Os Exus Mirins Da Umbanda

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Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano II, n. 6, Fev.

2010 - ISSN 1983-2850

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OS EXUS MIRINS DA UMBANDA Sulivan Charles Barros*

RESUMO: O presente trabalho se prope a considerar a importncia da presena de entidades exus mirins no imaginrio umbandista. Por se tratar de um estudo pioneiro no campo das cincias sociais da religio, este paper no visa um carter conclusivo, mas exploratrio e instigante, no sentido de levantar algumas questes sobre a insero destas personagens nesta religio. Torna-se necessrio ressaltar que a umbanda acolhe em seu panteo religioso todos aqueles elementos sociais que, postos em estratos inferiores da sociedade ou marginalizados pela mesma, passam categoria de deuses poderosos e atuantes como o caso de velhos escravos, ndios, prostitutas, malandros, delinqentes, homossexuais, crianas e meninos de rua. PALAVRAS-CHAVE: exus mirins; meninos de rua; umbanda.

ABSTRACTS: This paper aims to consider the importance of the presence of entities
in the imaginary exus mirins umbandista. Because it is a pioneering study in the social sciences of religion, this paper does not seek a conclusive character, but exploratory, provocative, to raise some questions about the inclusion of these characters in this religion. It is necessary to emphasize that the ubuntu welcomes in religious pantheon all those social elements that, when placed in the lower strata of society or marginalized by it, go to the category of "gods" powerful and active as in the case of old slaves, Indians, prostitutes, crooks, criminals, homosexuals, children and street children. KEYWORDS: Eshuses; street children; Umbanda.

Introduo Quem j teve a oportunidade de assistir a uma gira de um terreiro umbandista pode perceber, no ritual e no ambiente, a presena de elementos de vrias religies. No altar principal, chamado de cong, encontram-se imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora, santos como So Lzaro, So Jorge, Cosme e Damio, Orixs, ao lado de estatuetas de Buda, Iemanj, ndios, ciganos, pretos-velhos e, mais dissimuladas, representaes que sugerem a figura do diabo (representando os exus e as pombas-giras). Encontram-se, tambm, nestes congas, objetos prprios do rito umbandista (pembas, * Ps-Doutor em Estudos Culturais, UFRJ. Ps-Doutor em Antropologia, UnB. Doutor em
Sociologia, UnB. Professor e Pesquisador do Curso de Mestrado em Cincia Poltica com foco em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos de Violncia e do curso de Direito do Centro Universitrio UNIEURO, Braslia/DF.

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______________________________________________________________________ guias, patus, etc.), bem como, velas brancas, flores e por vezes cones cvicos, como a bandeira nacional. Ali, no espao sagrado do terreiro, rezam-se padre-nossos, ave-marias e invocam-se os orixs e as entidades da umbanda; os espritos descem nos iniciados por meio do transe, provocado pelo toque dos atabaques, cantigas (pontos cantados) e sinais cabalsticos desenhados no cho (pontos riscados). A sesso comea com a defumao da sala; durante a cerimnia os mdiuns, tomados por seus guias, danam, fumam charutos ou cachimbos, do passes e conversam com o pblico presente. A cor das roupas

predominantemente branca, mas no faltam colares de todas as cores, chapus de couro, de palha, dentre outros acessrios rituais. O culto composto de msicas e danas sagradas. Os atabaques marcam o ritmo, os mdiuns cantam o ponto sob a liderana da me ou do pai-de-santo, danam em roda, e recebem as suas entidades espirituais, funcionando como seus cavalos e aparelhos. Alm de se expressarem danando a sua energia vital (segundo a concepo destas comunidades religiosas), como ocorre com os orixs do candombl, os guias da umbanda, ao contrrio daqueles, se apresentam para dar conselhos aos fiis que deles se aproximam. Orientam estes e purificam-nos por meio de passes, protegendo-os de possveis ataques msticos de que so ou podero se tornar vtimas. A primeira impresso que se tem, a de uma mistura indigesta de elementos religiosos e profanos de origens europias, africanas e indgenas. Existe at um termo para designar essa juno, num mesmo culto, de fragmentos de procedncias to diversas: sincretismo. Tal denominao contm elementos da religio catlica e do espiritismo kardecista, de cultos trazidos para o Brasil pelos escravos, alm de alguns de duvidosa inspirao indgena. Os terreiros de umbanda tornam-se, assim, centros de avaliao e de resoluo de uma infinidade de pequenos conflitos que afligem as pessoas em seu cotidiano profano (Barros, 2004). So especialistas na identificao das causas dos infortnios e profundos conhecedores da psicologia social local. Ajudam-na a conform-la, inclusive, emprestando-lhes um sentido maior. As 176

