A Morte É Uma Festa. O Velório Daimista

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A morte é uma festa.

O velório daimista

Juarez Duarte Bomfim1[1]

Último inimigo a ser vencido

Nos hinos da Doutrina do Santo Daime é recorrente o uso dos termos “viagem”, “viajar”,
“viajou”... e que tem vários significados. Pode significar o estado de consciência expandida
sob efeito da substância psicoativa Daime, ao qual se dá o nome de miração; pode significar
uma viagem astral no estado de vigília, que também é parte da miração ou pode significar a
morte física de alguém. Este termo – morte - não utilizado, já que enquanto doutrina espírita,
acredita-se que o ser humano é essencialmente espírito e o espírito não morre, faz uma
passagem (viagem).

Pois a morte - conseqüência do pecado – é o último inimigo a ser vencido [2]. Daí a
importância de “preparar terreno”. No dizer de Froés, a doutrina cantada do Santo Daime
“explica a morte como uma passagem para outra vida. É a crença na reencarnação, mas para
ser possível, a pessoa deve realizar uma preparação correta durante a vida”. [3]

A viagem (passagem) é para um local determinado: o reino dos céus, [4] que é o domínio de
Deus no coração humano, apregoado por Jesus, tendo o privilégio do Divino Pai Eterno e a
Virgem Soberana Mãe viajarem ao nosso lado.

Lá nos Hinos Novos (Cruzeirinho do Mestre), considerados a síntese e resumo da doutrina,


mestre Irineu afirma "todos querem ser irmãos, mas não têm a lealdade para seguir na vida
espírita que é o reino da Verdade" (Hino nº 118) Será essa a afirmação da concepção espírita
da Doutrina de Raimundo Irineu Serra?

Consideramos que sim. A doutrina do Santo Daime é uma doutrina espírita, replantada nos
rincões da floresta amazônica, onde esse “saudoso e eminente maranhense”, “instrutor por
mais de seis décadas” no estado do Acre, “legou à humanidade um manancial fulgurante, rico
e belo de precioso conteúdo” evangélico, nas poéticas palavras de Sebastião Jacoud. [5]

No cristianismo moderno, a crença na reencarnação dos mortos sobrevive nas correntes


espíritas, havendo ainda, entre as doutrinas ayahuasqueiras a Barquinha de frei Daniel Pereira
de Matos e a União do Vegetal do mestre José Gabriel da Costa.

Pensamos que uma doutrina ayahuasqueira necessariamente é uma doutrina espírita, pois ao
tomar essa bebida de “poder inacreditável” - "liana dos espíritos"; "vinho dos mortos"; "vinho
dos espíritos" - o usuário entra em contato com o mundo invisível, onde encontra entidades
desencarnadas e seres de outros planos astrais, característica espírita.

O fenômeno de "receber" hinos é mediúnico, semelhante à psicografia e a psicofonia. E a


mediunidade um fenômeno espírita, de comunicação com o mundo invisível.

E a licença divina para uma outra oportunidade na Terra (reencarnação) é a prova inconteste
do amor e misericórdia de Deus por seus filhos. É a oportunidade da reparação, da
regeneração, do cumprimento de missão e iluminação espiritual.

[1] Sociólogo e professor universitário. Agradeço a colaboração da Dra. Roberta Graf, pelas valiosas
informações transmitidas.
Sendo assim, em muitas tradições religiosas “a morte é uma festa”, no dizer do historiador
baiano João José Reis [6] ao analisar hábitos e costumes de comunidades afro-brasileiras
oitocentistas.

Mestre Raimundo Irineu Serra, no hino 45, “Eu estava em pé firmado” do Hinário O
Cruzeiro Universal, canta entusiasticamente a sua futura passagem para o mundo
espiritual.

Eu vivo alegre, sempre,


O meu consolo é só cantar,
Porque tenho uma esperança
De breve me separar.

De breve me separar,
Com Deus e a Virgem Maria.
Talvez vocês não achem
Outro irmão com alegria.

A seguir, faremos uma sucinta descrição etnográfica de um velório daimista, tomando como
referência o CICLUJUR, centro livre daimista situado na Vila Irineu Serra (Alto Santo), em
Rio Branco – Acre. Registramos previamente que os distintos centros (igrejas) e linhas
daimistas podem ter diferenças rituais entre si.

O velório daimista

Quando algum adepto da Doutrina do Santo Daime falece (desencarna) o corpo é velado na
sede do culto, no salão de serviços, e a irmandade acorre à cerimônia fúnebre
convenientemente fardada.

O formato atual desta singela cerimônia teve início no velório do próprio Mestre Irineu, em
06 de julho de 1971. Este cerimonial fúnebre é referência e modelo para todos os outros que o
sucederam.
O falecido é velado e será enterrado trajando a farda branca, com uma Estrela de Salomão
(importante ícone da Doutrina) ao peito, feita de papelão com pintura prateada.
A urna funerária é colocada aos pés da mesa de centro, e é vigiada por quatro guardiões, duas
mulheres e dois homens fardados da casa, separados por gênero, que montam guarda
espiritual ao lado do féretro.
A arma de defesa contra o “inimigo” [7] é a oração. Daí que os veladores do defunto devem
se manter em estrito silêncio, em atitude de oração. No decorrer da longa noite são rendidos
por nova equipe, pois não se deve deixar vazio o posto.
“Eles rezam direto, montam guarda espiritual, devem manter-se em silêncio, devem ser dois
homens e duas mulheres fardados da casa, nunca deve-se deixar vazio o posto. É um trabalho
muito gratificante e bonito, de verdadeira caridade espiritual”. [8]
O velório é realizado com os participantes sentados nas cadeiras enfileiradas no salão, na
mesma disposição do ritual de Concentração, com divisão por gênero.

