegarei primeiro... mas
não vou só.
Olhou-me com ar assustado e julguei ver uma sombra de
remorso no seu olhar. Mas ficou calada. Disse-lhe adeus e saí. O
homem esperava-me na rua. Apenas saíra já ele se inclinava para
mim e me agarrava violentamente o braço dizendo:
- Para onde vamos?
- Para minha casa.
Foi assim que depois de algumas horas de angústia
renunciei à luta contra o que parecia ser o meu destino, e o
abracei até com mais amor, como se estreita um inimigo que não
se pode vencer. E senti-me liberta. Alguns vão pensar que é fácil
aceitar uma sorte ignóbil mas rendosa em vez de a recusar. Eu
tenho perguntado muita vez a mim própria porque a tristeza e a
raiva enchem as almas daqueles que vivem segundo certos
preceitos e certos ideais, enquanto que aqueles que aceitam a sua
vida, que é acima de tudo nulidade, obscuridade e fraqueza, são
tão freqüente mente despreocupados e alegres. Neste caso, de
resto, cada qual obedece não a preceitos, mas ao seu
temperamento, que toma o aspecto de destino. O meu, como já o
disse, era ser a todo o custo alegre, doce e tranquila e eu aceitei-o.
3
Renunciei completamente a Jaime e não pensei mais nele.
Sentia que o amava, que se ele tivesse voltado eu teria ficado feliz
e amá-lo-ia mais do que nunca, mas sentia também que não me
deixaria mais humilhar por ele. Se ele tivesse voltado, teria ficado
na sua frente, fechada na minha vida como numa fortaleza que
seria verdadeiramente inexpugnável enquanto a não abandonasse.
Dir-lhe-ia: “Sou uma rapariga da rua e nada mais. Se me queres, é
preciso que me aceites tal como sou.” Tinha compreendido que a
minha força não era desejar ser aquilo que não sou, mas aceitar
aquilo que era. A minha força era a minha fortaleza, o meu
trabalho, a minha mãe, a minha casa, as minhas roupas
modestas, a minha origem humilde, as minhas infelicidades e,
mais intimamente, o sentimento que me fazia aceitar todas estas
coisas profundamente enterradas na minha alma como uma pedra
preciosa na terra. Contudo, estava certa de que não o tornaria a
ver; e esta certeza fazia com que o amasse de uma maneira nova
para mim, impotente e melancólica, mas não privada de doçura,
como se amam os que morreram e nunca mais voltarão. No
decurso desses dias rompi com Gino. Como já o disse, não gosto
dos rompimentos bruscos; quero que as coisas vivam e morram
naturalmente. As minhas relações com Gino são um bom exemplo
desta vontade. Elas acabaram porque a vida que as animava se
apagou e não por qualquer falta da minha parte e nem sequer,
num certo sentido, por culpa de Gino. Acabaram de maneira a não
me deixarem nem desgosto nem remorso.
Continuara a vê-lo de tempos a tempos, duas ou três vezes
por mês. Agradava-me, como já disse, se bem que já tivesse
perdido toda a estima que tivera por ele. Num desses dias
marcou-me, pelo telefone, encontro numa pastelaria onde eu lhe
disse que iria.
Era uma pastelaria do meu bairro. Gino esperava-me na
salinha do fundo, numa espécie de gabinete sem janelas, com as
paredes completamente revestidas de azulejos. Quando entrei,
reparei que não estava só. Alguém estava sentado com ele, de
costas viradas para mim. Só via que trazia um impermeável verde
e que tinha cabelos louros, cortados muito curtos. Aproximei-me e
Gino disse:
- Deixa-me apresentar-te o meu amigo Sonzogne.
Então ele levantou-se; olhei-o e estendi-lhe a mão. Mas
quando ele ma apertou, tive a impressão de ter sido agarrada por
tenazes e dei um pequeno grito de dor. Ele largou-me logo a mão;
sentei-me sorrindo e disse-lhe:
- Sabe que me magoou? Você aperta sempre assim a mão?
Não me respondeu nem sequer sorriu. Tinha a cara branca
como o papel, a testa saliente, olhos pequeninos azuis-claros, o
nariz adunco e a boca cerrada como um corte. Os seus cabelos
louros, lisos e deslavados, estavam cortados curtos sobre as
têmporas achatadas, mas a base da cara era larga, com maxilares
largos e desgraciosos. Parecia estar sempre a cerrar os dentes,
como se triturasse qualquer coisa, e constantemente, debaixo da
pele das faces, via-se fremir e deslizar uma espécie de nervo. Gino,
que parecia ter por ele uma amizade afectuosa e admirativa,
disse-me rindo:
- Mas isto nada é... Se tu soubesses como é forte! Tem o soco
proibido!
Tive a impressão de que Sonzogne o olhava com hostilidade.
Acabou por dizer com voz surda:
- Não é verdade que tenha o soco proibido... Mas podia ter!
Perguntei:
- Que é isso do soco proibido?
Sonzogne respondeu-me secamente:
- Quando se pode matar um homem com um soco, não se
tem o direito de empregar o punho. É como fazer uso do revólver.
- Mas sente como ele é forte! - insistiu Gino, excitado e
desejoso, parecia, de se reconciliar com Sonzogne. - Vamos -
pedia-lhe -, deixa-a apalpar os teus braços!
Hesitei, mas dir-se-ia que Gino o desejava e que o seu amigo
também esperava esse gesto. Estendi a mão molemente para lhe
apalpar o braço. Ele dobrou o antebraço para retesar os músculos,
mas seriamente, quase que com um ar sombrio. Então, com
grande surpresa minha, porque ao vê-lo dava o aspecto de um
homem franzino, os meus dedos sentiram, através das mangas,
como um rolo de cabo de aço. Retirei a mão com uma exclamação,
não sei se de admiração, se de repugnância. Sonzogne olhou-me
com ar satisfeito, um leve sorriso nos lábios. Gino declarou:
- É um velho amigo... Não é verdade, primo, que nos
conhecemos há muito tempo? Somos como dois irmãos!
E deu uma palmada nas costas de Sonzogne, acrescentando:
- O meu velho primo!
Mas o outro levantou os ombros para afastar a mão de Gino
e respondeu:
- Nem amigos, nem irmãos... Trabalhamos na mesma
garagem, é o que é!
Gino não se desconcertou:
- Eh! Sei que de ninguém queres ser amigo! Sempre só...
sempre por tua conta... nem homens nem mulheres!
Sonzogne olhou-o. Tinha um olhar frio, de uma imobilidade
e de uma insistência incríveis, e Gino desviou dele os seus olhos.
- Quem te contou essas histórias? - disse-lhe Sonzogne. -
Ando com quem me agrada, homens e mulheres!
- Falei por falar - desculpou-se Gino, que parecia perder toda
a segurança. - Pelo que me diz respeito, é certo que nunca te vi
com ninguém.
- Tu nada sabes da minha vida.
- Ora! Eu que te via todos os dias de manhã à noite!
- Vias-me todos os dias, e então?
- Bem! - insistiu Gino desconcertado. - Como te via sempre
sozinho, pensei que não te desses com ninguém. Quando um
homem tem uma mulher ou um amigo, acaba sempre por se
saber!
O outro disse-lhe brutalmente:
- Não te faças cretino!
- Agora chamas-me cretino! - disse Gino corado, afectando
julgar a frase de humor inofensivo.
Mas sentia-se que tinha medo. Sonzogne repetiu:
- Não te faças cretino, senão parto-te a cara!
Bruscamente, compreendi que não só ele era capaz de o
fazer, mas que era mesmo essa a sua intenção. Pousei-lhe a mão
no braço e disse-lhe:
- Se vocês se querem bater, façam-no quando eu não estiver
presente... detesto violências.
- Apresento-te uma rapariga minha amiga - disse Gino,
penalizado - e tu assusta-la desta maneira... Ela vai pensar que
somos dois inimigos.
Sonzogne voltou-se para mim e pela primeira vez sorriu.
Quando sorria, piscava os olhos, franzia a testa de uma maneira
irregular e mostrava não só os dentes, que eram pequenos e frios,
mas também as gengivas.
- A menina não está assustada, pois não?
Respondi-lhe secamente :
- Não estou nada assustada, mas, como acabei de dizer, não
gosto de violências.
Houve um longo silêncio. Sonzogne ficou imóvel com as
mãos nos bolsos do impermeável; fazia tremer os nervos dos
maxilares e olhava para o vago. Gino fumava, com a cabeça baixa,
e o fumo que saía da sua boca subia-lhe ao longo da cara e das
orelhas, ainda escarlates. Por fim, Sonzogne disse:
- Vou-me embora.
Gino quase deu um pulo e estendeu-lhe a mão com ar
atencioso, dizendo :
- Então, amigos como dantes, hem, primo?
- Amigos como dantes! - respondeu o outro com os dentes
cerrados.
Apertou-me a mão, desta vez sem me magoar, e foi-se
embora. Era magro e baixo: não se compreendia donde vinha a
sua força.
Logo que saiu, disse, divertida, a Gino:
- Vocês podem ser amigos e até mesmo irmãos... mas ele
disse-te cada coisa!
Gino retomara a sua segurança. Abanou a cabeça e
explicou-me:
- É feito assim... mas não é mau... E depois, a mim
interessa-me estar de boas relações com ele... já me foi útil.
- De que maneira?
Apercebi-me de que Gino estava excitado e ardia de desejo
por me revelar não sei o quê. Assumiu de repente um aspecto
risonho, a cara como que inchada de impaciência :
- Lembras-te - perguntou-me - da caixa da minha patroa?
- Lembro... e então?
Os olhos de Gino brilhavam de alegria. Baixou a voz e
disse-me:
- Pois bem! Depois pensei melhor e não a devolvi.
- Não a devolveste?
- Não. Reflecti que para a minha patroa, que era rica, uma
caixa a mais ou a menos não tinha importância. Já agora o golpe
estava dado - acrescentou com uma reserva característica - e no
fundo não tinha sido eu o gatuno.
- Era eu a ladra - disse-lhe tranquilamente.
Fingiu não ouvir e continuou:
- Mas para a vender, era um problema... Era um objecto de
fácil reconhecimento... Não tinha confiança... Guardei-a, pois,
durante muito tempo no bolso... depois encontrei Sonzogne e
contei-lhe a história.
- Falaste-lhe de mim? - perguntei.
- Não... de ti não... disse que tinha sido uma amiga que ma
tinha dado, sem citar ninguém. E ele... imagina que em três dias,
não sei como, vendeu-a e trouxe-me o dinheiro, ficando com a
parte dele, como se tinha combinado, bem entendido.
Tremia de alegria. Olhou um momento à sua volta, depois
tirou do bolso um rolo de notas.
Não sei porquê, naquele momento senti por ele uma violenta
antipatia. Não julgo que o desaprovasse; não tinha sequer esse
direito. Mas o seu tom exultante aborrecia-me. Além disso tinha a
impressão de que ele não me tinha dito tudo; e o que escondera
era decerto o pior. Disse-lhe secamente :
- Fizeste bem!
- Toma! - continuou desenrolando as notas. - Isto é para ti.
Contei contigo.
- Não, não! - disse-lhe. - Nada quero, absolutamente nada.
- Mas porquê?
- Nada quero.
- Queres por força vexar-me! - disse-me.
Uma sombra de tristeza e de desconfiança passou na sua
cara e julguei tê-lo verdadeiramente magoado. Fiz um esforço e
disse pousando-lhe a mão sobre a sua:
- Se não mo tivesses oferecido, eu teria ficado, não digo
ofendida, mas admirada. Agora assim está bem. Não quero esse
dinheiro, porque para mim é um caso arrumado. É só isso... mas
estou contente porque tu o tenhas.
Olhava-me sem compreender, com uma expressão
desconfiada, como se quisesse descobrir o motivo secreto que se
escondia nas minhas palavras. Frequentemente, depois, pensando
no caso, percebi que ele não me podia ter compreendido, porque
vivia num mundo diferente formado por ideias e por sentimentos
diferentes dos meus.
Não sei se este mundo era pior ou melhor do que o meu; só
sei que certas palavras não tinham para ele o sentido que eu lhes
ligava e que uma grande parte das suas acções, que me pareciam
repreensíveis, ele as considerava como lícitas e mesmo legais.
Parecia, em particular, ligar a maior importância à inteligência,
que para ele se reduzia à astúcia. Dividia os homens em
astuciosos e parvos, esforçando-se sempre, e a todo o preço, por
pertencer à primeira categoria. Ora, eu não sou astuciosa, talvez
mesmo não seja inteligente, e nunca compreendi como um acto
indigno, só pelo facto de ser praticado com esperteza, pode chegar
a ser, já não digo admissível, mas simplesmente desculpável.
Bruscamente a sua desconfiança pareceu dissipar-se e
gritou:
- Compreendo! Não queres o dinheiro porque tens medo...
tens medo que descubram o roubo... A esse respeito nada há a
recear... Está tudo em ordem!
Não tinha medo, mas não me importei que ele o pensasse,
porque a segunda parte da frase pareceu-me obscura.
- Está tudo em ordem? - perguntei-lhe. - Que queres dizer?
- Sim, está tudo em ordem - respondeu-me. - Lembras-te de
eu te ter dito que lá em casa desconfiavam de uma criada de
quarto?
- Sim.
- Bem! Não gostava dessa criada de quarto porque ela dizia
mal de mim nas minhas costas... Alguns dias depois do roubo
percebi que as coisas tomavam um mau rumo para mim. O
comissário já tinha ido lá a casa duas vezes e eu senti que
desconfiavam de mim. Nota bem que ainda não tinham começado
as indagações. Então tive uma ideia: desviar as suspeitas para
outro roubo e fazer com que as culpas caíssem sobre a criada.
Eu não dizia palavra. Olhou-me um momento com os olhos
brilhantes e dilatados para ver se eu admirava a sua astúcia e
continuou:
- A minha patroa tinha alguns dólares numa caixinha; tirei
os dólares e fui pô-los no quarto da criada, dentro de uma mala
velha. Desta vez, como era natural, fizeram pesquisas,
descobriram os dólares e prenderam-na. Agora ela jura que está
inocente, bem entendido, mas quem a vai acreditar depois de
terem encontrado os dólares no seu quarto?
- Onde está essa mulher?
- Está na prisão e não quer confessar! Mas sabes o que disse
o comissário à minha patroa? “Esteja sossegada, minha senhora,
ela acabará por confessar! A bem ou a mal!” Percebes, hem? A
pancada!
Olhei-o gelada de espanto por vê-lo tão orgulhoso e tão
excitado.
- Como se chama essa mulher? - perguntei como por acaso.
- Luísa Feligny... É uma mulher que já não é nova. Muito
orgulhosa. Não se compreende porque é criada de quarto; não há
alguém mais honesta do que ela.
E ria divertido com a coincidência.
Fiz um grande esforço como se me custasse respirar e
perguntei-lhe:
- Já reparaste que és um cobarde?
- Como? Porquê? - perguntou-me, surpreendido. Agora, que
o tratara por cobarde, sentia-me mais livre e mais desprendida.
Sentia as narinas palpitarem de raiva. Continuei logo:
- E querias que ficasse com esse dinheiro? Mas eu sentia que
era dinheiro que me queimaria os dedos!
- Qual história! - disse, esforçando-se por não se
desconcertar. - Ela não confessa e deixam-na.
- Mas disseste-me que está na prisão e lhe batem.
- Disse isso por dizer.
- Pouco importa... deixaste prender uma inocente e tens
ainda o descaramento de mo vir contar. És um vil cobarde!
Bruscamente encolerizou-se, empalideceu e apertou-me a
mão:
- Vais deixar de me chamar cobarde!
- Porquê? Penso que és um cobarde e digo-te.
Ele perdeu o sangue-frio e teve um estranho gesto de
violência. Torceu-me a mão como se ma quisesse arranjar, depois,
de repente, baixou a cabeça e mordeu-ma com força. Com uma
sacudidela, tirei a mão e levantei-me:
- Mas tu estás completamente idiota! - disse-lhe. - O que te
aconteceu? Agora mordes? É inútil. Cobarde és e cobarde serás
sempre!
Não respondeu, mas agarrou a cabeça com as mãos como se
quisesse arrancar os cabelos.
Chamei o criado e paguei as contas todas: a minha, a dele e
a do Sonzogne. Depois disse a Gino:
- Vou-me embora, mas devo dizer-te que entre nós está tudo
acabado... Não me apareças mais, não me procures! Não venhas,
eu não te conheço!
Não respondeu nem levantou a cabeça e eu saí. A leitaria era
à entrada da rua, a pouca distância da minha casa. Comecei a
andar devagar, do lado oposto às fortificações. Era noite, o céu
estava nublado, caía uma chuva miudinha como uma poeira de
água no ar imóvel e tépido. Como de costume, as fortificações
estavam às escuras, à parte alguns candeeiros, muito espaçados.
Mas assim que saí da leitaria vi um homem desencostar-se de um
desses candeeiros e seguir ao longo das fortificações na mesma
direcção que eu, na intenção provável de me tolher o passo. Pelo
seu impermeável apertado na cintura e pela sua cabeça loura e
quase rapada reconheci Sonzogne. Debaixo das muralhas parecia
pequeno: de vez em quando desaparecia na sombra, depois
reaparecia à luz de um candeeiro. Pela primeira vez, talvez, todos
os homens me repugnaram, todos os homens pendurados às
minhas saias como cães correndo atrás de uma cadela. Vibrava
ainda de cólera, e, quando pensava naquela mulher que Gino com
o seu procedimento metera na cadeia, não podia deixar de sentir
remorsos porque, no fim de contas, a caixa fora eu quem a
roubara! Mas, mais do que remorso, era um sentimento de
irritação e de revolta. Insurgindo-me contra a injustiça, e odiando
Gino, detestava repeli-lo e saber que fora cometida uma injustiça.
Realmente, não sou feita para estas coisas. Experimentava um
mal-estar violento; tinha a impressão de não ser mais eu mesma.
Caminhava apressada, desejosa de chegar a casa antes que
Sonzogne me abordasse, como parecia ter intenção de fazer. Mas
ouvi o meu nome pronunciado por Gino, que me chamava,
esbaforido:
- Adriana! Adriana!
Fingi não ouvir e apressei o passo. Ele agarrou-me por um
braço:
- Adriana... estivemos sempre de acordo... não nos podemos
separar assim!
Com uma sacudidela, libertei o braço e continuei o meu
caminho. Do outro lado, sob as muralhas, a pequena silhueta
clara de Sonzogne tinha saído da obscuridade para entrar no
círculo luminoso do candeeiro.
- Mas eu amo-te, Adriana! - repetia Gino correndo ao meu
lado.
Inspirava-me uma mistura de piedade e de ódio, e essa
mistura era-me tão desagradável que não a podia traduzir.
Esforcei-me por pensar noutra coisa. De repente, não sei como,
uma ideia passou pelo meu espírito como um relâmpago.
Lembrei-me de Astárito, da maneira como ele sempre me oferecera
a sua ajuda, e pensei que talvez ele tivesse um meio de conseguir
libertar da prisão aquela pobre mulher. Esta ideia produziu em
mim um efeito benfazejo; a minha alma libertou-se do peso que a
oprimia e tive mesmo a impressão de já não odiar Gino e de sentir
por ele apenas compaixão. Parei e disse-lhe tranquilamente:
- Porque não desapareces, Gino?
- Mas eu amo-te.
- Eu também; já te amei, mas agora acabou; vai, desanda, é
melhor para ti e para mim.
Estávamos num sítio escuro da avenida e não havia
candeeiros nem lojas. Agarrou-me pela cintura e tentou beijar-me.
Teria podido muito bem livrar-me sozinha, porque sou forte e
porque ninguém pode beijar uma mulher contra a sua vontade.
Em vez disso, não sei porque diabólica inspiração, lembrei-me de
chamar Sonzogne, que parara do outro lado da avenida, debaixo
das fortificações, e nos olhava, imóvel, com as mãos nos bolsos do
impermeável. Penso que se o chamei foi porque julguei ter
encontrado o meio de impedir a má acção de Gino, deixando a
coquetterie e a curiosidade aflorar de novo ao meu espírito. Gritei
duas vezes:
- Sonzogne! Sonzogne!
Imediatamente ele atravessou a avenida e Gino,
desconcertado, largou-me.
- Diga-lhe - proferi com calma enquanto Sonzogne se
aproximava - que me deixe tranquila, porque já nada quero com
ele... Não me quer ouvir, mas talvez a si ouça, visto que são
amigos.
- Estás a ouvir o que diz esta menina? - disse Sonzogne.
- Mas eu... - começou Gino.
Pensava que iriam continuar a discutir por uns momentos e
que por fim Gino, resignado, acabaria por se retirar. Mas de
repente vi Sonzogne fazer-me um gesto que não percebi, Gino
olhá-lo por um instante, aparvalhado, depois, sem uma palavra,
cair e rolar do passeio para a valeta.
Levantei a cabeça e olhei melhor: Sonzogne estava na minha
frente, as pernas afastadas, olhando o punho ainda fechado. Gino,
no chão, as costas viradas para nós, voltava a si e com o cotovelo
na valeta levantava lentamente a cabeça. Mas não parecia querer
pôr-se de pé; dava a impressão de olhar fixamente um papel velho
cuja brancura se distinguia na lama da valeta. Depois Sonzogne
disse:
- Vamos.
Com a cabeça um pouco atordoada encaminhei-me com ele
para a minha casa.
Andava sem dizer palavra e apertando-me o braço. Era mais
baixo do que eu, e a sua mão rodeava-me o braço como uma
prisão metálica. Passado um momento, disse-lhe:
- Não devia ter dado o soco a Gino... ele ia-se embora na
mesma sem violência.
- Assim já não a aborrecerá mais - respondeu-me.
- Mas como foi? - perguntei. - Eu nada vi... só dei por Gino
cair no chão.
- É uma questão de hábito - respondeu.
Falava como se mastigasse as palavras antes de as
pronunciar, ou, melhor, como se experimentasse a sua
consistência por entre os dentes, que conservava cerrados e que
eu imaginava encaixados uns nos outros como os das feras. Agora
experimentava um grande desejo de lhe apalpar os braços e de
sentir de novo sob a minha mão os seus músculos duros e fortes.
Inspirava-me mais curiosidade do que atracção. E, sobretudo,
fazia-me medo. Mas o medo, tanto quanto eu o posso designar
com clareza, pode ser um sentimento agradável e por vezes
excitante.
- Que tem nos braços? - perguntei. - Ainda não posso
acreditar no que vi.
- Mas já lhe disse para apalpar - disse-me com uma
entoação tão vaidosa que parecia sinistra.
- Não muito bem... estava o Gino presente... Deixe-me
apalpar agora.
Parou e dobrou o braço, olhando-me de lado, grave e
ingenuamente ao mesmo tempo, mas de uma ingenuidade que
nada tinha de infantil. Estendi a mão e desci do seu ombro ao
longo dos braços para apalpar os músculos. Era para mim uma
estranha sensação senti-los tão vivos e duros. Articulei com voz
apagada:
- És realmente forte.
- Sou forte, sim - confirmou com uma sombria convicção.
E recomeçamos a andar.
Agora estava arrependida de o ter chamado. Não me
agradava; para mais, esta gravidade, esta maneira de falar,
faziam-me medo. Foi assim que, em silêncio, chegamos em frente
da minha porta. Tirei as chaves da mala.
Aproximou-se de mim e disse-me:
- Eu subo.
Desejei dizer-lhe que não. Mas a maneira como ele me
olhava, com fixidez e insistência incríveis, subjugou-me e fez-me
perder a coragem.
- Se quiseres - disse-lhe.
Só depois de ter dito isto reparei que o tratara por tu.
- Não tenhas medo - disse-me interpretando erradamente o
meu ar assustado. - Tenho dinheiro... Dar-te-ei o dobro do que te
costumam dar os outros.
- Isso nada tem que ver... Não é pelo dinheiro. - Mas ele fez
uma cara cômica como se qualquer assustadora suposição lhe
atravessasse o espírito... - É só porque me sinto um pouco
cansada - acrescentei.
Seguiu-me até ao vestíbulo. Quando chegámos ao quarto,
despiu-se com gestos metódicos de homem ordenado. Tinha um
lenço em volta do pescoço; dobrou-o com cuidado e meteu-o no
bolso do impermeável. Colocou o fato nas costas da cadeira e
pendurou as calças de maneira a não desmanchar os vincos.
Juntou os sapatos um ao lado do outro debaixo da cadeira e as
meias dentro dos sapatos. Reparei que estava vestido de novo da
cabeça aos pés; os tecidos que usava não eram finos, mas
resistentes e de boa qualidade. Fazia estas coisas em silêncio, nem
depressa nem devagar, com uma regularidade sistemática e
ponderada, sem se ocupar de mim, que, entretanto, me tinha
despido e deitado nua sobre a cama. Se ele me desejava, não o
mostrava, a menos que aquele constante agitar dos músculos do
maxilar denotasse perturbação; mas isso não devia ser, porque já
o tinha antes, quando nem sequer parecia pensar em mim. Já
disse que a ordem e o asseio me agradavam e me pareciam
denotar qualidades de alma correspondentes. Mas nessa noite a
ordem e o asseio de Sonzogne suscitavam em mim sentimentos
bem diferentes, misturados de medo e de horror. “Desta maneira -
pensava eu - é que os cirurgiões se preparam nos hospitais
quando se dispõem a fazer qualquer operação sangrenta. Ou, pior
ainda, os magarefes, mesmo sob os olhos dos carneiros que vão
esfolar.” Estendida sobre a cama, sentia-me sem defesa,
impotente, como um corpo inanimado que vai ser submetido a
qualquer experiência. E o seu silêncio e a sua indiferença
deixavam-me na dúvida sobre o que ele iria fazer quando tivesse
acabado de se despir. Quando ficou nu e se aproximou da
cabeceira da cama e estranhamente me prendeu os ombros com
as duas mãos, como se me quisesse conservar imóvel, não pude
evitar um frêmito de medo. Ele reparou e perguntou-me por entre
dentes:
- Que tens?
- Nada - respondi. - Tens as mãos geladas.
- Não te agrado, hem? - disse-me segurando-me sempre os
ombros, de pé, junto do travesseiro. - Preferes os que são iguais a
ti, hem?
Enquanto falava, olhava-me de uma maneira intolerável.
- Porquê? - disse-lhe. - Tu és um homem como os outros. E
tu próprio me disseste já que me queres pagar o dobro.
- Sei muito bem o que quero dizer - respondeu. - Tu e as
outras como tu gostam dos ricos, das pessoas distintas... Eu sou
como tu e vocês, as prostitutas, só gostam dos “grandes”.
Reconheci no seu tom funesto a mesma tendência inflexível
para procurar questões que há pouco tinha feito com que
insultasse Gino sob o mais fútil pretexto. Julguei nessa altura que
tivesse qualquer rancor contra Gino. Agora compreendia que a
sua sombria susceptibilidade o levava sempre a encolerizar-se
quando esta espécie de demônio o dominava: fosse qual fosse a
maneira como nos portássemos com ele, enganávamo-nos sempre.
- Porque procuras agora também motivos para me ofender? -
respondi, ligeiramente vexada. - Já te disse que para mim os
homens são todos iguais.
- Se isso fosse verdade, não fazias essa cara... Não te agrado,
hem?
- Mas se já te disse...
- Não te agrado, hem? - continuou. - Tenho pena, mas é
preciso que te agrade!
- Oh! Deixa-me em paz - gritei, bruscamente irritada.
- Quando te fui útil para te livrares do teu melro,
quiseste-me ao pé de ti... mas depois terias gostado de não me
tornar a ver... somente eu subi. E não te agrado, hem?
Agora eu tinha realmente medo. As suas palavras sibiladas,
a voz dura, impiedosa e calma, o seu olhar fixo, os seus olhos que
de azuis pareciam tornar-se vermelhos, tudo parecia levar-me a
não sei que horrível fim. Então compreendi, mas já tarde, que
fazê-lo parar no rumo que as coisas levavam era o mesmo que
tentar deter um bloco de pedra que rolasse por uma ribanceira.
Limitei-me a encolher violentamente os ombros.
- Não te agrado, hem? - continuou. - Fazes uma cara
desgostosa quando te toco... Mas agora, meu amor, vou fazer-te
mudar de ideias!
E levantou a mão para me esbofetear. Começava a esperar
um gesto do gênero e procurava proteger-me com o braço. Mas
mal acabara de o fazer quando me bateu com uma ultrajante
dureza, primeiro numa face, depois, logo que eu voltava a cara, na
outra. Era a primeira vez na minha vida que isto me acontecia.
Apesar da violência das bofetadas, senti-me por momentos mais
surpreendida que penalizada. Afastei o meu braço da cara e
disse-lhe:
- Sabes o que és? És um desgraçado!
Esta frase pareceu feri-lo. Sentou-se na beira da cama e,
agarrando o colchão com as duas mãos, bamboleou-se uns
instantes. Depois disse sem me olhar:
- Somos os dois desgraçados!
- É preciso ter coragem para bater assim numa mulher! -
disse-lhe ainda.
De repente, não pude dominar-me e os olhos
encheram-se-me de lágrimas. Mas não era tanto pelas bofetadas
como pelo enervamento dessa noite, cheia de acontecimentos
desagradáveis e tristes... Julguei ver Gino projectado na rua,
lembrei-me de que não lhe ligara qualquer importância e me tinha
ido embora alegremente com Sonzogne unicamente interessada
em apalpar os seus músculos extraordinários; senti remorsos,
piedade por Gino e desgosto por mim própria; compreendi que
fora castigada pela minha insensibilidade e pela minha patetice
pela mesma mão que batera em Gino. Tinha sido cúmplice da
violência e essa mesma violência voltara-se contra mim. Através
das minhas lágrimas olhava Sonzogne. Ficara sentado na beira da
cama, nu, sem pêlos, as costas um pouco curvas, deixando cair os
seus braços extraordinários que não traíam a sua força. Senti um
repentino desejo de suprimir a distância que nos separava e
disse-lhe, não sem esforço:
- Mas pode ao menos saber-se porque me bateste?
- Fazias uma destas caras!
Parecia mergulhado em pensamentos; a pele do seu maxilar
estremecia.
Compreendi que se o queria aproximar de mim devia
primeiro que tudo dizer-lhe o que pensava dele e nada lhe
esconder.
- Tu pensavas que eu não gostava de ti? Pois bem!
Enganas-te!
- É possível.
- Enganas-te. Na realidade, não sei porquê, mas fazes-me
medo. Era por isso que eu fazia aquela cara. A estas palavras
voltou-se bruscamente para mim e perscrutou-me com um olhar
desconfiado. Mas tranquilizou-se logo e perguntou-me, não sem
vaidade:
- Faço-te medo?
- Sim.
- E agora ainda te faço medo?
- Não; agora podes até matar-me... é-me indiferente. Eu dizia
a verdade, e até naquele momento quase desejava que ele me
matasse, porque de repente perdera o desejo de viver. Mas ele
irritou-se e disse-me:
- Quem fala em te matar? E porque te fazia medo?
- Não sei... fazias-me medo... são coisas que não se podem
explicar.
- Gino fazia-te medo?
- Porque me havia de fazer medo?
- E então porque te faço eu medo, eu?
Agora já não mostrava vaidade, mas eu sentia que começava
a ficar furioso.
- Ora! - disse-lhe para o apaziguar. - Tu fazias-me medo
porque te acho capaz de fazer sei lá o quê!
Não respondeu logo e reflectiu durante uns instantes. Depois
voltou-se e perguntou-me em tom ameaçador:
- Tudo isso quer dizer que devo vestir-me e ir-me embora?
Olhava-o e compreendi que estava de novo a ponto de
encolerizar-se e que uma recusa da minha parte faria cair sobre
mim qualquer outra violência, talvez pior ainda. Era preciso
aceitar. Mas pensava naqueles olhos claros e sentia repugnância à
ideia de os ver olharem-me fixamente durante o amor. Disse-lhe
molemente.
- Não... fica se quiseres... mas apaga a luz. Levantou-se,
pequeno e branco, extraordinariamente bem proporcionado, à
parte o pescoço, que tinha um pouco curto, e foi nas pontas dos
pés dar a volta ao interruptor ao pé da porta. Mas compreendi logo
que não tivera uma boa ideia em ter pedido para apagar a luz,
porque assim que o quarto ficou às escuras o medo, que julgava já
afastado, tomou de novo posse de mim. Era como se tivesse
dentro do quarto não um homem, mas um leopardo ou qualquer
outra fera, capaz de se encolher num canto para me apanhar
desprevenida, de saltar sobre mim e despedaçar-me. Talvez se
tenha demorado no meio do quarto às escuras tenteando caminho
por entre as cadeiras e os outros móveis; talvez fosse também o
meu temor que me fizesse parecer a demora longa. Julguei que
tinha passado um tempo infinito até ele chegar à cama, e quando
pôs as suas mãos sobre mim não pude reprimir um novo
sobressalto, mais forte ainda do que o primeiro. Esperava que ele
não se apercebesse, mas tinha o instinto aguçado - exactamente
como os animais - e ouvi logo, muito perto de mim, a sua voz
perguntar-me :
- Ainda tens medo?
Por certo, no escuro, o meu anjo-da-guarda devia estar
presente. O tom da sua voz fez-me adivinhar que ele tinha
levantado o braço e que esperava a minha resposta para decidir se
me devia bater ou não. Percebi que ele sabia que fazia medo e
desejava que não o temessem e o amassem como aos outros
homens. Mas para chegar a esse resultado não conhecia outro
meio que o de inspirar um medo ainda mais forte. Estendi a mão,
fingi acariciar-lhe o pescoço e o ombro direito, e tive a certeza do
que imaginara; ele tinha o braço levantado, pronto a
esbofetear-me. Disse com voz forte, esforçando-me para dar à
minha voz a entoação habitual, doce e tranquila:
- Não... desta vez é só frio... Vamos enfiar-nos na cama.
- Está bem! - disse ele.
Este “Está bem!”, onde subsistia ainda um resto de ameaça,
confirmou a minha desconfiança. Então, enquanto que, debaixo
dos lençóis, ele me apertava e me estreitava, passei um momento
de angústia indescritível, um dos piores da minha vida. O medo
inteiriçava-me os membros, que, sem eu o querer, se arrepiavam
ao contacto do seu corpo, singularmente liso, escorregando e
serpenteando. Ao mesmo tempo dizia a mim própria ser absurdo
ter medo num momento daqueles e procurava com todas as forças
da minha alma dominar o meu temor e abandonar-me a ele sem
receio, como a um amante bem amado. Sentia este medo, não
tanto nos meus membros, que me obedeciam, às vezes com
grande repugnância, mas no fundo das minhas entranhas, que
pareciam fechar-se e recusar-se ao abraço com horror. Acabou por
me possuir e senti um prazer que o terror tornava negro e atroz.
Não pude evitar de emitir um grito longo e lamentoso, na
escuridão, como se a posse final não fosse a do amor, mas a da
morte, como se esse grito fosse o da minha vida que partia, não
deixando atrás dela mais do que um corpo inanimado e
martirizado.
Depois ficamos um bom bocado às escuras sem falar. Mas
eu estava estafada e adormeci quase em seguida. Senti logo a
impressão de um enorme peso sobre o meu peito, como se
Sonzogne se tivesse acocorado, dobrado sobre si próprio, nu como
estava, os joelhos entre os braços e a cara sobre os joelhos. Estava
sentado sobre o meu peito, as nádegas duras e nuas fazendo
pressão sobre o meu pescoço, os pés sobre o meu estômago. A
medida que adormecia, o seu peso aumentava, e, a dormir,
mexia-me de um lado para o outro para experimentar
desembaraçar-me, ou pelo menos deslocá-lo. Por fim tive a
impressão de sufocar e quis gritar. Fazia-o sem voz, que
estacionava no meu peito muito tempo, um tempo que me pareceu
infinito; por fim consegui emiti-la e acordei num choro alto.
A lâmpada da mesa-de-cabeceira estava acesa e Sonzogne
olhava-me apoiado no cotovelo.
- Dormi muito tempo? - perguntei-lhe.
- Uma meia hora - disse por entre dentes.
Deitei-lhe uma olhadela onde devia persistir o terror do meu
pesadelo, porque me perguntou com um curioso acento, como
para entabular conversa:
- E agora, ainda tens medo?
- Não sei.
- Se soubesses quem eu sou, ainda terias mais medo do que
anteriormente.
Todos os homens depois do amor se inclinam para as
conversas sobre eles próprios e para as confidências. Sonzogne
parecia não fazer excepção à regra.
O tom da sua voz, ao contrário do que lhe era habitual, era
leve, calmo e quase afectuoso, fútil, com uma ponta de vaidade.
Mas assustava-me outra vez terrivelmente, e o meu coração
começou a bater com toda a força como se fosse rebentar.
- Porquê? - perguntei. - Quem és tu?
Olhou-me não porque hesitasse, mas porque queria saborear
o efeito das suas palavras sobre mim. Acabou por dizer
lentamente.
- Sou o da Rua Palestro; sou esse.
Ele pensava que nem seria preciso explicar o que se passara
na Rua Palestro, e desta vez a sua vaidade não se enganou.
Alguns dias antes um crime horrível fora cometido numa casa
dessa rua; todos os jornais haviam falado nele, e as pessoas
apaixonadas por esses assuntos tinham-no comentado muito.
Minha mãe, que passava uma grande parte do dia a coleccionar
notícias diversas, tinha sido a primeira a falar-me no caso. Um
jovem ourives fora assassinado no apartamento onde vivia. Ao que
parecia, a arma de que se servira Sonzogne - porque agora já
sabia quem era o assassino - tinha sido um pesado pisa-papéis de
bronze. A polícia não tinha encontrado qualquer indício que a
conduzisse à descoberta do assassino. Havia suspeitas de o
ourives ter sido receptador; supunha-se pois - com razão, como se
verá - que tinha sido morto no decorrer de uma transacção ilícita.
Tenho muitas vezes notado que assim que uma notícia nos
enche de horror ou de espanto, a nossa cabeça esvazia-se e a
nossa atenção fixa-se sobre um objecto qualquer, o primeiro que
nos cai sob os olhos, mas de uma maneira singular, como se ela
quisesse trespassar a superfície para chegar a não sei que segredo
que se escondesse aí. Foi o que me aconteceu nessa noite com
Sonzogne, depois de me ter feito aquela revelação. Fiquei com os
olhos escancarados e o espírito esvaziou-se de repente, como um
recipiente que contenha um líquido ou um pó muito fino, assim
que é furado; somente, sentia o meu espírito, embora vazio, pronto
a encher-se de outra matéria, e esta sensação era dolorosa porque
eu teria querido preencher esse vazio e não o conseguia. Enquanto
o ouvia, fixava os olhos sobre o pulso de Sonzogne, estendido a
meu lado, com o cotovelo apoiado na cama. Tinha o braço branco,
liso, redondo, sem pêlos, onde nada indicava os seus músculos
extraordinários. O pulso também era redondo e branco; nesse
pulso estava o único objecto que Sonzogne conservava na sua
nudez: uma pulseira de couro, parecida com as pulseiras dos
relógios, mas sem relógio. A cor desta pulseira, de um preto
engordurado, parecia dar um significado não só ao braço, mas a
todo o corpo branco e nu, e esse significado distraía-me sem que o
pudesse explicar. Era uma nota de cor sombria; sugeria o elo de
uma cadeia de forçado. Mas havia também qualquer coisa de
gracioso e de cruel nessa simples pulseira negra, uma espécie de
ornamento que confirmava o carácter brusco e felino da ferocidade
de Sonzogne. A minha distracção durou só um instante. De
repente o meu espírito encheu-se de pensamentos tumultuosos,
que se agitavam como pássaros numa gaiola estreita. Lembro-me
de que tive medo dele desde o primeiro momento. Pensando que
tinha estado com ele na cama, compreendi que, cedendo ao seu
abraço no escuro, o meu corpo horrorizado descobrira antes do
meu espírito ignorante o que ele me escondia e fora por isso que
gritara daquela maneira.
Acabei por lhe dizer a primeira coisa que me veio ao espírito:
- Porque fizeste isso?
- Tinha um objecto de valor para vender - respondeu-me (e
os seus lábios mal se mexiam enquanto falava). - Sabia que aquele
comerciante era um bandido, mas não conhecia outro...
ofereceu-me um preço ridículo... Eu detestava-o porque já me
tinha roubado uma vez... disse-lhe que ficava com o objecto e que
ele não passava de um malandro... Então ele respondeu-me uma
coisa que me fez perder a cabeça.
- Que foi? - perguntei-lhe.
Percebia agora com espanto que à medida que Sonzogne me
contava essas coisas o meu medo começava a desvanecer-se; sem
querer, uma impressão de participação me animava. No momento
em que perguntei o que lhe tinha dito o ourives senti que esperava
quase uma coisa atroz que pudesse desculpar o crime, ou pelo
menos justificá-lo. Respondeu-me com secura:
- Disse-me que, se não me fosse embora, me denunciaria.
Em suma, pensei : “Pois é quanto basta!” E quando ele se voltou...
Calou-se e olhou-me.
- E como era ele? - perguntei.
- Calvo, baixinho, com cara de fuinha... parecia um coelho.
Disse isto com uma entoação tranquila e antipática, que me
fez ver, e mesmo odiar, esse aldrabão com cara de coelho
enquanto avaliava, com ar desconfiado e falso, o objecto que lhe
oferecia Sonzogne. Agora já não tinha medo algum; sentia que
Sonzogne me transmitira o seu rancor contra o assassinado; e não
estava até convencida de que o condenaria. Na verdade tinha a
impressão de estar tão bem dentro do que passara que me parecia
que eu também teria sido capaz de cometer este crime. Como
compreendia esta frase: “Respondeu-me uma coisa que me fez
perder a cabeça!” Ele tinha perdido a cabeça uma vez com Gino e
uma segunda comigo; só por sorte não nos tinha morto também a
mim e a Gino. Compreendia-o tão bem, penetrava-o tão bem, que
não só já não tinha medo, mas experimentava uma espécie de
simpatia horrorizada, essa simpatia que não me conseguira
inspirar antes de saber o seu crime e quando ele era apenas um
amante como os outros.
- Mas tu não tens pena? - perguntei-lhe. - Não tens
remorsos?
- Agora está feito - disse.
Olhava-o intensamente. A esta resposta. surpreendi-me, sem
dar por isso, a aprovar com a cabeça. E então lembrei-me de Gino,
que também era, segundo o termo de Sonzogne, um bandido, mas
que não deixava de ser um homem que eu amara e que me amava.
Pensava que amanhã poderia aprovar da mesma maneira a morte
de Gino. Admitia que o ourives não era nem melhor nem pior do
que Gino, que não havia diferença entre os dois, a não ser que eu
não conhecia o ourives, e se me parecera justo que o tivessem
assassinado era unicamente porque tinha ouvido dizer de uma
certa maneira que ele tinha cara de coelho - e senti remorsos e
horror... Não há horror por Sonzogne, que era feito assim e que
era preciso compreender para o julgar, mas de mim, que não era
feita como Sonzogne e portanto me deixava tomar pelo contágio do
ódio e do sangue. Fui tomada por uma espécie de agitação, e de
um salto sentei-me na cama: - Oh! Meus Deus! - repetia eu. - Oh!
Meu Deus! Porque fizeste isso? E porque mo contaste?
- Tinhas tanto medo de mim - respondeu com simplicidade -
e no entanto nada sabias; pareceu-me estranho e contei-te...
Felizmente - acrescentou, divertido com o próprio raciocínio - nem
todos são como tu; já estaria descoberto!
- É melhor que te vás embora e me deixes sozinha -
disse-lhe. - Vai, anda.
- Que tens tu agora? - respondeu-me.
Reconheci o tom que tinha quando estava furioso. Mas
pareceu-me descobrir neste tom não sei que pesar de se encontrar
só, condenado também por mim, que pouco antes lhe tinha
pertencido. Acrescentei rapidamente:
- Não julgues que tenho medo de ti. Já não é por medo...
Mas tenho de me habituar à ideia... Preciso de pensar... quando
voltares já será diferente.
- Mas em que queres pensar? - disse. - Não tens a intenção
de me denunciar?
Estas palavras produziram-me a mesma impressão que me
dera a confissão de Gino da maneira como traíra a criada de
quarto: era gente que vivia num mundo diferente do meu. Fiz um
grande esforço e respondi:
- Mas se te digo que podes voltar! Sabes o que outra mulher
te diria? Não quero mais ouvir falar de ti, não te quero ver mais. . .
era o que diria!
- Mas agora queres que me vá embora!
- Julgava que te querias ir embora... então um momento de
mais ou de menos... Mas, se queres ficar, fica! Queres dormir cá?
Se queres, podes passar a noite comigo e ires-te embora só
amanhã de manhã... Queres?
Para falar verdade, fazia-lhe este oferecimento numa voz
baça e triste, mas fazia-lho e estava contente por isso. Deitou-me
um olhar onde julguei descobrir um vislumbre de gratidão (talvez
me tivesse enganado), depois abanou a cabeça:
- Falei por falar - disse. - Realmente tenho de me ir embora.
Levantou-se e aproximou-se da cadeira onde tinha deixado a
roupa.
- Como quiseres - disse-lhe. - Mas, se queres ficar, podes
ficar. E se qualquer dia tiveres necessidade de dormir aqui -
acrescentei com esforço - podes vir.
Não disse palavra; começou a vestir-se. Levantei-me por
minha vez e vesti um penteador. Enquanto o enfiava senti uma
impressão de loucura, como se o quarto estivesse cheio de vozes
murmurando-me ao ouvido palavras intensas e contraditórias. E
talvez fosse esta impressão de loucura que me levou a fazer um
gesto sem saber porquê. Enquanto girava pelo quarto, fazendo
movimentos lentos com um sentimento de frenesim, vi-o
abaixar-se para atacar os sapatos. Então ajoelhei-me na sua
frente e disse-lhe:
- Deixa estar que eu faço isso!
Pareceu ficar admirado mas não protestou. Agarrei-lhe no pé
direito, coloquei-o no meu colo, fiz um nó duplo no atacador do
sapato direito e a mesma coisa no do esquerdo. Nem me
agradeceu, nem nada me disse; provavelmente éramos dois no
quarto a não compreender porque tinha eu feito aquilo. Enfiou o
casaco, tirou a carteira do bolso e fez menção de me dar dinheiro.
- Não, não! - disse com involuntário nervosismo na voz. -
Não, não... não me dês coisa alguma... não é preciso...
- Porque? O meu dinheiro não é igual ao dos outros? -
perguntou-me com uma voz onde se notava já ira.
Pareceu-me bizarro que não compreendesse a minha
repugnância por esse dinheiro, tirado talvez do bolso ainda quente
do morto. Mas talvez o compreendesse e quisesse
comprometer-me por uma espécie de cumplicidade, ao mesmo
tempo que punha à prova os meus verdadeiros sentimentos por
ele.