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______________________________________________________________________ competies e os conflitos do cotidiano, cujos resultados desiguais semeiam a inveja, o dio e o ressentimento, resultam na produo de feitios, ou mesmo na simples gerao de negatividades que fazem o mal. O povo da umbanda (dir-se-ia o povo brasileiro, em larga escala) leva a srio os termos feitio, carrego e olho grande. O Universo Religioso da Umbanda A umbanda uma religio medinica, produto sincrtico das principais vertentes religiosas existentes no Brasil: religies afro-brasileiras, religies indgenas, catolicismo, espiritismo kardecista, dentre outras. Diferenciando-se de suas matrizes originais, singularizou-se e se tornou uma nova religio, uma religio genuinamente brasileira. O transe na umbanda no nem estritamente individual nem propriamente representao mtica, mas atualizaes de fragmentos de uma histria mais recente por meio de personagens tais como foram conservados na memria popular brasileira. Sua lngua ritual o portugus falado no Brasil. Suas entidades espirituais cultuadas so espritos de mortos que constituem categorias mais genricas, onde a referncia vida pessoal substituda por um esteretipo. Isto , no a evocao deste ou daquele indivduo em particular, mas a representao de modelos sociais expressos em seus cavalos que realizam a passagem destas entidades de seu mundo sagrado para o mundo profano dos homens. Para muitos, o grande trunfo desta religio estaria no fato de que, por meio do seu universo mgico/religioso, expressaria uma inverso simblica no que diz respeito s relaes de poder. Tal como exposto por Maggie:

Esses modelos sociais expressos nos exus, pretos-velhos, pombas-giras e caboclos, figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla transformam-se, no ritual, no s em figuras de prestgio, mas em deuses, e entre eles os que mais atuam. Ou seja, o inverso do que seriam na vida cotidiana, no sagrada (2001, p.118).

Esse mecanismo de inverso simblica, onde figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla (ex-escravos, ndios, crianas, marginais, 177

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______________________________________________________________________ prostitutas, estrangeiros) passam categoria de deuses, poderosos e atuantes, onde o homem branco imagem ideal colocada no topo da ordem evolutiva, no tem os poderes que possuem seus subalternos (Birman, 1985:46). Eis, portanto, a dependncia destes em relao aos seus deuses na resoluo de problemas quer sejam de ordem financeira, de sade, sexual ou amorosa. Birman afirma que, ao contrrio do candombl em que todos os orixs pertencem aos domnios da natureza, o pensamento umbandista redimensiona o mundo natural e introduz espritos pertencentes ao domnio da civilizao (ou de segunda natureza, socialmente construda). Ela cria, portanto, uma outra forma de pensar o mundo sobrenatural e o sagrado (op.cit.:38), conforme a matriz abaixo:

NATUREZA

MUNDO CIVILIZADO Pretos-velhos

MUNDO MARGINAL Exus

Caboclos

Crianas

Fonte: BIRMAN, Patrcia. (1985), O que umbanda. So Paulo, Brasiliense.