No início (abertura) da sentinela, quando a irmandade e os familiares se reúnem, reza-se o


Terço. Logo após, começa a apresentação de hinários, cantados a capela, sem instrumentos
musicais ou maracás. A escolha dos hinários cantados fica a critério dos dirigentes do Centro
Livre e dos familiares do defunto. Se o falecido for dono de hinário, essa é uma oportunidade
ímpar para a sua apresentação.
A depender do prestigio social do falecido e dos hinários a serem cantados, a diretoria do
Centro decide sobre o vestuário, se farda azul ou branca. No CiCLUJUR, se o hinário a ser
cantado é O Cruzeiro Universal, obrigatoriamente é trajada a farda branca.

Quando do falecimento do Mestre Irineu, a irmandade se apresentou ao velório e enterro de


farda branca, e cantou-se o hinário O Cruzeiro Universal.

Depõe Roberta Graf: “presenciei a irmandade trajando farda branca no velório da dona
Percília Matos da Silva, em que foi cantado O Cruzeiro todinho e o hinário dela. O cortejo foi
a pé, na chuva e na lama da Vila Irineu Serra até o cemitério do Alto Santo, dia 27 de outubro
de 2004... Inesquecível...”

A morte é uma festa

Como vara-se a longa noite, entre um e outro hinário cantado é colocado música mecânica,
cds de hinários cantados sem maracás ou só instrumental.

É facultado o uso da palavra aos presentes que queiram homenagear o falecido, proferindo
palavras elogiosas, declamando poesia ou entoando rogos e preces.

A serventia do Daime fica a disposição daqueles fardados ou visitantes que manifestem desejo
de comungar da Santa Luz.

Lá pelas tantas, altas horas da madrugada, nos intervalos entre um hinário e outro, as pessoas
se entretém conversando baixinho, contando histórias e causos do falecido, muitas delas
jocosas. A oferta de comida e bebida não-alcoólica é farta e isso dá um caráter festivo à
efeméride. A criançada presente cria um clima de alegre algazarra, contidas nos excessos por
adultos zelosos.

Se for um defunto concorrido, dezenas de adeptos da doutrina acorrem ao velório, originários


de outros centros livres, assim como uma multidão de visitantes não-adeptos. Nesta noite, a
fiscalização é relaxada quanto ao vestuário dos visitantes, principalmente das mulheres, que
vão dar o seu adeus ao falecido vestindo calça, roupa de cor vermelha, às vezes decotada.

Assim, a noite insone se transforma em um encontro de geração de sociabilidade,


estreitamento dos laços de fraternidade e, principalmente, conforto emocional para os
familiares que sofrem a perda do ente querido.

Chegada a hora do enterro

Ao amanhecer do dia, pouco antes do carro funerário chegar, é cantado de pé e


entusiasticamente os Hinos Novos (Cruzeirinho do Mestre), na sede de serviços; ou são
cantados no trajeto do cortejo a pé. Às vezes, por pedido prévio do finado – ou da família – o
caixão é levado para dentro do túmulo do Mestre para passar alguns minutos apoiado nos
bancos lá existentes.

Quando o enterro é feito no Cemitério do CICLU Alto Santo, o desencarnado terá o privilégio
da companhia dos jazigos de todos os primeiros e principais adeptos da Doutrina do Santo
Daime. Será enterrado próximo às covas de Antonio Gomes, João Pereira, Germano
Guilherme e Maria Damião – entre outros.
No enterramento, canta-se o último hino do Mestre Irineu, “Pisei na Terra fria” e os homens
(também algumas mulheres) se sucedem cobrindo a sepultura com pazadas de terra fria.
Alguns lançam flores. Na despedida, as pessoas fazem preces individuais em silêncio. Os
familiares e amigos do desencarnado voltam para seus afazeres cotidianos com a certeza de
missão comprida.

Meu corpo na sepultura


Desprezado no relento
Alguém fala em meu nome
Alguma vez em pensamento?

Para que o falecido seja devidamente encaminhado ao mundo espiritual, posteriormente reza-
se a Santa Missa daimista de 7 dias, 30 dias e ano após ano, sempre às quatro da tarde, hora
do enterro do Mestre Raimundo Irineu Serra, já no distante ano de 1971, quando ele saiu deste
mundo à eternidade.

[1] Sociólogo e professor universitário. Agradeço a colaboração da Dra. Roberta Graf, pelas valiosas
informações transmitidas.
[2] "A morte corporal, à qual o homem teria sido subtraído se não tivesse pecado", é assim "o último inimigo"
do homem a ser vencido (1 Cor 15:26).
[3] FRÓES, Vera. Santo Daime. Cultura amazônica. História do povo Juramidã. Manaus: SUFRAMA, 1986,
p.105.
[4] Expressão usada mais de trinta vezes pelo evangelista Mateus
[5] No Jornal Rio Branco, de 14 de maio de 1975 apud COUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs.
1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 43.
[6] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense,
1986.
[7] Satanás é o inimigo numero um de Deus.
[8] Depoimento de Roberta Graf, fardada do CICLUJUR.

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