- Não é isso... - objectei -, eu... eu... mas eu não pensava em
dinheiro quando te chamei... Deixa estar...
Pareceu acalmar-se.
- Está bem! - disse. - Mais vais aceitar uma recordação.
Tirou do bolso um objecto que colocou sobre o mármore da
mesa-de-cabeceira.
Olhei o objecto sem lhe pegar e reconheci a caixa de pó de
arroz de ouro, roubada por mim alguns meses antes na casa da
patroa de Gino.
- Que é isto? - balbuciei.
- Foi o Gino quem ma deu... era o objecto que eu devia
vender... aquele indivíduo queria-o de graça... mas eu creio que
tem um certo valor: é de ouro.
Dominei-me e disse:
- Obrigada.
- De nada - respondeu.
Tinha vestido o impermeável e apertava o cinto.
- Então até qualquer dia! - disse-me da porta.
Passado um momento, ouvi ao fundo da antecâmara a porta
fechar-se.
Só, aproximei-me da mesa-de-cabeceira e peguei na
caixinha. Sentia-me embaraçada e tomou-me um sombrio
espanto. A caixa brilhava na minha mão, e o rubi redondo e
vermelho encaixado no fecho pareceu alargar-se na minha mão e
cobrir o ouro. Tinha na mão uma mancha de sangue redonda e
brilhante que pesava tanto como o objecto. Sacudi a cabeça; a
mancha desapareceu; tornei a ver a caixa de ouro com um fecho
de rubi. Então pousei-a sobre a mesa-de-cabeceira, estendi-me na
cama, com o corpo enrolado no penteador, apaguei a luz e reflecti.
Pensava que se me tivessem contado a história da caixa eu
teria rido como se ri de um caso extraordinário e quase
inacreditável. Era uma daquelas histórias que obrigam a
exclamar: “Ora vejam lá a coincidência!” e em seguida as boas
mulheres do tipo da minha mãe tiram daí indicações para o
número da lotaria: a morte é um número, o ouro outro; o gatuno,
outro. Mas desta vez fora comigo que a história acontecera; e
reparava com grande admiração na diferença que havia em estar
fora ou dentro das coisas. Com efeito, acontecera-me aquilo que
acontece a alguém que, tendo enterrado um grão, o encontra
muito tempo depois transformado em planta vigorosa, cheia de
folhas e coberta de botões prestes a abrir. Mas que semente, que
planta e que botões! Ia de uma coisa para a outra sem chegar ao
começo. Tinha-me entregue a Gino porque esperava que casasse
comigo, mas tinha-me enganado e eu por raiva furtara a caixa.
Depois revelara-lhe o roubo, ele assustara-se e, para evitar que
fosse acusado, tinha-lhe devolvido o objecto para que ele o
entregasse à patroa. Mas em vez de o restituir, guardara-o e,
julgando que o acusavam de roubo, tinha feito com que
prendessem a criada de quarto, a qual estava inocente, e na
prisão batiam-lhe! Entretanto Gino dera a caixa a Sonzogne para
que a vendesse e Sonzogne fora a casa do ourives para o efeito, e
este tinha irritado Sonzogne e Sonzogne, enfurecido, tinha-o
morto, e logo que o ourives morreu Sonzogne tornou-se um
assassino! Compreendia que não podia inculpar-me, mas ao
mesmo tempo pensava que a causa principal de todas estas
desgraças tinha sido o meu desejo de me casar e de constituir
família, mas ao mesmo tempo não conseguia eximir-me a um
sentimento de remorso e de consternação. Enfim, à força de
reflectir cheguei à conclusão de que no fim de contas a culpa de
tudo recaía inteira sobre as minhas pernas, o meu seio, as minhas
ancas, em resumo, na minha beleza, de que minha mãe tanto se
orgulhava, e que no fundo nada tinha de me acusar porque todas
as coisas vinham da natureza. Mas se nisso pensava, era por
irritação e desespero, como se pensa numa coisa absurda para
desculpar outras cem vezes mais absurdas. Sabia em consciência
que ninguém era culpado, que tudo era como tinha de ser, embora
tudo fosse insuportável, e que se realmente se pretendia que
houvesse alguma culpa ou alguma inocência, então todo o mundo
era ao mesmo tempo inocente e culpado.
Entretanto, lentamente a escuridão entrava em mim como a
água de uma inundação subindo do rés-do-chão aos andares
superiores de uma casa. A primeira coisa a ser submersa foi
seguramente a minha faculdade de julgamento. Até ao fim a
minha imaginação fascinada saciou-se do crime de Sonzogne, mas
isenta de toda a reprovação e de todo o horror, como de um acto
incompreensível, e por conseguinte, no seu gênero, estranhamente
atraente. Julguei ver Sonzogne caminhar pela Rua Palestro, as
mãos nos bolsos do impermeável, depois entrar na casa e esperar
de pé na pequena sala do ourives. Julguei ver o ourives entrar e
apertar a mão a Sonzogne. Estava atrás da secretária. Sonzogne
estendeu-lhe a caixa, que ele examinou com abanadelas de cabeça
destinadas a indicar o seu desprezo. Depois levantava a sua cara
de coelho e oferecia uma cifra irrisória. Sonzogne olhava-o
fixamente, com olhos já cheios de ira, e arrancava-lhe
violentamente o objecto das mãos. Depois acusava-o de ladrão e
usurário. O outro ameaçava-o de o denunciar e intimava-o a ir-se
embora. Depois voltava-se ou baixava-se como quem não quer
discutir mais. Sonzogne agarrava o pisa-papéis de bronze e
batia-lhe com ele na cabeça uma primeira vez. O outro tentava
fugir e então Sonzogne saltava de novo sobre ele é atingia-o com
novas pancadas até sentir que o tinha morto. Depois Sonzogne
atirava-o ao chão, abria as gavetas, apoderava-se do dinheiro e
fugia. Mas antes de sair, tinha eu lido no jornal, num novo acesso
de fúria, dera um pontapé na cara do morto estendido no chão.
Demorava-me apaixonadamente sobre todos os pormenores
do crime. Seguia Sonzogne como se acariciasse os seus gestos; era
a sua mão que estendia a caixa, que empunhava o pisa-papéis,
que feria o ourives; era o seu pé furioso que acabava por bater na
cara do morto. Nenhum horror entrava nesta representação, o
menor, como já disse, mas também qualquer aprovação.
Experimentava o mesmo deleite singular que me provocavam,
quando era pequena, os contos de minha mãe: está-se no quente,
encolhida contra sua mãe e a imaginação segue com embriaguez
maravilhada as aventuras das personagens do conto. Somente, o
meu conto era sombrio e sangrento, o herói era Sonzogne e o meu
encantamento misturava-se a uma impotente e melancólica
tristeza. Como se quisesse tirar o sentido do conto, recomeçava,
revia ainda as fases do crime, sentindo de novo um obscuro prazer
e encontrava-me de novo em face do mistério. Como um homem
que salta de um lado para o outro de um precipício mede mal o
salto e cai no vácuo, no decurso de uma destas lucubrações
adormeci.
Dormi talvez duas horas e acordei; ou, melhor, o meu corpo
começou a acordar enquanto o meu espírito, mergulhado numa
espécie de torpor, continuava adormecido. Foi com as mãos que
comecei a acordar; estendia-as nas trevas como as de um cego,
sem conseguir reconhecer o sítio onde estava. Adormecera
estendida sobre a cama e agora estava de pé, num lugar estreito,
entre muralhas verticais, herméticas e lisas. Veio-me
imediatamente à ideia uma cela de prisão; e ao mesmo tempo a
recordação da criada de quarto que Gino havia feito prender
injustamente. Eu era a criada de quarto e a minha alma padecia
toda a dor física da injustiça sofrida. Esta dor dava-me a sensação
física de não ser já eu, mas a criada de quarto; sentia que esta dor
me transformava, me fechava no corpo desta mulher, me impunha
a sua cara, me obrigava aos seus gestos. Levei as mãos à cara,
chorava, pensava que me tinham fechado injustamente numa cela
e que me era impossível sair de lá. Mas ao mesmo tempo sentia
que era ainda a Adriana a quem não tinham feito qualquer
injustiça e que não tinha sido aprisionada. E compreendi que me
bastaria um gesto para me libertar e deixar de ser a criada de
quarto. No entanto, não conseguia adivinhar qual seria esse gesto,
sofrendo e desejando desesperadamente sair da minha prisão de
angústia e de piedade. Depois, de repente, rodeada desta mesma
luz, feita de espasmos e de trevas, que nos deslumbra quando
recebemos uma pancada violenta, o nome de Astárito
resplandeceu no meu espírito. “Irei ter com Astárito e pedirei que
a liberte!”, pensava eu. Estendi de novo as mãos e descobri ao
mesmo tempo que as paredes da minha cela se tinham separado,
deixando uma estreita abertura vertical por onde eu podia
escapar-me. Dei alguns passos às escuras, os meus dedos
encontraram o interruptor. Acendi a luz com uma febre histérica.
O quarto iluminou-se. Estava ao pé da porta, nua, anelante, o
corpo e a cara molhados de suor frio e abundante. A cela na qual
me parecera estar encerrada não era senão o espaço
compreendido entre o armário, o canto do quarto e a cómoda:
espaço restrito que efectivamente as paredes e os dois móveis
quase fechavam. Durante o sono levantara-me, e tinha-me
encurralado ali.
Apaguei de novo a luz e voltei para a cama, medindo os
passos. Antes de tornar a adormecer pensei que não podia
ressuscitar o ourives, mas que podia salvar, ou pelo menos tentar
salvar, a criada de quarto: era a única coisa que contava. Devia-o
fazer, ainda mais porque acabava de descobrir que não era tão
boa como pensava. Pelo menos a minha bondade não excluía o
gosto pelo sangue, a admiração pela violência e a simpatia pelo
crime.
4
Na manhã seguinte vesti-me com cuidado, meti a caixa na
mala e saí para telefonar a Astárito. Sentia-me estranhamente
alegre. A angústia que a revelação de Sonzogne me inspirara na
noite anterior desaparecera completamente. Além disso observei
mais vezes no decorrer da minha vida que a vaidade é a pior
inimiga da caridade e da reprovação moral. Mais do que horror ou
medo, eu sentia agora um sentimento de vaidade ao pensar que
em toda a cidade eu era a única a saber como fora praticado o
crime e quem era o autor. “Eu sei quem matou o ourives”, dizia a
mim própria, e tinha a sensação de olhar os homens e as coisas
com olhos diferentes. Parecia-me que qualquer coisa mudara,
mesmo na minha fisionomia, e receava quase que se decifrasse
claramente o segredo de Sonzogne na expressão da minha cara.
Ao mesmo tempo experimentava um desejo doce, agradável,
irresistível, de contar a alguém o que sabia. Como se fosse
demasiada a água num vaso muito pequeno para a conter, o
segredo transbordava da minha alma e eu sentia a tentação de o
lançar para outra. Suponho que é o principal motivo pelo qual
tantos criminosos confiam às suas amantes ou às suas mulheres
os crimes que cometeram e estas os contam a algum amigo mais
íntimo e aquele a outro, até que a informação chega aos ouvidos
da polícia, provocando assim a perdição de todos. Mas penso
também que, quando confiam os seus actos infames, os
criminosos procuram descarregar uma parte de um peso que lhes
pareceu intolerável e fazem com que os outros também o
carreguem. Como se o crime fosse um fardo que eles pudessem
partilhar e repartir por vários ombros até o tornar sem
importância. Como se, pelo contrário, ele não fosse uma carga
inalienável, cujo peso não diminuiu por estar distribuído por
outras pessoas, mas que se multiplica por todos aqueles que
aceitam a sua carga!
Percorrendo as ruas para encontrar um telefone público,
comprei dois jornais e procurei, nas notícias da cidade.
informações sobre o crime da Rua Palestro. Mas muitos dias se
tinham passado: não vi senão algumas linhas que exprimiam a
decepção no seguinte título: “Nenhuma luz sobre o assassínio do
ourives.” Compreendi que, a menos que praticasse qualquer erro
grosseiro, Sonzogne podia estar certo de que nunca mais o
descobririam. O carácter ilícito das actividades da vítima tornava,
por si mesmo, muito difíceis as investigações policiais. O ourives,
como diziam os jornais, estava com frequência em contacto,
secretamente e por motivos inconfessáveis, com pessoas de todas
as classes sociais e de todas as condições; o assassino podia
muito bem ser alguém que nunca o tivesse visto antes e que o
matasse sem premeditação. Esta hipótese estava muito próxima
da verdade. Mas, precisamente porque era justa, deixava ver que a
polícia renunciara a descobrir o culpado.
Encontrei um telefone público num restaurante e marquei o
número de Astárito. Havia bem umas seis semanas que não lhe
telefonava; devo tê-lo apanhado desprevenido, porque não
reconheceu logo a minha voz e respondeu-me primeiro com o tom
expedito que empregava quando estava no seu gabinete. Durante
um instante tive a nítida impressão de que ele não queria mais
ouvir falar de mim e senti um baque no coração ao pensar na
criada de quarto na sua prisão, e na fatalidade que fizera com que
Astárito deixasse de amar-me no próprio momento em que a sua
intervenção era necessária para salvar esta desgraçada. No
entanto, o meu próprio susto agradou-me porque me deu de novo
o sentimento perdido da minha bondade e me fez compreender
que a libertação desta mulher era verdadeiramente importante
para mim, e que, não obstante as minhas relações com Sonzogne,
o assassino, continuava a doce e compassiva Adriana que sempre
fora.
Assustada, disse o meu nome a Astárito e ouvi com alívio a
sua voz mudar imediatamente de tom e tartamudear enquanto o
ritmo das suas palavras se acelerava.
Devo confessar que me senti invadir por uma onda de
afeição por ele, porque um amor assim (aliás sempre lisonjeiro
para uma mulher) dava-me segurança e enchia-me de gratidão.
Marquei-lhe encontro com uma voz acariciadora; prometeu vir
sem falta e saí do restaurante.
Durante toda aquela noite que passara com pesadelos tinha
chovido muito; várias vezes ouvira durante o sono o ruído da
chuva misturado com os assobios do vento, formando como uma
parede de mau tempo à roda da casa, aumentando a solidão e as
trevas nas quais eu me debatia. Mas de madrugada a chuva
cessara e os últimos sopros de vento tinham varrido as nuvens,
deixando o céu límpido e o ar imóvel e lavado. Depois de ter
telefonado a Astárito, comecei a andar ao longo de uma avenida de
plátanos, sob os primeiros raios de sol dessa manhã. Do meu
penoso e frequentemente interrompido sono não ficara mais que
um leve atordoamento que o ar frio me fez em breve passar. A
beleza do dia dava-me uma grande alegria, e todos os objectos
sobre os quais os meus olhos pousavam pareciam-me dotados de
uma sedução que encantava os meus olhos e me alegrava.
Gostava das gotas de orvalho em torno das pedras, agora secas.
Gostava dos troncos dos plátanos com as escamas sobrepostas da
sua casca; brancas, verdes, amarelas, castanhas, e aqui e ali
douradas; gostava das fachadas das casas onde as grandes
manchas molhadas conservavam ainda o traço da lavagem
nocturna; gostava dos transeuntes da manhã; homens que vão
apressados para o trabalho, criadas com o cesto no braço,
raparigas e rapazes acompanhados dos pais ou dos irmãos,
levando pastas e livros. Parei para dar esmola a um velho
mendigo, e quando procurava o dinheiro no meu porta-moedas, os
meus olhos pousaram ternamente sobre o seu velho capote militar
e começaram a sentir simpatia pelos bocados com que ele estava
remendado nos cotovelos e junto da gola. Eram bocados cinzentos,
castanhos, amarelos ou de um verde menos destacado do
conjunto; reparei no prazer que sentia ao observar a sua cor e a
maneira como eles estavam solidamente cosidos com linha preta,
com grandes pontos visíveis, e surpreendi-me a pensar no
trabalho que ele teria tido uma manhã para cortar com a tesoura
a parte usada, procurar um bocado em qualquer velho farrapo,
ajustá-lo sobre o buraco e cosê-lo com amor. Gostava desses
remeados como o esfomeado gosta de ver o pão saindo do forno;
afastando-me, não pude impedir-me de olhar para trás várias
vezes para os olhar. Então, de repente, pensei que devia ser bom
ter uma vida semelhante àquela tão límpida, tão agradável, tão
limpa. Uma vida que tivesse sido lavada de todos os seus aspectos
embaciados e permitir olhar tudo com amor, mesmo as coisas
mais humildes. Nesse momento senti de novo o desejo, há muito
adormecido e mudo, de uma vida normal, com um homem só,
numa casa nova, arrumada, clara e limpa. Apercebi-me de que o
meu trabalho não me agradava, se bem que, por uma singular
contradição, a minha natureza me levasse para ele. Pensava que
este não era um trabalho limpo, que nele havia sempre à minha
volta, sobre o meu corpo, sobre os meus dedos, na minha cama,
como que uma impressão de suor, de espuma, de calor impuro, de
humidade pegajosa que parecia persistir mesmo depois de me ter
lavado e de ter arrumado o quarto. Pensava também que esta
história de me despir e de me vestir durante quase todo o dia
debaixo dos olhares de homens sempre diferentes impedia-me de
considerar o meu corpo com o sentimento de prazer e de
intimidade que teria gostado e que me lembro de ter
experimentado, ainda rapariguinha, quando me via ao espelho ou
quando tomava banho. É uma bela coisa poder observar o nosso
próprio corpo como uma coisa nova e desconhecida que floresce,
toma vigor e se embeleza sozinha; ora eu para dar de cada vez esta
impressão de novidade aos meus amantes roubara-a a mim
própria para sempre.
A luz destas reflexões, o crime de Sonzogne, a perversidade
de Gino, a infelicidade da criada de quarto e todas as outras
intrigas nas quais me debatia apareciam-me como consequências
da irregularidade da minha vida. Consequências aliás privadas de
sentido e que não me davam qualquer impressão de falta nem
podiam ser suprimidas, a não ser que eu conseguisse satisfazer as
minhas velhas aspirações a uma vida normal. Tomou-me um
grande desejo de estar em regra em todos os sentidos. Em regra
com a moral, que não permitia um ofício como o meu, em regra
com a natureza, que impunha que na minha idade uma mulher
tivesse filhos, em regra com o gosto, que mandava que se vivesse
no meio de belos objectos, que se usasse lindos vestidos
frequentemente renovados, que se morasse em casas iluminadas,
limpas e cômodas. Somente estas coisas excluíam-se umas às
outras; se eu estivesse em regra com a moral, não podia estar em
regra com a natureza; e o gosto contradizia ao mesmo tempo a
moral e a natureza. A esta ideia experimentava o despeito que me
era habitual, tão velho como a minha vida, de me saber sempre
em dívida com a necessidade e na incapacidade de me satisfazer
somente pelo sacrifício das minhas melhores aspirações. Mas
apercebia-me também mais uma vez de que não tinha aceite
inteiramente a minha sorte; e isso dava-me confiança porque
pensava que logo que se proporcionasse ocasião de mudar de vida,
eu não seria apanhada desprevenida, mas aproveitaria a ocasião
com clarividência e decisão.
Marcara encontro com Astárito ao meio-dia, à saída da
repartição; tinha ainda algumas horas à minha frente: sem saber
o que fazer, decidi ir a casa de Gisela. Havia já algum tempo que
não a via; supus que qualquer outro ocupava na sua vida o antigo
lugar de Ricardo: meio noivo, meio amante. Gisela, também como
eu, esperava regularizar a sua situação; suponho que é uma
esperança que têm todas as mulheres da minha espécie. Mas eu
era levada a isso por uma inclinação nata, enquanto Gisela, que
dava uma grande importância à consideração, era sobretudo por
questão de decoro. Ela corava quando se pensava no que ela era,
eis tudo, se bem que ela tivesse sido levada a sê-lo por uma
vocação muito mais profunda que a minha. Eu, ao contrário, não
sentia o menor sentimento de vergonha, mas, em certos
momentos, uma impressão de servidão e de vida contra a
natureza.
Chegada a casa de Gisela, dispunha-me a subir a escada
quando a voz da porteira me obrigou a parar:
- Vai a casa da menina Gisela? Ela já cá não mora.
- Para onde foi ela?
- Rua Casablanca, 7.
A Rua Casablanca era uma rua nova situada num bairro
recente.
- Um senhor louro veio buscá-la de automóvel; levaram as
coisas e partiram.
Reparei imediatamente que se viera era justamente para
ouvir aquilo, que ela tinha partido com alguém. Não sei porquê
experimentei uma brusca impressão de cansaço; as pernas
vergaram-se-me e tive de me apoiar à ombreira da porta para não
cair. Mas reagi, e depois de reflectir decidi ir à nova casa de
Gisela. Tomei um táxi e disse ao motorista que me levasse à Rua
Casablanca.
Quanto mais o táxi avançava, tanto mais nos afastávamos
da cidade e das suas velhas casas, alinhadas nas ruas estreitas e
encostadas umas às outras. As ruas alargavam, bifurcavam,
confluíam para formar praças e tornavam-se mais e mais largas;
as casas eram novas, e entre duas construções entrevia-se de vez
em quando uma faixa verde que era o campo. Percebi que a minha
viagem tinha um sentido oculto, extremamente penoso, e
tornava-me cada vez mais triste. Lembrava-me de todos os
esforços feitos por Gisela para me roubar a inocência e me tornar
igual a ela; e sem o querer, da mesma maneira natural como uma
ferida sangra, assim também comecei a chorar.
Quando desci do táxi, tinha os olhos brilhantes e as faces
cheias de lágrimas.
- Não vale a pena chorar, menina - disse-me o chauffeur.
Limitei-me a abanar a cabeça e encaminhei-me para a porta
da casa de Gisela.
Esta casa era inteiramente branca, de estilo moderno, de
construção absolutamente recente como o demonstravam os
materiais ainda acumulados no pequeno jardim e as manchas de
cal que maculavam as grades. Entrei num hall branco
completamente nu; a escada era também branca, com janelas de
vidro fosco, deixando passar uma luz suave. O porteiro, um forte
rapaz ruivo, de fato-macaco, muito diferente dos velhos porteiros
sujos que estava habituada a ver, indicou-me o ascensor; premi o
botão e o elevador começou a subir. Exalava um agradável cheiro
a madeira nova e verniz. No ruído que fazia também se tinha a
impressão de se notar qualquer coisa de novo como o trabalhar de
um motor em rodagem. O elevador subiu até ao último andar: à
medida que subia, a luz aumentava como se não existisse tecto e
como se subisse direito para o céu.
Por fim parou, eu saí e encontrei-me rodeada de uma
claridade luminosa, num patamar de um branco ardente. em
frente de uma porta de madeira clara com puxadores de cobre
lavrados. Toquei: uma criadinha morena e magra veio abrir: tinha
uma figura gentil, uma touca de renda e um avental bordado.
- A menina Santis? - perguntei. - Diga-lhe que está aqui a
Adriana.
Deixou-me para ir ao fundo do corredor junto de uma porta
envidraçada com vidros baços como os da escada. O corredor era
também branco e nu como o resto da casa; julguei que o
apartamento devia ser pequeno, quatro casas, não mais. Estava
aquecido; o calor do irradiador reavivava o cheiro penetrante da
cal fresca e da pintura nova. A porta envidraçada abriu-se ao
fundo do corredor; a criadinha reapareceu e disse-me que podia
entrar.
Entrando, primeiro nada vi, porque através de um grande
vitral o sol de Inverno entrava em jorros deslumbrantes. Era o
último andar: através desse vitral só se via o céu azul,
resplandecente de sol. Por momentos esqueci a minha visita.
Fechando os olhos perante esse sol quente e dourado como um
velho vinho, senti uma impressão de bem-estar. Mas a voz de
Gisela fez-me estremecer. Estava sentada em frente do vitral e por
cima de uma mesinha semeada de frascos estendia os dedos a
uma mulher baixinha e grisalha: a manicura.
- Oh! Adriana! Senta-te um momento - disse-me Gisela com
falsa atenção, como lhe era habitual.
Sentei-me ao lado da porta e olhei à minha volta. A sala,
vista do lado da janela, era comprida e estreita. A bem dizer quase
não tinha móveis: uma mesa, um bufete, algumas cadeiras de
madeira clara; mas era tudo novo e sobretudo havia o sol. Este sol
tinha qualquer coisa de luxuoso. Há casas ricas - pensei eu - que
não possuem um sol como este. Fechei os olhos gulosamente com
doçura e por um momento em nada pensei. Depois senti qualquer
8coisa pesada e fofa cair sobre os meus joelhos; abri os olhos e vi
que era um gato enorme, de uma raça que eu nunca tinha visto,
com um pêlo extremamente comprido, fino como seda, de um
cinzento-azulado, com um focinho grande, mau e majestoso, que
não me agradou. O gato começou a ronronar, roçou-se por mim,
levantou a sua cauda emplumada e emitiu uns roncos miados.
Depois enroscou-se sobre os meus joelhos.
- Que lindo gato! - disse eu. - De que raça é?
- É um gato persa - respondeu com orgulho Gisela. É uma
raça muito apreciada. Estes gatos chegam a ser pagos por muito
dinheiro.
- Nunca tinha visto - disse eu acariciando o gato.
- Sabe quem tem um gato igual a este? - disse a manicura. -
A senhora Radaelli. Se visse como o amima! Mais que a um
cristão! No outro dia perfumou-o com o pulverizador... Então.
ponho mais uma camada de verniz nas unhas dos pés?
- Não, Marta, não vale a pena, por hoje chega - disse Gisela.
A manicura arrumou os seus instrumentos e os frasquinhos
numa maleta, cumprimentou-me e saiu da sala.
Uma vez sós, olhámo-nos. Gisela também me pareceu toda
de novo como a casa. Vestia um bonito tricot de angorá vermelho
com uma saia castanha que eu nunca lhe tinha visto. Tinha
engordado: debaixo da malha o seio sobressaía mais e as ancas
estavam mais amplas. Notei também que tinha as pálpebras um
pouco inchadas como as pessoas que comem bem, dormem muito
e não têm aborrecimentos.
As pálpebras assim davam-lhe um ar ligeiramente sonso.
8
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Olhou um instante para as suas unhas e perguntou-me, para
dizer qualquer coisa:
- Que dizes? Gostas da minha casa?
Eu não sou invejosa. Mas nesse momento, talvez pela
primeira vez na minha existência, senti a mordedura da inveja e
admirava-me que houvesse pessoas capazes de manter em toda a
sua vida um tal sentimento, por me parecer desagradável e
doloroso no mais alto grau. Sentia na cara uma espécie de esticão
como se tivesse emagrecido subitamente e esse esgar
impossibilitava-me de sorrir e de dizer algumas palavras gentis a
Gisela, como teria desejado. Experimentava por ela uma aversão
encarniçada. Teria querido dizer-lhe alguma frase desagradável:
feri-la, ofendê-la, humilhá-la, qualquer coisa que envenenasse a
sua alegria. “Que tenho eu? - pensava, confusa, sem deixar de
acariciar o gato. - Já não sou eu?” Felizmente que estes
sentimentos não duraram muito. Logo a bondade existente no
fundo da minha alma se revoltou e lutou contra esta súbita inveja.
Pensava que Gisela era minha amiga, que a sua sorte me devia ser
grata e que devia estar contente por ela.
Imaginei Gisela entrando pela primeira vez na sua casa nova
batendo as mãos de alegria: no mesmo instante o frio da inveja
desapareceu da minha cara e senti-me de novo aquecida pelo belo
sol da sala, mas de uma maneira mais íntima, como se o sol
tivesse entrado também na minha alma.
- Ainda o perguntas? - disse-lhe. - Uma casa tão bonita, tão
alegre? Como a arranjaste?
Tive a impressão de ter pronunciado estas palavras com
sinceridade e sorri; mais para mim própria, como por uma
recompensa, do que para Gisela. Respondeu-me em ar de
confidência e familiaridade:
- Lembras-te de João Carlos, daquele louro com o qual me
zanguei logo naquela noite? Pois bem! Algum tempo depois voltou
a procurar-me... era bem melhor do que me pareceu à primeira
vista... Depois tornámo-nos a encontrar várias vezes... E há
alguns dias disse-me: “Vem comigo, que quero fazer-te uma
surpresa...” Eu pensei que me quisesse dar um presente: uma
mala, um perfume... Em vez disso meteu-me no carro, trouxe-me
aqui, mandou-me entrar... A casa estava completamente vazia...
Pensei que fosse para ele. Perguntou-me se eu gostava, disse-lhe
que sim mas sem imaginar, claro... Então ele disse-me: “Aluguei
esta casa para ti!” Podes calcular a minha surpresa!
Sorria com ar digno e satisfeito, deitando um olhar à sua
volta. Impulsivamente levantei-me e fui beijá-la, dizendo:
- Fico bem contente! Bem contente! Podes crer que sinto
verdadeiro prazer com isso!
Este gesto acabou por dissipar no meu espírito todo o
sentimento hostil que ainda conservava. Encostei a cara à janela e
olhei para fora. A casa elevava-se sobre uma espécie de
promontório debaixo do qual se estendia uma paisagem imensa.
Era uma terra cultivada, percorrida por um riachozinho sinuoso,
semeada aqui e ali de matas, de quintas, de acidentes de terreno
pedregoso. Da cidade só se via, num canto do panorama, um
pequeno número de casas brancas, último prolongamento dos
arrabaldes. Uma fila de montanhas desenhava-se no horizonte
sobre o céu azul e luminoso. Voltei-me para Gisela e disse-lhe:
- Sabes que tens uma vista magnífica?
- Não é? - respondeu-me.
Foi ao bufete e tirou dois copinhos e uma garrafa de ventre
bojudo :
- Tomas um cálice de licor? - perguntou-me com ar
negligente.
Notava-se com clareza que todos os gestos de dona de casa a
enchiam de satisfação.
Sentámo-nos à mesa e bebemos o licor em silêncio. Sentia
que Gisela estava embaraçada. Fui ao encontro das suas ideias e
disse-lhe com doçura:
- Tu não te portaste bem comigo! Podias ao menos ter-me
dito!
- Não tive tempo - respondeu-me vivamente. - Com a
mudança, sabes... E depois tive que comprar tanta coisa: móveis,
roupa branca, louças... Nem tinha tempo para respirar... É que é
preciso tanta coisa para montar uma casa!
Falava beliscando os lábios como certas senhoras distintas
costumam fazer quando falam nestas coisas.
- Compreendo - disse eu sem sombra de maldade nem de
amargura, absolutamente como se se tratasse de uma coisa que
não me dissesse respeito. - Agora, que estás instalada e que as
tuas coisas caminham melhor, não te agrada ver-me... tens
vergonha de mim.
- Não tenho vergonha de ti - retorquiu com uma leve
irritação, mais motivada, pareceu-me, pelo meu tom razoável que
pelas minhas palavras. - Se pensas isso, és estúpida. Somente,
doravante não nos podemos ver como dantes... quero dizer, não
podemos sair juntas e fazer tudo o resto... Se ele viesse a saber,
estava arranjada!
- Está sossegada - disse-lhe com doçura. - Não me tornarás
a ver. Hoje vim unicamente para saber o que te tinha acontecido.
Fingiu não ouvir, confirmando assim as minhas suposições.
Houve um momento de silêncio. Depois perguntou-me com ar de
falsa solicitude:
- E tu?
Em seguida, com uma espontaneidade que me assustou,
pensei em Jaime. Respondi-lhe com voz embargada:
- Eu? Está tudo como de costume.
- E Astárito?
- Vejo-o às vezes.
- E Gino?
- Acabei com tudo.
A recordação de Gino apertou-me o coração. Mas Gisela
interpretou à sua maneira a expressão mortificada que o meu
rosto deixava transparecer; pensava talvez que eu estava
amargurada pela sua sorte e pela sua atitude desdenhosa. Disse
com uma delicadeza afectada:
- Ninguém me tira da cabeça que bastava tu quereres para
Astárito te pôr casa também.
- Mas eu não quero Astárito nem outro qualquer -
respondi-lhe tranquilamente.
Vi a sua cara desconcertada.
- Porquê? - perguntou-me. - Não gostavas de ter uma casa
como esta?
- A casa é bonita - respondi -, mas eu gosto mais da minha
liberdade.
- Eu sou livre - disse-me, irritada. - Mais livre do que tu...
tenho o dia todo para mim.
- Não é dessa liberdade que eu falo.
- Então de qual?
Compreendi que a magoara, mas porque não tinha mostrado
admiração suficiente pela casa, de que ela estava tão orgulhosa.
Expliquei-lhe, no entanto, que de maneira nenhuma desprezava a
situação dela, mas que não me queria ligar sem amor a qualquer
homem. e feri-a de novo, mais ainda desta vez. Preferi mudar de
conversa e disse-lhe :
- Mostra-me a casa... Quantos quartos tens?
- Que te importa a casa - disse-me com desapontamento
ingênuo -, se acabas de dizer que não gostarias de ter uma casa
como esta?
- Não foi isso que eu disse - respondi com calma. - A tua
casa é muito bonita. Gostaria até muito de ter uma assim!
Ela não respondeu. Baixou os olhos com ar mortificado:
- Então - disse eu molemente ao fim de uns instantes -, não
ma queres mostrar?
Levantou os olhos e vi com espanto que estavam cheios de
lágrimas.
- Não és a amiga que eu julgava ! - gritou-me. - Tu... tu...
estás cheia de inveja... Desprezas de propósito a minha casa para
me magoares.
Falava sem me olhar, com a cara cheia de lágrimas. Eram
lágrimas de despeito; a invejosa desta vez era ela; sofria de uma
inveja sem objectivo e corava sem o saber pelo meu amor
desesperado por Jaime e pelo desprendimento amargo que este
amor me dava. Mas, compreendendo-a tão bem, e porque a
compreendia, senti pena dela. Levantei-me, aproximei-me e
pousei-lhe a mão no ombro.
- Porque dizes isso? Não sou invejosa... Não são estas coisas
que eu invejo. Mas estou contente por te saber feliz. Então, vá,
mostra-me os outros quartos - disse-lhe beijando-a.
Assoou-se e pareceu-me desejar fazê-lo:
- São só quatro - disse-me -, e estão quase vazios.
- Mostra-mos.
Levantou-se, precedeu-me no corredor, abriu várias portas e
mostrou-me o quarto, onde havia só uma cama, um sofá aos pés
da cama, um quarto vazio onde ela tinha a intenção de pôr mais
uma outra cama para os convidados e o quarto da criada, que não
era mais que um cubículo. Mostrou-me estas três casas com uma
espécie de despeito, explicando-me com brevidade o seu respectivo
uso e sem tirar qualquer prazer disso. Mas a sua vaidade era mais
forte do que o seu mau humor quando me mostrou a casa de
banho e a cozinha, ambas revestidas de azulejos, com engenhos
eléctricos novos e torneiras cintilantes... Explicou-me a maneira
como funcionavam esses aparelhos, a sua superioridade sobre a
aparelhagem de gás, o seu asseio e o seu rendimento; e se bem
que o meu espírito andasse longe, fingi desta vez interessar-me
pelas suas explicações com exclamações de admiração e de
surpresa. Ficou tão contente com a minha atitude que me disse,
uma vez acabada a visita:
- Vamos lá dentro tomar outro cálice de licor.
- Não, não - respondi-lhe. - Tenho de me retirar.
- Porquê esta pressa? Espera um momento.
- Não posso.
Estávamos no corredor. Hesitou um momento, depois
declarou-me :
- Gostava que voltasses. Sabes o que podemos fazer? Ele vai
com frequência a Roma... Um destes dias mando dizer-te,
arranjamos dois dos teus amigos e passamos um bom bocado.
- Mas se ele sabe?
- E porque há-de saber?
- Está bem - disse eu. - Fica combinado.
Hesitei por minha vez, depois perguntei-lhe corajosamente :
- A propósito, diz-me uma coisa... e ele nunca te falou do
amigo que o acompanhava naquela noite?
- O estudante? Porque? Interessa-te?
- Não, é só para saber...
- Ainda ontem à noite o vimos.
Não consegui dissimular mais a minha perturbação.
- Ouve - disse-lhe com a voz mal segura -, se o vires diz-lhe
que venha ter comigo.. mas diz-lhe sem parecer ligar grande
importância ao assunto.
- Está bem - respondeu-me. - Eu digo-lhe.
Mas ela perscrutava-me com ar desconfiado e eu, sob o seu
olhar, perdi a segurança, porque me parecia que o meu amor por
Jaime estava escrito na minha cara em letras bem visíveis. Pelo
tom da sua resposta compreendi que não faria o que lhe pedira.
Desesperada, abri a porta, pedi licença e desci a escada com
rapidez sem olhar para trás. No segundo andar parei e apoiei-me à
parede olhando para cima. “Porque lhe disse isto? - pensava. -
Que se passou em mim?” Continuei a descer, de cabeça baixa.
Tinha marcado encontro com Astárito em minha casa.
Quando cheguei estava esgotada; já não estava habituada a sair
de manhã; todo este sol e todas estas idas e vindas me tinham
fatigado. Sentia-me triste; a minha visita a Gisela já a tinha
expiado quando chorara no táxi que me transportara à sua casa
nova. Foi minha mãe quem me abriu a porta, dizendo-me que
alguém me esperava há mais de uma hora no meu quarto. Fui
directamente para lá e sentei-me na beira da cama, sem me
importar com Astárito, que, de pé, em frente da janela, parecia
olhar para o pátio. Fiquei um momento imóvel, com a mão sobre o
coração, ofegante, tanto correra pelas escadas acima. Estava de
costas voltadas para Astárito e olhava com ar abstracto para a
porta do quarto: ele tinha-me dado os bons-dias, mas nem sequer
lhe respondera. Veio sentar-se ao pé de mim e, passando-me a
mão pela cintura, olhou-me fixamente.
No meio de todas as minhas preocupações esquecera a sua
louca sensualidade, sempre viva e aguçada. Achei-a intolerável.
- Então tu tens sempre desejo? - disse-lhe lentamente, num
tom desagradável e recuando.
Não respondeu, tomou-me a mão e levou-a aos lábios com
um olhar submisso.
- Tens sempre desejo? - repeti. - Mesmo a esta hora? Depois
de teres trabalhado toda a manhã? Em jejum? Antes do almoço?
Sabes que és extraordinário?
- Mas eu amo-te - disse-me. Vi os lábios tremerem-lhe e os
olhos franzirem-se-lhe.
- Mesmo assim... - disse-lhe. - Há uma hora para o amor e
uma hora para o resto. Marquei-te encontro justamente a esta
hora para que compreendesses que não era de amor que se
tratava... e tu, ao contrário... Não tens vergonha?
Olhava-me fixamente sem responder. Bruscamente tive a
impressão de o compreender demasiado bem. Ele amava-me e este
encontro esperava-o há não sei quantos meses. Enquanto eu me
debatia no meio de mil dificuldades, ele não tinha feito outra coisa
senão pensar nas minhas pernas, no meu seio, nas minhas ancas,
na minha boca!
- Então - disse-lhe mais branda -, se eu me despir...
Ele disse que sim com a cabeça. Deu-me vontade de rir, sem
maldade, mas não sem despeito.
- E a ideia de que me possa sentir triste ou simplesmente
longe de todas estas coisas nunca te passa pela cabeça? Que
posso ter fome, estar cansada... ou ainda ter outras
preocupações... Isso nunca te ocorre, não?
Olhava-me. De repente atirou-se sobre mim, abraçou-me
com força e aconchegou a cabeça na cavidade do meu ombro. Não
me beijava, contentava-se em apoiar a cara contra a minha carne
para sentir o seu calor. Respirava com força e de vez em quando
suspirava. Agora já não estava irritada com ele; os seus gestos
suscitavam-me pelo menos a compaixão e a consternação que me
eram habituais: já não estava triste. Quando achei que ele já tinha
suspirado bastante, repeli-o e disse-lhe:
- Preciso de falar contigo de uma coisa muito séria.
Olhou-me, segurou a minha mão e começou a acariciá-la.
Era persistente. Realmente para ele nada mais existia que o seu
desejo.
- Tu és da polícia, não és? - perguntei-lhe.
- Sou.
- Pois bem! Então manda-me prender e mete-me na prisão!
Disse-lhe isto em tom resoluto. Naquele momento desejava
realmente que ele o fizesse.
- Mas porquê? Que te aconteceu?
- Aconteceu que sou uma ladra! - disse-lhe com força. -
Acontece que roubei e que prenderam uma inocente por minha
causa... portanto é preciso que me prendam; irei para a prisão de
boa vontade. É isso que eu quero.
Não me pareceu admirado, mas apenas contrariado. Fez
uma careta e disse:
- Explica-te!
- Já acabei de te dizer... sou uma ladra!
Em poucas palavras contei-lhe o roubo e expliquei-lhe como
tinha sido presa a criada de quarto. Falei do estratagema de Gino,
mas sem o nomear; disse somente: “um criado”. Mas desejava
imenso falar-lhe de Sonzogne e do seu crime; fiz um esforço
enorme para me conter. Concluí:
- Agora escolhe: ou libertas esta mulher da prisão... ou vou
hoje mesmo entregar-me ao comissariado.
- Devagarinho!... - repetia levantando a mão. - Não há
urgência alguma. Essa mulher está na prisão, mas não foi
condenada. Esperemos.
- Não... não posso esperar. Ela está presa e parece que lhe
batem... não posso esperar... Agora és tu quem tem de decidir...
O meu tom fez-lhe compreender que estava a falar sério.
Levantou-se com uma expressão descontente e deu alguns passos
pelo quarto. Depois disse como se falasse consigo próprio :
- Ainda há a história dos dólares.
- Mas ela negou sempre... depois de lhos terem encontrado...
podemos dizer que era uma vingança de alguém que a detesta.
- E a caixa, tem-na?
- Está aqui! - disse-lhe tirando o objecto da mala e
dando-lho.
Ele recusou-se a aceitá-lo.
- Não, não - disse-me -, não é a mim que o tens de dar.
Hesitou um momento, depois acrescentou:
- Posso conseguir libertar essa pobre mulher, mas é preciso
que ao mesmo tempo a policia tenha a prova da sua inocência...
esta caixa precisamente.
- Pronto! Vai restituí-la à sua proprietária.
Teve um riso desagradável.
- Como se vê que nada percebes destas coisas! - disse-me. -
Se és tu quem me dá a caixa, sou moralmente obrigado a
mandar-te prender... Senão dirão: como é que Astárito tem o
objecto roubado, quem lho deu e como? Não, tens de arranjar
maneira de fazer chegar a caixa às mãos do comissário, mas sem
te descobrir.
- Posso mandá-la pelo correio?
- Não, pelo correio, não.
Deu ainda alguns passos pelo quarto e depois veio sentar-se
ao meu lado e disse-me:
- Vais fazer o seguinte... Conheces algum padre? Lembrei-me
do monge francês ao qual me confessara depois do passeio a
Viterbo.
- Sim - respondi-lhe -, o meu confessor.
- Confessas-te ainda?
- Confessava-me.
- Bem... vai procurar o teu confessor e conta-lhe o que
fizeste como acabas de mo fazer a mim... roga-lhe que devolva a
caixa ao comissariado... nenhum confessor pode recusar uma
coisa destas... ele não é obrigado a fornecer qualquer indicação
porque está ligado ao segredo da confissão. Um ou dois dias
depois, telefonarei e agirei... por fim a tua criada de quarto será
posta em liberdade.
Senti uma alegria tão grande que não me contive e deitei-lhe
os braços à roda do pescoço e beijei-o. Continuou já com a voz
trêmula de volúpia:
- Mas não deves tornar a fazer destas coisas. Quando
precisares de dinheiro, não tens mais que me pedir...
- Posso ir hoje mesmo procurar o confessor?
- Com certeza!
Tinha ficado com a caixa na mão. Fiquei muito tempo imóvel
com o olhar perdido. Sentia um grande alivio, como se fosse eu a
criada de quarto. Tinha realmente a impressão de ser ela ao
pensar no alivio que ela experimentaria, bem maior que o meu
quando a libertassem! Já não me sentia triste, nem cansada, nem
desgostosa. Entretanto, Astárito, introduzindo os dedos em volta
do meu pulso, procurava subir ao longo do braço por debaixo da
manga. Voltei-me e disse-lhe com doçura e com voz acariciadora :
- Ainda continuas a desejar-me?
Incapaz de falar, disse que sim com a cabeça.
- Não te sentes cansado? - continuei com voz terna e cruel. -
Não achas que é tarde, que seria melhor deixar para outro dia?
Vi-o fazer um gesto negativo com a cabeça.
- Amas-me assim tanto? - perguntei-lhe.
- Sabes bem que te amo - respondeu em voz baixa. Fez
menção de me beijar. Libertei-me e disse:
- Espera!
Acalmou-se logo porque compreendeu que eu tinha acedido.
Levantei-me, dirigi-me lentamente para a porta e dei volta à chave
na fechadura. Depois fui à janela, abri-a, corri as persianas e
fechei as portas. Ele seguia-me com os olhos enquanto eu girava
pelo quarto, com uma atitude cheia de complacência, de preguiça,
de majestade. Sentia o seu olhar sobre mim e compreendia até
que ponto a minha aceitação inesperada lhe era agradável. Logo
que puxei as persianas comecei a cantarolar em surdina com voz
íntima e alegre. Sempre cantarolando, abri o armário, tirei o
casaco e pendurei-o. Depois, sem cessar de cantar em voz baixa.
olhei-me no espelho. Tive a impressão de nunca ter estado tão
bonita, com os olhos brilhantes, doces e profundos, as narinas
frementes, a boca entreaberta sobre os meus dentes regulares e
brancos. Compreendi que era bela porque estava contente comigo
própria e porque me sentia boa. Cantei um pouco mais alto e
comecei a desabotoar o vestido de baixo para cima. Cantava uma
canção completamente idiota que estava muito em voga nessa
altura e dizia:
- Canto esta canção de que gosto tanto, que faz dlin dlon,
dlin dlon, dlin dlon!
Esta cançoneta pateta parecia-me a própria vida, absurda
sem dúvida, mas por vezes também doce e sedutora.
Bruscamente, quando já estava com o peito nu, alguém bateu à
porta.
- Mais logo - disse eu. - Agora não posso.
- É uma coisa urgente - respondeu a voz de minha mãe.
Desconfiei de qualquer coisa, abri a porta e espreitei.
Minha mãe fez-me sinal para sair e fechar a porta. Depois
sussurrou-me :
- Está uma pessoa na sala que quer falar-te por força.
- Quem é?
- Não sei. É um rapaz moreno.
Abri devagarinho a porta da sala e olhei. Vi um homem
virado de costas para mim, encostado à mesa. Depois recomendei
a minha mãe:
- Diz-lhe que venho já... Não o deixes sair da sala.
Ela disse-me que ficasse descansada que o faria e tornei a
entrar no quarto.