Caboclos, pretos-velhos, crianas, exus e suas verses femininas, as pombas-giras formam o conjunto do qual so retirados os espritos que do consulta. H algo de peculiar que une estes tipos de espritos entre si. E so essas particularidades que do umbanda o que ela tem de especfico em sua dinmica. Na formao de um povo mestio, com uma cultura mestia, outros personagens entram em cena nos terreiros de umbanda: boiadeiros, marinheiros, sereias, ciganos, baianos, Outras entidades foram includas porque se sabe que eram perseguidas, como de meninos de rua. A partir do que foi exposto possvel reconstruir uma nova matriz, para dar conta desta diversidade: o caso dos judeus. Outros ainda, porque sofrem o preconceito da sociedade mais ampla como os espritos de homossexuais e

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NATUREZA

MUNDO CIVILIZADO

MUNDO MARGINAL Exus, Malandros, Pombas-Giras, Pombas-Giras Ciganas, Exus mirins e Homossexuais

MUNDO RURAL Boiadeiros, Baianos, Gachos, Caboclos de Cod (MA), Mestres da Jurema

EXTRANGEIROS

Matas: Caboclos Mares e Rios: Marinheiros Sereias, Ondinas e Caboclinhos

Pretos-velhos e Crianas

Ciganos, Ciganas, Povos da linha do Oriente, Oguns (soldados) e Judeus

Nesse sentido, a umbanda, ao absorver o sincretismo que caracteriza o universo religioso afro-brasileiro, o faz intervindo de forma consciente nesse campo heterogneo, com o objetivo de produzir uma sntese que possa refletir, no nvel religioso, as contribuies (e contradies) dos grupos formadores da experincia social e histrica do Brasil. Os guias da umbanda

Na umbanda so numerosos os personagens possveis que transitam por sua mitologia e cerimonial. Isto permite demonstrar que esta religio possui um carter de abertura contida nos limites de uma progresso geomtrica e por isso mesmo humanamente infinitos. Inveno cultural notvel, a umbanda, traz para a interpretao e resoluo de conflitos, personagens marginais da hierarquia simblica dominante: caboclos afoitos, que representam os espaos no domesticados das matas; pretos-velhos, escravos j margem do trabalho, que tm a humildade e a sabedoria realista de uma vida sofrida; crianas, que ainda no entraram na idade da razo; exus, malandros e pombas-giras, identificados com os personagens das ruas, que no se escondem atrs de mscaras sociais bem comportadas e que se movem com facilidade pelos meandros perversos dos conflitos humanos.

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______________________________________________________________________ Partindo do princpio que o imaginrio rompe com as fronteiras do tempo e do espao e, em sua lgica prpria, as divindades so construdas a partir da revelao das qualidades que simbolizam, outras categorias de espritos vo se encaixando no panteo umbandista segundo critrios variados. Eles passam a representar a insero de novos elementos e atores sociais para a identificao daquilo que se denomina Nao brasileira. Os boiadeiros, representantes do serto brasileiro, so srios e bravos, dedicam-se a desmanchar os trabalhos realizados contra os seus clientes; os marinheiros, considerados como alcolatras e mulherengos, no acostumados com a terra firme, tem um gingado oscilante decorrente do tombo do navio ou do efeito do lcool, levam os feitios para as zonas do mar sagrado; as sereias, sob a invocao de Iemanj, so figuras mitolgicas, metade peixe e metade mulher, e se dedicam ao mesmo ofcio dos marinheiros: levam as agruras de seus consulentes s zonas mais profundas do mar. Os ciganos e as ciganas, juntamente com a linha oriental, simbolizam os estrangeiros, do consultas particulares fora das giras em que lem cartas e falam sobre o destino de seus consulentes; os baianos, supostos espritos de velhos pais-de-santo do candombl da Bahia e dos nordestinos em geral, falam com sotaque e grias nordestinas e, fora das giras, jogam o orculo de bzios para os seus fiis. Outros personagens foram includos no panteo da umbanda porque se sabe que eram perseguidos, no caso dos judeus. Outros porque foram (e so) considerados como delinqentes, como o caso dos meninos de rua e outros ainda porque se constituem as principais vtimas do preconceito e da discriminao dentro da sociedade, como o caso dos homossexuais. So estes os guias para a proteo e o aconselhamento. Distantes das autoridades oficiais, sejam seculares ou sagradas, estes possuem os poderes que se acumulam nas margens das estruturas burocrticas e simblicas. So poderes usualmente descartados pelas ideologias oficiais, que encontram abrigo na umbanda e que podem, por meio dela, dar um sentido positivo experincia e ao destino daqueles que procuram cotidianamente os seus terreiros.