Astárito estava ainda sentado na cama como eu o tinha
deixado :
- Depressa, depressa! Tenho pena, mas preciso de que te vás
embora!
Perturbou-se e começou a balbuciar quaisquer protestos.
Não o deixei acabar e continuei:
- A minha tia adoeceu de repente no meio da rua e eu e
minha mãe temos de ir já ao hospital... Depressa, depressa!
Era uma mentira bastante grosseira, mas naquele momento
foi a única que me ocorreu. Olhava-me aparvalhado, como se não
acreditasse na sua pouca sorte. Reparei que tinha tirado os
sapatos e que tinha umas meias listadas.
- Então! Porque me olhas assim? Tens de te retirar! - insistia
eu, desesperada.
- Está bem, vou-me embora.
Baixou-se para calçar os sapatos. De pé, na sua frente,
estendia-lhe já o casaco. Compreendi que teria de lhe fazer
alguma promessa se quisesse que interviesse a favor da criada de
quarto.
- Ouve - acrescentei, ajudando-o a vestir o sobretudo -, estou
realmente vexada... mas volta amanhã à noite... depois do jantar...
podemos estar juntos com tranquilidade... agora teria que te
deixar logo em seguida... assim é melhor.
Ele não respondeu e eu acompanhei-o até à porta,
conduzindo-o pela mão, como se fosse a primeira vez que ele
tivesse vindo a minha casa, tal era o medo de que ele entrasse na
sala onde Jaime me esperava.
- Ouve - disse-lhe. - Olha que vou hoje mesmo falar ao
confessor.
Respondeu que sim com a cabeça para dizer que era
conveniente. Tinha uma expressão ofendida e gelada. Na minha
Impaciência, nem esperei que ele se despedisse e fechei-lhe a
porta.
5
Enquanto me aproximava da porta da sala grande e punha a
mão no puxador, compreendi de repente que, a menos que
sucedesse um milagre, eu arriscava-me a criar entre mim e Jaime
as lamentáveis relações que existiam entre mim e Astárito. E
apercebi-me de que o sentimento de timidez, de receio e de cego
desejo que eu inspirava a Astárito era o mesmo que eu sentia por
Jaime.
Compreendendo perfeitamente que se quisesse ser amada
me devia portar de uma maneira diferente, sentia-me
invencivelmente impulsionada pelo desejo de me colocar perante a
sua pessoa numa posição de dependência, de ansiedade, de
sujeição. Quais poderiam ser os motivos da minha posição de
inferioridade não saberia dizer: se os tivesse conhecido, esta
posição deixaria de existir. O meu instinto advertia-me apenas de
que éramos feitos de maneira diferente e que eu era mais
resistente do que Astárito, mas mais frágil que Jaime: que da
mesma maneira que qualquer coisa me impedia de amar Astárito,
alguma coisa também havia que impedia Jaime de me amar; que
da mesma forma como o amor de Astárito por mim, o meu amor
por Jaime nascera sob mau signo e acabaria ainda pior. O coração
saltava-me do peito e tinha a respiração entrecortada antes de o
ver e de lhe falar. Estava cheia de medo de dar um passo em falso,
de lhe fazer notar a minha ansiedade e o desejo que tinha de lhe
agradar e ao mesmo tempo o receio de o perder para sempre.
esta seguramente a pior maldição do amor; nunca é
suficientemente retribuído: quando se ama não se é amado e
quando nos amam não correspondemos. Nunca acontece dois
amantes terem a mesma força de desejo e de sentimento, se bem
que este seja o ideal para o qual todos os homens tendem, cada
um por sua conta. Sabia com certeza que desde o momento em
que me apaixonasse por Jaime ele não estaria apaixonado por
mim. E sabia também, sem querer confessá-lo a mim própria, que,
por mais que fizesse, nunca conseguiria que ele me tivesse amor.
Tudo isto me passou pelo espírito enquanto esperava.
mortalmente perturbada, atrás da porta da sala grande. Sentia-me
completamente aturdida, pronta a cometer as maiores tolices, e
isso irritava-me o mais possível. Acabei por me encher de coragem
e entrei.
Estava ainda na posição em que o vira quando espreitara
pela porta entreaberta, apoiado à mesa, de costas para a porta.
Ouvindo-me entrar, voltou-se, olhou-me com ar hesitante, atento
e crítico e disse-me:
- Passei por tua casa e lembrei-me de te fazer uma visita...
achas que fiz mal?
Reparei que falava devagar, como se quisesse observar-me
antes de pronunciar as palavras, e eu tremia à ideia de que talvez
lhe parecesse menos sedutora que a recordação que o levara a
procurar-me depois de tanto tempo. Encorajou-me a lembrança de
que pouco antes, quando me olhara ao espelho, me achara bela.
Respondi-lhe ansiosa:
- De maneira nenhuma. Fizeste muito bem... ia sair para
almoçar... Vamos almoçar juntos!
- Mas tu reconheces-me? - perguntou-me, talvez com ironia.
- Sabes quem eu sou?
- Se te reconheço! - disse eu, brincalhona.
E antes que a minha vontade dominasse os meus gestos, já
lhe tinha pegado na mão e levado aos lábios, olhando-o com amor.
Ele perdeu um pouco a serenidade e isso deu-me prazer.
- Porque nunca mais deste sinal de vida, grande maroto! -
disse-lhe com voz terna.
Abanou a cabeça e respondeu:
- Tenho tido muito que fazer.
Eu perdera completamente a cabeça. Dos lábios levei a mão
ao coração, abaixo do seio, e disse-lhe:
- Sente como o meu coração bate!
Mas ao mesmo tempo chamava-me idiota, porque pensei que
não deveria fazer nem dizer aquilo.
Fez uma careta um pouco aborrecida; então, assustada.
acrescentei depressa:
- Vou vestir o casaco. Volto já. Espera.
Sentia-me tão transtornada e tinha tanto medo de o perder
que, uma vez no vestíbulo, fechei rapidamente à chave a porta da
escada e tirei-a da fechadura. Se ele quisesse aproveitar o
momento em que eu me vestia para se safar não lhe seria possível.
Em seguida entrei no quarto e, diante do espelho, tirei o resto da
pintura da boca e dos olhos com um canto do lenço. Depois tornei
a pôr bâton, mas muito levemente. Fui ao bengaleiro buscar o
casaco, não o encontrei e senti-me completamente perdida; depois
lembrei-me de que o tinha pendurado no armário, tirei-o e vesti-o.
Olhei-me no espelho e pareceu-me que o penteado que tinha
chamava demasiado a atenção. Rapidamente, com algumas
penteadelas, arranjei o cabelo como o usava na época em que era
a noiva de Gino. Mas enquanto me penteava jurei solenemente
que de futuro dominaria a minha paixão e não teria nem gestos
nem palavras irreflectidos. Por fim estava pronta. Passei pelo
vestíbulo e cheguei à porta da sala grande para chamar Jaime.
Mas quando saímos, a porta da escada que eu tinha
esquecido que fechara à chave revelou o meu subterfúgio.
- Tinhas medo que eu saísse! - murmurou enquanto eu,
confusa, procurava a chave na mala.
Ele agarrou a chave e foi ele próprio quem abriu a porta,
olhando-me com um abanar de cabeça que parecia reprimir uma
afectuosa severidade. O meu coração encheu-se de alegria e corri
atrás dele na escada, segurei-lhe o braço e perguntei-lhe
esbaforida:
- Não ficaste contrariado, pois não?
Não respondeu.
Na rua começamos a caminhar ao sol, de braço dado, ao
longo das portas e das lojas. Estava tão feliz de andar ao seu lado
que esqueci completamente os meus juramentos, e quando
passamos em frente do pequeno pavilhão do torreão foi como se
alguém pegasse na minha mão e a forçasse a apertar a sua.
Apercebi-me de que me inclinava para a frente para o olhar
melhor e lhe dizia:
- Sabes que estou bem contente de te ver?
Fez a sua careta habitual de embaraço e respondeu-me:
- Também estou contente - mas num tom que não condizia
com as suas palavras.
Mordi os lábios até fazer sangue e desentrelacei os meus
dedos dos seus. Não pareceu dar por isso; olhava à sua volta com
ar distraído. A porta das muralhas parou e pronunciou numa voz
reticente:
- Ouve, devo dizer-te uma coisa.
- Diz!
- Foi realmente por acaso que vim ver-te... e também por
acaso não tenho nem um soldo no bolso. Por isso é melhor que
nos separemos.
E dizendo isto estendia-me a mão. Comecei por experimentar
um grande pavor: “Ele deixa-me”, pensava e, no meu desespero,
não via outra solução senão agarrar-me ao seu pescoço chorando
e suplicando. Mas o meu segundo movimento fez-me encontrar,
no próprio pretexto que ele encontrara antes para me abandonar,
uma solução fácil e mudei de sentimento. Pensei que podia pagar
a refeição, e a ideia de lhe pagar da mesma maneira que toda a
gente me pagava a mim seduziu-me. Já tenho falado no prazer
sensual que sentia de cada vez que recebia dinheiro dos homens.
Descobrira agora que havia em pagar-lhe um prazer também forte,
e que a mistura do amor e do dinheiro - seja o dinheiro dado ou
recebido - não era somente uma questão de proveito.
Impetuosamente gritei-lhe:
- Mas não penses nisso! Serei eu quem pagará! Olha: tenho
dinheiro.
Abri a mala e mostrei-lhe algumas notas que metera lá na
véspera à noite.
Ele disse com uma espécie de decepção:
- Mas isso não se faz!
- Que importância tem isso? Tu voltaste: é justo que festeje o
teu regresso!
- Não, não, não quero!
De novo fez menção de estender a mão e de se ir embora.
Mas desta vez agarrei-o pelo braço declarando-lhe:
- Vá! Depressa! Não falemos mais nisso!
E dirigi-me para o restaurante. Sentámo-nos à mesma mesa
que da primeira vez. Tudo estava como então, à parte um raio de
sol invernal que penetrava pelos vidros da porta, iluminando as
mesas e a parede. O dono da casa trouxe-nos a lista e eu dei as
ordens num tom seguro e protector, parecido com aquele que
empregavam comigo os meus amantes. Enquanto encomendava o
almoço, ele conservou-se em silêncio, de olhos baixos.
Esquecera-me de pedir vinho porque não bebia; mas lembrei-me
de que na primeira vez ele bebera; tornei a chamar o homem e
encomendei-lhe um litro.
Logo que ele se afastou, abri a mala, tirei uma nota, dobrei-a
em quatro, olhei à minha volta e estendi-a por debaixo da mesa ao
meu companheiro.
Olhou-me com ar interrogativo.
- É o dinheiro - disse-lhe em voz baixa. - Assim, quando
quiseres, podes pagar.
- Ah! O dinheiro - disse lentamente.
Apanhou a nota, desdobrou-a em cima da mesa, olhou-a,
depois tornou a dobrá-la, abriu a minha mala e tornou a metê-la
lá com uma seriedade ligeiramente irônica.
- Queres que seja eu a pagar? - perguntei, desconcertada.
- Não - respondeu tranquilamente. - Eu pagarei.
- Mas então porque me disseste que não tinhas dinheiro?
Hesitou, depois respondeu com uma sinceridade cheia de
amargura:
- Não foi por acaso que te procurei. Para te dizer a verdade.
há um mês que penso em vir. Mas quando me encontrei diante de
ti desejei tornar a ir-me embora. Então lembrei-me de te dizer que
não tinha dinheiro: esperava que tu me mandasses para o
diabo. Sorriu e passou a mão pelo queixo:
- Enganei-me, ao que parece - acrescentou.
Fora então uma espécie de experiência que ele fizera comigo.
Mas não me desejava. Ou, para ser mais exacta, a atracção que
sentia por mim era combatida por uma aversão igualmente forte.
De futuro reconheceria nesta faculdade de mentir e de representar
um papel para fazer uma experiência uma das suas
características principais. Naquele momento sentia-me deveras
perturbada e perguntava a mim própria se me devia lamentar ou
felicitar pela sua astúcia e pela sua desfeita.
- Porque te querias ir embora? - perguntei-lhe
maquinalmente.
- Porque compreendi que não experimentava qualquer
sentimento por ti... ou, mais exactamente, um desejo como aquele
que o meu amigo sente pela tua camarada.
- Sabes que eles vivem juntos? - disse-lhe.
- Sim - respondeu-me com ar de desprezo. - São feitos um
para o outro.
- Nada sentes por mim - repeti -, e vieste? No meu amor
decepcionado (decepção que eu, de resto, previra) tinha prazer em
lhe fazer notar a sua inconsequência.
- Parece-me - respondeu - que eu sou o que vulgarmente se
chama um carácter fraco.
- Vieste e isso basta-me - disse-lhe cruelmente.
Alonguei a mão por debaixo da mesa e pousei-lha sobre os
joelhos, olhando-o. A este contacto vi-o perturbar-se e notei que o
queixo lhe tremia. Senti prazer em vê-lo tremer; compreendi que,
apesar de me desejar tanto como acabara de me dizer quando me
confessara ter pensado durante um mês em me vir ver, havia uma
parte dele próprio que me era hostil e que era contra essa parte
que eu deveria dirigir os meus esforços a fim de a humilhar e
destruir. Lembrei-me do seu olhar passando como um fio sobre as
minhas costas nuas na primeira vez em que estivemos juntos;
fizera mal em me deixar gelar por aquele olhar, que se eu tivesse
persistido nos meus esforços para o seduzir, esse olhar se teria
extinto da mesma maneira que neste momento a dignidade
convulsa da sua cara caíra e se evaporara. Inclinada sobre a mesa
como se lhe quisesse falar em voz baixa, acariciava-o e espiava
com o olhar - um olhar que eu sentia alegre e satisfeito - o efeito
da minha carícia sobre o seu rosto. Olhava-me com o ar
interrogativo e magoado dos seus grandes olhos brilhantes com
longos cílios de mulher. Acabou por me dizer:
- Se te chega agradares-me desta maneira, podes continuar.
Endireitei-me imediatamente. Quase no mesmo instante o
patrão trouxe a comida. Começamos os dois a comer, sem apetite.
- No teu lugar procuraria obrigar-me a beber - disse-me.
- Porque?
- Porque quando estou embriagado faço com mais facilidade
aquilo que os outros querem.
A frase que tinha já pronunciado: “Se te chega agradares-me
desta maneira, podes continuar!” tinha-me magoado. O que ele
dizia a respeito do vinho convenceu-me da inutilidade dos meus
esforços. Desesperada, respondi-lhe:
- Quero que faças só aquilo que te apetecer. Se te queres ir
embora, não tens mais que ir... a porta está ali.
- Para me ir embora - disse ele num tom brincalhão - era
preciso que tivesse a certeza de o desejar!
- Queres que seja eu a ir-me embora?
Olhamo-nos. A minha dor dava-me a segurança da minha
resolução. Esta atitude pareceu perturbá-lo tanto como as carícias
que lhe fizera primeiro:
- Não - disse-me com esforço. - Fica.
Recomeçamos a comer em silêncio. Depois vi-o encher um
grande copo de vinho e esvaziá-lo de um trago.
- Vês? Estou a beber - disse-me.
- Vejo.
- Daqui a pouco estou bêbado. Então já serei bem capaz de
te fazer uma declaração!
Estas palavras trespassaram-me o coração. Tive a impressão
de que já não podia continuar a sofrer desta maneira.
- Ouve - disse-lhe humildemente. - Não me atormentes mais!
- Atormento-te?
- Sim, metes-me a ridículo. Mas eu não te peço outra coisa
senão que não te preocupes mais comigo. Apaixonei-me por ti...
acabará por passar... Mas por enquanto deixa-me tranquila.
Não respondeu e bebeu o segundo copo de vinho. Temi tê-lo
ferido e perguntei-lhe:
- Que queres? Estás zangado comigo?
- Eu? Pelo contrário.
- Se te agradar troçar de mim, podes fazê-lo; dizia aquilo só
por dizer.
- Mas eu não faço troça de ti.
- E se te dá prazer dizeres-me maldades - insistia eu, tomada
de não sei que desejo de me mostrar submissa com ele, sem
manobras nem cálculos -, podes dizê-las... não te amarei menos
por isso; amar-te-ei ainda mais! Se me batesses, beijaria a mão
com a qual me tivesses batido.
Olhava-me com atenção e parecia extraordinariamente
embaraçado. Era evidente que a minha paixão o desconcertava.
Acabou por dizer:
- Vamos embora?
- Para onde?
- Para tua casa.
Estava tão desesperada que tinha quase esquecido o motivo
do meu desespero. A um convite tão inesperado, quando ainda
nem sequer tínhamos comido o primeiro prato e metade do vinho
ainda estava no jarro, senti mais estupefacção que prazer.
Pensava que não era o amor mas o embaraço que o levava a
interromper o almoço e disse-lhe:
- Estás sobre brasas para me deixar, não é?
- Como percebeste? - perguntou-me.
Esta resposta, demasiado cruel para ser verdade,
encorajou-me, respondi-lhe baixando os olhos:
- Sabes... há coisas que se compreendem logo! Não, vamos
acabar de comer; depois vamo-nos embora!
- Como quiseres... mas vou embebedar-me.
- Embebeda-te... Nada tenho com isso!
- Mas vou embebedar-me até me fazer mal... e então em vez
de um amante para amar, tens um doente para tratar.
Tive a ingenuidade de lhe mostrar o meu receio. Estendi a
mão para o jarro e disse-lhe:
- Não bebas mais.
Desatou a rir e disse:
- Caíste no laço!
- Qual laço?
- Não te aflijas, que eu não adoeço assim com essa
facilidade!
- Só o fazia por ti - disse-lhe, humilhada.
- Por mim? Oh! Oh!
Continuou a arreliar-me. Mas conservava nas suas
alfinetadas a gentileza que lhe era natural, se bem que isso não
me contrariasse muito.
- Mas tu, também, porque não bebes? - perguntou.
- Não gosto. Além disso, a mim basta-me um copo para me
embriagar.
- Que mal pode fazer-te? Ficaremos os dois alegres.
- É feio uma mulher embriagada; não quero que me vejas
assim!
- Porquê? Que tem isso de feio?
- Não sei. É feio ver uma mulher cambalear, dizer disparates,
fazer gestos inconvenientes... É triste. Eu sei que sou uma
desgraçada e sei que tu também pensas o mesmo de mim, que sou
uma desgraçada. Mas se bebesse e tu me visses embriagada,
nunca mais me poderias ver.
- E se te ordenasse que bebesses?
- Queres por força aviltar-me! - disse, reflectindo. - A única
coisa boa que tenho é não ser ignóbil... Queres realmente que eu
perca até mesmo esta qualidade?
- Quero! - disse-me com ênfase.
- Não percebo em que te pode isso dar prazer! Mas se o
desejas muito, está bem, serve-me vinho! - disse-lhe.
E estendi o copo.
Olhou o copo e, depois de me olhar também, desatou a rir
outra vez:
- Estava a brincar - disse.
- Nunca deixas de brincar!
- Então tu não és ignóbil - repetiu passado um momento em
que me olhara em silêncio.
- É o que dizem, pelo menos.
- Julgas que eu também o penso?
- Como hei-de eu saber o que pensas?!
- Vejamos... que julgas tu que penso de ti e sinto por ti?
- Não sei - disse eu lentamente cheia de pavor. - Certamente
que não me amas como eu te amo. Talvez eu te agrade como uma
mulher pode agradar a um homem quando não é de todo feia.
- Ah! Então achas que não és de todo feia?
- Disso tenho a certeza - disse com orgulho. - Sei mesmo que
sou muito bonita. Mas de que me serve a beleza?
- A beleza para nada serve.
Entretanto, tínhamos acabado de comer e esvaziáramos
quase dois jarros de vinho.
- Como vês - disse-me -, bebi e não estou bêbado. Mas os
seus olhos brilhantes e a agitação das mãos contradiziam as suas
palavras. Olhava-o talvez com um ar esperançado.
- Queres voltar para casa? - disse-me. - É Vênus toda inteira
agarrada à sua presa.
- Que estás a dizer?
- Nada. São uns versos franceses. Hep! Chefe! Era sempre
um pouco enfático, mas de uma maneira cômica. E foi de uma
maneira cômica que interpelou o patrão e lhe meteu o dinheiro
debaixo do nariz, juntando-lhe uma gorjeta excessiva e
declarando:
- Este dinheiro é para si!
Em seguida bebeu o resto do vinho e veio ter comigo. Já na
rua, sentia uma grande pressa de chegar a casa.
Sabia que era de má vontade que ele voltava comigo; sabia
que me desprezava e detestava o sentimento que o impelia para
mim sem que o pudesse impedir. Mas eu tinha a maior confiança
na minha beleza e no meu amor por ele e estava impaciente por
afrontar a sua hostilidade com essas armas; sentia de novo uma
vontade agressiva e alegre, e que o meu amor seria mais forte do
que a sua aversão, que ao calor da minha chama o seu metal duro
acabaria por se fundir e ele amar-me-ia por sua vez.
Caminhando a seu lado na grande avenida deserta às
primeiras horas da tarde, disse-lhe:
- Vais prometer-me que, uma vez em minha casa, não
procurarás ir-te embora.
- Prometo.
- Vais prometer-me ainda outra coisa.
- Qual?
Hesitei, depois disse:
- Da outra vez tudo se teria passado bem se não te tivesses
posto, a certa altura, a olhar para mim de uma maneira que me
envergonhou. Tens de me prometer que não tornas a olhar-me
daquela maneira.
- De que maneira?
- Não sei... de uma maneira maldosa.
- Não se comanda o olhar - disse-me. - Se quiseres, nem te
olharei, fecharei os olhos. Está bem?
- Não, não está! - insisti com obstinação.
- Mas de que maneira queres que olhe para ti?
- Como eu te olho - respondi-lhe.
Sem parar, segurei-lhe o queixo e mostrei-lhe a maneira
como me devia olhar.
- Assim, com doçura.
- Ah! Ah! Com doçura!
Quando chegamos à minha escada suja e lúgubre, não pude
impedir-me de me lembrar da casa de Gisela, branca, asseada e
límpida. E disse como se falasse comigo:
- Se eu não morasse numa casa suja, se não fosse a
desgraçada que sou, com certeza te agradaria mais!
Parou de repente, segurou-me pela cintura com as duas
mãos e disse-me num tom sincero:
- Se pensas isso, podes estar certa de que te enganas.
Pareceu-me ver nos seus olhos qualquer coisa muito parecida com
afecto. Ao mesmo,tempo curvou-se sobre mim e procurou-me a
boca. O seu hálito cheirava muito a vinho. Nunca pude suportar o
cheiro do vinho, mas neste momento, na sua boca, parecia-me
agradável e puro, quase comovente, como o seria na boca de uma
criança inexperiente. Compreendi que as minhas palavras tinham,
sem que o tivesse procurado, tocado o seu ponto sensível.
Pareceu-me, como já disse, ter feito nascer nesse momento na sua
alma a centelha da afeição. Em seguida percebi que ele agia mais
por ponto de honra e que, ao beijar-me, não obedecia tanto a um
gesto de amor, que não sentia, como, à sua maneira, a uma
espécie de chantagem moral. Mais tarde estimulei-o da mesma
maneira mais vezes, acusando-o de me desprezar pela minha
pobreza e pela minha profissão. Obtive sempre o mesmo resultado
favorável aos meus desejos, ao mesmo tempo que completava o
meu conhecimento da sua pessoa - um conhecimento
singularmente humilhante e falaz. Mas nesse dia não o conhecia
ainda como depois. E esse beijo deu-me uma grande alegria, como
se fosse uma vitória definitiva. Satisfeita com o gesto,
contentei-me em aflorar os seus lábios, pegar-lhe na mão e
dizer-lhe:
- Vamos. Vamos para cima! Corre! - e puxava-o, fazendo-o
galgar alegremente até ao último andar. Ele deixava-se levar sem
pronunciar palavra.
Cheguei ao meu quarto quase a correr, arremessando-o
como a um boneco contra a parede do vestíbulo. Entrei
violentamente, e assim que cheguei junto da cama atirei-o para lá.
Só então percebi que ele não estava apenas bêbado, mas, como
me prevenira, parecia sentir-se mal. Estava extremamente pálido,
passava a mão pela testa como se estivesse tonto e tinha nos
olhos um brilho vacilante e perturbado. Vi tudo isso apenas com
um olhar e fiquei logo com medo de que desmaiasse, e que do
nosso segundo encontro nada resultasse outra vez. Por um
instante, ao andar de um lado para o outro para me despir, senti
um vivo remorso, como que um desespero, por não o ter impedido
de beber. Mas note-se que nem sequer me passou pela ideia
renunciar a este amor tão desejado. Só tinha uma esperança: que
não se sentisse mal a ponto de não me poder amar, ou que, se a
indisposição fosse verdadeiramente forte, os seus efeitos se
fizessem sentir depois, e não antes, de ter satisfeito o meu desejo.
Estava realmente apaixonada por ele; mas tinha tanto medo de o
perder que o meu amor não ultrapassava os limites do meu
egoísmo.
Portanto, fingi não notar a sua embriaguez, e depois de
despida sentei-me na cama a seu lado. Tinha ainda o sobretudo
vestido como quando tinha entrado. Ajudei a despi-lo. Enquanto o
fazia, ia-lhe falando para o distrair e impedir de pensar em se ir
embora.
- Ainda não me disseste quantos anos tens - disse-lhe
tirando-lhe o sobretudo pelas mangas, enquanto ele levantava
docilmente o braço para me auxiliar nos meus esforços.
Respondeu passado um momento:
- Tenho dezanove anos.
- Tens menos dois do que eu.
- Tu tens vinte e um?
- Quase vinte e dois.
Os meus dedos procuravam desmanchar-lhe o nó da
gravata. Lentamente ele afastou-me e desfez o nó. Depois deixou
cair os braços e tirei-lhe a gravata.
- Está velha a tua gravata - disse-lhe. - Hei-de comprar-te
uma. De que cor queres?
Ele riu. Gostava de o ver rir, porque tinha um riso amável e
gentil.
- Tu queres por força sustentar-me! - disse. - Primeiro
querias pagar-me o almoço e agora queres comprar-me uma
gravata?
- Que disparate! - disse-lhe com ternura. - Que mal te pode
isso fazer? Eu tenho gosto em oferecer-te uma gravata: isso não
pode contrariar-te!
Enquanto me ouvia, tirara o casaco e o colete e estava
sentado na beira da cama em mangas de camisa.
- Nota-se que tenho dezanove anos? - perguntou-me.
Agradava-lhe sempre falar dele; depressa o descobri.
- Sim e não - disse hesitando, vendo que isso o lisonjeava. -
Vê-se sobretudo pelos cabelos - acrescentei acariciando-lhe a
cabeça. - Um homem tem o cabelo menos forte. Na cara não.
- Que idade me darias?
- Vinte e cinco.
Calou-se e fechou os olhos como se fosse vencido pela
embriaguez. De novo tive medo que se sentisse mal e apressei-me
a ajudá-lo a tirar a camisa, acrescentando:
- Fala-me mais de ti. És estudante?
- Sou.
- Em que curso estás?
- Direito.
- Vives com a tua família?
- Não, a minha família mora na província, em S...
- Estás numa pensão?
- Não, tenho um quarto mobilado - respondeu-me
mecanicamente de olhos fechados. - Na Rua Cola di Rienzo, 20,
apartamento 8, em casa da viúva Medolaghi, Amélia Medolaghi.
Tinha o tronco nu. Não resisti à tentação de lhe passar
gulosamente as mãos sobre o peito e o pescoço dizendo:
- Porque ficas assim? Não tens frio?
Levantou a cabeça e olhou-me. Depois riu-se e disse-me com
uma voz um pouco áspera:
- Julgas que eu não percebo?
- O quê?
- Que me despes disfarçadamente? Estou embriagado, mas
não a esse ponto.
- E então! - respondi, desconcertada. - Mesmo que assim
fosse, que mal há nisso? Devias ser tu a fazê-lo, mas como não
fazes, auxilio-te.
Parecia não me ouvir - Estou bêbado - continuou, abanando
a cabeça -, mas sei muito bem o que faço e porque estou aqui. Não
preciso de ajuda... Olha!
Bruscamente, com gestos violentos que a magreza fazia
parecer serem de louco, tirou o cinto, fez voar para longe as calças
e tudo o que tinha ainda vestido:
- E sei também o que esperas de mim! - acrescentou
apoiando as mãos nas minhas ancas.
As suas mãos, fortes e nervosas, apertavam-me e nos seus
olhos a bebedeira parecia ter cedido o lugar a uma espécie de
enérgica malícia. Esta malícia tornei a encontrá-la mesmo nos
momentos em que parecia abandonar-se completamente. Era um
claro indício da sua lucidez de consciência, que conservava
sempre, fosse o que fosse que fizesse, e que - acabei por descobrir
mais tarde com mágoa - o impedia de se entregar e amar
realmente.
- É isto que queres, não é? - acrescentou sem me largar,
enterrando-me as unhas na carne. - E depois isto, isto?
De cada vez que dizia isto tinha um gesto de amor,
beijando-me, mordendo-me e beliscando-me traiçoeiramente com
as duas mãos nos sítios onde eu menos esperava. Eu ria,
defendia-me, debatia-me, estava demasiadamente feliz por ver
acordar o seu desejo para notar o que havia de forçado e de
insincero na sua atitude. Magoava-me como se o meu corpo fosse
para ele um objecto de ódio e não de amor. Julguei ver brilhar nos
seus olhos, em vez de desejo, uma espécie de cólera. Depois o seu
frenesi terminou de repente, como tinha começado. De uma
maneira curiosa, inexplicável, talvez por estar dominado pela
embriaguez, deixou-se cair de costas na cama a todo o
comprimento e encontrei-o ao meu lado com a bizarra impressão
de que ele não se mexera, nem me falara, que nunca me tinha
tocado, nem beijado, como se tudo estivesse ainda por começar.
Fiquei muito tempo imóvel, ajoelhada na sua frente sobre a
cama, os cabelos nos olhos, olhando-o e aflorando de vez em
quando timidamente com a ponta dos dedos o seu belo corpo
alongado, magro e puro. Tinha a pele branca debaixo da qual
sobressaíam os ossos, os ombros largos e magros, as ancas
estreitas e as pernas longas; não tinha pêlos, salvo alguns no
peito; a posição em que estava, deitado de costas, esticava-lhe o
ventre de maneira que o púbis parecia estendido como uma oferta.
Em amor eu não gosto de violência; por isso me parecia que nada
se tinha passado entre nós, que tudo estava ainda no princípio.
Deixei, pois restabelecer-se a calma e o silêncio depois deste
tumulto irônico e fictício, e quando me senti de novo no estado de
alma apaixonado e sereno que me é habitual, lentamente, do
mesmo modo que durante o tempo quente se entra lentamente na
água deliciosa de um mar calmo, estendi-me ao seu lado,
entrelacei as minhas pernas nas suas, rodeei-lhe o pescoço com
os braços e apertei-me contra ele. Desta vez não se mexeu nem
falou até ao fim. Eu chamava-lhe os nomes mais doces, respirava
sobre o rosto, envolvia-o na rede apertada e quente das minhas
carícias, e ele, como se estivesse morto, jazia deitado de costas,
imóvel. Mais tarde soube que esta passividade sem participação
era a maior prova de amor que ele podia dar.
Muito mais tarde, durante a noite, levantava-me apoiada no
cotovelo e contemplava-o com uma intensidade da qual guardo,
passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente
precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na
almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer
conservar a todo o custo abandonara-o. Nos seus traços, que o
sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca
idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de
definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer
qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembrava-me
de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora
cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste
e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta
indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e
que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro
profundo que para mim ficava longínquo e secreto. Não desejava
que ele me explicasse estas atitudes, desmontando-as e
analisando-as por palavras, como se desmontam as peças de uma
máquina. Desejaria conhecê-las nas suas raízes mais fundas por
um simples acto de amor, e ainda o não tinha conseguido. O
pouco que me escapava da sua pessoa era todo ele e o muito que
não me escapava não tinha qualquer importância; não sabia que
fazer. Gino, Astárito e mesmo Sonzogne estavam mais próximos de
mim, conhecia-os melhor. Olhava-o e sentia a parte mais
profunda de mim própria sofrer por não ter podido unir-se ao que
ele tinha de mais profundo, como acabavam de unir-se os nossos
corpos. Ela estava viúva e chorava amargamente esta ocasião
perdida. Talvez, enquanto nos amávamos, tivesse havido um
momento no qual ele se libertou e em que bastaria um gesto ou
uma palavra para que eu pudesse entrar na sua alma e lá ficar
para sempre. Mas não tinha sabido encontrar esse momento e
agora era tarde: dormia e de novo se afastara de mim.
Quando assim o contemplava, abriu os olhos sem se mexer,
com a cara enterrada de perfil na almofada e perguntou-me:
- Também dormiste?
A sua voz pareceu-me mudada, mais confiante e mais
próxima. Eu esperava de repente que misteriosamente, durante o
sono, a nossa intimidade tivesse aumentado.
- Não... estive a olhar para ti.
Guardou silêncio por um instante, depois disse:
- Tenho um favor a pedir-te... mas posso contar contigo?
- Que pergunta!
- Será preciso que me faças o favor de guardar por alguns
dias na tua casa um pacote que te entregarei. Virei buscá-lo e
talvez te traga outro.
Noutra ocasião, esta história dos pacotes teria excitado a
minha curiosidade. Mas neste momento o que me interessava era
ele e as nossas relações. Pensava que era mais uma ocasião para
nos tornarmos a ver, que lhe devia agradar o mais que pudesse e
que, se lhe fizesse perguntas, poderia arrepender-se e faltar ao
prometido.
Respondi-lhe com ar despreocupado:
- Se é só isso o que queres...
Calou-se ainda durante muito tempo. Parecia reflectir.
Depois insistiu:
- Então aceitas?
- Já te disse que sim.
- E não te interessa conhecer o conteúdo dos pacotes?
- Se não queres dizer - respondi esforçando-me por parecer
desinteressada -, é porque tens razões para isso! Não to pergunto.
- Mas poderia ser alguma coisa perigosa; não sabes?
- Está bem! Tanto pior!
- Podia ser uma coisa roubada - continuou estendendo-se de
costas, enquanto os olhos lhe brilhavam com uma expressão
divertida e ingênua ao mesmo tempo. - Eu podia ser um ladrão.
Recordei-me de Sonzogne, que não só era ladrão como
também assassino, e lembrei-me dos meus próprios roubos: a
caixa de pó de arroz e o lenço de seda. Pareceu-me uma curiosa
coincidência que ele quisesse passar por ladrão aos olhos de uma
pessoa como eu, autêntica ladra, vivendo no meio de ladrões.
Fiz-lhe uma carícia e disse-lhe com doçura:
- Não, tu não és um ladrão com certeza.
Irritou-se. O seu amor-próprio, sempre desperto, tomava a
mal as coisas mais estranhas e imprevistas.
- Porquê? - disse-me. - Podia muita bem sê-lo.
- Não tens cara disso. Tudo é possível... mas realmente tu
não pareces.
- Porquê? Que cara tenho eu?
- Tens cara daquilo que és... um rapaz de boa família, um
estudante...
- Fui eu quem te disse que era estudante... Podia muito bem
ser outra coisa qualquer... e é a verdade...
Já não o ouvia. Pensava que também eu não tinha cara de
ladra e no entanto era uma ladra e desejava imenso dizer-lho. A
sua curiosa atitude aumentava a minha tentação. Sempre pensara
que roubar era um acto censurável. E eis que alguém não só não
parecia censurar um tal acto, mas parecia encontrar nisso um
aspecto positivo que para mim continuava misterioso. Hesitei um
momento, depois disse-lhe:
- Tens razão. Penso que não és um ladrão porque estou
convencida de que não o és; mas, quanto à cara, bem podias sê-lo.
Nunca se tem a cara daquilo que se é. Eu, por exemplo... Tenho
cara de ladra?
- Não - respondeu sem me olhar.
- E no entanto sou-o - acrescentei tranquilamente.
- Tu és?
- Sou.
- E que roubaste?
Tinha deixado a mala sobre a mesa-de-cabeceira. Peguei
nela, tirei a caixa e mostrei-lha.
- Isto, numa casa aonde ia aqui há uns tempos, e, no outro
dia, numa loja, um lenço que dei a minha mãe.
Não acreditou que fizesse estas revelações por vaidade. Na
realidade, o que me levara a fazê-las fora um desejo de intimidade,
de cumplicidade sentimental: à falta de melhor, a confissão de um
delito pode aproximar e fazer amar. Vi-o tornar-se grave e
olhar-me com ar concentrado, e de repente receei que ele me
julgasse mal e tomasse a resolução de não me tornar a ver.
Acrescentei depressa:
- Mas não julgues que estou contente por ter roubado. Pelo
contrário, já decidi devolver a caixa... hoje mesmo. O lenço não o
posso restituir... mas tenho tido remorsos e resolvi nunca mais o
fazer.
Ao ouvir estas palavras, vi brilhar nos seus olhos a malícia
que lhe era habitual. Olhou-me e desatou bruscamente a rir.
Depois agarrou-me pelos ombros, atirou-me para cima da cama e
começou outra vez a beliscar-me e a fazer-me cócegas
traiçoeiramente, repetindo:
- Ladra, tu não passas de uma ladra, uma ladrazinha, uma
grande ladra, uma enorme ladra, uma suja ladra... - com uma
espécie de ternura sarcástica da qual eu não sabia se me deveria
sentir vexada ou lisonjeada. Num certo sentido, a sua
impetuosidade excitava-me e agradava-me. Era melhor do que a
habitual, a mortal passividade.
Ria pois e o meu corpo mais se contorcia quanto mais
cócegas ele me fazia, maldosamente, debaixo dos braços. Mas,
torcendo-me e rindo até às lágrimas, via a sua cara, inclinada
para mim, com uma espécie de crueldade, conservando uma
expressão fechada e concentrada. Sem rir, parou bruscamente,
como tinha começado. Deixou-se cair de costas sobre a cama e
disse:
- Eu, pelo contrário, não sou um ladrão... não, na verdade.
Estes pacotes que te pedi para guardares não são o produto de
um roubo.
Percebi que ele desejava muito dizer-me o que eles
continham. E compreendia que, ao contrário do que se passara
comigo, nele era sobretudo por vaidade. Uma vaidade muito
parecida, no fundo, com a que levara Sonzogne a revelar-me o seu
crime. Apesar de todas as suas diferenças, os homens têm muitas
coisas comuns; em presença de uma mulher que eles amam, ou
pelo menos com quem têm ligações amorosas, eles tendem sempre
para ostentar a sua virilidade sob a forma de actos enérgicos e
perigosos que fizeram ou que farão. Fiz notar a Jaime, com
doçura:
- No fundo, morres por me contar o que há nesses pacotes.
- És uma idiota - disse-me, irritado. - Não me interessa
fazê-lo. Somente devo pôr-te ao corrente do seu conteúdo para que
possas decidir se me prestas este serviço ou não... Pois bem!
Contêm material de propaganda.
- Que quer isso dizer?
- Faço parte de um grupo de pessoas que não gostam muito,
digamos assim, do governo actual, ou, melhor, que lhe têm ódio e
desejariam que ele caísse o mais depressa possível. Esses pacotes
contêm justamente prospectos impressos, nos quais explicamos
às pessoas porque este governo não presta e indicamos a maneira
de agir para se desembaraçarem dele.
Nunca me ocupei de política. Para mim, como para muita
gente, parecia-me, a questão do governo nem sequer se punha. De
repente lembrei-me de Astárito e das alusões que ele de tempos a
tempos fazia à política. Gritei então, aflita:
- Mas é proibido! É perigoso!
Olhou-me com satisfação. Dissera-lhe enfim uma coisa que
lhe agradava e lisonjeava o seu amor-próprio. Confirmou com
excessiva gravidade e ligeiramente enfático:
- De facto, é perigoso... Agora é a ti que compete decidir se
queres ou não prestar-me esse serviço.
- Não é por mim que digo isto - repliquei vivamente - É por ti.
Por mim, aceito.
- Toma cuidado, porque é de facto perigoso - preveniu-me
ainda. - Se te descobrem, vais parar à prisão.
Olhava-o, e bruscamente senti por ele um excesso de afeição
impossível de conter. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e
balbuciei:
- Não compreendes então que isso para mim não tem
importância alguma? Serei presa... e depois?
Abanei a cabeça e as lágrimas rolaram-me pelas faces.
Admirado, perguntou-me:
- Porque choras tu agora?
- Perdoa-me - disse-lhe. - Sou uma imbecil... Eu própria não
sei porquê... talvez porque quisesse que te desses conta de que te
amo e que por ti estou pronta a fazer seja o que for.
Ainda não tinha compreendido que não lhe devia falar do
meu amor. Ao ouvir as minhas palavras, o seu rosto mostrou-se
embaraçado e tomou uma expressão vaga e distante, alteração
que de futuro, em casos idênticos, eu havia de notar! Desviou os
olhos e disse-me apressadamente:
- Então, está bem! Dentro de dois dias trago-te os pacotes,
fica combinado. Agora é tarde; preciso de me ir embora.
Dizendo isto, saltou da cama e começou a vestir-se a toda a
pressa. Fiquei onde estava, sobre a cama, com a minha emoção e
as minhas lágrimas, nua e um pouco envergonhada, sem saber se
seria de estar nua se de estar a chorar. Apanhou as roupas que
atirara para o chão e vestiu-as. Foi ao bengaleiro, tirou o
sobretudo, enfiou-o e aproximou-se de mim.
- Toca aqui! - disse-me com um sorriso gracioso e ingênuo
que tanto gostava de lhe ver.
Olhei e vi que me indicava um dos bolsos do sobretudo.
Aproximara-se da cama para que eu pudesse estender a mão sem
esforço. Senti um objecto duro.
- Que é? - perguntei-lhe sem compreender.
Sorriu satisfeito, introduziu a mão na algibeira, olhou-me
nos olhos e tirou devagarinho, mas só metade, um revólver preto.
- Um revólver? - gritei. - Para que o queres?
- Nunca se sabe - respondeu-me. - Pode vir a ser preciso...
Fiquei inquieta, tentando pensar, porém ele não me deu
tempo para isso. Tornou a meter a arma no bolso, curvou-se,
aflorou os meus lábios com os seus e disse-me:
- Então está combinado, não está? Volto daqui a dois dias.
Antes que me refizesse da surpresa ele tinha saído. Muitas
vezes, daí em diante, pensando neste primeiro encontro de amor,
repreendi-me cruelmente por não ter sabido prever os perigos aos
quais o expunha a sua paixão política. A verdade é que não tinha,
nem nunca vim a ter, qualquer influência sobre ele. Mas, pelo
menos, se eu soubesse então o que soube depois, teria podido
aconselhá-lo: e mesmo que os conselhos para nada servissem,
estaria ao seu lado em plena consciência da causa e firmemente
decidida.
Esta foi certamente a minha culpa, ou, melhor, a culpa da
minha ignorância, da qual não era culpada, mas sim a minha
condição. Como já disse, nunca me ocupei de assuntos de política,
nada deles percebia, e sentia-os estranhos ao meu destino; era
como se eles se desenrolassem não à minha volta, mas num outro
planeta. Quando lia o jornal, saltava a primeira página porque as
notícias sobre política não me interessavam e tomava
conhecimento dos assuntos comezinhos, em que certos
acontecimentos ou alguns crimes forneciam ao meu espírito
matéria de reflexão. Na realidade a minha condição era muito
parecida com a de certos animaizinhos transparentes que vivem,
segundo dizem, no fundo do mar, quase às escuras, e nada sabem
do que se passa à superfície, à luz do sol. A política, como de resto
numerosas coisas às quais os homens pareciam ligar tanta
importância, chegava até mim como de um mundo desconhecido,
superior - mais obscuras, mais incompreensíveis que a luz do dia
é para esses simples animálculos no fundo dos seus esconderijos
submarinos.
Mas não foi só culpa minha e da minha ignorância; foi
também culpa dele, da sua imprudência e da sua vaidade. Se eu
me tivesse apercebido dos perigos que a sua vaidade poderia fazer
surgir - e esses perigos existiam -, eu poderia talvez ter agido de
maneira diferente; não sei qual seria o resultado, mas ter-me-ia
esforçado por compreender e conhecer tudo o que ignorava. Aqui
quero notar outro elemento que de certo modo contribuiu para o
meu procedimento despreocupado: o facto de Jaime dar a
impressão de, em vez de agir com seriedade, representar um papel
e de uma maneira quase cômica. Dir-se-ia que ele compunha peça
por peça uma personagem ideal na qual não acreditava senão até
certo ponto, e que se esforçava sempre, quase maquinalmente, por
harmonizar os seus actos com os desta personagem. Essa
contínua comédia dava a impressão de um jogo no qual ele era,
num certo sentido, um perfeito mestre; mas, como acontece aos
jogadores, uma impressão semelhante roubava uma grande parte
da seriedade a tudo o que ele fazia e sugeria também a falsa
certeza de que para ele nada era irreparável e que no último
momento o seu adversário lhe devolveria o dinheiro perdido e lhe
estenderia a mão. Talvez até, como acontece com as crianças, para
quem tudo é jogo, se divertisse realmente; mas o seu adversário
era de respeito, isso viu-se pela continuação. Foi assim que,
acabada a partida, se encontrou desprevenido e desarmado,
excluída toda a possibilidade de continuar o jogo e preso numa
armadilha mortal.
Estas coisas e muitas outras ainda mais tristes - ai de mim!
- e não menos razoáveis só as pensei mais tarde, reflectindo sobre
os factos. Mas então, assim como ele parecia ter-me feito
compreender, a suspeita de que este assunto dos pacotes poderia
influenciar as nossas relações nem sequer me aflorou o espírito.
Estava satisfeita por ele ter voltado, estava contente por lhe poder
prestar um serviço e não ia mais além dessa dupla satisfação.
Lembro-me de que, ao surpreender-me a pensar vagamente e
como em sonhos neste singular serviço que ele me pedira,
abanava a cabeça como se dissesse “Que infantilidade!” e pensava
noutra coisa. De resto encontrava-me num estado de alma feliz a
tal ponto que mesmo que o quisesse não teria podido aplicar a
minha atenção a qualquer facto que me preocupasse.
6
Tudo me parecia correr pelo melhor. Jaime tinha voltado e
encontrara um meio de fazer sair da prisão a criada de quarto
acusada injustamente sem ser obrigada a tomar o seu lugar.
Naquele dia, depois de Jaime ter saído, passei duas horas a
saborear a minha felicidade, como se saboreia por vezes a posse
recente de uma jóia, de um objecto precioso, com um misto de
admiração, incompreensão e ingenuidade que não exclui de forma
alguma uma profunda alegria. O tocar das vésperas acordou-me
desta voluptuosa contemplação. Lembrei-me do conselho de
Astárito e da urgência que havia em socorrer esta pobre mulher
aprisionada. Vesti-me e saí à pressa.
É uma doce coisa, no Inverno, quando ficamos toda a
manhã e uma parte da tarde em casa, só com os nossos
pensamentos, sair e percorrer as ruas do centro da cidade, onde o
movimento é maior, mais numerosa a multidão e as lojas mais
bem iluminadas. No ar puro e frio, no meio do barulho, do
movimento e da cintilação da vida citadina o pensamento
aclara-se, o espírito liberta-se e experimenta-se uma excitação
estranha, uma embriagadora alegria, como se todas as
dificuldades se aplanassem e como se não houvesse realmente
outra coisa a fazer que vaguear por entre a multidão, leve e sem
cuidados, feliz por seguir agora uma, agora outra, as impressões
fugazes que o espectáculo das ruas oferece à ociosidade.
Realmente dir-se-ia então por alguns instantes que as nossas
dívidas, como diz a oração cristã, nos são perdoadas sem que para
isso tenhamos algum mérito, sem que as pagássemos, mas
unicamente por uma benevolência geral e misteriosa. Bem
entendido que é preciso sentir-se feliz ou pelo menos contente,
porque, no caso contrário, a vida da cidade pode dar a angustiosa
impressão de uma agitação absurda e vã. Mas nesse dia, como já
disse, sentia-me feliz e apercebi-me particularmente de que o
estava uma vez chegada ao centro e logo que comecei a caminhar
nos passeios, pelo meio das pessoas.
Sabia que devia ir à igreja confessar-me, como decidira fazer.
Mas talvez justamente por me ter proposto esta ideia, nenhuma
pressa tinha de o fazer e nem mesmo pensava nisso. Caminhei
pois, lentamente, de uma rua para a outra, parando de vez em
quando para examinar os objectos expostos nas montras. Se os
que me conheciam me tivessem visto, teriam com certeza pensado
que eu procurava interessar os passeantes. Mas na verdade nada
estava mais longe do meu espírito. Poderia talvez ter-me deixado
deter por algum homem que me tivesse agradado, mas não por
dinheiro, mas por simples transporte de alegria, por exuberância
de vida. Os poucos homens que me viram parada em frente das
montras e me abordaram com as suas frases habituais e as suas
propostas para me acompanharem não me agradavam. Nem lhes
respondi, nem sequer os olhei e continuei a passear como se eles
não existissem, com o meu passo habitual, indolente e majestoso.
A vista da igreja na qual me confessara a última vez, depois
do passeio a Viterbo, apanhou-me desprevenida, neste estado de
alma feliz e distraído. Entre os cartazes do cinema e a montra da
loja das meias, rutilante de luz, a sua fachada barroca
mergulhava no escuro, disposta à maneira de guarda-vento num
recanto da rua, com a sua alta frontaria encimada por dois anjos
tocando trombetas, e as manchas violetas que projectava sobre
elas o anúncio luminoso de uma casa contígua dava-me a
impressão da cara escura e enrugada de uma velha, abrigada com
um xaile fora de moda, que me tivesse feito um sinal de chamada
familiar no meio das caras iluminadas das pessoas. Lembrei-me
do belo confessor francês, o padre Élie, e tive a impressão de que
ninguém se sairia melhor do que ele, homem do mundo e homem
novo, desta maçada de restituir a caixa. Além disso, ao padre Élie,
conhecendo-me num certo sentido, eu teria menos dificuldade em
confessar-lhe as coisas terríveis e vergonhosas que pesavam sobre
a minha alma.
Galguei os degraus, afastei a cortina que obstruía a porta e
entrei depois de ter colocado na cabeça um lenço de bolso.
Enquanto molhava os dedos na água benta, reparei numa figura
esculpida em volta da pia: uma mulher nua, com os cabelos ao
vento, os braços levantados, que fugia perseguida por um
repugnante dragão, com bico de papagaio, levantado sobre as
patas de trás, como um homem. Julguei reconhecer esta mulher;
pensava que fugia também de um dragão parecido, mas a minha
fuga, como a desta mulher, era uma fuga circular. Acontecia-me
por vezes andar à roda, não para fugir, mas para seguir com ardor
e alegremente este vil dragão. Afastei-me da pia de água benta e,
persignando-me, voltei-me para o interior da igreja. Pareceu-me
que conservava a mesma desordem, a mesma obscuridade, a
mesma desolação que da última vez que a tinha visto. Como
então, estava mergulhada na escuridão, salvo o altar-mor, onde os
círios iluminavam o crucifixo, fazendo brilhar confusamente os
candelabros de cobre e as alfaias de prata. A capela dedicada à
Virgem, na qual eu rezara com uma tão profunda e vã convicção,
estava também iluminada; empoleirados em escadotes, dois
sacristães pregavam à arquitrave cortinados vermelhos franjados
de ouro. Vi que o confessionário do padre Élie estava ocupado e
fui ajoelhar-me, em frente do altar-mor, sobre uma das cadeiras
de palha em desordem. Não sentia qualquer emoção, mas só
impaciência por despachar o assunto da caixa. Uma impaciência
impetuosa, feliz e não isenta de vaidade, precisamente a que se
sente quando nos preparamos para fazer uma boa acção com a
qual sonhávamos há muito tempo. Reparei logo que esta
impaciência, que vem do coração e parece querer ignorar todas as
sugestões da inteligência, acaba por comprometer a boa acção e
fazer por vezes mais mal que uma conduta mais reflectida.
Assim que vi a pessoa que se confessava levantar-se e
afastar-se, fui direita ao confessionário, ajoelhei-me e, sem esperar
que o confessor me falasse, disse-lhe depressa:
- Padre Élie, não me venho confessar como habitualmente o
fazemos... venho dizer-vos uma coisa extremamente grave e
pedir-vos um favor que não me recusareis, estou certa.
Do outro lado da grade a voz do confessor, muito baixa,
disse-me que falasse. Estava tão convencida de que era o padre
Élie quem se encontrava do outro lado que quase me parecia ver o
seu belo rosto, não escondido, mas à frente da placa escura e
perfurada. Então, pela primeira vez depois de ter entrado,
experimentei uma grande emoção confiante e religiosa. Foi como
um impulso do meu espírito que o impelia a libertar-me do corpo e
a ajoelhar-se todo nu, com as suas máculas bem em evidência,
sobre os degraus, diante desta grade. Verdadeiramente tive
durante um momento a impressão de ser uma alma sem carne,
livre, feita de ar e de luz, como dizem que acontece depois da
morte. E julguei sentir o padre Élie também, com a sua alma
muito mais luminosa do que a minha, libertar-se da sua prisão
corporal, fazer desaparecer a grade, as paredes, o escuro do
confessionário e aparecer diante de mim em pessoa, absolvendo e
consolando. Talvez seja esse o sentimento que se deve
experimentar quando nos ajoelhamos para nos confessarmos. Mas
nunca o sentira de uma maneira tão profunda.
Pus-me então a falar, com os olhos fechados, apoiando a
testa na grade, e disse tudo. O meu ofício, falei de Gino, de
Astárito e de Sonzogne, do roubo e do crime. Disse o meu nome, o
de Gino, o de Astárito e o de Sonzogne. Contei onde praticara o
roubo, onde fora o crime, onde eu morava. Descrevi mesmo o
aspecto físico das pessoas. Não sei a que impulso obedeci. Talvez
ao da dona de casa que acaba por decidir-se a limpar a sua casa
depois de uma longa negligência e que não tem sossego enquanto
não tiver varrido o último grão de poeira, a última partícula de
cotão alojada debaixo dos móveis ou nos cantos. Realmente, à
medida que contava e citava todos os detalhes da minha confissão
sentia-me mais livre e mais pura.
Falava sempre com a mesma voz razoável e tranquila. O meu
confessor ouviu-me até ao fim, sem dizer uma palavra, sem nunca
me interromper. Depois ouvi uma horrível voz lenta, arrastada,
pronunciar estas palavras:
- As coisas que acaba de me dizer, minha filha, são terríveis,
assustadoras; o espírito recusa-se a crer numa coisa destas, mas
fez bem em ter vindo confessar-se e farei por si tudo o que puder.
Muito tempo se passara depois da minha última confissão
nesta igreja, e no agradável tumulto da minha vaidosa bondade
tinha quase esquecido um detalhe bem característico e bem
agradável: a pronúncia francesa do padre Élie. Ora aquele que me
falara não tinha qualquer acento particular na voz, mas a sua
pronúncia era sem dúvida italiana, com os seus toques de
futilidade que se notam na voz de alguns padres. Compreendi
bruscamente o meu erro e senti, no mesmo instante, uma
impressão de gelo, parecida com a que deve experimentar alguém
que, ao estender a mão para colher uma bela flor, sente na ponta
dos dedos a pele fria e vibrátil de uma serpente. Quanto à
desagradável surpresa de me encontrar em frente de um confessor
diferente do que tinha imaginado, era igual ao horror que me
causou esta voz insinuante e sombria. Encontrei, no entanto,
forças para balbuciar:
- Mas vós sois realmente o padre Élie?
- Em pessoa - respondeu o padre desconhecido. - Já cá tinha
vindo alguma vez?
- Só uma vez.
Ficou calado durante um momento, depois disse:
- Tudo o que me contou merecia ser examinado de novo
ponto por ponto... Não se trata só de uma coisa, mas de várias,
das quais algumas lhe dizem respeito, outras a certas pessoas...
Naquilo que vos diz respeito já compreendeu que cometeu pecados
muito graves?
- Sim - murmurei. - Já sei.
- E sente-se arrependida?
- Julgo que sim.
- Se o vosso arrependimento é sincero - continuou no seu
tom confidencial e paternal -, pode com certeza esperar a
absolvição... Infelizmente não sois só vós... há também os outros e
os crimes dos outros... tendes conhecimento de um crime
pavoroso... a vossa consciência não a leva a revelar o nome do
culpado, a fim de que seja punido como merece?
Sugeria-me que denunciasse Sonzogne. Não digo que, sendo
padre, ele fizesse isso por mal. Mas insinuada desta maneira e
com esta voz neste momento, a sua proposta aumentou a minha
desconfiança e o meu medo:
- Se digo o nome do autor do crime - balbuciei -,
prendem-me também.
- Os homens e Deus - disse ele logo a seguir - apreciariam o
vosso sacrifício e o vosso arrependimento. A lei não conhece só o
castigo; conhece também o perdão. Em troca de alguns
sofrimentos leves em relação à agonia da vítima teria contribuído
para restabelecer a justiça, horrivelmente ofendida... Oh! Não ouve
a voz do homem assassinado invocar em vão a piedade do seu
assassino?
Continuou as suas exortações, escolhendo cuidadosamente
as palavras e não sem se comprazer com esta escolha, para
compor as frases convencionais e próprias do seu ofício. Mas eu
agora não tinha outro desejo que não fosse o de me ir embora, um
desejo histérico.
Disse-lhe rapidamente:
- Quanto à denúncia, prefiro pensar... Voltarei amanhã e
dir-lhe-ei o que decidi. Encontrá-lo-ei aqui amanhã?
- Com certeza, a qualquer hora!
- Então - disse eu, atônita -, por agora só lhe peço que
devolva este objecto.
Calei-me, e ele, depois de uma breve oração, tornou-me a
perguntar se me sentia arrependida sinceramente, e ao ouvir a
minha resposta afirmativa deu-me a absolvição. Persignei-me e saí
do confessionário; nesse momento ele abriu a porta e vi-o na
minha frente. Todos os receios que a sua voz me tinham inspirado
foram confirmados em seguida pela sua pessoa. Era baixo, mas
com uma cabeça grande, que uma espécie de torcicolo crônico
mantinha de lado. Não tive tempo de o observar bem, tão grande
era a pressa de me ir embora e tão grande era o horror que ele me
inspirava. Mas entrevi uma cara entre o moreno e o amarelo, uma
grande testa pálida, uns olhos vazios perdidos nas órbitas, um
nariz adunco com largas narinas e uma boca grossa e informe
com lábios criminosos e violáceos. Não devia ser velho... Não tinha
idade. Disse-me com ar aflito, pondo as mãos sobre o peito e
acenando com a cabeça:
- Mas porque não veio mais cedo, minha querida filha?
Porquê? Que coisas horríveis se teriam evitado!
Desejaria responder-lhe o que pensava, que Deus não
quisera que eu viesse! Mas contive-me, tirei da mala a caixa e
meti-lha na mão, dizendo com sinceridade:
- Peço-lhe para agir depressa... Não lhe posso dizer como
estou atormentada pela ideia de que esta pobre mulher está na
prisão por minha causa.
- Hoje mesmo - respondeu-me apertando a caixa contra o
peito e abanando a cabeça com ar dolorido e suplicante.
Agradeci em voz baixa e, cumprimentando-o com um
movimento de cabeça, sai rapidamente da igreja. Ficou onde o
deixei, junto do confessionário, com as mãos no peito e abanando
a cabeça.
Quando cheguei à rua, procurei reflectir calmamente sobre o
que me acabara de acontecer. Por agora, deixando de parte as
minhas primeiras confusas apreensões, compreendi que do que
tinha medo, em suma, era de que o padre não respeitasse o
segredo da confissão; esforçava-me por aclarar por mim própria os
fundamentos do meu receio. Sabia, como toda a gente, que a
confissão é um sacramento e como tal inviolável. Sabia também
que era quase impossível que um padre, por mais corrupto que
fosse, se não sentisse culpado de uma tal violação. Mas, por outro
lado, o seu conselho para denunciar Sonzogne fazia-me recear que
ele tomasse a iniciativa, se eu não me adiantasse, de denunciar à
polícia o autor do crime da Rua Palestro. Era sobretudo a sua voz
9que me fazia recear o pior. Sou mais emotiva do que reflectida e
possuo, como certos animais, uma presciência instintiva do
perigo. Todas as razões que me apresentava a minha inteligência
para me dar segurança ficavam reduzidas a nada em presença
deste pressentimento sem razão. “É bem verdade - pensava eu -
que o segredo da confissão é inviolável.” Mas só um milagre pode
impedir este padre de denunciar Sonzogne e os outros!
Um outro facto contribuiu para me dar a impressão de uma
ameaça de desgraça iminente e misteriosa: a substituição do
segundo confessor. Evidentemente que o monge francês não era o
padre Élie, se bem que ele me tivesse ouvido no confessionário que
tinha esse nome. Então quem era? Arrependi-me de não ter
pedido noticias ao verdadeiro padre Élie. Mas ao mesmo tempo
dizia que este embirrante padre me teria dito que nada sabia,
reforçando assim o carácter de aparição que a silhueta do jovem
religioso deixara no meu espírito. Realmente ele tinha muito de
fantasma, tanto pela sua figura, tão diferente da dos outros
padres, como pela maneira como apareceu na minha vida e como
desapareceu. Cheguei a duvidar de que o tivesse visto alguma vez,
ou, melhor, de que o tivesse visto em carne e osso, e pensei por
momentos numa alucinação, quanto mais não fosse porque eu
começava a encontrar-lhe uma indefinida semelhança com Cristo
tal como o representam habitualmente nas imagens santas. Mas
se assim era, se Cristo me tinha realmente aparecido num
momento doloroso e tinha aceite a minha confissão, o facto de um
padre repugnante e sórdido o ter substituído era claramente de
mau agouro. Isso indicava pelo menos que num momento da
9
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de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes
Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
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recebê-lo em nosso grupo.
maior angústia a religião me tinha abandonado. Era como se num
momento de necessidade urgente eu tivesse aberto um cofre que
supunha recheado de peças de ouro e aí encontrasse, em lugar
delas, poeira, teias de aranha e cotão.
Entrei em casa com o pressentimento de uma desgraça que
a minha confissão iria provocar e fui logo deitar-me sem jantar,
convencida de que iria ser presa e esta seria a última noite que
passaria em casa. Devo dizer, no entanto, que não experimentava
o menor medo nem o menor desejo de fugir ao meu destino. Uma
vez passado o primeiro pavor, devido a uma fraqueza nervosa
comum a quase todas as mulheres, foi substituído na minha
alma, não propriamente por um sentimento de resignação, mas
por uma verdadeira vontade de aceitar a sorte que me ameaçava.
Experimentava mesmo uma espécie de volúpia em deixar-me
arrastar até bem ao fundo do que eu imaginava ser o último
desespero. Tinha a impressão de me sentir de qualquer maneira
protegida pelo excesso da desgraça e pensava com um certo prazer
que, à parte a morte, que já não me assustava agora, coisa
alguma me podia acontecer de pior.
Mas no dia seguinte foi em vão que esperei a visita, que eu
previra, da polícia. Todo esse dia e o dia seguinte decorreram sem
que nada acontecesse que justificasse as minhas apreensões.
Durante todo este tempo não saí de casa, nem mesmo do quarto, e
depressa me cansei de pensar nas consequências da minha
imprudência. Voltei a pensar em Jaime e desejei tornar a vê-lo,
nem que fosse só mais uma vez antes que a denúncia do padre -
continuava a considerá-la inevitável - fizesse o seu efeito. No
terceiro dia, à tardinha, quase sem reflectir, saltei da cama,
vesti-me com cuidado e saí de casa.
Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei lá. Mas
no momento de entrar pensei que não o tinha avisado e fui
tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal,
que até mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e
com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra
pensando se não seria melhor voltar pelo mesmo caminho e
esperar que fosse ele a decidir-se ver-me. Compreendia que era
preciso mostrar muita cautela e muita perspicácia,
particularmente neste primeiro período das nossas relações, e
nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossível
viver sem ele. Por outro lado parecia-me duro voltar para trás,
agora que a minha confissão me deixara inquieta e que tinha
necessidade de o ver, até mesmo só para me distrair das minhas
preocupações. Os meus olhos caíram sobre a montra da loja em
frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas;
lembrei-me de repente de que lhe tinha prometido uma gravata
nova para substituir a outra esfiada. Quando se está apaixonado
não se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir
de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dádiva confirmava
precisamente o carácter inferior e ansioso do meu sentimento por
ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo,
preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas - a mais bonita
e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos
empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado
perguntou-me se a pessoa a quem se destinava a gravata era
loura ou morena. “É moreno”, respondi lentamente; reparei que
disse a palavra “moreno” com um acento terno e senti-me corar à
ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento.
A viúva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha
casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre. Subi os
oito lanços de escada e toquei sem tomar fôlego à porta,
mergulhada na sombra. A porta abriu-se quase em seguida e
Jaime apareceu no limiar.
- Ah! És tu? - disse, surpreendido. Era evidente que esperava
alguém.
- Posso entrar?
- Sim, sim! Por aqui!
Atravessamos um vestíbulo quase às escuras e ele fez-me
entrar numa sala, que estava igualmente na penumbra porque as
janelas tinham os vidros esguios como as das igrejas. Entrevi uma
quantidade de móveis escuros com nácar incrustado. Ao meio
havia uma mesa redonda com um licoreiro azul, de feitio fora de
moda. Havia muitos tapetes e uma pele de urso branca um pouco
gasta. Tudo era velho ali dentro, mas asseado, arrumado, como se
estivesse conservado pelo profundo silêncio que parecia reinar na
casa desde tempos imemoráveis. Sentei-me num canapé ao fundo
da sala e perguntei a Jaime:
- Esperas alguém?
- Não, mas porque vieste cá?
Eram na realidade palavras pouco acolhedoras. Não parecia
no entanto zangado, apenas surpreendido.
- Vim dizer-te adeus - respondi-lhe, sorrindo -, porque creio
bem que é a última vez que nos vemos.
- Porquê?
- Estou convencida de que amanhã, o mais tardar, me vêm
buscar para me meterem na prisão.
- Na prisão? Que diabo fizeste tu?
Percebi na sua voz e na sua cara uma alteração e
compreendi que estava com medo por ele próprio. Talvez pensasse
que o tinha denunciado ou comprometido de uma maneira ou de
outra, revelando a alguém a sua actividade política. Sorri ainda e
continuei:
- Não tenhas medo... nada disto te diz respeito... nem mesmo
de longe.
- Não, não - apressou-se a dizer. - Mas não compreendo é
tudo. Na prisão? Porquê?
- Fecha a porta e senta-te aqui - disse-lhe indicando um
lugar ao meu lado, no canapê.
Ele foi fechar a porta e sentou-se ao pé de mim. Então, com
muita calma, contei-lhe a verdadeira história da caixa de pó de
arroz e a minha confissão. Ouvia-me de cabeça baixa, sem me
olhar, roendo as unhas, o que nele era sintoma de estar
interessado. Acabei por concluir:
- Estou certa de que este padre me fará passar um mau
bocado... Que dizes?
Abanou a cabeça e respondeu-me, não olhando na minha
direcção mas na dos vidros da janela:
- Ele não o deve fazer... estou mesmo certo de que o não
fará... Não basta que um padre seja feio...
- Mas se tu o tivesses visto! - interrompi.
- ... que seja monstruoso, se quiseres, para que faça uma
coisa semelhante. Não é menos verdade que tudo pode acontecer -
acrescentou vivamente com um sorriso.
- Então achas que não devo ter medo?
- Acho... até mesmo porque nada podes fazer... isso não
depende de ti!
- É bom de dizer! Tem-se medo porque se tem medo... é mais
forte do que nós!
Teve de repente um gesto afectuoso, um dos seus gestos.
Pôs-me uma mão no pescoço, sacudiu-me rindo e dizendo:
- Tu não tens medo, pois não?
- Mas se te disse que tenho!
- Tu não tens medo!És uma mulher corajosa.
- Asseguro-te que tenho um medo horrível; é tão verdade que
me deitei e só me levantei dois dias depois.
- Sim... mas em seguida vieste ter comigo e contaste-me a
coisa com a maior tranquilidade... Tu não sabes o que é ter medo!
- E que posso eu fazer? - perguntei, sorrindo sem querer. -
Não posso começar a gritar de medo!
- Tu não tens medo!
Houve um momento de silêncio. Depois perguntou-me com
uma entoação particular que me surpreendeu:
- E o teu amigo... chamemos-lhe assim, esse Sonzogne, que
tipo tem?
- É um tipo como há tantos - disse vagamente. Nesse
momento nada encontrava para dizer de Sonzogne.
- Mas como é? Descreve-mo!
- Porquê? Queres mandá-lo prender? - disse-lhe rindo.
Lembra-te de que me engavetavam também a mim. - Depois
acrescentei: - É alourado... baixo... largo de ombros... com uma
cara pálida, olhos azuis... nada de especial, em suma. A única
coisa que ele tem de diferente é ser muito forte.
- Muito forte?
- Quando se vê não se acredita. Mas se se lhe toca num
braço, parece de ferro.
Como via que me escutava com interesse, contei-lhe o
incidente passado com Gino e Sonzogne. Não fez comentários,
mas quando acabei perguntou-me:
- E julgas que Sonzogne tenha premeditado o crime, quero
dizer, que o tenha preparado e executado a frio?
- De maneira nenhuma! - disse-lhe. - Ele nunca premedita
coisa alguma. Um momento antes de atirar Gino ao chão
provavelmente nem pensava em fazê-lo. Deve ter acontecido o
mesmo com o ourives.
- Então porque o fez?
- Sei lá... porque é mais forte do que ele. Como um tigre...
está muito tranquilo e de repente atira-nos um pontapé.
Contei-lhe toda a história das minhas relações com
Sonzogne, a maneira como me batera e como tinha tido com
certeza a ideia de me matar quando estávamos às escuras. E
concluí:
- Nunca pensa nisso... mas num certo momento é dominado
por qualquer coisa mais forte do que a sua vontade e então é
melhor não estar ao pé dele. Tenho a certeza de que foi procurar o
ourives para lhe vender a caixa... O outro insultou-o e ele
matou-o.
- Em suma, é uma espécie de animal.
- Chama-lhe como quiseres. Isso deve ser - disse eu,
procurando pôr a claro para mim própria o sentimento que me
inspirava o furor homicida de Sonzogne - um impulso semelhante
ao que me leva a amar-te. Porque gosto eu de ti? Só Deus o sabe...
Porque sente Sonzogne em certos momentos o impulso de matar?
pela mesma razão. Só Deus o sabe. Parece-me que neste caso não
há qualquer explicação.
Depois de reflectir, levantou a cabeça e perguntou-me:
- E eu, que impulso julgas que me leva para ti? Julgas que
sinto um impulso amoroso?
Tive um medo horrível de o ouvir dizer que não me amava.
Tapei-lhe a boca com a minha mão e supliquei-lhe:
- Por piedade... não me digas o que sentes por mim!
- Mas porquê?
- Porque não me interessa saber. Não sei o que sentes por
mim e não o quero saber. Chega-me saber o que eu sinto por ti.
Abanou a cabeça e disse:
- Fazes mal em gostar de mim... devias amar um homem
como Sonzogne.
Olhei-o sinceramente admirada.
- Mas que dizes tu? Um criminoso?!
- Pode ser que seja um criminoso... mas sente os impulsos
que tu dizes... assim como tem impulsos para matar, tenho a
certeza de que terá um impulso para amar, assim, com
simplicidade, sem complicações... eu, pelo contrário...
Não o deixei acabar e protestei:
- Mas tu não te podes comparar com Sonzogne. Tu és aquilo
que és... o outro é um criminoso, um monstro. E depois não deve
ser verdade que ele possa sentir impulsos amorosos. Para ele é
simplesmente uma satisfação dos sentidos: eu ou outra, é a
mesma coisa.
Não parecia convencido, mas nada disse. Aproveitei este
silêncio, e, estendendo a mão, enfiei os dedos na manga do seu
casaco e procurei fazê-los subir ao longo do seu braço.
- Jaiminho - disse-lhe.
- Porque me chamas Jaiminho?
- É o diminutivo de Jaime. Não tenho o direito?
- Sim... sim... tens o direito... Somente é o diminutivo que
usam em família... mais nada.
- É a tua mãe quem te chama assim? - perguntei
largando-lhe o pulso e introduzindo os dedos entre a gravata e a
camisa e passando-os sobre o peito nu.
- Sim, minha mãe chama-me Jaiminho - confirmou com
certa impaciência.
E passado um momento, com um acento meio sarcástico
meio furioso :
- De resto, não é o único caso em que tu e minha mãe usam
as mesmas expressões. No fundo vocês têm a mesma opinião
sobre quase todas as coisas.
- Por exemplo? - perguntei.
Estava perturbada; tinha desabotoado a camisa e
esforçava-me por alcançar o seu ombro magro e grácil de
rapazinho.
- Por exemplo, quando te contei que me ocupava de política
tu gritaste logo com voz apavorada: Mas é proibido! É perigoso!
Pois bem! Minha mãe teria dito exactamente a mesma coisa, com
a mesma voz.
A ideia de que me parecia com a mãe dele envaidecia-me,
primeiro por ser sua mãe e depois porque era uma senhora.
- Que pateta! - disse-lhe com ternura. - É porque ela gosta
tanto de ti como eu. É bem verdade que é perigoso ocupar-se de
política; um rapaz que eu conheço foi preso e há dois anos que
está detido. E para que? Eles são mais fortes, e mal vocês se
mexem metem-nos na prisão. Parece-me que se podia muito bem
viver sem política.
- A minha mãe! A minha mãe! - gritou, rejubilante e
sarcástico. - Exactamente o que diz minha mãe !
- Não sei o que diz a tua mãe - respondi -, mas é bem certo
que tudo o que ela te diz é para teu bem. Devias deixar a política.
Tu não és um político profissional... és um estudante... os
estudantes só tem que estudar.
- Estudar, doutorar-se e arranjar uma posição - murmurou
como se falasse consigo.
Não lhe respondi, mas aproximei a minha cara da sua e
ofereci-lhe os lábios. Beijamo-nos, depois separamo-nos; parecia
zangado por me ter beijado e olhava-me com ar hostil e
mortificado. Julguei tê-lo magoado por interromper com o meu
beijo a sua conversa sobre política e acrescentei depressa:
- De resto, faz o que quiseres, nada tenho com a tua vida...
Se quiseres, visto que estou aqui, podes dar-me o pacote...
escondê-lo-ei como combinamos.
- Não, não - respondeu. - Este não é o momento para favores
destes! Dada a tua amizade com Astárito... se ele os encontra...
- Porquê? Astárito é assim tão perigoso?
- É dos piores - respondeu-me com gravidade.
Senti não sei que tentação maliciosa de o arreliar e de lhe
espicaçar o amor-próprio, mas afectuosamente, sem maldade.
- No fundo - observei com doçura -, nunca tiveste a intenção
de me confiar esses pacotes!
- Então porque te falei neles?
- Ouve, não te zangues, mas penso que me falaste neles por
falar, para te tornares interessante, para me mostrares que fazias
realmente coisas perigosas e proibidas.
Zangou-se e vi que tinha tocado na sua corda sensível.
- Que disparate! - gritou. - És uma parva!
Depois, subitamente calmo, perguntou-me com ar
desconfiado :
- Porquê? Que te leva a pensar isso?
- Não sei - respondi sorrindo. - Toda a tua maneira de agir...
Tu talvez não dês por isso, mas não dás a impressão de fazer
essas coisas a sério.
Teve um gesto cômico que parecia dirigido contra ele:
- São, pelo contrário, coisas muito sérias! - disse-me.
Levantou-se, estendeu os braços magros, recitou com voz de
falsete, num tom enfático: “Armas! Sim, armas! E só eu cairei!” E
continuou a agitar os braços e as pernas como um fantoche.
Estava cômico.
- Que queres dizer? - perguntei.
- Nada - respondeu. - É um verso.
De uma maneira bizarra pareceu passar da excitação a um
brusco abatimento; tornou-se sombrio e meditativo, tornou a
sentar-se e disse-me num tom sincero:
- Pelo contrário, olha, faço as coisas tão a sério que espero
com toda a certeza ser preso... Então toda a gente verá bem se fiz
as coisas a sério!
Não respondi; acariciei-lhe o rosto, tomei-lho entre as mãos e
disse-lhe:
- Que lindos olhos tens!
Era verdade; os seus olhos eram realmente belos, grandes e
doces, com uma expressão intensa e ingênua. De novo se
perturbou e o queixo tremeu-lhe.
- Porque não vamos para o teu quarto? - murmurei.
- Nem pensar nisso. É contíguo ao quarto da viúva, que fica
lá todo o dia de porta aberta para vigiar o corredor.
- Então vamos a minha casa.
- É muito tarde... moras longe... Espero uns amigos de um
momento para o outro.
- Então aqui.
- Tu és doida!
- Confessa antes que tens medo - insisti. - Não tens medo de
fazer propaganda política, mas tens medo de ser surpreendido
nesta sala com a mulher que te ama. Que pode acontecer-te no
fim de contas? Que a viúva te despeça? Que sejas obrigado a
procurar outro quarto?
Sabia que excitando o seu amor-próprio podia obter-se tudo
dele. Com efeito, pareceu convencido. Devia sentir um desejo pelo
menos tão forte como o meu.
- Não passas de uma louca! - repetiu. - Talvez seja mais
aborrecido ser despedido daqui do que ser preso... Aliás onde nos
vamos encaixar?
- No chão - disse-lhe docemente com uma intensa ternura. -
Vem... eu mostro-te como se faz.
Parecia tão perturbado que não tinha já forças para falar.
Levantei-me do canapé e, sem pressa, estendi-me no chão. O
mosaico estava coberto por muitos tapetes; ao meio do quarto
havia a mesa com o licoreiro. Estendi-me sobre o tapete, a cabeça
e o busto debaixo da mesa, depois puxei Jaime pelo braço e
obriguei-o, contra a sua vontade, a estender-se sobre mim.
Deitei a cabeça para trás e fechei os olhos: o cheiro do pó e
do velho pêlo do tapete pareceu-me embriagador e bom como se
estivesse deitada num prado na Primavera e como se este cheiro
fosse das flores, das ervas, e não o da lã suja. Jaime estava em
cima da mim, e o seu peso fazia-me sentir a deliciosa dureza do
chão; estava contente por não ser ele a senti-la e que o meu corpo
lhe servisse de leito.
Depois beijou-me no pescoço, nas faces, e senti uma grande
alegria com isso porque ele nunca o fazia. Abri os olhos, tinha a
cara virada de lado, a face contra a lã áspera do tapete; vi para lá
do tapete uma vasta extensão de mosaico encerado, depois, lá ao
fundo, a parte inferior dos batentes da porta. Suspirei
profundamente e tornei a fechar os olhos. O primeiro a levantar-se
foi Jaime; eu fiquei um grande bocado como ele me deixara,
deitada de costas, um braço em cima da cara, as saias levantadas,
uma perna para a direita, outra para a esquerda. Sentia-me feliz e
como que aniquilada pela minha felicidade; sentia que poderia
ficar muito tempo assim, com esta agradável dureza do chão
debaixo das costas, este cheiro a tapete e a pó nas narinas. Talvez
mesmo tivesse dormido um bocadinho, um sono extasiado e leve;
julguei sonhar que estava realmente num prado florido, estendida
na erva, e que não era a mesa, mas um céu inundado de sol, que
tinha sobre a minha cabeça. Jaime julgou com certeza que me
sentia mal, porque de repente percebi que me sacudia e me dizia
em voz baixa:
- Mas que tens? Que fazes? Depressa! Levanta-te! Tirei o
braço da cara, saí lentamente de debaixo da mesa e pus-me de pé!
Estava feliz e sorri. Jaime, encostado à parede, curvado, ainda
ofegante, olhava-me em silêncio com uma expressão longínqua e
hostil.
- Nunca mais te quero ver! - acabou por dizer. Ao mesmo
tempo o seu corpo curvado deu um esticão, como um fantoche a
quem tivessem partido as molas.
Respondi sorrindo :
- Porquê? Amamo-nos... ver-nos-emos!
Aproximei-me e fiz-lhe uma festa na cara. Mas virou o rosto,
pálido e perturbado, repetindo:
- Nunca mais te quero ver!
Sabia que esta hostilidade era sobretudo devida ao desgosto
de ter cedido. Nunca se resignava a amar-me sem muita
resistência e muito remorso, como um homem que se resolve a
fazer uma coisa que não quer e sabe que não deve fazer. Mas
estava certa de que o seu mau humor não duraria muito tempo e
que o desejo que sentia por mim, por muito que o combatesse e o
detestasse, seria mais forte, por fim, do que a sua estranha
aspiração à castidade. Não liguei importância às suas palavras.
Lembrando-me da gravata que acabara de lhe comprar,
aproximei-me do móvel onde deixara a mala e as luvas e disse-lhe:
- Vá, não estejas zangado comigo... não voltarei aqui... Estás
contente?
Continuou calado. Ao mesmo tempo a porta abriu-se e, uma
velha criada de quarto mandou entrar dois homens. O primeiro
disse em voz baixa mas grossa:
- Viva, Jaime.
Compreendi que estes deviam ser os camaradas do partido e
olhei-os com curiosidade. O que falara era um autêntico colosso;
mais alto que Jaime, de ombros largos e com aspecto de boxeur
profissional. Era louro, de olhos azul-esverdeados, nariz adunco,
boca vermelha e informe. Mas a sua cara tinha uma expressão
franca que me agradou, com uma simpática mistura de timidez e
de simplicidade. Se bem que estivéssemos no Inverno, não trazia
sobretudo e apenas usava debaixo do casaco uma grossa camisola
branca de gola alta, de acordo com o seu aspecto desportivo.
Admiraram-me as suas mãos vermelhas e os fortes pulsos que
saíam das mangas. Devia ser extremamente novo, talvez tivesse a
mesma idade de Jaime. O segundo parecia, pelo contrário, um
quarentão, e em vez de ter ar de trabalhador ou de camponês
parecia um homem da burguesia. Não era alto e parecia
minúsculo ao lado do seu camarada. Era um homenzinho escuro,
com a cara sumida debaixo de uns grossos óculos. Tinha um nariz
largo, e debaixo desse nariz uma boca que ia de orelha a orelha.
As faces magras, escurecidas pela barba, o colarinho esfiado, o
fato deformado e com nódoas, dentro do qual o seu pequeno corpo
nadava, tudo nele tinha um ar de negligência agressiva e de
miséria. Para dizer a verdade o aspecto destes dois homens
espantava-me, porque Jaime andava sempre vestido com uma
certa elegância, sem requinte, aliás, e traía, por muitos indícios,
uma classe diferente da deles. Se não tivesse ouvido esta gente
dar os bons-dias a Jaime e ele corresponder ao cumprimento,
nunca teria imaginado que pudessem ser amigos. Instintivamente
senti logo simpatia pelo grande e antipatia pelo pequeno. O grande
perguntou com um sorriso aborrecido:
- Viemos talvez muito cedo?
- Não, não! - respondeu Jaime.
Parecia aturdido e não se recompunha facilmente.
- Vocês foram pontuais.
- A pontualidade é a virtude dos reis - disse-lhe o baixo,
esfregando as mãos.
E bruscamente, de uma maneira imprevista, como se esta
frase fosse extremamente cômica, desatou a rir. Depois, com a
mesma rapidez desagradável, tornou-se sério outra vez e eu
perguntava a mim própria se ele de facto rira ou não.
- Adriana - disse Jaime com esforço -, apresento-te dois
amigos meus: Túlio e Tomás.
Reparei que não pronunciou os apelidos e supus não serem
os seus verdadeiros nomes. Estendi-lhes a mão, sorrindo. O
grande deu-me um aperto de mão que me adormeceu os dedos, o
pequeno humedeceu-mos de suor com a sua gorda manápula. O
mais baixo disse-me: “Encantado!”, com uma ênfase que me
pareceu cômica. O alto disse: “Muito prazer!” com simplicidade e,
pareceu-me também, com simpatia. Notei que a sua voz tinha um
ligeiro sotaque.
Olhamo-nos um momento em silêncio.
- Se queres, Jaime, se tens que fazer - disse o grande -,
podemo-nos ir embora, voltaremos amanhã.
Vi Jaime estremecer e olhá-lo; compreendi que lhes ia dizer
que ficassem e convidar-me a sair. Agora conhecia-o o suficiente
para saber que a sua conduta não podia ser outra. Lembrei-me de
que me tinha entregue a ele havia poucos minutos; tinha ainda no
pescoço a sensação dos seus lábios ao beijarem-me; na carne, a
das suas mãos, que me tinham abraçado. O que se revoltou em
mim não foi a alma, sempre pronta a ceder e a resignar-se; foi o
meu corpo, indignado por ver tratar assim a sua beleza e a sua
dádiva. Dei um passo em frente e disse com violência:
- Sim, é melhor que se vão embora e que voltem amanhã...
Tenho ainda muitas coisas a dizer a Jaime.
O meu amante observou-me com ar desagradavelmente
surpreendido:
- Mas eu preciso de lhes falar.
- Falar-lhes-ás amanhã.
- Bem! - disse Tomás com ar bonacheirão. - Decidam-se. Se
querem que fiquemos, digam-no; se querem que nos vamos
embora...
- Por nós é o que nos apetece fazer! - acrescentou Túlio com
o mesmo riso desagradável.
Jaime ainda hesitou. De novo o meu corpo, mesmo contra
vontade, teve um impulso desagradável.
- Ouçam - disse levantando a voz. - Apenas há alguns
minutos Jaime e eu possuímo-nos aqui, no chão, sobre este
tapete... Vocês em seu lugar, que fariam? Mandavam-me embora?
Tive a impressão de que Jaime corava. De qualquer maneira
perdera a segurança, voltou-nos as costas e aproximou-se da
janela. Tomás olhou-me de soslaio, depois disse a sorrir :
- Compreendo. Nós retiramo-nos. Até à vista, Jaime; amanhã
à mesma hora.
A Túlio, pelo contrário, as minhas palavras pareceram tê-lo
perturbado. Fixou-me de boca aberta e os olhos franzidos. Com
certeza nunca ouvira uma mulher falar com esta franqueza, e mil
pensamentos sujos devem ter-lhe agitado o espírito. Mas o alto
chamou-o da porta:
- Túlio... Vamos !
Então, sem tirar da minha pessoa os olhos espantados,
recuou até à porta e saiu.
Esperei que desaparecessem para me aproximar de Jaime,
que ficara junto da janela, de costas voltadas, e passar-lhe um
braço à roda do pescoço:
- Aposto que neste momento não me podes ver! Voltou-se
lentamente e olhou-me. Havia cólera no seu rosto; mas ao olhar o
meu, que devia ter uma expressão doce, cheia de amor - até
mesmo inocente, à sua maneira -, o seu olhar mudou;
perguntou-me num tom resignado, quase triste :
- Agora estás contente? Tens o que querias.
- Sim, estou contente! - disse-lhe, beijando-o com força.
Deixou-se beijar, depois respondeu:
- Quais são as coisas que tens para me dizer?
- Nada - respondi. - Tenho desejos de ficar contigo esta
tarde.
- Mas eu - disse -, daqui a pouco vou jantar. Janto cá com a
viúva Medolaghi.
- Bem! Convida-me para jantar.
Olhou-me e o meu à-vontade fê-lo sorrir, mas
involuntariamente.
- Está bem - disse com condescendência. - Vou avisá-la...
mas como queres que te apresente?
- Como quiseres... como uma parente.
- Não... vou apresentar-te como minha noiva.. está bem?
Não ousei mostrar-lhe até que ponto a sua proposta me dava
prazer. Afectei um ar indiferente e respondi:
- Pelo que me diz respeito... noiva ou outra coisa, tanto faz...
contanto que fiquemos juntos.
- Espera, volto já.
Saiu. Fui a um canto da sala, arranjei-me, ajustei
rapidamente a combinação, toda torcida pelo amor e pela chegada
inopinada dos amigos de Jaime. Num espelho colocado na minha
frente vi a minha perna longa e perfeita calçada de seda e fez-me
um curioso efeito no meio de todos estes velhos móveis, com ar
silencioso e fechado. Lembrei-me do dia em que estivera com Gino
na casa da patroa dele e de onde trouxera a caixa de pó de arroz, e
não pude deixar de comparar esse momento da minha vida, agora
tão longínquo, com o instante presente. Naquela altura
experimentara uma impressão de vazio e de amargura e o desejo
de me vingar, senão de Gino, pelo menos do mundo que por
intermédio de Gino tão cruelmente me ofendera. Agora, pelo
contrário, sentia-me contente, livre, leve. Compreendi mais uma
vez que amava verdadeiramente Jaime e que pouco me importava
não ser amada por ele.
Sacudi o vestido, aproximei-me do espelho e arranjei o
cabelo. A porta abriu-se nas minhas costas e Jaime entrou.
Esperava que me abraçasse enquanto me olhava ao espelho.
Mas foi sentar-se no canapé, no fundo da sala, acendeu um
cigarro e disse:
- Pronto, já está. Vão pôr mais um talher. Daqui a pouco
vamos para a mesa.
Afastei-me do espelho e vim sentar-me ao seu lado, enfiei o
meu braço no dele e apertei-o contra mim.
- Estes dois homens - disse - são amigos políticos, não são?
- São.
- Não devem ser muito ricos.
- Porquê?
- A julgar pela maneira como estão enfarpelados.
- Tomás é filho de um dos nossos caseiros - disse-me. O
outro é um professor.
- Não simpatizo com ele.
- Com quem?
- Com o professor. É porco. Olhou-me de uma tal maneira
quando eu disse que acabara de ter estado contigo...
- Quer dizer que lhe agradaste.
Calamo-nos durante algum tempo. Depois eu disse:
- Tens vergonha de me apresentar como tua noiva. Se queres
vou-me embora.
Sabia que era a única maneira de lhe arrancar um gesto
afectuoso: picar o seu amor-próprio, acusando-o de se
envergonhar de mim. Com efeito, passou-me logo o braço em
torno da cintura e disse-me:
- Fui eu quem teve a ideia: porque havia de me envergonhar
de ti?
- Não sei... Vejo que estás mal disposto.
- Não estou mal disposto; estou aturdido - respondeu-me
num tom sério. - Foi por nos termos amado. Deixa recompor-me.
Reparei que ainda estava muito pálido e parecia fumar com
aborrecimento.
- Tens razão - disse-lhe. - Desculpa. Mas tu és sempre tão
frio, tão distante, que me fazes perder a cabeça.. Se não fosses
assim, há pouco não tinha insistido para ficar.
Apagou o cigarro e disse-me:
- Não é verdade que eu seja frio e distante.
- E no entanto...
- Agradas-me muito - continuou, olhando-me com atenção. -
E, com efeito, há um instante não te resisti como teria desejado.
Esta frase agradou-me e baixei os olhos sem pronunciar
palavra. Ele acrescentou:
- Contudo, suponho que no fundo tens razão... não se pode
chamar amor a isto.
Apertou-se-me o coração e não pude deixar de murmurar:
- Que é para ti o amor?
- Se eu te amasse - respondeu-me -, há pouco não teria
desejado que te fosses embora... e depois não me teria zangado
quando tu decidiste ficar.
- Zangaste-te?
- Sim... e agora conversaria contigo, estaria alegre,
desenvolto e brincalhão. Estaria a acariciar-te, a dizer-te
madrigais, a fazer projectos para o futuro... beijar-te-ia. Não é isto
o amor?
- Sim - disse eu em voz baixa. - Em todo o caso, são esses os
efeitos do amor.
Não falou durante algum tempo, depois disse sem nenhuma
vaidade, com uma seca humildade:
- Eu faço tudo da mesma maneira, sem nada sentir no
coração... sem amar coisa nenhuma, sabendo somente pelo
espírito como se fazem as coisas. Por vezes mesmo faço-as a frio,
exteriormente. Sou assim e creio que não posso mudar.
Fiz um grande esforço sobre mim e respondi-lhe:
- Amo-te como és; não te atormentes!
Depois beijei-o com grande amor. Quase no mesmo instante,
a porta abriu-se. Uma velha criada veio dizer que o jantar estava
servido.
Saímos da sala e passamos por um corredor para ir para a
casa de jantar. Lembro-me bem de todos os pormenores desta
casa e das pessoas, porque naquele momento estava sensível
como uma chapa fotográfica. Não tinha tanto a impressão de agir
como a de me ver agir com os olhos tristes e bem abertos. Tal é
talvez o efeito da revolta que nos inspira uma realidade na qual
sofremos e que desejaríamos diferente.
A viúva Medolaghi pareceu-me parecida, não sei porquê, com
o seu salão de ébano com incrustações de nácar. Era uma mulher
gorda, de estatura imponente, com peito volumoso e ancas
maciças. Toda vestida de seda preta, com um largo rosto desfeito,
de uma palidez nacarada, precisamente enquadrada por cabelos
pretos que pareciam pintados, com fundas olheiras em torno dos
olhos. Ficou de pé em frente de uma terrina decorada com flores e
servia a sopa com uma espécie de aborrecimento. O candeeiro de
suspensão descia sobre a mesa, iluminava-lhe o peito como um
grosso embrulho preto e luzidio e deixava-lhe a cara na sombra.
Nesta sombra os seus olhos rodeados de rugas pretas pareciam
esburacar a cara branca como uma mascarilha de Carnaval. A
mesa não era grande e tinha quatro pratos; um par de cada lado.