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Exus-mirins: os meninos de rua da umbanda

Os exus-mirins so considerados, pelos umbandistas, espritos infantis que fazem parte da linha dos exus. Em todos os relatos colhidos 1, tais entidades so vistas como crianas perversas, delinqentes e ms e que, por isso, apesar da pouca idade deles, so considerados exus crianas. Acredita-se que estes espritos infantis conviveram nas ruas, afastaram-se das relaes familiares j em idade tenra e foram expostas s mais perversas formas de discriminao social, alm dos riscos de violncia das grandes cidades. Segundo os fiis umbandistas e a partir da prpria fala destas entidades quando incorporados em seus cavalos, duas so as principais caractersticas que definem os exus-mirins2: 1) Foram espritos de crianas que viveram nas ruas. Carregam dentro de si a mgoa contra uma sociedade que os colocou nesta condio. Segundo este relato:
Eu sou exu-mirim, de criancinha, de criana que rouba e mata. Ns exu-mirim somos crianas com maldade no corao (...) Porque o mundo levou a gente assim. A gente roubava coisinha, a prende, n?, A vem polcia, a triste, batia na gente. E a gente no roubava muita coisa no, a gente roubava coisinha, s pra comer. Eu sofri muito, muito. Polcia me bateu com aquelas coisas, fazia assim na minha bunda. Dormi na rua. Eu no comia, eu no comia porque eu no tinha comida. Eu tinha que roubar carteira. Eu falava assim: Tio, tio me d um dinheirim e falava Vai trabalhar vagabundo. A eu roubava. Eu dormia no relento. Quer saber como eu morri? Morri de facadas, que um bandido veio e me matou (Exu-mirim C. P. [Menino], incorporado, em entrevista, Braslia/DF, mar/2003 [Mdium M. R., feminino]).

Na elaborao da minha tese de doutorado, tive a oportunidade de entrevistar diversos mdiuns em estado de possesso com suas entidades espirituais incorporadas em seus prprios corpos, o que possibilitou algumas verses individualizadas destes guias muito interessantes para os objetivos do trabalho. 2 Nestes dois casos especficos em que os mdiuns foram possudos por entidades que se autodenominavam como exus-mirins no identifiquei possveis traos de autobiografia destes mdiuns identificados a uma infncia atordoada. Vale lembrar que em ambas as entrevistas, os mdiuns incorporados por tais entidades que se autodenominavam da linha de exusmirins, possuam sexo diferente daquele que era manifesto pelas entidades. A entidade que se definia como menina possuiu o corpo de um mdium masculino, casado e pai de trs filhos enquanto que a entidade que se definia como menino possuiu o corpo de uma mulher, tambm casada e j av de dois netos.

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______________________________________________________________________ Alguns se apresentam revoltados contra as injustias que sofreram em sua vida material e contra a prpria sociedade:
Eu sou exu-mirim, maldosa. Eu quero matar, eu quero ver os outros no cho, porque eu sou criana, mas eu fui sofrida! Antes de eu nascer, eu j vi o mundo ruim. Eu no tive nada. Meu pai matou a minha mezinha quando eu era criana. E ele me batia muito. E tive que ir pras ruas. por isso que eu quero matar, eu quero tomar sangue. Desde criana eu s via a vida ruim. Olha, a minha voz [bem rouca], tudo ruim, ruim, ruim. O meu mundo foi ruim e eu sou ruim. (...) Porque esse mundo de dio. Eu quero beber e quero fumar e eu sou apenas uma criana. Sabe o que ter febre e fome? No me pegue, eu sou rebelde. Eu sou o contrrio. Eu quero ficar naquele mundo turro [escuro], feio, frio e febril. Eu sou uma criana, mas eu odeio este mundo. Eu odeio vocs. Eu s nasci para sofrer (Exumirim, N. [Menina], incorporada, em entrevista, Braslia/DF, out/2003 [Mdium M., masculino]).