A filha da senhora estava já sentada no seu lugar e não se
levantou quando nos viu entrar.
- A menina senta-se ali - disse a viúva Medolaghi. - Como se
chama a menina?
- Adriana.
- Tem graça, como a minha filha! - disse negligentemente. -
Temos duas Adrianas!
Falava com ar distante sem nos olhar; era claro que a minha
presença nenhum prazer lhe dava. Como já disse, pintava-me
pouco e não oxigenava os cabelos, em suma, não traía o meu
“trabalho” por qualquer sinal exterior. Mas que eu era rapariga do
povo, simples e sem educação, isso via-se com certeza e eu
nenhum interesse tinha em o dissimular.
“Que estranha gente traz para a minha casa!”, devia pensar
a Sr.a Medolaghi. “Uma rapariga do povo!” Sentei-me e observei a
rapariga que tinha o meu nome. Era por metade do meu tamanho,
como da minha cabeça, como do meu peito... por metade em tudo.
Magra, pouco cabelo, uma cara oval e fina com grandes olhos
mortiços, uma expressão estupefacta. Olhei-a e vi-a baixar os
olhos. Pensei que fosse tímida e disse para quebrar o gelo:
- Sabe que acho curioso que outra pessoa tão diferente de
mim tenha o meu nome?
Tinha dito qualquer coisa, só para meter conversa e a minha
frase era parva. Mas, com grande surpresa, não recebi resposta. A
rapariga fixou em mim os seus olhos esbugalhados e depois, sem
dizer nada, curvou a cabeça sobre o prato e começou a comer.
Então bruscamente fez-se luz no meu espírito: ela não era tímida,
mas estava aterrada. E a causa do seu terror era eu. Estava
aterrada com a minha beleza, que brilhava no ar parado e
poeirento da sua casa como uma rosa numa teia de aranha, pela
minha exuberância impossível de passar despercebida mesmo
quando eu estava calada e quieta, e sobretudo pela minha origem
popular. Os ricos não gostam dos pobres, mas não os temem;
sabem mantê-los a distância com orgulho e suficiência. Mas o
pobre ao qual a sua origem ou a sua educação dão uma alma de
rico fica literalmente aterrado por ver o pobre em carne e osso,
como um homem predisposto a uma doença em frente de alguém
que está atacado desse mesmo mal. Ricas, as duas Medolaghi não
eram com certeza, porque senão não alugariam quartos. Como se
sentiam pobres sem o admitirem, a minha presença de pobre
desprovida de qualquer artifício parecia-lhes um insulto e um
perigo. Deus sabe as ideias que passaram pela cabeça da rapariga
quando lhe falei: “Olha aquela a dirigir-me a palavra; quer
tornar-se minha amiga e nunca mais me verei livre dela!” Com um
simples olhar compreendi o que se passou e decidi não abrir mais
a boca até ao fim do jantar.
Mas a mãe, que tinha mais à-vontade e talvez mais
curiosidade, não quis renunciar à conversa:
- Não sabia que estava noivo - disse ela a Jaime. - Há quanto
tempo?
Tinha uma voz afectada e parecia falar por detrás do seu
enorme peito como se estivesse ao abrigo de uma trincheira.
- Há um mês - disse Jaime.
Era verdade; não remontava a mais de um mês o nosso
conhecimento.
- A menina é romana?
- Ultra-romana. Sete gerações.
- E quando se casam?
- Depressa. Logo que a casa para onde vamos morar esteja
livre.
- Ah! Já têm casa?
- Sim... uma casinha com jardim... um pátio... muito bonita.
O que ele descrevia com aquele tom sardônico era a moradia
que eu lhe havia mostrado, ao pé da minha casa, na avenida.
- Se esperarmos por aquela casa - disse eu com esforço -,
receio nunca mais casarmos!
- Ora, histórias! - disse Jaime, que parecia recomposto, até
mesmo com o rosto mais corado. - Sabes bem que estará livre no
dia marcado.
Não gosto de intrujices. Por isso nada mais disse. A criada
mudou os pratos.
- As moradias têm muitas comodidades, Sr. Diodatti - disse
a Sr.a Medolaghi -, mas não são práticas; exigem muito criados.
- Porquê? - perguntou Jaime. - Não será necessário; a
Adriana será a cozinheira, a criada de quarto, a governanta... Não
é, Adriana?
A Sr.a Medolaghi mediu-me com o olhar e declarou:
- Para dizer a verdade uma senhora tem outras coisas para
fazer que não seja ocupar-se da cozinha, limpar os quartos e fazer
as camas... mas se a menina Adriana está habituada a fazê-lo...
então nesse caso...
Não acabou a frase e voltou os olhos para o prato que a
criada lhe apresentava.
- Não sabíamos que vinha; senão teríamos acrescentado dois
outros ovos.
Estava ofendida com Jaime e com a Sr.a Medolaghi. Quase
desejava responder-lhe: “Não, o que eu estou habituada é a ser
prostituta.” Jaime, radiante, servia-se e servia-me generosamente
de vinho. (Os olhos da Sr.a Medolaghi seguiam a garrafa com
inquietação.) Depois continuou:
- Mas a Adriana não é uma senhora. Ela nunca será uma
senhora. A Adriana fez sempre as camas e arrumou os quartos. A
Adriana é uma rapariga do povo.
A Sr.a Medolaghi olhou-me como se me visse pela primeira
vez, depois confirmou com uma delicadeza injuriosa:
- Foi justamente o que eu disse... se ela está habituada...
A filha inclinou a cabeça sobre o prato.
- Sim - continuou Jaime. - Ela está habituada e não serei eu
com certeza que lhe farei perder hábitos tão aproveitáveis. Adriana
é filha de uma camiseira; e ela também é camiseira... não é,
Adriana?
Estendeu o braço sobre a mesa, agarrou-me a mão e
virou-ma de costas para cima:
- Ela pinta as unhas, é verdade, mas a sua mão é a de uma
operária; grande, forte e simples. Como os cabelos... ela
ondula-os, mas de facto são rebeldes e duros.
Largou-me a mão e puxou-me os cabelos, como se faz à
crina dos animais.
- Em suma, Adriana é em tudo e por tudo uma digna
representante do nosso bom povo vigoroso e são.
Sentia-se na sua voz um desafio sarcástico de que ninguém
desconfiou. A filha olhava através da minha pessoa como se eu
fosse transparente e ela quisesse ver um objecto que estivesse
atrás de mim. A mãe ordenou à criada que mudasse os pratos e
voltou-se para Jaime perguntando-lhe de uma maneira
completamente inesperada:
- Então, Sr. Diodatti, chegou a ver a tal comédia? Esta
maneira tão desastrada de mudar de conversa quase me deu
vontade de rir. Jaime não pareceu desconcertado e declarou:
- Nem me fale nisso, uma verdadeira idiotice!
- Nós vamos amanhã. Diz-se que os actores são excelentes.
Jaime respondeu que, depois de tudo bem considerado, os
actores não eram tão bons como os jornais diziam. A senhora
admirou-se de que os jornais mentissem. O meu amante
respondeu, com calma, que os jornais eram uma pura e simples
mentira da primeira à última linha. A partir desse momento a
conversa decorreu sempre sobre esses assuntos. Logo que um
destes temas convencionais era abordado, a Sr.a Medolaghi
encetava outro com uma precipitação mal dissimulada. Jaime,
que parecia divertir-se, entrava no jogo e dava a réplica sem se
fazer rogado. Falavam de actores, depois da vida nocturna de
Roma, de cafés, de cinemas, de teatros, de hotéis e de outras
coisas parecidas. Pareciam dois jogadores de pingue-pongue
atirando constantemente a mesma bola e fazendo por não a deixar
cair. Mas enquanto Jaime o fazia pelo amor à comédia, tão
desenvolvida nele, o que levava a Sr.a Medolaghi a fazê-lo era o
medo e o aborrecimento que eu lhe inspirava, eu e tudo o que se
me pudesse ligar. Esta conversa de pura formalidade, só
convencional, parecia significar: “É a minha maneira de lhe dizer
que é indecente casar com uma rapariga do povo e também
indecente trazê-la a casa da Sr.a Medolaghi, viúva de um alto
funcionário.” A filha não piava. Percebia-se que estava aterrada e
desejava claramente que a refeição terminasse e que eu me fosse
embora o mais depressa possível. Durante algum tempo diverti-me
a seguir a conversa. Depois fatiguei-me desse jogo e deixei a
tristeza que me enchia o coração tomar inteiramente conta de
mim. Compreendia com amarga clareza que Jaime não me tinha
amor, e apesar de tudo sofria com isso. Depois reparei que ele se
servira das minhas confidências para inventar a comédia do nosso
noivado; não chegava a compreender se o fizera na intenção de
troçar de mim ou delas. Talvez de mim e delas ao mesmo tempo,
mas seguramente dele próprio, como se no fundo do seu coração
acalentasse, como eu, o vivo desejo de uma vida normal e decente
que, por motivos muito diferentes dos meus, pensava nunca poder
vir a ter. Eu compreendia perfeitamente que os elogios que me
fizera como filha do povo nada tinham de envaidecedor, quer para
mim, quer para o povo; que a sua intenção fora tornar-se
desagradável às duas mulheres e nada mais. Estas observações
faziam-me reconhecer a verdade do que ele dissera pouco antes:
que o seu coração não era susceptível de amar. Nunca como então
me foi dado compreender que qualquer coisa com amor é tudo e
nada sem amor é qualquer coisa. O amor ou existe ou não. Se
existe, ama-se não somente alguém, mas toda a gente; era o que
me acontecia. Se não existe, nada se ama, nem ninguém; era o
seu caso. E a ausência de amor conduz fatalmente à incapacidade
e à impotência.
A mesa fora entretanto levantada. Em cima da toalha cheia
de migalhas, no clarão arredondado da luz que caía do candeeiro,
havia quatro pequenas chávenas de café, um cinzeiro de barro em
forma de tulipa e uma grande mão branca, cheia de manchas
escuras, com os dedos carregados de grossos anéis fora de moda,
segurando um cigarro aceso: a mão da Sr.a Medolaghi. De repente
senti uma grande intolerância tomar conta de mim e levantei-me:
- Tenho muita pena, Jaime - disse, exagerando
propositadamente a minha pronúncia popular -, mas tenho que
fazer... Preciso de me retirar...
Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se também. Eu
larguei umas “boas-noites” sonoras, fiz uma leve reverência, à
qual a Sr.a Medolaghi respondeu com altivez distante e que a filha
ignorou por completo, e saí. Na antecâmara disse a Jaime:
- Palpita-me que logo à noite a Sr.a Medolaghi vai pedir-te
que procures quarto noutro sitio...
Ele encolheu os ombros:
- Não me parece - respondeu. - Eu sou dos que pagam bem e
com pontualidade.
- Vou-me embora - disse eu. - Este jantar pôs-me triste.
- Porquê?
- Porque me convenci, por fim, de que tu és realmente
incapaz de amar.
Disse isto com tristeza, sem olhar para ele. Depois ergui os
olhos e tive a impressão de que ele próprio estava mortificado.
Talvez fosse apenas efeito da pouca luz do vestíbulo sombrio, mas
senti-me possuída por um grande remorso.
- Ficaste aborrecido? - perguntei.
- Não - respondeu ele. - No fundo o que tu disseste é
verdade.
A minha alma inundou-se de afeição. Beijei-o
impetuosamente e disse-lhe:
- Não é verdade... disse-to para te arreliar... e depois isso não
impede que te ame... Olha... Trouxe-te esta gravata.
Abri a mala, tirei a gravata e estendi-lha. Olhou-a e
perguntou-me:
- Roubaste-a?
Esta brincadeira nele valia talvez mais do que um caloroso
agradecimento: mas só o compreendi mais tarde. Naquele
momento senti o coração apertado. Os olhos encheram-se-me de
lágrimas e balbuciei:
- Não, comprei-a... na loja lá em baixo.
Reparou na minha humilhação e beijou-me dizendo:
- Pateta! Estava a brincar. De resto dar-me-ia o mesmo
prazer se a tivesses roubado. Talvez até ainda mais...
- Espera, que eu ponho-ta! - disse-lhe, um pouco mais
consolada.
Levantou o queixo, tirei-lhe a gravata velha, pus-lhe a nova e
dei-lhe o nó.
- Esta gravata velha e toda esfiada vou levá-la! - disse-lhe. -
Não a deves pôr mais.
Na realidade o que eu queria era uma recordação sua,
qualquer coisa que ele tivesse usado.
- Então voltaremos a ver-nos em breve? - disse.
- Quando?
- Amanhã depois de jantar.
- Está bem!
Agarrei-lhe na mão e fiz menção de lha beijar. Ele baixou o
braço, mas não pôde impedir os meus lábios de aflorarem os seus
dedos. Rapidamente, sem me voltar, desci a escada.
7
Depois desse dia continuei a minha vida habitual. Amava
realmente Jaime e mais de uma vez senti desejo de abandonar
uma vida tão oposta ao verdadeiro amor.
Mas o amor não mudara a minha situação. Estava sempre
na mesma, quer dizer, sem dinheiro e na impossibilidade de o
ganhar de outra maneira. Nada queria pedir a Jaime, que de resto
estava limitado à pequena pensão que a família lhe enviava. Devo
mesmo dizer que eu sentia continuamente o desejo de pagar
sempre em todos os lugares a que íamos juntos, cafés ou
restaurantes. Ele recusava sistematicamente as minhas ofertas, o
que me dava sempre desilusão e amargura.
Quando já não tinha dinheiro levava-me para os jardins
públicos, onde conversávamos e olhávamos os transeuntes,
sentados num banco, como fazem os pobres. Um dia disse-lhe:
- Mesmo que não tenhas dinheiro podemos ir na mesma ao
café; pagarei eu; que mal é que tem isso?
- Não é possível.
- Mas porquê? Queria ir beber alguma coisa a um café.
- Então vai sozinha.
Na verdade não era tanto ir ao café o que me interessava,
como pagar-lhe a ele. Desejava fazê-lo de uma maneira tenaz e
lamentável. Mais ainda do que pagar-lhe desejaria dar-lhe
directamente dinheiro, todo o dinheiro que ganhasse à medida que
o fosse recebendo dos meus amantes de passagem.
Parecia-me que para uma pessoa como eu seria a única
maneira de lhe provar o meu amor. Pensava que sustentando-no
ligava a mim por um laço mais forte que o da afeição. De uma
outra vez disse-lhe:
- Dava-me imenso prazer dar-te dinheiro... E tenho a certeza
de que também a ti te daria prazer recebê-lo.
Desatou a rir e respondeu-me:
- As nossas relações, pelo menos no que me diz respeito, não
são fundamentadas no prazer.
- Então em quê?
Hesitou, depois retorquiu:
- Na tua vontade de me amar e na minha fraqueza perante
essa vontade... mas não julgues que a minha fraqueza não tem
limites.
- Que queres dizer?
- É muito simples - respondeu-me tranquilamente. - Já lhe
expliquei muitas vezes. Estamos juntos porque tu o quiseste. Eu,
pelo contrário, não o quis, e agora ainda, em teoria pelo menos,
não o quero.
- Está bem, está bem - interrompi-o. - Não falemos mais do
nosso amor. Não tenho razão para te sustentar!
Muitas vezes, pensando no seu carácter, acabei por chegar à
conclusão dolorosa de que ele não me tinha amor algum, e que eu
era para ele objecto de não sei qual experiência. Realmente só se
preocupava consigo próprio, mas nestes limites o seu carácter
revelava-se extraordinariamente complicado.
Era, como me parecia ter compreendido, filho de uma família
provinciana abastada; um rapaz delicado, inteligente, culto, bem
educado, sério. A sua família, depois do pouco que pude
depreender, porque ele não gostava de falar nela, era exactamente
a família na qual os meus vãos sonhos de regularidade me tinham
feito sonhar para mim.
A família tradicional; um pai médico, uma mãe ainda nova,
que vivia muito para a casa, para o seu marido e para os seus
filhos, três irmãs mais novas e um irmão mais velho. É verdade
que o pai, uma autoridade local, era um faz-tudo, a mãe uma
provinciana, as irmãs raparigas talvez frívolas e o irmão mais
velho um licencioso do gênero de João Carlos. Mas estes defeitos,
todos somados, eram suportáveis, e para mim, que nascera num
meio e numa situação tão diferentes, nem mesmo eram defeitos.
De resto esta família era muito unida, e todos, irmãs, irmão e
pais, gostavam muito de Jaime.
Eu achava que ele era muito afortunado por ter nascido
numa família assim. Ele, pelo contrário, nutria por ela uma
aversão, uma antipatia e um aborrecimento que eram realmente
incompreensíveis para mim. Parecia sentir a mesma antipatia, a
mesma aversão e o mesmo aborrecimento por si próprio, pelo que
fazia, pelo que era. Mas este ódio por ele não era mais do que um
reflexo do ódio que sentia pela família.
Por outras palavras, parecia odiar na sua pessoa tudo o que
conservava da sua família ou, de uma maneira ou de outra,
recebera a influência da família. Acabei de dizer que era bem
educado, culto, inteligente, delicado e sério. Desprezava a sua boa
educação, a sua inteligência, a sua cultura, a sua delicadeza, a
sua seriedade unicamente porque supunha que as devia ao seu
meio ou à família na qual nascera e fora criado.
- Mas, em suma - disse-lhe uma vez -, que querias tu ser?
Tudo isso são boas qualidade... devias agradecer ao Céu
possuí-las.
- Ora! - respondeu, depreciativo. - Para o que me serve! Por
mim teria preferido ser como Sonzogne.
A história de Sonzogne tinha-o tocado muito, não sei porque.
- Que horror! - gritei. - É um monstro! Tu querias ser um
monstro?
- Naturalmente que não queria ser em tudo como Sonzogne -
explicou com calma. - Se falo em Sonzogne é só para tornar mais
clara a minha maneira de pensar. Seja ele como for, Sonzogne é
feito para viver neste mundo e eu não.
- Queres saber - disse-lhe eu então - o que gostaria eu de
ser?
- Vejamos.
- Quereria ser - disse-lhe lentamente saboreando cada uma
das minhas palavras como se elas fossem um sonho há muito
acariciado - exactamente o que tu és e o que tanto te desgosta
ser... Gostaria de ter nascido de uma família rica como a tua, que
me tivesse dado uma boa educação... gostaria de viver numa casa
asseada e bonita como a tua... Gostaria de ter tido, como tu, bons
professores, preceptores estrangeiros... Gostaria de, como tu,
passar o Verão na praia ou na montanha.. ter bonitas roupas, ser
convidada, receber... E depois gostaria de me casar com alguém
que me amasse, um bom rapaz que trabalhasse e tivesse tido
também ele uma vida abastada... Gostaria de viver com ele e
dar-lhe filhos.
Falávamos estendidos na cama. De repente saltou para cima
de mim e começou a apertar-me e a beliscar-me, dizendo muitas
vezes :
- Hip! Hip! Hurra! Em suma, tu querias ser como a Sr.a
Lobianco?
- Quem é a Sr.a Lobianco? - perguntei-lhe, um pouco
magoada e desconcertada.
- Uma pavorosa ave de rapina que me convida com
frequência para as suas recepções com a esperança de que eu me
apaixone por uma das suas horríveis filhas e case com ela, porque
eu sou aquilo a que vulgarmente se chama um bom partido.
- Mas eu não quereria ser de modo algum como a Sr.a
Lobianco.
- Tu serias forçosamente como ela se tivesses tido todas as
coisas que disseste! Ela também, a Sr.a Lobianco, nasceu de uma
família rica, que lhe deu uma excelente educação, com bons
professores e preceptores estrangeiros, que a mandaram para o
liceu e até mesmo, creio eu, para a Universidade. Ela também
cresceu numa casa bonita e asseada... Ia para a praia ou para a
montanha quando chegava o Verão... Teve bonitos vestidos, foi
convidada e fez convites... muitos convites e muitas recepções...
Também ela se casou com um bom homem, o engenheiro
Lobianco, que é um trabalhador e que “cavou” bastante dinheiro
para a casa... Enfim, ela teve desse marido, ao qual vou até ao
ponto de acreditar que foi fiel, um bom número de filhos, três
raparigas e um rapaz precisamente... E é nem mais nem menos
como acabo de te dizer, uma pavorosa ave de rapina!
- Mas talvez seja uma ave de rapina... independentemente do
seu meio.
- Não, ela é assim como o são as suas amigas e as amigas
das suas amigas.
- É possível - disse-lhe eu experimentando desembaraçar-me
do seu sarcástico abraço -, cada um tem o seu carácter. É possível
que a Sr.a Lobianco seja como dizes... mas eu tenho a certeza de
que na sua situação teria sido muito, muito superior ao que sou.
- Não serias menos horrível do que a Sr.a Lobianco.
- Porquê?
- Porque sim!
- Vejamos!... A tua família também te parece horrível?
- Sem dúvida nenhuma! Absolutamente horrível!
- Então tu também és horrível?
- Sou-o dentro de todos os elementos que me ficaram dá
minha família.
- Mas porquê? Diz-me porquê.
- Porque sim!
- Isso não é uma resposta.
- É a resposta que te daria a Sr.a Lobianco se lhe fizesses
certas perguntas.
- Que perguntas?
- É inútil que tas diga - respondeu em tom leve. Para as
perguntas que nos podem embaraçar um bom “porque sim”
pronunciado com convicção fecha a boca ao mais curioso. “Porque
sim...” Sem razão nenhuma... “Porque sim!”
- Não compreendo.
- Que importa que nós nos não compreendamos se nos
amamos mesmo assim, não é? - concluiu beijando-me com a sua
habitual ironia, isenta de amor.
E foi assim que acabou a discussão. Da mesma maneira que
ele nunca se abandonava por completo a um sentimento,
parecendo guardar sempre uma parte para ele, talvez a mais
importante, de modo a tirar todo o valor aos seus raros gestos de
afecto, igualmente ele nunca abria inteiramente o seu espírito e de
cada vez que eu julgava chegar ao centro da sua inteligência, de
uma brincadeira, de um gesto cômico, repudiava-me e furtava-se
à minha atenção. Era fugidio em todo o sentido da palavra.
Tratava-me como a um ser inferior, uma espécie de objecto de
estudo e de experiência. Mas talvez mesmo por isso eu o amava de
uma maneira tão submissa e indefesa. Aliás, parecia-me por vezes
que não odiava somente a família e o seu meio, mas realmente
todos os homens. Disse-me um dia, não sei já a que propósito:
- Os ricos são horríveis... mas, se bem que por motivos
diferentes, os pobres não valem por certo muito mais!
- Seria mais fácil - disse-lhe eu - dizeres francamente que
detestas todos os homens.
Pôs-se a rir e respondeu:
- Quando não estou no meio deles não os detesto...
detesto-os tão pouco que acredito na possibilidade de eles
melhorarem. Se não acreditasse não me ocuparia de política. Mas
quando me encontro com eles, fazem-me horror... Realmente os
homens nada valem - acrescentou de repente com tristeza.
- Nós também somos homens - disse-lhe -, por conseguinte
nada valemos. Não temos, portanto, o direito de julgar.
Riu-se de novo e acrescentou:
- Não os julgo, sinto-os, ou, melhor, farejo-os como um cão o
rasto de uma perdiz ou de uma lebre... O cão julga? Não... Eu
farejo-os como maus, estúpidos, egoístas, mesquinhos, vulgares,
falsos, ignóbeis, cheios de ideias sujas... um sentimento... Não se
pode abolir um sentimento, pois não?
Não sabia que responder. Limitei-me a observar:
- Eu não tenho esse sentimento.
De uma outra vez declarou-me:
- De resto, não sei se os homens são bons ou maus, mas são
com certeza inúteis, supérfluos!
- Que queres dizer?
- Quero dizer que podia muito bem passar-se sem a
humanidade inteira... Ela não é mais que uma ruim excrescência
sobre a face do mundo... uma verruga. O mundo seria muito mais
belo sem os homens, as suas cidades, as suas ruas, os seus
portos, os seus arranjinhos. Pensa em como o mundo seria belo se
só existisse o céu, o mar, as árvores, a terra, os animais.
Não pude deixar de rir e gritei:
- Que ideias esquisitas tu tens!
- A humanidade - continuou ele - é uma coisa sem pés nem
cabeça e portanto negativa... A história da humanidade não é
mais que um longo bocejo de aborrecimento... Que falta faz? Por
mim passaria bem sem ela.
- Mas também tu fazes parte desta humanidade. Então
gostarias de não existir?
- Eu sobretudo!
Uma outra das suas ideias fixas, ainda mais singular porque
não tentava pô-la em prática e não servia senão para estragar-lhe
o prazer, era o da castidade. Elogiava-a sempre, mas
principalmente como se fosse para me arreliar, logo a seguir a
termo-nos amado. Dizia que o amor era a forma mais fácil e idiota
de nos livrarmos de todos os problemas, resolvendo-os às
escondidas, sem que ninguém desse por isso, como se manda sair
um hóspede embaraçoso pela porta de serviço.
- Em seguida - declarava -, feita a operação, vai-se passear
com a cúmplice, mulher ou amante, maravilhosamente dispostos
a aceitar o mundo tal qual é... nem que fosse o pior mundo
possível.
- Não te compreendo - disse-lhe.
- No entanto - respondeu-me - isto pelo menos devias
compreender; não é a tua especialidade?
Senti-me ferida e repliquei-lhe:
- A minha especialidade, como tu dizes, é amar-te. Mas se tu
queres, nunca mais teremos relações e eu amar-te-ei da mesma
maneira.
Riu-se e perguntou-me:
- Tens a certeza?
Nesse dia a discussão ficou por aqui, mas repetiu-se noutras
ocasiões. Acabei por não ligar importância: aceitei a coisa como de
resto os outros traços do seu carácter tão cheio de contradições.
Pelo que dizia respeito à política, pelo contrário, era assunto
em que não tocava. Ainda agora ignorava qual o seu fim, quais as
suas ideias, a que partido pertencia. Esta ignorância tinha origem
no segredo em que ele envolvia este aspecto da sua vida, no facto
de eu nada perceber de política e de, quer por timidez quer por
ignorância, não lhe pedir explicações que me poderiam esclarecer.
Fazia mal; Deus sabe como me arrependi mais tarde! Mas
parecia-me naquela altura extremamente cômodo não me
misturar em coisas que supunha não me dizerem respeito e não
pensar senão no amor. Em suma, portava-me como muitas outras
mulheres, esposas ou amantes, que ignoram como o homem que
lhes pertence arranja o dinheiro que lhes dá. Acontecia-me muitas
vezes encontrar os seus dois camaradas, que ele via quase todos
os dias. Mas eles não falavam de política na minha presença;
gracejavam ou conversavam sobre coisas sem importância.
No entanto não conseguia banir da minha alma uma
apreensão constante, porque compreendia que tramar
conspirações contra o governo era perigoso. Receava, sobretudo,
que Jaime se entregasse a qualquer acto de violência; na minha
ignorância, não conseguia separar o tema da conspiração da ideia
de armas e de sangue. A propósito disto, lembro-me bem de um
facto que demonstra que, mesmo obscuramente, eu sentia o dever
de intervir para desviar os perigos que o ameaçavam. Sabia que é
proibido usar armas e que a transgressão era o suficiente para o
meter na cadeia. Por outro lado depressa se perde a cabeça em
certos momentos; o emprego de armas tem muitas vezes
comprometido pessoas que se teriam salvo sem elas. Por todos
estes motivos pensava que o revólver de que Jaime se sentia tão
orgulhoso, longe de lhe ser necessário, como ele pretendia, seria
extremamente perigoso no caso de ele ser obrigado a fazer uso
dele, ou até se, mais simplesmente, lho encontrassem. Mas não
ousei falar-lhe nisso; de resto sabia que seria inútil. Resolvi por
isso agir às escondidas. Ele uma vez tinha-me explicado como a
arma funcionava. Um dia, enquanto dormia, tirei-lhe o revólver do
bolso das calças, abri-o e tirei-lhe as balas; depois tornei a pô-lo
no bolso. Escondi as balas numa gaveta, debaixo da roupa. Fiz
tudo isto num abrir e fechar de olhos e voltei a deitar-me a seu
lado. Dois dias mais tarde meti as balas na mala e fui atirá-las ao
Tibre.
No decurso de um destes dias Astárito procurou-me. Quase
o esquecera; quanto ao caso da criada de quarto achava que tinha
cumprido o meu dever e não queria mais pensar nisso. Astárito
informou-me de que o padre tinha devolvido a caixa, que, a
conselho do próprio comissário, a patroa de Gino tinha retirado a
queixa e que a criada de quarto, reconhecida inocente, fora
libertada. Devo reconhecer que esta boa noticia me agradou
sobretudo porque me dissipou a impressão de mau agouro que me
tinha deixado a minha última confissão. Agora já não pensava na
criada, já em liberdade, mas em Jaime, e dizia a mim própria que,
visto a denúncia que eu receava não ter sido feita, nada mais
tinha a temer, nem por ele nem por mim. Na minha alegria não
pude deixar de beijar Astárito.
- Tinhas assim tanto interesse em que esta mulher saísse da
prisão? - observou ele com uma careta de desconfiança.
- Para ti - disse-lhe hipocritamente -, que mandas todos os
dias inocentes para a cadeia, pode parecer-te estranho! Mas para
mim era um verdadeiro tormento.
- Ninguém mando para a cadeia - tartamudeou ele. Cumpro
apenas o meu dever.
- Mas tu viste o padre? - perguntei-lhe.
- Não, não o vi... telefonei... disseram-me que efectivamente
a caixa de pó de arroz tinha sido devolvida por um padre, que a
recebera sob o segredo da confissão... Então ordenei que
libertassem a mulher.
Fiquei pensativa sem bem saber porquê. Depois disse-lhe:
- Amas-me realmente?
A minha pergunta perturbou-o logo. Beijou-me com força e
respondeu-me balbuciante:
- Porque mo perguntas? Já o deves ter percebido.
Queria beijar-me. Defendi-me e respondi-lhe:
- Pergunto-te porque queria saber se me amarás sempre... e
se me ajudarás mais vezes, se te pedir.
- Sempre - disse-me tremendo dos pés à cabeça. Depois
aproximou a cara da minha: - Tu serás gentil comigo?
Agora que Jaime voltara, eu estava firmemente decidida a
nunca mais ter relações com Astárito. Era diferente dos meus
amantes passageiros; se bem que não o amasse, e por vezes
mesmo sentisse por ele uma real aversão, justamente por isso
talvez parecia-me que entregar-me a ele seria enganar Jaime.
Estive tentada a revelar-lhe a verdade e a declarar-lhe: “Não,
nunca mais serei gentil para contigo!”, mas bruscamente
retive-me e mudei de ideias. Pensava que ele era um trunfo
importante, que a todo o momento Jaime podia ser preso e que se
quisesse a intervenção de Astárito para o conseguir libertar não o
devia melindrar. Resignei-me e disse num sopro:
- Sim, serei amável contigo.
- Diz-me - perguntou já mais alegre. - Gostas de mim um
bocadinho?
- Não, amar-te não te amo! - disse-lhe com decisão. Isso já tu
sabes; já to disse muitas vezes.
- Nunca me amarás?
- Creio bem que não.
- Mas porquê?
- Não há porquê.
- Tu gostas de outro.
- Isso a ti não te pode interessar.
- Mas eu preciso do teu amor! - disse-me desesperado,
olhando-me com os seus olhos biliosos. - Porquê... porque não
queres gostar de mim um bocadinho?
Nesse dia permiti que ficasse comigo até mais tarde. Não
podia conformar-se com a minha impossibilidade de o amar e não
parecia convencido de que lhe dizia a verdade.
- Mas eu não sou pior do que os outros - repetia. Porque não
me podes amar tanto como a outro?
Fazia-me pena; como me interrogava com insistência e se
esforçava por encontrar nas minhas palavras um pretexto para
qualquer esperança, sentia quase a tentação de lhe mentir para
lhe deixar esta ilusão que ele tanto ambicionava. Reparei que
nessa noite estava mais melancólico e mais desencorajado do que
habitualmente. Parecia querer suscitar em mim, por gestos e por
atitudes, o amor que o meu coração lhe recusava. Lembro-me de
que a certa altura mandou-me sentar, toda nua, num sofá.
Ajoelhou-se na minha frente, meteu a cabeça entre os meus
joelhos e apertou a cara contra a minha barriga, ficando muito
tempo imóvel, enquanto eu lhe devia repassar a mão pela cabeça
numa carícia incessante e leve. Não era a primeira vez que me
obrigava a esta espécie de pantomima de amor; mas nesse dia
pareceu-me mais desesperado que de costume; apoiava com força
a cara no meu colo como se quisesse lá entrar e gemia. Nestes
momentos não me fazia o efeito de um amante, mas de uma
criança procurando a escuridão e o calor das entranhas
maternais. Pensava que muitos homens desejariam não ter
nascido, e que esse gesto, talvez inconsciente, exprimia o obscuro
desejo de voltar ao ventre do qual tão dolorosamente tinham
brotado para a luz.
Nessa noite essa sua atitude levou tanto tempo que
adormeci, com a cabeça descaída para trás e a mão pousada na
sua cabeça. Dormitei não sei quanto tempo. A certa altura julguei
acordar e vi Astárito sentado na minha frente todo vestido e
olhando-me com os seus olhos biliosos e melancólicos. Mas talvez
tivesse sido um sonho, porque depois acordei completamente e vi
que Astárito já lá não estava. Tinha deixado no sítio onde pousara
a cabeça a sua soma habitual de dinheiro.
Em seguida passaram os quinze dias que eu considero os
mais felizes da minha vida.
Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas
relações não tivessem mudado, contentava-me com esta espécie
de hábito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo.
Tacitamente estava bem claro entre nós que ele não me tinha
amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a
castidade ao amor. Também estava tacitamente estabelecido que
eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferença e que
de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante
como aquele que ausência de amor. Mas eu não era feita como
Astárito; não me resignando a não ser amada, não encontrava
menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coração não
perdera a esperança de ser amada por Jaime à força de
submissão, de paciência e de afeição. Mas não acalentava esta
aspiração; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente
amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas.
Entretanto, como quem não quer a coisa, procurei penetrar
na sua vida. Já que não podia entrar pela porta principal procurei
esgueirar-me pela de serviço. A despeito deste ódio pelos homens
que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por
uma curiosa contradição, um impulso indomável para pregar e
esforçar-se por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase
sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de
aborrecimento não era menos sincero quando o fazia.
Foi nesta altura que ele pareceu apaixonar-se pelo que ele
chamava, não sem ironia, a minha educação. Como já disse, eu
procurava prendê-lo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo.
Esta experiência, no entanto, acabou quase de repente de uma
maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a
seguir, trazia-me livros seus e depois de me explicar
abreviadamente o assunto de que tratavam lia-me um trecho ou
outro. Lia bem, com grande variedade de inflexões, segundo o
assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma
grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas
que, a despeito dos meus esforços, não chegava a compreender.
Bem depressa deixei de o ouvir, contentando-me em observar,
com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressões
que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras
libertava-se, sem ironia, nem receio, como alguém que está no seu
elemento e já não teme mostrar-se sincero. Aquilo magoava-me
porque até então julgava que era o amor, e não a leitura, a
situação mais favorável à expansão da alma humana. Para Jaime,
parecia bem ser o contrário. Nunca lhe vi no rosto uma expressão
de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos
raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava
a voz com curiosas entoações cavernosas ou a baixava num tom
reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via
então desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e
cômico que nunca o abandonava até mesmo nos momentos mais
sérios e que dava a impressão de que ele estava sempre a
representar um papel. Muitas vezes chegava a comover-se até às
lágrimas.
Fechava o livro e perguntava-me num tom brusco:
- Gostas disto?
Geralmente dizia que gostava sem especificar porquê; não o
poderia fazer, porque desde o princípio abandonei toda a tentativa
de compreender. Mas um dia insistiu e perguntou-me:
- Diz-me porque gostas... explica-me!
- Para dizer a verdade - respondi depois de uma hesitação -
nada te posso explicar, porque nada percebi.
- Porque não me disseste?
- Nada compreendo... ou quase nada do que me lês.
- E deixas-me ler sem mo dizer?
Saltava, batia com os pés no chão, furioso:
- Diabo! Mas tu és uma idiota, uma estúpida!... E eu a
esforçar-me. És uma cretina!
Fez menção de me atirar com o livro à cabeça, mas
conteve-se a tempo e continuou a injuriar-me durante um bom
bocado. Deixei passar a fúria e observei-lhe:
- Dizes que me queres educar... mas a primeira coisa a fazer
era agir de maneira a que eu não precisasse de ganhar a vida da
maneira que sabes. Para engatar homens não é verdadeiramente
necessário ler poesias ou reflexões sobre a moral. Podia muito
bem não saber ler nem escrever; davam-mo o mesmo dinheiro.
Respondeu num tom sarcástico:
- Querias uma bonita casa, um marido, filhos, vestidos, um
automóvel, não é? A desgraça é que as Sr.as Lobianco não lêem.
Os motivos são diferentes dos teus, mas não menos justificáveis,
ao que parece.
- Não sei o que quereria - respondi irritada -, mas esses
livros convêm a uma condição diferente da minha. É como se
oferecesses um chapéu de grande categoria a uma pedinte e
quisesses que ela o usasse com os seus andrajos habituais!
- É possível - disse-me. - Mas para mim é a última vez que te
leio uma linha!
Narro esta escaramuça porque me pareceu característica da
sua maneira de pensar e de agir. Duvido de que tivesse
continuado a sua obra educativa mesmo se eu não lhe tivesse
mostrado a minha incompreensão. Não que fosse inconstante,
mas tinha uma singular incapacidade - que se poderia chamar
física - para manter qualquer esforço que exigisse um entusiasmo
contínuo e sincero. Nunca mo disse claramente, mas compreendi
depressa que esta atmosfera de comédia que criavam as suas
palavras correspondia a um contíguo estado de espírito. Em
suma, acontecia entusiasmar-se por um motivo qualquer, e
enquanto durava o fogo do seu entusiasmo, ver a coisa como
possível e concreta. Depois, de repente, o fogo extinguia-se e não
lhe deixava mais que aborrecimento, desagrado, e sobretudo um
sentimento total de absurdo. Neste caso ou se deixava cair numa
gélida indiferença ou se agitava de uma maneira exterior e
convencional como se este fogo não se tivesse apagado e então
fingia. Para mim é difícil explicar o que lhe acontecia nessas
ocasiões: provavelmente uma paragem brusca da vitalidade, como
se de repente o calor do seu sangue tivesse abandonado o seu
espírito, não deixando mais do que aridez e vazio. Era uma
interrupção súbita, imprevisível, total, comparada à brusca
interrupção de uma corrente eléctrica que mergulhasse no escuro
uma casa faustosamente iluminada um minuto antes. Estas
intermitências da mais profunda vitalidade, descobri-as depois
das várias alternativas de entusiasmo e ardor para estados de
apatia e inércia; mas acabei por ter a verdadeira revelação por
ocasião de um incidente curioso, mas que mais tarde me pareceu
significativo. Perguntou-me um dia, de uma maneira inesperada:
- Gostavas de fazer alguma coisa por nós?
- “Nós”, quem?
- Pelo nosso grupo. Por exemplo, ajudar-nos a fazer
propaganda.
Estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse
aproximar dele e reforçar a nossa ligação. Respondi-lhe
sinceramente:
- Com certeza! Diz-me o que devo fazer que eu o farei.
- Não tens medo?
- Medo de quê? Desde que tu o fazes também...
- Sim - disse -, mas primeiro é preciso que te explique de que
se trata. Precisas de conhecer as ideias pelas quais te expões e te
arriscas.
- Está bem! Explica-me!
- Mas não te interessam.
- Porquê? Primeiro interessam-me com certeza; além disso,
tudo o que fazes me interessa, quanto mais não seja por tu o
fazeres.
Olhou-me. Bruscamente, de uma maneira inesperada, os
olhos iluminaram-se-lhe e a cara animou-se-lhe.
- Está bem - disse. - Hoje é muito tarde... mas amanhã
explico-te tudo... de viva voz porque os livros aborrecem-te. Mas já
sabes que precisarás de me escutar, mesmo que te pareça não
estares a compreender-me.
- Farei o possível por compreender - disse-lhe.
- Tens de compreender - disse como se falasse consigo
próprio.
Foi-se embora.
No dia seguinte esperei-o mas não veio. Voltou dois dias
depois. Uma vez no quarto, sentou-se, sem dizer palavra, aos pés
da cama:
- Então - disse eu alegremente -, estou pronta. Sou toda
ouvidos!
Notara a sua cara abatida, os olhos mortiços; toda a sua
atitude era de abatimento: mas fingi não perceber. Acabou por me
responder:
- É inútil ouvires, porque nada tenho para te dizer.
- Porquê?
- Porque não!
- Diz-me a verdade - protestei. - Julgas-me muito estúpida
ou muito ignorante para compreender certas coisas? Agradeço-te.
- Não - respondeu gravemente. - Enganas-te.
- Então porquê?
Continuamos durante algum tempo, eu a insistir para saber
e ele a defender-se. Acabou por me dizer:
- Queres saber porquê? Porque eu próprio, hoje, já não te
poderia expor estas ideias.
- Mas como, se pensas nisso continuamente?
- É verdade; mas depois daquela noite, e sabe Deus por
quanto tempo ainda, estas ideias já não estão claras no meu
espírito; já nada percebo disso.
- Então!
- Procura compreender-me - disse. - Há dois dias, quando te
propus trabalhar para nós, se te tivesse exposto logo estas ideias
estou certo de que não só o teria feito com vigor, clareza e
convicção, mas tu as terias compreendido. Hoje, pelo contrário,
poderia mexer os lábios e a língua para pronunciar palavras, mas
fá-lo-ia mecanicamente, sem qualquer participação. Hoje -
concluiu - já nada compreendo.
- Nada compreendes?
- Não, nada mais compreendo; ideias, conceitos, factos,
recordações, convicções, tudo se transformou para mim numa
espécie de burburinho... este burburinho enche-me a cabeça, a
cabeça toda (batia com os nós dos dedos na testa...) e
desagrada-me como se fossem excrementos!
Eu olhava-o sem compreender. Um frêmito de desespero
parecia percorrer-lhe o corpo.
- Tenta compreender-me - repetia. - Hoje não são as ideias,
mas todas as coisas escritas, ditas ou pensadas são
incompreensíveis para mim... absurdo. Por exemplo, sabes o Pai
Nosso?
- Sei.
- Pois bem, di-lo.
- Pai Nosso que estais no céu. - comecei.
- Chega! - interrompeu-me. - Agora reflecte sobre a
quantidade de maneiras como se escreveu esta oração no decurso
dos séculos e na variedade de sentimentos que levou a dizê-la.
Pois bem! Eu de nenhuma maneira a compreendo... Poderias
recitá-la de trás para diante que para mim seria a mesma coisa.
Calou-se, depois continuou:
- Não são só as palavras que me fazem este efeito, mas
também as coisas e as pessoas. Tu estás ao meu lado, sentada no
braço do sofá; julgas talvez que eu te vejo? Não te vejo porque não
te compreendo. Posso tocar-te, não te compreenderia melhor. Vês,
eu toco-te - sacudiu o meu penteador e descobriu-me o peito -,
apalpo-te o seio, sinto-lhe a forma, a tepidez, o contorno; vejo-lhe
a cor, o relevo... mas não compreendo o que é. Digo a mim
próprio: é um objecto redondo, quente e mole... que serve para
amamentar... que se sente prazer quando se acaricia... mas não
compreendo o que é... Digo a mim mesmo que é belo, que me
deveria inspirar desejo, mas isso não me impede de nada
compreender. Entendes agora? - repetiu, furioso, apertando-me o
seio de tal maneira que não pude impedir um grito de dor.
Largou-me logo e fez notar passado um instante, tendo o ar
de reflectir:
- É provável que seja este género de incompreensão que
arrasta tanta gente à crueldade. Eles procuram encontrar o
contacto com a realidade através da dor alheia.
Houve um momento de silêncio, depois eu disse:
- Se isso é verdade, então como te arranjas quando tens de
fazer certas coisas?
- Por exemplo?
- Não sei. Tu dizes que distribuis os panfletos, que tu mesmo
os rediges. Se não acreditas, como os rediges e distribuis?
Deu uma gargalhada sarcástica:
- Faço-o como se acreditasse - disse.
- Mas é impossível!
- Como é impossível? Quase toda a gente faz assim. Salvo
comer, beber, dormir ou amar, quase todos fazem as coisas como
se acreditassem nelas... Ainda não tinhas dado por isso?
Ria nervosamente.
- Eu não - respondi.
- Tu não - respondeu-me de uma maneira quase ofensiva -,
precisamente porque te limitas a comer, beber, dormir e amar de
cada vez que te apetece. Para todas essas coisas não parece que
seja necessário simular. É muito, mas também é pouco!
Ria. Deu-me bruscamente uma grande palmada na nádega,
depois tomou-me nos braços, como fazia muitas vezes, pelo prazer
de me apertar e de me sacudir, repetindo sem parar :
- Tu não sabes que o nosso mundo é o mundo do “Porque
sim”? Tu não sabes que neste mundo, desde o rei ao mendigo,
toda a gente se comporta “Porque sim”? O mundo do “Porque
sim”, do “Porque sim”, do “Porque sim”!
Deixei-o fazer porque sabia que nesses momentos mais valia
não protestar, mas esperar que isto lhe passasse. Acabei por lhe
dizer com certa firmeza:
- Amo-te. É a única coisa que sei e isso basta-me.
Acalmou-se de repente e respondeu-me simplesmente:
- Tens razão.
A noite chegou sem que tornássemos a falar nem em política
nem na sua capacidade.
Uma vez só, depois de muito reflectir, concluí ser possível
que as coisas fossem como ele dizia; mas que era mais que certo
que não me tornaria a falar em política por pensar que não a
compreenderia e por recear que o comprometesse com qualquer
indiscrição. Não que eu imaginasse que ele mentia; sabia, por
experiência própria, que pode acontecer a toda a gente ter dias em
que o mundo inteiro parece voar em estilhas, em que, como ele
dizia, nada se compreende, nem mesmo o Pai Nosso. Eu também,
quando tinha algum dissabor, chegava a sentir a mesma
impressão de aborrecimento, de desagrado e de prostração. Mas,
evidentemente, devia haver outro motivo para que me recusasse a
participar na sua vida mais secreta: a falta de confiança, como já
disse, tanto na minha inteligência como na minha discrição. Com
o tempo compreendi, demasiadamente tarde, que me enganava e
que ou fosse por inexperiência da idade ou por fraqueza de
carácter, estes estados mórbidos tomavam uma importância
particular para ele.
Nesse momento pensava que não o devia importunar com a
minha curiosidade. E foi o que fiz.
8
Não sei porquê, lembro-me muito bem do tempo que estava
naqueles dias. Fevereiro, que tinha sido frio e chuvoso, acabara;
com Março haviam chegado os primeiros dias calmos. Uma rede
cerrada de finas nuvens brancas velava inteiramente o céu,
ferindo os olhos quando se saía de casa para a rua. O ar era doce
mas ainda dorido dos friores do Inverno. Eu caminhava com
prazer e alheamento neste ar seco, magoado e sonolento. De vez
em quando chegava a retardar o passo e fechar os olhos ou parar
a contemplar as coisas mais insignificantes: um gato branco e
preto que alisava o pêlo no vão de uma porta, um ramo de loureiro
caído, cortado pelo vento, um tufo de erva entre as pedras do
passeio. O musgo que a chuva dos meses anteriores deixara nos
rebordos das casas inspirava-me uma grande tranquilidade e
confiança. Pensava que se este belo veludo cor de esmeralda podia
viver numa tão fina camada de terra, a minha vida - que não tinha
raízes mais profundas e se contentava em vegetar e se sustentar
com tão pouco alimento, verdadeiro bolor, ela também ao pé de
uma ruína - tinha alguma probabilidade de continuar a florir.
Estava convencida de que todas as desagradáveis aventuras
dos últimos tempos tinham acabado definitivamente, que não
tornaria a ver Sonzogne nem ouviria mais falar dos seus crimes, e
que de futuro poderia gozar em paz a minha ligação com Jaime.
Esta ideia dava-me a impressão de sentir pela primeira vez o
verdadeiro sabor da vida, feito de um doce tédio, de esperança e
de disponibilidade.
Começava mesmo a entrever a possibilidade de mudar de
existência. No fundo, o meu amor por Jaime desinteressava-me
dos outros homens, de maneira que os meus encontros ocasionais
tinham perdido até o aguilhão da curiosidade e da sensualidade.
Mas eu pensava ser inútil tentar modificar-nos e que eu não
mudaria senão quando, sem choques nem violências, pela própria
ordem natural das coisas, criasse hábitos, sentimentos e
interesses novos.
Não via outra maneira de mudar de existência, não sentia de
momento qualquer desejo de aumentar nem de melhorar
materialmente a minha condição e não tinha a impressão de que,
transformando a minha vida, eu própria melhorasse qualquer
coisa.
Um dia contei a Jaime estas minhas reflexões. Ouviu-me
10atentamente, depois observou-me:
- Pareces contradizer-te. Não dizes sempre que querias ser
rica, ter uma bela casa, um marido e filhos? São coisas legítimas:
ainda é possível que as obtenhas, mas nunca as conseguirás se
raciocinares dessa maneira.
- Não digo que queria, digo que teria querido. - respondi-lhe.
- Quer dizer que se tivesse podido optar antes de ter nascido, não
teria escolhido isto que sou. Mas nasci naquela casa, de uma mãe
como aquela, nesta situação, e apesar de tudo, sou a que sou.
- O quê?
- Parece-me absurdo querer ser outra. Desejaria ser outra
unicamente se, tornando-me outra, pudesse continuar a ser eu
própria... quer dizer, se pudesse realmente desfrutar da mudança.
Mas ser outra só para não ser eu, não vale a pena.
- Vale sempre a pena - murmurou. - Senão por ti, pelos
outros.
- E depois - continuei sem responder à sua interrupção - o
que conta são os factos. Imaginas que eu não poderia ter
encontrado um amante rico como a Gisela? Ou até mesmo casar?
Se não o fiz, quer dizer que no fundo, apesar de todas as minhas
tagarelices, não o desejei verdadeiramente.
- Casarei eu contigo - disse a brincar beijando-me. Sou rico.
A morte da minha avó, que não pode demorar muito, tornar-me-á
herdeiro de muitos hectares de terra, de uma casa no campo e de
outra na cidade. Montaremos casa com todo o rigor, convidarás
senhoras da vizinhança em dias certos, teremos uma cozinheira,
uma criada de quarto, um automóvel, até mesmo havemos de
10
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a
intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos
Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos procure por http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros. Será um prazer
recebê-lo em nosso grupo.
descobrir que somos nobres e far-nos-emos chamar marqueses ou
condes.
- Contigo nunca se pode falar a sério; estás sempre a
brincar! - disse-lhe repelindo-o.
Numa destas tardes fui ao cinema com Jaime. A volta
subimos para um eléctrico muito cheio. Jaime vinha para casa
comigo e íamos jantar ao restaurantezinho das fortificações. Tirou
os bilhetes e furou por entre as pessoas que enchiam a coxia do
eléctrico. Quis segui-lo, mas perdi-o de vista. Enquanto agarrada
a um assento, o procurava com os olhos, senti tocarem-me na
mão. Olhei e vi Sonzogne sentado ao pé de mim.
Fiquei sufocada. Senti-me empalidecer e mudar de
expressão. Olhava-me com a sua intolerável fixidez. Levantou-se e
disse-me por entre os dentes:
- Queres sentar-te?
- Obrigada, desço já - balbuciei.
- Senta-te, mesmo assim!
- Obrigada - repeti, sentando-me.
Se não me tivesse sentado, julgo que teria desmaiado. Ficou
de pé à minha frente como que a espiar-me, segurando-se com
uma mão ao meu banco e com a outra ao que estava à minha
frente. Nada tinha mudado; trazia a mesma gabardina de sempre,
atada na cintura, e os seus maxilares tinham o mesmo
estremecimento maquinal. Fechei os olhos - e durante um
momento procurei ordenar os meus pensamentos. Lembrei-me da
minha confissão e pensei se, como desconfiara, o padre tinha
falado, a minha vida não estava muito segura.
Esta ideia não me assustou. Mas ele, de pé ao meu lado,
assustava-me, ou, mais exactamente, fascinava-me,
subjugava-me. Sentia que nada lhe podia recusar; que entre mim
e ele havia um laço, não de amor seguramente, mas talvez mais
forte do que aquele que me unia a Jaime. Ele também o sabia por
instinto: portava-se como um dono.
- Vamos para tua casa! - disse-me passado um instante.
- Como quiseres! - respondi docilmente, sem hesitar.
Jaime aproximou-se depois de se ter desembaraçado com
esforço das pessoas que o comprimiam. Sem dizer uma palavra
veio colocar-se exactamente ao lado de Sonzogne, agarrando-se ao
mesmo banco que ele; os seus dedos magros e longos quase
afloravam os dedos curtos e grossos de Sonzogne. Uma sacudidela
do eléctrico atirou-os um contra o outro e Jaime desculpou-se
delicadamente. Comecei a sofrer por os ver assim lado a lado, tão
perto e tão ignorantes um do outro; de repente disse a Jaime,
voltando-me ostensivamente para ele, de maneira a que Sonzogne
não pudesse duvidar de que era com ele que eu falava:
- Olha! Lembro-me agora de que marquei encontro esta noite
com uma pessoa; é melhor que nos separemos.
- Se quiseres acompanho-te a casa.
- Não, esperam-me na paragem do eléctrico.
Não era uma invenção. Continuava, como já disse, a trazer
homens para casa e Jaime sabia-o.
- Como quiseres - disse tranquilamente. - Então
ver-nos-emos amanhã.
Disse-lhe que sim com os olhos e perdi-o de vista por entre
os passageiros do eléctrico.
Por um momento, ao vê-lo afastar-se, fui tomada de um
grande desespero. Pensava - sem saber porquê - que era a última
vez que o via.
“Adeus”, murmurei para mim mesma. “Adeus, meu amor.”
Desejaria gritar-lhe que parasse, que voltasse, mas nenhum som
saiu da minha boca. O carro parou e pareceu-me vê-lo descer.
Nem Sonzogne nem eu abrimos a boca durante todo o trajecto.
Acalmei-me e pensei que não era possível que o padre tivesse
falado. Por outro lado, reflectindo nisso, não lamentava muito ter
encontrado Sonzogne. Este encontro permitia livrar-me de uma
vez para sempre das suspeitas a respeito da minha confissão.
Quando descemos andei uns passos sem olhar para trás.
Sonzogne vinha ao meu lado:
- Que me queres? Porque voltaste? - acabei por dizer.
- Foste tu quem me disse para voltar - disse-me com
admiração.
Era verdade; com o medo esquecera-o. Aproximou-se,
pegou-me no braço e apertou-mo com força. Contra vontade
minha, comecei a tremer dos pés à cabeça.
- Quem é este homem? - perguntou-me.
- Um dos meus amigos.
- E o Gino? Tornaste a vê-lo?
- Nunca mais.
Olhou à sua volta, desconfiado.
- Não sei porquê - disse-me -, há uns dias que tenho a
impressão de ser seguido. Só há duas pessoas que me podem ter
vendido: Gino e tu.
- Porquê o Gino? - murmurei.
O meu coração batia desordenado.
- Ele sabia que eu devia levar o objecto àquele ourives...
disse-lhe até mesmo o nome... Ele não sabe ao certo que fui eu
quem o matou, mas pode muito bem ter deduzido.
- Gino não tem interesse em te denunciar; ficava também ele
envolvido no caso.
- É o que eu penso - disse-me por entre dentes.
- Quanto a mim - continuei com a voz mais tranquila - podes
ter a certeza de que nada disse... não sou parva... prendiam-me a
mim também.
- Espero por ti que não o faças! - disse-me num tom
ameaçador. Depois acrescentou: - Tornei a ver Gino... ele
disse-me, brincando, que sabia muitas coisas. Não me sinto
tranquilo... É um crápula.
- Naquela noite trataste-o muito mal; com certeza que te
odeia agora - disse-lhe.
E sentia, enquanto falava, uma vaga esperança de que Gino
realmente o tivesse denunciado.
- Aquele foi um bom soco! - declarou com vaidade. -
Doeu-me a mão durante dois dias!
- Gino não te denunciará - disse eu como conclusão. - Não
lhe interessa, e além disso tem muito medo de ti.
Falávamos em surdina, caminhando ao lado um do outro
sem nos olharmos. Era ao entardecer; uma bruma azulada
envolvia as muralhas enegrecidas, as ramadas brancas dos
plátanos, as casas amareladas, a longa perspectiva das avenidas.
Quando chegamos à minha porta senti pela primeira vez a
impressão de atraiçoar Jaime. Desejaria dar-me a ilusão de que
Sonzogne era um homem qualquer entre muitos; mas sabia não
ser verdade. Entrei no vestíbulo, empurrei a porta e no escuro
parei, voltei-me para Sonzogne e declarei-lhe :
- Olha... é melhor que te vás embora.
- Porquê?
Apesar do medo que me inspirava, desejava dizer-lhe a
verdade toda:
- Porque amo outro e não o quero enganar.
- Quem? O que estava contigo no “eléctrico”?
- Não... outro... tu não o conheces. Mas agora faz-me o favor
de me deixares e de te ires embora.
- E se eu não quiser?
- Tu não compreendes que há coisas que não se podem obter
pela força? - comecei a dizer. Mas não pude acabar. Não sei como,
sem que a escuridão me deixasse vê-lo e ao seu gesto, recebi na
cara uma tremenda bofetada.
- Anda! - disse-me.
De cabeça baixa dirigi-me rapidamente para a escada.
Segurava-me outra vez pelo braço; parecia que me sustinha e me
fazia voar. A cara ardia-me, mas sobretudo eu tinha um horrível
pressentimento. Esta bofetada cortava o ritmo feliz deste último
período da minha vida; as dificuldades e os terrores recomeçavam.
Tomou-me um tal desespero que decidi escapar-me de
qualquer maneira. Sairia de casa nesse mesmo dia; iria
refugiar-me em qualquer parte. Em casa de Gisela ou num quarto
alugado.
Pensava nisto com tanta intensidade que nem reparei que
entrava no meu quarto. Encontrei-me - quase diria acordei -
sentada na beira da cama, enquanto Sonzogne, com os seus
gestos meticulosos, tirava as peças de roupa uma por uma e as
punha em cima da cadeira com método. A cólera passara-lhe.
- Quis vir mais cedo - disse-me tranquilamente -, mas não
pude. No entanto pensei sempre em ti.
- E que pensaste? - perguntei-lhe maquinalmente.
- Que somos feitos um para o outro - disse-me num tom
estranho, parando de se despir e ficando com o colete na mão. -
Vim mesmo para te fazer uma proposta.
- Qual?
- Tenho dinheiro. Vamos os dois para Milão, onde tenho
muitos amigos. Vou lá montar uma garagem. E em Milão
podemo-nos casar.
Fui tomada de uma tal fraqueza que fechei os olhos. Era a
primeira vez, depois de Gino, que me propunham casamento; e
quem me fazia esta proposta era Sonzogne! Desejara tanto uma
vida normal, com um marido e filhos, e eis que ma ofereciam. Mas
era uma normalidade reduzida a uma espécie de concha no
interior da qual tudo era anormal e aterrador. Disse-lhe
molemente:
- Porquê? Mal nos conhecemos; só me viste uma vez...
Respondeu-me sentando-se ao meu lado e segurando-me
pela cintura:
- Ninguém me conhece melhor do que tu... sabes tudo a meu
respeito.
Atravessou-me o espírito a ideia de que ele estivesse
comovido e quisesse mostrar que me amava e que eu devia
amá-lo. Mas em nada me baseava, porque nada na sua atitude me
revelava semelhante sentimento.
- Pouco sei de ti - disse-lhe em voz baixa. - Só sei que
mataste aquele homem!
- E depois - continuou como se falasse consigo - estou
cansado de estar só... Quando se vive só acaba-se sempre por
fazer alguma asneira.
Disse-lhe passado um momento:
- Assim de repente não te posso responder nem sim nem
não... Dá-me algum tempo para reflectir.
Com grande admiração minha, respondeu-me, de dentes
cerrados:
- Reflecte, reflecte, não há pressa.
Depois continuou a despir-se.
O que me ferira fora sobretudo a frase: “Somos feitos um
para o outro.” Agora perguntava a mim mesma se ele não teria
razão apesar de tudo. A quem poderia eu aspirar de futuro senão
a um homem como ele? Por outro lado, não era verdade que um
laço obscuro que eu reconhecia e temia me ligava a ele?
Surpreendi-me repetindo em voz baixa: “Acabou! Acabou!” e
sacudindo desesperadamente a cabeça disse-lhe em voz clara:
- Para Milão? Mas tu não tens medo que te procurem?
- Disse isso por dizer... Na realidade eles nem sabem que eu
existo!
De repente a lassidão que me tomara os membros
desapareceu: senti-me muito forte e muito decidida. Levantei-me,
tirei o casaco e fui pendurá-lo no bengaleiro. Como habitualmente,
fechei a porta à chave, depois fui à janela e puxei as cortinas. De
pé em frente do espelho, comecei a desabotoar o vestido. Mas
interrompi-me e voltei-me para Sonzogne. Estava sentado na beira
da cama a tirar os sapatos.
- Espera um momento... - disse-lhe afectando um tom
despreocupado - estou à espera de uma pessoa, é melhor eu
prevenir minha mãe para que a mande embora.
Não respondeu nem eu lhe dei tempo. Saí do quarto
fechando a porta atrás de mim. Fui à sala grande.
Minha mãe estava a coser à máquina ao pé da janela; havia
já algum tempo que, para se distrair, tinha recomeçado a
trabalhar um pouco. Disse-lhe depressa em voz baixa: -
Telefona-me amanhã de manhã para casa da Gisela ou da
Zelinda.
Zelinda era dona de uma hospedaria para onde eu levara
algumas vezes os meus amantes: minha mãe conhecia-a.
- Mas porquê?
- Vou-me embora para lá - disse-lhe. - Quando aquele
homem perguntar onde estou, diz-lhe que nada sabes.
Minha mãe olhava-me de boca aberta, enquanto eu tirava do
bengaleiro o casaco curto de peles, meio pelado, que lhe pertencia
depois de ter sido meu.
- Sobretudo - acrescentei - não lhe digas onde estou, era
capaz de me matar!
- Mas...
- O dinheiro está no sítio do costume... suplico-te que nada
digas e telefona-me amanhã de manhã.
Saí à pressa, na ponta dos pés, e desci a escada. Uma vez na
rua comecei a correr. Sabia que Jaime a esta hora estava em casa
e queria chegar antes que ele saísse com os amigos, como fazia
sempre depois do jantar. Tomei um táxi e dei a direcção de Jaime.
Compreendi bruscamente que não fugia tanto de Sonzogne como
de mim própria, obscuramente atraída por esta violência e por
este furor. Lembrei-me do grito dilacerante, misto de horror e de
volúpia, que soltara na primeira vez em que Sonzogne me tinha
possuído; disse a mim mesma que nesse dia ele me havia
subjugado como nunca nenhum homem o fizera até então, nem
mesmo Jaime. “Sim, não pude deixar de concluir, nós somos
verdadeiramente feitos um para o outro, mas como o corpo é feito
para o precipício que faz virar a cabeça, turvar a vista e finalmente
o atrai para um fundo vertiginoso.” Subi a escada a quatro e
quatro, cheguei ofegante e perguntei por Jaime à velha criada que
me veio abrir a porta.
Olhou-me com ar assustado, não disse palavra e foi-se
embora, deixando-me só.
Pensando que teria ido prevenir Jaime, entrei no vestíbulo e
fechei a porta. Ouvi então um cochichar atrás do reposteiro que
separava o vestíbulo do corredor. Depois o reposteiro levantou-se e
vi aparecer a viúva Medolaghi. Esquecera-a depois da primeira e
única vez em que a vira. A sua maciça silhueta negra, a face
branca, os seus olhos circundados de negro surgindo
bruscamente diante de mim inspiraram-me nesse momento, não
sei porquê, um arrepio, como se tivesse visto uma aparição
aterradora. Disse-me rapidamente, falando-me de longe:
- Procura o Sr. Diodatti?
- Sim.
- Prenderam-no.
Não percebi bem. Não sei porquê liguei esta prisão ao crime
de Sonzogne. Balbuciei:
- Preso? Mas ele nada tem com isso...
- Não sei nada - disse-me. - Só sei que fizeram uma busca e
prenderam-no.
Pela sua cara zangada compreendi que não me diria nem
mais uma palavra e no entanto ainda perguntei:
- Mas porquê?
- Já lhe disse, menina, que nada sei.
- Mas para onde o levaram?
- Não sei.
- Mas diga-me ao menos se deixou algum recado?
Desta vez nem me respondeu; voltou-se e chamou com um
ar ofensivo e majestoso:
- Diomira!
A criada de idade reapareceu com a sua cara assustada. A
patroa indicou-lhe a porta e disse:
- Acompanhe essa menina. O reposteiro tornou a cair.
Só depois de me encontrar outra vez na rua é que
compreendi que a prisão de Jaime e o crime de Sonzogne eram
dois factos distintos e independentes um do outro. O único traço a
ligá-los era o meu pavor. Discernia sobre o conjunto destes
acontecimentos imprevistos e desgraçados as amplitudes de um
destino que me cumulava de um só golpe de todos os dons
funestos, como a Primavera faz amadurecer ao mesmo tempo os
frutos mais diversos. É bem verdade que, segundo o provérbio,
uma desgraça nunca vem só. Sentia-o mais do que o pensava
enquanto caminhava, de rua em rua, de cabeça baixa e curvando
as costas sob um peso imaginário.
Naturalmente a primeira pessoa à qual me lembrei de
recorrer foi a Astárito. Sabia de cór o número do telefone da
repartição; entrei no primeiro café. O telefone estava livre mas
ninguém me respondeu. Liguei várias vezes e acabei por me
convencer de que Astárito não estava lá. Devia ter ido jantar:
voltaria mais tarde. Estas coisas são assim; mas, como acontece
sempre, esperava que justamente desta vez, por excepção, o
encontraria na repartição.
Olhei para o relógio. Eram oito horas da noite; Astárito não
voltaria antes das dez. Fiquei de pé, à um canto da rua; à minha
frente estava uma ponte, percorrida por transeuntes que surgiam
em silêncio, escuros e rápidos, como folhas mortas agitadas por
uma incessante tempestade. Mas para lá da ponte as casas
alinhadas davam uma impressão de tranqüilidade, com as janelas
todas iluminadas e as pessoas que iam e vinham por entre as
mesas e os outros móveis. Lembrei-me de que não estava muito
longe do Comissariado Central, para onde supunha terem levado
Jaime. E, se bem que compreendesse ser essa uma tentativa
desesperada, decidi ir lá directamente para pedir informações.
Sabia de antemão que não mas dariam; mas pouco importava,
queria sobretudo fazer alguma coisa por Jaime. Segui por uma
rua transversal, caminhei rapidamente rente às paredes, cheguei
ao Comissariado, subi alguns degraus e entrei. Diante da porta do
porteiro, um polícia que lia o jornal, refastelado numa cadeira,
com os pés noutra e o boné em cima da mesa, perguntou-se aonde
é que eu ia. “A Secção dos Estrangeiros”, disse-lhe. Era uma das
numerosas secções do Comissariado; ouvira falar nela uma vez a
Astárito, já não sei a que propósito.
Não sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de
uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente
empregados e polícias com as mãos cheias de papéis e colava-me
à parede o mais possível, baixando a cabeça. Em todos os andares
encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha,
depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um
enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam não
pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela
primeira vez, era fétido, escuro e bem amargo. No terceiro andar,
desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguém
olhava para mim, ninguém me ligava importância. A direita e à
esquerda do corredor alinhavam-se portas quase todas abertas; à
entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e
fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo
espectáculo: rimas e rimas de papéis, um agente sentado a uma
mesa, com a caneta na mão. O corredor não era direito: era
oblíquo e daí a pouco já não sabia onde estava. De vez em quando
enfiava-me por uma passagem mais baixa e então era preciso
subir ou descer três ou quatro degraus; cruzava outros corredores
parecidos, com outros agentes, portas abertas e mal iluminadas. A
certa altura pareceu-me andar num corredor que já tinha
percorrido. Como passasse um guarda perguntei-lhe ao acaso:
“Onde é o vice-comissário?” Indicou-me com um gesto uma
passagem entre duas portas. Desci quatro degraus e enfiei por um
corredorzinho direito. Nesse momento, ao fundo, onde esta espécie
de lombriga fazia um ângulo recto, abriu-se uma porta e
apareceram dois homens; estavam de costas e caminhavam na
direcção do canto. Um deles segurava o outro pelo pulso e por um
instante tive a impressão de que era Jaime.
- Jaime! - gritei, correndo para os alcançar. Mas alguém me
segurou pelo braço. Era um policia muito novo, de cara afilada,
moreno, com o quépi enfiado numa massa de cabelos pretos
encaracolados.
- Que quer? Quem procura? - perguntou-me. Ao meu grito,
os outros dois tinham-se voltado para mim e verifiquei ter
cometido erro.
Expliquei com voz ofegante:
- Prenderam um dos meus amigos e queria saber se o
tinham trazido para aqui.
- Como se chama ele? - perguntou o agente, sem me largar,
com um ar peremptório.
- Jaime Diodatti.
- Que faz ele?
- É estudante.
- Quando o prenderam?
Compreendi que me fazia estas perguntas todas para se dar
importância e que nada sabia. Disse-lhe com irritação:
- Em vez de me fazer tantas perguntas era melhor que me
dissesse onde é que ele está.
Estávamos sós no corredor. Olhou à volta, depois
apertou-me e disse-me num tom claramente cúmplice:
- Pensaremos no estudante mais tarde. Por agora vais
dar-me um beijo.
- Não! Não me faça perder tempo! Deixe-me ir embora! -
gritei cheia de raiva.
Dei-lhe um encontrão, desatei a correr, penetrei noutro
corredor, vi uma porta aberta e para lá dessa porta uma sala
maior do que as outras com uma secretária ao fundo, atrás da
qual estava sentado um homem de meia idade.
Entrei e perguntei-lhe de um fôlego:
- Queria saber para onde levaram o estudante Diodatti... o
que prenderam esta tarde.
O homem levantou os olhos da secretária, onde estava um
jornal desdobrado, e perguntou-me, estupefacto:
- Queria saber...
- Sim... para onde levaram o estudante Diodatti, preso esta
tarde.
- Mas quem é a menina? Como se atreveu a entrar aqui?
- Isso agora não interessa... diga-me só onde é que ele está.
- Mas quem é a menina? - repetiu berrando e dando socos
na mesa. - Como se atreveu? Sabe onde está?
Compreendi que não conseguiria saber coisa alguma e que
em compensação corria o risco de ficar presa também. E então
não poderia já falar a Astárito e Jaime ficaria na prisão.
- Não tem importância. Enganei-me. Desculpe - disse
retirando-me.
As minhas desculpas ainda o enfureceram mais que as
minhas perguntas anteriores. Mas agora eu já estava ao pé da
porta.
- Entra-se e sai-se fazendo a saudação fascista! - gritou
mostrando-me um cartaz suspenso sobre a sua cabeça.
Disse que sim com a cabeça, para confirmar que ele tinha
razão, que era verdade, que se devia entrar e sair fazendo a
saudação fascista e saí da sala recuando. Percorri o corredor todo,
acabei por encontrar a escada depois de vaguear um pouco ao
acaso e desci à pressa. Tornei a passar em frente do porteiro e saí
para o ar livre.
O único resultado desta ida à polícia fora o ter-me feito
passar um pouco de tempo. Calculei que se fosse devagarinho até
ao Ministério de Astárito demoraria talvez três quartos de hora,
até mesmo uma hora. Uma vez lá próximo sentar-me-ia num café
e telefonaria a Astárito daí a vinte minutos.
Enquanto andava veio-me à ideia a possibilidade de esta
prisão de Jaime ser uma vingança de Astárito. Astárito tinha uma
posição importante, justamente na polícia política; com certeza
que havia muito tempo que eles vigiavam Jaime e que sabiam da
nossa ligação; nada havia de improvável que o seu cadastro
tivesse passado pelas mãos de Astárito e que fosse ele, levado
pelos ciúmes, que tivesse dado a ordem para prenderem o
estudante. A esta ideia senti uma espécie de furor contra Astárito.
Sabia que ele continuava sempre apaixonado por mim; sentia-me
capaz, se as minhas suspeitas tivessem fundamento, de o fazer
expiar amargamente a sua má acção, não sem pensar também
com pavor que as coisas talvez não se tivessem passado dessa
maneira e que com as minhas frágeis armas me preparava para
combater um adversário obscuro e sem rosto, mais parecido com
uma máquina bem afinada do que com um homem sensível e
acessível a paixões.
Quando cheguei em frente do Ministério renunciei à ideia de
me sentar num café e fui directamente telefonar.
Ao primeiro toque, desta vez, alguém levantou o auscultador
e a voz de Astárito respondeu-me.
- Sou eu... a Adriana - disse eu impetuosamente. - Quero
ver-te. Já. Imediatamente... é uma coisa urgente... Estou aqui ao
lado do Ministério.
Pareceu-me que reflectia um momento e depois disse-me que
podia ir. Era a segunda vez que subia a escada do Ministério de
Astárito, mas com uma disposição de espírito bem diferente. Da
primeira vez tinha medo da uma chantagem de Astárito, temia que
ele desmanchasse o meu casamento com Gino, receava a vaga
ameaça que todos os pobres sentem suspensa sobre as suas
cabeças nos meios policiais. Chegara com o coração alanceado e a
alma trêmula. Agora vinha de espírito agressivo decidida a
servir-me de qualquer meio para socorrer Jaime e a fazer por
minha vez chantagem com Astárito. Mas o meu amor por Jaime
não chegava para explicar a minha agressividade. Neste estado de
espírito entrava também o desprezo por Astárito, pelo seu
Ministério e, na medida em que Jaime se ocupava da política,
mesmo por ele. Nada percebia de política, mas talvez por causa da
minha ignorância, ao lado do meu amor a Jaime, a política
parecia-me coisa ridícula e sem importância. Lembrei-me de como
Astárito gaguejava quando me via ou simplesmente me ouvia e
pensava com satisfação que ele não gaguejava com certeza
daquela maneira quando falava com os seus chefes - fosse ele
Mussolini. Enquanto pensava nestas coisas caminhava com
pressa pelos vastos corredores do Ministério e apercebia-me de
que olhava com desprezo os empregados que encontrava.
Apetecia-me arrancar-lhes os processos verdes ou encarnados que
levavam debaixo dos braços e atirá-los pelos ares, espalhando
todas aquelas maldosas folhas de interdições e de iniquidades.
Disse em tom imperativo ao contínuo que veio ao meu encontro na
antecâmara:
- Preciso de falar com o Sr. Astárito... depressa... tenho
audiência marcada e não posso esperar...
Olhou-me com admiração, mas não ousou protestar e foi-me
anunciar.
Logo que Astárito me viu veio ao meu encontro, beijou-me a
mão e conduziu-me para um divã no fundo da sala. Já da
primeira vez ele me tinha acolhido da mesma maneira e eu
pensava que se portava assim com todas as mulheres que iam ao
seu gabinete. Reprimi o mais possível a fúria que me dilatava o
peito e disse-lhe:
- Toma cuidado, que se tu fizeste com que prendessem
Jaime precisas de libertá-lo o mais depressa possível... senão
podes ter a certeza de que nunca mais me verás!
Vi a sua cara tomar uma expressão de profunda admiração e
pena. Compreendi que ele de nada sabia.
- Um momento! Que diabo! Qual Jaime? - perguntou-me,
balbuciante.
- Julgava que sabias - disse-lhe.
E o mais rapidamente possível contei-lhe a história do meu
amor por Jaime e a maneira como tinha sido preso, de tarde. Vi-o
mudar de cor quando lhe disse que amava Jaime, mas preferi
dizer a verdade porque não só receava prejudicar o meu amante
mentindo, mas porque experimentava um desejo violento de gritar
o meu amor a toda a gente. Agora, que descobrira que Astárito
nada tinha a ver com a prisão, a cólera que me impulsionara até
ali caíra; sentia-me de novo fraca e desarmada. Por isso, depois de
ter começado a conversa com voz firme e animada, acabara-a num
tom lamentoso. Os meus olhos encheram-se de lágrimas quando
lhe disse com voz angustiada:
- E depois eu não sei o que lhe farão... Diz-se que lhes
batem!
Astárito interrompeu-me:
- Está tranquila. Ainda se fosse um operário!... Mas um
estudante...
- Mas eu não quero... não quero que esteja preso! - gritei
com lágrimas na voz.
Em seguida calámo-nos. Tentava dominar a comoção e
Astárito olhava. Pela primeira vez não me parecia disposto a
aceder ao meu pedido. O desapontamento de me saber
apaixonada por outro homem devia tornar-lhe repugnante a ideia
de me ajudar. Acrescentei, pousando a minha mão na sua:
- Se conseguires que ele saia prometo-te que farei tudo o que
tu quiseres.
Fixou-me com ar irresoluto. Se bem que não tivesse vontade
alguma de o fazer, inclinei-me para ele e ofereci-lhe os lábios ao
mesmo tempo que dizia:
- Então, fazes-me este favor?
Olhou-me hesitando entre o desejo de me beijar e a
consciência do significado humilhante de um beijo semelhante,
oferecido por pura tentativa de corrupção, com o rosto cheio de
lágrimas. Depois afastou-me, levantou-se, disse que esperasse e
desapareceu.
Agora já tinha a certeza de que Astárito tinha ido tratar de
libertar Jaime. Na minha inexperiência dessas coisas imaginava-o
a telefonar, num tom mal humorado, a algum comissário servil,
ordenando-lhe que libertasse, imediatamente o estudante Jaime
Diodatti. Contava os minutos com impaciência, e quando Astárito
reapareceu levantei-me pensando em agradecer-lhe e ir-me logo
embora ao encontro de Jaime.
Mas Astárito vinha com uma expressão estranha,
desagradável, feita de desilusão, de raiva e de malícia.
- Porque dizes tu que o prenderam? - articulou secamente. -
Disparou sobre os polícias e safou-se... um dos agentes está,
moribundo, no hospital. Agora se o apanham, e apanham-no com
certeza, já nada posso fazer.
O espanto cortou-me a respiração. Não tinha eu tirado as
balas do revólver? É verdade que podia ter posto outras sem que
eu soubesse. Em seguida senti uma grande alegria, mas era
também a alegria de saber que ele matara um polícia, uma acção
de que eu o julgava incapaz e que modificava totalmente a ideia
que até então eu fazia dele. Admirei-me que a minha alma,
habitualmente inimiga de toda a violência, aplaudia o acto
desesperado de Jaime: no fundo era a mesma irresistível
satisfação que experimentara outrora ao reconstruir na
imaginação o crime de Sonzogne; mas desta vez acompanhada de
uma espécie de satisfação moral. Em seguida pensava que o
encontraria depressa e que fugiríamos juntos para nos
escondermos; se fosse preciso iríamos para o estrangeiro, onde eu
sabia que os refugiados políticos eram bem acolhidos: e o meu
coração dilatava-se de esperança. Pensava ainda que uma nova
vida iria realmente começar para mim; dizia para comigo que esta
renovação da minha vida a devia a Jaime, à sua coragem, e sentia
por ele gratidão e amor. Entretanto Astárito passeava de um lado
para o outro no gabinete, com ar furioso e parando de vez em
quando para mexer em qualquer coisa em cima da secretária. Eu
disse tranquilamente:
- Isto significa que, depois de preso, ele teve coragem:
disparou e pôs-se a salvo.
Astárito parou e olhou-me com uma expressão má que lhe
crispou o rosto.
- Estás contente, não estás? - perguntou-me.
- É bem feito que tenha morto o polícia - disse eu com
sinceridade. - O agente queria metê-lo na prisão... Tu terias feito a
mesma coisa!
Respondeu-me com voz desagradável:
- Mas eu não me ocupo de política e esse guarda cumpria o
seu dever... Esse homem tinha mulher e filhos.
- Se ele se ocupa de política deve ter as suas razões -
disse-lhe. - E o agente já devia supor que, antes de se deixar
engaiolar, um homem tenta seja o que for... Pior para ele!
Sentia-me tranquila porque me parecia ver Jaime a
caminhar livremente pelas ruas da cidade e alegrava-me já ao
pensar no momento em que ele me chamasse às escondidas e eu o
tornasse a ver. A minha calma parecia desesperar Astárito:
- Mas havemos de o apanhar! - gritou bruscamente. - Então
imaginas que não o apanhamos?
- Eu nada imagino... Estou contente por ele se ter
escapado... Só isso.
- Havemos de o apanhar e podes ter a certeza de que isto
não ficará assim.
Passado um momento disse-lhe:
- Sabes porque estás tão furioso?
- Não estou furioso!
- Porque esperavas que o tivessem apanhado e querias fazer
valer a tua generosidade comigo e com ele... e em vez disso ele
escapou-te. É isto que te enfurece.
Vi-o levantar os ombros com fúria. Depois o telefone tocou e
Astárito atendeu com ar aliviado. Era um bom pretexto para
interromper uma conversa embaraçosa. Logo às primeiras
palavras vi o seu rosto desanuviar-se e tomar uma expressão mais
serena. E isso, mesmo sem saber porquê, pareceu-me de mau
agouro. O telefonema demorou bastante tempo, mas Astárito não
respondeu senão “Sim” e “Não”, se bem que eu não percebesse a
que perguntas.
- Lamento-o por ti - disse pousando o auscultador -, mas a
primeira comunicação referente à prisão desse estudante era
errada. Para maior segurança a polícia tinha mandado agentes
não só à casa dele mas também à tua... assim estavam mais
certos de o apanharem. Com efeito prenderam-no em casa da
viúva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrário, os
guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronúncia do
Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papéis,
como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram
que era ele. Tratava-se evidentemente de alguém que tinha contas
a ajustar com a polícia.
Senti-me desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e
Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que
me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da
minha saída, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na
prisão e Sonzogne procurava-me para se vingar! Fiquei tão
aturdida com este golpe que só pude murmurar: “Pobre de mim”,
dando uns passos para a porta.
Devia ter ficado muito pálida porque Astárito perdeu o ar
triunfante e satisfeito e aproximou-se de mim dizendo-me com
ansiedade:
- Senta-te um instante. Conversemos! Nada há irreparável!
Abanei a cabeça e agarrei o puxador da porta. Astárito
deteve-me e balbuciou:
- Ouve, prometo-te que farei o impossível; eu mesmo o
interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o
libertarem o mais depressa possível; está bem assim?
- Sim, está bem - respondi com voz apagada. - E acrescentei
com esforço: - Por tudo o que fizeres já sabes que te ficarei
reconhecida.
Agora sabia que Astárito faria, como tinha dito, tudo o que
lhe fosse possível para libertar Jaime e eu não desejava outra
coisa que ir-me embora, sair o mais depressa possível daquele
horrível Ministério. Mas Astárito perguntou-me com um escrúpulo
policial:
- A propósito... se tens alguma razão para recear o homem
que encontraram na tua casa diz-me o seu nome e isso facilitará a
prisão.
- Não sei como se chama - respondi. E comecei a andar.
- Seja como for - insistiu - seria melhor que te apresentasses
espontaneamente no comissariado para dizeres o que sabes. Eles
vão pedir-te para ficares à sua disposição e depois deixam-te ir
embora. Mas se não fores lá... Pior para ti!
Respondi-lhe que o faria e disse-lhe adeus. Ele não fechou
logo a porta e ficou a ver-me afastar ao longo do corredor.
9
Uma vez na rua comecei a andar depressa, como se fugisse,
até uma praça que havia próxima. Quando cheguei ao meio da
praça fiquei sem saber para onde ir e pensei onde me iria refugiar.
De momento tinha pensado em Gisela; mas a casa dela era longe e
sentia-me tão fraca que as pernas se me vergavam. Por outro lado
não estava certa de que Gisela me recebesse de boa vontade.
Restava Zelinda, a dona da hospedaria de quem falara a minha
mãe quando saí de casa. Zelinda era uma amiga; pára mais a sua
casa era ali perto: decidi-me por ela.
Zelinda morava num prédio amarelo igual a outros que
dominavam a Praça da Gare. Esta casa de Zelinda distinguia-se
das outras pela escada mergulhada numa quase total escuridão,
mesmo às primeiras horas da manhã. Não havia elevadores nem
janelas: subia-se às escuras, acotovelando de vez em quando as
pessoas que desciam e se agarravam ao mesmo corrimão. Um
cheiro a cozinha empestava eternamente o ar; mas era o de uma
cozinha apagada há muitos anos e onde os aromas tinham tido
tempo para se decomporem neste ar gelado e tenebroso. Subia,
com as pernas moles e o coração partido, esta escada que tantas
vezes trepara, abraçada a algum amante impaciente. Zelinda
abriu-me a porta e eu disse-lhe:
- Preciso de um quarto para esta noite.
Era uma mulher corpulenta, que a gordura envelhecera
precocemente, dando-lhe aparência de mais idade. Trôpega, com
manchas vermelhas nas faces doentias, olhos azuis lacrimejantes
e um cabelo ralo e alourado, sempre despenteado e esfarripado,
subsistia nela, no entanto, não sei que graciosidade afectuosa,
que lhe iluminava o rosto como um reflexo de luz em água
estagnada ao pôr do Sol.
- Tenho um quarto - disse-me. - Estás só?
- Estou.
Entrei. Ela fechou a porta e acompanhou-me tropeçando,
baixa e larga, com um velho penteador, o carrapito meio
despenteado caído pelas costas e cheio de ganchos mal espetados.
O apartamento era tão gelado como a escada. Mas o cheiro a
cozinha era autêntico: era o de guisado saboroso. Zelinda, que
alugava quartos à hora, gostava muito de mim, não sei porquê.
Frequentemente depois das minhas habituais visitas ela
retinha-me para conversar e dava-me bolos e licor. Era uma
rapariga envelhecida e ninguém a deve ter amado nunca porque
desde muito nova a gordura a deformara. Adivinhava-se a sua
virgindade pela timidez, a curiosidade e a maneira desajeitada
como me perguntava pelos meus amores. Creio que ela, embora
sem malícia nem inveja, lamentava secretamente nunca ter feito o
que se fazia nos seus quartos e que adoptava o ofício de alugar
quartos para pouca permanência menos pela sofreguidão do lucro
do que para assim satisfazer um desejo, talvez inconsciente, de
não ser inteiramente excluída do paraíso, perdido para ela, das
relações amorosas.
Ao fundo do corredor havia duas portas que eu conhecia
bem. Zelinda abriu a da esquerda. Acendeu o lustre de três braços
terminado por tulipas de vidro branco e foi fechar a janela. O
quarto era grande e asseado. Mas a limpeza acusava
impiedosamente o uso e a pobreza dos móveis, os rasgões do
tapete, os remendos da colcha de algodão, os “gatos” do espelho,
as falhas do lavatório. Ela olhou-me e perguntou-me:
- Não te sentes bem?
- Sinto-me bastante bem.
- Mas porque não dormes na tua casa?
- Não me apetece.
- Vamos a ver se adivinho - disse-me ela com ar amigo e
malicioso: - Tens um desgosto. Esperavas alguém que não veio.
- É possível.
- Vamos a ver ainda se tenho razão ou não. Este alguém é o
oficial moreno com quem cá vieste a última vez.
Não era a primeira pergunta deste gênero que Zelinda me
fazia. Com a garganta apertada pela angústia, respondi-lhe ao
acaso:
- Tens razão... E então?
- Então nada, mas, como vês, compreendi depressa... Assim
que te vi, adivinhei logo o que te tinha acontecido. Não te rales. Se
não veio deve ter as suas razões. Os militares, já sabes, nem
sempre estão livres.
Eu não respondi. Ela olhou-me durante um momento,
depois, com ar hesitante e afectuoso, disse-me:
- Queres fazer-me companhia e jantar comigo? Tenho um
bom jantar.
- Não, obrigada - respondi. - Já jantei.
Olhou-me e fez-me uma festa na cara. Depois, com a
expressão prometedora e misteriosa de certas tias velhas falando
com um sobrinho miúdo, disse-me:
- Vou dar-te uma coisa que com certeza não recusarás. Tirou
da algibeira um molho de chaves, foi à cômoda e abriu a gaveta,
voltando-me as costas.
Eu entreabrira o casaco, e com a mão na anca, apoiando-me
à mesa, olhava Zelinda, encafuada na sua gaveta. Lembrei-me de
que Gisela vinha frequentemente a este quarto com os seus
amantes e também de que Zelinda não gostava dela. Gostava de
mim por ser eu; mas não gostava de toda a gente. Senti-me
reconfortada. “Apesar de tudo”, pensava, “não há só neste mundo
polícias e ministérios, prisões e outras coisas parecidas
inanimadas e cruéis.” Entretanto Zelinda fechara a gaveta com
cuidado e vinha para junto de mim dizendo:
- Toma. Isto não recusas com certeza.
Pousou qualquer coisa em cima da mesa. Olhei e vi cinco
cigarros - cigarros bons com filtro -, um punhado de bombons
embrulhados em papel de cor e quatro bolinhos de amêndoa em
forma de frutas.
- Está bem? - perguntou-me com uma palmadinha na cara.
Embaraçada, balbuciei:
- Está bem, obrigada!
- De nada, de nada. E se precisares de alguma coisa não
tens mais do que chamar, sem cerimônia.
Uma vez só, senti-me gelada. Não tinha sono e não me
queria ir deitar. Por outro lado, neste quarto glacial, onde o frio do
Inverno parecia conservar-se durante anos, como nas igrejas e nas
caves, não havia outra coisa a fazer. Das outras vezes estes
problemas nem se punham: o homem que me acompanhava e eu
não desejávamos outra coisa que enfiarmo-nos nos lençóis e
aquecermo-nos mutuamente; se bem que não experimentasse
qualquer sentimento por estes amantes de acaso. O acto do amor
em si absorvia-me e mergulhava-me na sua magia. Agora
parecia-me incrível ter podido amar e ser amada no meio de um
mobiliário tão lúgubre, de aspecto tão sórdido. Por certo que o
ardor dos sentimentos nos enganara, aos meus companheiros e a
mim, tornando estes objectos, tão paradoxalmente estranhos,
agradáveis, familiares. Veio-me à ideia que se não pudesse tornar
a ver Jaime a minha vida seria como este quarto. Ao olhá-la de
uma forma objectiva, sem ilusões, a minha vida nada tinha de
belo nem de íntimo; mais até: como o quarto de Zelinda, ela
compunha-se de coisas estragadas, desagradáveis e frias.
Arrepiei-me e comecei lentamente a despir-me.
Os lençóis estavam gelados e pareciam húmidos. A tal ponto
que quando me deitei tive a impressão de deixar o meu corpo
marcado em argila molhada. Fiquei muito tempo absorta a
reflectir, enquanto que, lentamente, a cama aquecia. O caso de
Sonzogne veio desviar os meus pensamentos e tentei analisar os
motivos e as consequências desta tenebrosa história. Agora
Sonzogne estava persuadido de que eu o denunciara; não havia
dúvida de que as aparências estavam todas contra mim. Mas
seriam só as aparências? Lembrei-me da sua frase: “Tenho a
impressão de que me seguem” e perguntei a mim própria se no fim
de contas o padre não teria falado. Não me parecia; mas até agora
não podia provar o contrário.
Continuando a pensar em Sonzogne pus-me a imaginar o
que se teria passado na minha casa depois da minha saída:
Sonzogne, que esperava, impacientava-se, vestia-se aquando da
entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de
Sonzogne, esta reconstituição dava-me um prazer insaciável e
obscuro. A minha imaginação apresentou-me os vários aspectos
da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem dúvida, na
luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o
polícia ferido cair, suspirei de alívio vendo Sonzogne fugir;
seguia-o com ansiedade ao descer as escadas e não me sentia
tranquila enquanto o não via desaparecer na distância escura da
avenida. Acabei por me cansar desta espécie de filme que imaginei
e apaguei a luz. Já das outras vezes reparara que a cama estava
encostada a uma porta de comunicação que dava para um quarto
contíguo. Logo que apaguei a luz vi filtrar-se um raio luminoso por
entre os batentes mal fechados. Apoiei-me nos cotovelos sobre a
almofada, passei a cabeça por entre as grades de ferro da cama e
espreitei pela fresta. Não o fazia por curiosidade, pois já sabia de
antemão o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para
fugir aos meus pensamentos e à solidão, que procurava, mesmo
só espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante
um bom bocado ninguém vi, em frente da fresta da porta havia
uma mesa redonda: a luz do lustre caía sobre esta mesa atrás da
qual entrevi o reflexo de um espelho de guarda-fato. No entanto
ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tão bem conhecia,
as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da
mulher era tranquila e reticente; a do homem rápida e trêmula. As
vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem já
deitados. À força de olhar sem ver nada, pôs-se-me uma dor na
nuca e estava a ponto de abandonar aquela posição quando a
mulher apareceu e se foi pôr do outro lado da mesa em frente do
espelho, que estava na sombra. Estava de pé, nua, de costas para
mim, mas a mesa só me permitia vê-la da cintura para cima.
Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graça,
de uma brancura anêmica, encimadas por uma cabeleira crespa.