Interessante afirmar que a fala destas entidades tendem a caracterizar a representao que os exus-mirins trazem em relao aos meninos de rua da sociedade mais ampla: a sua invisibilidade associada ao universo da revolta. Esta invisibilidade, tal como na sociedade real, impede a identificao destas personagens como indivduos: so simplesmente crianas, pobres, mais escuras do que a classe mdia, em andrajos e vista como perigosas. Mostram que estes meninos vo para a rua em busca de dinheiro, para suplementar a renda familiar ou para apenas obter dinheiro para seu consumo. Um outro elemento que fica evidente na fala destas duas entidades se refere violncia domstica, o que nisto aumentaria a probabilidade de que crianas e adolescentes saiam de casa para ficar na rua e, o que pior, para viver na rua. 2) Por outro lado, apesar de serem espritos infantis, estas entidades so consideradas espritos de muita fora. Um deles incorporado em seu cavalo, diz o seguinte:
A gente ajuda muito as crianas que mexem com drogas, crianas que vivem na rua como ns viveu. Problemas de filhos revoltados, t entendendo? (Exu-mirim, C. P. [Menino], incorporado, em entrevista, Braslia/DF, mar/2003 [Mdium M. R., feminino]).

A concentrao do consumo de drogas que caracteriza como um comportamento de meninos que vivem nas ruas, aponta para uma importante 182

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______________________________________________________________________ ruptura com a famlia. Ao fazer a associao com a sociedade mais ampla possvel afirmar que para essas crianas, sem famlia nem escola, a rua se transforma numa instituio quase total. Uma outra entidade desta linha ritual incorporado em seu cavalo, diz que capaz at de matar:
Eu sou uma criana. Voc pensa que eu sou uma criana s, mas eu posso matar. Eu tenho que me impor com a minha voz, o jeito que eu sou e eu posso matar. Eu sou do mal (Exumirim, N., [Menina], incorporada, em entrevista, Braslia/DF, out/2003 [Mdium M., masculino]).

Na fala acima fica evidente que esta mensagem transmite a permissividade e o ressentimento com a sociedade que a rejeita tambm. Ao fazermos a associao aos meninos e meninas de rua da sociedade real possvel afirmar que o crime aprendido e essa populao de crianas retransmissora de comportamentos criminosos e para-criminosos. Ao analisar alguns pontos cantados destinados aos exus-mirins, um deles afirma a fora que eles possuem. Um destes afirma o seguinte:
Exu-mirim o meu exu de f Exu-mirim pequeno na quimbanda, Exu-mirim saravando a encruza, Exu-mirim vencendo suas demandas.

Os presentes relatos demonstram que a revolta elemento generalizado nas falas destas entidades. Tais discursos se aproximam em muito daqueles das crianas de rua do mundo real coletados por Machado (1997) ao estudar os meninos de rua do eixo monumental. Segundo a autora, os discursos destes meninos os colocam sempre como vtimas, estando presente algumas referncias figura do agressor. Para Machado: Toda a agressividade encontra sua origem em uma frustrao. A agressividade seria um meio de transpor os obstculos que se opem satisfao de uma necessidade instintiva (op.cit., p.297). Tais sentimentos dos meninos de rua reais coletados pela autora, se encontram tambm na fala dos exus-mirins, coletados por mim para o presente trabalho. O sentimento de excluso, de desamparo latente. Roubar e at mesmo matar, no se aprende da noite para o dia, mas com o sofrimento, pela necessidade da sobrevivncia o demonstrando que estes meninos de rua refletem um grande problema social. 183

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______________________________________________________________________ Consideraes Finais Caracterizados como possuidores de atitudes, hbitos e modalidades de comportamento estabelecidas conforme as diferentes origens geogrficas e sociais e do pertencimento a categorias sociais marginalizadas, as entidades brasileiras da umbanda, enquanto representaes coletivas, constituem fatores sociais projetados e vividos pelos homens comuns. Na unidade de construo destas figuras mticas e no entendimento de suas narrativas formuladas em seus prprios termos e proferidas pela boca de seus cavalos, superpem-se as diversidades indicadoras de sentimentos, aspiraes e atitudes individuais de suas experincias sociais, revelando o sentimento comum e individualizado que os seus prprios mdiuns e fiis possuem da sociedade. No plano ideolgico, estas entidades so codificadas, conceituadas e hierarquizadas dentro de um universo csmico como projeo e projeto do universo social. A prpria hierarquia dos espritos corresponde estratificao hierrquica das classes, dos tipos tnicos, raciais e sociais da sociedade brasileira mais ampla. Cada esprito, do seu modo, incorpora-se para dizer algo que acrescenta ou se contrape a outra voz enunciada de outra perspectiva igualmente vlida. Este processo favorvel incluso de conflitos e explicitao de contradies. O lugar de autoridade, em ltima instncia, devolvido ao fiel. A partir das narrativas coletadas por estas entidades incorporadas em seus cavalos, foi possvel situ-los em quadros sociais de referncia em que se constri a memria coletiva de homens e mulheres comuns, indivduos annimos, tipos sociais conhecidos por todos, marginalizados em potencial. Nesta medida, a umbanda profundamente solidria incluso de novos personagens em seu panteo (ainda que em lugar discreto, como o caso de entidades judias, homossexuais e meninos de rua). Talvez venha da, segundo os umbandistas, a fonte maior dos poderes destas entidades espirituais. Esta condio implica em perigo e poder, conforme assinala Mary Douglas: ter estado nas margens ter estado em contato com o perigo e ter ido fonte de poder (1976, p.120). As margens so, 184

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______________________________________________________________________ assim, perpetuamente o santurio dos conflitos sociais e tambm o lugar do trnsito. evidente que estas duas lgicas se cruzam, interpenetram-se, chocam-se. Contudo, viver na marginalidade bastante precrio, de vez que o marginal no pode cortar todos os laos com a sociedade dominante. Ele est permanentemente sob seu olhar, que cedo ou tarde o conduz excluso total ou a uma possvel reinsero, desde que os valores da sociedade dominante sejam absorvidos por estes grupos marginais. De modo que o grupo dominante, a fim de manter a sua posio, constri e difunde uma ideologia, que aceito pelo grupo dominado, de forma a que este interiorize a sua subordinao. Desta forma, a umbanda se torna uma excelente oportunidade para refletir e questionar formas sociais de cognio e alternativas de resistncia tnica e cultural. Eminentemente performance, o culto conjuga saber popular, prticas de cura de feridas histricas e de mazelas da memria, e uma tica crtica implcita s suas magias. Ao representarem as vrias contradies da sociedade brasileira, as entidades brasileiras da umbanda acabam tambm por funcionarem como referncias por meio do qual podero ser discutidos, no campo do imaginrio, inmeros outros temas sociais da realidade mais ampla, tais como as relaes raciais, o racismo, a escravido, o preconceito, o homossexualismo, as minorias, as relaes entre tica e moral, a cidadania, etc.

Referncias Bibliogrficas

BARROS, Sulivan Charles. (2004), Brasil imaginrio: umbanda, poder, marginalidade social e possesso. Tese de Doutorado em Sociologia. Braslia, Departamento de Sociologia, Universidade de Braslia.

BIRMAN, Patrcia. (1985), O que umbanda. So Paulo, Brasiliense [Coleo Primeiros Passos].

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______________________________________________________________________ MACHADO, Maria Salete Kern. (1997), Os meninos de rua do eixo monumental In. NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.), Braslia: a construo do cotidiano. Braslia, Paralelo 15.

MAGGIE, Yvonne. (2001), Guerra de orix: um estudo do ritual e do conflito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

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