Pensei que ela não devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio
caído e talvez até já tivesse sido mãe. Devia ser urna das
esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das praças
municipais, ao longo da estação, sem chapéu e frequentemente
sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com
enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia
mostrar as gengivas. Vieram-me estas ideias todas sem que eu
reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia
reconfortada e tive a impressão de que gostava desta rapariga e
compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olhar-se ao
espelho do guarda-fato. Mas o homem disse com uma voz brutal:
- Pode saber-se o que estás aí a fazer?
Ela afastou-se. Vi-a um momento de perfil, as costas curvas,
o peito chato, exactamente como eu a imaginara. Depois
desapareceu e passado um momento a luz apagou-se.
Senti extinguir-se na minha alma o vago sentimento que a
rapariga me suscitara e tornei a encontrar-me só na grande cama
ainda gelada, no quarto escuro e cheio de objectos vulgares e
feios. Pensei naqueles dois, do outro lado da parede, que
adormeceriam juntos daí a momentos e ela debaixo do seu
companheiro, o queixo sobre o seu ombro, as pernas entrelaçadas
nas suas, o braço à volta da cintura, a mão na virilha, os dedos
anichados nas pregas do ventre, como raízes procurando a vida
nas profundezas da terra. Senti-me de repente como uma planta
desenraizada e atirada para um pavimento de pedra lisa onde irá
estiolar e morrer. Jaime fazia-me falta. Estendia a mão e parecia
sentir um grande espaço gelado, inabitado, que me rodeava por
todos os lados e no meio do qual me encolhia, só e abandonada.
Sentia um violento e doloroso desejo de me agarrar a ele, mas ele
não estava presente e tinha a impressão de estar viúva. Comecei a
chorar estendendo os braços debaixo dos lençóis e imaginando
abraçá-lo. Acabei por adormecer não sei como.
Tive sempre o sono pesado; por isso na manhã seguinte,
quase me admirei ao acordar na cama de Zelinda com um raio de
sol sobre a almofada. Ainda estava meia atordoada quando ouvi
tocar o telefone no corredor. Zelinda atendeu. Chamou-me e
depois bateu à porta. Saltei da cama, e, em camisa e com os pés
nus, corri para o corredor. Zelinda voltara para a cozinha. Peguei
no auscultador e ouvi a voz da minha mãe a perguntar:
- És tu, Adriana?
- Sim.
- Mas porque te foste embora? Aqui aconteceram coisas!...
Podias ao menos ter-me avisado! Tive tanto medo!
- Já sei tudo - disse rapidamente. - É inútil falar agora nisso.
- Estava em cuidados contigo! - prosseguiu. - Está cá o Sr.
Diodatti?
- O Sr. Diodatti?
- Sim. Veio esta manhã muito cedo e quer ver-te por força.
Diz que te espera.
- Diz-lhe que vou já. Dentro de um minuto estou lá. Repus o
auscultador, corri para o quarto e vesti-me à pressa. Não esperava
que Jaime fosse posto em liberdade tão depressa e senti-me
menos feliz do que se estivesse esperando alguns dias ou uma
semana pela sua libertação. Uma libertação tão rápida
inspirava-me desconfiança; não podia deixar de sentir uma vaga
apreensão. Mas acalmei a minha inquietação pensando que, além
de tudo, podia ser que Astárito tivesse conseguido soltá-lo
imediatamente, como mo tinha prometido. De resto estava
impaciente por vê-lo e esta impaciência era feita de um sentimento
de felicidade ligeiramente angustiante.
Acabei de me vestir, meti na mala os cigarros, os bombons e
os bolinhos, para não magoar Zelinda, depois entrei na cozinha
para me despedir da dona de casa.
- Estás mais bem disposta agora? - disse-me. - Passou-te o
mau humor?
- Estava cansada... Até qualquer dia.
- Julgas que não ouvi o que dizias ao telefone? O Sr.
Diodatti... mas espera... toma uma chávena de café.
Já estava fora de casa e ela ainda falava atrás de mim. No
táxi, toda curvada no banco com as mãos em cima da mala,
estava preparada para descer logo que o carro parasse, porque
temia encontrar um ajuntamento em frente da minha porta,
depois dos tiros de Sonzogne. Perguntava a mim própria se seria
prudente entrar em casa; Sonzogne podia vir de um momento
para o outro para se vingar... Senti que isso não me importaria. Se
Sonzogne se queria vingar, que o fizesse; eu queria ver Jaime e
estava disposta a não me esconder mais por actos que não tinha
praticado.
Ninguém encontrei em frente da casa, nem ninguém na
escada. Impetuosamente irrompi pela sala e vi minha mãe, que
cosia à máquina, sentada ao pé da janela. O sol entrava a jorros
pelos vidros da janela; o gato da casa, sentado em cima da mesa,
alisava as patas. Minha mãe parou logo de coser e disse-me:
- Até que enfim... Não podias ao menos ter-me dito que ias à
polícia?
- Que polícia? Mas que estás a dizer?
- Eu teria ido contigo. Não teria passado por este susto!
- Mas eu não saí para ir chamar a polícia! - disse-lhe,
irritada. - Saí por sair. Os agentes procuravam outro. Quer dizer
que este também tinha alguma coisa na consciência.
- Não queres dizer-me, nem mesmo a mim? - respondeu-me
com um olhar de reprovação maternal.
- Mas o que?
- Não serei eu quem irá contar. Mas tu não quererás que eu
acredite que saíste só por sair. Aliás, os polícias vieram
justamente alguns minutos depois de teres saído.
- Mas não é verdade. Eu...
- De resto, fizeste bem. Há por aí muitos espiões. Sabes o
que um dos guardas me disse?
- “Esta cara não me é estranha”.
Compreendi que não havia maneira de a persuadir de que eu
não saíra para denunciar Sonzogne. Nada havia a fazer.
- Está bem. Está bem - interrompi-a bruscamente. - E o
ferido... como é que o levaram?
- Qual ferido?
- Disseram-me que havia um moribundo.
- Informaram-te mal... Um dos polícias teve um raspão num
braço com um tiro... fui eu quem lhe ligou a ferida... foi-se embora
pelo seu pé. Mas se tu tivesses ouvido aqueles tiros! Foi na escada
que eles dispararam. Toda a casa estremeceu de alto a baixo.
Depois interrogaram-me. Mas eu disse que nada sabia.
- Onde está Diodatti?
- No teu quarto.
Se eu tive esta pequena conversa com minha mãe fora
porque agora experimentava uma espécie de repugnância em ir ter
com Jaime, como se pressentisse uma má notícia. Saí da sala e
dirigi-me para o quarto. Estava mergulhado numa escuridão
completa; mas mesmo antes de eu ter posto a mão no interruptor,
ouvi a voz de Jaime que me dizia:
- Por favor, não acendas a luz.
Feriu-me o tom da sua voz, muito pouco alegre de verdade!
Fechei a porta, aproximei-me da cama às apalpadelas e sentei-me
aos seus pés:
- Sentes-te bem? - perguntei.
- Sinto-me muito bem.
- Não estás cansado?
- Não, não estou.
Previra um encontro diferente. Mas a verdade é que a alegria
não se pode separar da luz. Nesta escuridão parecia-me que os
meus olhos não podiam brilhar, a minha voz não podia soltar
exclamações alegres, as minhas mãos não se podiam estender
para reconhecer as formas queridas. Esperei um momento; depois
inclinando-me sobre ele, murmurei-lhe:
- Que queres fazer? Queres dormir?
- Não.
- Queres que me vá embora?
- Não.
- Que fique ao pé de ti?
- Sim.
- Queres que me deite em cima da cama?
- Sim.
- Queres que nos amemos? - perguntei por perguntar.
- Sim.
Esta resposta surpreendeu-me porque, como já disse, ele
nunca estava realmente disposto a fazer amor. Senti-me de
repente perturbada e acrescentei com voz acariciadora:
- Gostas de fazer amor comigo?
- Sim.
- Vais amar-me sempre daqui em diante?
- Sim.
- E ficaremos juntos para sempre?
- Sim.
- Mas não queres mesmo que eu acenda a luz?
- Não.
- Não tem importância... Dispo-me às escuras.
Comecei a despir-me com o embriagador sentimento da
vitória completa. Pensava que a noite passada na prisão lhe
revelara bruscamente que me amava e que precisava de mim.
Enganava-me, como se verá em seguida; se bem que pensasse que
houvera uma ligação entre esta brusca condescendência e a
prisão, não compreendia que esta mudança de atitude nada tinha
que me pudesse envaidecer, ou simplesmente alegrar. O meu
corpo, como um cavalo há muito tempo refreado, impelia-me
impetuosamente para ele; estava impaciente por lhe fazer o alegre,
o ardente acolhimento que um momento antes a obscuridade e a
sua atitude me não tinham permitido.
Mas quando me aproximei e me inclinei sobre a cama para
me estender ao seu lado, senti-o de repente tomar-me os joelhos
com os braços e morder-me a anca esquerda até fazer sangue.
Senti ao mesmo tempo uma dor aguda e uma sensação de
desespero que se exprimia por esta dentada, como se não
fôssemos dois amantes preparando-se para se amarem, mas dois
danados que o ódio, o furor e a tristeza impelissem, no fundo de
um inferno de um novo gênero, a morder-se um ao outro. A
dentada foi tão grande que quase se podia dizer que ele me queria
arrancar um bocado de carne. Enfim, se bem que eu quase
gostasse que ele me mordesse e, a despeito do pouco amor que eu
sentia nesta mordedura, me desse prazer, não pude suportar a
dor e empurrei-o dizendo em voz baixa e magoada:
- Mas não... que fazes? Magoas-me.
Foi assim que acabou o meu ilusório sentimento de vitória.
Em seguida, durante todo o tempo em que nos amamos, não
dissemos uma palavra; mas a sua atitude não deixava por isso de
me revelar obscuramente o verdadeiro porque do seu abandono,
que ele me explicaria mais tarde pormenorizadamente.
Compreendi que até então o que ele não aceitava não era tanto a
minha pessoa como uma parte dele próprio levada a desejar-me;
agora, pelo contrário, por um motivo que só ele sabia, deixava esta
parte dele próprio, refreada até então, saciar-se livremente. Eu em
nada contribuíra. Da mesma maneira que ele não me amava
antes, também não me amava agora. Eu ou outra era a mesma
coisa para ele. Agora como dantes eu não era mais do que um
meio do qual ele fazia uso para se punir ou para se recompensar.
Todas estas coisas, enquanto estivemos deitados no escuro, não
as pensara; sentia-as na, minha carne e no meu sangue, da
mesma maneira que algum tempo antes sentira que Sonzogne era
um monstro, sem saber ainda nada do seu crime. Mas amava
Jaime, e o meu amor era mais forte do que este
sentimento. Admirou-me a violência e insaciabilidade do seu
desejo, anteriormente tão avaro. Sempre pensara que ele se
moderava um pouco por razões de saúde, porque era de
compleição fraca. Por isso, depois de me ter possuído duas vezes,
ao vê-lo recomeçar pela terceira vez, não pude deixar de lhe
sussurrar ao ouvido:
- Por mim, podes... mas vê lá não te faça mal.
Tive a impressão de que se riu e ouvi a sua voz
murmurar-me:
- De futuro nada me pode fazer mal.
Este de “futuro” deu-me uma impressão fúnebre, se bem que
até mesmo o prazer que eu encontrava nestes beijos foi quase
suprimido e eu esperava com impaciência o momento em que lhe
pudesse falar e saber enfim o que lhe acontecera. Depois do amor
pareceu dormitar: mas talvez não dormisse. Esperei um tempo
razoável e, fazendo um esforço tal que o coração quase me saltava
do peito, perguntei-lhe em voz alta:
- Agora vais dizer-me o que te aconteceu.
- Nada me aconteceu.
- No entanto deve ter sucedido qualquer coisa.
Calou-se um momento, depois disse-me como se falasse
consigo próprio:
- Depois disto tudo, suponho que tu também o deves saber.
Pois bem! Aconteceu que depois das onze horas da noite eu
tornei-me um traidor.
Estas palavras gelaram-me horrivelmente, não tanto por
elas, como pela maneira como foram ditas.
- Um traidor? - balbuciei. - Porquê?
Respondeu-me no seu tom frio e lúgubre:
- Entre os seus companheiros de ideal político, o Sr. Diodatti
era conhecido pela sua intransigência de opiniões e pela violência
dos seus ódios. Consideravam muito simplesmente o Sr. Diodatti
como um futuro chefe e ele estava de tal maneira certo de que
faria boa figura em qualquer circunstância que quase desejava ser
preso e posto à prova. Sim, porque o Sr. Diodatti pensava que a
captura, a prisão e os outros sofrimentos são necessários na vida
de um homem político como são necessários os longos cruzeiros,
as tempestades e os naufrágios na vida de um homem do mar!...
Mas à primeira onda, o marinheiro sentiu-se mal como qualquer
criaturinha sem importância... Assim que se viu em frente de um
polícia, sem mesmo esperar que o ameaçassem ou o espancassem,
o Sr. Diodatti abandonou a carreira política e entrou na que podia
chamar-se da denúncia.
- Tiveste medo! - gritei.
Respondeu-me com calma:
- Não. Nem sequer tive medo. Somente sucedeu-me aquilo
que me aconteceu naquela famosa noite, contigo, quando querias
que te explicasse as minhas ideias... bruscamente aquilo deixou
de me interessar por completo. O que me interrogou pareceu-me
quase simpático. Tinha interesse em saber certas coisas... e eu,
nesse momento, não tinha interesse em esconder-lhas... então
disse-lhas... simplesmente. Ou talvez - acrescentou depois de uns
minutos de reflexão - não tão simplesmente como isso, mas logo,
apressadamente, poderia dizer que quase com zelo. Mais um
pouco e seria ele quem moderaria o meu entusiasmo!
Pensei em Astárito e pareceu-me estranho que Jaime o
tivesse achado simpático.
- Mas quem te interrogou? - perguntei.
- Não o conheço. Um homem novo, com uma cara
amarelada, olhos pretos, muito bem vestido. Devia ser um alto
funcionário.
- E achaste-o simpático! - não me pude impedir de gritar,
reconhecendo nesta descrição o próprio Astárito.
No escuro, disse-me ao ouvido:
- Devagarinho... não ele pessoalmente, mas a sua função.
Mas sim, quando se renuncia a si mesmo, ou quando não somos
aquilo que devíamos ser, o que conta é o que se é. Não sou eu o
filho de um rico proprietário? E este homem, dentro das suas
funções, não defende os meus interesses? Reconhecemos que
éramos da mesma raça... solidários da mesma causa... Que
imaginas? Que simpatizei com ele pessoalmente? Não, não... senti
simpatia pela sua função... Senti que era eu quem lhe pagava, que
era a mim que ele defendia; comparecendo perante a sua pessoa
como acusado estava por detrás como patrão.
Ria, ou, melhor, dava umas risadinhas que arranhavam os
meus ouvidos. Eu nada percebia, senão que acontecera qualquer
coisa muito triste e que a minha vida estava de novo em risco.
Acrescentou passado um momento:
- Talvez eu me calunie... talvez eu tenha falado assim,
porque nenhuma importância dava ao facto de não falar... Porque
bruscamente tudo me pareceu absurdo e sem importância e
porque não compreendia coisas nas quais deveria ter acreditado.
- Nada mais compreendias? - perguntei maquinalmente.
- Não... Quando muito compreendia as palavras como as
compreendo agora, mas não os factos que essas palavras
traduziam... E então... não se pode sofrer pelas palavras. As
palavras não são mais que sons... E ninguém vai para a cadeia
porque um burro zurrou ou a roda de um carro guincha. As
palavras já não tinham valor para mim, pareciam-me todas iguais
e absurdas. Ele queria palavras, eu dei-lhe tantas quantas ele
queria.
- Mas então - objectei eu - se eram só palavras, que mal é
que isso te pode fazer?
- Sim, mas, infelizmente, logo que foram pronunciadas essas
palavras cessaram de ser simples palavras e passaram a ser
factos.
- Porquê?
- Porque eu comecei a sofrer. Porque devo ter tido remorsos
de as ter dito. Porque, compreendi, senti que dizendo essas
palavras me tornara naquilo que se chama um traidor.
- Mas então porque as disseste?
Respondeu-me lentamente:
- Porque se fala quando se sonha? Dormia talvez... mas
agora acordei.
Virávamos o assunto por todos os lados e voltávamos sempre
ao mesmo ponto. Senti um desalento atroz e disse-lhe com
esforço:
- Talvez te tenhas enganado; julgas ter dito sabe Deus o que
é possível que não te tenhas comprometido.
- Não, não me engano - respondeu.
Calei-me um momento. Depois disse:
- E os teus amigos?
- Quais amigos?
- Túlio e Tomás.
- Nada sei a respeito deles - disse afectando indiferença. -
Vão prendê-los.
- Não - gritei. - Não os prenderão.
Pensava que Astárito não se tinha com certeza aproveitado
deste momento de fraqueza de Jaime. Pela primeira vez, no
entanto, a ideia da prisão dos dois amigos fez-me entrever a
gravidade de toda esta história.
- Porque não os prenderão? - disse ele. - Dei os seus nomes.
Nenhuma razão há para que não os prendam.
- Oh! Jaime! - gritei com angústia. - Porque fizeste isso?
- É o que pergunto a mim próprio.
- Mas se os prendem - disse eu, passado um momento,
agarrando-me assim à única esperança que me restava - nada há
de irreparável. Eles nunca saberão que foste tu...
- Não - interrompeu-me. - Mas eu saberei... saberei sempre...
saberei que não mais serei como era, que sou outra personagem, à
qual no momento em que falava dera a vida como a mãe dá ao
filho deitando-o ao mundo. E, infelizmente, esta personagem não
me agrada... aí é que está a desgraça... Há maridos que matam as
mulheres porque lhes é intolerável continuarem a viver juntos.
Imagina o que é ter dois seres no mesmo corpo quando há um que
odeia o outro até à morte. Quanto aos meus amigos, vão com
certeza prendê-los.
Não pude conter-me por mais tempo e disse-lhe:
- Mesmo que não tivesses falado, terias sido posto em
liberdade. E os teus amigos não correm qualquer perigo.
Contei por alto e rapidamente a história das minhas relações
com Astárito, a minha intervenção a seu favor e a promessa que
Astárito me havia feito. Ouviu-me sem dizer palavra, depois
declarou:
- Sim, senhor! Com que então devo a minha liberdade não só
à minha actividade de espião, mas ainda às tuas relações
amorosas com um polícia.
- Jaime! Não fales assim!
- De resto - continuou, passado um momento -, estou
contente que os meus amigos se consigam livrar; pelo menos não
terei esses remorsos na consciência.
- Vês? - disse-lhe vivamente. - Que diferença há entre ti e os
teus amigos? Eles também devem a sua liberdade, assim como tu,
a mim e ao facto de Astárito estar apaixonado.
- Perdão, aí há uma diferença! Eles não falaram.
- Quem to disse?
- Espero bem que não o tenham feito, fossem eles o que
fossem: de resto isso não seria uma consolação para mim.
- Mas tu não tens mais que passar a comportar-te como se
nada se tivesse passado! - insisti de novo. - Volta para o pé deles
sem fazer nenhuma alusão ao assunto... Que pode acontecer?
Acontece a toda a gente ter um momento de fraqueza.
- Sim - respondeu-me -, mas não acontece a toda a gente
morrer e continuar vivo. Sabes o que me aconteceu no momento
em que falei? Morri... estou morto... simplesmente morto... para
sempre.
Incapaz de suportar por mais tempo a angústia que me
apertava o coração desfiz-me em lágrimas.
- Mas porque estás a chorar? - perguntou-me.
- Por causa das coisas que dizes - respondi soluçando -, que
estás morto. Isso assusta-me tanto!
- Desagrada-te estar ao lado de um morto? - perguntou-me
brincando. - No entanto não é tão horrível como parece... Não é
mesmo nada horrível... Estou morto mas de uma maneira
particular... no que diz respeito ao corpo, estou bem vivo... apalpa
aqui e vê lá se não estou vivo.
Agarrou-me a mão e fez-me tocar-lhe no corpo.
- Estou bem vivo como tu sentes...
Puxava-me a mão para obrigar-me a apalpá-lo.
- Estou portanto vivo... por aquilo que te diz respeito, como
acabas de verificar, estou mais vivo do que nunca.. não tenhas
medo; se nós, enquanto eu estava vivo, não nos amamos muitas
vezes, em compensação vamos fazê-lo agora, que estou morto,
com muito mais frequência.
Com uma espécie de desprezo raivoso tirou de cima dele a
minha mão inerte. Levei as duas ao rosto e dei largo curso à
minha miserável dor. Desejaria ter chorado sempre, não parar de
chorar, porque temia o momento em que o pranto cessa e se fica
vazio e como que apatetado diante das coisas que o faziam sofrer.
No entanto, esse momento chegou; limpei ao lençol a minha cara
inundada e fixei os olhos dilatados no vácuo. Então ouvi que ele
me perguntava numa voz afectuosa e doce:
- Vejamos, na tua opinião que devia eu fazer?
Voltei-me para ele com violência, apertei-me contra o seu
peito e disse-lhe:
- Não pensar mais nisso... o que aconteceu, aconteceu... não
te preocupes... é o que deves fazer!
- E depois?
- Depois, retoma o trabalho... faz o teu doutoramento...
depois volta para a tua terra... pouco me importa se não te tornar
a ver desde que te saiba feliz... arranja um emprego! Quando
chegar o momento, casa com uma rapariga da tua região, da tua
situação social, que te ame sinceramente... A política para que te
serve? Tu não foste feito para a política... fizeste mal em te meter
nela... foi um erro; acontece a toda a gente cometer erros... Um dia
há-de parecer-te estranho como chegaste a interessar-te por essas
coisas. Eu amo-te sem egoísmo. Jaime. Outra mulher não
quereria separar-se de ti... Pois bem!... se for preciso parte
amanhã... não nos veremos mais, contanto que sejas feliz!
- Mas eu - disse ele em voz baixa e clara -, nunca mais serei
feliz; sou um delator.
- Não é verdade! - respondi, exasperada. - Não és um delator!
E mesmo que o tivesses sido podias ainda ser feliz. Há pessoas
que cometeram verdadeiros crimes, e no entanto são felizes. Eu,
por exemplo. Quando se diz uma mulher da rua, sabe Deus o que
se imagina: ora eu sou uma rapariga como as outras. Muitas vezes
sou até feliz. Nestes últimos dias - acrescentei com amargura - era
tão feliz!
- Eras feliz?
- Sim, completamente! Mas sabia bem que não podia durar
muito, e naturalmente...
Ao dizer isto tive outra vez vontade de chorar, mas
contive-me.
- Tu julgavas ser muito diferente do que és... E o que
aconteceu, aconteceu. Agora aceita ser como és realmente.. e
verás como tudo se arranjará depressa. No fundo sofres pelo
sucedido porque tens vergonha e receias o julgamento dos outros,
dos teus amigos... Pronto! Deixa de andar com eles, procura
outras pessoas, o mundo é tão grande.. Se eles não te querem o
suficiente para compreenderem que isto não foi mais que um
momento de fraqueza, fica comigo, eu amo-te, compreendo-te e
não te julgo... Asseguro-te - gritei com força -, quanto pior fosse a
acção que tivesses cometido mais serias para sempre o meu
Jaime!
Nada replicou e eu continuei:
- Não sou mais que uma pobre rapariga ignorante, eu sei,
mas há coisas que compreendo melhor do que tu. Eu também já
passei pelo que tu sentes neste momento. A primeira vez que nos
vimos, e em que tu nem sequer me tocaste, meteu-se-me na
cabeça que era porque me desprezavas e de repente perdi até
mesmo o gosto de viver. Sentia-me tão desgraçada! Gostaria de ser
outra e ao mesmo tempo compreendia ser impossível e que
continuaria sempre a ser o que era; tinha uma vergonha que me
queimava, um aborrecimento, um desespero... sentia-me gelada.
paralisada... por instantes desejei morrer. Depois, um dia, saí com
minha mãe e entrei por acaso numa igreja, e ali, rezando.
compreendi que no fundo nada havia de que corar... que se eu era
feita desta maneira era porque Deus o tinha querido, que não me
devia revoltar contra a minha sorte, mas, pelo contrário, aceitá-la
com docilidade e confiança, e que se me desprezavas era por
defeito teu e não meu... Em suma, pensei muitas coisas, e por fim
passou-me toda a mortificação e senti-me de novo alegre.
Começou a rir, com aquele riso que me gelava, e disse:
- Em resumo, devia aceitar o que fiz e não me revoltar. Devia
aceitar aquilo em que me tornei e não me julgar. Talvez que na
igreja se possam passar essas coisas, mas fora da igreja...
- Pois bem! Vai à igreja! - propus-lhe, agarrando-me a esta
nova esperança.
- Não, não irei. Não sou crente e a igreja aborrece-me. E
depois...
Recomeçou a rir, depois, de repente, pôs-se sério,
agarrou-me pelos ombros e começou a sacudir-me com violência,
gritando:
- Mas tu não compreendes a minha acção? Não
compreendes? Não compreendes?
Abanava-me com tal força que me cortava a respiração. Com
uma última sacudidela atirou-me para trás e senti-o saltar da
cama e começar a vestir-se às escuras.
- Não acendas a luz! - disse-me com ar ameaçador. - É
preciso que eu me habitue a que me olhem outra vez de frente...
por agora é ainda cedo. Ai de ti se a acendes!
Nem ousava respirar, mas acabei por perguntar:
- Vais-te embora?
- Sim, mas voltarei - disse-me.
Pareceu-me que ria de novo:
- Não tenhas medo, que voltarei... Devo mesmo dar-te uma
boa notícia: tenciono viver contigo definitivamente.
- Aqui, em minha casa?
- Sim, mas não te incomodarei... terás a liberdade necessária
para continuares com a tua vida habitual. De resto - acrescentou -
poderemos viver os dois com o que me manda a minha família...
dava para pagar a pensão... mas aqui em casa chega bem para os
dois.
Esta ideia de ele viver em minha casa parecia-me mais
estranha do que agradável. No entanto nada me atrevi a dizer.
Acabou de vestir-se em silêncio, às escuras.
- Voltarei esta noite - disse-me.
Ouvi-o abrir a porta, sair e tornar a fechá-la. Fiquei com os
olhos abertos fixos na escuridão.
10
Nessa mesma tarde, como Astárito me aconselhara, fui ao
comissariado do bairro fazer um depoimento sobre a história de
Sonzogne. Não entrava ali sem repugnância, porque depois do que
acontecera a Jaime, tudo o que era polícia ou policial
inspirava-me um mal-estar de morte. Mas agora já estava quase
resignada. Compreendia que durante algum tempo a vida não
teria o menor atractivo para mim.
- Esperamo-la de manhã - disse-me o comissário quando lhe
disse o motivo da minha visita.
Era um excelente homem e há muito tempo que o conhecia:
se bem que fosse pai de família e tivesse passado os cinquenta, já
há muito tempo que eu compreendia que tinha por mim mais do
que uma simples simpatia. Lembro-me, sobretudo do seu nariz:
grosso, esponjoso e com um ar melancólico. Tinha sempre o
cabelo despenteado e os olhos sonolentos, como se tivesse
acabado de levantar-se. Esses olhos, de um azul intenso, olhavam
como do interior de uma máscara num rosto espesso, rosado e
gretado, lembrando a casca de certas laranjas enormes, mas ocas.
Disse-lhe que me fora impossível vir mais cedo. Os seus
olhos olharam-me um momento, depois perguntou-me com um ar
cúmplice:
- Então como se chama ele?
- Como quer que saiba?
- Então, sabe muito bem!
- Palavra de honra! - disse-lhe pondo a mão no peito.
Abeirou-se de mim no Corso. Tive, de facto, a impressão de
qualquer coisa estranha na sua atitude, mas não lhe prestei
grande atenção.
- Como se compreende que não estivesse em casa e ele
tivesse lá ficado só?
- Tinha-o deixado porque tinha um encontro urgente.
- Mas ele julgou que tivesse saído para ir procurar a policia.
Sabia? Julgou que o tinha vendido.
- Já sei.
- E que lhe faria pagar isso.
- Tanto pior.
- Mas não percebe - acrescentou olhando-me de lado - que é
um homem perigoso e que amanhã, para se vingar da sua suposta
denúncia, pode muito bem atirar-lhe, como disparou sobre os
polícias?
- Com certeza que já percebi!
- Então porque não diz o seu nome? Seria preso e deixaria de
a preocupar.
- Pois se eu lhe digo que não sei! Não é por mal! Só me
faltava saber o nome de todos os homens que levo para casa!
- Está bem! Nós, pelo contrário - afirmou de repente com voz
forte e teatral, curvando-se para a frente -, nós sabemos o nome
dele!
Percebi que era uma cilada e respondi tranquilamente:
- Se o sabe, porque me atormenta tanto? Prendam-no e não
se fala mais nisso.
Olhou-me um momento em silêncio; notei que os seus olhos,
incertos e perturbados, fixavam mais o meu corpo do que a minha
cara e compreendi subitamente que, contra a sua vontade, o seu
velho desejo substituíra o fervor profissional.
- Sabemos ainda outra coisa - continuou - é que se ele
disparou e se safou é porque tinha boas razões para o fazer!
- Ah! Quanto a isso não tenho dúvidas!
- Mas conhece essas razões?
- Não sei coisa alguma. Pois se eu nem lhe conheço o nome,
com quer que saiba o resto?
- Nós sabemos muito bem o resto.
Falava mecanicamente, como se pensasse noutra coisa:
tinha a certeza de que não tardaria a levantar-se e a vir ao pé de
mim.
- Nós sabemos muito bem e havemos de o apanhar... é uma
questão de dias, talvez de horas.
- Ainda bem para vocês.
Levantou-se, como eu tinha previsto, chegou-se a mim e
agarrou-me o queixo com a mão:
- Vamos! Vamos! - disse-me. - Sabe tudo e não quer dizer.
De que tem medo?
- De nada tenho medo e nada sei - respondi. - Mas trate de
tirar as mãos...
- Vamos! Vamos! - repetiu.
Mas voltou a sentar-se à secretária.
- Tem sorte em eu simpatizar consigo e saber que é boa
rapariga - disse-me. - Sabe o que qualquer outro faria para a
obrigar a falar? Tê-la-ia engaiolado durante um bom bocado. Ou
então mandava-a para S. Galicano.
Levantei-me declarando:
- Bem! Tenho que fazer! Se nada mais tem para me dizer...
- Pode retirar-se - concordou - mas tenha cuidado com a
frequência... políticos e outros!
Fingi não perceber as últimas palavras, pronunciadas num
tom cheio de alusões, e saí rapidamente das salas sórdidas do
comissariado.
Enquanto andava pensava em Sonzogne. O comissário não
tinha feito mais que confirmar o que eu já tinha pensado:
Sonzogne estava convencido de que eu o denunciara e queria
vingar-se. Fui tomada de pavor, não por mim, mas por Jaime.
Sonzogne estava furioso; se ele encontrasse Jaime comigo não
hesitaria em matá-lo também. Devo dizer que a ideia de morrer
com Jaime me sorria estranhamente. Parecia-me ver a cena:
Sonzogne disparava; eu punha-me à frente de Jaime para o
proteger e recebia a bala em seu lugar. Mas não me desagradava
imaginar Jaime também ferido e a nossa morte comum, com os
nossos sangues misturados. No entanto reflectia que ser morto ao
mesmo tempo pelo mesmo assassino não era tão belo como um
suicídio duplo, o qual me parecia um fim digno de um grande
11amor. Era como matar uma flor antes de ela começar a fenecer,
fechar-se no silêncio depois de ter ouvido uma música sublime.
Tinha algumas vezes pensado nesta forma de suicídio que pára o
tempo antes que ele corrompa e avilte o amor e que se leva a efeito
mais por excesso de alegria que pela intolerância da dor.
Momentos havia em que me parecia amar Jaime com demasiada
intensidade ao ponto de recear a impossibilidade de, no futuro, o
amar tanto; tive a ideia deste suicídio duplo com a mesma
naturalidade e a mesma espontaneidade como o beijava e o
acariciava. Mas nunca lhe falara nisso porque sabia que para nos
matarmos juntos era condição essencial que o nosso amor tivesse
a mesma intensidade. E Jaime não me tinha amor ou se o tinha
não me queria o suficiente para desejar deixar de viver.
Continuando a andar de cabeça baixa na direcção de casa,
reflectia intensamente em tudo isto. De repente senti uma espécie
de vertigem acompanhada de náuseas e de um mal-estar horrível.
Nem sei como consegui entrar numa leitaria. Estava a poucos
passos da minha casa, mas não tinha forças para fazer aquele
curto trajecto; teria caído no chão se o tentasse.
Sentei-me a uma mesa atrás da porta envidraçada e fechei
os olhos. Continuava a sentir uma violenta sensação de náusea e
de vertigem e esta sensação era agravada pelo arquejar da
máquina do café, embora bastante afastada, que me produzia
uma sensação de angústia. Sentia na cara e nas mãos a tepidez
da sala fechada e aquecida e, no entanto tinha muito frio. O
empregado conhecia-me e gritou-me por detrás do balcão:
- Um café, menina Adriana?
11
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Disse que sim com a cabeça, sem abrir os olhos. Por fim
reanimei-me e tomei o café que o empregado colocara em cima da
mesa. A bem dizer não era a primeira vez que era tomada por esta
má disposição; nos últimos tempos sentira-a já, mas não tinha
ligado importância, devido aos acontecimentos insólitos e
angustiantes. Mas agora, pensando nisso e estabelecendo uma
relação entre a indisposição e uma irregularidade significativa
verificada na minha vida física no decurso do mês, convenci-me de
que certas suspeitas que ultimamente haviam atravessado o meu
espírito e a que eu não dera consistência correspondiam à
verdade.
“Não há dúvida alguma”, pensei bruscamente. “Espero com
certeza um filho.” Paguei o café e saí. O que nesse momento sentia
era muito complicado: hoje ainda, passado tanto tempo, não me é
fácil traduzi-lo. Por experiência própria sabia que as desgraças
nunca vêm sós; a presente certeza que tempo atrás e noutras
circunstâncias seria acolhida com alegria, neste momento não
podia deixar de considerá-la uma desgraça. Mas, por outro lado,
um movimento irresistível e misterioso da minha alma leva-me
sempre a descobrir o lado agradável das coisas mais
desconcertantes. Desta vez o lado agradável não era difícil de
descobrir; era o mesmo que enchia de esperança e de satisfação o
coração de todas as mulheres logo que sentem que foram tomadas
pela prenhez. Era um facto que o meu filho nasceria nas mais
desfavoráveis condições; no entanto, não seria menos meu filho:
seria eu quem o amamentaria, o criaria e o educaria. “Um filho é
um filho”, pensava eu; “não há pobreza, nem circunstâncias
adversas, nem futuro sombrio que possam impedir uma mulher,
por mais miserável e abandonada que seja, de se alegrar à ideia de
ir ser mãe.” Estas reflexões acalmaram-me; depois de um minuto
de apreensão e de desencorajamento senti-me tão tranquila e
confiante como sempre. O jovem médico que me vira há tanto
tempo já, quando minha mãe me levara à farmácia de serviço para
saber se eu tinha ou não pertencido a Gino. tinha o consultório
próximo da pastelaria. Resolvi ir lá e consultá-lo. Era cedo:
ninguém havia na sala de espera; o doutor, que me conhecia
muito bem, acolheu-me com simpatia. Logo que fechei a porta,
anunciei-lhe tranquilamente:
- Doutor, tenho quase a certeza de estar grávida.
Ele começou a rir porque sabia qual era o meu ofício e
perguntou-me:
- Estás contrariada por isso?
- De maneira nenhuma. Estou contente.
- Vejamos.
Depois de me ter feito algumas perguntas sobre a minha
indisposição, mandou-me estender na marquesa, examinou-me e
disse alegremente:
- Desta vez é certo!
Senti-me feliz por ver as minhas suspeitas confirmadas.
Disse-lhe com o espírito tranquilo e sem sombra de
desapontamento:
- Já o sabia; vim só para ter a certeza.
- Agora podes estar certa.
Esfregava as mãos alegremente como se fosse ele o pai da
criança, alegre, cheio de simpatia por mim. Mas uma dúvida
atravessou-me o espírito:
- Há quanto tempo? - perguntei.
- Bom! Talvez dois meses... um pouco mais, um pouco
menos... Porquê, queres saber de quem é?
- Já sei.
Dirigi-me para a porta.
- Se precisares seja do que for, podes procurar-me - disse,
abrindo-me a porta. - Quando chegar a altura, procuraremos fazer
com que nasça nas melhores condições possíveis.
Tinha por mim, como o comissário, uma inclinação muito
acentuada. Mas a diferença é que este agradava-me.
Vinha frequentemente consultá-lo. Pelo menos uma vez de
quinze em quinze dias. E duas ou três vezes, por gratidão, tinha
consentido que ele me amasse, ali mesmo sobre a marquesa
coberta de oleado onde acabara de me examinar. Mas ele era
discreto e contentava-se com pequeninos gracejos afectuosos, sem
nunca me impor os seus desejos. Dava-me conselhos e imagino
que, à sua maneira, estava também um pouco apaixonado por
mim.
Tinha dito ao médico que conhecia o pai do meu filho. Na
realidade no momento em que pronunciei estas palavras não tinha
mais do que uma suspeita e mais por instinto que por cálculo.
Mas caminhando, quando contei os dias e reavivei as minhas
recordações, esta suspeita tornou-se certeza. Lembrei-me do
desejo e do terror que me tinham arrancado, precisamente quase
há dois meses, um longo grito lamentoso de agonia e de prazer, e
fiquei quase certa que o pai não podia ser outro senão Sonzogne.
Era horrível pensar que iria ter um filho de um assassino
insensível e monstruoso como Sonzogne; podia recear que a
criança se parecesse com o pai e viesse marcada com o seu
carácter. Por outro lado não podia deixar de encontrar alguma
justiça nesta paternidade. Entre tantos homens que me tinham
amado Sonzogne era o único que realmente me possuíra fora de
qualquer sentimento amoroso, no fundo mais obscuro e mais
secreto da minha carne. O facto de eu experimentar por ele
apenas medo e horror e de me ter entregue contra vontade não
desmentia, antes confirmava, a profundidade desta posse. Nem
Gino, nem Astárito, nem mesmo Jaime, por quem eu tinha uma
paixão de um gênero completamente diferente, tinham suscitado
em mim o sentimento de uma posse tão legítima quão detestada.
Tudo isto me parecia ao mesmo tempo estranho e assustador, mas
era assim: os sentimentos são a única coisa que não se pode
recusar, nem desmentir, nem mesmo analisar, num certo sentido.
Acabei por concluir que o amor exige uns certos homens e a
procriação outros, e que se era justo que eu tivesse um filho de
Sonzogne não era menos justo da minha parte detestá-lo, fugir-lhe
e amar Jaime como o amava.
Subi lentamente a minha escada pensando no fardo vivo que
de futuro traria no ventre. Quando entrei no vestíbulo ouvi falar
na sala grande. Espreitei e vi com surpresa Jaime, sentado à
mesa, conversando calmamente com minha mãe, sentada a coser
ao pé dele. Só o candeeiro central estava iluminado: um candeeiro
de suspensão. Uma grande parte da sala estava às escuras.
- Boas-noites - disse, molemente, aproximando-me.
- Boas-noites, boas-noites - disse-me Jaime com voz
hesitante e desagradável.
Olhei-o de frente, vi-lhe os olhos brilhantes e tive a certeza
de que estava embriagado. Num canto da mesa havia dois
guardanapos e dois pratos. Como minha mãe comia sempre na
cozinha, percebi que o outro era para Jaime.
- Boas-noites - repetiu. - Trouxe as minhas malas. Estão no
teu quarto. Já conversei amigavelmente com tua mãe... Não é
verdade, minha senhora, que nos entendemos às mil maravilhas?
Senti no coração um enorme desalento ao ouvir esta voz
sarcástica e lugubremente chocarreira. Caí sobre uma cadeira e
fechei os olhos. Ouvi minha mãe responder-lhe:
- Disse que nos entendíamos... se diz mal de Adriana nunca
nos entenderemos.
- Mas que disse eu? - gritou Jaime, falsamente admirado. -
Que Adriana é feita para a vida que leva. Que Adriana se sente
bem nesta vida... Que mal há nisso?
- Não é verdade - retorquiu a minha mãe. - Pelo contrário, a
Adriana não é feita para a vida que leva. Com a sua beleza ela
merecia melhor, muito melhor. Não sabe que a Adriana é uma das
mais bonitas raparigas do bairro, para não dizer de Roma? Vejo
outras raparigas muito mais feias do que ela fazerem fortuna,
enquanto a Adriana, que é bela como uma rainha, nada possui.
Mas eu sei porque é.
- Porque é?
- Porque ela é boa de mais, aí está! É tão bonita como boa.
Se ela fosse bonita e má, veria como as coisas seriam diferentes.
- Então! Então! - disse eu aborrecida com a discussão, e
sobretudo com o tom de Jaime, que parecia troçar de minha mãe.
- Tenho uma destas fomes! O jantar ainda não está pronto?
- Está quase pronto - disse minha mãe pousando a costura
sobre a mesa e saindo rapidamente.
Levantei-me e segui-a até à cozinha.
- Então isto agora é uma pensão? - resmungou ela quando
me aproximei. - Veio armado em patrão... meteu as malas no teu
quarto, deu-me dinheiro para as despesas...
- Então não estás contente?
- Preferia como dantes.
- Bem. Faz de conta que estamos noivos. E depois é
provisório; é uma questão de dias; ele não vai ficar sempre aqui.
Disse-lhe outras coisas do mesmo gênero para a apaziguar,
beijei-a e voltei para a sala grande.
Recordarei por muito tempo este primeiro jantar com Jaime
lá em casa, comigo e com minha mãe. Ele esteve sempre a brincar
enquanto comia com apetite. Mas a mim as suas brincadeiras
pareciam-me mais frias do que gelo e amargas como o fel. Via-se
bem que não tinha senão uma ideia, que esta ideia estava
enterrada na consciência como um espinho na carne e que estas
brincadeiras não faziam senão mergulhar mais profundamente
este espinho e reavivar-lhe a dor. Era a ideia do que dissera a
Astárito. Nunca na minha vida vi alguém arrepender-se tão
sinceramente de uma falta cometida. Somente, ao contrário do
que os padres me tinham ensinado quando eu era garota, que o
arrependimento lava a falta - este arrependimento parecia não ter
fim, nem consequência, nem o mínimo resultado benéfico.
Compreendi que Jaime sofria horrivelmente e eu tanto como ele
ou talvez ainda mais, porque não sofria somente a sua dor, mas a
minha impotência para lha tirar, ou pelo menos aliviar.
Comemos em silêncio o primeiro prato. Depois minha mãe,
de pé, disse não sei o quê sobre o preço da carne e então Jaime
levantou a cabeça e respondeu-lhe:
- Não tenha medo, minha senhora. De ora em diante serei eu
quem pensará em tudo; vou ter um bom emprego.
A esta notícia senti um pouco de esperança.
- Que lugar? - perguntou a minha mãe.
- Um lugar na polícia - respondeu-lhe Jaime, com uma
gravidade contrita -, foi um amigo da Adriana quem mo propôs... o
Sr. Astárito.
Pousei o garfo e a faca e olhei-o intensamente.
- Descobriu-se - continuou - que eu possuía excelentes
qualidades para fazer parte da organização.
- É possível - respondeu minha mãe -, mas eu nunca gostei
de polícias... O filho da lavadeira que mora cá em cima também se
fez policia. Sabe o que disseram os rapazes que trabalham no
depósito de cimento, aqui ao lado? “Podes pôr-te ao largo porque
já não te conhecemos!” Além disso, eles ganham mal.
Fez uma careta, mudou-lhe o prato e apresentou-lhe a
carne.
- Mas não se trata disso - replicou Jaime servindo-se. -
Trata-se de um lugar importante, delicado, secreto... Que diabo!
Eu para alguma coisa andei a estudar! Estou quase doutorado,
falo várias línguas. Só os pobres-diabos se tornam agentes, não
pessoas como eu.
- É possível - repetiu minha mãe. - Toma! - acrescentou
pondo no meu prato o bocado maior da carne.
- Não é possível - disse Jaime - é certo!
Calou-se por um instante, depois repetiu:
- O governo sabe que há mal-intencionados por toda a
parte... Não só nas classes pobres, mas também nas ricas... Para
vigiar os ricos são precisas pessoas bem educadas, que falem
como eles, se vistam como eles, tenham os mesmos modos... que
lhes inspirem confiança, em suma... É o que farei... frequentarei
os hotéis de primeira categoria, viajarei no wagon-lit, comerei nos
melhores restaurantes, vestirei dos melhores alfaiates,
frequentarei as praias de luxo, os desportos de Inverno mais
famosos... Que diabo! Por quem me tomam vocês?
Minha mãe agora olhava-o pasmada. Todos estes
esplendores a maravilharam.
- Nesse caso - declarou - já nada mais tenho a dizer.
E eu, tendo acabado de comer, de repente tornara-se-me
impossível continuar a assistir a esta lúgubre troca de palavras.
- Estou cansada - disse bruscamente. - Vou para o meu
quarto.
Levantei-me e saí da sala. Uma vez no quarto, sentei-me na
cama, e toda enrolada comecei a chorar em silêncio com o rosto
entre as mãos. Pensava no desgosto de Jaime e na criança que ia
nascer e tinha a impressão de que as duas coisas, a mágoa e a
criança, aumentavam por uma força estranha que não dependia
de mim e que eu não podia dominar; elas estavam vivas, nada
havia a fazer. Passado um momento ele entrou; levantei-me e errei
um pouco pelo quarto para que ele não visse os meus olhos com
lágrimas e dar tempo a secá-los. Acendeu um cigarro, atirou-se
para cima da cama e ficou deitado de costas. Sentei-me ao seu
lado e pedi-lhe:
- Suplico-te, Jaime... não fales assim à minha mãe.
- Porque?
- Porque ela não compreende; eu, pelo contrário,
compreendo e cada uma das tuas palavras é como uma agulha
que me enterrassem no coração.
Não respondeu e continuou a fumar em silêncio. Tirei da
gaveta uma das minhas camisas, agulha e linha, sentei-me na
cama ao lado da lâmpada e, calada, comecei a coser. Não queria
falar porque tinha medo de que ele voltasse ao mesmo assunto;
esperava, pelo contrário, que se guardássemos silêncio ele
acabaria por desanuviar o espírito e pensar noutra coisa. A
costura requer muita atenção visual, mas deixa o espírito livre; as
mulheres batidas nesse trabalho sabem-no bem. Enquanto cosia,
os pensamentos fervilhavam e giravam-me na cabeça, ou, melhor,
assim como o fio passava e repassava através do tecido, assim eles
pareciam coser no meu espírito não sei que bainha ou rasgão.
Também eu tinha agora a mesma obsessão e não conseguia deixar
de pensar no que ele dissera a Astárito e nas consequências que
se seguiriam. Mas queria libertar o espírito destes pensamentos,
até porque receava que alguma misteriosa influência o poderia
obrigar a pensar a ele também, levando-o a aumentar a sua dor.
Queria, pois, pensar nalguma coisa clara, alegre e leve, e com
todas as forças da minha alma concentrava toda a minha
imaginação sobre o filho que iria nascer; era, com efeito, o único
aspecto alegre da minha vida entre tantas coisas terrivelmente
tristes. Imaginava-o tal como seria quando tivesse dois ou três
anos, a melhor idade, em que as crianças são sempre mais
bonitas e mais engraçadas; e, cogitando em tudo o que ele faria e
diria e na maneira como o criaria, senti voltar-me a alegria, como
esperava; esqueci por momentos Jaime e a sua mágoa. Acabara de
coser a camisa; peguei noutra peça de roupa para passajar, e
lembrei-me de que poderia aliviar a tensão das longas horas que
passaria com Jaime fazendo o enxovalinho do meu filho. Somente,
seria preciso fazê-lo às escondidas ou arranjar um pretexto. Diria
a Jaime que o destinava a uma das nossas vizinhas que também,
por acaso, com efeito esperava um bebé; a ideia pareceu-me
óptima, até porque já falara nesta mulher a Jaime e aludira à sua
pobreza. Estes pensamentos distraíram-me de tal maneira que
comecei, quase sem dar por isso, a cantar em voz baixa. Tenho a
voz fraca, mas afinada, com uma grande doçura de timbre, que se
nota mesmo quando falo. Comecei uma canção muito em voga
naquele tempo que se chamava Cidade Triste. Como levantasse os
olhos para partir a linha com os dentes, vi que Jaime me olhava.
Então, pensando que me poderia censurar por cantar num
momento tão grave, calei-me:
Olhou-me e disse:
- Continua a cantar.
- Gostas que eu cante?
- Sim.
- Mas não canto bem.
- Não faz mal.
Recomecei a coser e a cantar para ele. Como todas as
raparigas, eu sabia um grande número de canções; tinha boa
memória e lembrava-me do que aprendera em criança. Cantei-lhe
um pouco de tudo. A uma canção seguia-se outra. Comecei por
cantar em surdina, mas depois tomei-lhe o gosto e cantei em voz
alta com o maior sentimento que podia. As cantigas sucediam-se;
enquanto cantava uma pensava já noutra. Ele ouviu-me com uma
certa seriedade no rosto e eu sentia-me feliz por poder distrair o
seu espírito. Mas ao mesmo tempo pensava que quando era
pequena tinha perdido não sei que brinquedo de que gostava
muito; como não deixasse de chorar a sua perda, minha mãe,
para me consolar, sentara-se na minha cama e começara a cantar
as três únicas canções que sabia. Cantava mal, tinha voz de
falsete, mas apesar de tudo acabara por me distrair: ouvia-a
exactamente como Jaime me ouvia agora. Passado um momento.
a ideia do brinquedo perdido começou a infiltrar-se como gotas de
amargura no breve esquecimento que minha mãe me oferecera e
acabou por apagá-lo totalmente e torná-lo, por contraste,
insuportável, tanto assim que eu tinha recomeçado a chorar e que
minha mãe, impaciente, me tinha apagado a luz deixando-me a
chorar às escuras. Tinha a certeza de que apenas tivesse passado
a apaziguadora doçura do meu canto, era impossível que ele não
voltasse a sentir a sua mágoa, mais forte e mais aguda ainda, pelo
contraste do superficial sentimentalismo das minhas canções. Não
me enganava. Havia quase uma hora que eu cantava quando de
repente me interrompeu:
- Agora chega! Aborreces-me com as tuas canções!
Enroscou-se como para dormir e voltou-me as costas.
Esperava esta indelicadeza, por isso não me afligiu. De resto agora
só esperava coisas desagradáveis e só o contrário me faria
admirar. Levantei-me e fui guardar a minha roupa já passajada.
Depois despi-me sem dizer palavra e enfiei-me na cama no lado
que Jaime deixara livre. Ficamos assim muito tempo, em silêncio,
de costas um para o outro. Sabia que ele não dormia e que
continuava possuído da sua ideia dominante; esta certeza, aliada
ao agudo sentido da minha impotência, provocava no meu espírito
um turbilhão de pensamentos confusos e desesperados. Estava
deitada de lado e, reflectindo, fixava os olhos num canto do
quarto. Via uma das duas malas que Jaime trouxera de casa da
viúva Medolaghi; uma velha mala de couro amarelo, recamada de
etiquetas de hotéis. Havia uma, com um rectângulo de mar azul,
uma grande rocha vermelha e a inscrição: “Capri”. Na sombra,
pelo meio do mobiliário pálido e pobre do meu quarto, esta
mancha azul parecia-me luminosa; dir-se-ia, mais que uma
mancha, um buraco através do qual eu podia ver um bocado deste
mar longínquo. Assaltou-me uma grande nostalgia do mar, tão
alegre, tão vivo, onde todos os objectos, mesmo os mais corruptos
e os mais disformes, se purificam, se alisam, se arredondam, até
se tornarem puros e belos. Sempre gostei do mar, até do mar
entulhado de óstia. Ao ver o mar sinto sempre uma impressão de
liberdade que embriaga os meus ouvidos mais do que os meus
olhos, como se as notas de uma música mágica eterna andassem
sobre as vagas. Pus-me a pensar no mar com um desejo agudo da
sua espuma transparente, que parece lavar ao mesmo tempo os
corpos e as almas, tornando-as leves pelo seu líquido contacto.
Disse a mim mesma que se pudesse levar Jaime para o mar talvez
que esta imensidade, este marulhar perpétuo obtivessem o efeito
que o meu amor só por si não podia provocar. Perguntei-lhe de
repente:
- Estiveste em Capri?
- Sim - respondeu sem se voltar.
- É bonito?
- Sim... muito bonito.
- Ouve - disse-lhe voltando-me e passando-lhe o braço pelo
pescoço - porque não vamos a Capri ou a qualquer outro sítio
junto do mar? Ficando aqui, em Roma, nada mais farás do que
pensar nessas coisas desagradáveis... Se mudares de ares e de
meio, tenho a convicção de que verás tudo por outro prisma. Há
tantas coisas que agora não vês... Estou certa de que te faria bem!
Não respondeu imediatamente e parecia reflectir. Depois
disse-me:
- Não preciso de ir para o mar. Também aqui podia, como tu
dizes, ver as coisas de outra maneira... Seria suficiente aceitar o
que fiz, como me aconselhas; gozaria logo a existência do céu, da
terra, de ti, de tudo... Julgas que não sei que o mundo é belo?
- Então aceita - disse eu com voz ansiosa... - Que te pode
isso fazer?
Começou a rir.
- Seria preciso pensar nisso antes - respondeu-me. - Aceitar
desde o início. Mesmo os mendigos que se aquecem ao sol
aceitaram-no desde o princípio. Para mim é demasiado tarde.
- Mas porque?
- Há os que aceitam e os que não aceitam. É evidente que eu
pertenço à segunda categoria.
Calei-me sem saber que dizer. Acrescentou, passado um
momento:
- Agora apaga a luz; dispo-me às escuras... Creio que são
horas de dormir.
Obedeci. Despiu-se às escuras e deitou-se ao meu lado.
Voltei-me para ele e tentei beijá-lo. Repeliu-me sem uma palavra,
enrolou-se e voltou-me as costas. Este gesto encheu-me de
amargura e aconcheguei-me, por minha vez, a alma viúva,
esperando o sono. Tornei a pensar no mar: desejei ardentemente
morrer afogada. Pensava que não sofreria mais do que um
momento. Depois o meu corpo inanimado flutuaria muito tempo
sob o céu, de vaga em vaga. Os pássaros marinhos debicariam os
meus olhos, o sol queimar-me-ia o peito e o ventre; os peixes
morder-me-iam as costas. Por fim mergulharia puxada por alguma
corrente azul e fria que me faria viajar no fundo do mar durante
meses e anos, pelo meio de recifes submarinos, peixes e algas; e
muita, muita água límpida e salgada, passaria sobre a minha
testa, o meu peito, o meu ventre, as minhas pernas, levando
lentamente a minha carne, polindo-me, gastando-me cada vez
mais. Por fim qualquer vaga, num dia qualquer, me atiraria com
fragor para uma praia distante, reduzida a alguns ossos frágeis e
brancos. Gostava da ideia de ser arrastada pelos cabelos para o
fundo do mar; gostava da ideia de um dia ou outro ser reduzida a
uma ossada sem identificação, no meio dos brancos calhaus de
uma praia. Talvez alguém, sem que o sentisse, caminhasse sobre
os meus ossos e os reduzisse a poeira branca. Acabei por
adormecer com estes pensamentos voluptuosos e tristes.
11
No dia seguinte verifiquei que o sono e o repouso não haviam
modificado de forma alguma os sentimentos de Jaime. Pelo
contrário, julguei notar que se tinham agravado. Como na
véspera, passava muito tempo em longos silêncios obstinados e
lúgubres ou falava com sarcasmo sobre coisas indiferentes, mas
nas quais, no entanto, transparecia sempre o mesmo pensamento
dominante. O agravamento que julguei observar consistia numa
inércia, numa apatia e numa negligência quase voluntárias que
nele, sempre tão activo e enérgico, era qualquer coisa nova e
parecia indicar um desprendimento progressivo de tudo o que
fizera até então. Abri-lhe as malas e arrumei-lhe as roupas e os
fatos. Mas quando se tratou dos livros dos seus estudos, e que eu
sugeri os alinhasse provisoriamente sobre o mármore da cômoda,
em frente do espelho, respondeu-me:
- Podes deixá-los na mala... já não servirão mais.
- Porquê? - perguntei-lhe. - Tu não tens que fazer o teu
doutoramento?
- Não farei o doutoramento.
- Não queres continuar a estudar?
- Não.
Não insisti, receosa que voltasse a falar da sua habitual
angústia e deixei os livros na mala. Também não se lavava nem
pensava em fazer a barba, ele que fora sempre asseado e muito
cuidadoso com a sua pessoa. Este segundo dia passou-o no
quarto fumando, estendido na cama, ou passeando para trás e
para diante, com ar pensativo e as mãos nos bolsos. Mas ao
almoço, como me prometera, não falou com minha mãe. Veio a
noite, declarou-me que jantaria fora e saiu sozinho; não ousei
propor-lhe a minha companhia. Não sei onde foi; estava já para ir
deitar-me quando entrou; era patente que tinha bebido. Beijou-me
com grandes e cômicos gestos e quis possuir-me. Anui, embora
notasse que amar era para ele, de fato, como beber, um acto
desagradável, cumprido por força, com o único fim de se fatigar e
aturdir.
Disse-lho e acrescentei:
- Tanto te fazia ir comigo como com qualquer outra.
Riu-se e respondeu:
- Com efeito, tanto fazia... mas como és tu quem está aqui, é
mais fácil!...
Magoaram-me estas palavras e, mais ainda, afligiu-me a
pouca afeição, ou melhor, a falta absoluta de afeição que as suas
palavras demonstravam.
Mas bruscamente, como se alguma coisa me iluminasse,
voltei-me para ele e disse-lhe:
- Olha.. eu sei que não sou mais do que uma rapariga
qualquer... mas procura amar-me. É por ti que o peço. Se
chegares a amar-me, estou certa de que acabarás por te amar a ti
mesmo.
Olhou e repetiu com voz forte e trocista: “Amor! O amor!” e
apagou a luz. Fiquei às escuras com os olhos dilatados, aflita,
perplexa, não sabendo o que pensar.
Os dias que se seguiram não lhe trouxeram qualquer
modificação: tudo continuou na mesma. Parecia ter substituído os
seus velhos hábitos por outros novos, e era tudo. Primeiro
trabalhava, ia à Universidade, conversava com os amigos no café e
lia. Agora fumava, estendido na cama, passeava no quarto, tinha
as suas conversas habituais alusivas e estranhas, embebedava-se
e possuía-me. Ao quarto dia comecei a sentir-me desesperada.
Sabia que a sua mágoa não diminuíra e parecia-me impossível
continuar a viver assim. O meu quarto, constantemente cheio de
fumo dos cigarros, parecia-me uma oficina de dor, trabalhando
noite e dia sem descanso; o próprio ar tornara-se carregado de
tristes e obcecantes pensamentos. Nesses momentos amaldiçoava
muitas vezes a minha insignificância, a minha ignorância e o facto
de ter uma mãe ainda mais insignificante e ignorante do que eu.
Quando se têm graves problemas o nosso primeiro movimento é
pedir conselhos a uma pessoa mais velha e mais experiente. Ora
eu ninguém conhecia que estivesse nessas condições: pedir
conselhos a minha mãe era a mesma coisa que os pedir a uma das
muitas crianças que brincavam no pátio da casa. Por outro lado
não chegava a penetrar bem fundo na dor de Jaime: havia muitas
coisas fora do alcance da minha inteligência, e acabei por me
persuadir de que o seu principal tormento era saber que as
declarações que fizera perante Astárito constavam dos papéis da
polícia, que ficariam no arquivo como o eterno testemunho da sua
fraqueza. Certas frases dele confirmaram-me esta ideia. Uma
tarde disse-lhe:
- Se te tortura que se tenha escrito tudo o que disseste a
Astárito... ele fará por mim seja o que for. Tenho a certeza de que
se lho pedir ele fará desaparecer o interrogatório.
Olhou-me e perguntou-me em tom singular:
- Que te faz pensar isso?
- Tu mesmo o declaraste no outro dia... Quando te disse que
devias tentar esquecer tu respondeste-me: “Mesmo que eu o
esquecesse, a polícia lembrar-se-á”.
- E como lhe pedirás?
- É muito simples. Telefono-lhe e vou ao Ministério.
Não disse nem sim nem não. Insisti:
- Então queres que lhe vá pedir?
- Por mim, faz como entenderes.
Saímos juntos para irmos telefonar à leitaria. Encontrei logo
Astárito e disse-lhe que precisava de falar com ele. Perguntei-lhe
se podia ir ao Ministério. Mas ele, gaguejando, respondeu-me de
uma maneira estranha:
- Ou em tua casa, ou então não.
Compreendi que queria pagar-se do favor que eu lhe podia e
procurei disfarçar:
- Num café? - perguntei.
- Ou em tua casa, ou então não.
- Está bem! - disse. - Então vem a minha casa!
E acrescentei que o esperava nesse mesmo dia ao fim da
tarde.
- Sei o que ele quer - disse a Jaime quando voltávamos. -
Mas ninguém pode obrigar uma mulher a fazer isso contra
vontade. Chantagens... fez-mas enquanto eu era ainda uma
inexperiente, mas agora não mas fará mais!
- Mas porque não queres? - perguntou-me Jaime
negligentemente.
- Porque é a ti a quem amo.
- É muito possível - disse no mesmo tom indiferente que se
tu não quiseres aceder aos seus desejos ele se recuse a destruir o
interrogatório... E então?
- Há-de destruí-lo, não tenhas receio.
- Mas se não o fizer senão com essa condição?
Estávamos já na escada. Parei e declarei-lhe:
- Farei o que tu quiseres.
Segurou-me pela cintura e disse-me lentamente:
- Pois bem! Ouve o que quero. Que faças com que Astárito
venho cá e que o leves para o teu quarto com o pretexto de ires
para a cama com ele... Eu estarei à espreita atrás da porta e
quando ele entrar matá-lo-ei com um tiro de revólver. A seguir
empurramo-lo para debaixo da cama e nós é que nos amaremos
toda a noite!
Livres pela primeira vez da névoa que os embaciara durante
os dias antecedentes, os seus olhos brilhavam agora. Assustei-me,
sobretudo porque sentia que havia uma lógica nesta proposta e
também porque daqui em diante só esperava desgraças cada vez
maiores e definitivas e este crime tinha todo o ar de se poder
executar.
- Tem pena de mim, Jaime! - gritei. - Não digas isso nem a
brincar!
- Nem a brincar! - repetiu. - Com efeito estava a brincar!
Eu admitia que talvez até mesmo não brincasse. Mas o que
me tranquilizou um pouco era a ideia de que o revólver de que se
serviria estava vazio, porque eu às escondidas lhe tirara as balas.
- Está descansado - disse-lhe. - Astárito fará tudo o que eu
quiser. Mas não fales mais dessa maneira, que me assustas!
- Então agora já não tenho o direito de brincar? - disse num
tom ligeiro penetrando em casa.
Desde que chegamos à sala grande notei que fora tomado de
uma brusca excitação. Começou a passear de um lado para o
outro, com as mãos nos bolsos, segundo o seu hábito, mas com
uma atitude diferente, mais enérgica, com uma expressão que
parecia denotar uma profunda e lúcida reflexão e não a sua
costumada apatia. Atribui esta mudança ao alívio que sentia ao
saber que esses documentos bem depressa seriam destruídos;
mais uma vez abri o coração à esperança e disse-lhe:
- Verás que tudo se arranjará!
Olhou-me como se não me conhecesse e repetiu num tom
mecânico:
- Sim, com certeza... tudo se há-de arranjar!
Tinha mandado minha mãe fazer compras para o jantar. Tive
de repente uma onda de optimismo. Pensava que de facto tudo se
arranjaria talvez até melhor do que se esperava. Astárito anuiria
ao meu pedido, se não o tinha feito já; e em cada dia que passasse
Jaime veria diminuir o seu remorso, retomaria o gosto pela vida,
tornaria a olhar o futuro com confiança. Os homens têm este traço
comum; na infelicidade contentam-se em sobreviver; mas logo que
a sorte parece querer mudar, acalentam os planos mais vastos e
mais ambiciosos. Dois dias antes sentia-me capaz de renunciar a
Jaime se isso fosse necessário para que ele fosse feliz; agora, que
confiava na possibilidade de lhe poder oferecer rapidamente esta
felicidade, não só já não pensava em deixá-lo, mas estudava até a
maneira de o prender. O que me levava a fazer estes planos não
eram cálculos inteligentes, mas um impulso obscuro da minha
alma, que espera sempre e não suporta por muito tempo a
mortificação e a dor. Tive a impressão de que no ponto em que
estavam as coisas não havia para nós mais do que duas soluções:
ou nos separaríamos ou nos uníamos para toda a vida. Como não
queria nem a sonhar a primeira solução, perguntava a mim
própria se não haveria um meio de conseguir a segunda.
Não gosto da mentira; posso contar no número das minhas
raras qualidades uma franqueza quase excessiva. Se naquele
momento eu mentia a Jaime era porque não tinha a impressão de
mentir, mas de dizer a verdade. Uma verdade mais verdadeira do
que a própria verdade; uma verdade segundo a alma e não
baseada em factos materiais. De resto em nada pensei; foi como
que uma inspiração.
Continuava a andar de um lado para o outro; estava sentada
ao pé da mesa. Chamei-o subitamente!
- Ouve, pára um momento... tenho uma coisa para te dizer.
- O quê?
- Havia já um tempo que não me sentia bem; um destes dias
fui ao médico... Estou grávida.
Parou, olhou-me e repetiu:
- Estás grávida?
- Estou. E tenho a certeza de que é de ti.
Ele era inteligente. Não podia adivinhar que eu mentia, como
compreendeu de repente e perfeitamente a verdadeira razão desta
notícia. Pegou numa cadeira, sentou-se ao pé de mim, fez-me uma
festa afectuosa na cara e disse-me:
- Suponho que esta devia ser mais uma razão... ou, melhor,
a razão principal... para me fazer esquecer tudo o que se passou...
não é?
- Que queres dizer? - perguntei-lhe fingindo não perceber.
- Vou tornar-me “pai de família”. - continuou. - O que não
queria fazer por ti vou ter de o fazer por amor desse pequenino,
como vocês dizem, as mulheres.
- Farás o que quiseres - disse-lhe, encolhendo os ombros,
fingindo indiferença. - Digo-te isto porque é verdade, mais nada.
- Um filho - continuou no seu tom meditativo, como se
pensasse em voz alta -, pode ser uma razão para viver... Um filho é
um bom pretexto. Pode até chegar-se a roubar e a matar pelo
próprio filho!
- Mas quem te pede que roubes ou assassines? - interrompi,
indignada. - Peço-te apenas que estejas contente... se não podes,
paciência!
Olhou-me e acariciou-me de novo a face com afeição:
- Se estás contente, eu também estou. Estás contente?
- Eu estou! - respondi com segurança e orgulho. - Em
primeiro lugar porque gosto muito de crianças e depois porque é
teu.
Riu e disse-me:
- Que finória me saíste!
- Porquê finória? Por estar grávida?
- Não, mas tens de reconhecer que neste momento e nestas
circunstâncias foi um golpe de mestre! Estou grávida... por
conseguinte...
- Por conseguinte?
- Por conseguinte é preciso que aceites o que fizeste! - gritou
bruscamente muito alto, saltando e agitando os braços. - Por
conseguinte é preciso que vivas! Que vivas! Que vivas!
Não saberei descrever o tom da sua voz. Senti um aperto no
coração e os olhos encheram-se-me de lágrimas.
- Faz o que quiseres! - balbuciei. - Se me queres deixar,
deixa-me...
Pareceu arrepender-se do seu movimento, aproximou-se de
mim e acariciou-me, dizendo:
- Desculpa... não faças caso do que eu disse... pensa no teu
filho e não te preocupes comigo.
Segurei-lhe a mão e passei-a pela minha cara molhando-a
com as minhas lágrimas e soluçando:
- Oh! Jaime... como posso não me preocupar contigo?
Ficamos muito tempo assim em silêncio: ele de pé, junto de mim,
passando a mão pela minha cara, eu beijando-lha e chorando.
Depois ouvimos bater à porta.
Ele afastou-me de mim; tive a impressão de que
empalideceu; mas de momento não percebi porque e não tive a
ideia de lho perguntar. Levantei-me e disse-lhe:
- Foge! Deve ser o Astárito! Sai! Depressa!
Foi para a cozinha deixando a porta entreaberta. Limpei
rapidamente os olhos, arrumei as cadeiras e passei para o
vestíbulo. Senti-me de novo tranquila e perfeitamente segura;
enquanto caminhava às escuras no vestíbulo, lembrei-me de que
poderia dizer a Astárito que estava grávida; com isso ele
deixar-me-ia sossegada, e se não me quisesse fazer por amor o
que lhe iria pedir, com certeza o faria por piedade.
Abri a porta e dei um passo atrás: em vez de Astárito era
Sonzogne que estava na soleira da porta. Tinha as mãos nos
bolsos como era seu hábito; ao gesto maquinal que fiz de fechar a
porta, ele, com uma leve pressão dos seus ombros, abriu-ma
inteiramente e entrou. Segui-o até à sala grande. Foi pôr-se junto
da mesa ao pé da janela. Não trazia chapéu, e ainda não tinha
entrado já eu sentia sobre mim os seus olhos fixos. Fechei a porta
de comunicação e perguntei-lhe afectando indiferença:
- Porque vieste?
- Denunciaste-me, hem?
Encolhi os ombros e sentei-me na beira da mesa:
- Não te denunciei.
- Deixaste-me, desceste a escada e foste chamar a polícia.
Estava tranquila. Se sentia algum sentimento era mais
cólera que medo. Já não me inspirava qualquer receio, mas
sentia-me possuída de um grande furor contra ele e contra todos
os que como ele impedem os outros de serem felizes.
- Deixei-te - disse-lhe - e fui-me embora porque amo outro e
não quero ter mais relações contigo. Mas não foi para chamar a
polícia. Eu não sou delatora! Os polícias vieram por sua conta.
Procuravam outro.
Aproximou-se de mim, agarrou-me a cara entre dois dedos e
apertou-ma com uma força terrível levantando-ma à altura da sua
e forçando-me a descerrar os dentes.
- Agradece ao teu Deus o seres uma mulher! - disse-me.
Continuava a apertar-me a cara, obrigando-me a fazer uma careta
de dor que eu sentia que era feia e ridícula. Enfurecida, pus-me de
pé, repeli-o e gritei:
- Vai-te embora, imbecil!
Ele tornou a meter as mãos nos bolsos, aproximando-se
ainda mais de mim e olhando-me, como sempre, fixamente nos
olhos. Tornei a gritar:
- Não passas de um imbecil... com os teus músculos... os
teus terríveis olhinhos azuis... a tua cabeçorra! Vai-te embora!
Desaparece, cretino!
“É realmente um imbecil”, pensava eu quando vi que nada
dizia, mas que, com um ligeiro sorriso nos seus lábios finos e
tortuosos, avançava para mim, olhando-me. Corri para o outro
lado da mesa, empunhei um ferro de engomar - um ferro de
alfaiate muito pesado - e gritei-lhe:
- Desaparece, cretino, ou atiro-te com isto ao focinho!
Hesitou um momento e parou. Nesse instante a porta da
sala abriu-se atrás de mim e Astárito apareceu. Evidentemente
que encontrara a porta aberta e entrara. Voltei-me para ele e
disse-lhe:
- Diz-lhe que se vá embora... Não sei o que me quer... Diz-lhe
que se vá embora!
Não sei porquê, mas senti um grande prazer ao notar a
elegância de Astárito. Vestia um sobretudo cinzento, que parecia
novo, e uma camisa com riscas encarnadas sobre fundo branco
que parecia de seda. Uma bonita gravata cinzento-prata e um fato
azul. Olhou-me, enquanto eu brandia o ferro, fixou Sonzogne e
disse com voz tranquila:
- Esta menina disse-te que te fosses embora... porque
esperas?
- Esta menina e eu - respondeu Sonzogne, em voz baixa -,
temos várias coisas a dizer e é melhor que o senhor desapareça.
Astárito, ao entrar, tirara o chapéu, um feltro preto
debruado de seda. Sem pressa colocou-o sobre a mesa e avançou
até à frente de Sonzogne. A sua atitude deixava-me estupefacta.
Um brilho combativo parecia cintilar nos seus olhos negros e
melancólicos. A sua boca, que era grande, alargou-se ainda mais
num sorriso de satisfação e desafio. Mostrava os dentes. Disse
martelando as sílabas:
- Ah! Não queres ir? Pois bem! Eu, pelo contrário, digo-te que
vás, e o mais depressa possível!
O outro abanou a cabeça em sinal negativo, mas, com
grande admiração minha, recuou. Astárito deu um passo em
frente. Estavam agora um em frente do outro, os dois quase da
mesma altura.
- Vamos lá a saber! Quem és tu? - disse-lhe Astárito sempre
com o mesmo ricto. - O teu nome! E depressa!
O outro não respondeu.
- Não queres dizer, hem? - insistiu Astárito num tom quase
voluptuoso, como se o silêncio de Sonzogne lhe desse prazer. -
Não queres dizer e não te queres ir embora... É isto?
Esperou um momento, depois levantou a mão e esbofeteou
Sonzogne, primeiro numa face, depois na outra. Eu mordi o pulso.
“Sonzogne mata-o!”, pensava fechando os olhos. Mas ouvi a voz de
Astárito, que dizia:
- E agora desaparece! Quanto mais depressa melhor!
Abri os olhos e vi Astárito empurrar Sonzogne para a porta,
segurando-o pela gola. Sonzogne tinha ainda as faces encarnadas
e inchadas, mas parecia não resistir. Deixava-se levar como se
pensasse noutra coisa. Astárito arrastou-o para a porta da sala,
depois ouvi fechar a porta com violência e Astárito reapareceu na
sala.
- Mas quem é? - perguntou-me tirando maquinalmente um
grão de poeira da banda do sobretudo e olhando-se como se
receasse ter comprometido a sua elegância pelo esforço violento
que acabara de fazer.
- Nunca soube o seu nome todo. Só sei que se chama Carlos.
- Carlos! - repetiu abanando a cabeça.
Depois aproximou-se de mim. Eu estava no vão da janela e
olhava através dos vidros. Astárito passou-me o braço à volta da
cintura e perguntou-me num tom de voz já mudado - E tu como
vais?
- Bem, obrigada - respondi sem o olhar.
Foi ele quem me olhou fixamente, depois apertou-me com
força contra ele, sem dizer nada. Repeli-o docemente e disse-lhe:
- Foste bem gentil comigo. Telefonei-te para te pedir outro
favor.
- Diz.
Continuava a olhar-me e parecia nem sequer ouvir-me.
- Aquele rapaz que tu interrogaste... - comecei eu.
- Ah! Sim! - interrompeu fazendo uma careta. - Ainda esse!
Não se revelou um herói.
Tive curiosidade de saber a verdade sobre o interrogatório de
Jaime.
- Porquê? Ele teve medo?
Astárito abanou a cabeça.
- Não sei se teve medo - respondeu-me -, o que é certo é que
à primeira pergunta disse logo tudo. Se ele tivesse negado, eu
nada teria podido fazer... Nenhuma prova havia.
“Então”, pensava eu, “passou-se tudo como Jaime me
contou. Uma espécie de brusca ausência, como se se tivesse
afundado, sem razão, sem que o provocassem”.
- Bem! - continuei. - Suponho que escreveram aquilo que ele
disse. Queria que tu fizesses desaparecer aquilo que ficou escrito.
- Foi ele quem te pediu, hem? - troçou.
- Não, sou eu quem pede! - respondi.
E jurei-lho solenemente:
- Eu morra agora mesmo se não é verdade!
- Todos querem ver os processos desaparecer - declarou ele.
- Os arquivos da polícia e o seu peso da consciência. Desaparecido
o processo, não há mais remorsos!
Lembrei-me de Jaime e respondi-lhe:
- Isso poderá ser verdade! Mas desta vez receio bem que te
enganes!
Puxou-me outra vez, apertando o meu ventre contra o seu; e
perguntou-me, todo trêmulo e balbuciante:
- E tu em troca que me dás?
- Nada - respondi-lhe simplesmente. - Desta vez,
absolutamente nada.
- E se eu recusasse?
- Davas-me um grande desgosto porque amo esse homem, e
tudo o que lhe acontece é como se acontecesse a mim.
- Mas não me tinhas dito que serias gentil comigo?
- Tinha... mas mudei de ideias.
- Porquê?
- Porque sim.
Estreitou-me de novo, e falando-me ao ouvido e gaguejando,
suplicou-me que cedesse ao seu desejo desesperado, nem que
fosse pela última vez. Não saberei repetir as coisas que ele me
disse, porque, misturadas com as suas súplicas, proferia
enormidades que eu não desejaria escrever, das que se dizem às
mulheres como eu e que as mulheres como eu dizem aos seus
amantes. Ele dizia-as com uma precisão meticulosa, mas sem a
alegria maliciosa que acompanha habitualmente estas efusões;
antes com uma sombra de prazer obcecado. Vi uma vez, num
asilo, um doido descrever ao enfermeiro as torturas que lhe
infligiria se lhe caísse nas mãos no mesmo tom fanfarrão, mas
grave e escrupuloso que tinha Astárito para me sussurrar estas
obscenidades. Na realidade o que ele me descrevia desta maneira
era o seu amor, ao mesmo tempo sombrio e luminoso, que poderia
parecer simples deboche, mas que eu sabia profundo, completo, e
à sua maneira tão puro como qualquer outro. Como sempre,
inspirava-me sobretudo pena, por causa da solidão que eu sentia
no fundo de todas estas enormidades. Deixei-o acabar as suas
efusões; depois declarei-lhe:
- Não te queria dizer, mas tu obrigas-me a isso... Faz como
quiseres, mas eu não quero voltar a ser o que era dantes... Estou
grávida.
Não ficou admirado e não abandonou a ideia fixa:
- Bem? - disse. - E depois?
Revelara-lhe o meu estado primeiro que tudo para o consolar
da minha recusa. Mas enquanto lho dizia apercebi-me de que
dissera realmente o que pensava e que as minhas palavras
vinham do coração. Acrescentei com um suspiro:
- Já, antes de te conhecer, eu queria casar... não foi por
culpa minha que o não fiz.
Ele conservara o braço à roda da minha cintura, mas já não
me apertava. Afastou-se de mim e gritou:
- Maldito seja o dia em que te encontrei!
- Porquê, se me amaste?
Cuspiu de lado e disse ainda:
- Maldito o dia em que te encontrei e maldito o dia em que
nasci!
Não gritava agora, nem parecia traduzir um sentimento
violento; falava com calma e com convicção.
- O teu amigo nada tem a recear - acrescentou. - Nenhum
interrogatório foi escrito. Não anotaram qualquer das suas
informações... Continua a figurar como um político perigoso.
Adeus, Adriana.
Tinha ficado ao pé da janela: disse-lhe adeus vendo-o
afastar-se. Pegou no chapéu e afastou-se sem olhar para trás.
Logo a porta de comunicação do meu quarto com a cozinha
se abriu e Jaime entrou com o revólver na mão. Olhava-o
espantada, vazia, sem forças, muda.
- Tinha decidido matar Astárito - disse-me com um sorriso. -
Julgas que realmente me interessava que o meu processo
desaparecesse?
- E porque não o fizeste? - perguntei como num sonho.
Ele abanou a cabeça.
- Ele amaldiçoou tanto o dia em que nasceu! Deixemo-lo
amaldiçoá-lo ainda durante mais alguns anos.
Sentia qualquer coisa que me angustiava, mas não
conseguia compreender o que era.
- Em todo o caso, consegui aquilo que queria. Não há
nenhum processo.
- Ouvi, ouvi - interrompeu-me. - Ouvi tudo; estava atrás da
porta e a porta estava aberta... Também vi que é corajoso o teu
Astárito - acrescentou negligentemente. - Pan! Pan! Que duas
estaladas magistrais aplicou no Sonzogne! Mesmo para dar
bofetadas é preciso categoria. Estas eram verdadeiramente de um
superior para um inferior, de um patrão; de alguém que se julga
patrão, a um servidor. E como Sonzogne as recebeu! Nem piou!
Jaime ria enquanto guardava o revólver na algibeira.
Fiquei um pouco desconcertada com o elogio que ele fazia a
Astárito. Perguntei-lhe com uma certa hesitação:
- Que julgas que Sonzogne vai fazer?
- Como queres que saiba?
Era quase noite, a sala estava mergulhada na penumbra.
Jaime inclinou-se sobre a mesa, acendeu o candeeiro de
suspensão e tudo ficou escuro à volta da luz. Em cima da mesa
estavam os óculos de minha mãe e as cartas com as quais ela
fazia paciências. Jaime sentou-se, agarrou-as e baralhou-as.
Depois disse-me:
- Queres jogar uma partida enquanto esperamos pelo jantar?
- Que ideia! - gritei. - Uma partida?
- Sim... uma partida de bisca... vá, anda!
Obedeci, sentei-me ao seu lado e segurei maquinalmente nas
cartas que ele me estendia. Tinha a cabeça atordoada e as mãos
tremiam-me, não sei porquê. Comecei a jogar. As figuras
pareciam-me ter um carácter maldoso, pouco seguro: o valete de
paus sombrio e sinistro com o olho negro e a flor negra na mão; a
rainha de copas luxuriante; o rei de ouros frio, impassível,
inumano. Jogando, tinha a impressão de que jogávamos qualquer
coisa importante, mas não sabia o quê. Sentia-me mortalmente
triste. De quando em quando soltava um ligeiro suspiro, para ver
se aliviava o peso que sentia no peito e que mo oprimia.
Ele ganhou o primeiro jogo, depois o segundo.
- Mas que tens? - perguntou-me baralhando as cartas. - Tu
jogas francamente mal.
Larguei as cartas e disse-lhe:
- Não me atormentes assim, Jaime! Não tenho disposição
para jogar.
- Porquê?
- Não sei.
Levantei-me e dei alguns passos pela sala, torcendo as mãos.
Depois perguntei-lhe:
- Vamos para o quarto? Queres?
- Vamos.
Passamos para o vestíbulo e ali no escuro agarrou-me pela
cintura e beijou-me no pescoço. Então, talvez pela primeira vez na
vida, considerei o amor como ele o considerava: um meio de se
aturdir e de não pensar, nem mais agradável nem mais
importante que qualquer outro meio. Segurei-lhe a cabeça entre
as mãos e beijei-o furiosamente. Foi assim que entrámos no
quarto. Estava mergulhado na escuridão, mas eu nem dei por
isso. Uma sombra vermelha empalidecia-me os olhos; cada um
dos nossos gestos tinha o brilho de uma língua de fogo, brusca e
rápida, do incêndio que nos devorava.
De repente encontrei-me estendida na cama, com a luz da
lâmpada reflectindo-se sobre o meu ventre nu. Fechei as coxas,
talvez por causa do frio, talvez por vergonha, e tapei-me com as
duas mãos. Jaime olhou e disse-me:
- Bem depressa a tua barriga inchará... inchará cada dia
mais... um dia a dor obrigar-te-á a abrir essas pernas que tu
fechas tão ciosamente e a cabeça da criança, já coberta de
cabelos, sairá, tu a empurrarás para a luz, agarrá-la-ão e depois
irão pô-la nos teus braços... ficarás contente e haverá mais um
novo ser neste mundo... Esperemos que ele não venha a falar
vomo Astárito!
- Como?
- “Maldito seja o dia em que nasci!”
- Astárito é um desgraçado - respondi -, mas eu tenho a
convicção plena de que o meu filho terá sorte e será feliz.
Depois enrolei-me na roupa e julgo que dormi. Mas o nome
de Astárito tinha reavivado o sentimento de angústia que eu já
sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu não
conhecia gritar-me com força aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como
quando se quer imitar dois tiros de revólver; e sem sair da cama
dei um salto com um movimento de susto e de angústia. A
lâmpada estava ainda acesa; desci da cama e fui à porta para me
certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava,
de pé, ao pé da porta. Confusa, voltei para a cama, sentei-me
dentro da roupa e perguntei:
- Que diz que irá fazer o Sonzogne?
Olhou-me e respondeu:
- Como poderei saber?
- Eu conheço-o - disse eu exprimindo por fim, por palavras,
a angústia que me oprimia. - Não quer dizer o ter consentido que o
pusessem fora da sala sem protestar. É capaz de o matar. Que
julgas tu?
- É muito possível.
- Pensas que o vai matar?
- Se o fizesse não me admiraria.
- E preciso avisá-lo! - gritei levantando-me e vestindo-me. -
Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque não pensei
nisto mais cedo?
Vestia-me a pressa falando sempre do meu receio, do meu
pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disse-lhe:
- Vou a casa de Astárito... A esta hora está em casa...
Espera-me aqui.
- Vou contigo.
Não insisti. No fundo agradava-me que me acompanhasse,
porque estava tão agitada que receava sentir-me mal. Enfiei o
casaco e declarei:
- É preciso apanhar um táxi.
Jaime vestiu o sobretudo e saímos.
Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr,
enquanto Jaime, sem me largar o braço, me seguia. Encontramos
logo um táxi; gritei a direcção de Astárito. Era uma rua no bairro
Prati; nunca lá tinha ido, mas sabia que não era longe do Palácio
da Justiça. O táxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso
curvando-me, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur.
A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo,
pronunciar:
- E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.
Não lhe prestei atenção. Quando chegávamos em frente do
Palácio da Justiça mandei parar e Jaime pagou. Atravessámos as
ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as árvores. A rua
de Astárito surgiu na minha frente como uma espada: longa e
direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de
candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edifícios regulares e
maciços, sem lojas, e que parecia deserta. Astárito morava no fim
da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:
- É possível que eu não tenha feito outra coisa que imaginar
tudo isto... Fosse como fosse era meu dever vir.
Passamos três ou quatro prédios e várias ruas transversais.
Então Jaime disse-me com uma voz tranquila:
- Deve ter acontecido alguma coisa... olha.
Levantei os olhos e a pouca distância vi um ajuntamento em
frente de uma porta. Um cordão de gente alinhava-se no passeio
fronteiro; olhavam para cima, na direcção do céu sombrio. Senti
logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astárito.
Comecei a correr; tive a impressão de que Jaime corria também.
- Que há aqui? O que aconteceu? - perguntei, sem fôlego.
aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da
porta de Astárito.
- Não se percebe bem - respondeu aquele a quem me dirigi,
um homem louro, sem casaco, sem chapéu, que segurava a
bicicleta pelo guiador -, foi alguém que se atirou para a caixa da
escada... ou atiraram-no. A polícia subiu ao telhado para
investigar o caso.
Abri caminho por entre a multidão, e à força de cotoveladas
penetrei no hall da casa, que era espaçoso, bem iluminado e
estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimão de ferro
forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas
cabeças. Quando consegui chegar à frente, vi por entre todos
aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um
pilar redondo de mármore branco suportava uma estátua de
bronze dourado, alada e nua, com um braço levantado segurando
um facho que continha uma lâmpada. Mesmo debaixo do pilar
estava um corpo humano coberto com um lençol. Toda a gente
olhava para o mesmo lado; olhei também e vi um pé calçado de
preto que saía do lençol. No mesmo instante uma voz começou a
gritar imperiosamente.
- Para trás! Vão-se embora!
Senti-me projectada com violência para a rua, juntamente
com os outros. Os altos batentes da porta fecharam-se logo em
seguida. Disse com voz apagada a quem estava atrás de mim:
- Jaime, vamos!
Vi então uma pessoa desconhecida que, admirada, me
olhava. Depois de terem em vão protestado em voz alta e batido
com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaram-se pelas
ruas fazendo comentários: Outras chegavam de todos os lados
correndo. Dois automóveis e um bom número de bicicletas
pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta
multidão com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem
ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciam-me os de
Jaime; enfiava-me impetuosamente pelo meio de grupos e via um
grande número de pessoas que me olhava com surpresa. Havia
muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um
cadáver e tinham esperança de o poder ver. Lá estavam,
apertados, com uma expressão paciente e grave, como as bichas à
porta dos teatros.
Continuava a errar ainda quando me apercebi que já tinha
examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas
pessoas. Pareceu-me ouvir, num destes grupos, o nome de
Astárito e notei que não me preocupava com ele, mas que toda a
minha angústia se concentrava em Jaime. Acabei por me
convencer de que já lá não estava. Devia ter-se afastado no
momento em que penetrei no hall. Pareceu-me, não sei porquê,
que deveria ter esperado esta fuga; admirava-me de não ter
pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forças,
arrastei-me até praça, subi para um táxi e dei a direcção da
minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter
voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso
acontecera.
Não estava em casa e não voltou nem nessa noite nem no dia
seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um mal-estar tão
angustiante que não podia deixar de tremer da cabeça aos pés.
Mas não tinha febre. Parecia-me apenas que vivia fora de mim
própria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectáculo,
todo o ruído, todo o contacto me feriam e me produziam
desfalecimentos de coração. Nada me podia impedir de pensar em
Jaime, nem mesmo a descrição em pormenor do novo crime de
Sonzogne, que os jornais que minha mãe tinha comprado traziam
em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne;
parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o
patamar em frente da porta de Astárito, depois Sonzogne tinha-o
empurrado contra o corrimão, levantara-o e atirara-o pela caixa da
escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais
ninguém a não ser Sonzogne poderia matar um homem desta
maneira. Mas, como já disse, tinha uma única ideia e nem mesmo
cheguei a interessar-me pelos artigos que contavam como mais
tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia
pelos telhados como um gato. Experimentava uma espécie de
náusea por tudo o que não dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo
tempo pensar nele enchia-me de uma angústia insuportável. Por
duas ou três vezes recordei Astárito; lembrava-me do seu amor
por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tão
forte como impotente; se não sentisse esta angústia por causa de
Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que
nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma
forma tão prematura e tão desumana. Foi assim que passei este
primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na
cama ou sentada numa cadeira, apertava com força entre as mãos
um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e
beijava-o de vez em quando com paixão, ou mordia-o para refrear
a minha grande inquietação. Mesmo quando minha mãe me
obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das mãos e
com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite
minha mãe quis deitar-me; deixei-me despir sem oferecer
resistência. Mas quando tentou tirar-me o casaco, dei um grito de
tal maneira aflitivo que minha mãe se assustou. Ela nada sabia,
mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausência
de Jaime.
Ao terceiro dia tive uma ideia e toda a manhã me agarrei a
ela com obstinação, se bem que compreendesse que não tinha
muito fundamento. Pensava que Jaime se assustara ao saber que
eu estava grávida, que quisera fugir às obrigações que lhe
impunham o meu estado e que se refugiara em sua casa, na
província. Era uma vil suposição: mas preferia imaginar uma
cobardia sua a admitir outra hipóteses tão tristes, sugeridas pelas
circunstâncias que tinham acompanhado a sua desaparição.
Nesse mesmo dia, à tarde, minha mãe entrou no meu quarto
e atirou-me para cima da cama uma carta. Reconheci a letra de
Jaime e senti uma grande alegria. Esperei primeiro que minha
mãe saísse, depois que me passasse a perturbação que me
assaltara. Em seguida abri a carta. Ei-la completa :
“Querida Adriana:
No momento em que receberes esta carta estarei já
morto. Quando abri o meu revólver e não encontrei as
balas compreendi logo que tinhas sido tu quem o
esvaziara e pensei em ti com grande amizade. Pobre
Adriana, tu não conheces as armas, não sabias que há
uma bala no cano! O facto de não te terás apercebido
disso reforçou a minha resolução. Aliás há tantas
maneiras de se matar! Como te disse não posso aceitar
o que fiz. Senti nestes últimos dias que te amava; mas,
se eu fosse lógico, deveria odiar-te, porque tudo o que
odeio em mim, e que o meu interrogatório me revelou,
existe em ti no mais alto grau.
Na realidade, naquele momento, foi a personagem
que eu deveria ter sido quem baqueou; fui unicamente
o homem que sou. Não houve da minha parte nem
cobardia, nem traição, mas somente uma misteriosa
interrupção da vontade. Não talvez completamente
misteriosa, mas o bastante para vir a conduzir-me
longe de mais. Basta-me dizer que matando-me,
reponho as coisas no seu devido lugar. Não tenhas
medo, não te odeio; pelo contrário, amo-te a tal ponto
que o simples facto de pensar em ti chega para me
reconciliar com a vida. Se isso fosse possível, com
certeza que viveria, casaria contigo e seríamos felizes,
como tu o dizias tantas vezes. Mas realmente não era
possível. Pensei na criança que vai nascer e escrevi
nesse sentido duas cartas: uma à minha família e
outra a um advogado meu amigo. Apesar de tudo, os
meus são boa gente e, se bem que não se possa ter
ilusões sobre os sentimentos deles a teu respeito, estou
convencido de que cumprirão o seu dever. No caso
improvável de se recusarem a fazê-lo, não deves hesitar
em servir-te da lei. Este amigo advogado irá procurar-te
e podes confiar nele. Pensa algumas vezes em mim.
Beija-te
Teu Jaime
P. S. - O nome do meu amigo advogado é Francisco
Laureau. A sua direcção é Rua Cola Rienzo, 3.”
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http://groups.google.com/group/digitalsource
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros